Cultura na era do consumo

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ZYGMUNT BAUMAN: A CULTURA NA ERA DO CONSUMO Zygmunt Bauman analisa como a economia e o mercado transformaram os bens culturais em objetos de compra e venda. Sobre a base de estudos realizados na Gram Bretanha, Chile, Hungria, Israel e Holanda, uma equipe de treze membros dirigido pelo respeitado sociólogo de Oxford John Goldthorpe chegou à conclusão de que já não é possível diferenciar facilmente a elite cultural de outros níveis mais baixos na correspondente hierarquia mediante os signos que outrora eram eficazes: a assistência regular a ópera e a concertos, o entusiasmo por tudo o que em algum momento se considere “arte elevada” e o hábito de contemplar com desprezo “lo comum, desde as cancões pop até a televisão comercial". Isso não equivale a dizer que já não existam pessoas consideradas - em grande medida por elas mesmas- integrantes de uma elite cultural: verdadeiros amantes da arte, gente que sabe melhor que seus pares não tão cultivados de que se trata a cultura, em que consiste e que se julga comme il faut ou comme il ne faut pas -apropriado ou inapropriado- para um homem ou uma mulher de cultura. Exceto que, a diferença de aquelas elites culturais da modernidade, já não são “connoisseurs” no sentido estrito de menosprezar o gosto do homem comum ou o mal gosto dos ignorantes. Pelo contrário, hoje resulta mai apropriado qualificá-los de “omnívoros”, recorrendo ao termo proferido por Richard A. Peterson, da Vanderbilt University: em seu repertório de consumo cultural há espaço para a ópera e

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ZYGMUNT BAUMAN: A CULTURA NA ERA DO CONSUMO

Zygmunt Bauman analisa como a economia e o mercado transformaram os bens

culturais em objetos de compra e venda. 

Sobre a base de estudos realizados na Gram Bretanha, Chile, Hungria, Israel e Holanda,

uma equipe de treze membros dirigido pelo respeitado sociólogo de Oxford John

Goldthorpe chegou à conclusão de que já não é possível diferenciar facilmente a

elite cultural de outros níveis mais baixos na correspondente hierarquia mediante os

signos que outrora eram eficazes: a assistência regular a  ópera e a concertos, o

entusiasmo por tudo o que em algum momento se considere “arte elevada” e o hábito de

contemplar com desprezo “lo comum, desde as cancões pop até a televisão comercial".

Isso não equivale a dizer que já não existam pessoas consideradas - em grande medida

por elas mesmas- integrantes de uma elite cultural: verdadeiros amantes da arte, gente

que sabe melhor que seus pares não tão cultivados de que se trata a cultura, em que

consiste e que se julga comme il faut ou comme il ne faut pas -apropriado ou

inapropriado- para um homem ou uma mulher de cultura. Exceto que, a diferença de

aquelas elites culturais da modernidade, já não são “connoisseurs” no sentido estrito de

menosprezar o gosto do homem comum ou o mal gosto dos ignorantes. Pelo contrário,

hoje resulta mai apropriado qualificá-los de “omnívoros”, recorrendo ao termo proferido

por Richard A. Peterson, da Vanderbilt University: em seu repertório de consumo

cultural há espaço para a ópera e também para o heavy metal, o punk, para a “arte

elevada” e também para a televisão comercial, para Samuel Beckett y também para

Terry Pratchett. Um Mordisquito disto, um bocado de aquilo, hoje uma coisa, amanhã

outra. Uma miscelânia. De acordo com Stephen Fry, autoridade em tendências da moda

expert da mais exclusivs sociedade londrinense (assim como estrela de exitosos

programas televisivos). Fry admite publicamente:

Uma pessoa pode ser fanática pelo digital a outra vez ler livros; pode ir à ópera,

assistir a uma partida de criquet e reservar entradas para um recital de Led Zeppelin

sem partir-se em pedaços. Você gosta da  comida tailandesa? O que tem de mal à

italiana? Epa, calma. Gosto das duas. Sim, se pode. Eu posso gostar de rugby, de

futebol o de  musicais de Stephen Sondheim. O gótico victoriano e d as instalações de

Damien Hirst. Herb Alpert & The Tijuana Brass e as obras para piano de Hindemith.

