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1 ULIANA KUCZYNSKI “ESTÔMAGO”, O FILME: UMA ANÁLISE PROJETANDO A COMIDA COMO PRATO PRINCIPAL PARA O CINEMA CURITIBA 2008

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ULIANA KUCZYNSKI

“ESTÔMAGO”, O FILME: UMA ANÁLISE PROJETANDO A COMIDA COMO PRATO PRINCIPAL PARA O CINEMA

CURITIBA 2008

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ULIANA KUCZYNSKI

“ESTÔMAGO”, O FILME: UMA ANÁLISE PROJETANDO A COMIDA COMO PRATO PRINCIPAL PARA O CINEMA

Trabalho de conclusão de curso apresentado a disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica, ofertada pelo Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Sob a orientação do professor Doutor Dennison de Oliveira.

CURITIBA 2008

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RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo mostrar a relação entre o cinema e a comida - considerada como categoria histórica, pois não se restringe ao valor nutricional, mas abarca culturas, símbolos, sociabilidades. Essa relação será feita através do longa-metragem Estômago, do diretor curitibano Marcos Jorge. Ele foi eleito por ser uma produção paranaense e por estar inserido no rol de obras que protagonizam a temática da comida, possibilitando a confecção de um “gênero cinematográfico” específico. O lançamento do filme foi em 2007, e por esse motivo serão contemplados alguns aspectos atuais da cinematografia nacional, bem como do contexto geral em que ele se insere. Entendendo o cinema como construção humana, será feita uma análise da fonte fílmica, procurando estabelecer, grosso modo, a relação do filme com a sociedade. Ora no viés da indústria cinematográfica, ora nos fluxos das representações entre filme e realidade, entre cinema e comida. Palavras-chave: cinema brasileiro, comida, “Estômago”

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AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar ao Pai Celestial, por ter sido graças à Ele que cheguei até aqui.

À minha mãe, Oksana, por estar sempre ao meu lado e apostando em mim. Ao meu pai, Lauro Kuczynski, pelo incentivo.

Aos meus irmãos, Juliano e Adriano, e a todos os amigos e familiares que de alguma forma me ajudaram a chegar até aqui.

Às minhas “guimas”, pelas discussões, cafés, e caldinhos-de-feijão. Ao meu parceiro, colega e namorado Alan Gruba, pelas colaborações acadêmicas, entre outros... Às contribuições do professor Carlos Antunes dos Santos e, por fim, agradeço a disposição do professor Dennison de Oliveira, por ter me incentivado e me instruído, mesmo em tempos perturbados, viabilizando a confecção deste trabalho.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 6

1- PANORAMA DO CINEMA BRASILEIRO ATUAL ............................................. 9

2- A COMIDA EM CENA: UM GÊNERO CINEMATOGRÁFICO? ................... 23

3- “ESTÔMAGO”, O FILME .................................................................................... 33

3.1- INSERÇÃO NA INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA ........................................ 35

3.2- CONJUNTURA HISTÓRICA: REALISMO OU REPRESENTAÇÃO?............... 38

3.3- A COMIDA COMO PROTAGONISTA ................................................................. 41

3.4- RECEPÇÃO E CRÍTICAS .................................................................................... 47

CONCLUSÃO ............................................................................................................. 51

REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 55

ANEXO 1 ...................................................................................................................... 60

ANEXO 2 ...................................................................................................................... 61

ANEXO 3 ...................................................................................................................... 63

ANEXO 4 ...................................................................................................................... 64

ANEXO 5 ...................................................................................................................... 66

ANEXO 6 ...................................................................................................................... 68

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INTRODUÇÃO

“Arte em movimento”, “ilusão de verdade”, “impressão de realidade”, “janela para

o mundo”, “representação do real”, “indústria do entretenimento”, “sétima arte”... São

tantas as expressões que se destinaram a explicar o cinema ao longo de mais de um século,

relevando sua singularidade e complexidade, que suas implicações na História não ficaram

fora desse enfoque. De minha parte, esse olhar foi suscitado devido à grande influência do

cinema no cotidiano e imaginário humanos.

Depois de passar por algumas diferentes “áreas de atuação do saber histórico”

durante a graduação (mais diferentes do que “de atuação”), em especulando algo que fosse

relevante para mim e para a historiografia, percebi que importava investigar algo que

remetesse às representações humanas e suas implicações na sociedade. Sociedade

contemporânea essa, porque sempre me chamou mais atenção.

Muito bem! Daí me surgiram algumas possibilidades de trabalho, mas a que

prevaleceu e redundou nessa pesquisa de conclusão foi pensar a História através do

cinema, já que ele saciaria minhas intenções ao trabalhar com as representações.

O tema que aqui será discutido já me incomodava desde o contato com os

conhecimentos sobre a História e Cultura da Alimentação, ao iniciar o curso. Munida do

conceito de que a comida se constitui enquanto categoria histórica, indo além dos valores

nutricionais e abarcando sociabilidades, relações culturais, econômicas, de poder, ou

valores simbólicos, me chamou atenção o quanto esse tema, na atualidade, aparece com

tantas e diferentes discussões e transformações, tornando-se inclusive objeto para a

História. O culto ao corpo e a busca de uma alimentação saudável, a proliferação dos

cursos de gastronomia, bem como a indústria alimentar representada pelos fast-food ou

polêmicas acerca do vegetarianismo, do paradoxo da desnutrição e obesidade, anorexia e

fome, são exemplos desses debates.

Foi nesse sentido que percebi a possibilidade de examinar essa questão alimentar

também no cinema, quando comecei a reparar em uma gama de filmes que tem a comida

(naquele sentido de categoria histórica) como principal argumento. São filmes como A

Festa de Babette ou O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, ou Chocolate. Obras

que a partir de meados da década de oitenta transitam em torno do ambiente de cozinhar

(tanto a cozinha como o restaurante), da figura do cozinheiro ou do ato de sentar-se à mesa.

Me aprofundei nas observações à respeito e assim se colocou a intriga: a relação

entre comida e cinema. Para tanto, foi no aprofundamento de um trabalho apresentado à

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disciplina de Tópicos Especiais de História e Cinema que se deu tal análise. Nele era

necessário eleger um filme para examinar, aplicando a metodologia do cinema enquanto

fonte histórica e extraindo aquilo que ele pudesse oferecer sobre a para a História. Já com

aquelas especulações à respeito da relação cinema/ comida, tomei como base o longa-

metragem Estômago, do diretor curitibano Marcos Jorge, lançado em 2007, e que tem

como fio condutor da narrativa a temática da comida, através do talento do personagem

principal como cozinheiro.

Ora, aí está, então, a trajetória que resultou na presente pesquisa. Este filme de um

título um tanto quanto visceral, permite analisar de que maneira a comida é protagonizada.

Além da temática, outros pontos ainda são contundentes: é uma produção recente e

paranaense. Por esse motivo traz alguns aspectos atuais da cinematografia nacional.

Aspectos esses que se inserem em um recorte do cinema brasileiro denominado

“Retomada”, pouco explorado por historiadores. Menos focalizada ainda é a produção

regional, e através de Estômago é possível levantar algumas observações sobre ela.

Além disso, a atualidade do filme valida a novidade do tema. Estômago

dificilmente terá sido tratado no meio acadêmico. Aí a História do Tempo Presente recebe

um outro tipo de fonte, além da imprensa diária ou periódica e os relatórios e publicações

econômicas ou estatísticas de governos e instituições, apontados por Hobsbawm1. Pois o

cinema, há mais de um século, constrói discursos sobre a sociedade na qual se insere2,

recebendo o status, então, de fonte histórica.

Para examinar tais discursos, no entanto, vale frisar alguns fatores que sustentam a

análise do filme, os quais tem suas primeiras propostas nos trabalhos de Marc Ferro. São

eles: a interpretação da estética e da linguagem cinematográfica (entendida como a

combinação dos movimentos e enquadramentos da câmera com outros elementos como

som, fotografia, iluminação, cenário, etc.) oferecidas pelo próprio filme e que lhe conferem

sentido; a relação do filme com a sociedade que o produz e consome - abarcando as

circunstâncias de produção, distribuição, exibição e recepção –, entendendo-o como agente

e como produto da História; a relação do autor com a obra; e por fim, pensá-lo como uma

expressão do imaginário do homem. Pois o filme não é meramente uma imagem

ilustrativa, mas uma construção humana.3

1 HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Cia das Letras,

2003. p. 9. 2 MORETTIN, Eduardo V. O Cinema a como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História: Questões &

Debates. Curitiba, ano 20, nº 38, p. 11-42, jan/ jun, 2003. p. 39. 3 Essa metodologia tem base em: MORETTIN, Eduardo V. O Cinema a como fonte histórica na obra de

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Dada essa metodologia, o trabalho se seguirá dividido em três partes.

Primeiramente, para contemplar a relação com a sociedade, fiz um exame da conjuntura da

indústria cinematográfica nacional, privilegiando as condições do circuito produtivo (pelo

seu viés mercadológico e institucional), e também a estética do cinema da “Retomada” -

período em que o Estado reafirma sua ligação com a sétima arte a partir da Lei do

Audiovisual de 1993.

A segunda parte presta-se à abordagem da relação entre o filme e a sociedade no

sentido da temática. Depois de apontar os debates e transformações em torno da categoria

“comida”, em pauta principalmente nas últimas décadas do século XX, apresento uma série

de filmes cujo enredo ou a linguagem cinematográfica privilegiam tal temática e têm isso

em comum. Desse rol pode-se perceber que, a partir de fins da década de oitenta, o tema da

comida aparece com frequencia nas telas, podendo constituir-se como um “gênero”

cinematográfico.

Por fim, resta degustar o filme em si. A película não pertence à categoria dos

chamados “filmes históricos”, tampouco tem como foco principal as mazelas sociais

brasileiras, que renderam alguns prêmios a outras produções nacionais. Trata-se de uma

ficção cuja peculiaridade temática reside na sua trama central: a ascensão social de

Raimundo Nonato (personagem principal do filme) através de seu recém-descoberto

talento gastronômico.

Descrito como “uma fábula nada infantil sobre poder, sexo e culinária”4, o filme

narra a história de um retirante que chega na cidade grande sem perspectivas, mas que

conquista, ao longo da trama, posições de prestígio por conta de suas habilidades

culinárias, que vão desde a cozinha de boteco à famosa culinária italiana. Essas habilidades

lhe rendem um emprego e uma paixão, servindo de base para suas relações sociais. Poder,

sexo, e principalmente comida são os eixos principais que seguem na análise.

Por ora, destaco nesse preâmbulo que antecede o trabalho, a complexidade e

subjetividade do trabalho com imagens, notando que elas serviram mais para aguçar o

apetite pela pesquisa do que denotaram algum entrave. Pois a própria “escrita” da História

é uma representação, e minha intenção aqui é tentar colaborar escrevendo mais uma delas.

Bom apetite!

Marc Ferro. História: Questões & Debates. Curitiba, ano 20, nº 38, p. 11-42, jan/ jun, 2003, em KORNIS, Mônica. História e Cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol 5, nº 10, p. 237 – 250, 1992 e OLIVEIRA, Dennison de. O Cinema como fonte para a História. Texto apresentado no III Evento de Extensão em Pesquisa Histórica - Fontes Históricas: Métodos e Tipologias, 2008.

4 Retirado de: www.estomagoofilme.com.br, nov/ 2008.

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1- PANORAMA DO CINEMA BRASILEIRO ATUAL

A trajetória da produção cinematográfica brasileira se apresenta como um prato

cheio ao pesquisador, devido às suas variações estéticas, de mercado, e por manter em cena

uma relação com a hegemonia das obras hollywoodianas, seja com uma postura de

enfrentamento (como foi o caso do Cinema Novo) ou de uma tentativa de equiparar-se aos

seus padrões (a exemplo da extinta Vera Cruz)5. Para o presente estudo, porém, não será

possível tratá-la no seu percurso total, sendo necessário um recorte que vai abarcar da

extinção da Embrafilme até a configuração da chamada época da ‘Retomada’ (a época

atual). Quanto à abordagem, ela pretende esclarecer alguns pontos do cinema brasileiro

entendo-o como “uma instituição, no sentido jurídico-ideológico, uma indústria, uma

produção significante e estética – uma obra de arte -, um conjunto de práticas de

consumo”6.

Com a hipertrofia da TV nos anos 70/ 80, e sua conseqüente concorrência com o

cinema o que temos a partir daí é uma produção de “filme para mercado”, ao invés da idéia

de que “mercado é cultura”, como houvera outrora, no Cinema Novo. Com a grande

penetração de filmes hollywoodianos nesse período e a intensificação da globalização, o

cinema brasileiro passou por um processo de reconfiguração.

O que ocorreu, conforme Ismail Xavier, foi que o cinema, nesse período, “enterrou

a estética da fome, afirmou a técnica e a mentalidade profissional”7. Pois, agora em

contexto mais global, de aquecimento de uma economia mais industrializada e moderna -

ainda que em desenvolvimento8 - a produção cinematográfica muda seus padrões. Pode-se

afirmar ainda, que esse aprimoramento técnico-profissional deveu-se pela efervescência da

própria TV. Se por um lado ela se consolida como entretenimento nos lares brasileiros,

invadindo o cotidiano do telespectador através das novelas9, há também um crescimento da

publicidade (além da própria linguagem10 da telenovela ter sido emprestada ao cinema).

Ou seja: se a produção de longas-metragens foi reduzida, os comerciais, programas de TV

5 Essa questão merece destaque pela influência que a indústria hollywoodiana, consolidada a partir da II

Guerra Mundial, exerce na cultura e mercado nacionais. In: BERNARDET, Jean-Claude. Cinema Brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

6 Conforme propõe AUMONT, Jacques. [et alli]. A Estética do filme. Campinas: Papirus, 1995, p.17 7 XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p.40 8 BRESSER-PEREIRA, Luis Carlos. Economia Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1998 9 ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira. Brasília: Ed. Brasiliense, 1988 10 Entende-se por linguagem cinematográfica um conjunto de planos e movimentos de câmara que devem

ser analisados em consonância com outros elementos como: som, cenário, expressão do autor, iluminação, etc. Isso para entender o sentido do filme ou da cena. In: BERNARDET, Jean-Claude. O que é Cinema. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Nova Cultural/ Brasiliense, 1985

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e os videoclipes aqueceram as produtoras e os recursos técnicos desse ramo, configurando

uma estética que depois será utilizada em filmes como Cidade de Deus e Central do

Brasil.11 O primeiro filme a incorporar a linguagem televisiva foi Dona Flor e seus dois

maridos (Bruno Barreto, 1976), cuja bilheteria expressa a apreciação do público por tal

linguagem, embora as cenas picantes de Sônia Braga com José Wilker, com certeza

impulsionaram o recorde brasileiro: 10,7 milhões de espectadores.

Reportando-me novamente ao Cinema Novo, vale enfatizar a diferença do conteúdo

fílmico. Naquele período o cineasta tinha a missão de diagnosticar as mazelas sociais e

politizar o povo. A dimensão utópica dos anos 60/ 70 movia esses artistas para serem as

‘vozes problematizadoras’ e reveladoras de uma identidade nacional; eram ideólogos da

esquerda discutindo a dependência brasileira por meio da obra que produziam. No cinema

da Retomada, que, como veremos adiante, se configura a partir de 1993, não existe um

projeto único, com vínculo ideológico ou um debate para o fazer filmes12. A tônica está na

variedade temática e no pragmatismo, mais voltado para uma ‘linguagem internacional’,

em uma tentativa de aproximação do cinema norte-americano. Isso vem desde a inserção

de “novos” atores sociais nos anos oitenta e da sedimentação da produção de

documentários, que abre um maior leque de opções temáticas13. Conforme o crítico da

Folha de São Paulo, Pedro Butcher, vez por outra as obras atravessam, em diagonal, temas

similares. E aí menciono o exemplo da temática da violência nos sucessos de bilheteria e

de reconhecimento internacional: Cidade de Deus, Carandiru e Tropa de Elite e, para o

recém-indicado a concorrer o Oscar-2009, Última Parada: 174.14

Mas o que seria esse cinema da Retomada? Além das características temáticas

traçadas acima faz-se necessária uma discussão mais ampliada, do ponto de vista estatal e

mercadológico também.

Com a extinção da Embrafilme, em 1990, pelo então presidente da República,

Fernando Collor de Mello, houve uma significativa mudança no modo de fazer filme. A

empresa que era responsável pela produção, distribuição e exibição dos filmes fica sem um

11 BUTCHER, Pedro. Cinema Brasileiro Hoje. São Paulo: Folha explica, 2005 12 XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno... 13 BUTCHER, Op. cit, p. 78-91. 14 Reside aí uma questão essencial para a pesquisa sobre cinema, que é a da recepção. Por que esses filmes

fazem sucesso? O público aprova o tema? A estética moderna? Ou ambos? Ou podemos dizer que isso se tornou uma “marca” do cinema brasileiro? Sidney Ferreira Leite, na sua brilhante abordagem sobre o Cinema brasileiro: das origens à retomada cita uma reportagem feita pelo jornalista e crítico Luís Antônio Giron, intitulada A imagem que vende mais (Revista Época, 15/09/03), a qual constata que, o reconhecimento internacional do cinema brasileiro é a violência, uma abordagem diferente dela, que se tornou a nossa “marca” lá fora. In: LEITE, Sidney Ferreira. Cinema brasileiro: das origens à retomada. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2005, p. 134 e 135.

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órgão substituto que estimule essa indústria. Sem incentivo, “segue-se um período de

penúria total, no qual o Brasil produziu entre dois ou três filmes de longa-metragem por

ano” de acordo com Arthur Autran15. Em 1993, o vínculo do Estado com a produção é

restabelecido, por meio de incentivo fiscal, mas ainda assim as iniciativas são poucas e

precárias, enfrentando problemas de mercado e, principalmente de distribuição. Mesmo

com os frutos colhidos somente mais tarde, é a partir daí que a produção começa a ser

reerguida, restabelecida, retomada16.

Mesmo que os filmes infantis constituíssem o principal pilar de vendas do cinema

brasileiro, a presença de Xuxa e Renato Aragão nos poucos telões que existiam mostrava

que o cinema nacional tentava se reerguer. Tal tentativa pode ser verificada em filmes

como Tieta do Agreste (Cacá Diegues, 1996) e O Quatrilho (Fábio Barreto, 1994), que tem

a característica de uma narrativa comum e um elenco que estrela nas novelas. Aliás,

colocar personagens ou atores já familiares pela televisão se revelará como uma boa tática:

não é à toa que O Auto da Compadecida (Guel Arraes, 2000) alcançou mais de dois

milhões de espectadores no cinema (nesse caso, advindo de uma minissérie). Casseta &

Planeta e Os Normais também comprovarão, posteriormente, esse êxito17.

