A IDIOSSINCRASIA AFETIVA DA EXPERIÊNCIA: (RE)INVESTIGANDO ...
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CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Currículo de Química: investigando a temática “lixo” em livros
didáticos
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
ELGA EDITH PILCHOWSKI DE SALLES
Orientadora: Profª Drª Maria Margarida Pereira de Lima Gomes
Rio de Janeiro
2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Currículo de Química: investigando a temática “lixo” em livros
didáticos
ELGA EDITH PILCHOWSKI DE SALLES
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Educação.
Orientadora: Profª Drª Maria Margarida Pereira de Lima Gomes
Rio de Janeiro
2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
A dissertação: Currículo de Química: investigando a temática “lixo” em livros didáticos
Mestranda: Elga Edith Pilchowski de Salles
Orientada por: Prof.ª Dr.ª Maria Margarida Pereira de Lima Gomes
E aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pela Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e homologada pelo Conselho de Ensino
para Graduados e Pesquisa, como requisito parcial a obtenção do título de
MESTRE EM EDUCAÇÃO
Rio de Janeiro, 24 de julho de 2014.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Margarida Pereira de Lima Gomes – Orientadora (UFRJ/RJ)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Frederico Bernardo Loureiro (UFRJ)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Waldmir Nascimento de Araujo Neto (UFRJ)
Dedico
Ao meu companheiro,
minha alma quase gêmea Paulo Affonso,
pela paciência com minhas noites em claro,
pela colaboração quando o relógio estava contra mim,
pela tolerância com um instável humor acadêmico
pela insistente certeza de que meu sonho valia a pena.
Meu amor: Já chegou? Falta muito?
In memoriam:
Aos meus tios Eni e Kingo
por me mostrarem, quando eu mal havia começado a estudar,
o prazer de uma vida universitária,
e que ela não precisa ter fim.
Aos meus pais.
A todos os que acreditam
que tarde para voltar aos bancos escolares
é um momento que não existe.
Agradeço ...
À professora Margarida Pereira Gomes pelos preciosos ensinamentos e pelas
possibilidades metodológicas que apresentou. E também pelas sábias palavras que têm a
capacidade de romper com as certezas absolutas.
Ao professor Frederico Loureiro, cuja riqueza acadêmica e alma amiga auxiliaram-me
nesta trajetória em que, ao construir minha pesquisa, eu me reconstruí.
Às professoras Marcia Serra, Monique Andries, Rosanne Evangelista e Celeste
Kelman pelas aulas animadas, por discussões inovadoras cujas contribuições valiosas que me
permitiram enxergar outros horizontes do saber.
À Solange, funcionária exemplar do PPGE/UFRJ, cuja eficiência impecável, alegria,
otimismo e amor a todos os seres, faz pensar que não é possível haver alguém como ela, mas
impossível é ficar ela! Não é à toa que teu apelido é Sol...
Ao Comando do Colégio Naval, à Chefia do Departamento de Ensino, à Coordenação
Geral de Ensino Civil e a todas e todos os colegas que, seja pela redução de carga horária, pelo
incentivo e reconhecimento da importância de uma formação continuada, pelo companheirismo
e cumplicidade, ajudaram nesta caminhada.
À professora Ana Carla Midões por ter gentilmente cedido o arquivo original de sua
dissertação a qual contribuiu de forma significativa para minhas reflexões.
Às minhas queridas colegas/amigas/parceiras do Núcleo de Estudos do Currículo
(NEC/UFRJ), com quem tive o prazer e a honra de compartilhar este caminho, enriquecendo as
minhas tardes de sexta-feira com debates e inquietações. Meu obrigada a Liane, Viviane,
Narayana, Nathalia, Luiza, Tatiane e, em especial, à Ana Maria, a irmã que a vida me entregou
com vinte e cinco anos de atraso...
Às minhas queridas Adriana, Erika, Marcela, Ana Carla, e aos meus queridos Higor,
Carlus, Luiz, Marcelo Matos e Fábio e tantos outros colegas de turma com quem eu tive a
alegria de partilhar aulas e conversas e que me receberam como igual, meus sinceros
agradecimentos e o orgulho de ter estudado com o futuro da academia.
Tudo vira lixo
Tudo pode virar lixo
Carta de amor vira lixo
Conta pra pagar vira lixo
Seja como for tudo pode virar lixo
Namorado, gato, tio
Até seu pavio
Também pode virar lixo
Tudo que se acende se apaga
Fósforo se apaga
Vela, incêndio, lamparina
O olho da menina até o seu
Tudo pode se apagar
Tudo pode se acabar
E virar lixo...
(Vira Lixo - Ceumar)
Onde vamos pôr
as caixas de isopor
onde diabos vamos pôr
as nossas caixas de isopor
como nos livrar
das plásticas palavras
ditas à mesa do bar
palavras que vão dar no mar
poluir é ir juntando o que resta de nós
após as refeições
nossos restos mortais
venenosas ilusões
milhões de garrafas vazias
cheias de alergias e aflições
onde vamos pôr
as caixas de isopor
a vida de mentira
a ira, do desamor
temos que encontrar o lugar
no deserto aberto
em nossos corações
(Desafio do Lixo - Gilberto Gil)
(...)
caminante, no hay camino:
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
(...)
(Caminante no hay caminho – em "Proverbios y Cantares" de Antonio Machado)
Resumo
SALLES, Elga Edith Pilchowski de. Currículo de Química: investigando a temática “lixo” em
livros didáticos. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) Programa de Pós-
Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A presente dissertação busca compreender como a temática “lixo” vem sendo inserida em livros
didáticos de Química, integrantes do Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino
Médio (PNLD) de 2012. Para tal propósito, procura-se apresentar aspectos relacionados aos
sentidos adquiridos por essa temática no contexto dos currículos de Química para esse nível de
ensino. Discute-se assim como esses significados se inserem nos currículos escolares expressos
pelos livros didáticos e como se relacionam com as tradições de ensino que fazem parte dos
currículos da disciplina escolar Química para o Ensino Médio. O trabalho tem como base
teórica os estudos sobre as disciplinas escolares (Goodson, 1997, 2001, 2003, 2012) a partir dos
quais são problematizadas as formas de inserção do “lixo”, como produções constituídas por
processos sócio-históricos que participam da formação da disciplina escolar Química. Além
disso, trabalhos sobre as perspectivas que constituem os currículos de Química no Ensino
Médio (Lopes, 1992, 1993, 1997, 1998, 2007), os que abordam as tendências do campo da
Educação ambiental (Loureiro, 2012; Loureiro & Layrargues, 2002; Loureiro & Lima, 2012)
e, ainda, a “ecologia dos saberes” (Santos, 2007) contribuem para as discussões sobre os
currículos acadêmicos e escolares em seus diversos aspectos. A análise sobre do tema “lixo” é
conduzida buscando-se: (i) identificar as abordagens que predominam nos currículos escolares
expressos pelos livros didáticos; e (ii) compreender como se relacionam com as tradições de
ensino – finalidades educacionais, seleção de conteúdos e métodos de ensino – mais valorizadas
nos currículos da disciplina escolar Química para o Ensino Médio. As inserções da temática
“lixo” são confrontadas com as tradições do currículo de Química quanto a seus conteúdos, o
modo de sequenciar os assuntos e de como exemplificá-los, além de serem analisadas à luz de
questões sociais, como por exemplo os grupos sociais mais comumente associados à lida do
lixo ou à produção do mesmo, como se uma linha abissal os separasse numa sociedade que
invisibiliza as mazelas de uns em proveito da manutenção do poder de outros. A análise mostra
que o “lixo” é parte dos conteúdos de ensino do currículo de Química dialogando de diversas
maneiras com suas tradições de ensino, o que revela uma coordenação entre permanências e
mudanças curriculares nessa disciplina escolar. Argumenta-se que a temática “lixo” é inserida
no currículo expresso nos livros didáticos sem que o seu potencial crítico seja explorado para
atender às demandas educacionais contemporâneas. Percebe-se que a crítica é feita de forma
“ingênua” e direcionada tecnicamente ao lixo em si mesmo do que aos processos de produção
e consumo. Conclui-se que a análise contribui para o entendimento de como o currículo de
Química pode ser compreendido a partir de estudos que como este se debruçam sobre temáticas
específicas que vêm alterando a compreensão do que seja o ensino dessa disciplina no Ensino
Médio.
Palavras chave: currículo de Química; Ensino Médio; livros didáticos; educação ambiental;
lixo.
Abstract
Salles, Edith Pilchowski de. Chemistry Curriculum: investigating the theme "garbage" in
textbooks. Rio de Janeiro, 2014. Dissertation (Master of Education) Graduate Program in
Education, Federal University of Rio de Janeiro.
This dissertation aims to understand how the theme "garbage" has been inserted in Chemistry
textbooks, part of the National Textbook Program (PNLD) for the 2012 High School education.
For this purpose, we try to present aspects related to the senses acquired by this theme in the
context of the chemistry curricula for this grade level. It is discussed how these meanings are
inserted in the school curriculum expressed by textbooks and how they relate to the educational
traditions that are part of the curricula of the Chemistry school discipline for High School
Education. The work theoretical framework lies on the studies of school subjects (Goodson,
1997, 2001, 2003, 2012) from which the forms of insertion of "garbage" are transformed into
problems, as productions consisting of social-historical processes that participate in the
formation of the school discipline Chemistry. Further, projects on the perspectives that
constitute the curriculum of Chemistry in High School (Lopes, 1992, 1993, 1997, 1998, 2007),
those addressing trends in the field of environmental education (Loureiro, 2012; Loureiro &
Layrargues, 2002; Loureiro & Lima, 2012), and also the "ecology of knowledge" (Santos, 2007)
contribute to discussions of academic and scholarly curricula in its various aspects. The analysis
of the theme "garbage" is conducted seeking to: (i) identify the approaches that predominate in
school curricula expressed by the textbooks; (ii) understand how they relate to the traditions of
teaching - educational purposes, content selection and teaching methods - most valued in the
Chemistry curricula discipline in High school. The inserts of the theme "garbage" are
confronted with the traditions of the Chemistry curriculum, as to its contents, how to sequence
the subjects and how to exemplify them, besides analyzing them in view of social issues, such
as social groups most commonly associated with handling garbage or the production thereof,
as if an abyssal line separates them in a society that makes invisible the blemishes in favor of
the conservation of someone’s power. The analysis shows that "garbage”, in various ways, is
part of the teaching content of the Chemistry curriculum dialoguing with their traditions of
teaching, which reveals coordination between curriculum abidance and changes in that school
discipline. It is argued that the topic “garbage" is inserted into the curriculum expressed in
textbooks without its critical potential being exploited to meet contemporary educational
demands. One perceives that the criticism is made in a "naive" manner and technically directed
to the garbage itself, rather than to the processes of production and consumption. We conclude
that the analysis contributes to understand how Chemistry curriculum can be perceived from
studies, which like this one, deal with particular issues that have been changing the
understanding of what the teachings of this discipline in High School represent.
Keywords: Chemistry curriculum; High School; textbooks; environmental education; garbage.
Lista de Ilustrações
Figura 1 - Capas da coleção “Química: meio ambiente, cidadania e tecnologia” de Martha Reis
Marques da Fonseca ................................................................................................................... 1
Figura 2 - Detalhe do material impresso de divulgação das Metas para o Desenvolvimento
Sustentável .................................................................................................................................. 3
Figura 3– Capas dos três volumes da coleção “Química: meio ambiente, cidadania e tecnologia”
.................................................................................................................................................. 54
Figura 4 - “Química – Ensino Médio”...................................................................................... 55
Figura 5 - “Química cidadã” ..................................................................................................... 55
Figura 6 - “Ser protagonista – Química" .................................................................................. 55
Figura 7 - “Química na abordagem do cotidiano" .................................................................... 56
Figura 8 - Capa do volume 1 .................................................................................................... 62
Figura 9 - Capa do volume 2 .................................................................................................... 63
Figura 10 - Capa do volume 3 .................................................................................................. 64
Figura 11 - Contracapa do volume 1 ........................................................................................ 65
Figura 12 - Sumário do volume 1 ............................................................................................. 69
Figura 13 - Sumário do volume 2 ............................................................................................. 70
Figura 14 - Sumário do volume 3 ............................................................................................. 71
Figura 15 - Página de apresentação de cada volume ................................................................ 74
Figura 16 - "Carimbo" de conservação dos livros didáticos .................................................... 75
Figura 17 - Volume 1, Introdução, páginas 12 e 13 ................................................................. 78
Figura 18 - Volume 3, Unidade 3, capítulo 10, página 213 ..................................................... 81
Figura 19 - Volume 1, unidade 1, capítulo 5, página 71 .......................................................... 83
Figura 20 - Volume 1, unidade 1, capítulo 5, página 72 .......................................................... 85
Figura 21- Volume 1, unidade 1, capítulo 5, página 73 ........................................................... 86
Figura 22- Volume 1, unidade 1, capítulo 5, página 74 ........................................................... 87
Figura 23 - Volume 1, unidade 1, capítulo 5, página 76 .......................................................... 88
Figura 24 - Volume 2, unidade 2, Texto de abertura do capítulo 6, página 82 ........................ 89
Figura 25 - Volume 1, unidade 1, capítulo 5, página 91 .......................................................... 91
Figura 26- Volume 2, unidade 2, foto do texto de abertura do capítulo 18, página 85 ............ 93
Figura 27- Volume 2, unidade 4, capítulo 18, página 320 ....................................................... 94
Figura 28- Volume 2, unidade 2, Explorando os textos (capítulo 6), página 86 ...................... 94
Figura 29 - Volume 3, unidade 3, capítulo13, página 249 ....................................................... 95
Figura 30 - Volume 3, unidade 3, capítulo11, página 236 ....................................................... 96
Figura 31 - Volume 2, unidade 5, Texto de abertura do capítulo 19, páginas 326 e 327 ......... 98
Figura 32 - Volume 2, unidade 5, Texto de abertura do capítulo 19, páginas 328 e 329 ....... 100
Figura 33 - Volume 2, unidade 5, Explorando os textos (capítulo 19), página 330 ............... 101
Figura 34 - Volume 2, unidade 5, capítulo 20, páginas 350 e 351 ......................................... 102
Figura 35 - Volume 2, unidade 5, capítulo 20, página 363 .................................................... 103
Figura 36- Volume 3, unidade 3, textos de abertura do capítulo 10, páginas 206 ................. 105
Figura 37- Volume 3, unidade 3, textos de abertura do capítulo 10, página220. ................... 107
Figura 38- Volume 3, unidade 3, capítulo 10, página 220 ..................................................... 108
Figura 39- Volume 3, unidade 3, capítulo 10, página 213 ..................................................... 110
Figura 40 - Volume 3, unidade 5, capítulo 20, página 392 .................................................... 113
Figura 41 - Volume 3, unidade 5, capítulo 20, página 393 .................................................... 114
Figura 42 - Volume 3, unidade 5, capítulo 22, página 415 .................................................... 116
Sumário
Introdução ................................................................................................................................... 1
1 – A construção do problema de pesquisa ................................................................................ 1
2 – Os objetivos e a organização do trabalho ............................................................................. 7
Capítulo 1 - A disciplina escolar Química ................................................................................. 9
1.1 - O currículo e o estudo das disciplinas escolares .............................................................. 10
1.2 – O currículo e o livro didático ........................................................................................... 21
1.3 – A disciplina escolar Química ........................................................................................... 26
Capítulo 2 – O lixo e as tradições do ensino de Química ......................................................... 36
2.1 – Como o “lixo” pode ser inserido no ensino de Química?................................................ 37
2.2 – O “lixo” em meio aos conhecimentos escolares .............................................................. 41
2.3 – O “lixo” em meio às tendências da Educação Ambiental ............................................... 45
2.4 – O “lixo” em meio à ecologia dos saberes ........................................................................ 49
Capítulo 3 - O lixo como um conhecimento a ensinar nos livros didáticos de Química.......... 54
3.1 – A escolha da coleção ....................................................................................................... 58
3.2 – A estruturação da coleção escolhida ................................................................................ 60
3.3 – As inserções da temática “lixo” na coleção analisada ..................................................... 76
Considerações Finais .............................................................................................................. 117
Bibliografia ............................................................................................................................. 129
Legislação ............................................................................................................................... 136
Coleções de livros didáticos de Química para o Ensino Médio, integrantes do PNLEM de 2012
................................................................................................................................................ 138
Anexo A – Levantamento das ocorrências da temática “lixo” nos livros didáticos de Química
do PNLEM 2012 ..................................................................................................................... 139
Anexo B - Levantamento de artigos em bases CAPES, SCIELO .......................................... 147
e Google Schoolar .................................................................................................................. 147
1
Introdução
1 – A construção do problema de pesquisa
Nesta dissertação busco compreender como a temática “lixo” vem sendo inserida em
livros didáticos de Química, integrantes do Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino
Médio (PNLEM) de 2012. Para tal propósito, procuro apresentar aspectos relacionados aos
sentidos adquiridos por essa temática no contexto dos currículos de Química para esse nível de
ensino conduzindo a análise para o reconhecimento de abordagens, sustentadas por diferentes
significados sociais atribuídos ao lixo. Procuro discutir assim como esses significados se
inserem nos currículos escolares expressos pelos livros didáticos e como se relacionam com as
tradições de ensino que fazem parte dos currículos da disciplina escolar Química para o Ensino
Médio.
O trabalho de investigação tomou forma a partir da análise dos aspectos relacionados
ao lixo presentes nos três volumes da coleção “Química: meio ambiente, cidadania e
tecnologia”, 1ª edição, da autoria de Martha Reis Marques da Fonseca e publicado pela Editora
FTD em 2011 (figura 1). Esta coleção faz parte de um conjunto de cinco títulos, selecionados
pelo PNLEM de 2012.