Os hinos ingleses e Richard Dawkins. As edições originais de Norman Douglas, e

ademais os iPods, o billar inglês, os dardos e o balet.

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Então, tal como  enunciou Peterson em 2005 sintetizando vinte anos de investigação:

“Observamos um deslizamento na política dos grupos de elite, desde aquela

intelectualidade esnobe que desdenha toda la cultura baixa, vulgar ou popular de massas

[.] até a intelectualidade omnívora que consume um amplio espectro de formas artísticas

populares assim como cultas”. Em outras palavras, nenhuma obra da cultura me é

estranha: não me identifico com nenhuma cem por cento, de maneira total e absoluta, e

menos ainda o preço de negar-me outros prazeres. Em todas as partes me sinto como em

casa, apesar de que (ou quem sabe porque) não há nenhum lugar que possa considerar

minha casa. Não se trata tanto da confrontação entre um gosto (refinado) e outro

(vulgar), como do omnívoro contra o unívoro, a disposição a consumi-lo todo contra a

seletividade melindrosa. A elite cultural está viva e rabeando: hoje está mais ativa e

ávida que nunca. porém está tão ocupada seguindo hits e outros eventos culturais

célebres que não tem tempo para formular cânones de fé o converter a outros.

Aparte do princípio de “não ser meticuloso, não ser exigente” e “consumir mais”, não

tem nada que dizer à  multidão unívora que está na base da hierarquia cultural.

E no entanto , como se ler em una obra de Pierre Bourdieu de  apenas umas décadas,

houve um tempo em que cada oferta artística estava dirigida a uma classe social

específica, e somente a essa classe, em tanto que era aceitada unicamente -ou

primordialmente- por essa classe. O triplo efeito de aquelas ofertas artísticas -definição

de classe, segregação de classe e manifestação de pertencimento a uma classe- era, de

acordo com Bourdieu, se essencial razão de ser, a mais importante de suas funções

sociais, quem sabe inclusive seu objetivo oculto, se não declarado.

Segundo Bourdieu, as obras de arte destinadas ao consumo estético indicavam,

assinalavam e protegiam as divisões entre classes, demarcando e fortificando

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legivelmente as fronteiras que separava, umas de outras. A fim de traçar fronteiras

inequívocas e protegê-las com eficácia, todos os objets d’art, ou ao menos uma

significativa maioria, deviam estar destinados a conjuntos mutuamente excludentes,

cujos conteúdos não correspondia mesclar nem aprovar ou possuir de forma simultânea.

O que contava não eram tanto seus conteúdos ou qualidades inatas como suas

diferenças, sua intolerância mutua e la proibição de conciliá-las, características

erroneamente apresentadas como manifestação de sua resistência inata e imanente às

relações morganáticas. Havia gostos das elites - "alta cultura" por natureza-, gostos

medíocres ou “filisteus” típicos da classe média e gostos “vulgares”, venerados pelas

classes baixas: e mesclar esses gostos era mais difícil que mesclar água com fogo.

Talvez a natureza abominara do vazio, porém o induvidoso era que a cultura não

tolerava uma mélange. Na distinção, Bourdieu disse que a cultura se manifestava antes

de tudo como um instrumento útil concebido na consciência para marcar diferenças de

classe e salvaguardá-las: como uma tecnologia inventada para a criação e a proteção de

divisões de classe e hierarquias sociais.

Em resumo, a cultura se manifestava tal como a havia descrito Oscar Wilde um século

antes: “Quem encontram significados belos nas coisas belas são espíritos cultivados [.].