Voltando à transição, vale um esclarecimento acerca do o termo ‘Retomada’. Para

Butcher, não há um renascimento, apenas a continuidade de uma coisa que já existia, sem

propor uma novidade estética ou temática (como um processo). Já Leite enxerga um

‘renascer’ nas produções exatamente porque a falta de unidade temática e estética abstêm-

nas de qualquer compromisso de continuidade com os movimentos cinematográficos

anteriores. Creio que os dois estão corretos, somente os termos é que se confundem. A

variedade temática e estética não contestou as produções anteriores através de um projeto

de vanguarda, como fizera o Cinema Novo em relação à Vera Cruz (continuidade,

portanto) e, essa variedade isenta vínculos com movimentos anteriores (um ‘renascer’). É

um processo no qual se produz conforme os recursos e o imaginário que o contexto da

15 AUTRAN, Arthur. Brevíssimo panorama do Cinema Brasileiro nos anos 90. In:

www.mnemocine.com.br, p.1. 16 À título de esclarecimento, alguns autores discutem sobre o ano marco para o início da Retomada. Alguns

defendem ser 1995, por ser a partir daí que os frutos das leis de incentivo começam a ser colhidos. Outros defendem ser 1993 para não excluir a produção (mesmo que ínfima) desses anos de intervalo. Mas, já que estamos considerando que foi a dissolução da Embrafilme que interrompeu a produção (âmbito institucional, portanto) consideremos que foi a partir da Lei do Audiovisual, 1993, (também no âmbito institucional) que se inicia a nova safra, demarcando a Retomada a partir daí. Ismail Xavier e Sidney Ferreira Leite estão de acordo com tal demarcação.

17 Já entre os filmes infantis, é inconcebível não lembrar dos sucessos d’Os Trapalhões, que desde meados de 1970 ocupam vinte e três posições das cinquenta maiores bilheterias do país (46% do total), e não contavam com os recursos da Embrafilme.

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sociedade oferece, e, conforme o que ela requer de produção.

Carlota Joaquina (Carla Camuratti, 1995) por obter mais de 1 milhão de ingressos

vendidos, e Central do Brasil (Walter Salles, 1998), pela inovação na técnica e pelas

indicações ao Oscar, são emblemas dessa nova safra. Ao lado deste último, podemos

incluir Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) – também com indicações

ao Oscar -, cuja bilheteria foi acima de 3,3 milhões de espectadores.18 Um filme com

técnicas experimentadas na publicidade e no videoclipe, que se mostrou comercial e com

personalidade, congrega a nova estética que foi contextualizada acima. Tanto no filme de

Lund e Meirelles quanto no de Walter Salles a estética da fome e da miséria aparece, mas

agora ancorada na tecnologia que o mundo contemporâneo brasileiro fornece (mesmo

sendo de um país em desenvolvimento)19. “As mazelas e contradições sociais servem

apenas de moldura, mas não são discutidas”20, como fazia o cinema glauberiano. O sertão,

em Central do Brasil é mostrado com romantismo e não como questão de debate.21 O

Brasil busca, então, esse apelo às linguagens midiáticas em voga, diferente da tentativa

cinemanovista de produzir evidenciando a precariedade do cinema nacional, ou seja, a

realidade.

Mas a Retomada deve ser entendida também pelo viés institucional. Se a produção

foi interrompida por falta de incentivo, devido à extinção da Embrafilme, as medidas

adotadas na seqüência traduzem uma mudança na função do Estado e no status da sétima

arte na indústria brasileira atual. As principais medidas de incentivo foram a Lei do

Audiovisual, em 1993, após o período de ‘penúria’ e, posteriormente, a criação da Ancine

(Agência Nacional de Cinema) em 2001. Tais balizas estão relacionadas a uma nova forma

de gestão do Estado.

A análise do especialista em políticas públicas e gestão governamental, Fábio

Kobol Fornazari22, vai de encontro ao que Bresser Pereira levantou no seu trabalho sobre a

economia brasileira:

“O Estado precisa ser entendido como regulador do sistema econômico e como provedor de recursos para as atividades que o mercado não é capaz de remunerar adequadamente, e não mais como executor dessas tarefas, que devem ficar para o setor privado ou para o setor público não-estatal.”

18 As bilheterias estão disponíveis no site da Ancine: www.ancine.gov.br 19 Retirado da entrevista no site: www.uol.com.br/revistadecinema/edição31/estética. jun/2008 20 LEITE, Sidney Ferreira. Cinema brasileiro: das origens à retomada. São Paulo: Editora Fundação

Perseu Abramo, 2005 p.130 21 BUTCHER, Op cit. p.47-48. 22 FORNAZARI, Fábio Kobol. Instituições do Estado e políticas de regulamentação e incentivo ao cinema

no Brasil: o caso da Ancine e Ancinav. Rio de Janeiro: Revista da Administração Pública, vol. 40, n° 4, julho/agosto de 2006.

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[sem grifo no original]23

Essa reconfiguração da função do Estado veio após a chamada ‘década perdida’,

quando uma crise estrutural abalou os ditames da economia brasileira, caracterizada como

a pior do país por aquele autor24. Com a mudança nos padrões mundiais das relações

econômicas, em um mundo cada vez mais globalizado, e, após várias tentativas sucessivas

e frustradas de controle da inflação (com os ‘planos de recuperação’ Collor, Verão, Bresser,

etc.), notou-se que a crise era, além de econômica, uma crise do Estado.

As mudanças que vieram no início da década de 90 foram as seguintes:

privatização, abertura comercial, ajuste fiscal, e uma reforma administrativa. Tal reforma

resultou na retirada total do Estado da área econômica e social, conforme a ordem

neoliberal. Sendo assim, o desenvolvimento naquelas áreas não é responsabilidade estatal,

sua função é agora promotora e reguladora (e não produtora e realizadora), uma

administração pública gerencial e indireta.

Quando o ex-presidente Collor de Mello colocou fim à empresa de economia mista

que assegurava a circulação dos filmes nacionais - a Embrafilme -, naquela onda de

privatizações e desestatizações, o vazio foi de não ter sido criado nenhum outro mecanismo

regulatório eficiente para a indústria fílmica.

Ora, os ares eram de redemocratização: o Brasil teria seu primeiro presidente eleito

pela via direta após duas décadas de regime ditatorial tutelado por militares. As conquistas

em torno da liberdade e autonomia dos cidadãos e a expectativa de crescimento

progrediam e agora teriam respaldo. Nesse cenário, as expectativas dos cineastas eram de

consolidação e apoio à indústria cinematográfica. Tais expectativas foram frustradas

quando a empresa estatal (criada na ditadura) fora dissolvida.

Não pretendo me estender nessa discussão, que renderia outra pesquisa específica,

mas, o que se pode afirmar, com bases no levantamento do historiador Sidney Ferreira

Leite, o principal entrave da extinção da Embrafilme reside na garantia de distribuição e

exibição dos filmes nacionais que a empresa assegurava e que agora os cineastas estavam

destituídos. Para Leite, toda a trajetória do cinema brasileiro mostra deficiência exatamente

nesses aspectos. Pois, para a consolidação de uma indústria cinematográfica apenas a parte

da produção não a viabiliza. Distribuição e exibição são os outros pilares que, ao longo do

processo histórico-cinematográfico nacional, se mostraram incipientes25.

23 BRESSER-PEREIRA, Luis Carlos. Economia Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 16. 24 BRESSER-PEREIRA, Op cit. Cap. 27 25 LEITE, Op cit.

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Quais são os incentivos que o Estado passou então a promover, gerenciar, para o

cinema nacional? Ancorada à Lei Rouanet, ou Lei de Incentivo à Cultura (8.313/91)26, a

Lei do Audiovisual (8.685/93) foi um passo importante. Através da renúncia fiscal,

empresas privadas podem deduzir do imposto de renda investimentos para a produção de

filmes. Essa dedução limita-se à 5% do imposto de renda.

Outro alcance que se destaca é a criação da Ancine. Na forma de agência

reguladora, ela está assim definida pelo regimento interno:

“Cap I. Art. 1º: A Agência Nacional do Cinema - ANCINE, autarquia sob regime especial, criada pelo art. 5º da Medida Provisória nº 2.228-1, de 06 de setembro de 2001, dotada de autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério da Cultura pelo Decreto nº. 4858, de 13 de outubro de 2003, com prazo de duração indeterminado, tem por objetivo institucional o fomento, a regulação e a fiscalização das atividades cinematográficas e videofonográficas, de acordo com o estabelecido pelo Decreto n° 4.121, de 07 de fevereiro de 2002, e nas políticas e diretrizes emanadas do Conselho Superior do Cinema”27.

O modelo traduz aquele padrão de um Estado que delega poderes a esse tipo de

agência, obtendo um vínculo indireto com o Poder Executivo. Conforme Fornazari, as Leis

Rouanet e do Audiovisual são os mecanismos de fomento indireto que Ancine compreende.

A mesma Lei do Audiovisual (Artigo 3°) ainda permite a taxação sobre remessa de lucro

das distribuidoras estrangeiras28. Foi graças a isso que a Fox, Columbia e Warner passaram

a atuar como co-produtoras29. Exibições também rumam nesse mesmo sentido. Nas mãos

de empresas transnacionais, o produto audiovisual até consegue chegar às salas de cinema,

mas raramente atinge a cadeia produtiva inteira: cinema, home-vídeo, televisão paga,

televisão aberta e outras mídias.30 Conforme Sidney Leite: “Para a colocação da obra

cinematográfica nas salas de exibição, nas videolocadoras, nas emissoras de TV aberta e

nos canais disponibilizados pelas operadoras de TV por assinatura é necessário poder

econômico, capacidade de inserção e marketing, planejamento e gestão.”31

Esse é um dos desafios para a administração estatal, pois, o filme não é meramente

26 “Concebida em 1991 para incentivar investimentos culturais, a Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei nº

8.313/91), ou Lei Rouanet, como também é conhecida, poder ser usada por empresas e pessoas físicas que desejam financiar projetos culturais. Ela institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que é formado por três mecanismos: o Fundo Nacional de Cultura (FNC), o Incentivo Fiscal (Mecenato) e o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart).” Descrição disponível no site do ministério da Cultura: www.minc.gov.br

27 Informação contida no site da Ancine: www.ancine.gov.br, out/ 2008. 28 CESÁRIO, Lia Bahia. O debate contemporâneo sobre as leis e políticas públicas do audiovisual no

Brasil. Trabalho apresentado no VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação – NP de Comunicação Audiovisual., 2007. p. 6

29 LEITE, Op cit, p. 123. 30 CESÁRIO, Op cit, p. 6 31 LEITE, Op cit, p. 139.

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uma mercadoria e, como importante componente de cultura32 é importante garantir uma

democratização das obras. É preciso preservar a identidade em meio à diversidade,

principalmente em relação aos filmes norte-americanos, que dominam as salas multiplex

implantadas em 1997 pelo grupo Cinemark. O conforto dos shoppings centers abriga uma

estrutura equipada de imagem e som, com direito à pipoca e refrigerante que encerra um

universo particular e, é claro, mais caro.

Com o advento desse circuito e a queda nos cinemas de rua, o espectador se

transforma:

“Torna-se cada vez mais evidente que a sobrevivência do cinema não depende apenas das projeções nas grandes salas de exibição, mas do desempenho de um novo papel no conjunto do campo audiovisual. Os filmes de hoje são produtos multimídias, que devem ser financiados pelos diversos circuitos que os exibem.”33

Sendo assim, reclama-se por um Estado que não somente viabilize e regule a

circulação dos filmes democratizando o acesso. Repensar tanto o Estado como o mercado,

e a relação de ambos com a criatividade cultural, para que a transnacionalidade de culturas

que presenciamos através deste recurso audiovisual possa abranger - e por que não,

privilegiar? - as produções nacionais em qualidade, variedade e para um público maior e

mais assíduo.

No entanto essa discussão em torno do papel do Estado em relação ao cinema não é

de hoje. Só para ficar mais claro o processo, vale lembrar que a primeira providência nesse

sentido ocorrera no governo de Getúlio Vargas, quando em 1932 é criada uma reserva de

mercado para exibição de curtas nacionais. Em 1936 é fundado o Instituto Nacional de

Cinema Educativo, com o viés de centralização política e integração nacional. Suas

produções que tonalizavam o caráter ‘protetor’ do Estado eram premiadas, tinham

incentivo fiscal e eram de exibição obrigatória.

Já em 1966 nasce o Instituto Nacional do Cinema, que apesar de subordinado ao

Ministério da Cultura, tinha autonomia técnica, financeira e administrativa e suas funções

eram, além de promover, executar políticas para produção, importação, distribuição e

exibição de filmes no Brasil. A partir de 1970 a Embrafilme incorpora suas atividades e

estabelece o financiamento de até 30% do orçamento, assumindo os riscos de mercado; as

bilheterias crescem e a participação e o reconhecimento internacional também.34 Note-se

32 ORTIZ Ramos, José Mario e BUENO, Maria Lucia. Cultura audiovisual e arte conteporânea. São Paulo:

Perspectiva, 2001 33 CANCLINI, apud CESÀRIO. Op cit, p. 8 34 LEITE, Op. cit, p. 112-113.

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que neste período a indústria estava mais desenvolvida quando do governo varguista, e

ainda havia um incentivo do período militar para o fazer filmes. Renato Ortiz afirma que o

tipo de censura adotado reprimia, por um lado, mas era uma censura que incentivava a

produção de outras obras que não fossem contra o sistema. A economia estava se

fortalecendo e o Estado, além de garantir a integridade nacional primava pelo

desenvolvimento, apoiando muitas iniciativas no campo da cultura em geral para a

promoção de ambos35. Talvez esse motivo ajude a entender o ‘lamento’ que pairou antes da

Retomada, quando voltamos ao recorte inicial deste trabalho.

Na atual configuração, é importante lembrar ainda da Cota de Tela, da criação dos

Funcines, da participação de prefeituras e governos estaduais de outras empresas como a

Petrobrás, por exemplo. Ela dispõe do Programa Petrobrás Cultural que desde 2003 já

contemplou aproximadamente mil projetos, incluindo a comédia romântica Se eu fosse

você (Daniel Filho, 2006). Este ano ela anunciou um investimento de R$ 42,3 milhões para

projetos culturais, entre os quais R$ 26,6 milhões são para o audiovisual.36 A Globo Filmes

é outro importante agente, principalmente no sentido da divulgação. Criada em 1997, ela se

associa a um filme sem entrar com investimento direto, mas atua na divulgação, fazendo o

marketing dos filmes nacionais.37

Antes de aprofundar a análise no tema a que me propus, cuja fonte é o longa

paranaense Estômago faz-se necessário ainda as últimas considerações. O filme é uma co-

produção Brasil – Itália, dirigido pelo curitibano Marcos Jorge. Justamente por essas

características (uma co-produção, com filmagem e direção curitibanos) é que ainda vale

um exame, não exaustivo mais elucidativo sobre tais aspectos, uma vez que estou a

contextualizar a obra.

Os projetos de co-produção tem alcançado grande êxito. Exemplo disso é o Ensaio

sobre a Cegueira (Fernando Meirelles, 2008), ainda em exibição. Uma co-produção entre

Japão, Canadá e Brasil está se revelando um sucesso internacional. De acordo com a

Revista de Cinema, edição de junho/2008, desde o início do Programa Cinema do Brasil

(que a partir de 2006 destina-se às co-produções), "o aumento foi de 200% nas co-

produções internacionais, o que já soma US$ 43 milhões gerados em negócios''38 A Revista

35 ORTIZ, Reneto. A Moderna... Op cit, p. 114-121. 36 SANTOS, Márcio Renato dos. Mecenato da Era Lula. Gazeta do Povo. Caderno G. Curitiba, 15 out/

2008. p.1 37 BUTCHER, Op cit, p. 71-76. 38 BEZERRA, Júlio. De olho lá fora. Revista de Cinema, jun/ 2008. In: www.revistadecinema.com.br

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de Cinema noticia parcerias com a China, o que garante a penetração do cinema nacional

naquele país. Portugal destaca-se como grande aliado. Já Itália, que é o que interessa aqui,

possui um acordo firmado entre os dois países desde 1974. Foi uma estratégia para

Estômago, que ainda inclui temas italianos na trama, conforme veremos adiante.

Tabela 1. Quantidade de co-produções internacionais realizadas por ano, de acordo com a participação patrimonial brasileira39.

Participação Brasileira Ano

Qtd. Majoritária Igualitária Minoritária

1995 1 1 - - 1996 0 - - - 1997 1 - - 1 1998 3 2 - 1 1999 3 1 - 2 2000 5 3 - 2 2001 2 2 - -

*2002 4 3 - 1 2003 4 4 - - 2004 8 4 1 3 2005 4 3 - 1 2006 10 6 1 3 2007 11 2 2 7 TOT

AL 56 31 4 21

(*) Edição do Decreto 4.456, de 4 de novembro de 2002, que transfere à Ancine a competência pela gestão dos projetos audiovisuais apoiados com recursos federais

Nota-se, então, um significativo aumento das parcerias internacionais. No caso do

acordo de co-produção com a Itália, apesar de existir desde 1974, ele nunca tinha sido

usado na íntegra. Foi em outubro de 2007, durante o Festival do Rio, que aconteceu a

assinatura de um novo protocolo de intenções entre as estatais italianas – Instituto Luce e

Cinecittá Holding – e a ANCINE. “Segundo o presidente do Instituto Luce, Luciano

Sovena, este fundo é uma das estratégias de seu país para fazer frente à hegemonia do

cinema norte-americano”, e ainda “um dos objetivos do acordo é também fortalecer as

afinidades culturais e profissionais entre os dois países, cujas cinematografias estiveram

muito próximas na época do Cinema Novo e do neo-realismo”40. Além disso, tem-se uma

produção de baixo custo para o mercado internacional41.

Outro esquema de co-produção que tem rendido uma boa safra é o Acordo Latino-

americano de Co-produção Cinematográfica, firmado pelo Decreto n° 2.761 de agosto de

39 Fonte: www.ancine.gov.br, jul/ 2008 40 Retirado do site oficial do Festival do Rio 2007: www.festivaldorio.com.br, jun/ 2008. 41 Informação encontrada no site oficial do filme: www.estomagoofilme.com.br, jun/ 2008.

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1998, que abrange os países do MERCOSUL. O Fundo Ibero-americano de apoio,

Ibermedia, é um programa que compete, basicamente, em: reforçar e estimular a distribuição dos

produtos audiovisuais nos países Ibero-americanos; fomentar a sua integração em redes

supranacionais de empresas de distribuição entre tais países e incrementar a promoção.

Participam: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Cuba, Chile, Espanha, México,

Panamá, Peru, Porto Rico, Portugal, República Dominicana, Uruguai e Venezuela, todos

membros do CACI – Conferência de Autoridades Cinematográficas Ibero-americana.42

Gráfico 1: Enquadramento das Co-produções internacionais.43

Já no parâmetro nacional, o que se pode constatar é uma desigualdade considerável

entre os estados brasileiros produtores de filmes, que se concentram em São Paulo e no Rio

de Janeiro.44

42 Informações retiradas do site da Ancine: www.ancine.gov.br. 43 Fonte: www.ancine.gov.br, out/ 2008 44 CESÁRIO, Op. cit, p. 5

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Tabela 2: Número de filmes e público por UF da produtora, 2006.

