Cupido e Psiquê - Colégio Objetivo - Educação de Qualidade · A onça e o bode ... Fábula...

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Cupido e Psiquê e outras narrativas da literatura mundial

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Cupido e Psiquêe outras narrativas

da literatura mundial

Cupido e Psiquêe outras narrativas

da literatura mundial

Seleção e adaptação

Paulo Sérgio de Vasconcellos

São Paulo

Capa

Francisco Achcar

Editoração

Gilberto Kawasaki

Lisete Rodrigues S. Lima

Revisão

Mônica de Almeida

Coordenação

Inês Achcar

Sumário

Mito da Grécia Antiga ....................................................... 7Midas ..................................................................... 8

Um conto da Literatura Latina ........................................ 12Cupido e Psiquê .................................................... 13

Narrativas de índios do Brasil .......................................... 27Como a noite apareceu .......................................... 28História do guaraná .............................................. 32A onça e o bode ..................................................... 38

Conto dos irmãos Grimm ................................................. 41O enigma ............................................................... 42

Contos populares brasileiros ............................................ 47O bicho Manjaléu ................................................. 48A festa no céu ........................................................ 56

Contos populares de Portugal .......................................... 59A Riqueza e a Sorte .............................................. 60Comadre Morte ..................................................... 63

Fábula ................................................................................ 65O lobo e o cordeiro (Esopo) ................................ 66O lobo e o cordeiro (Fedro) ................................. 67O lobo e o cordeiro (La Fontaine) ....................... 68Narração de Monteiro Lobato ............................. 69Narração de Millor Fernandes ............................. 72

Referências Bibliográficas ................................................ 75

Mito da Grécia Antiga

Um mito é uma narrativa quefala de seres como deuses eheróis e conta a origem do

mundo e de tudo o que neleexiste.

São muito conhecidos, depoisde mais de dois mil anos dacultura grega antiga, os mitosgregos, que têm personagenscomo Narciso, Orfeu, o cavaloPégaso, etc.

Aqui, você conhecerá o mitode Midas.

Midas

erta vez, Sileno, compa-nheiro do deus do vinhoDioniso, foi parar no país do reiMidas. Sileno seguia a comitivado deus, mas, por causa daidade e do muito vinho quebebera, acabou ficando paratrás e se perdendo. Assim queavistou o companheiro deDioniso, Midas fez questão de hospedá-lo em seupalácio e de festejar por dez dias e dez noitesseguidas.

Quando a décima primeira aurora raiou, Midaslevou Sileno até o jovem Dioniso. Alegre com aquelereencontro, o deus do vinho perguntou ao rei:

— Que recompensa você gostaria de receber?Escolha qualquer coisa.

Midas, imprudente, respondeu:— Faça com que tudo o que eu tocar com o meu

corpo se transforme em ouro!Dioniso concordou e concedeu aquele dom.

Midas se foi, todo contente com o que se tornaria afonte de todos os seus males. No caminho, vaitocando tudo o que encontra para testar se o deuscumpriu mesmo a palavra. Mal acreditando no quevê, tira um ramo verdejante de uma árvore, e ele setorna de ouro. Ergue do chão uma pedra: a seutoque poderoso, transforma-se numa barra de ouro.

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C A versão queaqui se lê é

uma adapta-ção da história

tal comocontada pelopoeta romanoOvídio (século

l a. C. - ld.C.).

Colhe espigas de trigo: de repente, é uma colheitade ouro. Onde lava as mãos, as águas setransformam em ouro líquido. Não se contém dealegria, imaginando que tudo a seu redor pode setransformar em ouro!

Já no palácio, eis que seus criados lhe puseramà mesa iguarias e pão. Sentindo fome, o reiprimeiramente corta um pedaço de pão, mas, aotocá-lo, ele se torna duro e dourado, transfor-mando-se em metal. Já estava para devorar asiguarias, mas, quando seus dentes as tocam, umacamada de ouro as recobre. Não consegue comer.Mistura água e vinho para saciar a sede, e eis queouro líquido escorre em sua boca. Espantado eassustado com aquela desgraça inesperada,sentindo-se rico e pobre ao mesmo tempo,amaldiçoa o bem que tanto desejara. A riqueza nãomata sua fome, a sede intensa queima a suagarganta. Todo o ouro à sua volta só servia para otorturar mais e mais.

Por fim, erguendo aos céus as mãos, diz:— Perdoe-me, Dioniso! Errei, sim, mas tenha

compaixão de mim e me tire esse dom enganador.Dioniso foi bondoso: vendo o rei confessar seu

erro, restituiu-o ao estado antigo e desfez o quetinha feito apenas para cumprir o que lhe forapedido.

Midas, odiando agora as riquezas, passou aviver sempre nos campos e nas florestas. Moravanas cavernas das montanhas. Mas sua inteligênciacontinuava pequena e perigosa. Um dia, às

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margens de um rio, o deus Pã pôs-se a dizer às ninfas do lugar que oscantos que entoava na flauta erammais belos que o do próprio deusApolo. Pã, todo orgulhoso, pediuque o rio julgasse quem era melhormúsico. O rio se assenta sobreuma rocha, transformado em umvelho com os cabelos coroados de folhagens, e dáinício à disputa.

Pã fez ressoar sua flauta rude, e Midas, queestava por ali, ficou encantado com a música. Eis,então, que Apolo se apresenta, e o rio e toda afloresta se voltam para o ver. O deus tinha os

cabelos loiros cobertos porfolhas de loureiro; sua veste

cor de púrpura varria o chão;na mão esquerda, trazia a lirade marfim que tinha pedraspreciosas. Apenas Apoloiniciou sua música, extraindo

doces sons harmoniosos doinstrumento, e o rio já sedecidira: a flauta de um devia

reconhecer a superioridade da lira do outro. Todosos presentes estavam de acordo. Só Midas toma apalavra para dizer que o resultado foi injusto.

Apolo não pôde suportar que as orelhasestúpidas de Midas continuassem a ter formahumana. Ele as faz crescer e as enche de pêlos. Eisque o rei tem agora orelhas de asno!

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Ninfas: divindades

que habitamas águas

e asmontanhas.

Púrpura: cor

vermelho-escuracom que se

faziam vestimentas

usadaspor reis.

Midas fez de tudo para esconder dos outrosaquelas orelhas, mas o criado que lhe cortava oscabelos as viu. Porém, não teve coragem de revelaro segredo aos demais. Ardendo de desejo de contara alguém o que descobrira, o criado fez, então, umburaco na terra e confiou seu segredo baixinho aela. Depois, cobriu o buraco com terra e se foi.

Conta-se que naquele lugar nasceram caniços deque eram feitas as flautas antigas. Passado um ano,ao crescerem, as plantas traíram o segredo do rei,pois, quando o vento as agitava com seu brandosopro, ouvia-se nitidamente a frase:

— O rei Midas tem orelhas de burro!...

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Um conto da Literatura Latina

O conto que você vai lera seguir, uma espécie de mito,

é narrado no livro As metamor-

foses ou o asno de ouro, de um es-critor africano do século ll d.C.que escrevia em latim: Apuleio. A história central do livro é orelato das aventuras de Lúcio,um rapaz que, ao tomar porengano uma poção mágica,acaba transformado em asno!

Dentre as várias histórias con-tadas pelas personagens, a

mais famosa é a que você lerá aseguir.

Cupido e Psiquê

ra umavez um rei e

uma rainha quetinham três filhasmuito bonitas. Amais nova era deuma beleza per-feita, que deixa-va todos que a

viam admira-dos e encan-tados. Cha-mava-se Psi-

quê. Vinha gente até de outras cidades e outrospaíses para vê-la. Tão bela era a moça que pareciater Vênus, a deusa do amor, tomado forma humana.Em pouco tempo, começaram as pessoas aabandonar o culto à deusa, esquecendo seustemplos e rituais: todos se dirigiam àquela moça,adoravam-na e rezavam invocando seu nome. Ora,Vênus ficou irritada e indignada por ser assimdeixada de lado por uma mortal. Chamou seu filho,o menino alado, contou-lhe o que estava aconte-cendo e, por fim, disse:

— Meu filho querido, vingue essaofensa feita à sua mãe. Faça com quePsiquê se apaixone por algum serhorrível, tão horroroso que, no mundo

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Em grego, psiquê significa"alma"; primitivamente, era o

sopro vital que dá vida atodos os seres animados.

Cupido, deus do amor, erarepresentado como uma

criança com asas,carregando tochas e um

chicote, pois o amor torturaos seres humanos com o

sofrimento.

Alado:

que temasas.

E

inteiro, não exista ninguém mais infeliz do que ela!Mas Psiquê já era infeliz: sua beleza era tão

perfeita que todos a adoravam como quem venera aestátua de uma deusa, mas ninguém no reinodesejava se casar com ela. Enquanto suas irmãsmais velhas se casaram facilmente, Psiquê viviasolitária e amaldiçoava sua beleza como se ela fosseum peso insuportável.

O rei resolveu, um dia, ir ao templo do deusApolo implorar um casamento para sua filha.Através de seus sacerdotes, o deus disse que Psiquêestava destinada a se casar com um monstroterrível, que provocaria terror até ao mundo dosmortos. E ordenou ao pobre pai que colocasse afilha num certo rochedo, no alto de uma montanha.O rei voltou dali arrasado. Pai e mãe lamentaram asorte de Psiquê.

Mas era preciso obedecer às ordens do deus.Foram todos em procissão até o rochedo. Era ocasamento de Psiquê, mas a moça chorava como seestivesse assistindo a seu próprio funeral. Aochegarem à pedra, Psiquê foi deixada ali sozinha, etodos retornaram para a cidade.

A moça, aterrorizada, sozinha sobre o rochedo,não parava de chorar. De repente, um vento muitosuave agitou a barra de seu vestido, envolveu-atoda e com um movimento delicado tomou-a nosbraços. Ergueu-a do rochedo e levou-a até umgramado cheio de flores. Ali, Psiquê adormeceu.

Quando acordou, Psiquê viu um bosque deárvores frondosas e uma fonte de água cristalina.