Figura 1 - Capas da coleção “Química: meio ambiente, cidadania e tecnologia” de Martha Reis Marques da Fonseca
As demais coleções são: “Química – Ensino Médio” (1ª edição, Editora Scipione,
2010), de Eduardo Fleury Mortimer e Andréa Horta Machado; “Química Cidadã” (1ª edição,
Editora Nova Geração, 2010), de Wildson Luiz Pereira Santos e Gerson de Souza Mól
2
(coordenadores); “Ser protagonista – Química” (1ª edição, Edições SM, 2010), de Julio Cesar
Foschini Lisboa e “Química na abordagem do cotidiano” (4ª edição, Editora Moderna, 2006),
de Francisco Miragaia Peruzzo e Eduardo Leite do Canto.
A escolha desta coleção deu-se face à análise dos resultados de um levantamento de
todas as inserções da temática “lixo” nas coleções mencionadas (apresentado no anexo A), em
que foram considerados textos, fotos, gráficos e desenhos em que este tema fosse mencionado
ou mostrado.
A escolha de uma coleção de livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático
para o Ensino Médio (PNLEM) de 2012, deve-se ao fato de que neste ano foram celebrados os
20 anos da ECO-92 ou CNUMAD - Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
o Desenvolvimento. Este acontecimento culminou com a realização da Conferência das Nações
Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (CNUDS), denominada Rio+20 e realizada de 13
a 22 de junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro. Este evento, em virtude das metas propostas
no anterior, tinha em sua agenda a renovação do compromisso político com o desenvolvimento
sustentável, por meio da avaliação do progresso e das lacunas na implementação das decisões
adotadas pelas principais cúpulas sobre o assunto e do tratamento de temas novos e emergentes.
O objetivo do encontro foi verificar se houve avanços em relação às cúpulas anteriores e o que
ainda precisa ser feito para que os países sejam, de fato, sustentáveis. (BRASIL, 2012)
Paralelamente à ECO-92 e como único evento oficial, o Ministério da Educação
(MEC) foi realizado um Workshop sobre Educação Ambiental. Os profissionais, reunidos nesse
encontro elaboraram um documento1 em que se reconhecia que, embora a promoção da
conscientização pública em defesa do meio ambiente e que Educação Ambiental em todos os
níveis de ensino sejam/fossem uma responsabilidade do Estado, a maior contribuição social tem
dava-se através da ação de grupos da sociedade civil e de outros grupos não-governamentais.
A partir deste entendimento, afirmaram que a efetivação desse processo necessitava que a
Educação Ambiental se incorporasse ao ensino de todos os graus e modalidades, existindo
inclusive a previsão legal para tanto. (BRASIL, 2005)
Vinte anos após a ECO-92, um novo evento de caráter internacional retoma, entre
diversos outros temas, a discussão de propostas relacionadas aos currículos escolares, como se
pode observar no texto da primeira de dez metas concebidas pela Subcomissão Especial da
Rio+20, constituída a partir da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados,
para acompanhar a Conferência Rio+20. Esta primeira meta propunha “revisar periodicamente
1 Disponível na íntegra em http://www.sds.sc.gov.br
3
currículos para incorporar a interdisciplinaridade na rede de ensino formal” e pode ser
constatada na figura a seguir, recortada do sítio da Câmara que trata da matéria.2
Figura 2 - Detalhe do material impresso de divulgação das Metas para o Desenvolvimento Sustentável
Nesse contexto em que a proposta de acompanhamento dos currículos nacionais ganha
espaço em um evento internacional, entendo que as coleções do PNLEM do ano de 2012 podem
oferecer indícios do que se tivesse alcançado no âmbito das discussões ambientais em currículos
da disciplina escolar Química.
Meu interesse por estas discussões e pelas temáticas ambientais surgiu muito antes de
começar a atuar como professora de Química. Como muitos outros colegas, minha trajetória
profissional não começou no magistério. Formei-me em 1983 no Bacharelado em Química com
atribuições tecnológicas3 na Universidade de São Paulo, mas sempre gostei do trabalho docente.
Ao assumir um cargo de gerência em uma multinacional, persistia a necessidade da vivência
escolar. Este foi um período em que pude vivenciar as atividades industriais relacionadas à
profissão de químico, mas também começar a me interessar por perspectivas ambientais e por
enfoques multidisciplinares para abordagem da realidade. Assim fui me interessando pelo
campo do ensino. Passei então a cursar as disciplinas didáticas à noite, com a intenção de me
capacitar melhor a fazer o que gostava, porque a Química da qual se fala em uma sala de aula
do o Ensino Médio não é a Química da faculdade, das indústrias. Estas últimas são, em última
2 Estas metas estão apresentadas na íntegra em http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/MEIO-
AMBIENTE/420456-METAS-DA-SUBCOMISSAO-RIO+20-SOBRE-EDUCACAO-AMBIENTAL.html
Acessado em 18 de junho de 2014. 3 Este era o nome dado aos formandos aptos a exercer o que posteriormente viria a se chamar de Química Industrial,
e que envolvia uma formação em parte acadêmica e parte tecnológica.
4
instância, bons exemplos para uma sala de aula cheia de adolescentes.
Em minha trajetória profissional, tive a oportunidade de trabalhar como docente de
Química do Ensino Médio e de Educação Ambiental em instituições públicas e privadas
voltadas para o ensino. Assim, além de ensinar Química para estudantes do ensino regular
básico, também participei de projetos voltados para Educação Ambiental. Neste caso, atuei
principalmente em Angra dos Reis, na Escola do Mar que foi criada em 1988 pelo Centro
Educacional Objetivo e pela Universidade Paulista-UNIP para receber alunos desta rede de
ensino, provenientes de todo o país. Um dos assuntos priorizados neste trabalho foi a Química
da água do mar, cujas aulas eram de minha responsabilidade.4 Representando esta escola, tive
também a oportunidade de participar juntamente a outros professores da equipe, da ECO-92
(Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento - CNUMAD),
realizada entre 3 e 14 de junho de 1992, no Rio de Janeiro. Este foi, com certeza, um marco em
minha perspectivas e concepções sobre a Educação Ambiental por ter vivenciado a
oportunidade de constatar a grande quantidade de indivíduos e entidades que já atuavam nesse
campo. Desde as gincanas de coleta de lixo organizadas pelo grupo de mergulhadores
autônomos do qual eu fazia parte, que começaram em 1986 nas praias de Ilhabela, São Paulo,
até aquele momento, eu tinha a certeza da importância de uma ação em prol da preservação mas
entendia-a como iniciativas individuais ou como eventos pontuais de pequenos grupos. A partir
deste momento, passei a empreender mais esforços e atenção às leituras voltadas para as
questões ambientais, tendo inclusive cursado em 1997 uma pós graduação lato sensu em
Ciências Ambientais – com enfoque na Educação – na Universidade Estácio de Sá, quando uma
parceria entre esta instituição, Furnas Centrais Elétricas e a Prefeitura de Angra dos Reis
propiciaram o curso neste município.
O ingresso no Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e, como consequência, no NEC - Núcleo de Estudos de
Currículo, sob a orientação da Prof.ª. Dra. Maria Margarida Gomes, possibilitou-me tomar
contato com importantes referências teóricas sobre aspectos sociais e históricos que permeiam
as disciplinas acadêmicas e escolares, os saberes escolares e as movimentações que envolvem
escola, cultura, currículo e poder. O principal enfoque do trabalho de minha orientadora está na
investigação de conhecimentos escolares materializados em materiais didáticos elaborados para
as disciplinas escolares, o que me permitiu construir meu objeto de pesquisa sobre o “lixo” em
livros didáticos de Química para o Ensino Médio. Essa construção do objeto de pesquisa foi o
4 Um breve panorama desta atividade está disponível em http://www.objetivo.br/escoladomar/agua_mar.htm.
5
fruto da confluência de três marcos: o currículo de Química expresso pelos livros didáticos, a
influência que os eventos internacionais poderiam ter sobre a educação ambiental no escopo
escolar e as temáticas ambientais mais frequentemente abordadas nos currículos escolares,
tendo escolhido o lixo numa referência de história pessoal das minhas primeiras incursões às
questões ambientais.
Ao longo das discussões desenvolvidas no NEC, tomei contato com as produções de
diversos autores, mas dou destaque especial a Ivor Goodson (1997, 2001, 2003, 2012) e Andre
Chervel (1990) por suas teorizações acerca das disciplinas escolares. A partir das leituras de
seus trabalhos, venho problematizando as formas de inserção das questões ambientais, como o
“lixo”, como produções constituídas por processos sócio-históricos que participam da formação
da disciplina escolar Química.
Além desses dois autores, no âmbito da produção acadêmica nacional acerca dos
currículos da disciplina escolar Química, destaco principalmente Alice Casimiro Lopes (1992,
1993, 1997, 1998, 2007) e Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo (2002, 2011). Os
trabalhos dessas autoras vêm me orientando para discussões sobre os currículos acadêmicos e
escolares em seus diversos aspectos, incluindo as especificidades dos currículos de Química.
Quanto ao referencial teórico da Educação Ambiental, ressalto a contribuição dos trabalhos de
Carlos Frederico Loureiro (2012a, 2012b).
Por fim, meu trabalho também vem sendo influenciado pela teorização da “ecologia
dos saberes” proposta pelo sociólogo português Boaventura Santos (2010). A partir das
contribuições desse autor foi possível construir um caminho para a discussão a respeito da
separação entre os saberes selecionados para integrar um currículo e aqueles que são excluídos.
Entendo que isso pode contribuir para a compreensão de como o “lixo” vem sendo inserido
como conteúdo de ensino na disciplina escolar Química.
Paralelamente aos estudos de todos esses autores, um levantamento de trabalhos
próximos da minha temática de pesquisa foi necessário para delinear um panorama de estudos
sobre o tema “lixo” na disciplina escolar Química. Escolhi as palavras-chave: ensino de
Química (no nível médio); livros didáticos (de Química); currículo de Química; educação
ambiental (no nível médio); lixo (enquanto temática de Educação Ambiental);
interdisciplinaridade/disciplinaridade e saberes docentes/formação de professores. Nesta lista
inclui também PCNEM/DCNEM (para a disciplina Química) e PNLEM por entender que a
presença da temática “lixo” em livros didáticos de Química do Ensino Médio também expressa
uma intenção governamental. O critério de seleção foi o cruzamento de palavras-chave de forma
6
a identificar os artigos nos quais pelo menos duas das palavras chaves selecionadas fossem
citadas no sumário. De cento e noventa e sete artigos identificados, analisei os resumos e
cheguei a uma seleção de vinte produções5 cujos textos mostraram-se potencialmente
contributivos para minha pesquisa.
Identifiquei neste levantamento trabalhos que discutem: o currículo; os livros didáticos
de Química (do nível médio, superior ou básico); e as temáticas ambientais. Diversos desses
trabalhos apoiam suas discussões nos referenciais teóricos de Ivor Goodson e Andre Chervel.
Constatei que, no âmbito das temáticas ambientais, a água é o tema mais presente e que, no que
poderia dizer respeito ao lixo, há mais interesse em discutir sua reciclagem do que sua produção,
disposição ou outros aspectos sociais. Nenhuma das produções encontradas trazia em seu
escopo a questão da temática “lixo” como conteúdo ambiental da disciplina escolar Química,
observada pelo viés dos livros didáticos.
Tem sido cada vez mais exigido do ensino das Ciências Naturais, entre elas a Química,
uma interação com problemas ligados ao contexto social, econômico e ambiental (BRASIL,
2000; 2002). A discussão de questões socioambientais no currículo de Química do Ensino
Médio tem potencial para atuar como um divisor de águas entre uma forma conservadora de
ensinar esta disciplina - que privilegia fórmulas, nomenclaturas, regras e modelos – e um saber
que viabilize uma melhor compreensão da vida cotidiana. Entretanto, é importante lembrar que
esta valorização não é a garantia de um ensino de Química voltado para práticas emancipatórias,
mas pode significar um avanço em relação a posturas mais coerentes com as ideias
socioambientais contemporâneas.
Por outro lado, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) instituída pela Lei n°
12.305, de 2 de agosto de 2010 (BRASIL, 2010a), posteriormente regulamentada pelo Decreto
n° 7.404, de 23 de dezembro de 2010 (BRASIL, 2010b), trata de várias questões relacionadas
aos planos de resíduos sólidos elaborados pelo poder público e pelo setor privado. Os objetivos
tanto da política quanto do decreto apontam para a não-geração, redução, reutilização,
destinação e tratamento final de resíduos sólidos, bem como das questões sociais relacionadas
ao lixo. Entre as ações previstas nessa política estão as de caráter educativo. A Política Nacional
de Resíduos Sólidos integra a Política Nacional do Meio Ambiente e articula-se com a Política
Nacional de Educação Ambiental, regulada pela Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999.
O artigo 77 do Decreto 7.404 traz, textualmente,
Art. 77. A educação ambiental na gestão dos resíduos sólidos é parte integrante da
Política Nacional de Resíduos Sólidos e tem como objetivo o aprimoramento do
5 Estes textos encontram-se relacionados no Anexo B.
7
conhecimento, dos valores, dos comportamentos e do estilo de vida relacionados com
a gestão e o gerenciamento ambientalmente adequado dos resíduos sólidos.
(...)
§ 2º O Poder Público deverá adotar as seguintes medidas, entre outras, visando o
cumprimento do objetivo previsto no caput:
I - incentivar atividades de caráter educativo e pedagógico, em colaboração com
entidades do setor empresarial e da sociedade civil organizada;
II - promover a articulação da educação ambiental na gestão dos resíduos sólidos com
a Política Nacional de Educação Ambiental;
III - realizar ações educativas voltadas aos fabricantes, importadores, comerciantes e
distribuidores, com enfoque diferenciado para os agentes envolvidos direta e
indiretamente com os sistemas de coleta seletiva e logística reversa;
IV - desenvolver ações educativas voltadas à conscientização dos consumidores com
relação ao consumo sustentável e às suas responsabilidades no âmbito da
responsabilidade compartilhada de que trata a Lei nº 12.305, de 2010;
V - apoiar as pesquisas realizadas por órgãos oficiais, pelas universidades, por
organizações não governamentais e por setores empresariais, bem como a elaboração
de estudos, a coleta de dados e de informações sobre o comportamento do consumidor
brasileiro;
VI - elaborar e implementar planos de produção e consumo sustentável;
VII - promover a capacitação dos gestores públicos para que atuem como
multiplicadores nos diversos aspectos da gestão integrada dos resíduos sólidos; e
VIII - divulgar os conceitos relacionados com a coleta seletiva, com a logística
reversa, com o consumo consciente e com a minimização da geração de resíduos
sólidos. (BRASIL, 2010b)
Enfim, considero que compreender a presença da temática “lixo” nos currículos de
Química pode abrir caminhos para a criação de um espaço de diálogo entre o que se discute na
escola e interesses sociais mais amplos, uma vez que as questões associadas ao “lixo” dizem
respeito à saúde pública e à educação. As fontes escolhidas para este estudo – os livros didáticos
do PNLEM – justificam-se pelo fato de que, para integrar este programa, os títulos devem se
alinhar a uma série de requisitos oficiais, inclusive no que diz respeito às orientações
curriculares para o Ensino Médio. Os livros didáticos, vistos desta forma, passam a ser um
veículo de comunicação das intenções que se tem para os meios e fins de uma disciplina escolar
e, por esse motivo podem contribuir para a construção de um bom retrato do “lixo” na disciplina
escolar Química.
2 – Os objetivos e a organização do trabalho
O objetivo central desta dissertação é compreender as formas, sentidos e significados
tomadas pela temática “lixo” na sua inserção em livros didáticos de Química para o Ensino
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Médio que foram selecionados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2012.
Procuro conduzir a análise a partir de dois eixos: (i) a identificação de quais abordagens,
sustentadas pelos diferentes significados sociais acerca do lixo, predominam nos currículos
escolares expressos pelos livros didáticos; e (ii) a compreensão de como estas abordagens se
relacionam com as tradições de ensino – finalidades educacionais, seleção de conteúdos e
métodos de ensino – mais valorizadas nos currículos da disciplina escolar Química para o
Ensino Médio.
Partindo desses objetivos, organizo a dissertação em três capítulos. No primeiro trago
uma discussão sobre a disciplina escolar Química, apresentando os pressupostos teóricos mais
relevantes para a discussão de minha temática, segundo os seguintes conceitos: as disciplinas
escolares, o currículo escolar e os livros didáticos. No segundo capítulo, proponho um diálogo
entre a temática “lixo” e a disciplina escolar Química, pelo viés da interdisciplinaridade. Nesta
discussão, apresento contribuições teóricas que contribuem para compreender o “lixo” como
um conhecimento escolar influenciado por diversos saberes incluindo aqueles provenientes do
campo da Educação Ambiental. E no terceiro capítulo passo a tratar diretamente da temática
“lixo” na amostra de livros escolhida, começando por expor os critérios que levaram à escolha
da coleção analisada. Em seguida, passo à sua apresentação, com sua organização em volumes,
unidades e capítulos, bem como a relação das ocorrências da temática “lixo” ao longo da
coleção. Por fim, encerro esta dissertação apresentando as considerações finais, que não têm a
pretensão de ser um término, um fechamento das questões propostas ao longo do trabalho mas,
talvez, uma possível orientação de investigações futuras.