Fonte: Ancine, 200745

A disparidade se confirma na listagem publicada pela Revista de Cinema edição de

set/out, 2008 na matéria intitulada Produção cresce, mas entrave à produção persiste, feita

com o secretário do Audiovisual, Sílvio Da-Rin. Segue à matéria uma listagem das

produções de longa-metragem deste ano, e a seguinte tabela:

Tabela 3: Levantamento de dados 200846

LEVANTAMENTO DOCUMENTÁRIOS DADOS – 2008 Prontos: ....................................................... 29 195 filmes de longa metragem Em finalização/ montagem: ........................ 37 FICÇÃO Em filmagem: ............................................... 3 Prontos: ....................................................... 25 Em pré-produção: ....................................... 10 Em finalização/ montagem: ........................ 39 TOTAL: .......................... 79 documentários Em filmagem: ............................................... 2 DISTRIBUIÇÃO REGIONAL Em pré-produção: ........................................ 41 RJ: ............................................................... 37 TOTAL: ...................................... 107 ficções SP: ............................................................... 25 DISTRIBUIÇÃO REGIONAL MG: ............................................................... 5 SP: …………………………………………42 PE: ..........................................................….. 5 RJ: ............................................................... 42 RS: ................................................................ 4 RS: ................................................................. 8 ANIMAÇÃO BA: ................................................................ 5 Prontos: ........................................................ 2 CE: ................................................................ 4 Em produção: ............................................... 4 PE: ................................................................. 3 Em finalização: ............................................. 2 TOTAL: .................................... 8 animações

45 CESÀRIO, Op cit, p. 6. 46 NICOLAU, Georgia. Produção cresce, mas entrave na distribuição persiste. Revista de Cinema, São

Paulo, ano 9, edição, 90, p. 34-40, set/ out, 2008.

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De acordo com a tabela, podemos constatar uma ínfima participação paranaense no

circuito, uma vez que ela nem aparece ali destacada. Conforme o levantamento, o Paraná

possui um longa de ficção já finalizado: Mystérios de Beto Carminatti e Pedro Merege,

cuja premiére foi no 3° Festival do Paraná de Cinema Brasileiro Latino e recebeu o prêmio

Araucária de Ouro de melhor direção.47

Em finalização encontram-se Corpos Celestes, de Fernando Severo e Marcos Jorge,

com estréia prevista para 2009 e Garibaldi in América, dirigido por Alberto Rondalli e

Paulo Betti. No formato documentário e em processo de finalização estão Brasil Santo, de

Gil Baroni e Monica Rischbieter, que trata da importância da fé na vida de brasileiros

humildes e trabalhadores, e ainda Cantoras do Rádio (Gil Baroni e Marcos Avelar). O

Paraná ainda conta com duas animações já prontas. São elas: Belowars e A Floresta é

nossa, ambas dirigidas por Paulo Munhoz.

A falta de mercado exibidor e distribuidor é uma das características marcantes ao

longo da trajetória do cinema no Paraná. A dificuldade de uma política cultural efetiva e da

inserção da produção no circuito industrial acentuam os obstáculos. Isso foi o que

constatou a pesquisadora de comunicação social Celina Alvetti no seu ensaio sobre uma

história do cinema paranaense. Ela faz um percurso das produções paranaenses desde as

primeiras projeções, concluindo, além das ditas características acima, uma identidade

voltada para o curta-metragem e o cinema documentário.48

As primeiras projeções vieram na forma das companhias itinerantes, a partir de

1897, passando por Paranaguá, Ponta Grossa, Antonina e, principalmente, Curitiba.

Passados cerca de cinco anos, os projetores se fixam para exibir nos teatros agora uma

produção nacional. Na sequencia, a modernização da cidade com a chegada da

Universidade e dos bondes elétricos, trouxe também o primeiro cinema de Curitiba. Em

junho de 1908, inaugura-se o Cine Smart, de propriedade de Annibal Rocha Requião,

produtor e exibidor.49

Outro nome de destaque na produção e exibição é João Batista Groff. Nessa época,

47 A terceira edição do Festival do Paraná de Cinema Brasileiro Latino foi realizada entre os dias 6 e 12 de

outubro de 2008, no Museu Oscar Niemeyer – MON, em Curitiba. Idealizado e coordenado pela atriz e produtora Ittala Nandi, o festival de 2008 reuniu um público de cerca de dez mil pessoas. Foram exibidos 11 longas-metragens (oito brasileiros, três argentinos) e 22 curtas-metragens, em competição. O Festival teve 242 filmes inscritos: 69 longas-metragens brasileiros (sendo 15 inéditos) e 173 curtas-metragens, além de 16 filmes latinos, entre curtas e longas. Informação disponível em: www.festivaldecinema.pr.gov.br, out/ 2008.

48 ALVETTI, Celina. Cinema brasileiro: elementos para uma História. 49 STECZ, Solange Straube. Cinema Paranaense 1900- 1930. Dissertação apresentada ao curso de pós-

graduação em História - UFPR. Curitiba, 1988.

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as obras eram registros documentais do cotidiano, na forma de cine-jornais que exibiam

principalmente eventos administrativos e irão se estender por décadas. Além do cotidiano

de imigrantes ou pontos turísticos, eram temas também as visitas de Getúlio Vargas.

Posteriormente, em meados de 1970, os filmes de enredo começam a ganhar espaço

(mesmo que pequeno) e o documentário ganha um viés mais político e de denúncia,

consagrando Sérgio Bianchi e Sílvio Back

A atuação da Cinemateca de Curitiba, a ABD (Associação Brasileira de

Documentaristas) em fins daquela década possibilitou a diversidade temática e o aumento

na produção paranaense. Depois da já familiarizada Lei do Audiovisual, a prefeitura

aprovou a Lei Municipal de Incentivo a Cultura aprovada em 1993 e efetivada em 1997,

com base na renúncia fiscal50 e em 1992 é fundada AVEC (Associação de Cinema e Vídeo

em Curitiba). Essas medidas acabam por criar uma esfera um pouco mais favorável à

produção fílmica no Paraná, sobretudo na capital. A realização de festivais, como o

Festival de Cinema, Vídeo e DCine de Curitiba (no âmbito nacional desde 1997) e ainda o

Festival do Paraná de cinema brasileiro latino, Festival da Lapa; a proliferação de cursos

livres de cinema; os grupos de discussões; os próprios cursos superiores em

Comunicação51 e a criação do curso superior em Cinema da FAP, todas essas balizas

caracterizam certa evolução no setor.

O periódico Gazeta do Povo, na tiragem de maio deste ano, exibe uma reportagem

sobre as alternativas que o cinema paranaense tem, frente ao timidez do circuito exibidor.

O curso superior da FAP foi destaque exatamente por congregar os profissionais em torno

de discussões acadêmicas para o encaminhamento de propostas e execução de projetos.

Isso pela presença de um estúdio equipado – com a construção de mais dois prevista até o

fim de 2009 – que se mostra de suma importância para, também, dialogar com os projetos

de fora da academia e para fomentar o cinema paranaense, conforme o professor Eduardo

Baggio.52

Outro exemplo das ditas balizas que impulsionam a arte cinematográfica em

Curitiba é o Projeto Olho Vivo. Com Luciano Coelho e Marcelo Munhoz à frente, o projeto

tem um cunho sócio-educativo e de crítica à sociedade. Através da ministração de oficinas,

são realizados vídeos documentais e de ficção, de curta e média metragem (basicamente)

pelos próprios alunos, estimulando a profissionalização e garantindo premiações, como é o

50 Para maiores informações consultar o site da Câmara Municipal de Curitiba: www.cmc.pr.gov.br 51 ALVETTI, Op. cit 52 BOREKI, Vinícius. Força Independente. Gazeta do Povo. Caderno G. Curitiba, 18 mai/ 2008.

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caso do documentário Ser Mulher53. O emblema do Olho Vivo é o projeto Minha vila filmo

eu, cuja intenção é levar a produção audiovisual à periferia.

De maneira muito resumida, procurei aqui pincelar um percurso da produção

regional e, para concluir, cito a síntese de Alvetti:

“Hoje, inserido na história do cinema brasileiro, o cinema paranaense é reconhecido pelo curta-metragem, que lhe deu identidade. Pelo menos dois realizadores, Sylvio Back e Sérgio Bianchi, atualmente radicados no Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente, estão entre os diretores mais representativos do cinema brasileiro. No curta metragem, é destacado nacionalmente Fernando Severo. Por outro lado, a continuidade de produção, um problema crônico desde há muitos anos, vem se resolvendo com a viabilização das produções pelas leis de incentivo e com o suporte da associação de classe, o que vem mudando o panorama da produção cinematográfica local.”54

Pretendeu-se aqui preparar um cenário devidamente iluminado para entrar na

exploração do tema da comida no cinema que irá se seguir, contextualizando-o. Pois, ao

problematizar Estômago, deve estar esclarecido o tipo de temática e estética que está se

fazendo (nacional e regionalmente), com que recursos ele é produzido, distribuído e

exibido, para quem e porquê. O cinema é uma construção humana e por isso se inclui no

processo histórico. Da mesma forma que a sociedade que o engendra se reflete na obra

cinematográfica, essa também causa uma repercussão sobre aquela. Ou seja, tanto a

sociedade produz a obra, como a obra (re)produz a sociedade.

53 Menção Honrosa no XV Vitória Cine Vídeo (2008), Menção Honrosa no Femina - Festival

Internacional de Cinema Feminino (2008). 54 ALVETTI, Op cit, p.13 e 14

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2- A COMIDA EM CENA

A gente não quer só comida A gente quer comida

Diversão e arte Arnaldo Antunes/ Marcelo Fromer/ Sérgio Brito

Bebida é água! Comida é tudo que envolve a necessidade nutricional do ser

humano, pois não se restringe ao ato de alimentar-se, mas vai além. Do ritual de preparo às

normas de etiqueta; das técnicas até a dinâmica social; dos produtos aos prazeres.

“Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes, ligadas

aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações”55.

Inserida em uma cultura, cercada de sociabilidades, valores simbólicos e

econômicos a comida constitui-se em uma categoria histórica, dada sua abrangência para

questionar e explicar fenômenos sociais, abrangendo inclusive o cinema. É nessa

perspectiva (de categoria histórica) que a comida foi percebida em uma gama de filmes da

atualidade. Portanto o propósito, ao longo desta etapa do trabalho, é buscar alguns aspectos

da conjuntura que engendrou um filme como Estômago. Mas agora não nos termos

industriais.

Como aquele longa-metragem paranaense privilegia a questão da comida, e esse

enfoque pode ser visto também em outras obras contemporâneas à ele, é cabível que se

faça uma análise nesse sentido. Para perceber as representações - dessa temática - da

sociedade que as produzem e na sociedade que as recebem. Ou seja: investigar a História e

Cultura da Alimentação a partir do cinema na História; uma relação entre comida e cinema.

Sendo assim, tal relação se dará a partir da apresentação de um rol de filmes cuja

trama transita em torno do ambiente de cozinhar (tanto da cozinha como do restaurante),

do ato de sentar-se à mesa, das receitas e temperos ou da figura do cozinheiro, da comida

como uma obra de arte, podendo ser entendidos como um “gênero da comida”. Não cabe à

pesquisa problematizar e analisar cada um deles, mas eles servirão de base contextual. São

filmes como A Grande Noite, Tampopo, Simplesmente Martha ou Chocolate, que desde

meados da década de oitenta conquistam os espectadores também pelo paladar - além de

seus enredos próprios – traduzindo, assim, esse conjunto de símbolos próprios da sua

conjuntura histórica.

Tema explorado internacionalmente, a comida alcança uma abrangência que

55 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. A Alimentação e o seu lugar na História: os tempos da memória

gustativa. História: Questões & Debates. Curitiba, ano 22, n 40, p.11 - 31, jan/ jun, 2005. p 12.

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extrapola os livros de receita, os restaurantes e cozinhas para invadir o cotidiano em tantos

outros aspectos. Isso não quer dizer que somente a recentemente tal tema seja sublinhado.

Obviamente o alimento sempre teve sua relevância, mas a reputação que a sociedade

contemporânea lhe confere é singular.

“Afinal, desde as últimas décadas do século XX, o ‘assunto alimentação’ conquistou um espaço espetacular na mídia, incluindo inúmeras intolerâncias e distúrbios mas, também, diversas maneiras de transformar o alimento em algo completamente atraente a sensacional. Não por acaso, portanto, assiste-se hoje à multiplicação dos conselhos relacionados à gastronomia e também à dieta, além de uma miríade de propagandas sobre novos produtos destinados a complementar a alimentação diária.”56

Essa espetacularização da comida na atualidade pode ser facilmente detectada em

nosso dia-a-dia: as bancas de revistas que exibem cada vez mais publicações contendo

“receitas de dietas milagrosas”, os inúmeros guias de culinária encorajando leitores a se

aventurar no universo da gastronomia e se tornando best-sellers e a proliferação de cursos

de gastronomia – em nível técnico e superior são prova disso. A mídia televisiva apresenta

uma gama de programas que trazem receitas especiais para as donas de casa e ainda

promovem a figura do chef de cozinha, sempre exibindo o preparo de um bom prato

através de atraente fotografia. Muito comum também nos filmes, conforme se mostrará

adiante, a supremacia da imagem57 - do cinema, por excelência, e ramificada para

caracterizar também a “sociedade televisiva e publicitária” -, aproxima visão e paladar,

aguçando os sentidos para validar a expressão “comer com os olhos”. Aliás, “mesmo que

não possamos comer o que está na tela, podemos digerir as imagens com os olhos, afinal,

elas nos remetem a memórias de sabores, aromas, pessoas, gestos, etc...”58.

Por esse viés, pode-se constatar um certo “elogio” à gastronomia – entendida como

o agrupamento de conhecimentos racionais ligados à prática da arte culinária59 - em

tempos que o sentar-se à mesa para refeições, regradas nos horários na presença da família,

é evento de luxo, dada a intensificação e aceleração no ritmo de trabalho e no estilo de vida

em geral, que coloca em prática o hábito de comer fora.

56 SANT’ANNA, Denise Bernuzzi. Transformações das intolerâncias alimentares em São Paulo, 1850 –

1920. História: Questões & Debates. Curitiba, ano 22, n 40, p. 81-94, jan/ jun, 2005, p.84 57 Apontada por Jean-Claude Carriére. In: CARRIÉRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do Cinema. Rio

de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. 58 COELHO, Maria Cecília de Miranda Nogueira. Estéticas da fome e da abundância: saboreando imagens

do cinema brasileiro. p. 86-96. In: Cultura e Alimentação: saberes alimentares e sabores culturais. (Orgs) MIRANDA, Danilo S. e CORNELLI, Gabriele. São Paulo: Editora SESC-SP, 2007. p.119.

59 SILVA, Paula Pinto. A conversa entre a cozinheira e o cordon bleu: breve reflexão sobre a cozinha e a gastronomia no Brasil. p. 80-85. In: Cultura e Alimentação: saberes... Op cit. Conforme Henrique Carneiro, essa conotação do termo popularizou-se no início do século XIX, designando “boa mesa”. Ver; CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de janeiro: Elsevier, 2003.

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Considerado pelo historiador Henrique Carneiro um fenômeno do século XX, o

hábito de comer fora pode ser percebido como concomitante ao processo de urbanização e

industrialização, e intensificado nas suas últimas décadas quando a mulher passa a

conquistar espaços e aptidões que excedem o cuidado para com lar, inserindo-a no mercado

de trabalho, e quando da difusão das redes que padronizam o gosto e a maneira de produzir

e consumir alimentos: os fast-food. Logo não estou me referindo ao hábito de comer fora

que surgiu nos restaurantes a partir do século XIX, mas de um hábito comum da sociedade

pós-moderna, ávida por soluções práticas. Pois, “À medida que uma sociedade se

desenvolve, as novas condições de hábitos e consumos alimentares alimentares adquirem

maiores significados e transformações vinculadas ao estilo de vida”60. Consideradas as

diferenças do alcance e da intensidade da industrialização e urbanização, podemos

considerar como globais esses fenômenos, principalmente em relação às redes de fast-food.

Ao mencionar esse termo, certamente virá à tona o caso do Mc Donald´s, emblema

da “comida rápida” e da sociedade de massa, difusora não somente de uma maneira de se

alimentar, mas de um estilo de vida61. Além das preocupações acerca da padronização e

pasteurização do gosto, das questões nutricionais, a tão demonizada mas cada vez mais

crescente “mcdonalização” do mundo é alvo, inclusive, da produção fílmica. O

documentário Super Size me: a dieta do palhaço é uma denúncia do próprio Mc Donald’s e

Nação Fast-food abarca todo esse sistema da indústria alimentar.62

Lembrando que a “comida rápida” não se restringe à esses lanches envolvendo

hambúrgueres e coca-cola, mas compreende ainda comida congelada, pizzas ou os

chamados “fast-food étnicos”: uma padronização em escala industrial de comidas típicas

de variados países que podemos encontrar em qualquer praça de alimentação de shopping

center63.

Por outro lado, em contestação à essa padronização do paladar surge o movimento

Slow-Food, uma espécie de ONG que defende os alimentos e modos de preparo

60 SANTOS, Carlos R. Antunes dos. Por uma História da alimentação. História: Questões & Debates.

Curitiba, v 14, n 26/27, p. 154-171, jan/dez, 1997. p. 163. 61 SANTOS. A Alimentação e seu lugar... Op cit. p. 22. 62 O primeiro mostra Morgan Spurlok durante um mês de dieta à base dos produtos do Mc Donald´s e com

acompanhamento médico para avaliar o quão prejudicial é esse tipo de dieta, muito constante entre os norte-americanos. É uma forma de denúncia à obesidade e outras doenças ligadas á esse estilo de alimentação. O último enfoca todo o sistema de fast-food, abarcando questões que vão desde a mão de obra barata e ilegal que cruza a fronteira para trabalhar nos abatedouros, até o marketing das empresas de sanduíches que asseguram imagem e slogan convincentes para os hambúrgueres que vêem (contaminados) de lá e cujos aromas são produzidos em laboratório.

63 CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de janeiro: Elsevier, 2003. p. 109.

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tradicionais, buscando a preservação de aromas e sabores e primando pela biodiversidade

alimentar64. Criado em 1986 na Itália, “o Slow-Food conta hoje [em 2007] oitenta mil

inscritos, com representantes nos cinco continentes e sedes em cinqüenta países

diferentes”65. A partir de 1996 são desenvolvidos os projetos da “Arca do Gosto” que, em

linhas gerais, tem como objetivo descobrir e legitimar um ‘patrimônio agroalimentar’ da

cada região. No Brasil o movimento está presente desde 2000, mas ainda com parcas

adesões.