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No meio do bosque, avistou um palácio que nãoparecia erguido por mãos humanas: todo revestidode ouro, prata, pérolas e pedras preciosas.Encantada, Psiquê perdeu o medo e se aproximoudo palácio. Abriu a porta e o que viu a espantou:riquezas imensas espalhadas por toda parte! Psiquêas contemplava maravilhada, quando uma voz derepente se fez ouvir:

— Por que esse espanto? É tudo seu! Entrenaquele quarto, repouse e, quando quiser, peça umbanho. A voz que você ouve é de suas escravas.Estamos aqui para cumprir suas ordens.

Psiquê achou que algum deus a estavaprotegendo. Seguindo a recomendação daquela vozque não vinha de nenhum corpo, simplesmenteecoava pelo palácio, adormeceu e, ao acordar,tomou um banho. De repente, notou ali perto umaenorme mesa repleta das mais finas iguarias. Elasentou-se e viu que os pratos lhe iam sendo servidospor um sopro invisível. Comeu até não poder mais.Depois, foi deitar-se. Era noite. De repente, ouviuum ruído. Adivinhou o que estava acontecendo: seumarido vinha para passar a noite com ela, mas, emmeio à escuridão total, ela não podia ver seu rosto.Ele nada disse e, antes de amanhecer, partiu.

O tempo foi passando. Os pais de Psiquêenvelheciam mergulhados em profunda tristeza,com saudades da filha. Um dia, o marido de Psiquêlhe disse:

— Minha amada esposa, suas irmãs conse-guiram descobrir que você não morreu. Pretendem

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ir até o rochedo em que você foi abandonada. Sevocê ouvir os seus lamentos, não responda, nãodiga nada, nem olhe naquela direção. Se fizer isso,causará em mim uma grande dor, e uma desgraçapara você mesma!

Psiquê prometeu agir conforme o marido lhepedia. Mas, quando ele, como sempre fazia, assimque o dia surgiu, foi embora, Psiquê pôs-se a chorare a lamentar sua solidão. Sentia-se muito triste, semcontato com seres humanos naquele palácioenorme.

Corriam os dias, e Psiquê estava sempre triste eamargurada; o marido notou e, diante dos pedidosinsistentes da esposa para que o vento trouxesse aopalácio suas irmãs, finalmente, concordou:

— Está bem, então. Faça como desejar, maslembre-se de que eu avisei. Você vai se arrependerquando for tarde demais! Pode ver suas irmãs. Masescute bem: nunca, nunca tente ver o rosto de seuesposo, está me ouvindo? Nem mesmo se suasirmãs insistirem para que você faça isso.

Psiquê, agradecida, prometeu ao marido agircomo ele recomendava. Mais eis que suas duasirmãs chegaram ao rochedo e lá se puseram a cho-rar e a gritar, chamando por Psiquê. Obedecendoa seu marido, o vento levou as irmãs pelos ares atéela. O reencontro foi emocionante, e as trêschoraram de alegria ao se verem reunidas. A irmãmais nova serviu às outras as mais finas iguarias,presenteou-as com pedras preciosas e colares,mostrando-lhes todo o palácio. Quando quiseram

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saber quem era o seu marido, Psiquê inventou queera um moço muito bonito, que durante o dia estavasempre caçando pelas montanhas da região.Depois, receando trair-se e dizer o que não deveria,mandou o vento levar de volta as irmãs.

De volta para casa, mordidas de inveja dePsiquê, as irmãs conversaram entre si. Uma delasdisse:

— Como o destino é injusto! A mais nova de nóspossui as maiores riquezas que se possa imaginar.Você viu com seus próprios olhos, minha irmã:pedras preciosas, ouro e prata por toda parte! E elaainda está casada com um moço muito bonito. Eutenho um marido que é mais velho que meu pai emais careca do que uma abóbora, além de parecerum anão, de tão baixinho!

— Mas e o meu, então? — respondeu a outra.Está sempre com reumatismo, sempre doente. Eupareço mais sua enfermeira do que sua esposa... Evocê viu como Psiquê nos tratou com desprezo earrogância? Para nos humilhar, ficou exibindo suasriquezas. Deu umas migalhas e nos enxotou do seupalácio. Precisamos encontrar um meio de castigaraquela metida!

As duas irmãs, então, voltaram para suas casassem dizer a ninguém que tinham reencontradoPsiquê. O marido a advertiu:

— Muito cuidado! Suas irmãs tentarãoconvencer você a ver meu rosto. Mas eu estou avi-sando: se você o vir uma vez, nunca mais o verá denovo. Então, não volte a falar com aquelas bruxas!

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Outra coisa: você está esperando um filho.Diante daquela notícia, Psiquê ficou muito

contente. Passou a contar os dias e as horas quefaltavam para ser mãe. Mas eis que um dia a moçapediu ao esposo, de novo, a oportunidade de reveras irmãs, de quem tinha muitas saudades.Convencido por suas lágrimas e carícias, eleconsentiu. As irmãs retornaram ao rochedo e, napressa de rever Psiquê, nem esperaram pelo vento;precipitaram-se do alto... Seria o fim delas, mas ovento, muito contra sua vontade... cumprindo asordens de seu senhor, aparecendo de repente,tomou-as consigo e levou-as ao palácio.

As irmãs se comportaram como se amassemPsiquê do fundo do coração; quando souberam desua gravidez, disseram:

— Se a criança for tão bonita quanto os pais,será um Cupido!

Mas, no meio da conversa, passaram a fazerperguntas à irmã mais nova a respeito de seumarido. Psiquê, esquecida da mentira que contaraanteriormente, disse que se tratava de um senhorque tinha cabelos grisalhos e vinha de um paísvizinho.

Ao retornarem a casa, as duas fizeram comentá-rios sobre a história de Psiquê. Concluíram que airmã mentia ou nem mesmo sabia como era oaspecto do marido. Decidiram encontrar, o maisrápido possível, uma maneira de acabar com suafelicidade. Quando voltaram a reencontrar Psiquê,uma delas disse, derramando lágrimas fingidas:

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— Querida irmã, você está feliz na ignorânciados riscos que está correndo! Nós, que sempre nospreocupamos tanto com sua felicidade, descobri-mos que o ser que dorme junto com você é ummonstro terrível, uma serpente gigantesca e vene-nosa. Você não se lembra do que disse o adivinhodo deus Apolo? Os caçadores da região viram omonstro sair do palácio e entrar nas águas do rioque corre aqui por perto. Mais: assim que você derà luz, que é só isso que aquele monstro está espe-rando, ele a devorará! Fuja daqui e venha morarconosco, minha pobre irmã!

Ao ouvir aquelas palavras, Psiquê ficou atordoa-da, sem uma gota de sangue no rosto e tremendotoda. Quando conseguiu falar, disse:

— Queridas irmãs, obrigada por se preocu-parem comigo. O que vocês me dizem pareceverdade. Nunca vi o rosto de meu marido. Ele vemà noite, sem deixar se ver e, de manhã, vai embora:não sei de onde vem nem para onde vai. Deve sermesmo um monstro: procurou me assustar para queeu não desejasse ver sua face. Por favor, ajudem-me! Não sei o que fazer.

Vendo que Psiquê estava em suas mãos, uma dasirmãs lhe disse:

— Nós já pensamos em como salvar sua vida,querida Psiquê. Pegue uma navalha, a mais afiadaque houver aqui e esconda-a na sua cama, no lugarem que você dorme. Depois, pegue uma lamparina,cheia de azeite, que ilumine bem, e deixe-a acesa,mas totalmente tampada por alguma panela. A

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serpente virá se arrastando na escuridão, comosempre, até o leito, para estar com você. Quandoperceber que ela está dormindo profundamente, vápegar a lamparina, volte e de uma vez, sem hesitar,corte a cabeça da serpente! Então, nós viremoscorrendo. Com o tempo, você terá um casamentode verdade, com um ser huma-no.

Quando as irmãs voltarampara o rochedo levadas pelo ven-to, Psiquê se viu só novamente.Estava vacilante, com o cora-ção dividido. Tinha horror domonstro, mas amava o marido! Ao cair da noite, oesposo chegou, deitou-se ao seu lado e depoisadormeceu. Psiquê encheu-se de coragem, buscoua lamparina e depois pegou a navalha. Aproximoua luz do ser que estava estendido ao seu lado. Mas,quando pôde ver claramente, à luz da lamparina,descobriu, sim, um ser feroz e cruel, mas não era aserpente. Repousava ali Cupido em pessoa, obelíssimo filho de Vênus! Psiquê ficou espantada econfusa. Via os cabelos dourados do deus, quetinham um perfume delicioso. Seu pescoço erabranco, suas faces rosadas e todo o seu rostobrilhava a ponto de parecer superar o brilho da luzda lamparina. As asas eram de uma brancura e umadelicadeza indescritíveis. Aos pés da cama, estavamno chão o arco e as flechas do deus.

Encantada, Psiquê imediatamente foi tomada deamor pelo deus do amor... Embora tivesse medo de

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Sem

hesitar: de maneira

firme,decidida.

acordá-lo, pôs-se a beijá-lo. Mas eis que da lâmpadauma gota de azeite fervente cai sobre o ombro dodeus! Cupido acordou, dando um salto e,percebendo o que acontecera, fugiu dos beijos eabraços de Psiquê e bateu as asas. Desesperada,Psiquê agarrou-se à sua perna direita. E lá foi ela,voando além das nuvens com o deus. Finalmente,vendo que Psiquê estava esgotada de cansaço eameaçando se espatifar no chão, Cupido a tomounos braços e colocou-a sob uma árvore. Comovido,disse-lhe:

— Confesso que desobedeci às ordens de minhamãe Vênus. Ela queria que você se apaixonasse porum monstro. Mas eu me apaixonei por você. Avisei-atantas vezes para tomar cuidado com suas irmãs, e denada adiantou. Seu castigo será minha fuga.

E, tendo assim falado, voou para bem alto edesapareceu entre as nuvens. Depois, deitou-se noleito todo de ouro da mãe, gemendo muito porcausa da ferida no ombro. Quando Vênus soube doque acontecera, ficou furiosa: aquela moça que sejulgava superior em beleza à própria deusa do amortinha conseguido fazer com que seu filho seapaixonasse por ela! E o patife do menino adesobedecera! Os dois haveriam de pagar caro!

