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    SIDIO ROSA DE MESQUITA JNIOR

    ANLISE CRTICA DO

    DIREITO CRIMINAL

    (teoria do crime)

    Volume 1

    BRASLIA

    2012

    A disponibilizao do texto ser feita aos alunos, mas vedada a sua divulgao por qualquer meio, podendo seradotada qualquer providncia (civil ou criminal) contraaluno que o autor entender ter feito difuso no autorizadado mesmo.

    Obs.: caso queira imprimir, faa isso em frente e verso.

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    Dados da editora

    SIDIO ROSA DE MESQUITA JNIOR

    ANLISE CRTICA DO

    DIREITO CRIMINAL

    (teoria do crime)

    Volume 1

    BRASLIA

    2012

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    minha mulher (pessoa com quem esperoviver uma eternidade) e aos meus maravilhosos

    filhos. Tambm, aos doutrinadores que foram

    citados com expresses de respeito e admirao,

    uma vez que me incentivaram (direta ou

    indiretamente) e tornaram possvel a elaborao

    deste. Dentre eles, destaco Joo Maurcio

    Adeodato, mas estendo aos outros que, conhecendo

    pessoalmente ou no -, muito contriburam para

    meu desenvolvimento jurdico. Finalmente, aos

    meus alunos atuais e de outrora pessoas s

    quais muito devo e que constituem o motivo ltimo

    de estar publicando este livro.

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    NDICE

    ____________________

    Abreviaturas e siglas

    Nota do autor

    Introduo

    1. Introduo,

    1.1 Diviso da obra em volumes,

    1.2 O cdigo penal vigente,1.3 Como o assunto ser tratado,

    1.4 Motivao do autor,

    2. Noes preliminares

    2.1 Proposta de estudo

    2.2 O porqu do estudo filosfico

    2.2.1 Objeto de estudo da jusfilosofia2.2.2 Graus do conhecimento, conceito e autonomia do DCrim

    2.2.3 A localizao de topoie o problema das classificaes

    2.3 Relaes do DCrim

    2.4 Denominao

    2.5 Histria do DCrim e a sua relao com a filosofia

    2.5.1 Generalidades

    2.5.2 Ideias e instituies criminais

    2.5.2.1 Significado de ideias e instituies criminais

    2.5.2.2 Fase da vingana

    2.5.2.3 Lei de talio e a pena de morte

    2.5.2.4 Composio

    2.5.2.5 Cdigos escritos

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    2.5.2.6 Povos antigos

    2.5.2.6 Direito da igreja

    2.5.2.7 Perodo humanitrio

    2.5.2.8 Perodo criminolgico

    2.5.3 Escolas criminais

    2.5.3.1 Escola clssica

    2.5.3.2 Escola positiva

    2.5.3.3 Funcionalismo

    2.5.3.4 Formao multidisciplinar do direito e o funcionalismo

    criminal: teorias do discurso2.5.4 DCrim no Brasil

    2.5.4.1 Das ordenaes do reino ao cdigo penal vigente

    2.5.4.2 Lei das contravenes penais e distino entre crime e

    contraveno

    2.6 Sano criminal e outras sanes

    2.7 Fontes do direito criminal2.7.1 Fontes materiais

    2.7.2 Fontes formais

    2.7.2.1 Imediatas

    2.7.2.2 Mediatas

    2.8 Posio enciclopdica

    2.9 Outras classificaes

    2.10 Caracteres do dcrim

    2.11 DCrim, Penalogia, Poltica Criminal, Vitimologia e Criminologia

    2.11.1 Objeto de estudo de cada cincia

    2.11.2 Conceituando a criminologia

    2.11.3 Autonomia da criminologia

    2.11.4 Mtodo de estudo da criminologia

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    2.11.5 Criminologia clssica (ou positiva?)

    2.11.6 Vertentes hodiernas

    2.11.6.1 Contextualizando a criminologia e dentre os movimentos

    que tendem ao combate da criminalidade

    2.11.3.2 As denominadas escolas criminolgicas

    2.11.3.3 Criminologia crtica e abolicionismo, minimalismo e

    maximizao do DCrim

    3. Lei criminal e outras regras gerais

    3.1 Objetivos deste captulo

    3.2 Conceito e espcies de normas criminais3.2.1 Conceito e elementos mnimos

    3.2.2 Classificao

    3.4 Hermenutica e interpretao da norma criminal

    3.4.1 Distino entre hermenutica e interpretao

    3.4.2 Escola da exegese

    3.4.2 Escola histrico-evolutiva e direito livre3.4.3 Mtodos de interpretao

    3.5 Lei criminal no tempo

    3.5.1 Princpios da legalidade e da reserva legal

    3.5.2 O garantismo e o direito criminal funcionalista

    2.5.3 Bases do garantismo

    2.5.4 Congruncia das teorias: funcionalismo e garantismo

    3.5.5 Princpio da anterioridade

    3.5.6 Princpio da irretroatividade

    3.5.7 Retroatividade benfica da lei criminal

    3.5.8 Ultra-atividade da lei criminal

    3.5.9 O fenmeno da ultra-atividade e retroatividade da lei ao mesmo

    tempo

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    3.6 Lei criminal no espao

    3.6.1 Princpio da territorialidade

    3.6.1.1 Sentido do princpio

    3.6.1.2 O princpio da territorialidade ante a corte internacional

    criminal

    3.6.3 Da extraterritorialidade

    3.6.4 Lugar do crime

    3.7 a norma criminal quanto s pessoas

    3.7.1. Distino entre imunidade e prerrogativa de foro

    3.7.2 imunidades3.7.2.1 Espcies bsicas

    3.6.2.2 Imunidade absoluta

    3.6.2.3 Imunidade relativa

    3.7 Pena cumprida no estrangeiro

    3.8 Sentena estrangeira

    3.9 Contagem do prazoReferncias

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    ABREVIATURAS E SIGLAS

    _________________________________

    CADEConselho Administrativo de Defesa Econmica

    CCCdigo Civil

    CFConstituio Federal

    CPCdigo Penal

    CPPCdigo de Processo Penal

    DCrimDireito Criminal

    DProcDireito Processual

    DAdmDireito Administrativo

    DConstDireito Constitucional

    DCivDireito Civil

    DExecCrimDireito de Execuo Criminal

    ECEmenda Constituio

    LICPCPPLei de Introd. ao Cdigo Penal e ao Cdigo de Processo Penal

    LEPLei de Execuo Penal

    PG/CPParte Geral do Cdigo Penal

    SINICSistema Nacional de Identificao Criminal

    STJSuperior Tribunal de Justia

    STFSupremo Tribunal Federal

    TACrimTribunal de Alada Criminal

    TJDFTTribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios

    v.g.verbi gratia

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    NOTA DO AUTOR

    _________________________

    O presente livro volta-se ao pblico acadmico em geral. uma obra

    que pretende merecer ostatusde anlise propedutica e doutrinria do Direito

    Criminal ptrio, mas sem esgotar todos os assuntos que o Direito Criminal

    aborda, uma vez que, at em um tratado, impossvel enfrentar todos os

    temas que o exame cientfico da norma criminal viabiliza. No obstante isso,

    o objetivo desenvolver uma anlise mais aprofundada e crtica do DCrim.

    O livro ir alm do Cdigo Penal (CP), no sendo apenas uma

    abordagem momentnea da legislao vigente. Apresenta um contedo

    atualizado e crtico das posies consolidadas e que esto emergindo acerca

    do Direito Criminal (DCrim), mas com razovel enfoque jusfilosfico, base

    do discurso jurdico na atualidade.

    Restringir o DCrim s normas que constituem seu objeto de estudo

    equivocado. Pior seria restringi-lo legislao criminal, uma vez que o

    conceito de norma jurdica mais amplo que o conceito de lei. por essa

    razo que o estudo estar permeado de anlises que induziro o leitor a

    perceber que o cientista do Direito no pode resolver todas as questes que

    lhe so apresentadas. A maioria dos problemas jurdico-criminais ensejamdiscusses que tem solues metajurdicas.

    Este livro conter anlises mais aprofundadas no primeiro volume, que

    versar inicialmente sobre a propedutica processual, onde a preocupao

    maior ser a de apresentar o conceito e a evoluo histrica do DCrim.

    Outrossim, uma das maiores preocupaes dos 2 primeiros captulos ser

    contextualizar o DCrim, esclarecendo trs pontos principais:

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    necessrio empregar terminologias adequadas e se esclarecer o

    conceito de cada palavra utilizada, evitando-se cair discusses vazias,

    pois, conforme Heidegger nos ensinou, necessrio que se tenha

    definies claras do ente, do ser e do fenmeno, a fim de evitar

    confuses que tornam equivocados os estudos e, consequentemente as

    concluses.1 Ele dizia que o pensamento e o discurso residem e se

    movem na linguagem.2 Assim, mister o rigor terminolgico e o

    emprego de palavras adequadas ao estudo cientfico que se desenvolve;

    a questo da legitimidade, para parte da jusfilosofia, anterior ao

    Direito. Todavia, ningum duvida que melhor que a norma seja

    legtima, o que enseja a anlise, j no Cap. 1, de questes relativas

    evoluo da jusfilosofia e sua posio atual, com profundos reflexos na

    teoria do crime e da pena.

    a norma jurdica precisa ser definida, uma vez que constitui pressuposto

    do crime e da pena. Esclarecer o alcance da norma, em relao ao

    tempo, ao espao e s pessoas, fundamental, a fim de possibilitar sua

    correta aplicao aos casos concretizados;

    A teoria do crime ser desenvolvida a partir do 3 captulo, sendo que

    este volume corresponder ao previsto na maioria das faculdades de Direito,

    visando a atender ao programa de Direito Penal I.

    Os demais volumes visaro a atender respectivamente aos seguintes

    contedos programticos: (a) Direito Penal II: vol. 2 teoria da pena; (b)

    Direito Penal III: vol. 3 Parte Especial: dos crimes contra a pessoa aos

    crimes contra a dignidade sexual; (c) Direito Penal IV: vol. 4Parte Especial:

    1 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 12. ed. (Parte I) e 10. ed. (Parte II). Petrpolis:Vozes, 2.002.passim.2Idem. Que isto a filosofia? STEIN, Ernildo. Os pensadores: Heidegger. So Paulo:

    Nova Cultural, 1996. p. 24.

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    dos crimes contra a famlia aos crimes contra a administrao pblica; (d)

    Direito Penal Vvol. 5Legislao criminal especial.

    O estudo procurar ser profundo, mas com apresentao sucinta,

    evitando-se repeties de conceitos e teorias expostos nos 2 primeiros

    volumes. Com isso, a compreenso do exposto nos volumes que trataro da

    parte especial e da legislao criminal especial exigir conhecimento prvio

    do objeto de estudo dos 2 primeiros volumes.

    A crtica, aqui utilizada no sentido de indagao, acompanhar todo

    livro. O objetivo ser propiciar concluses racionais acerca de casos concretos

    e tornar possvel a construo do saber jurdico-criminal do estudante da

    graduao em Direito, bem como contribuir para a evoluo terica daqueles

    que j trilham esse fascinante caminho.