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Capítulo 1 - A disciplina escolar Química
Ao iniciar este capítulo, assumo a importância para minha investigação de levar em
consideração a história de uma disciplina escolar para entender os movimentos, os embates e
as disputas de poder que permearam seu caminho até um dado momento histórico. Como um
primeiro passo para compreender os sentidos construídos sobre o ensino da temática “lixo” nos
livros didáticos da disciplina escolar Química no Ensino Médio, parto da premissa de que seu
currículo, bem como os critérios que preconizam a seleção do que é ensinado nessa disciplina,
não são neutros e, portanto, não são baseados unicamente em perspectivas dos conhecimentos
científicos em Química.
Apoio-me na perspectiva de Ivor Goodson de que o currículo escrito, ou pré-ativo,
impele o currículo em ação, não se podendo, entretanto, deixar de lado as discussões que
ocorrem no contexto escolar. As atualidades se sucedem e o que se discute a cada momento, na
sociedade, deixa suas marcas no currículo. Por isso, uma disciplina escolar não é monolítica e
a história de seu currículo não é linear. (GOODSON, 2001). O currículo escrito e o currículo
em ação dependem, portanto, do contexto social em que o conhecimento é concebido. Por isso,
cada disciplina possui uma história relacionada com o contexto, necessidades e fins sociais de
momentos vividos. E cada disciplina abraça conteúdos e conhecimentos considerados
importantes e constituídos para fins sociais maiores que são exigências de seu tempo.
Além disso, considero importante também o trabalho de André Chervel (1990), que
defende que a observação da prática escolar apresenta informações sobre a produção de
conhecimentos, que não são encontradas em outras instâncias da sociedade, o que sugere que
os estudos sobre a história das disciplinas escolares se voltem para a observação de fontes como
os manuais didáticos e cadernos escolares, por exemplo, pois estes materiais podem revelar
uma história ainda não relatada nem analisada. Dessa maneira, entendo que os livros didáticos
são materiais tributários de informações acerca da conformação da cultura escolar podendo ser
fontes preciosas sobre como se dá o ensino de cada disciplina escolar.
É por conta destas perspectivas, de valorização de aspectos sócio-históricos da
constituição das disciplinas escolares (GOODSON, 1997, 2001, 2003, 2012), e de valorização
de sua cultura escolar (CHERVEL, 1990) que os materiais didáticos podem ser compreendidos
como fontes de investigação. Levo também em consideração a relevância dos livros didáticos
enquanto materiais de destaque no sistema educacional assumindo que isso não assegura que
apenas uma determinada visão seja privilegiada nos processos de ensino de uma disciplina
escolar. Entendo que o livro didático não é uma obra fechada em si e que atua como um dos
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parâmetros que participam da formação das disciplinas escolares e também da cultura escolar.
Para Lopes (1992), o livro didático participa na formação docente e, portanto, tende a
modelar o trabalho do professor cujas deficiências de formação dificultam a organização de um
trabalho autônomo. Por esse motivo, pode-se considerar que a o livro didático participa
fortemente na determinação do quê e como será ensinado e, por isso, é “em grande medida,
representativo do que é ministrado pelos professores em sala de aula” (p.254). É no livro
didático que pode ser encontrada uma representação da seleção de conteúdos privilegiados
pelos currículos. Para contribuir nas discussões sobre a organização dos conteúdos e das
intenções ali presentes, busco respaldo nas contribuições de Alice Casimiro Lopes (1992, 1993,
1997, 1998, 2007). Nessa autora encontro a principal sustentação para discutir a disciplina
escolar Química no Ensino Médio em diálogo com as contribuições de Chassot (1990, 1996,
2003), Mortimer (1988), Mortimer, Machado & Romanelli (2000), Mortimer & Santos (1999)
e de Schnetzler (2002, 2007).
1.1 - O currículo e o estudo das disciplinas escolares
O currículo compreende um campo conceitual com diversas interpretações e
teorizações tantas que denotam sua importância, especialmente no âmbito da educação escolar.
Não existe uma noção única mas diversas noções de currículo, tantas quantas sejam as
perspectivas adotadas para sua observação e estudo. Embora o currículo ainda seja identificado
com um "plano de estudos" que compreende uma organização quanto à divisão, dosagem e
sequenciação de assuntos a serem apresentados, explicados e sua compreensão avaliada, ele
envolve muito mais atores sociais do que pressupõe-se na prática cotidiana de uma sala de aula.
O currículo não é apenas planificação, mas também a prática em que se estabelece o diálogo
entre professores, alunos, staff técnico escolar e as famílias. Há em sua constituição uma
pluralidade muito grande de protagonistas que é determinada pelo contexto no qual se insere e
no qual constrói seus sentidos a partir da valorização de algumas culturas em detrimento de
outras, para compor a cultura escolar. O currículo também envolve questões de poder nas
relações que permeiam o cotidiano da escola e fora dela, ou seja, envolve relações de classes
sociais, questões raciais, étnicas e de gênero, não podendo ser compreendido plenamente apenas
a partir de seus conteúdos de ensino (LOPES & MACEDO, 2011; SILVA, 2004).
Dada a importância do currículo no processo educacional, pode-se perceber diversas
teorias com perspectivas distintas para questiona-lo e tentar explicá-lo. Estas teorias podem ser
compreendidas como expressões da mediação entre o pensamento e a ação em educação,
11
podendo ser vistas como referenciais para os estudos sobre as problemáticas das práticas
curriculares. Algumas teorias sobre o currículo apresentam-se como teorias tradicionais,
intencionando uma “neutralidade” e objetividade científicas, enquanto outras, chamadas teorias
críticas e pós-críticas, argumentam que a neutralidade é uma falácia, que nenhuma teoria é
neutra ou desinteressada, o que implica relações de poder, evidenciando um interesse nas
conexões entre saber, identidade e poder (LOPES & MACEDO, 2011; SILVA, 2004).
Apesar de suscitar tantas teorizações, o currículo ainda é um conceito de difícil
explicação e consenso. Para alguns o currículo é um elemento formador da educação escolar,
compreendendo um conjunto de atividades inerentes à vida da escola, enquanto que outros
teóricos asseveram que o currículo diz respeito à seleção, dosagem e sequenciação dos
conteúdos da cultura a serem trabalhados no processo de ensino-aprendizagem. (Saviani, 2003).
Para Goodson o currículo é definido como “um percurso a ser seguido, ou mais
especificamente, apresentado” (2012, p.31). Sob sua perspectiva, o currículo - como uma
coleção de conteúdos a serem apresentados aos estudantes - pode ser traduzido como um elenco
de disciplinas a serem ministradas aos alunos.
Moreira (1997) afirma que o currículo constitui um significativo instrumento utilizado
por diferentes sociedades tanto para desenvolver os processos de conservação, transformação e
renovação dos conhecimentos historicamente acumulados, como para socializar as crianças e
os jovens segundo valores tidos como desejáveis. Então em uma perspectiva histórica o
currículo vai compreender conhecimentos, ideias, hábitos, valores, convicções, teorias,
técnicas, recursos, artefatos, procedimentos, símbolos, competências e habilidades, dispostos
em conjuntos de matérias e ou disciplinas escolares e respectivos programas, com indicações
de atividades e ou experiências para sua consolidação e avaliação. Desse modo, para muitos
professores o currículo educacional representa a síntese dos conhecimentos e valores que
caracterizam um processo social expresso pelo trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas.
Independentemente da pluralidade de forças que atuam na composição de um currículo
e da variedade de entendimentos que se dê a este conceito, uma sua característica é
predominante, senão constante: a presença das disciplinas escolares. A palavra disciplina, tal
como se conhece hoje é uma criação recente. A disciplina escolar consiste, em princípio, no
produto da seleção dos saberes da sociedade por um filtro específico, a tal ponto que, após
algum tempo, ela pode até mesmo, não ter mais qualquer relação com o saber de origem.
Segundo Iskandar & Leal (2002), foi somente a partir das décadas finais do século
12
XIX, num momento histórico em que o “Positivismo”6 influenciava o pensamento pedagógico
que foi atribuído à palavra “disciplina” o significado pelo qual é conhecida hoje, ou seja, uma
coleção de conteúdos afeitos a uma área de conhecimento estudada e ministrada em um
ambiente acadêmico ou escolar. Até antes desse momento, seu significado era associado
estritamente a padrões de conduta, à disposição para seguir regras de comportamento. Naquele
momento entendia-se que cabia ao ensino atuar como um agente disciplinador da inteligência
dos estudantes. Esta perspectiva imprimia uma marca de valor às Ciências, por serem tidas
como saberes neutros.
Nas décadas de 1960 e 1970, a Nova Sociologia da Educação e as Teorias Críticas do
Currículo detectaram a natureza parcial, não neutra e ideológica dos currículos escolares. A
Nova Sociologia da Educação (NSE), iniciada por Michael Young, na Inglaterra, nos primeiros
anos da década de setenta, constituiu-se na primeira corrente sociológica primordialmente
voltada para a discussão do currículo (MOREIRA, 1990, p.73) Segundo estas perspectivas, o
currículo não designa apenas um campo com o propósito de buscar a forma pedagogicamente
mais adequada de selecionar, organizar e apresentar os conteúdos, mas um conjunto de
prescrições e práticas que, sob esse pretexto pedagógico, contribui para a reprodução das
relações sociais existentes. As disciplinas podem assim ser consideradas o modo como estas
finalidades podem ser concretizadas e constituem os suportes destas finalidades porque se
constituem a partir de seleções que acabam por englobar alguns conteúdos e não outros. Por
fim, não se poderia perder de vista que as finalidades inscritas nas disciplinas escolares visam
não apenas o ambiente escolar, mas a sociedade em que este se situa. Face a essa nova proposta,
os reformadores curriculares buscaram introduzir uma postura "crítica" e "reflexiva" nas
disciplinas.
Entretanto, essa percepção das disciplinas escolares foi questionada por Andre
Chervel, em “História das Disciplinas Escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa”,
publicado em 1990. Para esse autor, essa perspectiva pode reduzir a escola a um mero agente
de transmissão de saberes elaborados fora dela, sem considerar a existência de outros fatores
constituintes das disciplinas escolares. Para Chervel (1990, p.178), “disciplina” enquanto
conteúdo de ensino, foi uma palavra que, se prestou à designação de diversos conteúdos tratados
6 Segundo Iskandar e Leal (2002, p.2) as ideias positivistas formalizadas por Auguste Comte no século XIX,
surgiram como uma resposta à incapacidade da filosofia especulativa para resolver os problemas filosóficos que
resultavam do desenvolvimento científico. O Positivismo rejeitava a especulação teórica como uma forma de
obtenção de conhecimento e declarou serem falsos todos os problemas, conceitos e proposições da filosofia
tradicional que não pudessem ser resolvidos ou verificados experimentalmente segundo o modelo das ciências
empíricas, proporcionando-lhes uma metodologia. Sendo assim, o Positivismo é, essencialmente, o empirismo
levado a limites extremos, pois assume que nenhuma especulação pode ser traduzida em conhecimento.
13
apenas como objetos, ramos ou matérias de ensino, desde o começo do século XX. Segundo
este autor, o termo “disciplina” representava, inicialmente, uma “matéria de ensino suscetível
de servir de exercício intelectual” (Chervel, 1990, p.179). Por considerar imprecisa esta
definição, Chervel passa a aplicar o termo como sendo “aquilo que se ensina” (idem, p.177).
Para este autor, o estabelecimento e o funcionamento de uma disciplina caracterizam-se, pela
sua lentidão e segurança. Gradualmente, esse termo começou a ser associado às diversas
matérias de ensino, um significado que permanece até a atualidade.
Para Chervel (1990), “a disciplina é o preço que a sociedade paga à cultura para passá-
la de uma geração à outra”7. Em outras palavras, para esse autor, a disciplina escolar seria
resultado de uma “filtragem seletiva” dos saberes da sociedade, a tal ponto que, após algum
tempo, ela pode não mais guardar relação com o saber de origem. E em todo processo de
seleção, algo passa e algo se perde: daí a intenção do “preço”. Na visão deste autor, as
disciplinas escolares não são um reflexo ou uma adaptação das ciências de referência pois, à
medida que sua história se desenrola, uma disciplina sofre transformações no seu interior,
complicando a avaliação de sua relação com a sociedade e dando a impressão de que só os seus
fatores internos, ou aqueles relacionados com a sua ciência de referência, foram responsáveis
pela sua história. As disciplinas escolares, neste caso tem uma identidade própria. Encontrar os
pontos principais desse processo, considerando as forças e os interesses sociais em jogo na
história de uma dada disciplina, pode esclarecer seus conteúdos e suas práticas objetivando, se
necessário, modificá-los para atender a novas demandas, em vez de reproduzi-los como se
fossem neutros e independentes.
Assim, Chervel (1990) define a disciplina escolar como sendo o
... fruto de um diálogo secular entre os mestres e os alunos.... é o código que duas
gerações, lentamente, minuciosamente, elaboraram em conjunto para permitir a uma
delas transmitir à outra uma cultura determinada. ( p.222)
Em sua perspectiva, o conceito de disciplina delimita uma forma de “dar os métodos
e as regras para abordar os diferentes domínios do pensamento, do conhecimento e da arte”
(CHERVEL, 1990, p.180). Por esta razão, a função das escolas não se limitaria ao exercício
das disciplinas escolares, mas alcançaria um conjunto de finalidades que atribuem à escola sua
ação educativa.
Dos diversos componentes de uma disciplina escolar, Chervel (1990) enfatiza a
7 No original em francês, publicado no periódico Histoire de l’éducation , n° 38, Chervel declara “Les disciplines
sont le prix que la société doit payer à as culture pour pouvoir la transmettre dans le cadre de l'école ou du collège”
(1988, p.119).
14
exposição pelo professor ou pelo “manual de um conteúdo de conhecimentos” (idem, p.202) e
destaca que a primeira etapa na investigação sobre as disciplinas escolares é estudar os
conteúdos preconizados nos manuais desta disciplina, que registram o corpus de conhecimentos
da mesma. Em sua ótica, uma disciplina atinge uma estabilidade pela consideração de práticas
pedagógicas que obtiveram sucesso na consecução das metas propostas. Essas metas,
generalizadas e reproduzidas, tendem a legitimar-se.
Chervel entendia a escola como uma instituição capaz de produzir um saber próprio,
originado de fatores determinantes da própria instituição, saber este que se estenderia para a
sociedade e a cultura. Nesta medida, o processo de disciplinarização que ocorre dentro da escola
é que atuará na constituição das diferentes disciplinas escolares, as quais são concebidas
[...] como entidades sui generis, próprios da classe escolar, independentes, numa certa
medida, de toda a realidade exterior à escola, e desfrutando de uma organização, de
uma economia interna e de uma eficácia que elas não parecem dever a nada, além
delas mesmas, quer dizer, a sua própria história (CHERVEL, 1990, p.180).
A disciplinarização segundo Chervel pressupõe configurar ou reconfigurar um
conteúdo dentro da escola, numa criação própria e original, de modo que atenda a finalidades
criadas e pretendidas nos meios sociais que constituem a educação, e o sucesso deste processo
será tanto maior quanto maior a adequação do conteúdo reconfigurado.
Considerando essa perspectiva os conteúdos de ensino das diferentes disciplinas
podem ser dados como produzidos no âmbito da própria escola e a partir dos conhecimentos
que a ela chegam para serem transmitidos aos alunos. Como consequência, o saber escolar pode
ser visto como relacionando-se direta mas não exclusivamente com a escola. Durante o processo
de disciplinarização não apenas determinados conteúdos e métodos de ensino naturalizam-se
produzindo e reproduzindo padrões socialmente aceitos de conhecimentos, de professores e de
alunos. Para Chervel (1990), a constituição das disciplinas integrantes do currículo escolar é
uma construção interna e externa à escola que se conecta à concepção de saber escolar.
Por conseguinte, o cotidiano escolar, as práticas de ensino de professores e alunos e os
materiais escolares vêm ganhando importância no processo educativo e, nesta perspectiva, as
disciplinas escolares vêm se tornando o interesse de pesquisadores nas últimas décadas. Esse
interesse está relacionado à busca por se entender o papel e o significado de cada uma das
disciplinas na composição curricular, buscando caracterizar o conhecimento escolar por elas
produzido. Para Chervel (1990), a história das disciplinas escolares deve partir de uma
concepção de disciplina entendida em suas especificidades, com objetivos próprios, que se
articula com os demais saberes mas não forma um conhecimento menor. Por isso, as pesquisas
15
históricas devem buscar entender suas especificidades e sua autonomia. Portanto, a concepção
do saber escolar é fundamental para entender e superar os pressupostos de uma visão de que as
mudanças que acontecem na escola são gestadas exclusivamente fora dela e que esta
transforma-se apenas pelas intervenções de grupos intelectualmente hegemônicos ou pelos
agentes políticos.
Com relação à palavra “currículo”, Ivor Goodson (2012, p.31) explica que ela deriva
do termo latino scurrere, que significa correr e refere-se a curso (ou carro de corrida). Assim,
o conceito de currículo como sucessão organizada estabelece uma relação entre controle e
conhecimento evidenciando a existência de grupos de poder, determinados pela maneira como
o conhecimento é compreendido e do contexto social em que se dá este entendimento. Se o
conceito de currículo delineia e existência de forças hegemônicas, sua ação na determinação do
que interessa ou não estudar põe à mostra a ação destes mesmos grupos em legitimar
determinados saberes. Desta forma, ficavam associados os currículos e as disciplinas escolares,
passando-se a ser entende-los como estruturadores do conteúdo escolar a ser apresentado, uma
seleção do que, de quem e para quem ensinar.
Para Goodson, é necessário que comecemos por entender como se produz o currículo.