Enquanto isso, Psiquê ia de uma lado para ooutro, percorrendo, desesperada, toda a terra àprocura de Cupido. Mas uma escrava de Vênusencontrou-a e levou-a até à deusa, arrastando-apelos cabelos. A deusa recebeu Psiquê com umagargalhada, dizendo:

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— Veio visitar a sogra? Ou o marido? A feridaque você provocou nele está pondo sua vida emrisco.

Depois, Vênus pegou um punhado de trigo, decevada, de milho, de papoula, de grão-de-bico, delentilha e de fava, misturou tudo e disse:

— Você é uma escrava, e feia; certamente sóconquista os homens por ser tão empenhada noserviço. Vamos ver se é assim mesmo. Separe osgrãos por tipo e coloque-os em ordem, um por um.Antes de cair a noite, virei para ver se você conse-guiu realizar bem essa tarefa.

Psiquê ficou sem saber o que fazer, triste eabatida diante daquele monte de grãos misturados.Mas uma formiga teve dó dela, correu de um ladopara o outro chamando suas colegas para ajudá-la.E eis que um batalhão de formigas pôs-se a separaros grãos.

Ao cair da noite, Vênus foi ver o trabalho. Acu-sou Psiquê de agir de maneira desonesta: quemfizera aquilo não fora ela, mas Cupido. Jogou-lheum pedaço de pão e foi dormir.

Antes do raiar do dia, a deusa se levantou e foiaté Psiquê, dizendo-lhe:

— Está vendo aquele bosque perto do rio? Alipastam livremente ovelhas muito ferozes que têmuma lã dourada. Traga-me um floco dessa lã!

Psiquê ficou desconsolada. Encaminhou-se paraas águas do rio com a intenção de se lançar nelas.Mas, quando estava para se jogar, um caniço domeio do rio teve dó e contou-lhe como poderia

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obter o floco de lã: de manhã, com o sol quente, asovelhas ficavam furiosas e atacavam os seres hu-manos para matá-los, mas à tarde elas descansavamnas margens do rio. Nessa hora, Psiquê poderiabuscar entre as folhagens, tranqüilamente, flocosde lã presos nos ramos das árvores.

Psiquê seguiu as recomendações do caniço.Quando levou a lã a Vênus, a deusa disse que sabiamuito bem quem tinha inventado um meio deconseguir realizar aquela tarefa. Depois, acrescen-tou:

— Mas vamos ver se você é realmente corajosae esperta! No alto daquela montanha (está ven-do?), há uma fonte. Ali brota a água que vai ori-ginar os pântanos do mundo dos mortos e alimentarseu rio. Quero que você me traga um poucodaquela água geladíssima neste vaso de cristal.

Psiquê foi até a montanha que Vênus lheindicara. Mas ela era muito alta e difícil de escalar.Além disso, do meio das pedras corria uma águanojenta e malcheirosa. Em algumas cavernas damontanha, viam-se dragões horríveis, cujos olhosnunca se fechavam, sempre vigiando. E as águasfalavam, gritando: "Vá embora! Saia daqui!".

De novo entregue ao desespero, a moça pôs-se achorar. Mas de repente surgiu uma águia, aproxi-mou-se dela e tomando o vaso no bico se dirigiu atéa fonte. Era a águia do supremo rei dos deuses,Júpiter. Quando as águas lhe gritaram para quefosse embora, ela respondeu que estava a serviço deVênus, o que facilitou a aproximação.

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Quando Psiquê levou o vaso cheio da água doreino dos mortos, Vênus disse:

— Você deve ser uma bruxa! Mas ainda há maisuma tarefa para você cumprir. Pegue esta caixinhae vá até o reino dos mortos. Lá, diga à rainha dosmortos: "Vênus pede que lhe envie uma porção desua beleza, o bastante para um dia. É que ela gastoua sua tratando do filho doente". Preciso passar essaporção no meu rosto antes de ir, hoje, a uma reu-nião com os outros deuses.

Desesperada, Psiquê subiu ao alto de uma torrepara de lá se jogar. Como poderia ela ir ao reino dosmortos estando viva? E como de lá voltar? A torre,com dó da moça, disse:

— Vou-lhe ensinar onde se encontra uma portapara o reino dos mortos. Você entrará e irá até o pa-lácio do rei infernal. Leve em cada uma das mãosum bolo de farinha e mel, segurando na boca duas

moedas. No cami-nho, você encon-trará um burro

coxo e um homemtambém coxo car-regando o burro delenha. Ele lhe pediráajuda para apanhara lenha, mas vocênão deve dizer ne-

nhuma palavra.Seguindo adian-te, você chegará

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Para os antigos gregose romanos, os "infernos"não se resumem a um

lugar de punição, comona tradição católica.

Trata-se do reino dassombras, situado

embaixo da terra, parao qual todos iriam ao

morrer.

ao rio dos mortos, onde verá o barqueiro Caronte.Dê a ele uma de suas moedas. Quando estiverematravessando o rio, você verá um velho, em meio àságuas, erguendo as mãos e pedindo para serpuxado para o barco. Não tenha dó e siga emfrente. Logo verá o palácio da rainha dos mortos.Mas à frente dele há um cão monstruoso, que temum latido parecido com um trovão. Jogue-lhe umdos bolos e ele não lhe fará nada. A rainha dosmortos a receberá amavelmente, convidando-a parasentar e comer um delicioso banquete. Mas vocêdeverá se sentar no chão e se contentar com umpedaço de pão velho. Depois de cumprir suamissão, dê o outro bolo ao cão e a outra moeda aobarqueiro. Atravessado o rio, siga suas pegadas,fazendo o caminho de volta. Logo você estará sobeste nosso céu. Mas atenção: nunca abra a caixinhapara ver o que há dentro dela; nunca! Essa é aminha recomendação mais importante.

Psiquê fez exatamente como a torre lhe haviadito. Tudo correu bem. Mas, regressando do reinodos mortos, ficou impaciente de curiosidade parasaber o que havia dentro da caixinha:

— Eu lá sou tonta para levar comigo umaporção da beleza divina e não pegar nem umpouquinho dela para mim? Quem sabe se essa nãoseria a maneira de reconquistar aquele meu maridotão belo?

E Psiquê, então, abriu a caixinha. Mas de den-tro dela só saiu um sono irresistível que foi tomandoconta de seu corpo, pouco a pouco, até que ela caiu

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no chão parecendo morta. Nisso, a ferida deCupido já tinha cicatrizado. Com saudades dePsiquê, o deus abandonou o quarto em que a mãe otrancara e foi até a moça. Encontrou-a caída nochão e a despertou picando-a suavemente com umade suas flechas. Disse-lhe:

— De novo, você é vítima da curiosidade,pobrezinha! Mas ande, vá até minha mãe e terminede cumprir a tarefa que ela lhe deu.

Apenas disse essas palavras, Cupido voou peloar, enquanto Psiquê se dirigia até Vênus. O deus,porém, ainda apaixonado, temia a ira de sua mãe.Foi até Júpiter, o pai dos deuses, e contou-lhe tudo,pedindo sua proteção. Júpiter convocou a assem-bléia dos deuses e assim falou a todos:

— Deuses, este jovenzinho que eu mesmo crieitem provocado muita confusão. Está na hora de pren-dê-lo nos laços de um casamento. Já que ele escolheuuma certa moça, vamos deixar que ele se una a elapara sempre. Quanto a você, minha filha Vênus, nãofique triste. Seu filho não se casará com uma mortal,não. Este não será um casamento desigual.

Então, chamou o mensageiro dos deuses e ordenouque trouxesse Psiquê ao céu. Deu à moça uma taça deambrosia, o alimento dos deuses imortais, e disse:

— Tome, Psiquê, e torne-se imortal. Cupidonunca se afastará de seus braços. Vocês, a partir deagora, estão unidos por toda a eternidade!

E assim Psiquê se uniu a Cupido. Algum tempodepois, nasceu o filho do casal, a quem deram onome de Prazer.

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Narrativas deíndios do Brasil

Nosso país tem umgrande número de comunidadesindígenas, mais de duzentospovos, cada um com seus cos-tumes e suas histórias, lendas emitos.

Selecionamos algumas nar-rativas que falam das origens domundo: como nasceu a noite,como surgiu o guaraná, qual acausa do ódio entre a onça e o

bode.

Como a noite apareceu

o princípio nãohavia noite – haviasomente dia em todotempo. A noite estava adormecida no fundo daságuas. Não havia animais; todas as coisas falavam.

A filha da Cobra-Grande – contam – casara-secom um moço. Esse moço tinha três criados fiéis.Um dia, ele chamou os três criados e disse-lhes:

— Vão passear, porque minha mulher não querdormir comigo.

Os criados foram-se, e então ele chamou suamulher para dormir com ele. A filha da Cobra-Grande respondeu-lhe:

— Ainda não é noite.O moço disse-lhe:— Não há noite; somente há dia.A moça falou:— Meu pai tem noite. Se quer dormir comigo,

mande buscá-la pelo grande rio.O moço chamou os três criados;

a moça mandou-os à casa de seupai, para trazerem um caroço detucumã. Os criados foram, chegaram à

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Trata-se de lendatupi registrada e

publicada porCouto de

Magalhães. Otexto foi

ligeiramenteadaptado.

Tucumã é o

fruto dapalmeira de

mesmo nome.

N

casa da Cobra-Grande. Esta lhes entregou umcaroço de tucumã muito bem fechado e disse-lhes:

— Aqui está; levem-no. Vamos! Não o abram,senão todas as coisas se perderão.

Os criados foram-se e estavam ouvindo barulhodentro do coco de tucumã, assim: tem, tem, tem...xi...Era o barulho dos grilos e dos sapinhos que cantamde noite.

Quando já estavam longe, um dos criados dissea seus companheiros:

— Vamos ver que barulho será este?O piloto da canoa respondeu:— Não, do contrário nos perderemos. Vamos

embora, eia, remem!Eles foram-se e continuaram a ouvir aquele

barulho dentro do coco de tucumã, e não sabiamque barulho era.

Quando já estavam muito longe, reuniram-se nomeio da canoa, acenderam fogo, derreteram o breuque fechava o coco e abriram-no. De repente tudoescureceu.