    O autor.

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    INTRODUO

    ____________________

    1.1 DIVISO DA OBRA EM VOLUMES

    O DCrim vem sofrendo muitas transformaes nos ltimos anos. No

    h acordo na doutrina sobre muitos aspectos. Assim, por responsabilidade, oestudo no pode apresentar uma nica posio doutrinria.

    Procurarei ser o mais abrangente possvel, isso no tocante

    apresentao, mesmo que de forma sucinta, das posies doutrinrias

    divergentes e das vrias teorias incidentes sobre os assuntos que sero

    examinados, ganhando prestgio especial as teorias da norma e do crime,

    calcadas na moderna corrente jusfilosfica denominada funcionalismo. Paratanto, ser necessrio reservar este volume propedutica, na qual se estudar

    a teoria geral do DCrim, a partir da sua histria, relaes e fontes, at chegar

    s teorias da norma jurdico-criminal e do crime.

    1.2 O CDIGO PENAL VIGENTE

    O Cdigo Penal (Decreto-lei n. 2.848, de 7.12.1940) dividido em duaspartes principais, uma geral e outra especial, o qual foi institudo em 1940,

    com incio de vigncia em 1941. A Parte Geral (PG) foi completamente

    modificada em 1984 (Lei n. 7.209, de 11.7.1984).

    Na impossibilidade concreta de se criar um novo Cdigo Penal, foram

    inseridas vrias as modificaes no texto da PE. Por outro lado, a PG no

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    restou ilesa, ou seja, vrias leis posteriores Lei n. 7.209/1984 modificaram

    substancialmente o contedo desta.

    A PG, como o prprio nome sugere, traz normas gerais aplicveis aos

    crimes em espcie, dando a orientao sobre a aplicao da lei, definindo o

    crime, as condies de aplicao das sanes criminais, a iniciativa da ao e

    a punibilidade. A PE descreve os crimes em espcie, cominando a pena

    aplicvel a cada um deles. Excepcionalmente, a PE e traz algumas disposies

    gerais que incidiro sobre determinados delitos. De qualquer modo, em

    relao s constantes da PG sero especiais, visto que se destinaro aos

    crimes que especialmente sero disciplinados por ela, em desprestgio das

    disposies da PG.

    O estudo da PE exige a constante aplicao dos conhecimentos

    relativos PG. impossvel dissociar as duas partes, visto que a PG quem

    oferece as orientaes para hermenutica e aplicao da PE. Destarte, sero

    frequentes, nos comentrios aos dispositivos da PE, as referncias aos

    preceitos da PG. Por outro lado, apresentarei preceitos constantes da

    legislao criminal extravagante, mormente quando houver semelhana entre

    o preceito CP e o da lei especial que ser mencionada.

    1.3 COMO O ASSUNTO SER TRATADO

    A apresentao dos assuntos acompanhar a distribuio do CP, sendo

    que, por opo didtica, serei razoavelmente fiel sequncia da lei, pois

    assim o leitor conhecer mais facilmente cada um dos temas expostos. No

    entanto, os artigos sero reunidos em captulos, podendo ocorrer algumas

    inverses nas sequncias das disposies legais, tudo visando a facilitar a

    compreenso de cada norma expressa no CP.

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    Devo esclarecer que adotei uma postura que procura atender ao

    acadmico e candidato a concurso pblico. No obstante isso, esta obra pode

    trazer elucidaes e contribuies rpidas, at mesmo para profissionais mais

    experientes, no sendo, portanto, uma obra destinada unicamente aos nefitos

    no estudo das teorias do crime e da pena.

    Na esteira dessa linguagem didtica, evitarei tornar a obra

    exageradamente extensa, expondo os assuntos de maneira que, segundo

    minha viso, so mais facilmente compreendidos. Dessa forma, procurarei

    facilitar a leitura deste livro.

    O objetivo apresentar seriamente o DCrim. O discurso no ser o

    utilizado pelos meios de comunicao de massa nem o corrente nos manuais

    tendentes exclusivamente aos concursos pblicos. O objetivo consolidar

    uma posio doutrinria, evitando uma prtica despida da teoria que possa

    sustent-la. Por isso, alerto desde j, h a possibilidade da prtica decorrer de

    certas paixes populares e outros motivos metajurdicos, nem sempre os mais

    salutares para o desenvolvimento do conhecimento jurdico-criminal.

    Pretender discutir profundamente todos os fatos relativos aos crimes e

    criminalidade impossvel ao jurista. Sendo o conhecimento cientfico

    fragmentrio, o jurista verificar suas limitaes ao encontrar vrias questes

    que dependero do conhecimento de outras cincias. Refutarei, portanto,

    algumas previses legais que tm a pretenso de reunir na figura do jurista

    todos os conhecimentos das diversas cincias que circundam o fenmeno

    criminal. Da a impossibilidade terica de se admitir certas determinaes

    legais, v.g., relativas personalidade do agente, conforme ser exposto no

    presente livro.

    1.4 MOTIVAO DO AUTOR

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    O que motiva o autor a busca por uma estrutura razovel de aplicao

    do DCrim. Este denominado Direito de ltima instncia, dizendo-se que

    ele deve se afastar daqueles campos em que os outros ramos da cincia

    jurdica forem capazes de resolverem os conflitos por meio de suas prprias

    coercibilidades. Mais ainda, a soluo de muitos problemas deve encontrar

    solues pacficas, no por meio de batalhas judiciais e sanes jurdicas, o

    que permite concluir pela total inviabilidade de se tentar ver no Direito

    Criminal a panaceia para todos os males da sociedade complexa.

    A viso crtica, a concordncia ou a discordncia em relao s

    posies consolidadas na doutrina e nos tribunais permear todo livro. No

    entanto, o farei de maneira fundamentada, haja vista que no adequado

    concordar ou discordar com a afirmao de outrem sem a necessria

    racionalidade que possibilita o conhecimento cientfico.

    Heidegger ser citado neste curso por vrias vezes. Ele acreditava:

    A vida cotidiana faz do homem um ser preguioso e cansado de si

    prprio, que, acovardado diante das presses sociais, acaba preferindovegetar na banalidade e no anonimato, pensando e vivendo por meio deideias e sentimentos acabados e inalterveis, como ente exilado de si mesmoe do ser.3

    O que se espera ver um leitor atento, disposto a analisar cada posio

    que ser apresentada neste curso e que se procure conhecer melhor cada uma

    das teorias e disposies legais que sero mencionadas. Assim, ele estar

    produzindo os efeitos desejados.

    Weber enfrentou a questo relativa neutralidade axiolgica que se

    imagina necessria para exposio de concluses sobre as experincias

    3Conf. CHAU, Marilena de Souza. Vida e obra. HEIDEGGER, Martin. Os pensadores:

    Heidegger. So Paulo: Nova Cultural, 1.995. p. 8.

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    cientficas realizadas, concluindo que necessria a serenidade, mas, se

    necessrio, deve-se nadar contra a corrente.4

    Discordo daqueles que dizem ser melhor no enfrentar questes

    polmicas, bastando a simples referncia s construes j consolidadas.

    Como dizem os religiosos, se houvesse apenas uma pessoa a ser salva, Deus

    mandaria Seu Filho para sofrer tudo o que sofreu, pois o seu sacrifcio no

    teria ocorrido em vo. Este um livro pretende ser cientfico, razo de colher

    o exemplo bblico apenas para demonstrar o quanto considero importante a

    imaginao capaz de analisar criticamente o sistema jurdico e, qui,

    desconstruir vrios equvocos de tal sistema.

    Espera-se que cada leitor deste livro tenha a vontade de aprender um

    pouco mais do DCrim, sendo necessria, portanto, a dvida. Desse modo,

    pede-se que, antes de iniciar o estudo deste livro, cada leitor se livre das

    convices e supostas certezas tendentes a prejudicar a evoluo intelectual.

    Este no um curso que versa sobre conhecimentos que nos so dados. Ele

    visa a possibilitar a evoluo cientfica do sistema jurdico-criminal.

    Assim como a guerra, s vezes, o instrumento para a construo de

    um ambiente de paz, o conflito intelectual que possibilitar o surgimento de

    algo melhor que DCrim e permitir a presena de algum coisa mais humana,

    eficaz e til do que a pena. Qui algum consiga criar um novo Direito,

    melhor que o DCrim consolidado, sendo que melhor ser se este livro vier a

    contribuir de alguma maneira para tal evoluo.

    Concordo com Weber e entendo que as palavras de Nietzsche so aqui

    oportunas: Eu sou algum e, sobretudo, no confundais com os outros.5

    4WEBER, Max.Ensaios sobre as teorias das cincias sociais. So Paulo: Moraes, 1.991.p. 75-132.

    5NIETZSCHE, Friedrich.Ecce Homo. So Paulo: Martin Claret, 2.003. p. 31.

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    Essa viso permitir a construo de uma anlise crtica com a adoo de

    teses, em alguns momentos, destoantes das posies consolidadas sobre

    determinadas matrias, mas sem deixar de explicar as posies dominantes.

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    NOES PRELIMINARES

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    2.1 PROPOSTA DE ESTUDO

    Neste captulo, procurarei definir o DCrim, situando-o dentro do

    sistema jurdico. Tambm, apresentarei uma sntese da sua evoluo histrica,sempre visando a possibilitar a completa noo das razes pelas quais o

    Direito se encontra no atual estgio de desenvolvimento, bem como as lies

    que o inspiram. Esse estudo estar permeado de filosofia, uma vez que a

    histria da filosofia e a do pensamento jurdico-criminal tendem a se

    aproximar desde a antiguidade.

    O estudo preliminar do conceito do DCrimincluindo nele os aspectosque possibilitam conhecer sua denominao e as regras de interpretao das

    normas criminais fundamental para o entendimento dos preceitos do CP,

    razo pela qual este captulo se dedicar s matrias propeduticas, s vezes,

    no expressas nas leis criminais.

    Observe-se, no entanto, que a conceituao de uma cincia no

    preocupao do cientista. Enquanto cientista do Direito, o jurista devepreocupar-se em delimitar e conceituar seu objeto de estudo, no a prpria

    cincia, o conceito desta preocupao da Filosofia, mais especificamente da

    jusfilosofia, que a parte da Filosofia que se ocupa do Direito.

    O objeto bsico deste captulo situar o estudante do Direito acerca de

    aspectos histricos e filosficos, bem como apresentar conceitos

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    propeduticos necessrios, a fim de permitir a compreenso de estudos

    concernentes norma, ao crime e pena, que dependero de tais noes.

    2.2 O PORQU DO ESTUDO FILOSFICO

    2.2.1 Objeto de estudo da jusfilosofia

    H uma parte da filosofia geral que se ocupa de assuntos jurdicos, a

    qual denominada jusfilosofia. A sua anlise fundamental porque

    importantes pensadores j disseram que o Direito, antes de ser uma cincia

    uma parte da filosofia.

    O estudo do jusfilsofo tende discusso em torno da justia,

    procurando defini-la ou saber se ela unicamente um fim do Direito, mas essa

    uma rdua tarefa. Da mesma forma, a jusfilosofia procura explicar as bases

    que do sustentao ao Direito, o que tambm extremamente complicado.