Segundo este autor, a história do currículo “[...] analisa as circunstâncias que homens e
mulheres conhecem como realidade, e explica como, com o tempo, tais circunstâncias foram
negociadas, construídas e reconstruídas. (GOODSON, 2012, p.120). Em resumo, é necessário
teorizar sobre os contextos, dando relevância à ação (GOODSON, 2003, p.79). Se observado
mais detidamente, o processo de produção do currículo não é uma construção lógica mas sim
social, na qual coexistem os fatores lógicos em si, mais os intelectuais, além de interesses,
conflitos simbólicos e culturais, buscas pela legitimação e pelo controle (GOODSON, 2012,
p.120). É plausível supor que também estejam presentes propósitos de dominação orientados
por fatores ligados à classe, à raça, ao gênero entre outros fatores que possam ser usados para
diferenciar socialmente os indivíduos, uma vez que este mesmo autor propõe que “matérias
escolares, métodos e cursos de estudo constituíram um mecanismo para designar e diferenciar
estudantes” (idem, p.118).
Goodson contemplou o estudo do processo histórico de construção de uma disciplina
escolar para além do entendimento das relações complexas entre a escola e a sociedade e da
aceitação das disciplinas escolares como originárias exclusivamente do conhecimento
acadêmico. Esse é um processo social, no qual coexistem os fatores lógicos e intelectuais, com
determinantes sociais tais como interesses, rituais, conflitos, necessidades de legitimação,
controle e dominação (idem, p.118). Desta forma, o currículo não é constituído de
16
conhecimentos válidos, mas de conhecimentos considerados socialmente válidos num
determinado momento e numa determinada sociedade.
Esta validade temporal dos conhecimentos socialmente legitimados indica que
eventualmente os currículos sofrem alterações. Investigando os processos de estabilidade e de
mudanças curriculares, Goodson (2012) sustentou que estas últimas são mais vagarosas e
graduais quando os fatores internos e externos estão em conflitos. A análise histórica de uma
matéria escolar permite identificar as rupturas e resistências, assim como os pontos de
continuidade possibilitando a compreensão de como o estatuto, os recursos e a estruturação das
disciplinas escolares levam o conhecimento de uma disciplina para direções específicas.
Decorre desse panorama que, para investigar o currículo, é necessário ir além dos
limites de sua esfera técnica (normas, leis, programas, ementas, dentre outras), buscando
compreender a esfera social e política em que os seus diversos aspectos são negociados.
Goodson (2012) chama de currículo prescrito tanto às prescrições escritas advindas de órgãos
políticos e administrativos, mas também se enquadram neste panorama os livros de texto, guias,
programas e programações do professor. Desta forma, os níveis de construção do currículo
prescrito se estendem até as instituições docentes, departamentos das matérias ou disciplinas e
mediante os planejamentos e planos de aula que os professores redigem. Assim, pode-se
entender que a elaboração do currículo prescrito, entendida em termos de embates de poder,
interesses e negociações, também faz parte da mesma prática.
Tomando como ponto de partida a percepção de que a educação é uma ação social e
que, como tal, demanda tomadas de decisão, estas decisões podem ser assumidas como uma
seleção de variáveis destinadas a obtenção de um resultado pretendido e adequado às
necessidades de um sistema. Os critérios de seleção dos conteúdos de um currículo como
construção social levam em consideração o contexto histórico, ideológico, os documentos
oficiais, as representações sociais e as vivências individuais. (GOODSON, 1997)
Segundo Goodson (2003), existem uma instância prescrita, pré-determinada do
currículo e também o currículo em ação. A distinção entre currículo escrito, prescrito ou pré-
determinado e currículo em ação é muito importante. É a diferença entre o que se pretende que
seja feito e o que se faz. Por currículo prescrito ou preativo, o autor entende não somente as
prescrições escritas emanadas de órgãos políticos e administrativos, mas também os livros de
texto, guias, programas e programações do professor. No currículo escrito existem critérios e
intenções que acabam por atender a uma avaliação pública da escolarização. O currículo escrito
está sujeito a mudanças pois é uma lógica que se escolhe para legitimar uma forma de
escolarização. No que se refere ao currículo real, o currículo em ação, temos a realidade de que
17
nem sempre as escolas aceitam ou reproduzem passivamente os discursos ditados pelos órgãos
oficiais ou pelas escolas de formação. Ignorar a história e a construção social favorecerá a
“mistificação e reprodução do currículo tradicional, tanto na forma como no conteúdo”
(GOODSON, 2012, p.27).
O currículo escrito, em confronto com interesses e disputas por poder, não
necessariamente se materializa em currículo em ação. O vínculo que se instaura entre
conhecimento e controle na definição de currículo funciona em dois níveis:
Em primeiro lugar, existe o contexto social em que o conhecimento é concebido e
produzido. Em segundo lugar, existe a forma em que este mesmo conhecimento é
‘traduzido’ para uso em ambiente educacional particular ... as salas de aula.”
(GOODSON, 2012, p.32)
Sob esta ótica, é possível perceber que os pontos de vista eventualmente defendidos
nos níveis micro e macro de um sistema de ensino, estão relacionados, mas pode-se perceber
sempre um certo distanciamento entre o que se pretende e o que realmente acontece em sala de
aula. Dessa forma, é importante destacar, nessa linha de reflexão, a importância de se considerar
nessa análise de currículo, os níveis macro e micro porque “concentrar a atenção no micronível
de grupos ligados a alguma matéria de alguma escola, não é negar a importância fundamental
das mudanças econômicas de macronível ou das mudanças de ideias intelectuais, dos valores
dominantes ou dos sistemas educacionais” (GOODSON, 2012, p.76-77).
Porém não é só o currículo prescrito que condiciona e limita a ação em sala de aula.
Para além das possibilidades de inovação e mudança, há também que considerar as tradições.
Goodson (2012) se aproxima de Hobsbawm (2012) ao afirmar que os processos de elaboração
de currículos podem ser considerados processos de invenção de tradições. Desse modo, o
currículo é uma construção sócio histórica que se “cristaliza” enquanto tradição escolar ao
longo de embates entre grupos de poder e, por isso, é um exemplo de tradição inventada.
Para Hobsbawm e Ranger
Tradição inventada significa um conjunto de práticas e ritos: práticas normalmente
regidas por normas expressas ou tacitamente aceitas; ritos ou natureza simbólica - que
procuram fazer circular certos valores e normas de comportamento mediante
repetição, que automaticamente implica em continuidade com o passado. De fato, com
um passado histórico apropriado. (1985, p.1)
E para Goodson
A elaboração de um currículo pode ser considerada um processo pelo qual se inventa
uma tradição. Com efeito, esta linguagem é com frequência empregada quando as
“disciplinas tradicionais” ou “matérias tradicionais” são justapostas, contra alguma
inovação recente sobre temas integrados ou centralizados na criança. A questão é que
o currículo escrito é exemplo perfeito de invenção da tradição (2012, p.78).
18
Assim, ao longo dos períodos em que as tradições são “inventadas”, disputas de poder
vão determinando o que é ensinado para quem. Grupos e subgrupos das comunidades
disciplinares vêm há muito inventando tradições que lhes convenham e que legitimem o que
defendem. O currículo como “tradição inventada” não é algo que se considere como pronto de
uma vez por todas. Ele define um tipo de verdade – ele fornece uma estrutura para a ação que
pode até permanecer por muito tempo sem ser questionada. Uma dada seleção de
conhecimentos pode até vir representando, ao longo do tempo, determinados grupos
dominantes. Por isso, ao se considerar uma disciplina escolar como definitiva no currículo,
associando-a a uma determinada tradição de ensino e sem levar em consideração sua trajetória
histórica de constituição, passamos a naturalizá-la, sem reconhecer os embates que a levaram a
estar presente no currículo.
Portanto, pode-se considerar o currículo como sendo fruto de uma seleção que atende
a interesses de determinados grupos sociais, interesses estes que são atravessados por relações
de poder em contextos sócio-históricos específicos, o que vai sendo reafirmado ao longo do
tempo. Desse modo, considerando o fato de que a construção de um currículo também é um
processo que inventa “tradições”, pode-se entender a relação entre currículos escolares,
disciplinas e controle (LOPES, 1997).
Mas, se o currículo é uma “invenção” que vai sendo assumida pelas práticas
curriculares escolares e, portanto, legitima determinadas relações de poder e também reproduz
um sistema de valores e padrões de comportamento, nada assegura que tais práticas aceitem,
defendam e perpetuem as visões expressas em forma de documentos escolares tais como os
livros didáticos. Dentro da escola novos significados são produzidos e negociados por
professores e alunos que vão assim exercendo transformações nas tradições de ensino e,
portanto, participando das construções de novos modos de ensinar. A partir destas produções e
negociações são eleitos os assuntos constituintes de cada componente curricular que refletem
as visões que vencem as disputas em torno do que se considera o melhor para a formação dos
estudantes. Desse modo, o currículo de cada área disciplinar não pode ser entendido como
neutro. Ao desnaturalizar a perspectiva de neutralidade do currículo é possível delinear o que é
mais ou menos valorizado.
Assim, é importante considerar, como Lopes & Macedo (2002), o papel da
organização disciplinar do currículo. E nesse caso, embora a seleção de conteúdos seja
embebida de uma intencionalidade que atende a quem define o que é ou não importante estudar
e ensinar, ainda assim “a disciplina escolar é uma instituição social necessária...” (p.83).
Embora suas intenções excedam o mero compartilhamento de saberes, as disciplinas organizam
19
o trabalho escolar. E mesmo que uma dada organização disciplinar de conteúdos possa atender
a uma lógica que não valoriza as questões sociais como parte dos conteúdos de ensino que
constituem os currículos disciplinares, a sua ausência pode inviabilizar a construção de
perspectivas mais críticas de cidadania. Nessa perspectiva, as autoras apontam ainda para o fato
de que a disciplinarização atua como um mecanismo de regulação e de controle do espaço,
horário, e de qualquer atividade relacionada ao ensino.
Para Lopes & Macedo (2002 p.83), a disciplina escolar
... traduz conhecimentos que são entendidos como legítimos de serem ensinados às
gerações mais novas, organizam o trabalho escolar, a forma como professores
diversos ensinarão(...) orientam como os professores são formados, como os exames
são elaborados, como os métodos de ensino são constituídos, como se organiza o
espaço e tempo escolares.
Por outro lado, também a respeito da força da organização disciplinar na constituição
dos currículos escolares, Goodson (1997) defende que “a estruturação do ensino em disciplinas
representa, simultaneamente, uma fragmentação e uma internalização das lutas pela estatização
da educação” (p.4). A legitimação das disciplinas “como a base dos currículos do ensino
secundário é, talvez, o princípio mais bem sucedido na história da ação curricular” (idem).
Desta forma, para este autor, as disciplinas são os principais agentes da produção sócio-histórica
dos padrões de estabilidade curricular.
Além disso, com base nesse autor, as disciplinas não podem ser consideradas como
entidades “monolíticas”, mas sim como espaços de tensão, conflitos e disputas por hegemonia,
por espaço no currículo. Desse modo, uma disciplina surge no currículo, a princípio, para
responder a uma necessidade social de existência imediata, ou seja, a partir de finalidades
educacionais de natureza utilitária ou pedagógica. À medida que vai ganhando prestígio, vai
delineando um percurso em direção a uma tradição de perspectiva mais acadêmica, abstrata,
mais distanciada do cotidiano, da realidade. Há sempre nesse caminho de criação, recriação e
valorização das disciplinas, conflitos e lutas por financiamentos, recursos, prestígio de
determinados grupos, lideranças e interesses políticos. A origem de uma determinada disciplina
não segue os mesmos critérios de surgimento de outras. A forma como se estabelece
transforma-se constantemente, uma vez que ela é o resultado da negociação de diferentes
grupos, unidos por interesses e tradições comuns (GOODSON & BALL, 1984, p.3–4)8.
8 Encontra-se no texto original o trecho: “A twin focused analysis, using histories and ethnographies, allows full
account to be taken of the socially and politically constructed nature of school subjects and tends towards a view
of the structure and contents of the school curriculum as the products of previous and ongoing struggles, within
and between subject communities. In this way, the “taken-for grantedness” of the curriculum and its subject
components is challenged. Historical work concentrating on the emergence and establishment (or decline) of
school subjects highlights the contested nature Of subject knowledge, indicating the role played by various, vested
20
Por isso, cada disciplina tem uma história, que pode ser relacionada com as
necessidades que se apresentam ao longo de um período, e o seu estabelecimento pode se
mostrar como uma dinâmica, um constante movimento, pois pode ser observada como o
resultado da coordenação de grupos diferenciados, unidos por interesses e tradições comuns. O
entendimento do processo de construção e implantação de um determinado currículo depende,
portanto, da observação tanto de fatores externos quanto internos à escola, os quais, de alguma
maneira, sustentam o funcionamento do sistema educacional fornecendo critérios e
eventualmente “coerções” aos atores envolvidos na construção e promoção das disciplinas
escolares (Goodson, 1997, p.44). Isto remete aos padrões de estabilidade e mudança, processos
presentes na construção das disciplinas escolares.
Ainda segundo Goodson (1997), apesar de receber fortes críticas, a organização
disciplinar dos currículos escolares ainda é extensamente aceita. A manutenção e a legitimação
das disciplinas escolares no currículo são características nomeadas pelo autor de “padrões de
estabilidade” que ocorrem ao longo de períodos históricos. Tais padrões são resultantes de
dinâmicas e conflitos sociais que operam nos currículos escolares. Nesse sentido, Goodson
aponta para a necessidade de que se observe a disciplina “como um bloco num mosaico
construído durante os quatrocentos anos (ou mais) ... Só aí poderemos começar a entender o
papel da disciplina escolar no que diz respeito a objetivos sociais mais amplos...” (1997, p.31).
Para este autor, a fragmentação do conhecimento em disciplinas impõe obstáculos às discussões
acerca das finalidades sociais do ensino e isso atende à permanência, e à estabilidade desta
fragmentação. Sendo assim, o sistema educacional desta forma concebido, ratifica aquela
estabilidade e dissimula as relações de poder que sustentam o conjunto de ações curriculares.
Apesar de divergências entre os grupos participantes das decisões curriculares, a
manutenção de padrões disciplinares é corriqueira. A estruturação dos currículos disciplinares
é a base para a sua estabilidade. É ela que ao mesmo tempo sustenta as disciplinas e é também
sustentada por elas. Entretanto, dada a heterogeneidade das comunidades disciplinares, as
transformações do currículo podem acontecer em alguns níveis e não acontecer em outros. Por
isso, Goodson (1997) mostra que quando os grupos sociais, que agem internamente às
interest groups in the selection and definition of “appropriate” contents”.
Numa tradução livre, este trecho pode ser entendido como “Uma análise de duplo foco, usando histórias e
etnografias, permite dar conta totalmente da natureza da construção política e social das disciplinas escolares e
tende para uma perspectiva da estrutura e do conteúdo do currículo escolar como sendo os produtos de lutas
anteriores e em curso, dentro de e entre as comunidades disciplinares. Desta forma, o que é “tido como garantido"
no currículo e seus componentes disciplinares é desafiado. O trabalho histórico concentrado no surgimento e
estabelecimento (ou declínio) das disciplinas escolares destaca a natureza controversa do conteúdo de uma
disciplina, indicando o papel desempenhado pelos vários grupos de interesse, na seleção e definição dos conteúdos
"apropriados".
21
disciplinas, entram em acordo com as demandas sociais e educacionais dos meios externos,
ocorrem mudanças curriculares. Em função dos limites impostos pelos fatores externos e
internos, os agentes sociais envolvidos nesses processos tendem a naturalizar essa situação,
desconsiderando o processo sócio-histórico que envolve o conhecimento e sua construção. Essa
naturalização do padrão de estabilidade acaba por ocultar possíveis mudanças ocorrendo no
currículo. Logo, investigar os padrões de estabilidade no currículo de uma instituição permite-
nos compreender não só a trajetória da disciplina, como também os fins sociais da instituição
pesquisada e dos mecanismos internos e externos paralelos à instituição. Além disso, pode
também mostrar as mudanças que ocorrem em coordenação com a manutenção de determinado
padrões de estabilidade.
A disciplina Química do currículo escolar do Ensino Médio, assim como todas as
demais, também é suscetível a estes processos que compõem coordenadamente os padrões de
estabilidade e mudança na abordagem do ensino de seus conteúdos. Tais padrões podem ser
analisados em documentos curriculares tais como os livros didáticos, considerando-os como
uma das formas de expressão do currículo. Há pesquisadores do ensino de Química e da prática
dos docentes desta disciplina que são também autores de livros didáticos9 e, por esta
intersecção, acabam por passar propostas e problemáticas do ensino discutidas em suas
pesquisas para esses materiais. Assim, pequenas mudanças na organização curricular de um
livro didático podem estar refletindo um panorama mais amplo de mudança nesta disciplina.
Por isso, além de outras particularidades das quais tratarei na próxima seção, entendo que os
livros didáticos também expressam aspectos relacionados aos processos de construção
curricular do ensino de Química no nível médio.
1.2 – O currículo e o livro didático
Considero que a Educação é, por sua origem e finalidades, uma ação social atrelada ao
contexto político, econômico, científico e cultural de uma sociedade. Sob esta perspectiva,
decorre que a educação escolar compreende uma construção e reconstrução coletiva de
determinados conhecimentos. Isso acontece pela mediação de diversos fatores, pessoais, sociais
e materiais. Pessoais porque há a ação de cada indivíduo envolvido neste processo, social
porque a educação acontece dentro de um contexto que envolve muitos mais agentes que apenas
os presentes no ambiente escolar e, por fim, materiais porque as escolhas ou disponibilidades
9 Attico Chassot, Eduardo Fleury Mortimer e Gerson Mól são autores frequentes nas coleções de Química para o
ensino médio e são também tributários de pesquisas sobre e para o ensino de Química neste segmento.