O piloto então disse:— Nós estamos perdidos; e a moça, em sua casa,

já sabe que nós abrimos o coco de tucumã!Eles seguiram viagem.A moça, em sua casa, disse então a seu marido:— Eles soltaram a noite; vamos esperar a ma-

nhã.Então todas as coisas que estavam espalhadas

pelo bosque se transformaram em animais e pás-saros.

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As coisas que estavam espa-lhadas pelo rio se transformaram empatos e em peixes. Do paneirogerou-se a onça; o pescador e suacanoa se transformaram em pato;de sua cabeça nasceram a cabeça e

o bico do pato; da canoa, o corpo do pato; dosremos, as pernas do pato.

A filha da Cobra-Grande, quando viu a estrelad’alva, disse a seu marido:

— A madrugada vem surgindo. Vou separar odia da noite.

Então ela enrolou um fio e disse-lhe:— Você será a ave cujubim. Assim ela fez o

cujubim; pintou a cabeça do cujubim de branco,com argila; pintou-lhe as pernas de vermelho comurucu e, então, disse-lhe:

— Você cantará paratodo sempre quando a ma-nhã vier raiando.

Ela enrolou o fio, sacu-diu cinza em cima dele edisse:

— Você será inham-bu, para cantar nos di-versos tempos da noite e de madrugada.

De então para cá todos os pássaros cantaram emseus tempos, e de madrugada, para alegrar oprincípio do dia.

Quando os três criados chegaram, o moço disse-lhes:

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Paneiro:

cesta feita de cipó.

Urucu: fruto do

urucuzeiro, quetem valor

medicinal eproduz um

corante vermelho.

— Vocês não foram fiéis: abriram o caroço detucumã, soltaram a noite, e todas as coisas se perde-ram, e vocês também. Vejam: vocês estão transfor-mados em macacos e para sempre andarão pelosgalhos das árvores.

(A boca preta e a risca amarela que essesmacacos têm no braço dizem que são ainda o sinaldo breu que fechava o caroço de tucumã e queescorreu sobre eles quando o derreteram.)

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História do guaraná

ntigamente, contam,existiam três irmãos:Ocumáató, Icuamã eOnhiamuaçabê.

Onhiamuaçabê era dona do Noçoquém, umlugar encantado no qual ela havia plantado umacastanheira.

A jovem não tinha marido; porém todos osanimais da selva queriam viver com ela. Os irmãos,ao mesmo tempo, a queriam sempre em suacompanhia, porque era ela quem conhecia todas asplantas com que preparava os remédios de queprecisavam.

Uma cobrinha, conversando com outros ani-mais, certa vez, disse que Onhiamuaçabê acabariasendo sua esposa. Foi então espalhar pelo caminhopor onde ela passava todos os dias um perfume quealegrava e seduzia.

Quando Onhiamuaçabê passou pelo caminho,aspirando o perfume, disse:

— Que perfume agradável!A cobrinha, que estava próximo, disse a si mesma:— Eu não dizia? Ela gosta de mim!E, correndo, foi-se estirar mais adiante para

esperar a moça. Ao passar ao seu lado, tocou-alevemente numa das pernas. E só isto bastou para

32

Conto dosíndios Mauésregistrada e

publicada porNunes

Pereira.A

que a moça engravidasse, porque, antigamente,uma mulher, para que isso acontecesse, bastava serolhada por alguém, homem, animal ou árvore, quea desejasse para esposa.

Porém os irmãos de Onhiamuaçabê não que-riam que ela se casasse com gente, animal ou árvo-re, e que tivesse filhos, porque era ela quem conhe-cia todas as plantas com que preparava os remédiosde que precisavam.

Por isso, quando a moça apareceu grávida, osirmãos ficaram furiosos. E falaram, falaram e fala-ram, dizendo que não queriam vê-la com filho.

Chegou o dia do nascimento da criança. A moça,depois do parto, no barracão feito por ela mesma,lavou a criança e tratou de criá-la.

Era um menino bonito e forte; e cresceu forte ebonito até a idade de falar. Logo que pôde falar, omenino desejou comer as mesmas frutas de que ostios gostavam.

A moça contou ao filho que, antes de o sentir emsua barriga, plantara no Noçoquém uma castanheira,para que ele lhe comesse os frutos, mas que os irmãos,expulsando-a da companhia deles, apoderaram-se deNoçoquém e não o deixariam comer castanhas. Alémdisso, os irmãos da moça tinham entregue o sítio àguarda da Cutia, da Arara e do Periquito.

O menino, porém, continuou a pedir aOnhiamuaçabê, mãe dele, que lhe desse a comer asmesmas frutas que os seus tios comiam.

Um dia, então, Onhiamuaçabê, a moça, resolveulevar o filho ao Noçoquém para que comesse cas-tanhas.

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Assim, indo a Cutia ao Noçoquém, viu no chão,debaixo da castanheira, as cinzas de uma fogueira,onde haviam assado castanhas. A Cutia correu e foicontar o que vira aos irmãos da moça. Um delesdisse que talvez a Cutia se enganasse; o outro disseque não podia ser verdade.

Discutiram. E, afinal, resolveram mandar o Ma-caquinho-de-boca-roxa tomar conta da castanheira,para ver se aparecia gente por ali.

O menino, que havia comido muitas castanhas ecada vez mais as cobiçava, já conhecendo o ca-minho do Noçoquém, tornou a ir lá no dia seguinte.

Ora, os guardas do Noçoquém, que tinham idoadiante, com ordens de matar quem ali encontras-sem, viram o menino subir, às pressas, à castanhei-ra. E, estando próximos, bem próximos, ocultos poroutras árvores, tudo observando, correram e foramesperá-lo debaixo da castanheira, armados comuma cordinha para decepar a cabeça do comedorde castanhas.

Dando por falta do filho, a mulher já se haviaposto a caminho para o buscar, quando lhe ouviu osgritos.

Correu na direção do filho, mas já o encontroudecepado às mãos dos guardas. Arrancando oscabelos, chorando e gritando sobre o cadáver dofilho, a moça Onhiamuaçabê disse:

— Está bem, meu filho. Foram os seus tios quemandaram matá-lo. Eles pensavam que você ficariaum coitadinho, mas não ficará.

Arrancou-lhe primeiro o olho esquerdo e plan-

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tou-o. A planta, porém, que nasceu desse olho nãoprestava; era a do falso guaraná.

Arrancou-lhe, depois, o olho direito e plantou-o.Desse olho nasceu o guaraná verdadeiro. E, conti-nuando a conversa com o filho, como se o sentissevivo, foi anunciando:

— Você, meu filho, será a maior força da Natu-reza; você fará o bem a todos os homens; você serágrande; você livrará os homens de umas moléstias eos curará de outras.

Em seguida, juntou todos os pedaços do corpodo filho. Mascou, mascou as folhas de uma plantamágica, lavou com sua saliva e o suco dessa plantao cadáver do filho e o enterrou.

Cercou-lhe a sepultura com estacas e deixou umdos seus guardas de inteira confiança vigiando-a.Recomendou a esse guarda, que era o Caraxué,

que a fosse avisar, assim queouvisse qualquer barulho saído dasepultura, pois ela saberia quem era.

Passados alguns dias, o Cara-xué, ouvindo barulho na sepultura,correu, correu e foi avisar

Onhiamuaçabê.A moça veio, abriu o buraco da sepultura e de

dentro saiu o macaco coatá. Onhiamuaçabê soprousobre o macaco coatá e amaldiçoou-o: ele andariasem repouso pelos matos.

Fechou de novo a sepultura e lançou-lhe emcima o sumo das folhas da planta mágica com quelhe lavava o cadáver.

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Caraxué: uma

espécie desabiá.

Dias depois, o Caraxué foi avisá-la de queouvira um barulho na sepultura do menino. A moçaveio, abriu o buraco da sepultura e dele saiu ocachorro-do-mato. Ela soprou sobre ele e o amal-diçoou, para que ninguém o comesse.

Fechou de novo a sepultura e foi-se embora.Dias depois o Caraxué foi avisar que ouvira

barulho, de novo, dentro da sepultura. Onhiamuaçabê foi até lá; abriu o buraco da

sepultura e dele saiu o porco-queixada, levando osdentes que deveriam caber a todos os Maués e atodos os homens.

Onhiamuaçabê expulsou também o porco-queixada.

(À proporção que saía um bicho da sepultura domenino e que era expulso, a planta do guaraná iacrescendo, crescendo.)

Passados alguns dias, o Caraxué ouviu barulhona sepultura e foi avisar Onhiamuaçabê. Ela veiode novo, abriu a sepultura e dali saiu uma criançaque foi o primeiro Maué, origem da tribo.

Esse menino era o filho de Onhiamuaçabê, queressuscitara.

Onhiamuaçabê agarrou-o, sentando-o nosjoelhos. E pôs-lhe um dente na boca, feito de terra.(Por isso os índios Maués dizem que se originaramde cadáver e por isso seu dente apodrece.)

A mulher foi lavando tudo, tudo, devagarinho,os pés, a barriga, os braços, o peito, a cabeça domenino com o sumo das folhas da planta mágica,que mastigara.

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Quando ela estava entretida, fazendo isso com ofilho, os seus irmãos chegaram, de repente, e aobrigaram a deixar de lavar-lhe o corpo.

(Esse é o motivo por que os Maués não mudamde pele, como fazem as cobras.)

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A onça e o bode

ma vez a onça quisfazer uma casa; foi a umlugar, roçou mato para alifazer a sua casa. O bode, que também andava comvontade de fazer uma casa, foi procurar um lugar e,chegando ao que a onça tinha roçado, disse:

— Bravo! Que belo lugar para levantar a minhacasa!

O bode cortou logo umas forquilhas e infincounaquele lugar e foi-se embora. No dia seguinte aonça foi chegando e, vendo as forquilhas infinca-das, disse:

— Oh! quem está me ajudando?! Bravo, é Deusque está me ajudando!

Botou logo as travessas nas forquilhas e otelhado, e foi-se. O bode, quando veio de novo,admirou-se e disse:

— Oh! quem está me ajudando?! É Deus queestá me protegendo!