São os eleitos, e para eles as coisas belas somente significam beleza”. “Os eleitos”,

digo, os que cantam louvores e aqueles valores que eles mesmos mantém, ao tempo que

se asseguram o triunfo no concurso de canções. É inevitável que encontrem significados

belos na beleza, já que são eles quem decidem o que é a beleza; inclusive antes de que

começara a busca da beleza, quem se não os eleitos decidiram onde buscá=la (na ópera

e não na music hall ou em um posto de férias; n as galerias e não n as paredes da cidade

ou n as reproduções baratas que decoram as casas obreiras e campesinas; em volumes

com tampas de couro e não na gráfica do periódico ou em outras publicações que se

adquirem por centavos). Os eleitos não são eleitos na virtude de sua  percepção do belo,

sim mais bem em virtude de que la asserção “isto es belo” é vinculante precisamente

porque tem-na pronunciado elos e tem confirmado com sus ações.

Sigmund Freud creia que o saber estético busca em vão a essência, a natureza e as

fontes da beleza, suas qualidades imanentes, por assim dizer, e geralmente oculta sua

ignorância em uma torrente de pronunciamentos pomposos, presuntuosos e em última

instância vazios. “A beleza não tem uma utilidade evidente -decreta Freud-, nem é

manifesta sua necessidade cultural, e sem embargo a cultura não poderia viver sem ela.”

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Porém por outra parte, tal como sugere Bourdieu, a beleza tem seus benefícios e há uma

necessidade de que exista. Ainda que,  os benefícios não são “desinteressados”, como

asseverava Kant, são benefícios de todos os  modos, e  a necessidade não é

necessariamente cultural, é social; e é muito provável que tanto os benefícios como a

necessidade de distinguir entre beleza e feiura, ou entre delicadeza e vulgaridade,

perdurem embora existam a necessidade e o desejo de distinguir a alta sociedade da

baixa sociedade, assim como o perito de gostos refinados de quem tem mau gosto, das

vulgares massas, da plebe e da gentalha…

Em consequência de considerar atentamente estas descrições e interpretações, fica claro

que a “cultura” (um conjunto de preferências sugeridas, recomendadas e impostas em

virtude de sua correção, excelência ou beleza) era para os autores citados, em primeiro

lugar e em definitiva, uma força “socialmente conservadora”. A fim de demostrar sua

eficácia nesta função, a cultura tinha que por em prática, com igual tensão, dos atos de

subterfúgio aparentemente contraditórios. Tinha que ser tão enfática, severa e inflexível

em suas avaliações como em suas censuras, em outorgar como em negar entradas, em

autorizar documentos de identidade como em negar direitos de cidadania. Ademais de

identificar que era desejável e recomendável por ser “como deve ser” - familiar e

acolhedor-, a cultura necessitava significantes para indicar que coisas mereciam

desconfiança e deviam ser evitadas a causa de sua baixeza e sua ameaça encoberta;

letreiros que advertiram, como mais adiante dos confins de Roma nos mapas antigos,

que hic sunt leones: aqui têm  leões. A cultura devia assemelhar-se ao náufrago de

aquela parábola inglesa aparentemente irônica porém de intenção moralizante, que a fim

de sentir-se como em casa, é dizer, de adquirir una identidade e defendê-la com eficácia,

teve que construir três moradas na ilha deserta onde havia naufragado seu barco: a

primeira era sua vivenda, a segunda era o clube que frequentava todos os sábados e a

terceira cumpria a única função de ser o lugar cujo umbral o náufrago não devia cruzar,

e em consequência evitou cruzar assiduamente em todos os largos anos que passou na

ilha.

Quando foi publicado há mais de trinta anos, a distinção de Bourdieu pôs patas acima o

conceito original de “cultura” nascido com a Ilustração e logo transmitido de geração

em geração. O significado de cultura que descobria, definia y documentava Bourdieu

estava a uma distância remota do conceito de “cultura” tal como o havia moldado e

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introduzido na linguagem corrente durante o terceiro quarto do  século XVIII, quase ao

mesmo tempo que o conceito inglês de refinement e o alemão de Bildung.