22
de recursos também podem interferir nesta produção.
Materiais didáticos são recursos de suporte aos processos de ensino e aprendizagem,
que mediatizam a relação entre o professor, alunos e o conhecimento, e cuja utilização pode
acontecer dentro e/ou fora do ambiente escolar, mas sempre orientado por este. Para Gorroño
(2001), material didático compreende o conjunto de
(...) todos aqueles recursos que contém informações que exemplificam, expõem
ideias, relata experiências práticas, etc., que definitivamente, contribuem a facilitar e
fundamentar a tomada de decisões em que o professor precisa levar adiante no
desempenho de suas funções na elaboração e desenvolvimento do currículo. Além
disso, este conceito de materiais curriculares inclui aqueles recursos (livros,
esquemas, mapas conceituais, painéis, cadernos, etc.) que facilitam a aprendizagem
dos alunos e das alunas no desenvolvimento do programa da disciplina. (p.8)
O uso destes materiais visa a – em princípio – tornar as práticas do ensino mais
dinâmicas, palpáveis e interessantes. É importante lembrar que o conceito de material didático
vai além do material impresso, como apostilas e livros. Porém este último, especialmente em
sua versão didática, tornou-se segundo Lajolo (1996), especialmente importante no Brasil em
decorrência da exiguidade de recursos tais como laboratórios e bibliotecas. Essa situação faz
com que o livro didático seja usado de forma representativa na escolha do que e de como se
ensina.
Para Lajolo (1996)
Dentre a variedade de livros existentes, todos podem ter – e efetivamente têm – papel
importante na escola. Didático, então, é o livro que vai ser utilizado em aulas e cursos,
que provavelmente foi escrito, editado, vendido e comprado, tendo em vista essa
utilização escolar e sistemática. (p.5)
Decorre desse panorama a representatividade do livro didático como instrumento que
pode atender à necessidade e importância de organizar o currículo de uma disciplina, mas
também pelo que ele pode estar comunicando em termos de “padrão de cultura”.
Segundo Soares (2002),
Há o papel ideal e o papel real. O papel ideal seria que o livro didático fosse apenas
um apoio, mas não o roteiro do trabalho dele. Na verdade isso dificilmente se
concretiza, não por culpa do professor, mas de novo vou insistir, por culpa das
condições de trabalho que o professor tem hoje. Um professor hoje nesse país, para
ele minimamente sobreviver, ele tem que dar aulas o dia inteiro, de manhã, de tarde
e, frequentemente, até a noite. Então, é uma pessoa que não tem tempo de preparar
aula, que não tem tempo de se atualizar. A consequência é que ele se apoia muito no
livro didático. Idealmente, o livro didático devia ser apenas um suporte, um apoio,
mas na verdade ele realmente acaba sendo a diretriz básica do professor no seu ensino.
( p. 2)
Mais que um depositário de informações, o livro didático é, por excelência, um objeto
cultural pois contém uma vasta gama de marcas culturais tais como valores morais, hábitos e
23
condutas socialmente recomendáveis. Ele é um instrumento didático que expõe qual tipo de
raciocínio se vai privilegiar na formação dos estudantes, bem como uma fonte de informações
que pode revelar componentes sociais do currículo escolar. Assim, o livro didático é um
elemento importante, dentre os agentes promotores de mudanças ou permanências curriculares.
O livro didático não é uma obra fechada em si, não atua como auxiliar do processo de
construção do conhecimento escolar, mas sim como modelo padrão de transmissão destes
conhecimentos, modelando dessa forma o tipo de professor, cujas deficiências de formação
dificultam ou impedem a organização de um programa de trabalho próprio. Por isso, o livro
didático é selecionado de forma intencional. Ele contribui para a determinação do que e como
será estudado, mesmo quando não é o título adotado e, por isso, é “em grande medida,
representativo do que é ministrado pelos professores em sala de aula” (LOPES, 1992, p.254).
É no livro didático que encontramos uma representação da seleção de conteúdos privilegiados
pelos currículos.
Tivemos por pressuposto em nossa análise que o conjunto de livros didáticos
pesquisado reflete com alto grau de fidelidade os conteúdos ensinados em sala de aula.
A despeito de muitos professores não utilizarem livros didáticos, é nesse material que
eles procuram a orientação sobre o que ensinar e como ensinar. Daí considerarmos
que a análise dos livros didáticos brasileiros tende a ser a própria análise do conteúdo
de Química ensinado no País. (LOPES, 1993, p.310)
Portanto, com base nas ideias dos autores discutidos neste trabalho, o currículo é um
artefato relacionado com uma organização intencional de conteúdos da cultura a serem
desenvolvidos no processo de ensino. Ele compreende conceitos, técnicas, explicações e valores
numa construção sócio-histórica que se “cristaliza” em tradições escolares ao longo de embates
entre grupos de poder objetivando determinar o que será ensinado para quem. Em termos
práticos, um currículo se expressa no ambiente escolar numa grade curricular que se presta à
organização do trabalho pedagógico e que compreende a seleção dos conteúdos e saberes
escolares. Uma das maneiras destes saberes hegemonicamente legitimados chegarem ao
ambiente escolar é por meio do livro didático e através do reconhecimento por parte de
professores, alunos, pais de alunos, do valor de se ter, ler e usar um livro. Essa perspectiva o
empodera-o de forma robusta. Portanto, parto do pressuposto de que os livros didáticos podem
ser entendidos como manifestações curriculares dos propósitos, conteúdos e métodos das
disciplinas a que se destinam. Eles participam da produção de conhecimentos no cotidiano
escolar e, para além dos muros da escola, nas instâncias que os escrevem e produzem assim
como onde se determina o que será ensinado.
Os livros didáticos refletem as políticas educacionais e as demandas sociais dos
24
períodos em que são produzidos. No caso dos livros de química, em muitos aspectos, tendem a
ser “obras que seguem basicamente o mercado, e não os interesses do ensino” (LOPES, 1993).
Eles se associam às determinações do estado acerca dos saberes legítimos ensinados na escola,
atuando neste caso como um instrumento de seleção de conteúdos e representações a serem ser
ensinados numa disciplina ou área de conhecimento e em determinado nível. O conteúdo do
livro didático expressa ideias sobre o conhecimento, a estrutura social e sobre a legitimidade de
práticas culturais que exacerbam sua relação direta com o currículo, como categoria de
conhecimento pedagógico. Por conseguinte, atuam como dispositivos de controle político-
cultural institucionalizado. O que está nos livros didáticos é o que interessa a alguém que integre
o patrimônio cultural escolar. Esse alguém pode não ser necessariamente o professor ou os
estudantes, pode ser alguém externo aos limites da escola.
Por outro lado, essa visão pode ser olhada de modo mais ampliado, pois segundo
Gomes, Selles & Lopes (2013),
Os livros didáticos são compreendidos como produções escolares que expressam os
sentidos das práticas curriculares, bem como produzem significados sobre as
definições do que se ensina, de como se ensina e de qual formação docente deve ser
desenvolvida. (...) os livros são investigados como construções curriculares que
resultam de diversos contextos, tais como o governo e os órgãos oficiais, as
instituições de ensino superior, seus autores, suas editoras e, ainda, os coordenadores,
professores e alunos que os escolhem, adotam e usam, ressignificando-os durante as
atividades escolares. (p.481)
Investigar as intenções últimas das disciplinas escolares, nem sempre nítidas, é
importante para que se possa entender que elas se constituem como suportes das finalidades do
ensino porque englobam dados conteúdos e não outros. Por isso, a investigação da constituição
e dos currículos de uma disciplina deve abranger também seus meios de difusão e apropriação
a partir de livros didáticos e outros tipos de publicações educacionais. O livro didático pode ser
considerado uma fonte privilegiada para o estudo do curso da história das disciplinas escolares
pois contém os conteúdos consolidados como constitutivos de uma disciplina. Ele é um dos
recursos com os quais os docentes contam para suas práticas pedagógicas. Lopes (2007, p. 208)
define os livros didáticos como sendo “uma versão didatizada do conhecimento para fins
escolares e/ou com o propósito de formação de valores” que configuram concepções de
conhecimentos, de valores, identidades e visões de mundo. Não raro, este material didático
acaba por se tornar o próprio currículo. Uma evidência é que em muitos livros didáticos
distribuídos para divulgação, está presente o manual do professor, com propostas que vão desde
as atividades diárias, as estratégias de ensino até a programação para todo um ano letivo ou um
segmento de ensino e propostas de avaliação.
25
Também na perspectiva de Bourdieu (2004), a disputa de poder e a influência dos
saberes legitimados permeiam a escola, seus currículos e o livro didático. Segundo este autor,
todo espaço social é um campo de lutas no qual os indivíduos, grupos ou instituições, elaboram
estratégias com vistas a manter ou melhorar sua posição social, e estas estratégias estão
relacionadas com diferentes tipos de capital. Ainda que as espécies de capital sejam distintas,
elas mantem relações estreitas e sob certas condições, e em alguns casos, a posse de um tipo de
capital constitui a condição para a obtenção de um outro distinto (BOURDIEU, 2001). Há o
“capital econômico”, apoiado na apropriação de bens materiais, o “capital social”, baseado em
relações sociais que apoiam a atuação dos agentes sociais, o “capital simbólico”, que
corresponde ao conjunto de rituais (como as boas maneiras ou o protocolo) ligados à honra e
ao reconhecimento e o “capital cultural” em seus estados incorporado, objetivado e
institucionalizado.10 Este capital cultural contribui para a compreensão das desigualdades de
desempenho escolar dos indivíduos oriundos de diferentes grupos sociais.
No estado incorporado, o capital cultural engloba o domínio da língua culta e as
informações sobre o mundo escolar. Este capital se origina na herança cultural familiar que atua
de forma marcante na definição do futuro escolar dos descendentes, uma vez que as referências
culturais, os conhecimentos considerados apropriados e legítimos, e o domínio da língua culta
trazida de casa facilitam o aprendizado dos conteúdos e dos códigos escolares, ligando o mundo
da família e o da escola. No estado objetivado, o capital cultural existe sob a forma de bens
culturais, tais como esculturas, pinturas, livros, etc. Para possuir estes bens econômicos é
necessário ter capital econômico, embora a aquisição não garanta a apropriação da carga
cultural destes bens. No estado institucionalizado, o capital cultural materializa-se por meio dos
diplomas escolares (BOURDIEU,2001). Por isso, entendo que as ideias de Pierre Bourdieu
reiteram a questão do poder selecionando o que se ensina, a quem e quais são os resultados que
esse enseja a cada aluno, a partir também da ótica dos livros didáticos.
Atualmente é bastante comum encontrar nos livros didáticos uma estrutura que já
organiza os conteúdos em unidades que simulam aulas, com respectivas explicações,
atividades, exercícios e avaliações. Em muitas escolas da rede pública de ensino, os livros
didáticos representam a principal, senão a única fonte de trabalho como material impresso na
sala de aula, tornando-se um recurso básico para o aluno e para o professor, no processo ensino-
10 O trabalho de BOURDIEU, P. “Les trois états du capital culturel” foi originalmente publicado na revista Actes
de la Recherche en Sciences Sociales, 30:3-6, 1979. Aqui está sendo usado: BOURDIEU, P. Os três estados do
capital cultural. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (orgs.) Escritos de Educação, 3ª ed., Petrópolis: Vozes,
2001, pp.73-79.
26
aprendizagem. Segundo Freitag (1989) esses dois grupos acabam tornando-se escravos do livro
didático quando o transformam no roteiro único ou mais importante do processo de ensino-
aprendizagem, ao invés desse atuar como um coadjuvante do desenvolvimento da autonomia e
do senso crítico.
Olhando dessa forma, o uso dos livros didáticos proporciona uma perspectiva dual na
prática educativa: sua utilização pode contribuir para uma conscientização acerca da realidade
social, ou para a manutenção de preconceitos e fortalecimento dos valores culturais
hegemônicos, com o silenciamento de aspectos relacionadas a determinadas culturas,
principalmente aquelas consideradas minoritárias e sobre outras realidades diversas.
Mas, se são artefatos culturais participantes da construção do currículo, os livros
didáticos também podem ser entendidos como materializações de disputas sociais relacionadas
com decisões e ações curriculares. São construções sócio-históricas formadas por intenções,
realidades e decisões provenientes de diferentes grupos sociais e seus contextos. Goodson
(2012, p.21) afirma que esses materiais constituem um currículo escrito que intenciona
apresentar uma seleção de saberes e uma organização dos mesmos, normalmente prescritiva.
Segundo Abreu & Dias (2006), as investigações sobre os livros didáticos sob uma perspectiva
sócio-histórica, podem levar-nos a compreender a produção desses materiais, o estudo dos
elementos implícitos e explícitos que delineiam as finalidades do livro didático.
Abreu, Gomes & Lopes (2005) citam Ferreira & Selles (2003), ao afirmar que “os
livros didáticos são a expressão de uma complexa história de concepção e produção, e refletem,
portanto, os diversos campos de influência existentes no momento histórico em questão” (p.
408). Por conseguinte, os livros didáticos são produtores e reprodutores de políticas
curriculares: produtores pela manutenção de suas concepções ou pela reinterpretação e
introdução de novas questões trazidas pelas propostas oficiais; e reprodutores porque o campo
editorial se apropria das concepções das propostas oficiais e da prática e as reinterpreta de
acordo com as suas próprias concepções e finalidades. A produção de políticas pode ser oriunda
da reprodução dos saberes legitimados, mas podem também ser construídas novas políticas
dependendo da leitura e do uso que se faça destes livros. Professores a alunos constroem
sentidos em sala de aula não apenas a partir do currículo escrito presente no livro mas também
a partir de suas interpretações.
1.3 – A disciplina escolar Química
Segundo o historiador britânico Raymond Williams (1961), o trabalho de consolidação
27
de uma cultura não obedece, apenas a valores intrinsecamente relacionados à excelência e
universalidade. A seleção cultural arbitrária é uma reinvenção que incide não apenas sobre o
passado mas também sobre o presente. Alguns tipos de valores são considerados importantes o
bastante para que sua transmissão seja confiada a profissionais formados para isso, os docentes.
Como nem tudo o que constitui uma cultura é considerado de igual importância, e frente à
limitação de tempo e possibilidades, faz-se necessária uma seleção. A essas seleções é que
chamamos currículo e a forma e lógica empregadas para distribuir os saberes destas seleções é
que vão compor os conteúdos das disciplinas escolares, que não são permanentes na medida em
que são temporalmente relevantes. Por isso é que os conteúdos contemplados no currículo de
uma disciplina podem passar por mudanças de enfoque, serem adicionados ou substituídos, ao
sabor dos interesses de quem os seleciona ou de quem os discute.
Para Lutfi (1989), a organização básica do conteúdo de Química no atual Ensino
Médio foi instaurada no século XIX, na França. Esta organização pressupõe a apresentação, por
grandes áreas, dos conhecimentos da ciência Química segundo a seguinte sequência: química
inorgânica (atualmente a química geral), físico química e química orgânica. Esta arrumação não
foi casual e tinha uma lógica centrada no seu tempo e no seu espaço social.
Entender as transformações sociais, econômicas e políticas ocorridas no séc. XIX
torna-se necessário para compreendermos as transformações que a química sofreu e
como a ciência está integrada a todo o processo de transformação, não a colocando
como um corpo isolado, de fora, mas como algo interno, não negando que tanto as
transformações fora do campo estritamente científico a influenciaram, assim como o
desenvolvimento cientifico levou a outras transformações (LUTFI, 1989, p. 30).
Embora esta organização tenha prevalecido ao longo do tempo, há evidências de que
no percurso da disciplina escolar Química, no Brasil, os objetivos desse ensino sofreram
oscilações de forma que os conteúdos abordados ora atendiam a questões utilitárias e cotidianas,
ora eram centrados nos pressupostos científicos (LOPES, 1998). Estas evidências, presentes
nos documentos que orientam a disciplina Química no currículo brasileiro das escolas básicas,
sugerem que a trajetória desta disciplina parece “se aproximar nitidamente dos exemplos
citados por Goodson em relação à Biologia e às Ciências, na Grã-Bretanha. A história da
disciplina Química no Brasil, também parece oscilar entre objetivos de ensino voltados para
aspectos utilitários e cotidianos e outros objetivos centrados em pressupostos técnico-
científicos” (ROSA & TOSTA, 2005, p.225).
De acordo com Kruger & Porto (2013), a Química passou a integrar o currículo do
ensino secundário brasileiro apenas a partir de 1931, com a reforma Francisco Campos
(BRASIL, 1931). Documentos da época demonstram que o objetivo do ensino de Química era
28
prover o aluno de conhecimentos específicos, aguçar o interesse pela ciência e mostrar “a
relação desses conhecimentos com o cotidiano” (p.4). Porém, esta valorização da cotidianidade
foi perdendo espaço ao longo do tempo até que, com a criação do Ensino Médio
profissionalizante pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação no 5.692/1971 (BRASIL, 1971),
o ensino de Química assumiu um caráter essencialmente técnico-científico.
Lopes e Macedo (2002), apontam para o fato de que mesmo em currículos em que a
matriz do conhecimento não é disciplinar, a força dos processos de administração curricular
acabaria acarretando a organização de disciplinas com finalidade de controle do trabalho
docente e/ou para controle das atividades dos alunos. Recorrendo aos trabalhos de Ivor Goodson
e Boaventura de Souza Santos, para argumentar que as disciplinas escolares diferem das
disciplinas científicas, as autoras analisam o caso da disciplina Ciências, por representar um
modelo do esforço de produzir uma integração pela via disciplinar e apontam para o fato de que
para alguns estudiosos do campo do currículo, as disciplinas relacionadas às ciências só se
tornaram componentes curriculares definitivamente, ao se aproximaram das ciências de
referência.