Botou logo os caibros na casa e foi-se. Vindo aonça, ainda mais se espantou e botou as ripas e osenchimentos e retirou-se. E assim foi: cada umconstruindo uma parte da casa até que ela ficoupronta. Acabada ela, veio a onça, fez a sua cama emeteu-se dentro. Logo depois chegou o bode e,vendo a outra, disse:

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Conto de origemindígena, na

versão de SílvioRomero,levementeadaptada.U

— Não, amiga, esta casa é minha, porque fui euque infinquei as forquilhas e botei os caibros.

— Não, amigo — respondeu a onça — A casa éminha, porque fui eu que rocei o lugar, pus as tra-vessas, o telhado e o enchimento.

Depois de alguma discussão, a onça, que estavacom vontade de comer o bode, disse:

— Mas não haja briga, amigo bode, nós doispodemos ficar morando na casa.

O bode aceitou, mas com muito medo. Armou asua rede bem longe da onça. No outro dia, a onçadisse:

— Amigo bode, quando você me vir franzir ocouro da testa, eu estou com raiva, tome cuidado!

— Eu, amiga onça, quando você vir balançar asminhas barbinhas e dar um espirro, você fuja, queeu não estou brincando.

Depois a onça saiu, dizendo que ia buscar decomer. Longe de casa, pegou um grande bode, ma-tou-o e entrou com ele pela casa adentro. Atirou-oao chão e disse:

— Amigo bode, esfole e prepare para a gentecomer.

O bode, quando viu aquilo, disse lá consigo:"Você matou este que era grande, quanto mais amim!" No outro dia ele disse à onça:

— Agora, amiga onça, quem vai buscar decomer sou eu.

E partiu. Chegando longe, avistou uma onçabem grande e gorda, disfarçou e pôs-se a tirar cipósno mato. A onça veio chegando e vendo aquilodisse:

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— Amigo bode, para que tanto cipó?— Fum! Para quê?! O negócio é sério, cuidado

com você mesma... O mundo está para se acabarnum dilúvio...

— O que está dizendo, amigo bode?— É verdade; e você, se quiser escapar, venha se

amarrar, que eu já me vou.A onça foi e escolheu uma árvore bem alta e

grossa e pediu ao bode para que a amarrasse nela. Obode prendeu-a perfeitamente e, quando a viu bemsegura, espancou-a com um pedaço de pau atématá-la. Depois, arrastou-a, chegou a casa, largou-ano chão, dizendo:

— Se quiser, esfole e prepare para a gentecomer.

A onça ficou espantada e com medo. Ambostemiam um ao outro.

Num certo dia, o bode estava tomando ar fresco;olhou para a onça, e ela estava com o couro da testafranzido. Ele teve receio e mexeu as barbas e soltouum espirro. A onça deu um pulo e saiu correndo, obode fez o mesmo. Ainda hoje correm cada um parao seu lado.

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Conto dosirmãos Grimm

Os irmãos Grimm (séculoXlX) eram professores univer-sitários alemães que se inte-ressavam também por nar-rativas populares.

É muito conhecida suacoletânea de contos que reúnehistórias como a de Branca deNeve, Rapunzel e Cinderela.Esse conjunto de histórias, origi-nalmente não dirigido apenas acrianças mas também aos adul-tos, foi reunido pelos irmãos apartir das narrativas popularesque ouviram pessoalmente daboca do povo.

Selecionamos para esta an-tologia uma de suas históriasmenos conhecidas.

O enigma

ra uma vez um príncipeque sentiu desejo de sair pelomundo e não levou junto con-sigo senão um criado fiel. Umdia, ele cavalgava em uma grande floresta e, quan-do escureceu, vendo que não havia por ali nenhumahospedaria, ficou sem saber onde passaria a noite.Então avistou uma moça que se dirigia a um case-bre e, quando ele chegou mais perto, viu que a mo-ça era jovem e bonita. Iniciou a conversa com estaspalavras:

— Cara criança, será que eu e meu criado po-demos encontrar abrigo nesta casa por esta noite?

— Claro — disse a moça, com voz triste. Mas eunão aconselho; não entrem ali!

— Por que não? — perguntou o príncipe. A moça disse suspirando:— Minha madrasta pratica artes maléficas e não

simpatiza com estranhos.Então ele compreendeu que tinha chegado à

casa de uma feiticeira, mas, como estava escuro eele não poderia prosseguir viagem nem tinha medo,entrou. A velha estava sentada em uma poltronajunto à lareira e examinou os estranhos com seusolhos vermelhos.

— Boa noite! — murmurou ela, fingindo cordia-lidade. Acomodem-se e descansem.

Depois soprou o carvão sobre o qual, em uma42

ETraduzido

pelo organizador

desta coletânea.

grande panela, estava cozinhando alguma coisa. Afilha avisou-os de que tomassem cuidado para nadacomer e também nada beber naquela casa, pois avelha preparava bebidas maléficas. Dormiramtranqüilamente até o raiar do dia.

Quando se preparavam para a partida e o prín-cipe já estava sentado em seu cavalo, a velha disse:

— Espere um momento, desejo fazer um brindeà sua partida.

Enquanto ela foi buscar a bebida, o príncipepartiu a cavalo e o criado, que tinha de prender suasela, ficou sozinho, quando eis que a feiticeira voltacom a bebida.

— Leve-a a seu patrão — disse ela, mas naquelemomento o copo quebrou e o veneno derramousobre o cavalo, e era tão poderoso que o animalmorreu na hora. O criado correu até seu patrão econtou-lhe o que tinha acontecido, mas não queriadeixar para trás sua sela e correu de volta para pegá-la. Mas, quando chegou junto ao cavalo morto, umcorvo já estava sentado sobre ele e o devorava.

— Quem sabe se hoje encontraremos algomelhor? — disse o criado. Matou o corvo e levou-oconsigo. Percorreram a floresta o dia todo, mas nãoconseguiram sair dela. Ao cair da noite, toparamcom uma hospedaria e nela entraram. O criado deuao dono o corvo, a fim de que ele o preparasse parao jantar. Eles, porém, tinham ido parar num covilde assassinos; com a escuridão, chegaram dozebandidos e sentiram vontade de matar e roubar osestranhos. Mas, antes de pôr mãos à obra, senta-

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ram-se à mesa, e o dono da hospedaria e a feiticeirase uniram a eles. Comeram juntos um prato de sopana qual se tinha picado a carne do corvo. Maltinham engolido alguns bocados e caíram mortos,pois o corvo os tinha contaminado com o veneno dacarne do cavalo. Não restava ninguém naquela casasenão a filha do hospedeiro, que era uma moçahonesta e não tinha tido nenhuma participação nascoisas terríveis que ali aconteciam. Ela abriu todasas portas para os estranhos e mostrou-lhes tesourosincontáveis. O príncipe, porém, disse que elapoderia ficar com tudo, pois ele não queria nada, epartiu com seu criado.

Depois de terem cavalgado por muito tempo,chegaram a uma cidade onde havia uma princesabela mas muito convencida; ela tinha feitoproclamar que quem propusesse um enigma que elanão fosse capaz de decifrar se tornaria seu marido.Mas, se ela o decifrasse, ele seria decapitado. Elatinha três dias para refletir; mas era tão esperta quesempre acabava decifrando o enigma antes doprazo. Já nove tinham morrido daquela maneira,quando chegou o príncipe e, deslumbrado com abeleza da moça, quis arriscar sua vida. Então,apresentou-se diante dela e propôs seu enigma:

— O que é?: um não matou nenhum, mas matoudoze.

Ela não sabia do que se tratava, pensou e pen-sou, mas não conseguiu desvendar o enigma. Con-sultou seu livro de enigmas, mas nada encontrouali. Em resumo, sua esperteza chegara ao fim. Não

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sabendo mais o que fazer, mandou sua criada ir atéo quarto do senhor para espioná-lo enquantodormia: talvez ele falasse durante o sono e revelasseo enigma... Mas o esperto criado tinha-se deitadona cama no lugar de seu patrão e, quando a criadachegou, arrancou-lhe o manto em que ela estavaenvolvida e expulsou-a do quarto a chicotadas. Nasegunda noite, a princesa enviou sua camareira naesperança de que ela tivesse melhor sorte. Mas ocriado também arrancou-lhe o manto e expulsou-aa chicotadas. Na terceira noite, o príncipe julgou-seem segurança e deitou-se em sua cama. Eis que vaiaté lá a princesa em pessoa, envolta num mantocinzento, e se senta perto dele. Quando pensou queele estava dormindo e sonhando, pôs-se a lhe falar,na esperança de que ele lhe respondesse durante osono, como muitos fazem. Mas ele estava bemacordado e compreendeu e ouviu tudo muito bem.Ela perguntou:

— Um matou nenhum, o que isso significa?— Um corvo, que se alimentou de um cavalo

morto e envenenado e por isso morreu — foi a res-posta do príncipe.

— E matou doze... como assim? — perguntou aprincesa.

— São doze assassinos que provaram do corvo epor isso morreram.

Ao saber a chave do enigma, a princesa quis sairde fininho, mas o príncipe segurou-lhe o mantobem firmemente, de tal forma que ela teve de deixá-lo para trás.

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Na manhã seguinte, a princesa fez saber quedecifrara o enigma, mandou chamar os doze juízese disse a eles qual era a solução. Mas o jovem pediupermissão para falar e disse:

— Ela foi de fininho até meu quarto à noite e meperguntou, caso contrário não teria decifrado oenigma.

Os juízes pediram uma prova. Então o criadotrouxe os três mantos. Quando os juízes viram omanto cinzento que a princesa costumava vestir,disseram:

— Que se borde o manto com ouro e prata! Seráseu vestido de casamento.

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Contos populares brasileiros

Há uma grande riqueza decontos populares em nossopaís, contados em váriasversões. Você lerá aqui duashistórias que hoje as pessoasparecem não conhecer mais; aprimeira é uma espécie de contode fadas de origem européia.

O bicho Manjaléu

ma vez existiaum velho casado,que tinha três filhasmuito bonitas; o ve-lho era muito pobre e vivia de fazer gamelas paravender. Quando foi um dia, che-gou à sua porta um moço muitoformoso, montado num belo cava-lo e quis comprar uma de suas fi-lhas.

O velho ficou muito aborreci-do e disse que, apesar de pobre, não havia devender sua filha. O moço disse-lhe que, se não avendesse, o mataria; o velho intimidado vendeu-lhea moça e recebeu muito dinheiro.