Note-se que a partir dos aspectos acima expostos revela-se um contraponto entre o

tradicional e o moderno e global, entre cultura e indústria alimentar, entre a “comida

rápida”, para sustento, e a arte culinária, para deleite. Carlos Antunes chama atenção para a

“cozinha fusão”, a partir da transição e a troca de produtos, formas de consumo e técnicas,

em um sincretismo que não é uma cozinha internacional nem tradicional, apenas plural,

típica deste contexto66. Certamente não entrarei nessas discussões à fundo, uma vez que

não há espaço e nem é o objetivo desta pesquisa, mas acho válido frisar esses temas para

sedimentar tais apontamentos sobre a problemática da comida na atualidade.

O que se apresenta, então, é uma sociedade cada vez mais preocupada com

segurança e qualidade alimentar. Que espelha o paradoxo da subnutrição e da obesidade,

da bulimia e da fome. O vegetarianismo, os alimentos transgênicos, todas essas questões

encontram-se em discussão na mídia e nas mais variadas áreas do conhecimento. Porém,

mais do que isso, elas suscitam um enfoque na própria comida, como objeto para diferentes

olhares, formas de expressão e de “pensar sobre”, com ou sem compromisso ideológico,

seja na publicidade, na historiografia, nos projetos administrativos, nas artes.

A conjuntura que foi acima esboçada expressa, então, como a comida pode ser

entendida como categoria histórica. Isso porque foi possível traçar um panorama (ainda

que breve) sobre como tal categoria transpassa o nutricional e compõe uma leitura da

sociedade, uma História da Cultura Alimentar. E o como o cinema é um produto humano,

pode, certamente, revelar tal História. É essa relação (cinema/ comida) que será

exemplificada na sequencia.

Porém, é oportuno fazer uma ressalva: já que são filmes ficcionais e a intenção é

64 SANTOS, A Alimentação e seu lugar... Op cit, p. 24. 65 MADER, Heloisa. O Movimento Slow-Food no Brasil. p. 165-169. In: Cultura e Alimentação: saberes...

Op cit. 66 SANTOS, Carlos R. Antunes. A Alimentação moderna: fusão ou confusão. In:

www.historiadaalimentacao.ufpr.br

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traçar a “justaposição dos códigos do filme com os códigos específicos de uma época”67

isso será feito no âmbito do imaginário, conforme orienta a metodologia para o cinema

enquanto fonte histórica.

Tal metodologia se ergueu a partir das renovações (e ampliações) propostas pela

Escola dos Annales na década de setenta, quando o cinema sofre uma reconfiguração na

sua relação com a História68. Ancorado na perspectiva de pensar o processo histórico a

partir das mentalidades e da cultura entendida como um conjunto de práticas sociais

advindas do imaginário - sistema de representações pelas quais o homem constitui a si e à

sua realidade e excedem 69 -, o cinema adquire um novo status. Entendido como uma

construção humana, uma representação do real (e não como uma imagem ilustrativa ou um

reflexo ipsis literis da realidade70), sua validade permite compreender comportamentos,

crenças, valores, visões de mundo de uma sociedade ou de um momento histórico, na

medida em que o filme “articula ao contexto histórico e social que o produziu um conjunto

de elementos intrínsecos à própria expressão cinematográfica”71.

Sendo assim, as ficções aqui elencadas para exemplificar a presença da comida na

sétima arte, não só inserem-na em seus enredos, mas tratam-na como protagonista

(conforme o termo empregado por Victor Ducrot72). Traduzem o imaginário de uma

sociedade em que a comida ganha um papel de destaque: ela desenvolve tramas, é palco de

conflitos ou argumento para roteiros.

Para efeitos didáticos, agrupei as obras fílmicas conforme suas “referências” a

partir do tema central da comida – lembrando que o conceito de comida que está sendo

usado é aquele emprestado da História da alimentação, que abrange aspectos culturais, 67 KORNIS, Op cit. p. 248.

68 Os fatores metodológicos resumem-se nos seguintes: a relação do filme com a sociedade que o produz e

consome - abarcando as circunstâncias de produção, distribuição, exibição e recepção –, entendendo-o como um agente da História, e não só um produto; a relação do autor com a obra (sua formação e atuação, percebendo-o como um sujeito munido de ideologias, perspectivas, visão de mundo, etc.); e o filme como expressão do imaginário do homem. Por fim a interpretação da estética e da linguagem cinematográfica (entendida como a combinação dos movimentos e enquadramentos da câmera com outros elementos como som, fotografia, iluminação, cenário, etc.) oferecidas pelo próprio filme e que lhe conferem sentido.

69 Conforme as proposições de Roger Chartier n’O mundo como representação. (CHARTIER, Roger. O

mundo como representação. Estudos avançados, 1991). Outra proposta é que “o domínio do imaginário é constituído pelo conjunto das representações que ultrapassam o limite dos fatos comprováveis pela experimentação e pelos encadeamentos dedutivos”. In: PATLAGEAN, Evelyne. A História do Imaginário. In: Enciclopédia A Nova História, p. 292.

70 NAVARRETE, Eduardo. O Cinema como fonte histórica: diferentes perspectivas teórico-metodológicas. Revista Urutágua – ISSN 1519.6178, Maringá, n 16, ago/ nov, 2008. Note-se que o fato de não enxergar o cinema como um simples e puro reflexo da realidade é interessa principalmente para tratar os filmes históricos, que muitas vezes não condizem com a época que pretendem retratar.

71 KORNIS, Op cit. p. 238 72 DUCROT, Víctor Ego. Los Sabores del Cine. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2002

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laços sociais, sensibilidades, etc. Certamente é apenas uma sugestão (subjetiva),

simplesmente uma maneira resumida que encontrei para pincelar algumas características

sobressalentes nos filmes. Do mesmo modo acentuo que os agrupamentos não são auto-

excludentes, todos possuem imbricações entre si, além do que, obviamente, são passíveis

de outras categorizações. Aqui a intenção é meramente facilitar o texto e os exemplos. Os

filmes foram os sugeridos pelo jornalista Victor Ducrot, somados a alguns lançamentos

posteriores ao momento em que ele escreve, mas que seguem a mesma linha de

interpretação da comida como protagonista73.

Seguem, então, as sugestões para perceber a relação entre História e cinema,

agrupando os seguintes filmes, nos seguintes temas:

- Cozinheiro: Filmes que focam a figura do cozinheiro, do seu talento, seu dom (ou

a busca dele). Muitas vezes aparece como um artista em seu ateliê, que cria ou vive

situações essenciais na trama a partir de seus atributos. A cozinha, como ambiente que

abrigas esses artistas, aparece constantemente. É o caso de Simplesmente Martha (Sandra

Nettelbeck, AUS/ ALE/ ITA/ CHE, 2001) e sua versão norte-americana Sem Reservas

(Scott Hicks, EUA/AUS, 2007), nos quais o romance entre o casal de chefs se desencadeia

na cozinha onde trabalham; mas o romance ocorre devido às discussões e afinidades que

eles vivem enquanto profissionais da gastronomia. O uso de metáforas com os alimentos e

receitas são freqüentes nesse grupo. É o caso de o Tempero da vida (Tassos Boulmetis,

GRE/ TUR, 2003) e Como Água para Chocolate (Alfonso Arau, MEX, 1992). Também em

Chocolate (Lasse Hallstrom, EUA/ UK, 2000)74, na animação Ratatouille (Scott Hicks,

EUA/ 2007) e em Tampopo – os brutos também comem espaguete (Juzo Itami, JPN, 1986)

circunscrevem-se ao redor da figura do cozinheiro.

- “Sentar-se à mesa”: Ocorrem em ambientes familiares e acabam por focar a

figura do cozinheiro também, mas a diferença é que o clímax, o desfecho da trama se dá a

partir do ato de sentar-se à mesa. As refeições em grupo temperadas pelo sabor dos

deliciosos pratos que são servidos reforçam os laços sociais, denotam o sentimento de

pertencimento como no emblemático A Festa de Babette (Gabriel Axel, DNK, 1987) que

mescla o prazer dos sabores da comida ao recém (re)descoberto prazer de confraternização 73 Através de pesquisa em vídeo-locadoras e consultas à mídia virtual, obtive algumas sugestões também. À

propósito, nos “blogs”, sites de cineclubes e revistas eletrônicas, inclusive trazem as receitas dos pratos preparados nos filmes, que são em grande número. Isso ajuda a entender a aceitação e aproximação da gastronomia e do cinema.

74 Neste longa-metragem a personagem de Julianne Binoche revoluciona o humor e os valores de uma comunidade baseada em um fundamentalismo moral e religioso devido às delicias da sua loja de chocolates. Como é ela quem prepara as receitas – são várias combinações com leite e cacau – o filme pode ser inserido nesse conjunto.

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com a comunidade. A representação da típica família italiana reunida pela “nona” é exibida

em Parenti é Serpenti (Mario Monicelli, ITA, 1992). Em contrapartida, compartilhar a

mesma mesa pode revelar segredos e traumas como em Comer, beber, viver (Ang Lee,

TWN, 1994)75, encerrando com a singular película A Comilança (Marco Ferreri, FRA/

ITA, 1973)76.

- Restaurante: Nesse conjunto a primazia é mostrar o ambiente e as relações sociais

que ocorrem nele, tanto dos comensais que desfrutam do estabelecimento - portanto, o ato

de sentar-se à mesa – como da equipe que trabalha no local. A totalidade do enredo pode se

passar em apenas um período do expediente, e limitar as cenas àquele espaço fechado. É o

caso de Uma receita para a máfia (Bob Giraldi, EUA, 2000) e O Jantar (Ettore Scola,

ITA, FRA, 1998). Esse tipo de filme pode abordar com maior ou menor ênfase o universo

que existe nos limites da cozinha e do salão, as relações de poder dentro dele.

Simultaneamente ou primordialmente os comensais também podem ser coadjuvantes, e

não apenas figurantes, isso quando não tem os papéis principais. O que importa é que o

cenário, o palco para as situações de clímax sejam desenvolvidas por ou no restaurante. Os

outros representantes são: O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (Peter

Greenaway, FRA/ NLD/ ING, 1989) e A Grande Noite (Campbell Scott e Stanley Tucci,

1996). Esse último retrata a saga de dois irmãos para montar e fixar um restaurante. No

primeiro, todo o enredo se desenvolve durante as refeições servidas no restaurante do

cozinheiro, que tem sua pitada de culpa no desenho dos vértices do triângulo amoroso

entre o ladrão, sua mulher e o amante.

Ainda seria possível colocar algo sobre a indústria alimentar, com os filmes que

citei no início - Super Size me e Nação Fast Food, para traçar as práticas alimentares que

mergulham em inovações tecnológicas. Ou explorar algumas obras que não tem a comida

como protagonista, mas que tem cenas interessantes com ela na trama ou alimentos bem

fotografados.77 Poderia exemplificar outras tantos filmes que abordam a comida por outro

ponto de vista, ao exemplo do trabalho da especialista em análise do discurso Maria

75 As sociabilidades em torno da mesa podem revelar também distinções culturais e de poder, regras de

etiqueta, sentimentos de alteridade ou coletividade. 76 Vale uma observação para esse último, pois aqui não há o ato de sentar-se à mesa especificamente, como

um ritual como nos outros casos, mas em qualquer local da casa e a todo o momento. Pois trata-se de uma “orgia ao paladar” que mistura o prazer da gula com o do sexo, mas que representa as relações sociais (e sexuais) em torno dos banquetes que são preparados pelos quatro amigos que resolvem passar um final de semana incomum.

77 Além de vários profissionais que encontram-se por trás das câmera, como técnico de som, de iluminação, assistente de câmera etc, esses filmes contam com a presença do food sylist: profissional encarregado de cuidar da aparência dos alimentos.

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Cecília Coelho, a qual problematiza uma série de obras nacionais a partir da associação

entre comida e privação, sexualidade, repulsa e antropofagia, desvendando uma série de

questões, inclusive sócio-econômicas, de nossa realidade.78

Certamente todas essas são considerações a se relevar e possibilidades passíveis de

serem encaradas, entretanto, além de exigir um trabalho com maior densidade no assunto,

o que pretendi por hora foi mostrar aqueles filmes, sob aquele recorte, e com aquele

enfoque apenas para apresentar alguns aspectos estéticos que os aproximam entre si e com

a realidade que os cerca. Tal aproximação entre os filmes revela algumas representações

em comum, as quais são traduzidas da realidade e para ela.

As representações, para este caso, parecem mostrar um certo “elogio” à

gastronomia (que fora mencionado no início), referindo a expressão à dita

“espetacularização” da comida, à uma considerável valorização nas artes culinárias - vista

também na boa reputação da profissão do chef e à criação de cursos e institutos que

conservam essa área, por exemplo79.

Mas é na via contrária que talvez tal “elogio” encontre mais força para ecoar. Trata-

se daquele debate acerca da padronização do gosto, da industrialização e racionalização

das maneiras de preparar e consumir os alimentos, do tradicional frente ao moderno, da

cozinha regional frente à cozinha plural, ou globalizada. Ou seja, essa série de elementos

que foram detectados podem ser vistos como um contra-ponto requerente de maior atenção

à arte culinária, mostrando aquilo que a conjuntura histórica engendrou encenado nas

grandes telas.

Então vejamos o que fica sobressalente de imediato e em comum daquelas obras

fílmicas acima: é a comida - como algo que extrapola o aspecto puramente nutricional -

aparecendo ora como fio condutor da narrativa, a partir do qual a trama se desenvolve - por

exemplo em Tampopo, em que a saga da personagem principal é descobrir a receita ideal

para o típico talharim – ora como argumento para os desfechos – como n’A Festa de

Babette.

Mas além do roteiro privilegiando o tema, outro elemento se sobressai em comum:

o som. Essencial na decupagem, a partir de 1928, com O Cantor da Jazz, o som passa a ser

industrializado. Anteriormente era a orquestra que tocava no intuito de provocar efeitos nos

78 COELHO, M. Estéticas da fome... Op cit. 79

Conforme Carlos Antunes dos Santos foram França e Itália as pioneiras para criar “as instituições da comida”, por assim dizer. Com destaque para o Instituto do Gosto, da Gastronomia e da Arte à Mesa, criado pelo Ministério da Educação francês. A Itália, por sua vez, conta com o movimento do slow-food. In: SANTOS, A Alimentação e seu lugar... Op cit.

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espectadores80. Mas a partir da sonorização, a impressão de realidade é reforçada. O som

faz parte da linguagem do cinema, intensifica sensações, se mostrando tão importante

quanto a imagem. Os ruídos naturalizam as cenas e também servem para estabelecer

ligações entre campo e fora-do-campo, ou seja, entre o que é visível no enquadramento e o

que não é, homogeneizando e ampliando a denotação do ambiente81. Isso porque pressupõe

a existência de outros elementos que não necessitam da imagem, apenas a sonorização

cumpre tal função. É nesse sentido que trouxe essas explicações para este momento,

porque os filmes sobre comida – em sua grande maioria – oferecem à audição do público o

borbulhar de frituras e os ruídos de louças e talheres. Comuns e nem sempre percebidos,

ora porque sua fonte não aparece, ora porque estamos tão envolvidos com a trama que nem

nos damos conta, mas que, pode ser entendido como uma denúncia constante da presença

da comida.

Ainda vale mencionar sobre a fotografia. Os enquadramentos em primeiro plano na

preparação das iguarias (tanto no cozinheiro como no alimento em si), além da iluminação

provocando destaque nas cores dos alimentos, ou contrastando o brilho e a incidência de

luz sobre eles com a penumbra ou cores mais escuras do cenário. Denotando a

“espetacularização” da comida pela imagem, naquele sentido comentado no início: criar

imagens sedutoras aos olhares famintos. Aproximar o espectador, dar a ele uma informação

indispensável, conforme Ismail Xavier acentua quando explica alguns elementos que o

cineasta dispõe para a “manipulação emocional”82. É verdade que esse fator não abarca a

totalidade completa dos filmes que foram servidos, mas constitui-se em uma característica

de valor simbólico expressivo.

Jean-Claude Carriére comenta dos “instrumentos de persuasão” do cinema como

emoção, sensação física de medo, repulsa, irritação, raiva, angústia.83 E ainda lembra que

há o estímulo dos sentidos da visão e audição majoritariamente. Os filmes sobre comida

mostram assim um outro sentido que é aguçado: o paladar, tendo a fome ou gula como

conseqüente “instrumento de persuasão”.

Não é à toa que se fala no surgimento de um “gênero da comida” (ou da culinária,

da gastronomia) a partir d’A Festa de Babette84. Se for traçado um recorte cronológico nos

80 SALLES, Felipe. A trilha sonora no cinema: um breve histórico. In: www.mnemocine.com.br 81

AUMONT, Op cit. p. 24-25. 82 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1984. p. 28. 83

CARRIÉRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. 84 ZIMMERMAN, S. e WEISS, K. Food in the movies. Mc Farland, 2005. p 284. Apud: COELHO.

Estéticas da fome... Op cit. p.116.

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filmes trazidos para o trabalho é a partir de 1987, que há uma ebulição no fazer (aqueles)

filmes85. Jean-Claude Bernardet explica que os gêneros cinematográficos são constituídos

a partir de uma estrutura comum, que tende a permanecer; uma “fórmula que está fazendo

sucesso”86. Ora, pois se considerarmos todos os elementos retratados à cima (roteiro, som,

fotografia, etc) que se mostraram comuns em um recorte de filmes, como uma estrutura,

podemos entender tal recorte como um gênero cinematográfico privilegiando a comida.

Através dessas considerações podemos entender o significado do cinema para a

sociedade e também, e principalmente para o caso deste trabalho, sua importância para a

historiografia. Isso ele faz revelando um diagnóstico dos costumes, dos rituais de preparo e

degustação dos alimentos, sobretudo de seus significados para o imaginário de um

determinado grupo (seja uma família ou uma comunidade) ou para um modus vivendi da

atualidade - uma percepção da História a partir das representações encenadas, que nos

colocam problemas identificados na própria realidade social.87

Entendendo o cinema como uma construção humana, pode-se verificar, então, o

significado das encenações além do filme em si. O diálogo entre a realidade que a

produziu, a obra e a sociedade que a consome. Que consome comida, diversão e arte.

85 Embora eu coloque A Comilança, de 1973 também no rol, por ele ser um verdadeiro elogio à gula e aos

banquetes. 86 BERNARDET, Jean-Claude. O que é Cinema. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Nova Cultural/

Brasiliense, 1985. p. 74 -76. Ele descreve o bangue-bangue: “os valores são os mesmos, os ambientes são quase os mesmos, a organização do enredo é semelhante: há o mocinho, o vilão (...) os atores podem mudar, mas os tipos permanecem. Variam os anéis, permanecem os dedos.” p. 76.