    Na verdade, so muitas as metas e tarefas da jusfilosofia, a saber:

    proceder crtica das prticas, das atitudes e atividades dos operadores do

    direito;

    avaliar e questionar a atividade legiferante, bem como oferecer suporte

    reflexivo ao legislador;

    proceder avaliao do papel desempenhado pela cincia jurdica e o

    prprio comportamento do jurista ante ela;

    investigar as causas da desestruturao, do enfraquecimento ou da runa de

    um sistema jurdico;

    depurar a linguagem jurdica, os conceitos filosficos e cientficos do

    Direito;

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    investigar a eficcia dos institutos jurdicos, sua atuao social e seu

    compromisso com as questes sociais, seja no que tange a indivduos, seja

    no que tange a grupos, seja no que tange a coletividades, seja no que tange

    a preocupaes humanas universais;

    esclarecer e definir a teleologia do Direito, seu aspecto valorativo e suas

    relaes com a sociedade e os anseios culturais;

    resgatar origens e valores fundantes dos processos e institutos jurdicos;

    por meio da crtica conceitual institucional, valorativa, poltica e

    procedimental, auxiliar o juiz no processo decisrio.

    6

    A fragmentariedade do conhecimento cientfico exige uma rpida

    incurso na filosofia, a fim de construir bases razoveis para a perspectiva

    mais genrica e abstrata. Tambm, questes concernentes legitimao do

    direito no uma tarefa do cientista do Direito, mas do jusfilsofo.

    Prepararei caminho para a compreenso da utilidade dos estudos

    jusfilficos tendentes a explicar o que efetivamente o cerne do Direito, seufundamento de validade, como instrumento para tornar possvel a coexistncia

    social. sabido que ubi societas ibi ius, sendo que ele s se justifica na

    medida em que tenha alguma utilidade social. No entanto, muitos problemas

    emergem, a partir da coercibilidade das normas jurdicas, visto que sempre

    restaro indagaes sobre o que d ao mais forte o direito de oprimir o mais

    fraco, ou ainda, nem sempre a vontade da maioria representar sabedoria,cabendo, ento, discutir sobre o porqu de no fazer a vontade da minoria.

    A busca incansvel do homem por justia reflete no Direito,

    provocando-lhe inmeras transformaes. Destarte, as consideraes

    preliminares procuram apenas demonstrar que o enfoque do jusfilsofo mais

    6BITTAR, Eduardo C. B, ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito.

    So Paulo: Atlas, 2001. p. 44/45.

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    amplo que o do cientista do Direito, definindo, ento, o objeto do presente

    curso.

    No se tratando de um livro de jusfilosofia, o assunto ter apresentao

    sucinta, mas pretendendo afastar a superficialidade exagerada. Em alguns

    pontos o enfoque ser apenas informativo, como meras noes propeduticas,

    suficientes ao estudo do objeto maior deste trabalho que procurar dizer se

    depois de muitos sculos de histria da humanidade conseguimos explicar

    coerentemente a existncia de normas jurdicas e, fundamentalmente, sua

    coercibilidade. Assim, noes introdutrias, como as do presente topoi, no

    sero mais significativamente aprofundadas, pois procuram unicamente

    contribuir para o delineamento adequado da exposio que se seguir.

    2.2.2 Graus do conhecimento, conceito e autonomia do DCrim

    O Direito uma cincia. Seu conceito razoavelmente complicado,

    exigindo o conhecimento dos graus deste. Paulo Nader apresenta trs nveis

    de conhecimento: o vulgar, o cientficoe ofilosfico. Delimitar os nveis dos

    conhecimentos que sero objetos do presente curso importante para evitar

    confuses na interpretao das posies que constaro de todo texto.

    O conhecimento vulgar superficial, decorrendo da experincia, das

    assimilaes assistemticas e fragmentrias.7 Ele contm uma srie de

    imprecises, visto que superficial.

    O conhecimento cientficoconsiste na apreenso mental das coisas por

    suas causas ou razes, atravs de mtodos especiais de investigao.8Com

    efeito, a cincia o processo pelo qual o homem se relaciona com a natureza,

    visando domin-la. Este processo se configura na determinao segundo um

    7NADER, Paulo.Filosofia do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 4/5.

    8Ibidem. p. 5.

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    mtodo e na expresso em linguagem matemtica de leis em que se podem

    ordenar os fenmenos naturais, do que resulta a possibilidade de, com rigor,

    classific-los e control-los. No tocante s cincias humanas, a racionalidade

    no estar em critrios matemticos, mas em discursos e mtodos indutivos

    ou dedutivos, decorrentes da experincia social ou de cada indivduo.

    O conhecimento filosfico, por sua vez, mais amplo, apresentando

    maior grau de abstrao e generalidade. por meio da Filosofia que se

    procura conjugar os vrios conhecimentos parciais das diversas cincias

    isoladas.9No obstante isso, no se deve entender que a Filosofia a soma

    dos conhecimentos das diversas cincias, pois, se assim fosse, o filsofo teria

    que conhecer tudo de cada uma delas, o que seria humanamente impossvel.

    Aos trs nveis do conhecimento, apresentados neste topoi, pode-se

    acrescer o conhecimento teolgico, que aquele que obtido pela f. Alis,

    dessa espcie de conhecimento, conforme se expor adiante, tratou Augusto

    Comte. inegvel que h um conhecimento que dado pela f, sendo

    plenamente cabvel a posio de Eduardo Bittar e de Eduardo de Almeida, in

    verbis:

    ... Contudo, por se pensar que a f pura crena (ato de confiana eentrega em si), pensa-se, normalmente que est dissociada de qualquer

    preocupao racional. Ao contrrio, a verdadeira e inabalvel crenasolidifica-se por instrumentos racionais, por expedientes comprobatrios,lgicos e lcidos, distanciando-se, dessa forma, do fanatismo e da cegueirasectria.10

    Em face da proximidade dos enfoques filosfico e cientfico, so os

    conhecimentos que nos interessam. Porm, Filosofia uma palavra de

    origem grega que decorre de philos (amizade, amor) e sophia (cincia,

    9NADER, Paulo.Filosofia do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 6.10BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Asis de. Curso de filosofia do

    direito. So Paulo: Atlas, 2001. p. 27.

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    sabedoria). Atribuem sua origem a Pitgoras que recusava o ttulo de sbio,

    ou seja, preferia dizer que no era o senhor de todas as verdades, mas um fiel

    amigo do saber.11Destarte, pode-se concluir que conhecimento filosficono

    pode estar vinculado a qualquer escopo prtico ou utilitrio, sendo, portanto,

    uma dedicao desinteressada ao conhecimento.

    A Filosofia, nos dias atuais, o mtodo de reflexo pelo qual o

    homem se empenha em interpretar a universalidade das coisas.12O filsofo

    atua espontaneamente e instintivamente procurando captar a realidade como

    um todo e o profundo significado dos objetos. Essa atividade, segundo Miguel

    Reale, d maior importncia teoria do ser, mas, na atualidade, pe em

    relevo a teoria do conhecimento.13 No obstante tal afirmao, no se pode

    olvidar que Martin Heiddegger, no sculo passado restaurou a importncia da

    teoria do ser, dizendo que este a essncia do fundamento, a partir de sua

    constituio ontolgica.14Corroborando, Habermas afirma que Kant caiu no

    descrdito porque, valendo-se dos fundamentos transcendentais, criou uma

    nova disciplina: a teoria do conhecimento.15

    Esse estudo filosfico encontra setores de observao. Desse modo, a

    jusfilosofia um captulo da Filosofia Geral, sendo que aquela se destina ao

    conhecimento mais genrico do Direito, dizendo qual o seu conceito, seus

    fundamentos e sua razo de ser.

    11REALE, Miguel.Lies preliminares do direito. 16. ed. So Paulo: Saraiva, 1988. p. 14.12NADER, Paulo.Filosofia do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 9.13REALE, Miguel.Filosofia do direito. 8. ed. So Paulo: Saraiva, 1978. v. 1, p. 45-49,.14HEIDEGGER, Martin.A essncia do fundamento. Lisboa: Edies 70, 1988.passim.15HABERMAS, Jrgen. Conscincia moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo

    Brasileiro, 1989. p. 18.

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    A Filosofia do Direito se ocupa da teoria do conhecimento,16podendo

    ser concebida como o estudo crtico-sistemtico dos pressupostos lgicos,

    axiolgicos e histricos da experincia jurdica.17Se fssemos nos prender

    teoria pura do direito, de Kelsen, diramos que a cincia do Direito se ocupa

    somente das normas, dizendo o que ele e como ele , no se

    preocupando sobre como ele deve ser, ou como deve ser feito. Kelsen,

    dizia que o cientista deve se preocupar com seu objeto de estudo, que o

    sistema dinmico de normas. O jurista deve buscar o conhecimento cientfico,

    fazer cincia e no poltica do Direito.18 Isso que Kelsen denominou de

    poltica do Direito objeto de estudo da filosofia do Direito.

    Gustav Radbruch j dizia que o problema do conceito do Direito, s

    primeira vista, parece pertencer ao Direito.19 Assim, quando Kelsen

    conceituava o Direito, fazia Filosofia e no cincia do Direito. Nesse sentido,

    preleciona Miguel Reale: A definio do Direito s pode ser obra da

    Filosofia do Direito. A nenhuma Cincia Jurdica particular dado definir o

    Direito, pois evidente que a espcie no pode abranger o gnero.20

    Este curso dir qual a concepo filosfica do Direito, tentando tratar

    de suas tarefas primordiais de seu carter lgico, que cabe ao filsofo do

    Direito resolver, quais sejam: seu fundamento ou legitimidade; sua fora

    coercitiva; e sua utilidade.

    16ADEODATO, Joo Maurcio. Filosofia do direito: Uma crtica verdade na tica e nacincia. So Paulo: Saraiva, 1996. p. 15.17REALE, Miguel.Filosofia do direito. 8. ed. So Paulo: Saraiva, 1978. v. 2, p. 285.18KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 1.19RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. 6. ed. Coimbra: Armenio Amado, 1979. p.86.

    20REALE, Miguel.Lies preliminares do direito. 16. ed. So Paulo: Saraiva, 1988. p. 15.

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    Incumbe ainda lembrar que a Filosofia do Direito uma parte da

    Filosofia, que faz a contemplao valorativa do Direito.21Essa concepo no

    corresponde com o conceito de cincia jurdica, eis que esta se ocupa da

    ordem jurdica, ou seja, das normas jurdicas, sendo, assim, a cincia do

    direito positivo vigente, no do direito justo.