Retirando-se o cavaleiro, o pai da família nãoquis mais trabalhar nas gamelas, por julgar que nãoprecisava mais de então em diante; mas a mulherinsistiu com ele para que não largasse o seutrabalho de costume; e ele obedeceu.

Quando foi na tarde seguinte, apresentou-se umoutro moço, ainda mais bonito, montado numcavalo ainda mais bem aparelhado, e disse ao velhoque queria comprar-lhe uma de suas filhas. O paificou muito incomodado; contou-lhe o que lhe tinhaacontecido no dia antecedente e recusou o negócio.

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U

Manjaléu: papão.Esta versão é a de

Sílvio Romero,ligeiramente adaptada.Sílvio Romero a ouviu

e registrou emSergipe.

Gamelas:vasilhas demadeira ou

barro.

O moço o ameaçou também de morte, e o velhocedeu.

Se o primeiro deu muito dinheiro, este ainda deumais e foi-se embora.

O velho de novo não quis continuar a fazer asgamelas e a mulher o aconselhou até ele continuar.Pela tarde seguinte, apareceu outro cavaleiro aindamais bonito, e mais bem montado, e, pela mesmaforma, levou embora sua filha mais moça, deixandoainda mais dinheiro.

A família ficou muito rica; depois a velha apa-receu grávida e deu à luz um filho, que foi criadocom muito luxo e mimo. Quando chegou o tempode o menino ir para a escola, um dia brigou com umcompanheiro, e este lhe disse:

— Ah! Você acha que seu pai foi sempre rico!...Ele hoje está assim porque vendeu suas irmãs...

O rapazinho ficou muito pensativo e não dissenada em casa; mas, quando ficou moço, lá numcerto dia, armou-se de uma espada e foi ao pai e àmãe e lhes disse que lhe contassem a história desuas três irmãs, senão os matava. O pai o conteve econtou o que se tinha passado antes de ele nascer.O moço então disse que queria sair pelo mundopara encontrar suas irmãs e partiu. Chegando a umcaminho, viu numa casa três irmãos brincando porcausa de uma bota, uma carapuça e uma chave. Elechegou e perguntou o que era aquilo, e para queprestavam aquelas coisas.

Os três irmãos responderam que àquela bota sedizia: "Bota, me bota em tal parte!" e a bota botava; à

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carapuça se dizia: "Esconde-me, carapuça!" e elaescondia a pessoa de tal forma que ninguém a via; ea chave abria qualquer porta.

O moço ofereceu bastante dinheiro pelos obje-tos, os irmãos aceitaram, e ele partiu. Quando seviu longe da casa, disse:

— Bota, me bota na casa de minha irmã maisvelha!

Quando abriu os olhos, estava lá. A casa era umpalácio muito ornado e rico, e o moço mandoupedir licença para entrar e falar com a irmã, queestava feita rainha. Ela não queria aparecer, porquedizia que nunca tinha tido irmão. Afinal, ele contoutoda a sua história, a irmã acreditou nele e o tratoumuito bem.

Perguntou-lhe como podia ter chegado aliàquele fim de mundo, e o irmão contou-lhe o poderda bota. Pela tarde, a rainha se pôs a chorar e oirmão lhe perguntou a razão, ao que ela respondeu:

— Meu marido é o rei dos peixes e, quando vemjantar, está sempre zangado, querendo acabar comtudo. Não quer que ninguém venha ao seu palácio.

O moço disse-lhe que não se incomodasse porisso, que tinha com que se esconder e não ser visto,e era a carapuça. Pela tarde, veio o rei dos peixes,muito aborrecido, dando pulos e pancadas e dizen-do:

— Estou sentindo cheiro de gente! Estou sen-tido cheiro de gente!

Mas a rainha conseguiu convencê-lo de que es-

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tava errado, até que ele tomou um banho e setransformou num belo moço.

Seguiu-se o jantar, no qual a rainha perguntou-lhe:

— Se aqui viesse um irmão meu, cunhado seu,você o que fazia?

— Tratava e respeitava como a você mesma; e seestá aí, apareça! — foi a resposta do rei.

O moço apareceu, e foi muito bem tratado.Depois de muita conversa, em que contou suaviagem, insistiram para que ele ficasse ali, morandocom a irmã, ao que disse que não, porque ainda lherestavam duas irmãs a visitar.

O rei lhe perguntou para que servia aquela botae, quando soube, disse:

— Se eu a apanhasse, ia ver a rainha de Castela.O moço, não querendo ficar, despediu-se e, no

momento da partida, o cunhado lhe deu umaescama, e disse-lhe:

— Quando você estiver em algum perigo, peguenesta escama e diga: "Valha-me o rei dos peixes!".

O moço saiu e, quando se viu longe do palácio,disse:

— Bota, me bota em casa de minha irmã domeio!

Quando abriu os olhos, lá estava ele. Era umpalácio ainda mais bonito e rico do que o outro.Com alguma dificuldade da parte da irmã, entrou efoi recebido muito bem. Depois de muita conversa,a sua irmã do meio se pôs a chorar, dizendo que era"por estar ele aí, e, sendo seu marido rei dos carneiros,

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quando vinha jantar, era dandomuitas marradas, a ponto de matartudo o que via pela frente".

O irmão apaziguou-a, dizendoque tinha onde se esconder. Pouco

tempo depois, chegou uma porção de carneiros comum carneirão muito branco e belo na frente; esteentrou e os outros voltaram. (Segue-se uma cena emtudo semelhante à que se passou em casa do rei dos peixes.)

Na despedida, o rei dos carneiros deu ao cunhadouma lãzinha, dizendo:

— Quando estiver em perigo, diga: "Valha-me orei dos carneiros!".

Também disse, depois de saber a virtude dabota:

— Se eu pegasse esta bota, ia ver a rainha deCastela.

O moço foi reparando nisto e formou logoconsigo o plano de ir vê-la. Saiu e, pela mesmaforma, foi à casa de sua irmã mais moça. Era umpalácio ainda mais bonito e rico do que os outrosdois. (Seguem-se as mesmas cenas que nas outras duasvisitas.) Era o palácio do rei dos pombos, e este, nadespedida, deu ao cunhado uma pena, com aspalavras: "Quando se vir em algum perigo, diga:‘Valha-me o rei dos pombos!’. Na despedida, sabendoo rei da utilidade da bota, mostrou também desejosde ir visitar a rainha de Castela.

Logo que o moço se viu longe do palácio, disse:— Bota, bota-me agora na terra da rainha de

Castela.

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Marradas:cabeçadas.

Assim foi. Chegado lá, ele indagou e soube que"era uma princesa que o pai queria casar e que eratão bonita que ninguém passava pela frente dopalácio que não olhasse logo para cima para vê-lana janela; mas a princesa tinha dito ao rei que sócasava com o homem que passasse por ela semlevantar a vista".

O estrangeiro foi passar e atravessou toda adistância sem olhar, e a princesa casou com ele.

Depois de casados, ela indagou pela significaçãodaqueles objetos que seu marido sempre traziaconsigo; ele tudo lhe contou, e a princesa prestoumuita atenção ao que ele disse sobre a chave.

O rei, seu pai, tinha no palácio um quarto quenunca se abria, e neste quarto, onde era proibido atodos entrar, estava, desde muito tempo, trancadoum bicho Manjaléu, muito feroz, que sempre o reimandava matar e sempre revivia. A moça tinhamuita curiosidade de o ver e, aproveitando a saídado pai e do marido para uma caçada, pegou nachave encantada e abriu o quarto. O bicho pulou dedentro, dizendo:

— É você mesma que eu queria! – e fugiu comela para as matas.

Quando voltaram os caçadores, deram por faltada princesa e ficaram muito aflitos. O rei foi aoquarto do Manjaléu e achou-o aberto e vazio.Depois, valeu-se de sua bota e foi ter onde estavasua mulher. Esta, quando o viu, estando ausente oManjaléu, ficou muito alegre e quis ir-se emboracom o marido. Mas ele não consentiu, dizendo que

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ela ficasse ainda para indagar do monstro ondeestava a sua vida, para assim dar um fim nele. Opríncipe foi-se embora. Quando o Manjaléu voltou,viu que ali tinha estado o bicho homem. A moçaconvenceu-o a conter seu ódio e, quando ele seacalmou, ela lhe perguntou onde estava a sua vida.O monstro zangou-se muito e disse:

— Ah! você e o seu marido que-rem saber de minha vida para da-rem cabo de mim! Não digo, não...

Passaram-se dias, sempre amoça insistindo. Afinal, ele foiamolar uma espada, dizendo:

— Eu lhe digo onde está a minha vida, mas, seeu sentir qualquer incômodo, sei que ela está emperigo e, antes que me matem, mato você primeiro,entendeu?

A princesa respondeu que sim. O Manjaléuamolou a espada e disse-lhe:

— Minha vida está no mar; dentro dele há umcaixão, dentro do caixão uma pedra, dentro dapedra uma pomba, dentro da pomba, um ovo,dentro do ovo uma vela; assim que a vela se apagar,eu morro.

O bicho saiu e foi procurar frutas; chegou opríncipe, soube de tudo e foi-se embora. O Manja-léu veio e deitou-se no colo da moça com a espadaali perto. O príncipe chegou com a sua bota à praiado mar num instante; lá pegou na escama que tinhae disse:

— Valha-me o rei dos peixes!

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Dar cabo:

dar fim,matar.

De repente uma multidão de peixes apareceu,indagando o que ele queria. O príncipe perguntoupor um caixão que havia no fundo do mar; os peixesdisseram que nunca o tinham visto, e só se o peixedo rabo cotó soubesse. Foram chamar o peixe dorabo cotó, e este respondeu:

— Agora há pouco dei um encontrão nele.Todos os peixes foram e botaram o caixão para

fora. O príncipe o abriu e deu com a pedra; aí pegouna lãzinha e disse:

— Valha-me o rei dos carneiros!De repente apareceram muitos carneiros e

entraram a dar marradas na pedra. O Manjaléu lácomeçou a sentir-se doente e dizia: "Minha vida,princesa, corre perigo!" E pegou na espada; a moçafez que ele desistisse e foi engambelando-o. Oscarneiros quebraram a pedra e voou uma pomba. Opríncipe pegou na pena e disse:

— Valha-me o rei dos pombos!Chegaram muitos pombos e correram atrás da

pomba, até que a pegaram. O príncipe abriu-a eachou o ovo. Quando estava nisto, lá o Manjaléuestava muito abatido, pegou na espada e ia dandoum golpe na princesa. Foi quando o príncipequebrou o ovo e apagou a vela; aí o bicho caiu semferir a moça. O príncipe foi ter com ela e levou-apara o palácio, onde houve muitas festas.