De acordo com seu conceito original, a “cultura” não devia ser uma preservação do

statu quo sim um agente de mudança; mais precisamente, um instrumento de navegação

para guiar a evolução social tinha uma condição humana universal. O propósito original

do conceito de “cultura” não era servir como um registro de descrições, inventários e

codificações da situação imperante, sim melhor fixar uma meta e uma direção para as

iniciativas futuras. O nome “cultura” foi assimilado à uma missão proselitista que se

havia planejado e empreendido como uma série de tentativas cujo objeto era educar as

massas e refinar seus costumes, para melhorar assim a sociedade e conduzir o “povo” -

é dizer, a quem provinham das “profundidades da sociedade - Tinha suas mais altas

cúpulas. A “cultura” se associava a um “raio de luz” que passava “embaixo dos beirais”

para ingressar nas moradas do campo e da cidade, Chegando aos escuros esconderijos

do prejuízo e da superstição que, como tantos outros vampiros (se creia), não

sobreviveriam à luz do dia. De acordo com o apaixonado pronunciamento de Matthew

Arnold em seu influente livro com o sugestivo título Cultura e anarquia (1869), a

“cultura” “procura suprimir as classes sociais, difundir em todas as partes o melhor que

se tenha pensado ou conhecido no mundo, lograr que todos os homens vivam em uma

atmosfera de beleza e inteligência”; ademais, de acordo com outra opinião expressada

por Arnold em sua introdução à Literature and Dogma (1873), a cultura é a combinação

dos sonhos e dos desejos humanos com o esforço de quem quer e pode satisfazê-los: “A

cultura é a paixão pela beleza e a inteligência, e (mais ainda) a paixão por fazê-las

prevalecer”.

A palavra “cultura” ingressou no vocabulário moderno como uma declaração de

intenções, como o nome de uma missão que ainda era preciso empreender. O conceito

era tanto um slogan como um chamado à ação. Igual ao conceito que proporcionou a

metáfora para descrever esta intenção (o conceito de “agricultura”, que associava os

agricultores com os campos que cultivavam), exortava ao lavrador e ao semeador a que

araram e semeavam o solo árido para enriquecer a colheita mediante o cultivo (inclusive

Cicerón usou esta metáfora ao descrever a educação dos jovens com o término da

cultura animi). O conceito suponha uma divisão entre os educadores chamados a

cultivar as almas, relativamente escassos, e os numerosos sujeitos que haviam de ser

cultivados; os guardiães e os guardados, os supervisores e os supervisados, os

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educadores e os educandos, os produtores e seus produtos, sujeitos e objetos, assim

como o encontro que devia ter lugar entre eles.

Da palavra “cultura” se inferia um acordo planejado e esperado entre quem possuíam  o

conhecimento (ou ao menos estavam seguros de possuí-lo) o os incultos (chamados

assim por suas entusiastas aspirantes a educadores); um contrato, vale aclarar, previsto

de uma só firma, endossado de forma unilateral e posto em marcha baixo a exclusiva

direção da flamante “classe instruída”, que reivindicava seu direito a moldear a ordem

“nova e melhor” sobre as cinzas do Ancien Régime. A intenção expressa desta nova

classe era a educação, a ilustração, a elevação e o enobrecimento do povo, de quem

recentemente havian sido investidos no rol de citoyens nos novos état-nations, o

aparecimento de uma nação recém formada que se elevava à existência de Estado

soberano com o  novo Estado que aspirava a desempenhar o papel de fideicomissário,

defensor e guardião da nação.