    Afirmou-se que a Filosofia do Direito ocupa-se do direito justo, no

    interessando o ser, mas o dever-ser. Entretanto, tal proposta foi contestada,

    fazendo-se oportuna a lio de Radbruch:

    A Filosofia de Kant j nos ensinou que era impossvel extrair daquilo

    que aquilo que deve ser, o valor, a legitimidade. Jamais alguma coisa serjusta s porque ou foi, ou mesmo s porque ser. Daqui se conclui que sode rejeitar o positivismo, o historicismo e o evolucionismo; o primeiro

    porque infere o dever-ser do ser; o segundo, porque infere o dever-serdaquilo que j foi; e finalmente o terceiro, porque infere o dever-ser daquiloque ser ou tende a ser.22

    Deve-se destacar que os autores de Filosofia do Direito tendem ao

    Direito Criminal. Hoje, conforme sustenta Habermas, a tarefa da Filosofia no

    exclusiva dos filsofos. Tambm, ele considera equivocada a limitao a

    uma filosofia do direito especializada juridicamente, que tem seu ponto forte

    na discusso dos fundamentos do Direito Penal.23

    21RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. 6. ed. Coimbra: Armnio Amado, 1979. p.

    47.22Ibidem.23HABERMAS, Jrgen.Direito e democracia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1, p. 9. Pode-se imaginar que h alguma inverdade contida na afirmao, visto que grandesfilsofos no se dedicaram ao estudo dos institutos do DCrim, v.g., Savigny, Ihering e, noBrasil, Miguel Reale e Trcio Sampaio. Desse modo, parece que seria mais adequadoafirmar: os autores de DCrim tendem Filosofia. Concordamos com essa proposio, masela no anula a primeira, da termos mantido a nossa afirmao. Com efeito, o livro citado nesta obra A moderna teoria do fato punvel uma tese de ps-doutorado emFilosofia do Direito. Da a nossa concordncia com Habermas, no sentido de que os

    jusfilsofos tendem aos institutos do DCrim.

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    A jusfilosofia importante para o conhecimento do DCrim, eis que,

    conforme exposto, preocupa-se com as razes para a existncia de certas

    normas, bem como sobre a justia (ou injustia) delas decorrente. Neste curso,

    a importncia da jusfilosofia mais acentuada, tendo em vista os fundamentos

    da imputao objetiva decorrem exatamente das novas vertentes

    jusfilosficas.

    Defende-se, h muitos anos, o estudo da Filosofia, pelo criminalista.

    Basileu Garcia, por exemplo, dizia:

    No poderia o jus-penalista isolar-se na sua torre de marfim, cerrando

    os ouvidos aos debates filosficos concernentes ao objeto de sua prpriacincia. Ao contrrio, ele deve manter-se alerta s discusses e conclusesque se apresentam, no terreno filosfico, a respeito dos temas penais. Mesmo

    porque as normas legais refletem, grande nmero de vezes, um princpiofilosfico, o qual, por obra dos juristas, se encarnou em determinado preceitoda lei positiva.24

    Alis, no mesmo sentido, Maggiore j dizia que a doutrina do Direito

    sem Filosofia assemelha-se a uma daquelas esttuas antigas, que tinham belos

    olhos, mas sem pupilas. Segundo referido autor, ela adentra no Direito,

    mesmo sem ser convidada.25 Portanto, a jusfilosofia inarredvel de todo

    aquele que pretende estudar DCrim.

    Ver o Direito como cincia importa dizer que o jurista um cientista,

    algum que tem determinado objeto de estudo. Em uma viso kelsiana, seu

    objeto a norma, que traduz a ideia de regra, de medida etc.. No entanto, o

    conceito de norma jurdica zettico,26tornando-se necessrio conhecer algo

    24GARCIA, Basileu.Instituies de direito penal. So Paulo: Max Limonad, 1956. v. 1, t.1, p. 11.25 MAGGIORI, Giuseppe. Princip di diritto penale parte generale. 2. ed. Bolonha:

    Nicola Zanichelli, 1937. vol. 1. p. 48/49.26FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio.Introduo ao estudo do direito. 2. ed. So Paulo:

    Atlas, 1994. p. 102.

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    mais que leis escritas, eis que a zettica representa uma abertura constante

    para questionamento dos objetos em todas as direes.27

    Poderamos de maneira simplista e dizer que o DCrim a cincia que

    estuda o conjunto de normas que instituem crimes e as medidas aplicveis a

    quem os pratica. Da se infere que o DCrim tem por objetos de estudo a

    norma e os fatos.

    No poderamos, no entanto, dizer que ele o conjunto de normas

    relativas aos crimes e s medidas aplicveis a quem os pratica porque sendo

    cincia, seu fim o estudo. Assim, no constitui conjunto de normas, mas o

    estudo desse conjunto. Alis, convm, ressaltar que no so raras as

    proposies no sentido de ser o DCrim um conjunto de normas que definem

    crimes e medidas aplicveis a quem os pratica. Todavia, no se pode

    confundir o conceito de uma cincia com o do seu objeto de estudo. No caso,

    o DCrim a cincia e o conjunto de normas seu objeto de estudo.

    Ocorre que o DCrim, na maioria das vezes, protege objetos jurdicos

    provindos de outros ramos do Direito, fazendo que ele se relacione com os

    demais. Tambm, se relacionar com outras cincias, com a filosofia e com a

    teologia.

    O Direito , portanto, a cincia que estuda o conjunto de normas

    jurdicas, bem como as consequncias decorrentes da violao de cada uma

    delas. Ocorre que, sendo o conhecimento cientfico fragmentrio, no resta

    outra alternativa seno dar autonomia relativa a cada um dos ramos do

    Direito, a fim de tornar possvel o conhecimento de todo o seu objeto.

    27A palavra Zettica assim explicada por Aurlio Buarque de Holanda Ferreira: [Dogrego zetetik (subtende-se techne) a arte de procurar] 1. Mtodo de investigao, ouconjunto de preceitos, para a resoluo de um problema filosfico ou matemtico. 2.

    Filosofia. A doutrina de Pirro em sua posio metodolgica inicial, que consiste noincentivo busca incessante de novos conhecimentos (in Novo dicionrio Aurlio. 4. tir.

    Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 1975. p. 1501).

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    Direito cincia, sendo que a autonomia de cada um dos seus ramos

    apenas relativa. Cada ramo do Direito uma parte especializada da cincia.

    Por isso, gosto do conceito ofertado por Juarez Cirino: O Direito Penal o

    setor do ordenamento jurdico que define crimes, comina penas e prev

    medidas de segurana aplicveis aos autores das condutas incriminadas.28

    Diz-se que o Direito se assemelha a uma rvore, pois tem um tronco e

    vrios galhos (ramos). Dessa forma, os vrios ramos do Direito se interligam

    por meio desse tronco.29Em sentido oposto, existem vrios autores que tratam

    da autonomia das cincias jurdicas, para os quais no mais existem ramos do

    Direito, mas cincias jurdicas autnomas.

    inegvel, no entanto, mesmo admitida a autonomia, que os ramos do

    Direito so interdependentes. no DCrim que a caracterstica unitria do

    Direito melhor se reflete, visto que as violaes s leis criminais representam,

    antes de ser uma violao propriamente criminal, o descumprimento de um

    dever anterior, normalmente contido em outro ramo do Direito.

    O Direito, numa abordagem genrica aqui tratado como uma cincia

    que se divide em ramos com autonomias meramente relativassurgiu de uma

    necessidade do homem estabelecer normas para as suas relaes. Da a

    mxima ubi societas, ibi ius (onde est a sociedade, est o direito). Dessa

    noo podemos deduzir que o direito uma cincia social, que existir onde

    houver vida em sociedade, sem esta no haver Direito.30Nesse sentido, Joo

    28SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris,2006. p. 3.29SOUZA, Daniel Coelho de.Introduo cincia do direito. So Paulo: Saraiva, 1988. p.286.

    30REALE, Miguel.Lies preliminares do direito. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 1977. p. 2.

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    Maurcio Adeodato ensina que pode at existir sociedade sem Direito, mas

    impossvel pensar em Direito sem sociedade.31

    A vetusta origem do Direito Criminal transcende em antiguidade a

    origem dos demais ramos do Direito, pois, desde os primrdios, emergiu a

    necessidade de se coibir a prtica dos fatos que mais profundamente

    atingissem as pessoas do grupo social e, consequentemente, o prprio grupo.

    Tais normas referiam-se s mais graves violaes aos direitos individuais ou

    coletivos, visto que a soluo de pequenos problemas no era disciplinada,

    cabendo aos particulares resolverem suas pendengas.32

    Como cincia, tem necessariamente um objetivo, haja vista que no se

    justifica estudar certo objeto sem ter em vista determinado fim.33 O

    conhecimento cientfico tem estado em crise porque se tem afirmado muitas

    coisas sobre ele, mormente sobre a sua insuficincia. Porm, falo como

    Bertrant Russell, afirmando: A cincia, em nenhum momento, est

    inteiramente certa, mas raro estar inteiramente errada e, normalmente, tem

    maior chance de estar certa do que as teorias no-cientficas. Portanto,

    racional aceit-la hipoteticamente.34No mesmo sentido, Carl Sagan afirma:

    "A cincia est longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento.

    apenas o melhor que temos".35

    31ADEODATO, Joo Maurcio. tica e retrica: para uma teoria da dogmtica jurdica.So Paulo: Saraiva, 2.002. p. 287.32COSTA, lvaro Mayrink da.Direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. v. 1, t.1, p. 95-114.33WEBER, Max.Ensaios sobre a teoria das cincias sociais. So Paulo: Moraes, 1991. p.1-74.34RUSSELL, Bertrand. Meu desenvolvimento filosfico. Rio de Janeiro: Zahar, 1.980. p.12.35SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demnios: a cincia vista como uma vela no

    escuro. So Paulo: Companhia de Letras, 1.996. p. 38.

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    2.2.3 A localizao de topoie o problema das classificaes

    O cientista, mais do que qualquer outro estudioso, dever localizar

    topoi, ou seja, um plano comum em que possa delimitar o seu objeto deestudo e se aprofundar at encontrar a sua essncia, a sua natureza. Da resulta

    a fragmentariedade do conhecimento jurdico e o excesso de classificaes.

    Um alerta que fao aos meus alunos: as classificaes, em diversas

    oportunidades, carecem de critrio. Ratifico que cada observador arbitra seu

    prprio critrio, segundo sua tica, o que torna, s vezes, pouco

    compreensveis certas classificaes. Mas, para se conhecer qualquer coisa nasua essncia, mister delimitar o objeto de estudo, razo pela qual as

    classificaes so fundamentais. Ao deixar de delimitar o objeto do estudo,

    incorre-se, normalmente, em confuses que induzem os leitores a equvocos.36

    Entende-se por neologismo (palavra formada por neonovoe logos

    palavra), toda palavra ou vocbulo novo introduzido na linguagem, formado

    ou derivado de outras.37

    Ele importante em linguagem tcnica, a fim depermitir a comunicao clara, mas devem ser evitados os abusos, uma vez que

    36Paulo Jos da Costa Jnior, tratando das caractersticas do Direito Criminal, afirma: ODireito Penal se inclui entre os ramos do direito pblico. Sua atuao independe davontade do ofendido, constituindo funo e dever do Estado. Pblica igualmente aimposio e aplicao de sano, que no pode ser confiada a quem sofreu a ofensa, masao magistrado estatal. Sendo pblico o direito penal, porque os valores que tutelainteressam toda a coletividade, indisponvel. O ofendido no poder dele dispor,desistindo da ao penal proposta, ou perdoando o autor do delito (Curso de direito penal.So Paulo: Saraiva, 1991. p.3). No texto, h efetiva mistura de topois concretamentedistintos, uma vez dizer que o Direito Criminal pblico, refere-se a uma espcie relativa diviso da Cincia Jurdica e autonomia relativa de seus ramos. De outro modo, a atuaodo magistrado afeta ao Direito Processual, por meio da ao, que ser estudada no finaldeste volume. Tambm, a possibilidade de disposio da ao matria que precisa serestudada no momento prprio.37SILVA, De Plcido e. Vocabulrio jurdico. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2.002. p.