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A festa no céu

ntre todas as avesespalhou-se a notícia deuma festa no Céu. Todasas aves compareceriam ecomeçaram a fazer inveja aos animais e outrosbichos da terra incapazes de vôo.

Imaginem quem foi dizer que iatambém à festa...O sapo! Logo ele,pesadão e nem sabendo dar uma

carreira, seria capaz de aparecernaquelas alturas? Pois o sapo disse

que tinha sido convidado e que ia sem dúvidanenhuma. Os bichos só faltaram morrer de rir. Ospássaros, então, nem se fala.

O sapo tinha seu plano. Na véspera, procurou ourubu e deu uma prosa boa, divertindo muito odono da casa. Depois disse:

— Bem, camarada urubu, quem é coxo partecedo e eu vou indo porque o caminho é comprido.

O urubu respondeu:— Você vai mesmo?— Se vou? Até lá, sem falta!Em vez de sair, o sapo deu uma volta, entrou no

quarto do urubu e, vendo a viola em cima da cama,meteu-se dentro, encolhendo-se todo.

O urubu, mais tarde, pegou na viola, amarrou-a56

E

Da obra Contos

tradicionais do

Brasil , de L. Câmara Cascudo,

ligeiramenteadaptado.

Carreira:

corrida.

a tiracolo e bateu asas para o céu, rru-rru-rru...Chegando ao céu o urubu deixou a viola num

canto e foi procurar as outras aves. O sapo botouum olho de fora e, vendo que estava sozinho, deuum pulo e ganhou a rua, todo satisfeito.

Nem queiram saber o espanto que as aves tive-ram vendo o sapo pulando no céu! Perguntaram,perguntaram, mas o sapo só fazia conversa mole. Afesta começou e o sapo se divertiu a valer. Pelamadrugada, sabendo que só podia voltar do mesmojeito da vinda, mestre sapo foi se esgueirando ecorreu para onde o urubu havia se hospedado.Procurou a viola e acomodou-se como da outra vez.

O sol saindo, acabou-se a festa e os convidadosforam voando cada um no seu destino. O urubuagarrou a viola e tocou-se para a terra, rru-rru-rru...

Ia pelo meio do caminho quando, numa curva, osapo mexeu-se e o urubu espiando para dentro doinstrumento viu o bicho lá no escuro, todo curvado,feito uma bola.

— Ah! camarada sapo! É assim que você vai àfesta no Céu? Deixe de ser confiado...

E naquelas lonjuras virou a viola. O sapo des-pencou-se para baixo que vinha zunindo. E dizia,na queda:

Béu-Béu!Se eu desta escaparNunca mais bodas ao céu!...

E vendo as terras lá embaixo:

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Bodas ao céu:

casamento nocéu.

— Arreda pedra, senão eu te rebento!Bateu em cima das pedras como um genipapo,

esborrachando-se todo. Ficou em pedaços. NossaSenhora, com pena do sapo, juntou os pedaços e osapo ressuscitou.

Por isso o sapo tem o couro todo cheio deremendos.

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Contos populares de

Portugal

Portugal tem rico repertório denarrativas populares que é poucoconhecido em nosso país, emboravárias histórias de origem portugue-sa, transformadas em maior ou me-nor grau, circulem por aqui em nossofolclore como se fossem contos inven-tados no Brasil.

As histórias que você lerá a seguirtêm uma clara mensagem moral comoé comum em narrativas como asfábulas.

A Riqueza e a Sorte

m pobre homem es-tava trabalhando no mato,a cortar lenha para ir vender pela vila e assim sus-tentar mulher e filhos. De repente viu ao pé de sidois homens, bem vestidos, que lhe disseram:

— Nós somos a Sorte e a Riqueza. Vimos ajudarvocê.

Cada um deles queria acudir primeiro aohomem e, por isso, passaram a discutir. Dizia aRiqueza:

— Eu só por mim o faço feliz; sendo ele rico temtudo.

— Pois, mesmo sem ser rico, eu, dando-lhesorte, faço-lhe maior benefício. Senão experimente-mos para ver.

Riqueza virou-se para o pobre do homem edisse:

— Tome lá esta moeda; amanhã compre carne,pão e vinho e não trabalhe nesse dia.

O homem foi-se embora contentíssimo paracasa; no outro dia foi ao açougue. Deu aoaçougueiro o dinheiro adiantado, mas, como estavaum grande barulho de gente no açougue, o dononegou que lhe tivesse dado o dinheiro, e o pobrehomem resignou-se e foi outra vez trabalhar para omato.

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U

Recontado por Teófilo Braga, em

versão levementeadaptada.

A Riqueza tornou a chegar ao pé dele e, quandosoube de que lhe servira a moeda, ficou zangada edeu-lhe uma bolsa cheia de moedas. O homemvoltou para casa. Mas, como a bolsa era de pelevermelha, uma ave de rapina caiu de repente sobreele e arrebatou nas garras o saco, e voou. O homemcontou a sua tristeza à mulher e no outro dia foitrabalhar para o mato. Tornou-lhe a aparecer aRiqueza; ficou mais desesperada quando soube doacontecido à bolsa.

— Pois desta vez dou-lhe um saco de moedastão grande que você não pode com ele; mas aquiestá um cavalo que vai levá-lo para a sua casa.

O homem agradeceu aquele favor da Riqueza epôs-se a caminho para casa. Quando ia por umatalho, estava num campo uma égua, e o cavalobotou a fugir atrás dela de tal forma que o homemnão foi capaz de o agarrar, e por mais que andounão pôde achar o cavalo.

Quando a Riqueza não esperava mais voltar aencontrar o homem no mato, foi ao sítio de semprecom a Sorte, e qual não foi o seu espanto quandoviu o pobre do homem a trabalhar como antes.Disse então a Sorte:

— Agora é a minha vez de o fazer feliz; vou-lhedar um vintém. Olhe lá, ó homem, tome esse vintéme assim que chegar à vila compre a primeira coisaque lhe aparecer.

O homem em caminho para casa encontrouquem lhe ofereceu uma vara de pegar azeitonaspelo preço de um vintém e comprou-a. No outro

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dia, foi para a apanha e, quandoia colher azeitonas, caiu-lhe dogalho da oliveira uma bolsa depele vermelha cheia de moedas.Agarrou-a e levou-a para casa, contou à mulher deonde suspeitava que lhe vinha aquele tesouro. Amulher combinou ir fazer uma romaria, e puseram-se a caminho. Quando chegaram a um descampado,acharam pegadas de cavalo, foram andando porelas e chegaram a um sítio onde estava um cavalodeitado ainda com um saco cheio de moedas.Voltaram logo para casa muito contentes emudaram de vida, que até aquele tempo tinha sidoamargurada pelos poucos ganhos e muitos filhos.

A Riqueza e a Sorte foram ao sítio onde ohomem costumava cortar lenha e esperaram por elebastante tempo. Por fim a Sorte declarou-se ven-cedora, dizendo:

— Que é que eu lhe dizia? Não é com muitodinheiro que se é feliz.

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Apanha:

colheita.

Comadre Morte

avia um homemque tinha tantos fi-lhos, tantos quenão havia ninguémna vizinhança que não fosse compadre dele. Um diaa mulher teve mais um filho. Que havia o homem defazer? Foi por esses caminhos afora ver seencontrava alguém que convidasse para compadre.Encontrou um pobrezito e perguntou-lhe se queriaser seu compadre. "Quero, mas você sabe quem eusou?" "Eu sei lá; o que eu quero é alguém parapadrinho do meu filho." "Pois, olha, eu sou Deus.""Então não me serve, porque você dá a riqueza auns e a pobreza a outros".

Foi mais adiante e encontrou uma pobre eperguntou-lhe se queria ser comadre dele. "Quero,mas você sabe quem eu sou?" "Não sei." "Pois olha,eu sou a Morte." "Você me serve, porque trata atodos por igual".

Fez-se o batizado e depois disse a Morte aohomem: "Já que você me escolheu para comadre,quero-lhe fazer rico. Você se faz de médico e vaipor essas terras curar doentes; você entra e, se virque eu estou à cabeceira da cama, é sinal que odoente não escapa e não adianta dar-lhe remédio.Mas, se estiver a seus pés, é porque escapa. Mas

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H

Recontado por Adolfo Coelho

em Contos populares

portugueses; adaptamosligeiramente a

narrativa.

não queira curar aqueles a que eu estiver à cabe-ceira, porque eu acabo com você.

Assim foi. O homem ia às casas e, se via a co-madre à cabeceira dos doentes, abanava a cabeça;mas, se estava aos pés, receitava o que lhe pareciabem. Vejam lá se ele não havia de ganhar fama edinheiro, que era uma coisa! Mas, certa vez, foi àcasa de um doente muito rico, e a Morte estava àcabeceira. Abanou a cabeça; disseram-lhe que lhedariam tantos contos de réis se o livrassem daMorte, e ele disse: "Deixa estar que eu dou um jeitoem você", e pega no doente e muda-o com a cabeçapara onde estavam os pés, e ele escapa.

Quando ia para casa, sai-lhe a comadre aocaminho: "Venho buscá-lo por aquela traição queme fez." "Pois então, deixe-me rezar um padre-nosso antes de morrer". "Reze, então."

Mas ele rezar, qual rezou! Não rezou nada, e aMorte, para não faltar à palavra, foi-se sem ele.

Um dia o homem encontra a comadre que sefazia de morta num caminho; e ele lembrou do bemque ela lhe tinha feito e disse: "Minha queridacomadrinha, que está aqui morta, deixe-me rezarum padre-nosso por sua alma!"

Depois de acabar, a Morte levantou-se e disse:"Pois, já que você rezou o padre-nosso, venhacomigo."