Para Kruger e Porto (2013), havia duas modalidades que regiam o nível médio de
ensino brasileiro, até o início dos anos de 1980: uma humanístico-científica se constituía numa
fase de transição para a universidade e outra de caráter técnico, objetivando a formação
profissional do estudante (p.5). Segundo esses autores, não é mais aceitável na atualidade que
o ensino de Química se ocupe de apenas adestrar os estudantes na habilidade de dar respostas
corretas a exercícios propostos. É necessário desenvolver a capacidade de “analisar, julgar, se
posicionar e tomar decisões pelas quais ele se sinta responsável e possa ser responsabilizado”
(2013, p.6).
No curso da constituição histórica da disciplina escolar Química, algumas tendências
se tornaram mais marcantes. Schnetzler, Nieves & Campos (2007) identificaram as principais
tendências, nos últimos quarenta anos, como produto de investigações na área da educação em
Ciências/Química: “tradicional”, “ensino por descoberta”, “ensino por mudança conceitual”,
“abordagem histórico-cultural” e “ensino para a formação do cidadão”. A tendência dita
“tradicional”, assume o conhecimento químico como verdade absoluta, cumulativa e excluída
do cotidiano dos alunos, cabendo ao professor, potencialmente possuidor desse conhecimento,
transmiti-las. A aprendizagem, segundo essa tendência, ocorre através da assimilação desses
conteúdos transmitidos, sendo averiguada através de avaliações, que objetivam quantificar o
conteúdo memorizado e mensurar a eficácia do processo de ensino-aprendizagem.
Na tendência denominada “ensino por descoberta”, movimento de reforma curricular
29
que ocorreu principalmente nos Estados Unidos e Inglaterra no início da década de 60, as aulas
experimentais tornam-se fundamentais para a aprendizagem dos alunos. Assume-se nesta
tendência que o conhecimento científico/químico provém de experiências, o que foi duramente
criticado por se fundamentar em uma concepção empirista de Ciência que não se preocupa com
a contextualização social dos conhecimentos científicos. Nesta tendência assim como na
“tradicional”, as concepções prévias dos alunos não são levadas em conta, condição esta assumida
pelo movimento das concepções alternativas, vigente no final da década de 70 e nos anos 80.
Deste movimento teve origem a tendência de “ensino por mudança conceitual”, a qual,
segundo Schnetzler (2002),
foi o termo empregado para designar a transformação ou substituição de crenças ou
ideias ingênuas (concepções prévias ou alternativas) de alunos sobre fenômenos
sociais e naturais por outras ideias, mais sofisticadas e cientificamente aceitas, no
curso do processo de ensino e aprendizagem. Durante alguns anos, pareceu haver um
certo consenso entre pesquisadores quanto às condições para a ocorrência de tal
mudança. Uma delas era que o aluno deveria se sentir insatisfeito ou “em conflito”
com sua concepção a fim de mudá-la ou substituí-la. Nesse sentido, ao ensino cabia
promover tal conflito, principalmente pelo confronto entre as concepções dos alunos
e os resultados de atividades experimentais (p.16).
Por fim, observa-se o início da década de 1990, a realização de trabalhos que
incorporam a “abordagem histórico-cultural” em investigações sobre o processo de ensino-
aprendizagem, definindo uma nova tendência para o ensino de Química. Nessa tendência, a
interação discursiva e a negociação social de significados são consideradas fundamentais na
construção de conhecimentos, processo que também implica articulações de conceitos
cotidianos e científicos, enfatizando a contextualização social de conhecimentos químicos.
É importante ainda apontar que desde o final da década de 70, além das tendências
acima, enfatiza-se a inclusão de relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade, a partir das
ideias do movimento CTS, no ensino de Ciências/Química. Este movimento valoriza a
formação de cidadãos a partir da valorização das relações entre o conhecimento
químico/científico e temas sociais relevantes o que deve orientar os estudantes a tomar decisões
e lutar por direitos, visando o bem coletivo. Em outras palavras, configura-se deste modo a
tendência do ensino de Química para formar o cidadão.
Ao se analisar as visões de ensino de Química preconizadas por essas cinco tendências
é possível perceber uma marca de oscilação entre propósitos educacionais mais relacionados a
aspectos técnico-científicos e aqueles mais ligados ao cotidiano. Esta marca pode ser observada
ao longo da história da disciplina Química no âmbito escolar brasileiro e sugere uma reflexão
sobre o significado atribuído ao cotidiano. Este termo, há alguns anos, tem sido entendido como
um meio para estabelecer relações entre situações corriqueiras, ligadas ao dia a dia da vida dos
30
estudantes, e os conhecimentos científicos. O cotidiano tem assim uma finalidade de ensino
com vistas à aprendizagem de conceitos científicos do campo da Química. Na verdade, a
proposta de incorporar discussões do movimento CTS nesta disciplina com uma abordagem
interdisciplinar e contextualizada passou a ser bastante valorizada a partir de 1982, ano em que
Mansur Lutfi apresentou essas ideias em sua dissertação de mestrado. Tal movimento de
revalorização do cotidiano ao currículo de Química não significa uma desvalorização ao modelo
conteudista de valorização dos conhecimentos científicos, mas antes, uma releitura da realidade
à luz de saberes do cotidiano que aproximam os primeiros dos escolares.
Além disso, Rosa & Tosta (2005) destacam a contribuição de Attico Chassot (1996)
para uma análise da constituição sócio-histórica da disciplina Química no Brasil, apontando
para registros relacionados ao seu ensino já no século XIX, nos quais se percebe uma orientação
utilitária para o seu ensino. Segundo este autor, o primeiro decreto oficial que se refere ao ensino
de Química no Brasil é o de 6 de julho de 1810, que cria uma cadeira de Química na Real
Academia Militar
Cita uma Carta de Lei de 4 de dezembro do mesmo ano que traz a seguinte
informação: No quinto ano haverá dois lentes. O primeiro ensinará tática e estratégia;
o segundo, ensinará Química, dará todos os métodos para o conhecimento das minas,
servindo-se das obras de Lavoisier, Vanderquelin, Jouveroi, Lagrange e Chaptal para
formar seu compêndio, onde fará toda sua aplicação às artes e a utilidade que dela
derivam. (CHASSOT, 1996, p.137)
Rosa & Tosta (2005, p.254) consideram que os trabalhos de Ivor Goodson (2001)
sobre a trajetória das disciplinas Biologia e Ciências, na Grã-Bretanha, contribuem
significativamente para o entendimento da constituição sócio-histórica da disciplina Química
ao revelar que essas disciplinas se constituem a partir de uma transição “consistente de uma
marginalidade de baixo status, dentro do currículo, passando por uma etapa utilitária, até
chegar, em última instância à definição da disciplina como um corpo rígido e rigoroso de
conhecimento” (GOODSON, 2001, p.101). A trajetória dessas disciplinas também mostra o
dilema, entre saber cotidiano e saber científico, presente em diversos momentos da história do
currículo de Química no Ensino Básico.
Wartha e Faljoni-Alário (2005) destacam que os Parâmetros Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio (PCNEM), na área de Matemática, Ciências e suas Tecnologias (Brasil,
1999a), apontam para a necessidade de associar o conhecimento científico com valores
educativos, éticos e humanísticos que excedam a mera aprendizagem de fatos, leis e teorias. O
conhecimento científico deve ser caracterizado como produto da vida social, marcado pela
cultura da época, como parte integrante, influenciando e sendo influenciado pelos outros
31
conjuntos do conhecimento. Em outras palavras, trazer para o chão da escola uma perspectiva
de ciência inserida no cotidiano, contextualizada. Mas é importante ressaltar que essa discussão
já estava instalada tempos antes, não apenas nas escolas mas também nas pesquisas acadêmicas.
Em sua tese de doutorado, Mansur Lutfi (1989) continuou a discussão acerca da
contextualização e suas múltiplas perspectivas, ao relatar:
Quando se fala em trabalhar o cotidiano, os professores têm uma atitude de prevenção
imediata, pois sabem que a vida de cada aluno é diferente da de outro, até em uma
mesma escola. Esse conceito esconde a realidade de vivermos em uma sociedade de
classes e de jovens pertencentes às diferentes classes sociais, mesmo quo a ideologia
interfira em sua visão de mundo, terem condições concretas de vida diferentes
(LUTFI, 1989).
Além de Lutfi (1982) outros autores vêm discutindo a relevância de se compreender o
cotidiano e seus sentidos no ensino da disciplina escolar Química. Por exemplo, para Mortimer
& Santos (1999a), a contextualização constitui hoje um princípio curricular com diferentes
serventias, dentre as quais a motivação do aluno, a facilitação da aprendizagem e a formação
para o exercício da cidadania. O entendimento de seu significado pode possibilitar a criação de
métodos de ensino que beneficiem o preparo para o exercício da cidadania. O ensino da
Química sob esta ótica, atuaria como um facilitador da leitura do mundo.
Já Chassot (1990, 2003a e 2003b) lembra que os conhecimentos químicos
compartilhados em sala de aula devem estar relacionados à realidade e dentro de uma concepção
que destaque o papel social da Química, sem que isso represente um “modismo” denominado
a “Química do Cotidiano”. O interesse em articular o ensino de Química à prática social, tem
ganhado destaque entre os estudiosos da área. A motivação para ensinar Química na atualidade
deveria estar além das motivações de exclusão social/inclusão no mercado de trabalho, e sim a
possibilidade de que os estudantes se tornem cidadãos conscientes e críticos (CHASSOT, 1990,
p. 30)
Contextualizar o ensino significa assumir que todo conhecimento envolve uma relação
entre sujeito e objeto. Contextualizar o conhecimento no seu próprio processo de produção é
criar condições para que o aluno compreenda a relevância e aplicar o conhecimento para
entender os fatos, tendências, fenômenos, processos que o cercam. Ao contextualizar uma
informação, significados são construídos e estes, não são neutros pois constroem o
entendimento de problemas do entorno social e cultural. A contextualização do ensino vem
sendo reconhecida como importante por vários professores e parece haver uma tendência
presente ao menos no discurso, de os professores incorporarem este viés a sua prática em sala
de aula, porém ainda limitando-se às aplicações da Química ao cotidiano, e restringindo a
32
contextualização mais à intenção que à ação.
Para que se possa configurar que a contextualização é realmente uma tendência no
ensino de Química no Brasil, é importante olhar também para os livros didáticos. Em 1988,
Eduardo Fleury Mortimer já denunciava uma tendência à estabilidade nos currículos expressos
nesses materiais:
... pode-se afirmar que os autores de livros didáticos, ao longo da história, sempre
tiveram dificuldade em romper com certas tradições. As únicas rupturas que se
consegue detectar são as relacionadas à apresentação dos livros didáticos e à posição
dos temas que se está discutindo no programa de segundo grau. (...) Por outro lado, os
livros quase sempre estiveram desatualizados em relação ao estado da arte do
conhecimento químico. Os livros atuais, apesar de aparentemente atualizados,
apresentam certos assuntos — como estrutura atômica e ligação Química — com
tantas simplificações que os descaracterizam. (MORTIMER, 1988, p.39)
Em outras palavras, a resistência às mudanças parece fazer parte de uma tradição da
Química. Não que haja uma oposição entre um saber científico e um saber do cotidiano,
contextualizado, uma vez que nas palavras de Mortimer (1988), nem mesmo se pode confiar na
veracidade do conteúdo científico, face às formas simplificadas como determinados conteúdos
de ensino são apresentados.
Miranda & Martins (2007), ao apresentarem os resultados de uma pesquisa sobre quais
aspectos são considerados importantes pelos professores de Química, na escolha do livro
didático, apontaram que, nesse processo, os professores investigados valorizaram os critérios
associados à linguagem dos textos e aos exercícios. Segundo as autoras, tal resultado mostra
uma dicotomia entre uma perspectiva inovadora de ensino e um ensino para adestramento,
revelada pela valorização da linguagem e contextualização dos textos, paralelamente à
diversidade de exercícios. Também foram identificadas como orientadoras da escolha, marcas
de tradição e poder como os nomes dos autores dos livros, a fonte de onde foram retirados os
exercícios (ENEM e exames vestibulares) bem como a quantidade dos mesmos, juntamente a
presença de propostas investigativas.
Embora esses dados realcem essa contradição, são coerentes com os apresentados em
uma pesquisa anterior (SANTOS, 2006), que apontou para a oferta de quantidade e variedade
de exercícios como sendo a função principal do livro didático de Química. Esses resultados
indicam que, apesar do reconhecimento da existência e da importância de uma tendência à
contextualização, critérios de valor tradicionais continuam a ter grande peso na seleção do livro
didático, o que pode ser entendido em última instância, como uma opção pelo continuísmo nesta
forma de expressão do currículo. Além disso, esses dois trabalhos mostram como a seleção de
conteúdos de ensino referenciados nos conhecimentos científicos da Química são dados como
33
naturais e, por isso, não são problematizados ou colocados como critérios para o que se
considera o bom ensino de Química.
Num outro trabalho a respeito dos livros didáticos de Química, Maia, Sá, Massena &
Wartha (2011) pesquisaram os critérios de seleção e formas de utilização dos livros didáticos
adotados no Ensino Médio por professores de Química de escolas estaduais das cidades de
Ilhéus e Itabuna, situadas na região sul da Bahia. Entre suas conclusões, novamente há pontos
de concordância com o que vem sendo discutido neste trabalho:
No que diz respeito aos conteúdos selecionados pelos docentes e de suas justificativas
para a escolha destes, observamos ainda a valorização excessiva da preparação para o
exame de vestibular em detrimento de uma educação mais voltada para a formação do
cidadão crítico e atuante na sociedade. (p.123)
Um estudo semelhante já havia sido conduzido com professores de Química por
Loguercio, Samrsla & Del Pino (2001) e chegado a conclusões muito semelhantes quanto aos
critérios que motivam a escolha de um livro didático para aulas de Química no Ensino Médio,
exceto por um fator. Segundo esses autores, a seleção dos livros didáticos fundamenta-se em
critérios tais como relacionar os conteúdos com o vestibular e com o cotidiano, sendo esta
última uma proposta assumida pelos autores e pelas grandes editoras a partir da década de 1990.
Esta proposta pretendeu trazer para os livros didáticos, mesmo os considerados mais
tradicionais por valorizarem mais fortemente a seleção de conteúdos, exemplos e problemas do
cotidiano. A valorização das questões de vestibulares visa suprir a necessidade daqueles alunos
que tentam ingressar em uma universidade, denunciando um entendimento de que a
mecanização é mais favorável a uma aprovação em processos seletivos para curso superior que
o próprio entendimento dos assuntos discutidos nos livros didáticos.
Nesse sentido, Loguercio, Samrsla & Del Pino (2001) chamam a atenção para uma
preocupação excessiva relacionada à valorização do conteúdo e do conhecimento químico em
detrimento de questões cotidianas, uma vez que os professores valorizam a presença de grande
quantidade de exercícios. Os autores destacam que “o mínimo que se pode inferir é que o
conhecimento químico presente nesses livros é tido como certo, definitivo e inquestionável”
(p.561). O único ponto de discordância entre os dois estudos foi que, no primeiro, se identificou
preocupação com os custos dos livros enquanto que no segundo, os professores deixaram claro
que sua opção por títulos apresentados em volume único dizia respeito a uma redução de gastos
com livros didáticos.
Para Rebelo, Martins & Pedrosa (2008), o movimento educacional denominado
Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS), vem se desenvolvendo desde meados da década de 1980,
34
e, envolve ênfases curriculares que requerem metodologias e abordagens inovadoras de ensino
das Ciências de forma a promover o desenvolvimento de literacia científica e tecnológica11, ou
seja, a capacidade de usar conhecimentos para desenvolver um bem para a sociedade em geral.
Entretanto, se a Química do cotidiano vislumbrada nas contextualizações da tendência CTS é
uma mudança representativa na abordagem dos conteúdos dessa disciplina ou se representa uma
permanência de uma intencionalidade seletiva, isso é algo que ainda não está claro. Afinal,
como já abordado anteriormente, um currículo se configura é na prática, na relação que legitima
uma forma de escolarização. O currículo é uma construção social e isso implica em como se dá
a relação entre os grupos e sub-grupos que atuam socialmente na construção da disciplina
escolar Química (GOODSON, 2012).
Nos PCNEM (Brasil, 1999a), a contextualização é proposta como princípio para a
sistematização do currículo. A abordagem dessa proposição, no ensino escolar de Química, tem
sido recomendada com o objetivo de formar o cidadão. Porém é suposto que isso tenha que ir
além da motivação do aluno a partir de exemplos de utilidades do conhecimento químico. A
intenção expressa nesse documento é a de desenvolver atitudes e valores que oportunizem a
discussão das questões ambientais, econômicas, éticas e sociais. Como explicitam as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – DCNEM (BRASIL, 1998):
Art. 9º: I - na situação de ensino e aprendizagem, o conhecimento é transposto de
situação em que foi criado, inventado ou produzido e por causa desta transposição
didática deve ser relacionado com a prática ou a experiência do aluno a fim de adquirir
significado. ( p.4)
Um outro aspecto importante quando se considera a perspectiva da contextualização e
do cotidiano diz respeito às problemáticas do meio ambiente que também vêm impactando
fortemente os currículos da Escola Básica e, portanto, a disciplina escolar Química. Para Jacobi
(2005) deve-se salientar que as práticas educacionais inseridas na interface dos impasses
socioambientais “devem ser compreendidas como parte do macrossistema social,
subordinando- se ao contexto de desenvolvimento existente, que condiciona sua direção
pedagógica e política” (p.243). Com base no argumento desse autor, pode-se aproximar a
propostas do campo da Educação Ambiental com aquelas preconizadas pela educação para a
cidadania no que concerne a valorização da formação voltada para os sujeitos cidadãos. Desse
modo, a inserção de influências do campo da Educação Ambiental nos conteúdos de ensino
11 A literacia consiste num conjunto de competências de aprendizagem e pensamento crítico necessárias para
acrescentar, analisar e usar a informação de forma eficiente. Para Vieira (2007), “não se consegue uma definição
consensual para literacia científica (...) é porque o próprio conceito não é consensual. Considerado como objectivo
final do ensino de ciência tem igualmente sido usado como um subterfúgio para se chegar a um ensino de mais e
melhor ciência. ”(p. 98)
35
selecionados para a disciplina Química do Ensino Médio, segundo uma perspectiva crítica,
ocorre na medida em que aquela seja entendida como uma prática político-pedagógica, e não
apenas como uma contextualização que se limita a “modismos”, como afirma Chassot (2003b).