    554.

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    o excesso poder, ao contrrio de auxiliar, tornar a linguagem confusa e

    pouco compreensvel. Nesse sentido, Ferri exps:

    Depois destas noes elementares, julgo intil estorvo referir as

    prolixas indagaes e as diversas classificaes... Estas divagaesescolsticas e mais ou menos criptogrficas sobre as normas penais e sobreos seus destinatrios, grosseiramente copiadas das noes gerais do direito,no trazem nenhuma contribuio til nem ao conhecimento cientfico nem aplicao prtica da justia penal, pois esta, em vez de volatizar-se nasabstraes lgicas e distines escolsticas, tem necessidade de ser estudadasobre o terreno da realidade humana.38

    Tentaremos no nos prender a uma suposta realidade ditada pelo ser-

    em-si. Tentaremos ir um pouco adiante, mas sem perder de vista o Direitocomo cincia, a fim de estabelecermos um modelo com segurana mnima e

    necessria estabilizao social.

    2.3 RELAES DO DCrim

    A grande influncia do Direito Internacional em determinado Estado

    crescente, falando-se, hoje, em DCrim Internacional. Muitos crimes se

    relacionam com a proteo da ordem internacional, aproximando o DCrim do

    Direito Internacional. Outrossim, em muitos outros aspectos sero percebidas

    relaes entre esses ramos do Direito, principalmente no que tange s

    imunidades e outros limites de aplicao da lei. Hoje, ante a ratificao do

    Brasil ao Estatuto de Roma, que instituiu o a Corte Internacional Criminal,

    impossvel deixar de tratar de aspectos relevantes do Direito Internacional,mais especificamente de sua parte que cuida da matria criminal, em um

    curso como este. Por isso, faremos alguma aluso CIC em vrios momentos

    deste livro.

    38FERRI, Enrico. Princpios do direito criminal. 2. ed. Campinas: Bookseller, l.998. p.

    141.

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    O Direito Constitucional muito importante, mas a Constituio

    Federal no traz em si todos os objetos jurdicos do Direito Interno. Ela traz

    rol exemplificativo dos direitos fundamentais, aos quais podem ser acrescidos

    outros (CF, art. 5, 2). No obstante isso, muitos aspectos relevantes, de

    natureza criminal, constam do seu rol, traando limites e programas a serem

    respeitados pelo legislador infraconstitucional, bem como pelo aplicador da

    lei, o que evidencia a relao do DCrim com o Direito Constitucional).

    O Direito Civil talvez seja o que tenha maior amplitude numa

    determinada ordem jurdica, uma vez que disciplina a maioria das relaes

    das pessoas do Estado. Modificar um Cdigo Civil, como ocorreu em 2002,

    em que o velho CC de 1916 foi revogado, cedendo lugar a um novo, altera

    toda uma ordem jurdica, intervindo diretamente na vida das pessoas. No

    entanto, como a mudana era extremamente necessria, havendo muitas leis

    que j consagravam a nova ideologia, o povo no se arrefeceu tanto com a

    nova lei. Porm, no se olvide, o DCrim trata da famlia, do casamento, da

    fraude contratual, do patrimnio etc., todos objetos do Direito Civil, o que fazcom que se tenha plena certeza da relao de referidos ramos do Direito.

    O DCrim se relaciona, em sntese, com todos os ramos do Direito, uma

    vez que trata de crimes contra a ordem administrativa, tributria, financeira,

    econmica, organizao do trabalho etc. Outrossim, o DCrim no fica alheio

    s demais cincias, haja vista que ele se relaciona com a Matemtica (na

    medida em que adota critrios exatos para dosimetria da pena e requisitos

    para certos benefcios), a Medicina (a Psiquiatria Forense fundamental para

    o estabelecimento da culpabilidade de algumas pessoas, bem como os

    diversos ramos de referida cincia auxiliaro na constatao de ilcitos e

    respectivas gravidades, v.g., leso corporal), a Psicologia (fundamental para

    anlise de algumas perturbaes mentais e suas influncias sobre a pessoa

    envolvida no delito), a Fsica (importante na anlise dos locais de crime) etc.

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    Finalmente, cumpre observar que Enrique Ordeig sustenta que a

    distino entre o DCrim e os outros ramos da cincia do Direito est na

    consequncia. Ocorrendo um suposto fato hipottico ilcito, as consequncias

    podero ser diversas nos outros ramos do Direito, mas no DCrim ela ser a

    pena (eventualmente a medida de segurana).39

    A proposta de Ordeig est parcialmente correta. O crime composto

    por duas partes: uma objetiva e outra subjetiva. Como a pessoa que no pode

    entender o carter ilcito do fato no preenche a parte subjetiva do delito,

    entendemos que sua conduta resta fora do DCrim, sendo a pena a nica

    consequncia possvel em tal ramo do Direito (salvo nos casos de absolvio,

    nos quais no incidir a coero criminal).

    Assim como o Estado intervm nas liberdades individuais para proteo

    da sociedade, retendo veculos automotores sem condies de segurana para

    transitarem na via pblica, veda a autorizao para que pessoa sem adequada

    coordenao motora possa ter habilitao para conduo de veculo automotor

    etc., determina o tratamento de doentes mentais que evidenciam

    periculosidade potencial, manifestada pela concretizao de conduta definida

    como crime.

    2.4 DENOMINAO

    Quatro denominaes se destacam, a saber: a) Direito Criminal; b)

    Direito Repressivo; c) Direito Penal; d) Nova Defesa Social. Nova defesa

    social tem sido a preferida pelo legislador, desde o final do sculo XIX, mas

    no a melhor para este ramo do Direito por duas razes: a) ele no comina

    somentepenacomo aplicveis ao infrator da lei. Prev, tambm, a aplicao

    39 ORDEIG, Enrique Gimbernat. Conceito e mtodo da cincia do direito penal. So

    Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 20.

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    de medida de segurana; b) estuda as condutas proibidas, cominando penas

    aos que as praticarem. Pelo que se v, a denominao Direito Penalexprime

    somente os efeitos da infrao da norma, desprestigiando a conduta capaz de

    gerar a pena.

    Denomin-lo de Direito Repressivo tambm inadequado, pois o

    DCrim, no atual estgio da civilizao uma garantia individual de liberdade

    um Direito cooperativo, no um Direito que intervm inoportunamente na

    regularidade da vida socialpois a pessoa s poder ser acusada de um crime

    e sofrer uma sano se estas estiverem previamente previstas na lei. Dessa

    forma, a melhor denominao, para a doutrina, a primeira,DCrim, tendo em

    vista que parte da essncia da matria, que o crime. Embora usemos com

    maior frequncia a denominao que preferimos, devemos ratificar que

    generalizada a preferncia pela designao Direito Penal, no s no Brasil

    como em outros pases.40

    Nova Defesa Social o DCrim contemporneo e a tendncia do futuro,

    isso segundo Mirabete (posio mantida pelo seu filho).41Digo, no entanto,

    que o Direito um dos instrumentos de defesa social desenvolvidos pelo

    homem. Todo Direito instrumento de defesa social, sendo incabvel falar

    unicamente no DCrim como tal, o que permite repudiar a denominao.

    2.5 HISTRIA DO DCrim E SUA RELAO COM A

    FILOSOFIA

    2.5.1 Generalidades

    40GARCIA, Basileu.Instituies de direito penal. 3. ed. So Paulo: Max Limonad, 1956.v. 1, t. 1, p. 7.41MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato Nascimento. Manual de direito penal.

    26 ed. So Paulo: Atlas, 2010. v. 1, p. 22.

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    Desde a Grcia antiga que se busca dizer o que justia, bem como

    explicar a coercibilidade das normas. Passamos por diversas fases, sendo que

    no podemos chegar ao funcionalismo, sem um estudo prvio da histria da

    jusfilosofia. Desse modo, a apresentao de um escoro histrico visa a

    conduzir o leitor compreenso das posies jusfilosficas hodiernas.

    Demonstrarei a evoluo das posies que procuraram explicar a

    legitimao do Direito. Destarte, o enfoque inicial histrico, apenas

    procurando estabelecer o cerne de cada uma das grandes fases que

    antecederam o conhecimento multidisciplinar que predomina hodiernamente

    no meio jusfilosfico. Dessa forma, a longa fase do jusnaturalismo, que se

    caracteriza, no campo da busca da legitimao do Direito, pelo

    transcendentalismo, apresentada muito rapidamente, preocupando-se,

    basicamente, em demonstrar a inarredvel ideia de que toda coercibilidade do

    Direito est em algo superior ao homem.

    A partir do positivismo, emergiram vrias ideias sistmicas, pelas quais

    a legitimao do Direito dada normalmente por um conjunto de normas.

    Com efeito, Kelsen apresenta o Direito como sendo um sistema dinmico de

    normas. De outro modo, Hegel procurou empreender maior dinamismo ao

    pensamento kantiano. Augusto Comte, por sua vez, embora positivista,

    props a observao do fato social. Este ltimo, no empreendeu estudos de

    Sociologia Jurdica, mas no ficou completamente alheio ao seu objeto, o que

    vem a demonstrar que o Direito, com ele, comeou a abrir espao para

    discusses multisciplinares, que o cerne da discusso hodierna em torno da

    validade e utilidade do DCrim.

    A Sociologia Jurdica, que se desenvolveu nos ltimos anos do sculo

    XIX, iniciou uma nova vertente filosfica, sendo que o conhecimento do

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    Direito passou a um discurso multidisciplinar, que encontrou seu pice em

    Habermas.

    Ao longo deste estudo, demonstrarei o pensamento apresentado por

    Luhmanniano, que aquele em que a norma emerge do prprio sistema

    jurdico, no de outros (sub)sistemas da sociedade. Assumo duvidar de que

    exista alguma proposta filosfica adequada coercibilidade do DCrim, razo

    pela entendo que este livro deve ficar sem uma concluso peremptria, visto

    que a nica soluo cabvel neste momento continuar perseguindo uma

    proposta razovel no que concerne a um DCrim efetivamente justo.

    Este captulo partir de uma rpida e sucinta viso da evoluo histrica

    do pensamento filosfico e jurdico, at chegar aos tempos atuais,

    interessando principalmente a evoluo a partir de Augusto Comte, visto que

    partir dele que os fatos sociais passaram a influenciar mais fortemente a

    Filosofia do Direito e todo Direito Criminal.