O “projeto de ilustração” outorgava à cultura (entendida como atividade semelhante ao

cultivo da terra) o status de ferramenta básica para a construção de uma nação, um

Estado e um Estado nação, uma vez que confiava essa ferramenta às mãos da classe

instruída. Entre ambições políticas e deliberações filosóficas, pronto cristalizaram duas

metas gêmeas da empresa de ilustração (já se as anunciava abertamente ou se as

supusera de forma tácita) o dobre postulado da obediência dos súditos e a solidaridade

entre compatriotas.

O crescimento da "população" aumentava a confiança do Estado-nação em formação,

pois se acreditava que o aumento do número de potenciais trabalhadores-soldados

aumentaria seu poder e garantiria sua segurança. No entanto, uma vez que o esforço

conjunto da construção  nacional e o crescimento econômico também resultava em um

excedente cada vez maior de indivíduos (em essência, era necessário descartar

categorias inteiras da população para levar adiante e fortalecer a ordem desejada e

acelerar a criação de riqueza), o novo estado-nação logo enfrentou a necessidade

urgente de encontrar novos territórios além de suas fronteiras: territórios com

capacidade de absorver o excesso de população que já não encontrava lugar dentro dos

limites do seu.

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A perspectiva de colonizar áreas distantes demonstrou ser um poderoso estímulo para a

noção iluminista de cultura e dotou a missão proselitista de uma dimensão

completamente nova que abarcava em potência o mundo inteiro. Em reflexo exato da

ideia de "esclarecimento das pessoas" foi forjado o conceito de "missão homem

branco", que constituía-se em "salvar o Selvagem de sua barbárie." Logo esses

conceitos seriam dotados de um comentário teórico na forma de uma teoria

evolucionista da cultura, o que elevou o mundo "desenvolvido" ao status de perfeição

inquestionável, que viria a ser imitado ou desejado pelo resto do planeta. Por causa

dessa meta era necessário ajudar ativamente  o resto do mundo, coagindo-o no caso de

colocar  resistência. A teoria evolucionista da cultura dava a função à sociedade

"desenvolvida" de converter todos os habitantes do planeta. Todas  seus futuros

empreendimentos e iniciativas foram reduzidos ao papel que estava destinada a

desempenhar a elite educada da metrópole colonial contra a sua própria "população"

metropolitana.

Bourdieu concebeu sua investigação, coletou os dados e os interpretou no preciso

momento em que estas iniciativas começavam a perder seu ímpeto e seu sentido de

direção, e em termos gerais já estavam sem vida, pelo menos n as metrópoles onde se

tramavam as visões do futuro esperado e postulado, embora não tanto nas periferias do

império, de onde as forças expedicionárias eram chamadas a voltar muito antes de que

tivessem logrado elevar a vida dos nativos aos padrões adotados as metrópoles. Em

quanto a estas últimas, a já bicentenária declaração de intenções havia logrado

estabelecer nelas uma ampla rede de instituições executivas, financiadas e administradas

principalmente pelo Estado, com suficiente vigor como para apoiar-se no seu próprio

ímpeto, sua rotina arraigada e sua inércia burocrática. Já se havia moldeado o produto

desejado (um “populacho” transformado em um corpo cívico) e se havia assegurado a

posição das classes educadoras na nova ordem, ou ao menos se havia logrado que

fossem aceitas como tais. Longe daquela audaz e arriscada tentativa, cruzada a missão

de ano passado, a cultura se assemelhava agora a um mecanismo homeostático: uma

espécie de giroscópio que protegia o Estado nação dos ventos de mudança e das

contracorrentes, uma vez que o ajudava, apesar das tempestades e os caprichos do

tempo instável, a “manter o barco em seu rumo correto” (o ao menos, como diria

Talcott Parsons mediante sua expressão até  então em voga, permitir que o “sistema”

“recobre seu próprio equilíbrio”).