O homem era esperto, mas a Morte ainda eramais, pois não era?

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Fábula

A seguir, você lerá váriasversões de uma mesma fábu-la, que é uma narrativa curta,

com personagens que são,geralmente, animais falantes. Na maior parte das vezes, a

moral que a fábula quer trans-mitir vem expressa claramente,muitas vezes, como no caso daque vamos ler, enunciada numafrase final. Você provavelmente já conheceesta fábula, pois é uma das maisfamosas. Primeiramente, você lerá a ver-

são original do grego Esopo, doséculo Vl a. C.; depois a doromano Fedro, do século pri-meiro antes de Cristo; emseguida, a de La Fontaine e ade Monteiro Lobato.

O lobo e o cordeiro (Esopo)

m lobo, tendo avistado um cordeiro bebendoem certo regato, desejou devorá-lo recorrendo a umpretexto qualquer. Estava ele no alto, mas acusou ocordeiro de sujar a água de tal modo que ele nãopodia bebê-la. O cordeiro respondeu que maltocava a água com os lábios; além disso, estandonuma posição inferior, era impossível turvar a águaque corria do alto.

Como aquele pretexto não colou, disse o lobo:— Mas no ano passado você insultou meu pai!O cordeiro, então, explicou que, naquela época,

ele nem sequer era nascido. O lobo lhe disse:— Você pode ser muito bom para dar desculpas,

mas eu não deixarei de devorá-lo!

A fábula mostra que nenhuma defesa justa terá sucessocontra os que querem ser injustos.

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U

O lobo e o cordeiro (Fedro)

A um mesmo córrego chegaram certa vez umlobo e um cordeiro, levados pela sede. O loboestava numa posição mais acima; muito mais abaixose encontrava o cordeiro. Então, movido por umafome terrível, o bandido arranjou um pretexto paradiscussão:

— Por que você turvou a água que eu estoubebendo?

O cordeiro, com medo, respondeu:— Como posso eu, me diga, fazer aquilo de que

você se queixa, lobo? A água corre de onde vocêestá até aqui, onde estou bebendo.

Repelido pela força da verdade, o lobo replicou:— Há uns seis meses atrás, você falou mal de

mim!O cordeiro, por sua vez:— Mas eu nem era nascido há seis meses atrás!— Então foi seu pai que falou mal de mim! —

disse o lobo e, agarrando o cordeiro, devorou-o,dando-lhe morte injusta.

Esta fábula foi escrita pensando nas pessoas que seservem de pretextos para oprimir os inocentes.

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O lobo e o cordeiro (La Fontaine)

razão do mais forte é sempre a melhor:É o que agora vamos mostrar.Um Cordeiro matava a sede na corrente de

límpidas águas. Um Lobo, que não comia há tempo,apareceu, buscando confusão. A fome o atraiu paraaquele lugar.

— Quem tornou você tão atrevido a ponto deturvar minha água? — disse o animal, cheio de ira.Você será castigado por essa ousadia!

— Senhor — respondeu o Cordeiro — não sezangue! Note que eu matava minha sede no regatoa mais de vinte passos abaixo do senhor. Assim, demodo algum eu poderia turvar sua água.

— Você a turva — insistiu o animal cruel — e eusei que no ano passado você falou mal de mim!

— Como eu poderia ter feito isso se eu não eranem nascido? Eu ainda mamo.

— Se não foi você, então foi seu irmão.— Não tenho irmão.— Então foi um parente seu. Vocês não me dão

trégua, vocês, seus pastores e seus cães! Foi o queme disseram. Preciso me vingar.

Lá em cima, no fundo das florestas, o Lobo agarra oCordeiro e depois o devora, sem mais nem menos.

68

A

Pronuncie Fõtéine. O original

francês é em versos.

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Narração deMonteiro Lobato

stava o cordeiro a bebernum córrego, quando apareceuum lobo esfaimado, de horren-do aspecto.

— Que desaforo é esse de turvar a água quevenho beber? — disse o monstro arreganhando osdentes. Espere, que vou castigar tamanha má-criação!...

O cordeirinho, trêmulo de medo, respondeucom inocência:

— Como posso turvar a água que o senhor vaibeber se ela corre do senhor para mim?

Era verdade aquilo e o lobo atrapalhou-se com aresposta. Mas não deu o rabo a torcer.

— Além disso — inventou ele — sei que vocêandou falando mal de mim o ano passado.

— Como poderia falar mal do senhor o anopassado, se nasci este ano?

Novamente confundido pela voz da inocência, olobo insistiu:

Veja como Monteiro Lobato,baseado no francês La Fontaine,que recontou as fábulas gregas eromanas, narra a mesma históriano livro Fábulas:

EEsfaimado:

faminto.

— Se não foi você, foi seu irmão mais velho, oque dá no mesmo.

— Como poderia ser o meu irmão mais velho, sesou filho único?

O lobo, furioso, vendo que com razões clarasnão vencia o pobrezinho, veio com uma razão delobo faminto:

— Pois se não foi seu irmão, foi seu pai ou seuavô!

— E — nhoque! — sangrou-o no pescoço.

Contra a força não há argumentos.

Estamos diante da fábula mais famosa detodas — declarou Dona Benta. Revela aessência do mundo. O forte tem sempre razão.Contra a força não há argumentos.

— Mas há a esperteza! — berrou Emília. Eunão sou forte, mas ninguém me vence. Por quê?Porque aplico a esperteza. Se eu fosse essecordeirinho, em vez de estar bobamente a discutircom o lobo, dizia: "Senhor Lobo, é verdade, sim,que sujei a água deste riozinho, mas foi paraenvenenar três perus recheados que estãobebendo ali embaixo". E o lobo, já com água naboca: "Onde?" E eu, piscando o olho: "Lá atrás

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daquela moita!" E o lobo ia ver e eu sumia...— Acredito — murmurou Dona Benta. E

depois fazia de conta que estava com umaespingarda e, pum! na orelha dele, não é? Pois

fique sabendo que estragaria a mais bela eprofunda das fábulas. La Fontaine a escreveudum modo incomparável. Quem quiser saber oque é obra-prima, leia e analise a sua fábula doLobo e o Cordeiro.

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Narração deMillor Fernandes

stava o cordeirinho bebendo água, quandoviu refletida no rio a sombra do lobo. Estremeceu,

ao mesmo tempo que ouvia a vozcavernosa: "Vais pagar com a

vida o teu miserável crime". "Quecrime?" — perguntou o cordeiri-nho tentando ganhar tempo, poisjá sabia que com lobo não adiantaargumentar. "O crime de sujar a

água que eu bebo". "Mas como posso sujar a águaque bebes se sou lavado diariamente pelasmáquinas automáticas da fazenda?" — indagou ocordeirinho. "Por mais limpo que esteja umcordeiro é sempre sujo para um lobo. "E vice-versa"— pensou o cordeirinho, mas disse apenas: "Comoposso eu sujar a sua água se estou abaixo dacorrente?" "Pois se não foi você, foi seu pai, foi suamãe ou qualquer outro ancestral e eu vou comê-lode qualquer maneira, pois como rezam os livros delobologia, eu só me alimento de carne de cordeiro"

Millor Fernandes, jornalista eescritor contemporâneo, recriouessa fábula em seu livro Fábulas

Fabulosas:

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E

Cavernosa:

grave erouca.

— finalizou o lobo preparan-do-se para devorar o cordeiri-nho. "Um momento, um mo-mento!" — gritou o cordei-rinho. "Dou-lhe toda razão,mas faço-lhe uma proposta: seme deixar livre atrairei pra cátodo o rebanho". "Chega de conversa" — disse olobo — "vou comê-lo logo, e está acabado". "Espera

aí" — falou firme o cordeiro— isso não é ético. Eu tenho,

pelo menos, direito a três per-guntas". "Está bem" — cedeu olobo irritadocom a lem-

brança docódigo mi-lenar da

jungle."— Qual é o animal maisestúpido do mundo?" "O homem

casado" — respondeu pronta-mente o cordeiro. "Muito

bem, muito bem!" — disse olobo, logo refreando, envergo-

nhado, o súbito entusiasmo."Outra: a zebra é um animal

branco de listras pretas ou um animal preto delistras brancas?" "Um animal sem cor pintado depreto e branco para não passar por burro" —respondeu o cordeirinho. "Perfeito!" — disse o loboengolindo em seco. "Agora, por último, diga uma

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Aqui, houveuma pequena

adaptaçãodo texto.

Jungle:selva, em

inglês.

Ético:

decente,apropriado doponto de vista

da moral.

Refreando:

contendo.

frase de BernardShaw". "Vai haver elei-

ções em 66" — respon-deu logo o cordeirinhomal podendo conter oriso. "Muito bem, muitocerto, você escapou!"— deu-se o lobo por

vencido. E já ia sepreparando paradevorar o cordeiroquando apareceu ocaçador e o esquar-tejou.

MORAL: QUANDO O LOBO TEM FOME NÃODEVE SE METER EM FILOSOFIAS.

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Bernard

Shaw: escritor

inglês famosopor seu estilohumorístico e

satírico.

Provavelmente,escrita na época daditadura militar, em

que não haviaeleições diretas noBrasil, a narrativafaz o cordeirinhodizer algo que oseleitores da épocaachariam absurdo,porque totalmentefora da realidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APULEIO. Le metamorfosi o l’asino d’oro. 6. ed.Milano: Rizzoli, 1987.BAHLMANN, Clemens et alii. Unterwegs. Berlin:Langenscheidt, 2003 (conto dos irmãos Grimm).BRAGA, Teófilo. Contos tradicionais do povo português.4. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1998.CASCUDO, Câmara. Contos tradicionais do Brasil.Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.COSTA E SILVA, Alberto da. Lendas do índiobrasileiro. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d.ESOPO. Favole. 9. ed. Milano: Rizzoli, 1992.FERNANDES, Millor. Fábulas fabulosas. 12. ed.Rio de Janeiro: Nórdica, 1991.LOBATO, Monteiro. Fábulas e histórias diversas.13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1965.OVIDE. Les métamorphoses. Paris: Garnier, 1953.PHÈDRE. Fables. Paris: Les Belles Lettres, 1969.ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil. SãoPaulo: Landy, 2000.

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