87 Note-se que os filmes que foram mostrados, bem como as transformações e debates em torno da questão da comida, não restritos à determinada região. Pois eles podem ser vistos como um fenômeno global (asseguradas as diferenças de cada região). Isso pode ser percebido nos filmes, cujas produções mostram variados países de origem

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3 - “ESTÔMAGO”, O FILME

O bom historiador se parece como o ogro da lenda. Onde fareja carne humana sabe que ali está sua caça.

Marc Bloch

Descrito na sinopse do site oficial como “uma fábula nada infantil sobre poder,

sexo e culinária”88, o filme narra a história de um retirante que chega na cidade grande sem

perspectivas mas que conquista, ao longo da trama, posições de prestígio por conta de suas

habilidades culinárias, que vão desde a cozinha de boteco à famosa culinária italiana. A

ascensão social do protagonista Raimundo Nonato ao longo do filme traz, então, a comida

como tema central.

Estômago foi baseado no conto “Presos pelo estômago” (Lusa Silvestre), do qual

foi adaptado o roteiro para um longa-metragem. O título impactante tem ligação com o

chocante desfecho, além de expressar que algumas contradições sociais que vão sendo

digeridas pelo protagonista ao longo da trama.

Além da temática da comida, esse filme é uma produção regional paranaense que se

expressa no âmbito nacional no cinema da “Retomada”. O primeiro longa-metragem do

diretor curitibano Marcos Jorge é uma co-produção entre Brasil e Itália, que foi escrito,

dirigido e realizado por brasileiros e contou com a finalização italiana. Sua estréia foi

datada em 2007, no Festival do Rio e sua exibição atraiu quase 100 mil espectadores nos

cinemas brasileiros89, além de ter conquistado, até o presente momento 18 prêmios (sendo

13 internacionais). Temos então uma co-produção recente e com boa repercussão no

mercado, filmada e dirigida na capital paranaense, cujo tema principal é a comida. Daí

surgem algumas questões: qual a razão de seu sucesso de vendas? Seria fruto de uma

satisfatória produção/ distribuição ou é devido à universalidade do tema da comida? E

como situá-lo na indústria cinematográfica brasileira? Qual o sentido do filme e para

quem? Ou ainda, no âmbito da cultura alimentar, como ela se revela? É cultura italiana?

Brasileira? Ambas as duas? Ou a abrangência é universal?

Sendo assim, antes de nos aprofundarmos nas questões pertinentes ao filme e

88 “Na vida há os que devoram e os que são devorados. Raimundo Nonato, nosso protagonista, descobre um

caminho à parte: ele cozinha. E é nas cozinhas de um boteco, de um restaurante italiano e de uma prisão - o que ele fez para acabar ali? - que Nonato vive sua intrigante história. E também aprende as regras da sociedade dos que devoram ou são devorados. Regras que ele usa a seu favor, porque mesmo os cozinheiros têm direito a comer sua parte - e eles sabem, mais do que ninguém, qual é a parte melhor. Uma fábula nada infantil sobre o poder, o sexo e a culinária.” Retirado de: www.estomagoofilme.com.br, nov/ 2008. Ver ficha técnica em anexo (Anexo 1).

89 Noticiado em 30/10/2008, no site www.portalimprensa.com.br

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considerando que esse mesmo é a fonte histórica, é oportuno esclarecer a metodologia aqui

utilizada90. Tal metodologia tem seu alicerce nas proposições de Marc Ferro,

principalmente no que diz respeito ao imaginário, uma vez que o cinema é uma forma de

representação da realidade. Por isso ela intenta, grosso modo, estabelecer a relação

sociedade/ filme. Mas para encorpar e validar essa relação são necessários alguns quesitos

mais específicos, que se resumem nos seguintes: a relação do filme com a sociedade que o

produz e consome - abarcando as circunstâncias de produção, distribuição, exibição e

também recepção, por meio dos significados que mostrem sua eficácia comercial e cultural

- ; a relação do autor com a obra (sua formação e atuação, percebendo-o como um sujeito

munido de ideologias, perspectivas, visão de mundo, etc.) e considerando sua intenção para

com o espectador; e, por fim, a interpretação da estética e da linguagem cinematográfica

oferecidas pelo próprio filme e que lhe conferem sentido. No entanto e não menos

importante, deve-se ter em mente que, para a análise fílmica não há uma “fórmula

compacta e eficaz”, pois “as questões que presidem o seu exame devem emergir de sua

própria análise”91, cada obra possui um movimento, um discurso próprio e, portanto, suas

próprias questões advindas daí.

Quanto à linguagem cinematográfica, ela é uma combinação dos movimentos e

enquadramentos da câmera com outros elementos como som, iluminação, cenário,

interpretação dos atores, etc., que servem para ocultar os aspectos artificiais, reforçando a

“impressão de realidade”92, tão cara ao cinema. Essas combinações podem ser entendidas

como o meio pelo qual o diretor pretende passar sua mensagem ao público, auxiliado por

uma equipe e munido de recursos tecnológicos e financeiros. Desta maneira, o cinema

pode ser entendido como uma “arte em movimento”, com uma linguagem própria, mas em

constante mudança pelas variações tecnológicas93. Pretende-se pois, perceber o cinema

como uma “arte em movimento”, mas uma arte de consumo simbólico, que se estrutura em

nível industrial, mercadológico e institucional, uma vez que constitui um dos principais

pilares da economia contemporânea94.

Vale lembrar ainda, uma vez que se trata de um filme ficcional, que essas obras são

imbuídas do mesmo valor que os documentários e cinejornais, no sentido de sua validade

enquanto documento histórico. Esses últimos, por terem um compromisso de mostrar a

90 Essa metodologia, mostrada no início, tem base em MORETTIN, KORNIS, e OLIVEIRA, Op cit. 91 MORETTIN, Op cit. p. 39 92 BERNARDET. O que é cinema. Op cit. p. 31-48. 93 CARRIÉRE, Op cit. p. 22. 94 ORTIZ e BUENO. Cultura audiovisual... Op cit.

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realidade, dar informações, podem aparentar maior verossimelhança. De fato é esse o

diferencial dos filmes não-ficcionais. Mas note-se que eles são produzidos de acordo com o

imaginário de seus autores, de suas sociedades, de suas épocas. São informações que

devem ser filtradas. Igualmente - através do imaginário - são produzidos os filmes

ficcionais. Ora, mas se o imaginário constitui “um dos motores da atividade humana” e é a

partir dele que se configura o sentido dado uma obra cinematográfica, bem como a

recepção dela, podemos contar com filme (ficcional ou não) enquanto instrumento para

investigar a realidade histórica. Além disso, sobre a obra de ficção, “devido à sua maior

divulgação e circulação, é possível identificar com maior clareza o diálogo entre filme e

sociedade por meio da crítica e da recepção do público”95.

Dada aquela ótica contemporânea, somada às considerações acima sobre a

metodologia, voltemos ao filme. Todavia, para garantir maior inteligibilidade ao texto, faz-

se necessária uma subdivisão para elencar alguns temas que me chamaram atenção. O

principal é a relação do filme com a comida, já que é dela o papel principal na trama, sendo

Estômago, por sua vez, integrante do que podemos chamar de “gênero da comida”.

Mas isso ficará por último, até porque, é contundente, na análise, uma

contextualização à priori. Mesmo que tenha sido dedicado um capítulo96 exclusivo à

algumas características do cinema brasileiro contemporâneo, aqui serão enfatizadas

aquelas que Estômago oferece para pensar. Então seguem algumas considerações sobre

suas condições de produção, distribuição e exibição.

3.1 – INSERÇÃO NA INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA

O longa-metragem Estômago foi forjado em um acordo de co-produção brasileiro-

itailiana e com a colaboração do Prêmio de Produção de Filmes de Baixo Orçamento, do

Ministério da Cultura, que recompensou o projeto no valor de R$ 1 milhão. Esses fatores

espelham duas características da cinematografia atual, nomeada de cinema da “Retomada”:

a co-produção e a intervenção indireta do Estado.

As produções da chamada “Retomada” iniciam-se em 1993, quando o Estado

restabelece seu vínculo com os cineastas97 a partir da Lei do Audiovisual, ancorada à Lei

95 MORETTIN, Op cit, p. 23 96 Ver Capítulo 1. 97 Esse vínculo tinha o Estado como provedor e executor das tarefas para a indústria cinematográfica

nacional, através da Embrafilme. Mas em fins da década de oitenta, esse sistema entrou em crise culminando com a extinção daquela empresa em 1990. A partir daí o tipo de administração assume-se

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Rouanet. Em 2001 é criada a Agência Nacional de Cinema (Ancine), responsável pelo

fomento e regulação da atividade e, em 2003, ela é vinculada ao Ministério da Cultura. Isso

quer dizer que as produções brasileiras obtêm o respaldo dessas instituições através de

investimentos de empresas privadas por isenção fiscal e que contam com outros

mecanismos como a garantia da participação em festivais, o estímulo e inserção da

produção regional, a participação em acordos de co-produção entre outras tarefas que são

descritas no regimento interno daquela agência reguladora98. Estômago é patrocinado pela

Petrobrás, Ancine, Secretaria do Audiovisual, e Ministério da Cultura99.

A co-produção foi uma estratégia à qual a produtora Claudia da Natividade recorreu

para utilizar pela primeira vez um acordo existente desde 1970 entre Brasil e Itália. Isso foi

fundamental para viabilizar o projeto. As filmagens em Curitiba garantiam baixo custo e a

finalização italiana, qualidade técnica. Vale lembrar que tanto o diretor Marcos Jorge100

como a referida produtora101 tiveram especialização e atuação profissionais na Itália

durante cerca de uma década. Isto demonstra que os cineastas dispunham de familiaridade

com os mecanismos de produção do cinema italiano (e da própria existência do acordo e

possibilidade de executá-lo).

Em entrevista estampada no blog de co-produção do Ministério da Cultura, datada

de setembro de 2008, a produtora do longa aponta vantagens e desvantagens desse

mecanismo. Os obstáculos estão “(...) nas dificuldades burocráticas no âmbito da Receita

Federal e nos problemas enfrentados nas transações financeiras internacionais (...) apesar

do cinema italiano ter sua tradição, a legislação italiana é mais complexa e obsoleta que a

brasileira”. Já “entre os ganhos, estão a obtenção do Prêmio de Qualidade na Itália e a

distribuição em mais de 15 países, entre eles Japão, Turquia, Austrália, Holanda e Bélgica.

como indireta, nos moldes neoliberais.

98 Ver Capítulo 2 “Dos objetivos e Competências” da Ancine. Lá está expresso o viés indireto nas atribuições todas no sentido de “promover”, “garantir”, “fomentar”, “estimular”, “regular”, “gerir”. In: www.ancine.gov.br

99 Informações contidas no site: Retirado de: www.estomagoofilme.com.br, nov/ 2008 100 “Formou-se em Jornalismo no Brasil em 1988. Em 1989-90 estudou cinema na Itália, com ênfase em

linguagem cinematográfica, roteiro e direção de atores. Por alguns anos trabalhou em Roma como assistente de direção e montador, em filmes de longa-metragem e documentários para a televisão. Em 1995 transferiu-se para Milão, onde passou a roteirizar e dirigir profissionalmente. Depois de mais de dez anos vivendo no exterior, no ano de 2001 retornou ao Brasil, onde criou, com Cláudia da Natividade, a produtora Zencrane Filmes.” Retirado de: www.estomagoofilme.com.br, nov/ 2008.

101 “Estudou Filosofia e Sociologia Política. Foi pesquisadora bolsista do CNPQ na Universidade Federal do Paraná. No início dos anos 90 trabalhou como coordenadora de lançamento de produtos para diversas empresas no Brasil. Em 1993 transferiu-se para a Itália, onde especializou-se na área de Cooperação Internacional e trabalhou com o desenvolvimento de projetos sociais em organizações não-governamentais e multilaterais. Voltou ao Brasil no ano de 2000 quando, com Marcos Jorge, criou a Zencrane Filmes. Desde então, produziu dois curtas, dois longas e um livro de arte, levando a Zencrane a se transformar também em Editora”. Retirado de: www.estomagoofilme.com.br, nov/ 2008.

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O filme também foi vendido ao canal HBO” 102.

O produtor italiano Fabrizio Donvito, da Indiana Production Company (a outra

produtora do filme, ao lado da brasileira Zencrane), lembra do passe-livre que Estômago

desfruta com sua “dupla-nacionalidade”. A facilidade da União Européia para com a

penetração de seus produtos é um álibi para o longa não só ser comercializado como

também participar dos Festivais. Além disso, o produtor atribui vantagens ao cinema

italiano também, no esquema de co-produção. Considerado um mercado saturado, ele

recebe inovações no seu modo de produção103.

Além do acordo com a Itália, o Brasil desfruta ainda parcerias com países como

Portugal, Canadá e França e o Acordo Latino-americano que abrange 49% das

produções104, revelando a atuação do MERCOSUL sendo estendido ao nível da indústria

cinematográfica também, reforçando aquela idéia da cultura como pilar da economia. Aí, a

parceria acaba abrangendo a identidade latino-americana, uma vez que o mercado é

cultural.

As primeiras conclusões rumam no sentido da atuação estatal. Percebe-se que ela

intenta garantir a afirmação da cultura nacional em meio à realidade do espaço cultural

globalizado105, mas que é dependente de parcerias internacionais. O acordo com a Itália

garantindo qualidade técnica e inserção no mercado internacional mostra a co-produção

como uma via rentável. Ainda que de maneira problemática, pode-se constatar uma

considerável efervescência no setor cinematográfico nacional – característica da

“Retomada”.106

No plano regional, o Paraná caracteriza-se por uma identidade voltada para curtas-

metragens e documentários107. O próprio Marcos Jorge carrega em sua bagagem, aquelas

categorias e ainda de vídeos publicitários. Além dos prêmios recebidos pelo seu primeiro

longa-metragem, ele recebeu cerca de 50 prêmios nacionais internacionais por aqueles

trabalhos, além da participação em Festivais. O Encontro e Infinitamente Maio são

exemplos de seus curtas. O segundo longa-metragem Corpos Celestes em parceria com

Fernando Severo está para ser lançado. A relevante expressão e reputação do longa

Estômago no mercado, mostra que ele é uma exceção no escasso ranking de produções 102 Retirado de: www.blogs.cultura.gov.br/co-producao, nov/2008. 103 Em entrevista para o Estado de São Paulo. 03 de setembro de 2007. 104 Conforme gráfico apresentado no site da Ancine: www.ancine.gov.br 105 ORTIZ e BUENO. Op cit. Ver também CASTELLS, Manuel. A sociedade das redes. São Paulo, Paz e

Terra, 2000. 106 Tal efervescência é detectada ainda em outras obras de boa repercussão como Tropa de Elite, Cidade de

Deus ou Se eu fosse você. 107 ALVETTI. Op cit.

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regionais, que tem Rio de Janeiro e São Paulo como pólos majoritários, senão

dominantes.108

Existem, porém, alguns outros elementos indicativos de uma “nacionalidade” e

contexto, que o autor pincela e que merecem ser comentados antes de mostrar como a

comida aparece enquanto prato principal para este filme.

3.2 – CONJUNTURA HISTÓRICA: REALISMO OU REPRESENTAÇÃO?

Com pitadas de crítica social, mas que não redundam na problematização de

questões sócio-econômicas brasileiras, o longa-metragem tempera a trama com

personagens, cenários e situações que insinuam aos olhos atentos é uma noção de contexto,

uma tímida aproximação, tanto com a realidade nacional como com outras representações

cinematográficas brasileiras. Com exceção à temática da comida que ficará para exame

posterior, pretende-se explorar aquilo que o filme por si só pode representar da sociedade

na qual ele foi produzido. Para isso: “(..) evitamos o emprego da História como pano de

fundo, na medida em que o filme não está a iluminar a bibliografia selecionada, ao mesmo

tempo em que não isolamos a obra de seu contexto, pois partimos das perguntas postas

pela obra para interrogá-lo.”109

A narrativa do longa Estômago é não-linear e intercala presente (cadeia) e passado

(boteco/restaurante). Mostrando, ao final, o motivo pelo qual Nonato foi parar lá. O

sistema carcerário surge então como um indicativo de contexto. O cenário é a cela cheia,

típica super-lotação, denunciando tal sistema. Isso aumenta a proximidade com o real sem

ser motivo de debate. A locação utilizada para as filmagens foi a cela da penitenciária do

Ahú, a mais famosa de Curitiba, que estava desativada no período. Para intensificar o tom

de “realismo” pretendido pelo diretor, além dos atores utilizarem os pertences deixados

pelos presos na cela, a equipe conta com a presença de Luís Mendes Júnior para instruir

sobre o verdadeiro estilo de vida na cela. Ele passou 31 anos preso e saiu como escritor,

podendo auxiliar nas dicas de comportamento, inclusive do linguajar nada polido

dialogado dentro do cárcere110.

O mundo da prostituição também é vislumbrado através da personagem Iria, que se

apaixonará pelas coxinhas que o cozinheiro prepara. Eis um outro elemento familiar do

108 CESÁRIO. Op cit. 109 MORETTIN, Op cit. p. 39 110 www.estomagoofilme.com.br, nov/ 2008.

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retrato nacional, mas que não é focado como denúncia social. A intenção do autor é que

seja uma história realista, mas contada em tom fabuloso, podendo acontecer com qualquer

pessoa, porque o que se sobressai, repito, é a maneira como o cozinheiro consegue

sobreviver e até ascender na sociedade em que vive. O tom fabuloso é mostrado no

sarcasmo e na simplicidade da narrativa e das personagens. Essas são mostradas como

pessoas multifacetadas, longe dos clichês da prostituta deprimida, ou do nordestino

ingênuo111.

A presença da culinária italiana denuncia a difusão de uma gastronomia tipicamente

regional (a italiana) e que ganha a definição de internacional quando praticada fora de seu

local de origem. A valorização e procura por sabores, texturas e temperos diferenciados e a

profusão de restaurantes que se auto-denominam “cozinha internacional” se mostram como

fenômenos relativamente recentes, suscitando uma série de estudos a respeito de questões

como composição e recomposição de identidades, culturas locais e regionais, memória

gustativa, etc. Tais discussões acerca da cozinha regional, internacional ou da cozinha

“fusão” - que congrega alimentos e elementos de regiões diferentes - representam a

“expressão destes tempos de globalização ou mundialização, evidenciando a alimentação

como cristalizadora de novas representações e definidora de determinados alimentos e

técnicas de fusão como emblemáticos”112.

Portanto é a figura do nordestino retirante que mais chama atenção, a meu ver.

Ressalto que as interpretações apresentadas buscam notar a relação do filme com a

sociedade, tanto do ponto de vista das representações da realidade codificadas na obra,

quanto do seu significado para o espectador. Tarefa essa que cabe ao historiador captar do

imaginário, percebendo na linguagem cinematográfica a cultura, os valores, utopias, a

operação na memória coletiva denotando pertencimento (ou não) 113. Pois:

“aquilo que é mostrado nos filmes, via de regra, não só tem que fazer sentido para a audiência dos cinemas, como também atender a determinados anseios sociais e necessidades psicológicas da coletividade no interior da qual foi realizado, sob pena de vir a se constituir num fracasso comercial”114.