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Em resumo, a “cultura” deixava de ser um estimulante para transformar-se em

tranquilizante, deixava de ser o arsenal de uma revolução moderna para transformar-se

em um depósito de produtos conservantes. A “cultura” passou a ser o nome das funções

adjudicadas a estabilizadores, homeostatos o giroscópios. Quando Bourdieu a captou,

imobilizou, registrou y analisou à maneira de uma instantânea na distinção, a cultura se

encontrava em pleno cumprimento destas funções (que pronto se revelariam como

efêmeras). Bourdieu não logrou separar ao destino da proverbial coruja de Minerva,

essa deusa de toda sabedoria: observava uma paisagem iluminada pelo sol poente, cujos

contornos haviam adquirido uma nitidez momentânea que pronto se fundiria no

iminente crepúsculo. O que captou em sua análise foi a cultura em sua etapa

homeostática: a cultura ao serviço do statu quo, da reprodução monótona da sociedade e

o mantimento dol equilíbrio do sistema, justo antes da inevitável perda de sua posição,

que se aproximava a passo redobrado.

Essa perda de posição foi o resultado de uma série de processos que estavam

transformando a modernidade, levando-a de sua fase “sólida” a sus fase “líquida”. Uso

aqui o termo “modernidade líquida” para a forma atual da condição moderna, que outros

autores denominam “pós-modernidade”, “modernidade tardia”, “segunda” o “hiper”

modernidade. Esta modernidade se torna “líquida” no transcurso de uma

“modernização” obsessiva e compulsiva que se propulsa e intensifica a si mesma, como

resultado da qual, à maneira do líquido - daí a eleição do termo-, nenhuma das etapas

consecutivas da vida social pode manter sua forma durante um tempo prolongado. A

“dissolução de todo  sólido” ha sido a característica inata e definidora da forma moderna

de vida desde o começo, porém hoje, diferente de antes, as formas dissolvidas não hão

de ser substituídas -nem são substituídas- por outras sólidas às que se julgue

“melhoradas”, no sentido de ser mais sólidas e “permanentes” que as anteriores, e em

consequência ainda mais resistentes à dissolução. Em lugar das formas em processo de

dissolução, e portanto não permanentes, vem outras que não são menos -si é que não são

mais- suscetíveis à dissolução e  igualmente desprovidas de permanência.

Ao menos nessa parte do planeta onde se formulam, se difundem, se leem com fruição y

se debatem apaixonadamente as apelações em favor da cultura (a que, recordemos, se

havia elevado antes de seu rol de assistente das nações, os Estados e as hierarquias

sociais em processo de autodeterminação e auto-confirmação),esta perde rapidamente

sua função de serva de uma hierarquia social que se reproduz a si mesma. As tarefas até

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então encomendadas à cultura foram caindo uma por uma, caíram abandonadas ou

passaram a ser cumpridas por outros meios e com diferentes ferramentas. Liberada das

obrigações que lhe haviam imposto seus criadores e operadores -obrigações

consequentes com o rol primeiro missionário e logo homeostático que cumpria na

sociedade -, a cultura pode agora concentrar-se na satisfação e a solução de

necessidades e problemas individuais, em pugna com os desafios e as tribulações das

vidas pessoais.

Pode-se dizer que a cultura da modernidade líquida (e mais em particular, ainda não de

forma exclusiva, sua esfera artística) se corresponde bem com a liberdade individual de

eleição, e que sua função consiste em assegurar que a eleição seja e continue sendo uma

necessidade e um dever inevitável da vida, em tanto que a responsabilidade pela escolha

e suas consequências está onde fica situada a condição humana da modernidade líquida:

sobre os ombros dol individuo, agora designado gerente general e único executor de sua

“política de vida”.