36
Capítulo 2 – O lixo e as tradições do ensino de Química
Neste capítulo apresento contribuições de diversos autores procurando compreender
como a temática lixo pode ter a sua inserção definida nos currículos de Química para o Ensino
Médio. Para isso busco delinear os modos possíveis com que o “lixo” pode ser selecionado e
organizado como um conhecimento a ser ensinado nessa disciplina. Entendo ser importante
identificar as perspectivas a partir das quais essa temática pode ser abordada. Com base em
minha experiência docente, considero que é comum a utilização dessa temática à guisa de
exemplo para o estudo dos processos e utilidades de fracionamento de misturas. Mas de que
outras formas esta temática pode dialogar com os conteúdos tradicionais do ensino de Química?
Orientada por essa questão, começo trazendo uma breve apresentação da temática
“lixo”, sua conceituação, seu contexto e do percurso que vem estruturando, de uma forma mais
ampla, a sua escolha nos currículos da disciplina escolar Química. Este percurso é feito a partir
das orientações legais em diálogo com as tendências do ensino desta disciplina, principalmente
no que diz respeito às ideias sobre contextualização do ensino e sobre a abordagem do cotidiano.
Em seguida apresento algumas discussões sobre aspectos culturais do currículo e sua relação
com a temática “lixo”, buscando entender como esse assunto se coordena com outros já
considerados tradicionais no interior da disciplina escolar Química.
Apoiada em Clifford Geertz (2008), faço também um resgate de aspectos históricos e
culturais brasileiros associados à lida com o “lixo”, levando em conta que podem estar deixando
marcas sociais nas formas como o lixo é retratado em livros didáticos. Além disso, apresento a
contribuição de Layrargues & Lima (2011, apud Layrargues, 2012) acerca das três
macrotendências político pedagógicas que compõem o quadro conceitual da Educação
Ambiental. Busco assim identificar relações destas orientações com a presença da temática
“lixo” na coleção de livros didáticos escolhida para análise. Por fim, apresento um olhar sobre
a teorização da cartografia abissal proposta por Boaventura de Sousa Santos (2010) em seu
texto “Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes”. Este
autor vem, desde o início da década de 1990, produzindo trabalhos significativos de análise
sobre a construção do conhecimento moderno. Uso de sua teorização tanto para compreender a
presença do “lixo” nos livros didáticos de Química como também para discutir algumas das
questões sociais afeitas à cidadania, à lida com o lixo e de que maneira a sociedade
contemporânea se relaciona com os grupos sociais que vivem à margem e às custas do lixo.
37
2.1 – Como o “lixo” pode ser inserido no ensino de Química?
A Revolução Industrial representou um marco nas relações de produção e consumo
que vêm alterando a dinâmica da natureza, seja pela exaustão dos recursos naturais como
matéria-prima para a fabricação dos produtos, bem como pela degradação ambiental
(BRAILOVSKY, 2004; CRUZ, 2005). O aumento da população mundial determina um
aumento no consumo que impacta progressivamente um conjunto de bens naturais finitos
(BESEN, 2006; WOJCIECHOWSKI, 2006). E aumenta também a produção de resíduos de
todos os tipos. Esta crescente industrialização que desconsidera os ciclos de recomposição das
paisagens naturais, traz mais uma consequência danosa que é o acúmulo de lixo. As áreas para
disposição do lixo não aumentaram em tamanho na mesma medida em que aumentou a
produção do mesmo, comprometendo ainda mais os recursos naturais remanescentes.12
O lixo representa, na atualidade um problema ambiental tanto pela sua quantidade
quanto pela sua consequência para a saúde das pessoas e do ambiente. O consumo para além
das necessidades reais de vida e sobrevida, motivado apenas pelo consumismo, leva a uma
sequência de substituição de bens que se acelera na medida em que uma aumenta a oferta destes
mesmos bens. A troca não é mais feita apenas pela necessidade de reposição de um bem
essencial que encerrou sua vida útil: a troca é motivada pela exaltação de um status simbolizado
pelo que cada um tem.
Para Loureiro (2012a) a prioridade no modo de produção capitalista é a acumulação
de riquezas em detrimento da satisfação de necessidades. As escolhas individuais estão
relacionadas a condicionamentos históricos e, entre elas, o padrão de consumo, que é marca da
sociedade capitalista e que associa o consumo à felicidade mas tem como propósito a
acumulação de riquezas e uma ideologia de consumo. O aumento de consumo realimenta a
produção industrial sem a devida reflexão sobre suas consequências ambientais e sociais, tais
como o aumento da diversidade e quantidade de produção de lixo, numa velocidade maior que
a capacidade de recomposição de algumas paisagens naturais, contribuindo diretamente para
intensificação de inúmeros problemas ambientais em nossa sociedade. O entendimento dos
impactos sociais e ambientais decorrentes desta dinâmica podem concorrer – mas não
asseguram - para a compreensão a respeito das responsabilidades sociais de cada pessoa, e
portanto, para a formação da cidadania.
Porém, o entendimento do que é lixo é bastante variado. Segundo critérios técnicos,
12 Afirmo isso com base na preocupação crescente, que está a disposição na forma de notícias divulgadas por
diversas mídias, que discutem principalmente a contaminação de reservas aquíferas a partir do descarte impróprio
do lixo.
38
ele pode ser entendido como qualquer resíduo sólido das atividades humanas ou proveniente da
natureza ou atribuído a bens que tenham perdido sua utilidade ou valor.13 A publicação “Lixo
Municipal: Manual de Gerenciamento Integrado”14, lançada em 1995 e reeditado em 2000 e
2012, pela prefeitura de São Paulo em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas
(IPT/CEMPRE, 1995) é um exemplo de material que propõe critérios técnicos com base na
composição para a classificação dos tipos de lixo. Mas não é possível discutir o lixo enquanto
temática em livros didáticos observando apenas a superfície técnica da questão. O conceito de
lixo também está permeado de questões sociais mais sutis, como a rejeição, a exclusão, como
discutirei mais adiante neste capítulo. Nesse sentido, é importante considerar as relações entre
o “lixo” e o campo educacional para entender como essa temática vem sendo tratada em relação
às finalidades educacionais da Escola Básica no Brasil.
De acordo com a Constituição brasileira de 1988 e com a Política Nacional de
Educação Ambiental (BRASIL, 1999b), a Educação Ambiental deve estar presente em todos
os níveis de ensino e no âmbito dos currículos das instituições de ensino públicas e privadas –
desde o nível básico até o superior. Sendo a Química, a disciplina escolar que estuda a matéria,
suas propriedades e transformações, ela pode ser entendida como um dos diversos espaços
disciplinares privilegiado para a discussão de questões ambientais.
Seguindo ainda as orientações legais, consta no PCN+ para o Ensino Médio (BRASIL,
2002) a proposta de selecionar e organizar os conteúdos de Química a partir de nove “temas
estruturadores”, que usam como premissa o estudo das transformações químicas que ocorrem
nos processos naturais e tecnológicos. São eles: 1. Reconhecimento e caracterização das
transformações químicas; 2. Primeiros modelos de constituição da matéria; 3. Energia e
transformação química; 4. Aspectos dinâmicos das transformações químicas; 5. Química e
atmosfera 6. Química e hidrosfera; 7. Química e litosfera; 8. Química e biosfera; 9. Modelos
quânticos e propriedades químicas. Entre esses eixos estruturadores, a valorização da relação
dos conhecimentos químicos com os temas atmosfera (5), hidrosfera (6), litosfera (7) e biosfera
(8) chama a atenção pela forte relação com as questões ambientais e o entendimento de como
o ser humano vem se utilizando e se apropriando do mundo natural. Tal fato mostra como as
questões ambientais têm sido valorizadas pelas orientações legais direcionadas para a educação
dos estudantes no Brasil.
13 Entendidos aqui o valor e a utilidade como perspectivas subjetivas e pessoais, construídas no referencial social
e cultural de cada pessoa. 14 Segundo informações contidas na apresentação do material, este foi distribuído gratuitamente a todos os
prefeitos do Brasil com a intenção de ser uma obra de referência sobre resíduos sólidos no País.
39
A relação dos conhecimentos escolares com os diferentes setores da sociedade e com
os aspectos políticos, econômicos e sociais da tecnologia e cultura contemporâneas é
apresentada como uma competência a ser desenvolvida na área de Ciências da Natureza e suas
Tecnologias (BRASIL, 2002). No caso do conhecimento químico, é citado o lixo textualmente:
... identificar e relacionar aspectos químicos, físicos e biológicos em estudos sobre a
produção, destino e tratamento de lixo15 ou sobre a composição, poluição e
tratamento das águas com aspectos sociais, econômicos e ambientais. (p.91)
Mais do que isso, o referido documento apresenta os conteúdos e as atividades a se
desenvolver para a disciplina Química como mostra o quadro apresentado no Anexo C. Destaco
nele as propostas associadas à temática “lixo”, nos trechos em que este tema é citado de forma
explícita. Entretanto, suspeito que, de maneira implícita, os conteúdos previstos e as atividades
propostas abordem esta temática diversas outras vezes. Mas é importante observar, neste
quadro, que o “lixo” é proposto para o ensino em diálogo com diversos conteúdos de Química
para o Ensino Médio. Se em abordagens mais conservadoras do currículo de Química, o lixo se
limitava a aparecer com um exemplo para os conteúdos de Separação de Misturas, neste
documento curricular da atualidade ele está presente em discussões de Eletroquímica, Química
Orgânica e – não menos esperado – em tópicos de Química Ambiental:
Diante de informações ou problema relacionados à Química, argumentar
apresentando razões e justificativas; por exemplo, conhecendo o processo e custo da
obtenção do alumínio a partir da eletrólise, posicionar-se sobre as vantagens e
limitações da sua reciclagem; em uma discussão sobre o lixo, apresentar argumentos
contra ou a favor da incineração ou acumulação em aterro (BRASIL 2002, p.119).
Articular o conhecimento químico e o de outras áreas no enfrentamento de situações-
problema. Por exemplo, identificar e relacionar aspectos químicos, físicos e
biológicos em estudos sobre a produção, destino e tratamento de lixo ou sobre a
composição, poluição e tratamento das águas com aspectos sociais, econômicos e
ambientais (BRASIL 2002, p.121).
Reconhecer as responsabilidades sociais decorrentes da aquisição de conhecimento
na defesa da qualidade de vida e dos direitos do consumidor; por exemplo, para
notificar órgãos responsáveis diante de ações como destinações impróprias de lixo ou
de produtos tóxicos, fraudes em produtos alimentícios ou em suas embalagens
(BRASIL 2002, p.123).
Esses exemplos mostram que quanto às prescrições legais, o espaço do “lixo” está
assegurado nos conteúdos de Química do nível médio. Essa tendência também pode ser
percebida com relação às tendências de ensino dessa disciplina. Constata-se um caminhar no
15 Grifo meu.
40
sentido de retirar esta temática de uma visão antiga, na qual o lixo se restringia a um bom
exemplo para as explicações de processos de fracionamento de misturas. Mas que sentidos
outros modos de inserção podem estar proporcionando? Pode-se perceber que essa é uma
preocupação dos autores filiados ao ensino de Química.
Por exemplo, Melo et all. (2010) defende que o lixo é um dos principais responsáveis
pela degradação ambiental e sua relação com o ensino de Química se dá pela aprendizagem das
características, métodos de obtenção e aplicações dos principais materiais, as relações
existentes entre o lixo, sua produção, seus impactos ambientais. Por outro lado, ao estudar as
transformações químicas que ocorrem no lixo, Rosa e Schnetzler (1998) ressaltam que os
estudantes podem compreender mais facilmente tanto esse conceito da Química quanto os
diversos aspectos que envolvem os problemas ambientais. Já para Santos et all. (2011) “o ensino
de Química nos dias atuais tem abordado conceitos sem nenhuma relação com o cotidiano do
aluno, o que tem dificultado a compreensão de uma situação-problema” (p. 80) mas utilizar o
lixo e a reciclagem para abordar os conteúdos químicos, contextualizando o assunto, possibilita
uma abordagem interdisciplinar e social dos fatores causadores do problema do lixo e
alternativas de reciclagem interligando ao ensino da Química. E Freire (2008) aponta que o
ensino de Química com um enfoque CTS oferece possibilidades de desenvolver o pensamento
crítico em relação à Ciência e à Tecnologia, entendido este pensamento como sendo a
capacidade de analisar profundamente, questionar, discutir problemas e buscar soluções
racionais adequadas, levando em consideração as diferentes opiniões sobre um mesmo assunto.
Porém, a contextualização dos problemas relacionados ao “lixo” no âmbito dos
currículos de Química, também requer o cuidado de evitar uma perspectiva redutiva. De acordo
com Santos & Mortimer (1999a), contextualização e cotidiano são utilizados, muitas vezes,
como sinônimos, de um modo reducionista que torna limitada a compreensão da relevância
desses dois conceitos para a área de ensino das Ciências. Sobre isso, Wartha (2013) também
aponta que é preciso evitar, em termos da abordagem do cotidiano, visões pueris/” ingênuas”
sobre o cotidiano. O autor alerta para a diferença existente entre “cotidiano” e
“contextualização”:
Os termos contextualização e cotidiano são muito marcantes na área de ensino de
química, sendo utilizados por professores de química, autores de livros didáticos,
elaboradores de currículos e pesquisadores em ensino de química. No entanto, o termo
contextualização só passou a ser utilizado após os PCNEN (Brasil, 1999a) e os PCN+
(Brasil, 2002), enquanto que o termo cotidiano já aparecia nos discursos curriculares
da comunidade de educadores químicos. (WARTHA, 2013, p.84)
Há um tipo de consenso relativo ao cotidiano, entre professores de Química Ensino
41
Médio. É um termo bastante conhecido que vem se caracterizando por ser um recurso para
relacionar situações corriqueiras ligadas ao dia a dia das pessoas com conhecimentos
científicos, e que, aparentemente, constitui uma abordagem fácil de ser posta em prática.
De acordo com os PCNEM, a contextualização é um recurso para dar um novo
significado ao conhecimento escolar, possibilitando ao aluno uma aprendizagem mais
significativa (Brasil, 1999a). A contextualização pressupõe assim uma relação entre o saber e
o sujeito. E é neste ponto que reside o que considero importante focalizar ao observar a relação
entre o tema “lixo” e o ensino de Química. A contextualização dos conteúdos propõe um ensino
em que o aluno não apenas assiste a ciência acontecer à frente de seus olhos: ao relacionar
sujeito e ciência, o aluno também pode ser sujeito desta ciência e dela se apropriar.
Para Beber & Maldaner (2011)
Pode-se defender que o trabalho com o cotidiano é precursor dos pensamentos
contemporâneos que envolvem a contextualização do ensino na medida em que a
proposta constitui-se em mudança radical, contrapondo-se ao ensino escolar
descolado da realidade dos estudantes, fragmentado e disciplinar. (p.11)
O currículo escolar pode, na atualidade, trazer aspectos culturais que em momentos
passados tenham sido negligenciados ou silenciados, como por exemplo, o “lixo”. Antes um
resíduo exclusivamente indesejável; hoje, uma matéria prima em potencial. Mas, ao trazer o
“lixo” para dentro dos currículos e dos livros didáticos de Química, quais cotidianos estão sendo
apontados, com quais grupos e realidades este “lixo” dialoga? Aos interesses de quais grupos
sociais interessa esta contextualização?
2.2 – O “lixo” em meio aos conhecimentos escolares
Elvira Souza Lima, citada por Moreira & Candau (2007), propõe uma reflexão sobre
currículo e desenvolvimento humano em seu texto de mesmo nome “Currículo e
Desenvolvimento Humano”, no qual a autora admite a cultura como constitutiva dos processos
de desenvolvimento e de aprendizagem. Assim, para essa autora, conhecimento e cultura não
são sinônimos mas, no ambiente escolar, ambas as categorias dialogam com a produção do
currículo. Este último, enquanto uma escolha específica por uma organização temporal e
espacial, condiciona a estrutura e a ação da escola, dos processos que nela acontecem e de seus
atores sociais às demandas presentes. O ser humano, como um ser de cultura, está ao longo de
seu processo de formação sempre produzindo conhecimentos, resultantes de suas experiências
de vida, e também, ao longo da história, tem desenvolvido formas de registrar e repassar os
conhecimentos para as gerações seguintes. Os diferentes tipos de conhecimentos estão
42
associados aos distintos grupos sociais e classes. Por isso, o conhecimento escolar leva em conta
aspectos culturais associados a realidades específicas marcadas por variáveis pedagógicas e
sociais.