O público brasileiro pode identificar sua realidade nas telas a partir destes

elementos exibidos, mas em tom de fábula.

Rapidamente, menciono o êxodo rural, como fenômeno do século XX e, portanto,

111 As intenções do autor estão colocadas no setor de entrevistas do site do filme: Retirado de:

www.estomagoofilme.com.br, nov/ 2008 112 SANTOS. A Alimentação moderna: fusão... 113 OLIVEIRA, Op cit. p. 7. 114 Id.

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indicativo de contexto. Isso é perceptível já no início do filme quando, à medida em que os

créditos aparecem, cenas filmadas em São Paulo e Curitiba (não especificando nenhuma

das duas cidades) situam o retirante na metrópole genérica, onde vale a metáfora: “há os

que devoram e há os que são devorados”. Mas nos jogos sociais Raimundo Nonato mostra

que ele é quem não será devorado. No máximo seus quitutes.

A figura do nordestino, detectada pelo sotaque e no nome do protagonista tem uma

conotação peculiar aqui. Nele é possível reconhecer alguns elementos citados por Ismail

Xavier115, ao apontar a existência da “figura do ressentimento” na cinematografia brasileira

atual. Para ele, essa expressão designa uma espécie de tema recorrente nos principais

filmes produzidos no país desde os anos 2000 e condizentes com a situação política do

mesmo período (reeleição do presidente Lula). Ou seja, os personagens principais desses

filmes são basicamente dois tipos de sujeitos: o “pobre pragmático” e o sujeito da “classe

média ressentida”, que Xavier aponta relacionando ao sentimento provocado pela eleição

do presidente Lula. Podem ser classificados como pertencentes ao universo do “pobre

pragmático” os filmes Cidade de Deus (2002, de Fernando Meirelles e Katia Lund), O

homem que copiava (2003, de Jorge Furtado) e Madame Satã (2002, de Karim Aïnouz).

São exemplos de filmes pós-2000 que encabeçam a questão do ressentimento em relação à

vida e a busca pela ascensão social por meio de diversas práticas.

É nesta perspectiva que o filme Estômago se insere. O “pobre” Raimundo Nonato

era ninguém. Exilado de sua terra natal, parte à procura de melhores condições de vida no

sul/sudeste do país. Até aqui a temática é velha conhecida dos enredos nacionais, mas a

diferença está na crítica que Estômago faz. Ao invés de demonstrar fraqueza e sofrimento

ou ter sua força e auto-estima sufocados, Raimundo Nonato percebe que o talento nato

para a gastronomia pode tirá-lo da condição de “pobre-coitado”. É a pureza com pitadas de

malandragem. É o conhecido enredo nacional, mas camuflado.

Quanto ao espaço, não há menção à lugares específicos além da metrópole genérica

no início do filme, da cozinha e da prisão. Mesmo tendo sido filmado em Curitiba, não há

evidências explícitas da cidade, tampouco de São Paulo. Não foi a intenção do diretor fazê-

lo.116 Os demais espaços servem como representativo da ascensão social: do quartinho

pequeno, Nonato vai para uma pensão; da cozinha amadora do boteco ele passa à cozinha

internacional de um restaurante refinado. Na prisão, vai do cantinho no chão ao topo do

115 ARANTES, Silvana. Espelho do País. Folha de São Paulo, Ilustrada, 03 de fevereiro de 2007. 116 Na verdade o motivo principal pela filmagem em Curitiba foi o baixo custo. Retirado de:

www.estomagoofilme.com.br, nov/ 2008.

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beliche e deixa de cozinhar na cela para cozinhar na cozinha do presídio.

Mas qual é o motivo dessa ascensão que leva o mérito de fio condutor da narrativa?

Ora, Raimundo Nonato cozinha. Esse é seu dom e passaporte para os espaços representativos de maior poder: a comida -

lembrando que aqui este conceito é mais abrangente que sua função nutricional, constituindo

um ato social, um esquema de valores e sensibilidades, uma cultura, uma categoria

histórica.

Se por um lado os elementos acima podem insinuar (note que os elementos não

estão explícitos) a conjuntura histórica contemporânea na qual ele foi produzido e que ele

deduz ao entendimento, tangendo algumas características de uma História do Tempo

Presente e alguns indicativos de pertencimentos nacional da obra, por outro, Estômago

levanta uma questão universal através do tema da comida.

3.3 – A COMIDA COMO PROTAGONISTA

O longa-metragem de Marcos Jorge não pertence à categoria dos chamados “filmes

históricos”, tampouco tem como foco principal as mazelas sociais brasileiras, que

renderam alguns prêmios a outras produções nacionais117. Trata-se de uma ficção cuja

peculiaridade temática reside na sua trama central: a ascensão social de Raimundo Nonato

através de seu recém-descoberto talento gastronômico. Apresenta deste modo, a comida

como protagonista da obra118, como um esquema alegórico de representação de poder.

Suas habilidades lhe rendem um emprego e uma paixão, servindo de base para suas

relações sociais. Parte do filme se passa na cela da penitenciária que detém Nonato e lá,

também, ele conquista o respeito e uma posição de destaque entre os presos por

transformar (quase que milagrosamente) aquilo que recebiam como alimento em

verdadeiros quitutes. Nesse sentido o filme traz, além da comida, o poder e o sexo como

temas universais. Porém, o que fica evidente durante a narrativa é que os dois últimos são

abordados na relação que estabelecem com a comida. Pois Nonato conquista a garota pelo

sabor das coxinhas que prepara, e é a delicia de suas iguarias que lhe confere promoção na

hierarquia da cela ou nos ambientes de trabalho.

Mas como o autor utiliza a linguagem cinematográfica de maneira a colocá-la como

protagonista? E para que ele faz isso? Será esta a “propaganda” contida no próprio filme e

que atrai o público? Talvez uma inserção do cinema brasileiro no chamado “gênero da 117 Ver HAMBURGER, Esther. Violência e pobreza no cinema brasileiro recente: reflexões sobre a idéia de

espetáculo. Novos Estudos – CEBRAP, n 78, p. 1113-128, jul/ 2007. 118 Termo utilizado pelo jornalista Vítor Ducrot. In: DUCROT. Op cit.

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comida”?

Neste momento vale voltar ao fator metodológico que prima pela investigação do

autor. Ora, a escolha do tema pode ser explicada pela fala do próprio Marcos Jorge:

“Eu adoro cozinhar. Aprendi a fazê-lo na Itália, onde vivi toda a década de 90. Lá a culinária é coisa séria e bastante difundida entre a população: praticamente não há italiano que não cozinhe. Lá aprendi a respeitar o momento das refeições como algo sacro, um momento de encontro privilegiado entre os comensais. Do ponto de vista artístico, acredito profundamente em procurar a verdade nos aspectos mais simples da existência humana, nos aspectos mais básicos, essenciais e ancestrais, entre os quais elenco entre os primeiros lugares a alimentação. A partir desta constatação, fazer um filme sobre comida era quase uma necessidade para mim. Desde os primeiros encontros com o roteirista Lusa Silvestre, estabelecemos que Estômago seria uma ode à gastronomia, mas não àquela refinada e culta, típica dos filmes internacionais sobre o assunto: o que nos interessava era a “baixa-gastronomia”, a culinária de boteco.”119

Aí está marcada sua intenção na escolha do tema. Certamente sua atuação na Itália

e o conseqüente gosto pela gastronomia reforçam as influências do diretor para com a

gastronomia. Pois a Itália, ao lado da França são as cozinhas que se impõem na Europa.120

A preferência pela (baixa) gastronomia é percebida em vários aspectos que se

seguirão aqui para mostrar a presença da comida. O Roteiro é um deles. Já mencionei

algumas vezes que a trama é circunscrita na ascensão do personagem de João Miguel, por

ele se revelar um cozinheiro de mão cheia. Mas isso ocorre porque a maioria dos “pontos

de virada”, das cenas que desencadeiam as principais ações advêm do enfoque (não

necessariamente fotográfico) na comida.

A narrativa não-linear revela o clímax do longa somente no final do filme, quando

termina a justaposição de cenas e presente e passado se encontram e se explicam. É quando

o espectador descobre o motivo pelo qual Alecrim (pra usar seu apelido na prisão) fora

detido. Além do motivo também ser fruto “da comida”, antes de se chegar aí, os momentos

que marcam a ascensão de Nonato - ora no mundo trabalho, ora na prisão -, antes de

mostrar sua queda, são aqueles desencadeados pela comida preparada pelo “artista”. Aí cito

Victor Ducrot121, quando afirma que o cozinheiro aparece com atributos de deus nos filmes

cuja protagonista é a comida. Isso ocorre pela sua capacidade de criar um universo

contemplativo, provocar efeitos, criar mundos diferentes, tais como Raimundo Nonato faz.

A escolha das personagens e do atores constitui-se, então, outro elemento

119 Retirado de: www.estomagoofilme.com.br, nov/ 2008. 120 PILLA, Maria Cecília B. A. Gosto e Deleite: construção e sentido de um menu elegante. História:

Questões & Debates, Curitiba, ano 22, n 42, p.53-69, jan/ jun, 2005. p. 59 121

DUCROT. Op cit. p. 7

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fundamental. Pois, além do cozinheiro existe a prostituta glutona, vivida pela atriz

curitibana Fabíula Nascimento. Carlo Briani, um ator italiano radicado no Brasil, interpreta

o imigrante e dono do restaurante Giovanni - nome também típico, ao lado de Raimundo

Nonato. Babu Santana (o Bujiú, “chefão” da cela) é integrante do grupo “Nós no Morro” e

estreou em Cidade de Deus.

A preparação dos atores acentua a importância de seus papéis e a intenção do

diretor nos personagens, além da interpretação. João Miguel, por exemplo, conta que para

interpretar o cozinheiro Raimundo Nonato fez alguns cursos e estagiou em um restaurante

italiano e no boteco que foi cenário do filme. Fabíula Nascimento, por sua vez, teve que

engordar seis quilos para interpretar a gulosa Iria.

É válido lembrar que para este filme, a equipe técnica contou com dois consultores

de comportamento. Eles fazem parte da divisão do trabalho que abarca uma série de

profissionais no ambiente técnico fora de quadro (que não é perceptível ao espectador no

filme). Luís Mendes Júnior passou 31 anos preso e saiu como escritor, atribuiu ao ambiente

da cela maior realismo. A consultoria de comportamento na cozinha ficou à cargo de

Geraldine Miraglia:

“Chef do Oli Gastronomia, de Curitiba, eleito pela revista Gula o melhor bistrô do Paraná. Escolhida também a melhor chef do estado na mesma eleição, Geraldine foi chamada por Marcos Jorge para ensinar os detalhes de cozinha a João Miguel e Carlo Braini (que interpreta Giovanni, o dono do restaurante), de forma que suas atuações fossem as mais convincentes possíveis. Ela ensinou o manejo do acendedor de fogão, a organização do balde de ingredientes, a forma com que os utensílios de cozinha devem ser segurados e até mesmo como os pratos devem ser decorados. “Ainda dei alguns palpites no texto, fui ao mercado para mostrar como era a aquisição de produtos e emprestei as minhas panelas para a filmagem”, conta a chef. João passou um bom tempo cozinhando de verdade no Oli – um dia, Geraldine incluiu no menu o macarrão à putanesca só para que ele pudesse treinar melhor suas habilidades.”122

A gulosa prostituta Iria simboliza a aproximação entre comida e sexo. Ela se

apaixona pelas coxinhas que Raimundo prepara no bar do seu Zulmiro. Um boteco popular

que vende ovos cor-de-rosa e esconde uma imunda cozinha é o primeiro trabalho que o

retirante consegue, em troca de sustento e de um lugar pra dormir. Lá ele descobre seu dom

culinário e conquista Íria. Há uma aproximação, da parte dela entre o prazer da gula e o

prazer sexual. Henrique Carneiro assinala que sexo e comida são “fontes dos mais intensos

prazeres carnais”123, instintos humanos. Não é à toa que o verbo comer possui duplo

122 Retirado de: www.estomagoofilme.com.br, nov/ 2008 123 CARNEIRO, Henrique. Comida e Sociedade: significados sociais na história da alimentação. História:

Questões & Debates. Curitiba, nº 42, ano 22, p. 71 -80, jan/ jun , 2005.

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sentido, lembra ele.

Ao longo do envolvimento entre os dois, a comida sempre está presente. Para

mostrar tal aproximação, existe uma cena emblemática. Um plano-sequência no qual os

dois encontram-se num quarto em uma cena atípica de sexo. Aí a iluminação é mais quente

(tom mais avermelhado). A câmera inicia a filmagem pelo teto, num travelling vertical que

desce para o dorso nu de Nonato ao som dos gemidos emitidos pelos dois ao longo da

cena. Logo abaixo aparece Iria, deitada de bruços, mas a sequência só termina no prato de

macarrão à putanesca que está sendo deliciado pela garota.

A cena acima descrita explora, portanto, muito bem a relação do prazer da gula com

o do sexo. Tal aproximação também é observada na tragicomédia A Comilança (Marco

Ferreri, ITA, 1973), uma verdadeira orgia ao paladar.

A preferência do diretor pela “culinária de boteco”, ou “baixa-gastronomia”, é

notável na cena em que Nonato inicia-se enquanto cozinheiro, quando começa a trabalhar

no boteco que vende ovos cor-de-rosa. Nesse momento o preparo das coxinhas e pastéis é

bem iluminado e filmado em primeiro plano (na comida), aproximando o expectador

daquele ritual. O tempo da cena é vagaroso, o que dá a impressão de que a câmera-lenta foi

utilizada para prender a atenção do público, que pode flagrar as unhas sujas do cozinheiro e

a presença de insetos no local. A beleza desta cena representa uma espécie de cerimonial

gastronômico, no qual o “pobre-coitado” se torna cozinheiro.

Falando em insetos, eles serão os ingredientes principais de um prato que Nonato

prepara na cela: a farofa de formigas, filmada também com o enquadramento no preparo

(primeiro plano). Essa estratégia de decupagem124 aproximando o enquadramento na

comida segue várias vezes ao longo do filme. Essa escolha de planos parece revelar o ode à

gastronomia, pretendido pelo diretor, que acaba por provocar o paladar do espectador.

Ismail Xavier explica que “o uso do primeiro plano (..) é uma necessidade denotativa – dar

uma informação indispensável para o andamento da narrativa”125. As outras cenas, em sua

grande maioria, ocorrem em plano médio ou americano – no médio a câmera mostra o

conjunto de elementos envolvidos na ação, usado principalmente em interiores, e no plano

americano as figuras humanas são mostradas até a cintura, mais próximas à câmera126. É

uma narrativa mais próxima, insinuando ser mais íntima e corriqueira. Não existem

“planos gerais”, exceto no início do filme, quando o personagem chega na cidade.

124 Decompor em planos. Mostrar um segmento da imagem recortado sob determinado ângulo e distância

(ponto de vista). In: XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico... Op cit. p, 19 125 Ibid. p. 23. 126 Ibid. p. 19.

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Quanto à iluminação, ela aparece mais clara nas cenas da cozinha do restaurante

italiano, quando o nordestino aprende a tratar a comida como obra de arte e nas gravações

feitas no Mercado Municipal de Curitiba, onde Nonato recebe os ensinamentos de

Giovanni. Aí ocorre um dos principais diálogos do filme, quando Nonato aprende sobre a

qualidade dos cortes da carne, dentre os quais “o filé mignon está para a carne assim como

a bunda está para mulher”. Ainda pode-se notar a iluminação quando Nonato usa a cozinha

do presídio porque fora requisitado para preparar um banquete de recepção à Etecétera (um

bandido importante que deve ser conquistado). Iluminados momentos em que ele se realiza

enquanto gourmet.

A trama toda pode ser entendida como uma montagem paralela, à pedido do roteiro.

Ismail Xavier explica este recurso como uma seqüência de planos alternados, uma

sucessão descontínua de imagens que dá a entender um “enquanto isso”, em determinado

momento do filme. Em Estômago, esta sobreposição de imagens descontínuas serve para

explicar o presente em função do passado. Mas vale a explicação dele, uma vez que esses

planos, em espaços temporais diferentes, são muito bem combinados, garantindo

inteligibilidade ao processo narrativo do desfecho (a importância da montagem):

“(...) isto constitui uma garantia para que o conjunto seja percebido como um universo contínuo em movimento, em relação ao qual nos são fornecidos alguns momentos decisivos. Determinadas relações lógicas, presas ao desenvolvimento dos fatos, e uma continuidade de interesse no nível psicológico conferem coesão ao conjunto, estabelecendo a unidade desejada”127.

A coesão está quando o espectador descobre o motivo pelo qual Nonato foi preso: o

momento em que ele entra no restaurante e flagra sua noiva Iria numa refeição muito

íntima com Giovanni. Isso acomete o protagonista de uma raiva tamanha que sua primeira

reação é abrir e tomar um vinho especial que seu padrão lhe confidenciou estar guardando

à anos. Esta cena é mostrada em justaposição com o final do filme, no qual é revelada a

ação que fez o personagem atingir o mais alto nível na hierarquia da cela no presídio,

representado pela conquista do topo do beliche da detenção128. As duas cenas das tais

revelações possuem um motivo desencadeador: a arte de cozinhar. O cenário do restaurante

volta, iniciada num close na frigideira em que Nonato frita um “filé mignon” muito

peculiar. O plano abre e a câmera subjetiva (visão do espectador) ruma até o quarto dos

127 Ibid.. p. 23 128 A cela aparece superlotada (bem próximo do real). De um cantinho no chão, ele ganha espaço nos

colchões. Daí ruma para o posto no primeiro andar do beliche, porque transforma a comida dada aos presos, em quitutes apreciados. Pelo mesmo motivo sobe ao segundo andar do beliche e, por fim, consegue o topo.

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amantes para mostrar-nos o motivo pelo qual Raimundo foi preso: vingança.129

Outrora inocente e submisso, Nonato se revela um líder com segurança inabalável

ao preparar o banquete, inclusive num último prato que somente Bujiú tem estômago

tamanho pra saborear. Então Alecrim trapaceia seu líder e o coloca fora de cena. Alcança

agora o local mais alto do beliche, antes dormitório de Bujiú. Essa cena se dá num

travelling vertical, de baixo para cima, enfatizando a ascensão e finalizando a narração.

O filme termina e algumas características permanecem para reflexão. A primeira

delas é que, declaradamente, o diretor Marcos Jorge mostrou dar privilégio à temática da

comida. Isto pode ser contemplado tanto nas falas do diretor quanto nos levantamentos

acerca da linguagem cinematográfica.