Não falamos aqui de uma mudança de paradigma nem de sua modificação: resulta mais

apropriado falar do começo de uma era “pós-paradigmática” na história da cultura (e

não só da cultura). Embora o termo “paradigma” ainda não haja desaparecido do

vocabulário cotidiano, se tem adicionado à família das “categorias zumbis” (como dirua

Ulrich Beck), que cresce a passo acelerado: categorias que devem ser usadas sous rature

[em rascunho] se, em ausência de substitutos adequados, todavia não estamos em

condições de renunciar a elas (como preferia dizer Jacques Derrida). A modernidade

líquida é uma arena onde se libra uma constante batalha de morte contra todo tipo de

paradigmas, e com efeito contra todos os dispositivos homeostáticos que servem à

rotina e ao conformismo, é dizer que impõem a monotonia e mantém a previsibilidade.

Ele se aplica tanto ao conceito paradigmático herdado de cultura como à cultura em

sentido amplo (é dizer, a soma total dos produtos artificiais ou o “excedente da

naturaleza” feito pelo ser humano), que aquele conceito intentou captar, assimilar

intelectualmente e fazer inteligível.

Hoje a cultura não consiste em proibições sim em ofertas, não consiste em normas sim

em propostas. Tal como assinalou antes Bourdieu, a cultura hoje se ocupa de oferecer

tentações e estabelecer atrações, com sedução e iscas em lugar de regulamentos, com

relações públicas em lugar de supervisão policial: produzindo, semeando e plantando

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novos desejos e necessidades em lugar de impor o dever. Se há algo em relação com o

qual a cultura de hoje cumpre a função de um homeostato, não é a conservação do

estado presente se a abrumadora demanda de mudança constante (ainda quando, a

diferença da fase iluminista, se trata de uma mudança sem direção, ou bem em uma

direção que não se estabelece de antemão). Poderia dizer-se que serve não tanto às

estratificações e divisões da sociedade como ao mercado de consumo orientado pela

renovação de existências.

A nossa é uma  sociedade de consumo: nela a cultura, da mesma forma que o resto do

mundo experimentado pelos consumidores, se manifesta como um depósito de bens

concebidos para o consumo, todos eles em competência pela atenção insuportavelmente

fugaz e distraída dos potenciais clientes, empenhando-se em captar essa atenção além da

palpitação. Tal como assinalamos no  início, a eliminação das normas rígidas e

excessivamente meticulosas, a aceitação de todos os gostos com imparcialidade e sem

preferência inequívoca, a “flexibilidade” de preferências (no atual nome politicamente

correto para o carácter irresoluto), assim como as eleições transitórias e inconsequentes,

constituem a estratégia que se recomenda agora como a mais sensata y correta. Hoje a

insígnia de pertencimento a uma elite cultural é a máxima tolerância e a

mínima picuinhas. O esnobismo cultural consiste em negar ostentosamente o

esnobismo. O princípio do elitismo cultural é a qualidade onívora: sentir-se como em

casa em todo entorno cultural, sem considerar nenhum como o próprio, e muito menos o

único próprio. Um crítico e crítico de TV da imprensa intelectual britânica elogiou um

programa do ano novo 2007-2008 por sua promessa de “brindar um conjunto de

entretenimentos musicais para satisfazer o apetite de todos”. “O bom -explicou- é que

seu atrativo universal permite a um entrar e sair do show segundo a preferência.” É uma

qualidade  digna de elogio e em si admirável d oferta cultural em uma sociedade onde as

redes substituem as estruturas, enquanto que um jogo ininterrompido de conexão e

desconexão dessas redes, assim como a interminável sequência de conexões y

desconexões, substituem à determinação, a fidelidade e a adesão.

Há outro aspecto a destacar nas tendências aqui descritas: uma das consequências de

que a arte se remova de cima a carga de cumprir uma função de peso é também a

distância, frequentemente irônica ou cínica, que adotam com respeito  tanto a seus

criadores como a seus receptores. Hoje o discurso sobre a arte rara vez adquire o tom

cerimonioso ou reverencial tão comum no passado. Já não se chega às mãos. Não se

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levantam barricadas. Não há flashes de punhais. Se se diz algo em relação com a

superioridade de uma forma de arte sobre outra, se o expressa sem paixão e sem brio;

por outra parte, as visões condenatórias e a difamação são menos frequentes que nunca.