    2.5.2 Ideias e instituies criminais

    2.5.2.1 Significado de ideias e instituies criminais

    Ideias so trabalhos mentais desenvolvidos para combater o mal, o

    pecado, a ofensa, o direito subjetivo etc. (mal este que hoje denominado

    delito). A exteriorizao de tais ideias leva tradio, ao costume, s fases de

    combate aos males por meio de comportamentos padronizados, ou seja,

    instituies criminais.

    O desenvolvimento da vida em sociedade trouxe a necessidade de

    imposio de normas. Da, aquele que as infringisse poderia sofrer uma

    sano, a qual tinha o aspecto de retribuio do mal praticado, era uma

    vingana praticada pelo particular, pelo grupo, em nome de Deus, visando

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    aplacar a ira da Divindade, ou em nome do prncipe, para evitar que este

    punisse o grupo. Assim, a pena decorria de uma ideiaque se desenvolvia para

    combater a violao das normas consuetudinrias existentes.42Tais ideias se

    padronizavam, passando a constituir instituies criminais.

    2.5.2.2 Fase da vingana

    Na antiguidade, a pena era um meio de se aplacar a ira de Deus, do

    homem ou do prncipe, sendo que este representava a vontade coletiva. Da,

    falar-se, respectivamente, em vingana divina, privada e pblica.

    No possvel dizer qual foi a primeira delas, dependendo obviamente

    do ponto de vista do cientista. Para um criacionista, a vingana divina foi a

    primeira, enquanto para o evolucionista a primeira fase foi a da vingana

    privada. Finalmente, para quem entende que o Direito surgiu por meio da

    fora, em que os mais fortes oprimiam os mais fracos, a vingana pblica

    seria a primeira. O fato que as trs fases da vingana coexistiram no tempo,

    no sendo possvel determinar, com certeza, qual foi a primeira delas, at

    porque todas foram anteriores escrita e as primeiras leis escritas j

    consagravam as trs fases.

    Na fase da vingana privada, o ilcito representava a violao de um

    direito privado que assegurava ao particular resolver (ou superar) sua ira. O

    prprio particular, ou seu grupo, aplicava a punio.

    A vingana divina era exercida em nome de deus, castigava-se em

    nome dele, para aplacar sua ira, seno ele puniria todo povo por meio de

    pragas. Os registros histricos esto a indicar que o Direito no se estabeleceu

    42No incio, as normas eram dadas segundo os costumes (consuetudinrias). Denominadas

    normas ticas, porque a tica a cincia dos costumes.

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    com base na dominao do mais forte sobre o mais fraco, mas, na

    antiguidade, se fundamentou precipuamente na religio.43

    Na fase da vingana pblica, punia-se em nome da coletividade para

    que ela ficasse satisfeita. Os marxistas diriam que o Direito instrumento de

    dominao. Assim, a primeira vingana seria a pblica. Essa a posio dos

    autores que se dizem alternativistas.44

    A fase da vingana se caracterizava pela desproporcionalidade entre o

    mal praticado e a sano que se aplicava ao infrator. Nem mesmo na bblia, de

    onde retiramos a mxima no sentido de que deus amor, encontraremos

    proporcionalidade. Assim, em nome de deus, do princpio ou do prprio

    ofendido, grupos inteiros eram dizimados, o que exigia providncias para

    limitao do castigo.

    2.5.2.3 Lei de talio e a pena de morte

    Estabelecia a proporcionalidade exata entre a infrao e a sano, o quese verifica pelo brocardo olho por olho, dente por dente. A origem da

    palavra est no vocbulo talio, que significa mesma medida, assim o castigo

    devia ser imposto na mesma medida do mal praticado pelo agente.

    No se pode precisar exatamente o perodo em que surgiu a lei de

    talio, mas se pode afirmar que foi importante para trazer a idia da necessria

    proporcionalidade entre o mal praticado e a retribuio a quem o praticou por

    43COULANGES, Fustel de.Acidade antiga. 4. ed. 2. tir. So Paulo: Martins Fontes, 2.000.p. 36.44O Direito Alternativo ganhou grande espao no Brasil, mormente em sua Regio Sul.Talvez seja por isso que Joo Jos Leal, jurista catarinense, chegou a afirmar que equivocado pensar na vingana privada como sendo a primeira, eis que a vingana pblicaa teria precedido, j que o Direito se manifesta como instrumento de dominao (inDireito

    penal geral. So Paulo: Atlas, 1.998. p.59).

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    meio. Segundo lvaro Mayrink, a origem do talio nasceu provavelmente no

    perodo neoltico (da pedra polida).45

    Acerca da lei de talio, boa a sntese de Csar Dario Mariano:

    Como o revide [da vingana privada] no guardava proporo com aofensa, surgiam guerras entre os grupos, que podiam chegar aoaniquilamento. Surgiu, da, a ideia do talio, como primeira conquista nombito do Direito Penal. Por meio do talio, delimitava-se o castigo, e avingana teria uma ideia de proporcionalidade.46

    Segundo a lei de talio, vindo Tcio a matar o filho de Caio, este tem o

    direito de matar o filho daquele no ele. Tal perspectiva, segundo a viso

    hodierna que temos de justia, equivocada, mas temos que reconhecer, para

    o perodo em que surgiu, momento em que predominava a

    desproporcionalidade, representou grande avano.

    Tratarei diretamente da teoria da penasomente no segundo volume. Ali

    restar claro que existe uma corrente que agrupa vrias teorias da pena,

    denominadas absolutas, que desencadeiam na ideia de que a pena a

    retribuio do mal ao infrator da lei, uma vez que a infrao constitui um mal.

    Referidas teorias, com motivaes distintas, concluem que a maior expresso

    de justia est na lei de talio, eis que respeitada a proporcionalidade.

    A pena de morte encontra apoio, principalmente, entre pessoas menos

    cultas. Nem mesmo a lei de talio a justifica e a possibilidade de erro do

    Estado, sem a possibilidade de reparao de tal erro, dentre outros aspectos,

    est a recomendar a rejeio da sua previso legal.

    No direi que a vida bem jurdico (bem do Direito, objeto do Direito,

    objeto jurdico: aquilo que o Direito protege) absoluto porque no se

    45COSTA, lvaro Mayrink da. Direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. v. 1. t.1, p. 101.46 SILVA, Csar Dario Mariano da. Manual de direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro:

    Forense, 2.006. v. 1, p. 2.

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    concebem mais bens absolutos, pois at mesmos os direitos fundamentais da

    Constituio Federal precisam ser ponderados.47 Porm, a pena de morte,

    passvel de aplicao, no Brasil, queles que praticarem crimes militares em

    tempo de guerra (ainda que o julgamento se d em tempo de paz), no se

    justificar luz da lei de talionem mesmo para os delitos mais graves.

    Imaginemos algumas hipteses para imposio de pena de morte: 1)

    Tcio matou Caio e ocultou o cadver para assegurar a impunidade.

    Descobriu-se que Tcio agiu por motivo pouco relevante porque foi ofendido

    durante discusso banal de trnsito. Ele desferiu um tiro contra a vtima,

    matando-a instantaneamente; 2) Mvio matou vinte crianas e retalhou os

    corpos das vtimas, preparando-os para o consumo. Aps devorar metade da

    carne, foi localizado e descobriu-se que ele era um religioso fantico que

    pregava a purificao da espcie humana por meio do consumo de carne

    proveniente de pessoas puras; 4) Semprnio, planejando roubar um banco,

    nele adentrou e matou seis vigilantes. Foi preso dois anos depois, momento

    em que morava em suntuosa casa, adquirida com o produto do crime.

    Segundo a lei de talio, em nenhum dos casos, haveria justia porque

    Tcio ser morto mediante tortura mental, haja vista que suportar o processo

    e aguardar execuo premeditada, maior, portanto, que o mal por ele

    praticado. Em outros casos, a pena seria desproporcional por ser menor que o

    mal praticado pelo infrator da lei.

    No haveria proporo na morte de Mvio porque ele poderia ser um

    doente e, assim, ao contrrio de pena, mereceria tratamento. Tambm, caso

    fosse Mvio efetivamente o monstro que se imagina, ante to cruel hiptese,

    47 SILVA, Virglio Afonso da. Direitos fundamentais: contedo essencial, restries e

    eficcia. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2.010. p. 254.

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    sua pena deveria ocorrer por vrias vezes, mas isso apenas nos reduziria ao

    perodo brbaro, j experimentado e sem sucesso no combate criminalidade.

    No caso de Semprnio, estar o agente se usufruindo do produto do

    crime no torna as mortes das vtimas mais dolorosas, no havendo a menor

    condio de se afirmar que h proporcionalidade entre a conduta de

    Semprnio e a pena de morte que lhe foi imposta e executada.

    Minha indagao, neste momento, reside no tocante

    proporcionalidade. No havendo proporcionalidade, no se pode falar em

    pena justa. Tambm, no me parece razovel a posio simplista exposta no

    sentido de que foi pouco. Ora, se pouco, desproporcional, portanto, a

    pena injusta, ou seja, a pena de morte, ao contrrio de justificar a lei de

    talio e as teorias absolutas, deixa-a desmascarada.

    2.5.2.4 Composio

    Para conter a desproporcionalidade da fase da vingana, emergiu acomposio, que era a expiao da pena pelo pagamento em pecnia,

    mercadorias, reses, etc. A origem da composio to remota quanto a da lei

    de talio, com o diferenciador de que a composio representou avano

    significativamente maior. Considero inadequado deixar de mencionar tal fase,

    como fez Csar Roberto Bitencourt.48

    A composio merece ser incentivada nos dias de hoje estendendo suaaplicao a vrios delitos, mormente aos patrimoniais e praticados com fim de

    lucro em geral v.g., peculato, corrupo etc. -, no entanto, s tem sido

    admitida com efeitos criminais relevantes nos crimes de menor potencial

    ofensivo (Leis n. 9.099/1995 e 10.259/2.001), uma vez que a conciliao civil

    48BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 10. ed. So Paulo: Saraiva,

    2006. v. 1, p. 35-38.

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    causa extintiva da punibilidade em certos crimes (Lei n. 9.099/1995, art. 74,

    pargrafo nico). Nos demais crimes, a composio pode at intervir na

    punibilidade dos crimes de ao de iniciativa exclusivamente privada e

    pblica condicionada representao, mas se a iniciativa da ao for pblica

    incondicionada, ela apenas interferir na dosimetria da pena, sendo levada em

    considerao no momento de se verificar as consequncias do delito.

    2.5.2.5 Cdigos escritos

    Os primeiros cdigos escritos (de Hamurabi, institudo na Babilnia,

    aproximadamente 1.700 a.C.; Bblia, cujos cinco primeiros livros Gnesis,

    xodo, Levtico, Nmeros e Deuteronmio foram escritos, provavelmente,

    entre 1.600 a.C e 1.500 a.C.; Lei das XII Tbuas, dos Romanos, instituda

    entre 453 a.C e 451 a.C.; e de Manu, institudo na ndia em data incerta, entre

    200 a.C. e 200 d.C) consagravam idias das instituies criminais

    mencionadas, sem se preocupar em ser fiis a qualquer delas.