Antes das prováveis conclusões, vale colocar ainda uma observação. É que o

alimento se constitui como categoria simbólica também, e em Estômago é possível pensar

tal categoria a partir do dito “peculiar filé mignon” das últimas cenas:

“Um modo de enxergar a carne possui forte conotação sexual, devido à continuidade entre carne animal e carne humana. A carne pode despertar apetite ou excitação, mas continua sendo carne. Para Fischler também existe a idéia de que um dos sexos é predador. E o caçador, neste caso, é o macho, o homem. A linguagem mostra o quão profundamente essa idéia está enraizada em nosso modo de pensar. As mulheres podem ser vistas como “gostosas”, como algo que dá vontade de comer. Nos casos mais extremos o desejo sexual pode ser impelido ao limite. Foi o caso de um japonês, num famoso caso no Japão, que desejava tanto sua namorada a tal ponto que a comeu.”130

Ora, essa alegoria um tanto indigesta e antropofágica lembra também a relação de

poder. Uma conotação na qual tanto, ou mais que o desejo sexual, está o instinto humano

em busca de força, de poder - diante de uma situação de desolação, no caso do nosso

protagonista. Aí está, portanto, a carne simbolizando o poder131.

Além dessa menção, existem alguns alimentos que são colocados. É o caso das

famosas coxinhas que faziam sucesso no beteco do seu Zulmiro (principalmente com Íria),

bem como o macarrão à putanesca. Mas não há um enfoque significativo, que pretenda

eleger e elogiar um prato simbólico nacional, ou típico da culinária italiana. É a culinária

de boteco, o cozinhar em uma cela, a quase “mágica” que o talento de Raimundo Nonato

faz ao paladar. O popular com pitadas do grotesco que se sobressaem.

A película também não tematiza por excelência nenhum daqueles fatores expostos

129

É imprescindível uma associação com O cozinheiro, o ladrão, a mulher e seu amante (Petter Greenaway, Inglaterra, 1989). Aqui é a mulher que se vingará do marido, fazendo com que ele coma algo proveniente do crime que cometera. Antropofágico!

130 SANTOS. Por uma História... Op cit. p. 159 131 PILLA. Op cit. p. 65.

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no tópico anterior, tais como relações de trabalho e sistema carcerário. Ainda que esses

fatores possam ser relevantes para a recepção, principalmente brasileira, o tema da

culinária, tão caro aos italianos e tão estampado em outros filmes internacionais desde

meados da década de oitenta, mostra que Marcos Jorge percebeu alguma vantagem nesse

“gênero cinematográfico”, nessa “fórmula que está fazendo sucesso”132 – usando a

expressão que Bernardet explica o gênero no cinema.

Ora, consideremos as estruturas básicas133 dos filmes como Tampopo, Uma receita

para a máfia ou Comer, beber, viver, em que o fio condutor da narrativa, a partir do qual a

trama se desenvolve ou o argumento para os desfechos é a alimentação ou a arte de

cozinhar; ou então o som denunciando o borbulhar de frituras e os ruídos de louças e

talheres ao longo da película; e ainda a fotografia, enquadramento e iluminação

“espetacularizando” a comida e provocando o paladar, constata-se que Estômago se

encaixa nessas ditas estruturas. Ele pode, assim, ser considerado o representante brasileiro

desse “gênero da comida”.134

Antes de finalizar as reflexões surge um fator metodológico que atribui mais

densidade ao trabalho do historiador frente à fonte cinematográfica. É a recepção do filme,

essencial para fechar a pesquisa. Para captarmos a percussão de Estômago em termos de

mercado e de aceitação do público proponho o último subtítulo que ajudará a investigar se

o mérito do filme é fruto de uma satisfatória produção/ distribuição ou é devido à

universalidade do interesse pelo tema da comida.

3.4 – RECEPÇÃO E CRÍTICAS

Parte-se do princípio de que o filme é uma representação da realidade, e por esse

motivo – o de representar e não retratar ipsis literis o real – ele não recebe as mesmas

interpretações, pois é “(...) um produto cultural que permite a construção de diferentes

sentidos. Estes sentidos devem ser buscados na relação que o filme mantém com sua

audiência(...)”135 para isso presta-se o estudo da recepção. A riqueza e complexidade da

fonte cinematográfica reside na sua polissemia e a consideração de outros olhares

contribui para o entendimento da análise. 132 BERNARDET. O que é cinema... Op cit. p. 74 -76. Ele descreve o bangue-bangue: “os valores são os

mesmos, os ambientes são quase os mesmos, a organização do enredo é semelhante: há o mocinho, o vilão (...) os atores podem mudar, mas os tipos permanecem. Variam os anéis, permanecem os dedos.”p. 76.

133 Ver Capítulo 2. 134 Tanto em minhas pesquisas pessoais como na afirmação da especialista Maria Cecília Coelho não é

sabido de outro filme nacional que coloque a comida como protagonista. In: COELHO, Op cit. p. 120. 135 OLIVEIRA, Op cit. p.9

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Mesmo que o filme em questão seja uma produção recente, creio que este fator não

dificultou o trabalho. A mídia virtual possibilitou o acesso à algumas críticas expressivas e

alguns dados de mercado. Porém, este último não ofereceu informações seguras, por assim

dizer. É que os principais sites que publicam as bilheterias do cinema, o “Filme B” e a

própria Ancine, colocam dados em determinados períodos. Assim, estou considerando o

que foi noticiado no site Portal Imprensa, em 30 de outubro de 2008.136

Até o presente momento, Estômago foi vendido pra 20 países, atingindo uma

bilheteria de cerca de 100 mil espectadores no Brasil. Recebeu 18 prêmios em Festivais

(sendo 13 internacionais), foi um dos integrantes para ser indicado ao Oscar de melhor

filme estrangeiro (que preferiu Ùltima Parada: 174). Aquele site à que me referi acima,

noticiou também que o filme será adaptado à uma série de TV. O produtor inglês Stephen

Hopkins, da série 24 horas quer fazer uma refilmagem em inglês e transformá-lo em

seriado.

O filme nem foi lançado em DVD e já alcança repercussão mundial, aquecendo a

economia do país, expressando a cultura brasileira e redundando inclusive em trabalho

acadêmico. Certamente sua expansão para a opinião pública via salas de cinema e

Festivais, não atinge grande parte do público brasileiro, dada a escassez de cópias e o preço

elevado das salas de cinema no país. A cadeia produtiva ainda conta com o DVD, a TV

paga e a TV aberta para alcançar o público.

Por outro lado, o sistema de comunicação em uma rede de fluxos, em que a

tecnologia amplia o alcance de informações e traduzem as relações na sociedade pós-

moderna ajuda a entender o alcance em nível internacional. A interação mundial e a

economia globalizada expressa algumas facilidades de mercado expressadas na fala do co-

produtor italiano de Estômago Fabrizio Donvito, mencionando a facilidade de penetração

na União Européia deste produto de “dupla-nacionalidade”, um álibi não só para o

comércio como também para participar dos Festivais. Mas ele lembra que a gastronomia

certamente tem sua porção de responsabilidade na aceitação pelos europeus.

Isso está expresso na maioria das críticas encontradas sobre o filme. Também no

livro que contém as receitas do filme e na associação da exibição do longa-metragem

acompanhado de um jantar com os pratos preparados no filme, conforme aconteceu no

Festival de Berlim. À exemplo da aproximação entre cinema e gastronomia, pode-se

perceber a grande quantidade eventos sendo realizados em território nacional, nesse

136 www.portalimprensa.com.br, nov/ 2008.

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sentido, tanto em cinematecas quanto em espaços gourmets.

A revista inglesa Screen International, em matéria assinada por Denis Seguin, é

emblema deste alcance internacional de Estômago e diz o seguinte sobre o filme:

“Uma mistura de comida, sexo e poder que não é vista desde "O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e Seu Amante", de Peter Greenaway, a estréia de Marcos Jorge na direção de longas é uma revelação inesperada. Estruturado menos como um "quem fez?" e mais como um "o que ele fez?", como uma deliciosa refeição em um clima estrangeiro, ele atravessa o palato para liberar um inesperado mas adequado toque final. Talvez nem todos os fregueses deixarão Estômago satisfeitos, mas não é possível ver este filme sem ficar com fome."137

Luiz Carlos Merten também lembra a proximidade com O cozinheiro, o ladrão, sua

mulher e o amante e A Comilança na proximidade da culinária com o grotesco. Ele elogia

o desfecho que prende o espectador em suspense e diz que o filme é bom. Que é bem

escrito, bem dirigido, e a interpretação do protagonista João Miguel é o melhor do filme.

Aliás, o elogio ao seu trabalho é unânime nas críticas138.

A de Luiz Zanin Oricchio, no jornal Estado de São Paulo descreve a importância da

interpretação do ator:

“João não é apenas ótimo ator. É desses atores capazes de interiorização, de pequenas e grandes sutilezas na maneira de interpretar, hábil para "dizer" muito em poucas palavras e, por vezes, até mesmo sem elas, com uma simples expressão facial. Um ator, digamos, mais "extrovertido", talvez fizesse de Estômago uma catástrofe kitsch. Mas João trabalha tão bem no meio-de-campo que isso não acontece. Ele, literalmente, salva o filme quando diálogos mais grosseiros tentam levá-lo em outra direção. Com sua delicadeza, também evita, pelo menos em parte, que Estômago insista em clichês preconceituosos sobre migrantes nordestinos, por exemplo”.139

Ele aponta o estilo pendendo ora para o sutil, ora para o grotesco, questionando se é

uma mistura de linguagens, intencional, ou uma fratura da direção, mas diz ao espectador

que decida. Oricchio ainda lembra que:

“É muito agradável ver a alimentação tratada com tanto amor no cinema. Tal como A Festa de Babette, Estômago é uma homenagem do homem a si mesmo, essa nossa espécie que, ao evoluir do cru ao cozido, fez da necessidade básica do sustento físico uma arte e sabedoria milenares. Mas, se não fosse o João Miguel.”

Já o crítico Marcelo Janot, do jornal O Globo, comentou o seguinte: “Não há, em

Estômago, os cacoetes de cinema independente/cult (...) como personagens bizarros que

137 Ver Anexo 2. 138 Ver Anexo 3 139 Ver Anexo 4

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tomam injustificáveis atitudes bizarras para, junto com uma suposta estética publicitária,

buscar a adesão da platéia. A história é tão simples quanto singela.”. “Pode-se questionar o

estranhamento provocado por súbitas mudanças de registro ao longo do filme, em vários

momentos, sobretudo quando imagens de preparo de comida surgem em câmera lenta,

acompanhadas de música suave, num clima quase onírico”.140

Débora Miranda, do G1 começa a descrever sua opinião assim: “Pense num filme

que mistura com inteligência todos os ingredientes que o Brasil e seu cinema têm de

melhor – não necessariamente de bom, mas que provoque o espectador, aguce os sentidos e

faça reagir.” Ela aponta o apelo aos sentidos, em especial ao paladar141.

Como é inviável uma pesquisa abrangente de opinião pública sobre o filme,

recorrer às críticas pra frisar interpretações emitidas por aqueles profissionais é essencial.

Não para focar um “controle de qualidade”, mas alguns outros sentidos fornecidos por

Estômago. Considerando que as críticas são opiniões subjetivas de diferentes olhares,

pode-se perceber a presença da simplicidade do enredo contada de maneira singular e da

atuação de João Miguel como sobressalentes na opinião desses estudiosos do cinema. No

entanto, algo que chamou atenção, condizendo com a linguagem cinematográfica e com as

idéias do autor (Marcos Jorge) é a temática.

O fato de não se preocupar com a delimitação de espaço ou tempo, ou ainda, a

opção pela maioria dos enquadramentos em plano médio (aproximando a narrativa), são

características que podem viabilizar sua boa aceitação. É fácil identificar-se com a história

contada em Estômago. Também porque a comida faz parte do cotidiano, bem como

representa uma abrangente categoria do imaginário, e se aproxima do humano.

Ou seja, a “humanização” da narrativa incutida na universalidade e na

essencialidade do tema da alimentação, é encenada no cinema. Transpassa o tecido social

do boteco que serve coxinhas, de um restaurante italiano, do simples prazer ou necessidade

de cozinhar para o cinema. Estrutura o que podemos chamar de “gênero cinematográfico”

e pode ser visto como um atrativo poderoso ao lado das qualidades e singularidades

estéticas que contribuem para descrever e aceitar um filme como Estômago - responsável

pela digestão de contradições e dificuldades sociais graças à ação enzimática da

gastronomia.

140 Ver Anexo 5 141 Ver Anexo 6

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CONCLUSÃO

Com a pesquisa que se encerra nestas considerações, intentou-se discorrer sobre

alguns pontos das implicações entre cinema e História, através da análise do filme

Estômago. Como uma obra fílmica é considerada uma construção humana, a pretensão foi

esclarecer como os aspectos da sociedade, do contexto histórico, podem ser expressados

por um filme. Não como fatos dados ou ilustrativos, nem como pano de fundo para uma

época, mas como forma de perceber o porquê, para quem e como o filme foi produzido e

recebido, para assim, decodificar e iluminar características da conjuntura social na qual ele

está imbricado.

Para o caso de Estômago, uma produção contemporânea, produzida nos moldes do

cinema da “Retomada”, o que se sobressai, em termos de indústria cinematográfica, é a

estratégia de co-produção, bem como a variedade temática contemplando uma estética que

intenta ser compatível com a internacional (leia-se hollywoodiana). As co-produções

garantem maior circulação em nível global e qualidade técnica, porém, o que se pode

perceber é que elas levantam uma questão acerca da identidade.

Uma vez que se tratam de bens de consumo simbólicos, muito importa o que está

sendo produzido e para quem. Para o filme co-produzido, independente se entre países do

Mercosul ou em parceria com a China, é interessante que seja vendido para ambos (no

mínimo). Por isso o conteúdo que o filme irá retratar coloca tal questão para pensarmos.

Mesmo assim, o que fica notório dessa tática, à exemplo de Estômago, é a garantia de

maior distribuição e inserção no mercado internacional.

Do ponto de vista regional, tal produção pode ser considerada uma exceção na

trajetória paranaense de longas-metragens. Isso pode ser diagnosticado por conta da sua

incipiente atuação devido à ação majoritária dos pólos Rio de Janeiro e São Paulo de

produção; e talvez à lenta e prematura inserção institucional e industrial do cinema no

Paraná.

Mas a circulação internacional de Estômago, creio que não se deva unicamente à

sua “dupla-nacionalidade” ítalo-brasileira. Como vimos, a universalidade da temática da

comida, colocada como uma maneira de demonstrar o humano e sem regionalizações ou

nacionalizações exorbitantes - porque elas são apenas pinceladas –, com certeza foi uma

fator crucial na aceitação.

Ora, isso não está expresso somente nas críticas que foram examinadas, ou nas

exibições do filme acompanhadas da degustação dos pratos nele exibidos. Esse casamento

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da gastronomia com o cinema, duas artes que tem demonstrado forte poder de atração

sobre o público, é expressada já em outros filmes, traduzindo uma certa espetacularização

da comida na atualidade. São aquelas obras que, a partir de 1987 com a Festa de Babette

enfocam essa categoria de maneira tal que, a estrutura da narrativa e da linguagem,

permitem que eles sejam colocados em um “gênero da comida”.

Mais do que constatar tal gênero, o que ficou posto também, é que Estômago pode

ser encaixado nesse rol. Ao apresentar a mesma “fórmula” dos filmes que provocam o

paladar e se estruturam enfatizando a comida pelo roteiro, pelo enquadramento delimitado

nas “imagens comestíveis”, ou pelo som do borbulhar de frituras em meio à ruídos de

talheres e louças, temos nesse longa-metragem um representante brasileiro do dito “gênero

da comida”.

Comida para brasileiros, italianos, ou quaisquer paladares que se identifiquem ou

queiram espreitar a culinária de boteco ou as pitadas da cozinha internacional italiana. Isso

porque não há no filme um elogio à tal culinária, mesmo sendo uma co-produção com a

Itália.

As sutilezas que foram percebidas vão também no sentido espaço-temporal. O que

se pode dizer é que há um retirante em uma cidade grande. Portanto o êxodo rural

(fenômeno do século XX), somado à internacionalização da cozinha italiana (característica

da globalização) são indicativos de uma temporalidade contemporânea. Já a presença do

nordestino na cidade grande acusa uma denotação ao Brasil – não escondendo a

prostituição e as celas lotadas. Esses temas pincelados na película expressam, então, a

variedade temática (sem compromisso ideológico ou social declarados) característica do

cinema da “Retomada”. Ele também abarca filmes cuja narrativa é simples e comum,

assim como a de Estômago.

Talvez essa história pudesse se passar em qualquer lugar – e por que não, com

qualquer pessoa?. O que foi percebido é que ela diz respeito à um contexto de fins do

século XX até os dias atuais. Pois a justaposição dos códigos da sociedade para o filme –

daquele contexto de industrialização e globalização das práticas alimentares -, dos códigos

do filme para a sociedade – que passa, desde fins dos anos 80, a consumir um “gênero da

comida” -, bem como o modelo de produção, distribuição e exibição – do cinema da

“Retomada” - revelam a conjuntura histórica dos anos 90 até o início do século XXI.

Estômago expressa a visceralidade de seu título nas contradições sociais e no

impactante final, tão chocante quanto o nome. Mas não deixa de ter um sabor peculiar que

lhe permite, inclusive, uma pesquisa acadêmica. Mais do que um entretenimento ou

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mercadoria de valor simbólico, o filme é uma construção do homem. Pensada, engendrada,

viabilizada, realizada e recepcionada em uma conjuntura histórica.

“Ou seja, o cinema é um foco privilegiado de observação de algo que é mais ampliado – o cotidiano, a vida na fábrica ou na cidade [no presídio, na cozinha...]. O cinema é, portanto, um meio que se emprega para conhecer, por vezes, um âmbito maior, é um meio apartir do qual se lança mão para conhecer sentimentos, subjetividades, reações. Ou o espelho onde se observa a forma de encenar a mulher, o homem...[o cozinheiro]”

142

142 SCHVARZMAN, Scheila. História no Cinema/ História do Cinema. In: www.mnemocine.com.br .

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STECZ, Solange Straube. Cinema Paranaense 1900- 1930. Dissertação apresentada

ao curso de pós-graduação em História - UFPR. Curitiba, 1988.

TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O Rural no cinema Brasileiro. São Paulo:

Ed. UNESP, 2001.

XAVIER, Ismail. Corrosão Social, pragmatismo e ressentimento. Vozes dissonantes

no cinema brasileiro de resultados. Novos Estudos – CEBRAP, n.75, 2006.

_____________ O discurso cinematográfico; a opacidade e a transparência. Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

_____________ O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001

SITES CONSULTADOS:

www.adorocinema.com.br

www.ancine,gov.br

www.festivaldecinema.pr.gov.br

www.cmc.pr.gov.br

www.estomagoofilme.com.br

www.blogs.cultura.gov.br

www2.uol.com.br/revistadecinema

www.festivaldorio.com.br

www.portalimprensa.com.br

www1.folha.uol.com.br

www.g1.globo.com

www.projetoolhovivo.com.br

www.revistadecinema.com.br

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www.estadao.com.br

www.screendaily.com

www.criticos.com.br

www.historiadaalimentacao.ufpr.br

PERIÓDICOS CONSULTADOS:

Revista de Cinema. São Paulo, ano 9, edição, 90, p. 34-40, set/ out, 2008.