Diante deste estado de coisas se esconde uma sensação de vergonha, uma falta de

confiança em si mesmo, una sorte de desorientação: se os artistas já não têm a seu cargo

tarefas grandiosas e transcendentes, se suas criações não servem a outro propósito que

brindar fama e fortuna a uns poucos eleitos, ademais de entreter e comprazer

pessoalmente a seus receptores, Como hão de ser julgados se não é

pelo sensacionalismo que acaso recebem em um momento dado? Tal como

sintetizou habilmente Marshall McLuhan esta situação, “a arte é qualquer coisa que

permita a um sair com a sua”. Ou tal como Damien Hirst -atual menino mimado das

mais elegantes galerias londrinas e de quem podem dar-se ao luxo de ser seus clientes-

admitiu candidamente ao receber o Premio Turner, prestigioso prêmio britânico de arte:

“É assombroso o muito que se pode fazer com  um nível médio escolar regular em artes,

uma imaginação retorcida e uma serra”.

A forças que impulsam a transformação gradual do concepto de “cultura” em sua

encarnação moderna líquida são as mesmas que contribuem a liberar os mercados de

suas limitações não econômicas: principalmente sociais, políticas e étnicas. A economia

da modernidade líquida, orientada ao consumo, se baseia no excedente e o rápido

envelhecimento de suas ofertas, cujos poderes de sedução se murcham de forma

prematura. Posto que resulta impossível saber de antemão quais dos bens oferecidos

lograrão tentar aos consumidores, e assim despertar seu desejo, só se pode separar a

realidade das ilusões multiplicando os intentos e cometendo erros custosos. O

fornecimento perpétuo de ofertas sempre novas é imperativo para incrementar a

renovação das mercadorias, encurtando os intervalos entre a aquisição e o desejo a fm

de substituí-las por bens “novos e melhores”. E também é imperativo para evitar que os

reiterados desencantos de bens específicos levem a desencantar por completo essa vida

pintada com as cores do frenesi consumista sobre o lenço das redes comerciais.

A cultura se assemelha hoje a uma seção a mais da gigantesca tenda de departamentos

em que se há transformado o mundo, com produtos que se oferecem a pessoas que tem

sido convertidas em clientes. Tal como ocorre nas outras secções desta megatenda, os

estandes repletos de atrações que  mudam  diariamente, e os mostradores

estão enfeitados com as últimas promoções, que se  desaparecem de forma

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instantânea como as novidades envelhecidas que publicitam. Os bens exibidos nos

estandes, assim como os anúncios de los mostradores, estão calculados para

despertar desejos irreprimíveis, mas momentâneos por natureza (tal como o enunciou

George Steiner, “feitos para o máximo impacto e a obsolescência instantânea”). Tanto

os comerciantes de bens como os autores de anúncios combinam a arte da sedução com

o desejo irreprimível sentido pelos clientes em potencial para despertar a admiração de

seus pares e desfrutar de um sentimento de superioridade.

Para resumir, a modernidade de cultura líquida já não tem uma "multidão" que ilustrar e

enobrecer, mas clientes para seduzir. Em contraste com a ilustração e o enobrecimento,

a sedução não é uma tarefa única, que é realizada de uma vez por todas, mas uma

atividade que se prolonga indefinidamente. O papel da cultura não é satisfazer as

necessidades existentes, mas  criar novas necessidades, mantendo as já entrincheiradas

ou permanentemente insatisfeitas. O principal objetivo da cultura é evitar o sentimento

de satisfação em seus antigos súditos e alunos, hoje transformados em clientes, em

particular contrariar a sua perfeita, completa e definitiva gratificação, que não deixariam

espaços para novos desejos e necessidades que satisfazer.

A cultura no mundo da modernidade líquida

Zygmunt Bauman