    Outros escritos com matria criminal foram encontrados, possivelmente

    anteriores aos dois ltimos. lvaro Mayrink faz referncia aos escritos

    assrios que se referem composio, datados de aproximadamente sculos

    XV e XIV a.C.49Observe-se, no entanto, que os quatro mencionados so os

    que mais encontramos na literatura criminal ptria.

    Prova de que as fases mencionadas (vingana privada, vingana divina,

    vingana pblica, lei de talio e composio) antecederam as primeiras leis

    escritas, est no fato de os primeiros cdigos antigos, sem exceo, terem

    consagrado, em maior ou menor escala, um pouco de todas elas.

    49BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 10. ed. So Paulo: Saraiva,

    2006. v. 1, p. 103.

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    Ao longo do tempo, as ideias criminais que se transformaram em

    efetivas instituies,50 contriburam para o desenvolvimento do DCrim,

    trazendo maior humanizao pena, bem como a laicizao do Direito. Para

    melhor anlise, observe-se o DCrim consolidado em algumas civilizaes

    antigas.

    2.5.2.6 Povos antigos

    A. Gregos

    Os gregos muito se desenvolveram na Filosofia, mas eles poucocontriburam para a evoluo do Direito.51Dividiram os crimes em pblicos e

    privados, sendo que estes eram resolvidos segundo a vingana, enquanto que

    aqueles iam aos Conselhos de Cidados, mas poucos eram cidados. Na

    verdade, no conseguiram fazer uma adequada distino entre crimes pblicos

    e privados e no desenvolveram grandes tcnicas para a anlise de fatos tidos

    como graves violaes ordem grega. De qualquer forma, pelo avanofilosfico, trouxe uma contribuio importante, que a laicizao do Direito.

    O grande problema dos gregos estava em sua cultura. Seu Direito,

    assim como o Romano, calcou suas bases na religio. No entanto, a xenofobia

    do grego foi significativamente mais acentuada que a do romano, por isso este

    povo evoluiu mais significativamente.

    50A palavra instituio decorre do latim institutio, que significa: I Sentido prprio: 1)Disposio, plano, arranjo. II Sentido figurado: 2) Instruo, ensino, educao, formao.Por extenso: 3) Mtodo, sistema, doutrina, escola, seita. Observe-se que de referida

    palavra decorre institutum, que significa: I Sentido prprio: 1) Plano estabelecido, fim,objeto, desgnio. II Da: 2) Hbito, modo de viver, maneira de proceder. No plural: 3)Princpios estabelecidos, instituies, usos, costumes. 4) Idias pr-estabelecidas,ensinamentos, disciplina (conf. AMENDOLA, Joo.Dicionrio italiano-portugus. 2. ed.So Paulo: Hemus, 1.976. p. 491).51GILISSEN, John. Introduo histrica ao Direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,

    2001. p. 73.

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    Por no ver a mulher, nem o estrangeiro, como pessoas, o grego gerou

    uma situao inaceitvel. Apenas o homem era gente, portanto, s ele era

    suscetvel de amor, o que generalizou o homossexualismo. Tambm,

    generalizou o tratamento de pessoas como se fossem coisas. Vejo como

    sectria a cultura grega, concluindo que da que decorre sua pequena

    evoluo, embora reconhecendo sua importncia na filosofia.

    Os gregos contribuindo significativamente para a laicizao do Direito,

    mas no conseguiram se afastar do transcendentalismo. Aristteles, por

    exemplo, via a justia como sendo metafsica, eis que, conforme expe Paulo

    Cssio M. Fonseca, no tocante justia, sempre tentou conjugar os conceitos

    de beleza e bondade.52No obstante isso, at mesmo em Aristteles podemos

    encontrar as razes da imputao objetiva(moderna teoria do crime) haja vista

    que ele ensinava:

    O justo total a observncia do que regra social de cartervinculativo. O hbito humano de conformar aes ao contedo da lei a

    prpria realizao da justia nesta acepo do termo. Esse tipo de prtica

    causa efeitos altrustas, de acordo com a virtude total.53

    Os trs maiores nomes da Filosofia grega antiga talvez tenham sido

    Scrates (470 ou 469 a.C. a 399 a.C.), Plato (428 ou 427 a.C. a 348 ou 347

    a.C), e Aristteles (384 a.C. a 322 a.C.). O primeiro no deixou registros,

    tendo advindo todo conhecimento de seu pensamento por meio de Plato, que

    ovacionou aquele e diz-se que ele fez os melhores registros de sua histria.54

    52FONSECA, Paulo Cssio M. Fonseca. Apresentao. ARISTTELES. A tica. Bauru:Edipro, 1995. p. 15.53 Cf. BITTAR, Eduardo C. B; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia dodireito. So Paulo: Atlas, 2001. p. 91.54 PESSANHA, Jos Amrico Motta. Scrates. 4. ed. So Paulo: Nova Cultural, Os

    pensadores, 1987: em um nico livro, reuniu-se trechos das seguintes obras de Plato:Defesa de Scrates; Xenofonte; Ditos e feitos memorveis de Scrates; Apologia de

    Scrates; Aristfanes; e As nuvens. Todas elas versam sobre Scrates.

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    No estou convencido da existncia de Scrates, parecendo que foi

    Plato quem criou o Scrates de nossa imaginao, e at hoje impossvel

    determinar at que ponto essa imagem corresponde ao Scrates histrico e at

    que ponto produto do gnio criativo de Plato.55No se olvide, no entanto,

    que h um grande nmero de autores que tratam do registro fsico de Scrates,

    o qual teria atuado como soldado em 3 batalhas.56

    O ponto central da discusso de Plato est em Scrates. O idealismo

    platnico evidenciou especial preocupao com o papel que a retrica pode

    desempenhar na tica e na educao, o que tem merecido destaque na

    jusfilosofia moderna, sendo a base de todo DCrim, que tende s teorias do

    discurso.57

    A preocupao com a linguagem no foi exclusiva de Plato.

    Aristteles fez pesquisas sobre as palavras, procurando evitar equvocos que

    resultariam da designao de coisas diferentes atravs do mesmo nome

    (homnimo) ou da mesma coisa por meio de palavras diferentes (sinnimo). 58

    E, a filosofia aristotlica foi alm, uma vez que defendeu o consenso e o

    acordo baseadas primordialmente na persuaso e na convico, 59 o que

    compatvel com as modernas teorias jusfilosficas, desenvolvidas no sentido

    de que Direito comunicao e esta s possvel na sociedade complexa.

    O exposto est a evidenciar que os gregos contriburam

    significativamente para a laicizao do Direito, inclusive, trazendo bases

    tericas para muitas doutrinas contemporneas.

    55STONE, I. F. O julgamento de Scrates. So Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 21.56MUOZ, Alberto Afonso. O paradigma platnico. In MACEDOR JR., Ronaldo Porto(Coord.). Curso de filosofia jurdica. So Paulo: Atlas, 2008. p. 92.57TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2.000. p. 79-86.58GRFICA CRCULO. Aristteles. So Paulo: Nova Cultural, Os pensadores, 1.996. p.14.

    59MORRAL, John B.Aristteles. Braslia: UnB, 2.000. p. 8.

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    B. Hebreus

    A histria do povo hebreu est contada na Bblia, o que demonstra a

    adoo da vingana divina como regra. Eles foram regidos pelo pentateuco,ou Thora (cinco primeiros livros da Bblia Gnesis, xodo, Levticos,

    Nmeros e Deuteronmio -, cuja autoria atribuda a deus por intermdio de

    Moiss).

    Embora o pentateuco seja rigoroso, os hebreus contriburam para a

    humanizao do DCrim, reduzindo significativamente os casos em que a pena

    seria a de morte. Alis, a esse respeito, oportuno o alerta de Thomas More,no sentido de que a prpria lei de Moiss, lei dura e vingativa, feita para

    escravos, gente obstinada e embrutecida, apenas punia o roubo com uma

    indenizao e nunca uma morte.60

    Para os hebreus, a justia podia ser encontrada na religio. O

    pentateuco, primeiros cinco livros da Bblia, traduz o que pensavam os

    hebreus, ou seja, a justia provm de Deus. Esse pensamento religioso doshebreus de extrema importncia para o Direito, inclusive na atualidade.

    Kant, por exemplo, negou Deus em sua Crtica da razo pura, O aceitou em

    sua Crtica da razo prticae O encontrou na Crtica do Juzo.61 certo que

    Kant se dedicou filosofia, no teologia. Por isso sua concepo no

    propriamente teolgica, mas certo que, embora no concebido propriamente

    um pensamento religioso tradicional, ele nos remete investigao sobreDeus e crtica (indagao) da metafsica.

    C. Romanos

    60MORE, Thomas.A utopia. So Paulo: Martin Claret, 2000. p. 33.61 THOMAS, Henry. Perfil biogrfico. In KANT, Immanuel. Fundamentao da

    metafsica dos costumes e outros escritos. So Paulo: Martin Claret, 2.003. p. 137.

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    Os romanos se caracterizaram como militares e conquistadores. A

    origem lendria de Roma data de aproximadamente 753 a.C. Diz-se que eles

    evoluram mais no DC, tendo pequeno destaque no DCrim. Na verdade,

    perderam para os gregos na fundamentao filosfica da pena, mas ganharam

    em aplicao prtica. O Direito era pragmtico, dado por homens prudentes

    (da a palavra jurisprudncia) que, ante os casos concretizados, emitiam leis

    particularizadas, aplicveis aos casos especificados. Sem dvida alguma, pelo

    seu longo perodo histrico, constituiu o povo que mais contribuiu para a

    evoluo do DCrim, haja vista o enfoque prtico de seu Direito.

    Inicialmente, tanto em Roma como na Grcia, o Direito se baseou na

    religio. Era uma religio domstica em que cada pater familia transmitia o

    seu poder ao filho primognito, em face da sucesso mortis causa, a qual no

    podia ser transmitida a mais de uma famlia porque cada famlia s podia ter

    um deus. Essa realidade, com o tempo, se modificou em Roma e a plebe, que

    antes no podia estar perante qualquer sistema de justia, ganhou espao,

    inclusive, instituiu-se tribunos da plebe.62

    Os romanos dividiam os crimes em pblicos e privados, sendo os

    primeiros resolvidos pelo Estado, por meio de seus tribunos (at as plebes

    podiam escolher os tribunos das plebes), mas os segundos pelo prprio

    ofendido, s que este no podia exagerar na reprimenda, a ponto de cometer

    um crime pblico seno sofreria a interveno estatal.

    O que interessante perceber que, na verdade, gregos e romanos no

    se instituram de forma muito diferente. A base de ambos estava na religio,

    mormente uma determinada religio domstica, pela qual cada famlia tinha

    62COULANGES, Fustel de.Acidade antiga. 4. ed. 2. tir. So Paulo: Martins Fontes, 2.000.

    passim.

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    um deus para si. De qualquer modo, foi o menor rigor romano quem conduziu

    maior evoluo desse Direito, isso em relao ao grego.63

    D. Germnicos

    Os germnicos constituam um povo de origem tnica diversificada,

    pouco existindo sobre ele antes das invases do Sculo V a.D. Alis, ele no

    registrou sua histria arcaica por meio de escritos.64 Seu direito era

    consuetudinrio e baseado na vingana, mas consagrou outras instituies

    penais antigas. Os germnicos, com as ordlias (Juzos de Deus) utilizaram

    largamente as provas de ferro e fogo, os duelos e a tortura com ferro quente.