Jornal Gazeta do Povo - Caderno G. Curitiba, 18 mai/ 2008.

Jornal Gazeta do Povo - Caderno G. Curitiba, 15 out/ 2008.

Jornal Folha de São Paulo – Ilustrada. São Paulo, 03 fev/ 2007.

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ANEXO 1

Ficha Técnica

Título original: Estômago

Gênero: Drama

Tempo de duração: 112 minutos

Ano de Lançamento: 2007

Estúdios: Zencrane Filmes (Brasil) e Indiana Filmes (Itália)

Distribuição: Downtown Filmes

Direção: Marcos Jorge

Roteiro: Lusa Silvestre, Marcos Jorge, Cláudia da Natividade e Fabrizio Donvito, baseado

no argumento de Lusa Silvestre e Marcos Jorge

Produção: Cláudia da Natividade, Fabrizio Donvito e Marcos Cohen

Música: Giovanni Venosta

Fotografia: Toca Seabra

Direção de Arte: Jussara Perussolo

Edição: Luca Alverdi

Elenco: João Miguel, Fabiula Nascimento, Babu Santana, Carlo Briani, Zeca Cenovicz e

Paulo Miklos.

Sinopse: Raimundo Nonato (João Miguel) foi para a cidade grande na esperança de ter

uma vida melhor. Contratado como faxineiro em um bar, logo ele descobre que possui um

talento nato para a cozinha. Com suas coxinhas Raimundo transforma o bar num sucesso.

Giovanni (Carlo Briani), o dono de um conhecido restaurante italiano da região, o contrata

como assistente de cozinheiro. A cozinha italiana é uma grande descoberta para Raimundo,

que passa também a ter uma casa, roupas melhores, relacionamentos sociais e um amor: a

prostituta Iria (Fabiula Nascimento)143.

143 Informações retiradas do site: www.adorocinema.com

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ANEXO 2

SCREEN INTERNATIONAL

Denis Seguin in Toronto - 07 oct/ 2007144

A mélange of food, sex and power not seen since Peter Greenaway's The Cook, The

Thief, His Wife And Her Lover, Marcos Jorge's feature film debut is a sleeper mystery.

Fashioned less as a 'whodunnit?' than a 'what-he-done?', like a delicious meal in a foreign

clime, it traverses the palate to deliver an unexpected but apt end-note. Perhaps not every

patron will leave Estomago satisfied but it is not possible to watch this film without

growing hungry.

Screening in competition at the Rio Film Festival, it won four awards: best director,

the audience prize, a jury prize and a well-deserved lead actor prize for Joao Miguel - the

film rests on his slouched shoulders. (He won the same award two years ago for Cinema,

Aspirins and Vultures) Supporting actors are excellent and the film's look transcends its

modest budget. Success at home is a certainty but the elements that ensure this may not

help it abroad; a revision of the English subtitles is a must. The digital subtitles at the Rio

screening missed many local references and puns (or so this reviewer was told).

That said, there is savour enough to justify a specialised release. Foreign buyers

would do well to emphasise its magic-realistic undertones and Miguel's stealthy charisma -

echoes of the late Massimo Troisi in Il Postino.

This is a sly and subtle film punctuated by bursts of darkly funny vigour, a

misanthrope's version of Like Water For Chocolate.

Jorge portions out his composed story lines such that the viewer is unsure which

happened first: Raimundo's arrival in town or his arrival in prison.

The story opens late one evening when Raimundo (Miguel) wanders into a café and

orders some food. Addled or merely dreamy, insane or slightly retarded or (in hindsight),

affected by the pastry, he slips into reverie.

Next, he is walking the hall of a prison: "checking in" with a sense of purpose

curiously at odds with his character. He tells himself, "I'll need a name suitable for my

crime." Waking in the café, realising he has no money, Raimundo offers to clean the

dishes. The bar owner does him one better: he locks him into the filthy kitchen with

instructions to make it spotless.

144 Retirado de: www.screendaily.com, out/ 2008.

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Raimundo will be his galley slave, working for room and board. But the owner has

unknowingly unleashed a monster and provided him with the key to his ultimate escape.

Raimundo is a culinary savant, and his creations are aphrodisiacs or weapons, or both.

It turns out to be a specialised form of aphrodisiac: Iria (Nascimento), a voracious

prostitute who frequents the bar is smitten at first bite -- but not so much with him as with

his cooking, particularly the deep-frieddelicacy coxinha.

As Raimundo builds his repertoire, others are lured. The owner of an Italian

restaurant hires him, and Raimundo's powers increase. In one bravura scene, he services

the prostitute from behind as the camera tilts down past her ample bosoms to reveal the

real source of her pleasure: a steaming bowl of ragu.

Similarly, within the brutal pecking order of the crowded jail cell, Raimundo's way

with a sauté pan raises him from the ignominy of sleeping on the bare floor to a mat, then

the botton bunk.

The man on the top bunk may be a brute but he also has a vast appetite, and the

means to procure for Raimundo the equipmentan draw material.

Raimundo's progress to the top bunk parallels the path to his crime, and the

ingredients he uses will horrify but ultimately delight. The way to a man's (or a woman's)

heart may be through the stomach - but what if the love stops there?

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ANEXO 3

O ESTADO DE SÃO PAULO

Luiz Carlos Merten- 11 abril/ 2008145.

Há um importante movimento de câmera, um plano-seqüência, no desfecho de

Estômago, quando a câmera avança por um escada, para mostrar o desenlace da

tragicomédia de Marcos Jorge, diretor curitibano vencedor de quatro prêmios no Festival

do Rio do ano passado (num total de seis). Jorge - é sobrenome mesmo, não um segundo

nome - trabalhou todo o seu filme para este final. Dá algumas pistas, mas, como ele diz,

queria manter o espectador em suspense.

''Não, será que ele vai ousar? Não pode ser'' - é a pergunta que o diretor de

Estômago gostaria que o espectador se fizesse. E há um som, um vento, que acompanha o

movimento de câmera. Esse som é felliniano. Como? ''Finalizei o filme na Itália e usei o

som do vento de um filme de Federico Fellini'', confessa o diretor, que admira o grande

diretor e não apenas ele. Marcos Jorge estudou cinema na Itália e lá trabalhou durante

alguns (muitos) anos. É grande fã da comédia italiana porque, como diz, ela vem carregada

de um sentido trágico da existência. É uma tragicomédia.

O som de Fellini, e o que mais? Existem, também, referências explícitas a Peter

Greenaway, especialmente ao Greenaway de O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o

Amante, que também trata de culinária e grotesco. Marco Ferreri, A Comilança, não? ''Não

sou o maior fã do Ferreri, mas pode ser que tenha alguma coisa, sim'', diz o diretor. Na

trama de seu filme, um homem chega à cidade grande e vai trabalhar numa lanchonete.

Devido a incidentes que você só saberá assistindo a Estômago, ele vai parar na cadeia,

onde vira o cozinheiro dos presos, alcançando poder - e regalias - com sua habilidade com

os temperos e as carnes. Mas permanece o mistério que só é revelado no final.

O que ele fez bunda feminina termina desempenhando um papel crucial. No recente

Festival de Berlim, Estômago foi exibido numa nova seção chamada Cinema e Culinária,

na qual um chef propunha um cardápio inspirado no filme - e o espectador pagava pelos

dois, o ingresso do filme e o jantar. Deixe para ler esta parte somente depois de assistir a

Estômago. Face ao que ocorre no desfecho, era de se perguntar. O filme é bom, mas se não

fosse o protagonista... Ele é o grande responsável pelo que há de delicadeza e tom sutil em

Estômago.

145 Retirado de: www.estadao.com.br, out/ 2008.

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ANEXO 4

O ESTADO DE SÃO PAULO

Luiz Zanin Oricchio – 11 abril/ 2008146.

A primeira coisa a ser dita é que Estômago é um filme que se vê com prazer,

interesse e divertimento. Sustenta-se. A avaliação pode ser subjetiva (e qual não é?) Mas

parece também amparada em boa administração dos recursos cinematográficos por Marcos

Jorge. Sem ser nenhuma página de antologia da arte da filmagem, resolve-s bem e não

resvala no "televisivo" ou no "publicitário" - esses dois estigmas que rondam o cinema

nacional. Em especial quando é cinema, como parece o caso, pensado e formatado para

consumo de grande público.

Mas, em seguida a essa primeira constatação, deve-se abrir espaço para uma

segunda, sobre uma certa dissonância que acompanha o filme. Quer dizer, percebe-se como

uma dissintonia de projetos, como se o filme quisesse ir para um lado e alguma força o

puxasse na direção oposta. Alguém pode dizer que essas fraturas e notas fora da escala são

mais virtudes do que defeitos, e é até possível que isso seja verdade. Como dizer, a não ser

apelando, mais uma vez, para julgamentos subjetivos?

O fato é que Estômago parece às vezes empenhado em pautar seu estilo pela

sutileza e, em outros momentos, dá a impressão de flertar (e namorar abertamente) com o

grotesco. E mesmo com o grosseiro. É uma mistura de linguagens ou uma fratura da

direção? O espectador decida.

Mas pode-se fazer uma espécie de teste de hipótese mental. Imaginar, por exemplo,

o que seria de Estômago sem um ator de tantos recursos quanto João Miguel (de Cinema,

Aspirinas e Urubus). João não é apenas ótimo ator. É desses atores capazes de

interiorização, de pequenas e grandes sutilezas na maneira de interpretar, hábil para "dizer"

muito em poucas palavras e, por vezes, até mesmo sem elas, com uma simples expressão

facial. Um ator, digamos, mais "extrovertido", talvez fizesse de Estômago uma catástrofe

kitsch. Mas João trabalha tão bem no meio-de-campo que isso não acontece. Ele,

literalmente, salva o filme quando diálogos mais grosseiros tentam levá-lo em outra

direção. Com sua delicadeza, também evita, pelo menos em parte, que Estômago insista

em clichês preconceituosos sobre migrantes nordestinos, por exemplo.

146 Ibid.

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Dito isso, não se deve deixar sem registro a maneira hábil como a história de

Raimundo Nonato (João Miguel) é contada. Ou melhor, como ele a conta, já que sua voz é

ouvida do princípio ao fim na narrativa em off. O filme avança em dois tempos, em dois

blocos. Num deles, vemos o migrante chegar à cidade grande, faminto e sem um tostão, até

avançar na hierarquia gastronômica dos restaurantes. No outro bloco, que sabemos

posterior, o acompanhamos na penitenciária, usando seus dons para transformar a gororoba

em algo palatável para si e colegas. O que fica pendendo o tempo todo é o mistério: por

que o cordial Nonato foi parar atrás das grades? E é esse mistério que vai dando força à

história, soprando de leve como brisa na vela do barco.

Por outro lado, é muito agradável ver a alimentação tratada com tanto amor no

cinema. Tal como A Festa de Babette, Estômago é uma homenagem do homem a si

mesmo, essa nossa espécie que, ao evoluir do cru ao cozido, fez da necessidade básica do

sustento físico uma arte e sabedoria milenares. Mas, se não fosse o João Miguel...

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ANEXO 5

BANQUETE DE HUMOR INTELIGENTE

Marcelo Janot – 15 abril/ 2008.147

Há quem diga que Estômago, de Marcos Jorge, é o Cheiro do Ralo de 2008. O que

isso significa? Aquele filme do qual pouca gente tinha ouvido falar, feito por um diretor

desconhecido, e que acaba se tornando a grande surpresa positiva da temporada. Mas

Estômago é melhor que O Cheiro do Ralo. Há muito tempo o cinema nacional não

conseguia produzir um filme com vocação para o entretenimento tão inteligente.

Não há, em Estômago, os cacoetes de cinema independente/cult que incomodaram

parte da crítica em O Cheiro do Ralo, como personagens bizarros que tomam

injustificáveis atitudes bizarras para, junto com uma suposta estética publicitária, buscar a

adesão da platéia. A história é tão simples quanto singela. Raimundo Nonato (João Miguel)

é um retirante nordestino que, chegando em São Paulo, arruma emprego na cozinha de um

botequim pé-sujo do Centro, freqüentado por prostitutas. Seu talento para a culinária é logo

descoberto pelo dono de um restaurante vizinho, que o contrata e o ensina a enxergar a

comida como arte. Paralelamente, o filme mostra Nonato na cadeia, onde divide a cela com

outros cinco presos. Quando o temido Bujiú (Babu Santana), o dono do pedaço, descobre

seus dotes culinários, ele começa a ganhar status entre os colegas de cela.

O espectador acompanha as duas ações transcorrendo alternadamente, mas não sabe

porque Nonato foi parar na cadeia. Deduz apenas que as cenas na prisão retratam o tempo

presente, ou seja, o que aquele sujeito puro e de boa índole fez para motivar seu

encarceramento só vai ser revelado no final, quando as duas histórias forem concluídas.

Mas o suspense é o que menos importa. O que fascina é a forma como o filme nos

faz compartilhar com Nonato a sua descoberta de um mundo que é totalmente novo para

ele, mas velho para quem sabe que o gorgonzola não é um queijo estragado e que o vinho

deve ficar deitado na adega. Há uma porção de piadas e situações recorrentes que nos

fazem rir como se estivéssemos sendo apresentados a elas naquele momento, e isso se deve

a um roteiro que utliza primorosamente a palavra como escada do gesto. Por exemplo:

Nonato escuta muito, e suas reações aos interlocutores, seja com um olhar ou com

pequenas interjeições, com seu jeito de falar, é que provocam o riso imediato.

147 Retirado de: www.criticos.com.br, out/ 2008

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Em grande parte, isso se deve ao talento de João Miguel, que depois de

desempenhos elogiados em Cinema, Aspirinas e Urubus e O Céu de Suely, agora tem tudo

para sair do gueto e trilhar o caminho de Wagner Moura e Lázaro Ramos. Sua atuação é

magnífica, com um timing perfeito para a comédia. Babu Santana é outro ator cômico de

mão cheia, e Fabiula Nascimento, que interpreta a prostituta Íria, uma grata revelação.

Estômago é o segundo longa-metragem do diretor curitibano Marcos Jorge – o

outro é Corpos Celestes, co-dirigido com Fernando Severo, que está pronto mas ainda

aguarda definição de lançamento. O filme foi feito em regime de co-produção com a Itália,

o que talvez justifique a quantidade de referências à cultura italiana. Nonato vai trabalhar

num restaurante italiano que se chama Boccaccio 70, título de um filme italiano em

episódios dirigido por De Sica, Monicceli, Visconti e Fellini. Não é mera coincidência. Há

uma atmosfera felliniana que permeia a narrativa, explicitada na personagem Íria, a

prostituta glutona.

Pode-se questionar o estranhamento provocado por súbitas mudanças de registro ao

longo do filme, em vários momentos, sobretudo quando imagens de preparo de comida

surgem em câmera lenta, acompanhadas de música suave, num clima quase onírico. Num

filme cheio de referências italianas, isso parece nada mais do que uma bela homenagem ao

cinema de Sergio Leone e seus heróis-forasteiros, simples e de soluções engenhosas. O que

alguns podem interpretar como a tal da “estética publicitária” soa, isto sim, como uma

citação dos flashbacks oníricos que percorrem a obra de Leone, em especial as lembranças

de James Coburn na obra-prima Quando Explode a Vingança, retratadas em câmera lenta e

com a música suave de Enio Morricone, que contrasta genialmente com o restante do

filme.

Estômago provavelmente não será unanimidade. Os rabugentos de sempre irão

reclamar que a cadeia é limpinha demais, ou que se ri do estereótipo do imigrante

nordestino. Ora, Estômago não é tratado sociológico e nem levanta discussões

éticas/ideológicas. O único deslize ligeiro é estético, um desnecessário close de um pedaço

de carne humana, numa cena perto do final, que poderia ter sido apenas sugerido ao invés

de mostrado. Mas que de forma alguma compromete o resultado deste belíssimo filme que

sacia nossa fome de diversão inteligente.

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ANEXO 6

PORTAL G1 - GLOBO

Débora Miranda – 12 abril / 2008148

Pense num filme que mistura com inteligência todos os ingredientes que o Brasil e

seu cinema têm de melhor –não necessariamente de bom, mas que provoque o espectador,

aguce os sentidos e faça reagir. “Estômago”, estréia de Marcos Jorge na direção de um

longa de ficção e que estreou na sexta-feira (11), tem tudo isso. E ainda vem acompanhado

de muita coxinha.

Premiado nos festivais internacionais de Punta Del Este e Rotterdam, além de ter

levado quatro troféus no Festival do Rio 2007, “Estômago” conta a história de Raimundo

Nonato (vivido pelo genial João Miguel, de “Cinema, aspirinas e urubus”), um nordestino

que chega a São Paulo sem lenço, documento nem dinheiro, e acaba ganhando o emprego

de cozinheiro/garçom/faxineiro em um boteco do centro.

Raimundo é explorado pelo chefe, que não lhe paga pelo trabalho, já que dá a ele

um quartinho imundo para dormir e refeições diárias. Mas o talento para cozinhar logo

aparece, e a clientela do boteco aumenta a todo vapor, o que chama a atenção do dono de

um restaurante da vizinhança. Raimundo ganha um emprego novo, onde aprenderá a

cozinhar pratos muito mais elaborados do que arroz, feijão, coxinha e pastel.

É nesse ponto do filme que olhos mais atentos podem perceber os primeiros sinais

de mudança do protagonista –ou apenas achar graça– quando ele mente ao novo chefe, de

olho no polpudo salário, que terá de pensar na proposta, já que ganha bem, inclusive com

benefícios. Raimundo pode até ter chegado a São Paulo ingênuo, mas não levará muito

tempo até que aprenda a viver e lidar com o poder –e a conquistá-lo para si.

Ao mesmo tempo em que o espectador assiste ao crescimento profissional de

Raimundo, que vai ajeitando a vida ao lado da prostituta glutona Íria (Fabiula

Nascimento), lhe é apresentada uma outra trama, igualmente saborosa: o protagonista está

na cadeia, tentando conquistar atrás das grades tudo o que havia levado meses para

conseguir fora de lá. E é transformando as gororobas cheias de vermes da prisão em

saborosos rangos que ele consegue uma cama e um lugar entre os protegidos da liderança

do xadrez.

Minuto a minuto, enquanto assistimos à derrocada de Raimundo, a história vai

148 Retirado de: www.g1.globo.com, out/ 2008.

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ficando mais intrigante, dramática e em alguns momentos ainda consegue ser bem-

humorada. O que, afinal de contas, levou o cozinheiro àquela cela, justamente quando tudo

parecia estar indo bem?