    A pessoa seria considerada inocente se no confessasse e no morresse, mas

    seria culpada se confessasse ou morresse.

    Antes de Cristo no existia um povo denominado germnico. Os

    denominados brbaros que vieram a constituir o povo tudesco, mas isso j

    em nossa era. Assim, antes de cristo, no poderiam contribuir para a evoluo

    do Direito, at porque no existiam. Outrossim, no conheciam a escrita,

    sendo, conforme o prprio nome (brbaro) indica um povo rude e, portanto,

    de Direito rudimentar. S mais tarde eles muito passaram contribuir

    expressivamente para o DCrim, eis que sistematizaram os Pandectas

    (conjunto de leis romanas, reunidas por determinao de Justiniano).65

    63COULANGES, Fustel de.Acidade antiga. 4. ed. 2. tir. So Paulo: Martins Fontes, 2.000.passim.64GILISSEN, John. Introduo histrica ao Direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,2001. p. 162/163.65 interessante notar que Franz von Liszt sustenta que os atrasados foram os romanos,

    prestigiando, sem razo, o Direito germnico (LISZT, Franz von. Tratado de direito penal.Campinas: Russel, 2.003. p. 84-91). Note-se, no entanto, que ele germnico e que, naesteira do que se expe neste curso, o ser humano age principalmente por interesse, o que

    evidencia o porqu da sua postura.

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    2.5.2.6 Direito da Igreja

    Em uma viso restrita, a expresso Direito Cannico se refere quele

    que rege a Igreja Catlica Apostlica Romana, Formado pelo Corpus IurisCanonici, constante do Decretum Gratiani (1.140), dos Pontfices Romanos

    (sc. XII), de Gregrio IX (1.234), de Bonifcio VIII (1.298), de Clemente V

    (1.313) e de Joo Paulo II (25.1.1983).66 Prefiro no falar unicamente do

    Direito que nos foi dado pelos canonsda Igreja Catlica, preferindo falar em

    Direito da Igreja como sendo todo aquele que adveio por influncia do

    Cristianismo, consagrado como religio nica em Roma por ato do Imperador

    Teodsio I (379 d.C.).

    O direito da igreja, exprime um perodo de trevas, no trouxe muitos

    avanos ao DCrim, sem embargo das opinies em sentido contrrio. Com

    efeito, a igreja consagra, basicamente, a vingana divina, em que tudo

    constitui heresia. Foi um perodo de um machismo extremo em que se

    procurou diminuir as liberdades que as mulheres haviam conquistado eimpossibilitar novos avanos do sexo feminino.67Ela no condenava morte,

    tinha ento um discurso falacioso, pois classificava o homem como herege e a

    consequncia natural era a expiao no fogo. Mais tarde, com o iluminismo, o

    enfraquecimento da igreja permitiu o surgimento de pensamentos

    humanitrios, o que, efetivamente, trouxe evoluo ao DCrim.

    Na idade mdia,

    68

    outra no era a concepo,

    69

    tanto que se ampliou aparticipao da igreja na sociedade, emergindo, inclusive, a santa

    66BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 10. ed. So Paulo: Saraiva,2006. v. 1, p. 43.67KRAMER, Heinrich; SPRINGER, J. O martelo das Feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosados Tempos, 1.991.68 Os grandes nomes da Filosofia do Direito da Igreja so: Santo Agostinho (AurlioAgostinho), que viveu de 354-430; e So Toms de Aquino, que viveu de 1225-1272. Este

    ltimo viveu quando nascia o renascimento.

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    inquisio, que era comandada pelo poder religioso da poca. A priso como

    pena, a ser cumprida em uma penitenciria, surgiu nesse perodo, a qual

    tornou imperioso o surgimento da individualizao da pena, talvez a maior

    contribuio dessa instituio para o DCrim.

    O conhecimento filosfico pouco evoluiu na idade mdia, esta foi

    seguida do renascimento, repleto de nomes importantes para o

    desenvolvimento da Filosofia. Desse perodo, importante destacar o mtodo

    cartesiano, de Ren Descartes, visto que, mais tarde, influenciou Kant.

    2.5.2.7 Perodo humanitrio

    O DCrim sempre se desenvolveu de forma seletiva, sendo que os

    escravos e os pobres sempre foram os que sofreram as penas mais graves. No

    entanto, na segunda metade do sculo XVIII, comearam a se desenvolver os

    sentimentos humanitrios dos burgueses, sendo que um jovem marqus

    escreveu uma clebre obra,Dos delitos e das penas, criticando todo o sistema

    punitivo da poca. O Marqus de Beccaria, de quem falvamos, um dos

    maiores nomes do perodo humanitrio, trouxe os mais nobres ensinamentos

    sobre a humanidade da pena.

    O perodo humanitrio marcado pela influncia das profundas

    transformaes havidas na Filosofia. Descartes entendia que era necessrio se

    colocar em dvida, a fim de obter o conhecimento. Assim, rechaava todas as

    verdades que lhe eram transmitidas, sempre duvidando delas. Mas para que

    isso acontecesse, tinha se colocar diante de uma certeza, por ele conhecida.

    69 A Filosofia do Direito, na idade mdia, foi dominada pelo pensamento religioso doscristos, s se afastando dele no incio do sculo XVII, quando Hugo Grcio proclamou a

    existncia de um Direito Natural independente de Deus (NADER, Paulo. Op. cit. p. 118).

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    Ento, estabeleceu uma verdade para si mesmo penso logo existo, que se

    tornou o primeiro princpio da Filosofia que buscava.70

    Rosseau, j na metade do Sculo XVIII, sofreu influncia da postura

    metafsica dos seus antecessores, conforme se v no Contrato Social,

    publicado em 1757, visto que deixou claro que as leis sbias e justas s

    poderiam ser redigidas por verdadeiros deuses.71No entanto, ele se afasta um

    pouco das ideias transcendentais, quando entende que se a vontade de Deus s

    nos chegar por homens escolhidos, a verdade se apresenta deturpada. Assim,

    melhor que os homens procurem conhecer a justia pelos seus prprios

    sentimentos, pela razo. Com efeito, na obra nupercitada, consta a proposta de

    uma religio civil, que formada pela vontade humana, afastando-se das

    questes meramente sentimentais.72 O momento era propcio para a

    evoluo do pensamento filosfico. Muito havia sido descoberto na Fsica e

    na Astronomia, criando ambiente propcio para o surgimento de uma nova

    Filosofia, o positivismo.

    Immanuel Kant (1.724 a 1.804) inaugurou uma grande transformao

    no pensamento filosfico, dedicando-se, tambm, aos estudos jusfilosficos

    voltados matria criminal. Ele, por exemplo, analisou a pena de morte,

    instalando-se uma polmica entre ele e Beccaria, uma vez que este refutava a

    possibilidade de aplic-la, por violao ao contrato social, j que este teria que

    ser geral. De outro modo, Kant entendia que a confluncia de todas as

    vontades para o contrato, formando uma nica e geral, no era real. Para

    70DESCARTES, Ren. O discurso do mtodo. 2. ed. 2. tir. So Paulo: Martins Fontes,1999. p. 38.71ROUSSEAU, Jean-Jacques.Do contrato social. So Paulo: Martins Claret, 2000. p. 50.

    72Ibidem. p. 117-125.

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    Kant, posio de Beccaria, no passa de sofisma e falsa concepo do

    Direito.73

    Observe-se, no entanto, Beccaria e Kant concordavam no ponto em que

    afirmavam que as normas deveriam se inspirar no princpio de que o homem

    deve ser sempre tratado como pessoa e nunca como coisa, isto , sempre

    como fim e no como meio.74, assim, oportuno o estudo da Filosofia de

    Kant, at porque, mesmo que ele no se ocupasse especificamente do direito

    de punir, o Direito se dirige a homens, que s existiro enquanto pensantes,

    sendo a Filosofia importante caminho para a compreenso dos fins e da

    legitimao da cincia jurdica. Tambm, o que se espera hoje, com pouca

    chance de se alcanar, a cultura judicial de que o homem sujeito do DCrim

    no objeto deste.

    Em geral, o acadmico durante o curso de graduao no tem a noo

    do quanto importante o estudo da Filosofia do Direito. Depois de graduado,

    o profissional poder desenvolver suas atividades como um operador do

    Direito, ou seja, um tcnico preso aos dogmas e s doutrinas trazidas por

    autoridades na matria, ou poder procurar conhecer um pouco mais da

    cincia do Direito, tornando-se, ento, imperiosa a necessidade de se estudar

    Filosofia, mais especificamente, jusfilosofia. Ora, como se pde ver, as fases

    ou instituies criminais consolidadas at o sc. XVIII da nossa era estavam

    impregnadas das vises filosficas de cada perodo.

    2.5.2.8 Perodo criminolgico

    73KANT, Immanuel.Doutrina do direito. 2. ed. So Paulo: cone, 1993. p. 181.74MONDOLFO, Rodolfo. Cesare Beccaria y sua obra. Buenos Aires: Depalma, 1956. p.46-47; apud CAMPA. Ricardo. Prefacio. BONESANA, Cesare (Marqus de Beccaria).

    Dos delitos e das penas. So Paulo: Marins Fontes, 1991. p. 20-23.

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    No final do sculo XIX emergiram alguns pensadores, sendo que um

    mdico legista, Cesare Lombroso (1835-1909), atribuiu a causa do crime a

    anomalias biolgicas do agente, tendo institudo a biologia criminal. Dos seus

    estudos nasceu uma cincia, a Criminologia.

    Enrico Ferri (1856-1929), outro grande nome da poca, se insurgiu

    contra a ideia de que havia um delinquente natural (criminoso nato). Para

    Ferri, o homem produto do meio, sendo que a anomalia do agente seria

    sociolgica, no biolgica.

    Finalmente, emergiu Raffaele Garofalo (1851-1934), que atribuiu a

    causa do crime a uma anomalia moral do agente, a qual poderia decorrer de

    problemas antropolgicos ou sociolgicos, tendo defendido a pena de morte

    porque, segundo ele, algumas pessoas tm o carter to deturpado que no

    mais podem ser recuperadas. Dessa forma, a pena passou a ser um meio de

    defesa social e de cura do delinquente.

    Essa viso reducionista do DCrim decorre da evoluo de concepes

    positivistas da Filosofia. Afirmei que conhecer o pensamento de Kant

    fundamental, isso porque s depois que ele conseguiu desenvolver um

    conhecimento fundado na razo, e conseguiu afastar as concepes de espao

    e tempo de concepes transcendentais que houve grande evoluo na

    Filosofia.75 Hegel (1770-1831), com seu subjetivismo foi um neokantiano,

    assim como foram praticamente todos os outros jusfilsofos da modernidade.

    A influncia do pensamento Kantiano, conforme ensina Cludio de

    Cicco, na apresentao do livro D