Para Forquin (1993), a educação escolar seleciona apenas os saberes e os materiais
culturais disponíveis num dado momento histórico, ela deve também garantir que eles sejam
aprendidos pelos estudantes. Assim, o autor propõe a “Cultura Escolar” em contraposição à
ideia de “Cultura da Escola”. A “Cultura Escolar” é formada por um conjunto de saberes que
compõe a base de conhecimentos sobre a qual trabalham professores e alunos. Nessa ideia está
presente uma seleção prévia de elementos da cultura humana, científica ou popular, erudita ou
de massas. Esses elementos é que seriam os componentes estruturais determinantes nos
processos pedagógicos, organizativos e decisórios no interior da escola, responsáveis pelo
estabelecimento do “mundo social” da escola. Este consiste em um conjunto de “características
de vida próprias, seus ritmos e ritos, sua linguagem, seu imaginário, seus modos próprios de
regulação e de transgressão, seu regime próprio de produção e de gestão de símbolos” (idem,
1993, p. 67). Nesse sentido, com base neste autor, pode-se considerar os currículos escolares
como sendo social e historicamente constituídos com base numa seleção conduzida a partir das
diversas culturas que transitam pelo cotidiano escolar.
Ainda com base em Forquin (1993), pode-se considerar que o processo educativo é
complexo e fortemente marcado pelas variáveis pedagógicas e sociais. O currículo escolar, num
dado momento, pode incluir aspectos culturais que em momentos passados tenham sido
negligenciados ou silenciados. É necessário questionar-se acerca do currículo, para que serve,
como se constrói e a quem se destina? O entendimento de qual concepção de currículo está
posta, passa pela necessidade de entender a escola como um lugar que viabiliza a ampliação da
aprendizagem, que se reafirma como o lugar do conhecimento, do convívio e da sensibilidade,
pois estas são condições imprescindíveis para a constituição da cidadania.
É no contexto dessas discussões sobre cultura, conhecimento escolar e currículo que
se insere o “lixo”. Considero essa temática um conceito escorregadio, maleável, polissêmico,
que encontra par em múltiplos substantivos e ganha variados sentidos em muitos e diferentes
panoramas, preservando quase sempre um quê de pejorativo, de depreciativo: o que se joga fora
após uma limpeza; o que perdeu o valor; o que se varre para tornar limpa uma casa, um rua ou
um jardim; os restos de cozinha e refugos resultantes das atividades de uma casa ou
estabelecimento; qualquer matéria ou coisa que repugna por estar suja ou que se deita fora por
não ter utilidade; o resíduo resultante de atividades domésticas, comerciais, industriais que se
deita fora. Pode-se ainda pensar em outros significados como: o lugar onde se joga o lixo; o
43
local ou recipiente onde se acumulam os resíduos ou matérias; sujeira, porcaria; entulho, detrito,
sobra, imundície, sujidade; o obsoleto e inútil.
Toda essa diversidade de sinônimos e significados possíveis se resume, no entanto, a
um sentido comum relacionado a algo “tradicionalmente” negativo. Porém, retomo aqui o
conceito de Hobsbawm (2012) acerca das tradições inventadas, o conjunto de práticas, regulado
por regras aceitas por todos e que tem como objetivo desenvolver na mente e na cultura
determinados valores e normas de comportamento. A partir dessa perspectiva posso assumir
então que o lixo pode estar sendo reinventado em sua significação ao ser associado a outras
discussões e a outras formas de conceber as finalidades educacionais e de ensino de Química,
como por exemplo, a sustentabilidade econômica.
Assim, o lixo ganha valor material ao ser entendido como uma matéria prima
alternativa e, por essa relação perversa que não intenciona a preservação social ou ambiental, o
lixo se torna um bem. Em outras palavras, pode estar deixando de ser inútil, tornando-se útil. E
pode estar começando a integrar uma perspectiva cultural positiva. E, desta forma, pode passar
a ser um forte candidato a integrar os currículos escolares associado a perspectivas que
valorizam aspectos do cotidiano e da contextualização do ensino. Dentro do panorama da
Química, esse tema encontra um contexto apropriado, já que a disciplina – a exemplo do que
trata a ciência – tem como uma de suas propostas o estudo das transformações. E o que poderia
melhor representar uma transformação que tornar útil o que era inútil? Fazer com que o resíduo
de um processo, torne-se matéria prima para outro?
Dada a polissemia do termo “lixo” e das múltiplas cargas culturais que cada
significado aporta, é necessário delinear também a qual destes múltiplos sentidos me refiro,
sem contudo, perder de vista que em cada significado há marcas dos demais. Por estar
entremeado de questões muito mais profundas que a mera aceitação de que o “lixo” seja o
resíduo final de uma relação de produção e consumo, uma análise que se restringisse à questão
técnica seria superficial e não daria conta destas implicações. Analisar o “lixo” no conceito do
livro didático sem observar sua dimensão cultural é negar sua implicação social. Surge da
relação entre estes conceitos - cultura, livro didático, currículo e lixo – a possibilidade de fazer
uma análise cultural deste tema. Culturas envolvem pessoas, então, para entender com qual
cultura a temática “lixo” dialoga no âmbito do currículo de Química, é preciso entender a quais
sujeitos este tema nos remete.
A relação de trabalho que o homem empreende na natureza é a produção de sua própria
existência. Neste processo, para produzir bens o homem consome recursos naturais e
eventualmente este processo deixa resíduos. À medida que o consumo dos recursos naturais se
44
amplia num ritmo mais acelerado que o próprio aumento da população humana, certos resíduos
da cadeia de produção e consumo passam a representar não mais o “algo inútil”: passam a ser
possíveis matérias primas, disponíveis a custos eventualmente mais baixos que os das
originais16. No processo de reciclagem, o lixo torna-se útil e ganha valor de mercado, mas as
pessoas, que o selecionam, separam, retornam para o processo produtivo e deste ofício tiram
seu sustento, ainda são identificadas com um menor prestígio social. Isto é inconsistente com o
exercício do fornecimento de matérias primas para a indústria, que é – no final das contas – o
que estas fazem. Segundo Eigenheer (1992, p.20),
...a indicação das pessoas empregadas nessas práticas e serviços ligados à limpeza
urbana (remoção de lixo, dejetos e cadáveres) é importante para se avaliar a
insegurança e a ameaça que representavam. Via de regra, temos nessas atividades
excluídos sociais (prisioneiros, estrangeiros, escravos, ajudantes de carrascos,
prostitutas, mendigos, etc.). De alguma forma permanece ainda hoje a prática segundo
a qual os “socialmente inferiores” devem se encarregar desses serviços.
Eigenheer (op. cit., p.15) esclarece o significado do conceito “lixo” para este texto.
É preciso ter presente que somente a partir da segunda metade do século XIX se passa
a distinguir claramente entre lixo (resíduos sólidos) e águas servidas (fezes, urina,
etc.), quando estas passam a ser coletadas separadamente através do esgotamento
sanitário.
Este esclarecimento não apenas é importante como também pode dar uma pista das
marcas sociais atribuídas àqueles que manipulam o lixo. O período da escravidão no Brasil nos
traz indícios da segregação social. Segundo Karasch (2000)
A repugnante tarefa de carregar lixo e os dejetos da casa para as praças e praias era
geralmente destinada ao único escravo da família ou ao de menor status ou valor.
Todas as noites, depois das dez horas, os escravos conhecidos popularmente como
“tigres” levavam tubos ou barris de excremento e lixo sobre a cabeça pelas ruas do
Rio. Os prisioneiros realizavam esse serviço para as instituições públicas. (p.266)
Nas casas das famílias mais ricas, onde havia uma maior quantidade de escravos, os
escolhidos por qualidades que os destacassem aos olhos dos seus “senhores” recebiam um
tratamento diferenciado dos demais escravos, desempenhando trabalhos domésticos no interior
das residências. Porem mesmo o trabalho doméstico - lavar a roupa, limpar e cozinhar - exigia
esforço e era muito cansativo. Não haviam redes de abastecimento de água nem de esgoto e a
casa precisava ser abastecida daquela primeira e “desbastecida” de dejetos e lixo, e esta era a
16 O Brasil é líder mundial em reciclagem de alumínio e este material tem um alto custo de preparo desde o minério
– a bauxita – até as folhas, discos e chapas planas ou bobinadas e de alumínio laminado. A redução do custo de
produção destas apresentações do alumínio a partir do material reciclado deve-se fundamentalmente a não mais
ser necessário o processo de eletrólise que precede o fabrico dos lingotes, que é extremamente caro por envolver
grandes quantidades de energia elétrica. São consumidos apenas 5% da energia necessária para a produção do
alumínio primário (Fonte: Associação Brasileira do Alumínio, disponível em
http://www.abal.org.br/reciclagem/introducao.asp , acessado em 30 de janeiro de 2013).
45
incumbência dos “tigres”, também conhecidos como “cabungos” ou “cabungueiros”. A
diferenciação dos afazeres por si só demonstra uma marginalização dentro de um grupo que já
era por si só, marginal. Talvez esta segregação advinda da desprestigiosa incumbência
doméstica tenha deixado conotações ideológicas associadas às pessoas que manipulam o lixo,
ainda que este termo seja atualmente de uso mais restrito.
Nesta medida, o lixo deixa de ser apenas um resíduo do processo de produção de bens
de consumo e passa a ser uma produção cultural e uma marca social. Dentro de uma sociedade
capitalista, o lixo enquanto resíduo com algum valor de mercado passa a ser como a ser
considerado de maior relevância, principalmente quando inserido num contexto de
sustentabilidade, mas as pessoas que o manuseiam permanecem desvalorizadas. Estas pessoas
constituem um grupo social com sua maneira própria de entender e de se inserir num mundo de
produção. São portanto detentoras de uma cultura que dialoga com as outras ao seu redor e que
se constitui não apenas enquanto trabalho ou reposição das necessidades humanas por meio dos
produtos materiais gerados pelo trabalho, mas também enquanto símbolos, regras, valores,
ações, modo de ser e de ver o mundo. Enquanto um grupo descarta o que considera um resíduo
inútil, outro separa, classifica, diferencia, reaproveita direta ou indiretamente e, através do
mesmo produz sua existência. Vai ser na confluência destas compreensões sobre o que é afinal
o lixo, esta teia de significados – utilizando a expressão de Clifford Geertz (2008)17 –, que vai
se constituir o que interessa ao ambiente escolar esclarecer a respeito do lixo.
2.3 – O “lixo” em meio às tendências da Educação Ambiental
Engana-se quem enxerga a Educação Ambiental circunscrita à discussão de temas
sócio ambientais, numa disciplina como a Química, como uma ação ou projeto único e
claramente delimitado. As orientações oficiais para o campo educacional não são suficientes
para assegurar que as temáticas socioambientais são discutidas e se constroem no chão da escola
de maneira uniforme e padronizado. A diversidade de visões e interesses produzidos e
negociados na construção dos saberes escolares, fazem com que a Educação Ambiental se
revista de uma grande multiplicidade de formas e propósitos, que levam a consequências
diferentes e atendem a interesses diversos.
17 De acordo com Geertz, cultura é a teia de significados que o homem teceu”, e essa “teia” tem uma “superfície
enigmática” à qual devemos ter algum acesso (ver Interpretação das culturas, Zahar Editores, 1978, p.15). Nessa
perspectiva, aspectos culturais que possam nos parecem estranhos, devem ser encarados com um olhar menos
embebido de preconcepções e associados a dados que são cotidianos à nossa cultura. Cabe fazer uma “descrição
densa” do que nos causa estranheza e não associá-lo a uma lei geral, a uma norma. Desta forma estaremos –
segundo Geertz – operando uma ciência interpretativa.
46
A educação, entendida como uma prática social que busca formar indivíduos para a
vida em sociedade, deve proporcionar uma visão que permita uma compreensão da sociedade
em todas as suas dimensões. Porém, a perspectiva “ingênua” de uma ação educacional pela e
para a homogeneidade, sugere que os professores concebem e apresentam as questões
socioambientais de uma só forma e que sua ação educativa levará a todos os estudantes um
mesmo capital cultural e a uma similaridade social.18 Isso não é possível porque os contextos
sociais locais diferem, logo, as construções dos saberes também são diferentes. Mas, numa
perspectiva educacional crítica, as diferenças não podem se traduzir em desigualdades. A
pedagogia crítica da Educação Ambiental, fundamentada no pensamento freireano, define-se
como um processo educativo que problematiza as relações sociais. Nesse sentido, aproxima-se
de Forquin (1993) ao defender que os estudos sobre o currículo devem possibilitar uma reflexão
crítica das relações sociais, das relações de poder existentes na sociedade, uma vez que
O modo como uma sociedade seleciona, classifica, distribui, transmite e avalia os
saberes destinados ao ensino reflete a distribuição do poder em seu interior e a maneira
pela qual aí se encontra assegurado o controle social dos comportamentos individuais
(FORQUIN, 1993, p.85).
Para Layrargues & Lima (2011), o campo de Educação Ambiental é fragmentado e,
no Brasil, podem ser identificadas três macrotendências político-pedagógicas:
conservacionista, pragmática e crítica. A primeira respalda-se nos princípios filosóficos e
fundamentos científicos da ecologia, no pensamento ecossistêmico, na valorização da dimensão
afetiva em relação à natureza, no desenvolvimento humano e na mudança do comportamento
individual, em relação ao ambiente baseada no pleito por uma mudança cultural que relativize
o antropocentrismo, em direção ao ecocentrismo. Esta tendência atualizou-se desde a virada do
século, abrangendo outras expressões que vinculam a Educação Ambiental à “pauta ou agenda
verde”, como ecoturismo, trilhas interpretativas, biodiversidade, unidades de conservação,
biomas específicos, escotismo e observação de aves, algumas dinâmicas agroecológicas e de
senso percepção. Mais recentemente, abarcou também as motivações educadoras presentes no
âmbito dos esportes de aventura, via de regra praticado em ambientes naturais, quando não em
18 Buscando entender as desigualdades de desempenho escolar dos indivíduos provenientes de diferentes grupos
sociais, Pierre Bourdieu (1979), traz em seu texto “Les trois états du capital culturel”, a noção de capital cultural.
Segundo o autor, pode haver capital cultural sob três estados: o incorporado, o objetivado e o institucionalizado.
No estado incorporado, o capital cultural constitui o componente familiar, que influi na definição do futuro escolar
dos descendentes, pois as referências culturais, os conhecimentos considerados apropriados e legítimos e o
domínio maior ou menor da língua culta trazida de casa (herança familiar) facilitam o aprendizado de conteúdos e
códigos escolares, ligando o mundo da família e o da escola. No estado objetivado, o capital cultural existe na
forma de bens culturais materiais, cuja aquisição depende apenas do capital econômico, o qual, todavia, não
garante a apropriação simbólica destes bens, pois, para tanto, é necessário ter incorporado o capital cultural para
compreendê-los. No estado institucionalizado, o capital cultural materializa-se por meio dos diplomas escolares.
47
áreas protegidas ou unidades de conservação.
Já a macrotendência pragmática abrange as correntes relacionadas ao desenvolvimento
sustentável e ao consumo sustentável. Essa corrente é relacionada à “pauta marrom” por ser
urbano-industrial. Inicialmente tinha como foco a coleta seletiva e a reciclagem de resíduos,
mas na virada do século é ampliada para o consumo sustentável convergindo atualmente para
os temas de mudança climática e da economia verde. Está amparada nas tecnologias limpas,
ecoeficiência empresarial, sistemas de gestão ambiental, criação de mercados verdes (como o
mercado de carbono), serviços ecossistêmicos, racionalização do padrão de consumo, impacto
zero, criação de indicadores de sustentabilidade (como a “pegada ecológica”), entre outros.
Por fim, a macrotendência crítica abrange as correntes da Educação Ambiental
popular, emancipatória, transformadora e do processo de gestão ambiental, que são, em termos
práticos, variações sobre o mesmo tema (Loureiro, 2012b). É a única das tendências que
explicita sua orientação político-pedagógica com objetivos de interferência em conflitos
socioambientais. É importante frisar esse aspecto pois ela tem como característica marcante o
fato de reunir movimentos que se constituem como contra-hegemônicos, uma vez que sempre
é demarcada a diferença a partir da lógica do descontentamento em oposição ao poder
dominante. Esta macrotendência surge como uma reação à orientação conservadora no início
da década de 1990, a partir da insatisfação com o predomínio de práticas educativas pautadas
por intencionalidades pedagógicas reducionistas, que investiam apenas em crianças nas escolas,
em ações individuais e comportamentais no âmbito doméstico e privado, de forma a-histórica,
apolítica, conteudística, instrumental e normativa.
Cabe fazer um esclarecimento acerca da “pauta” ou “agenda marrom”. Em setembro
de 2003, durante a reunião da Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável,
denominada Rio+10, realizada em Johanesburgo, na África do Sul, foram definidas pautas ou
agendas para discutir as questões ambientais e econômicas, com o propósito de tentar amenizar
as disputas entre os países considerados desenvolvidos e em desenvolvimento. Estas agendas
foram divididas e classificadas por cores, em função das questões ambientais sobre as quais
cada uma iria se debruçar. Assim, foram criadas: a “agenda verde”, destinada à discussão de
assuntos como preservação de florestas e biodiversidade; a “agenda azul”, para a gestão de
recursos hídricos; e a “agenda marrom”, para as questões ambientais associadas à prevenção e
ao controle da poluição e da degradação ambiental, da industrialização, do crescimento
econômico e de desenvolvimento social, tais como a poluição do ar, da água e do solo, a coleta
e reciclagem de lixo, o ordenamento urbano e a segurança química. Apesar da existência de três
agendas, a verde e a marrom parecem assumir posições antagônicas, uma vez que a primeira
48
trata dos assuntos voltados para a conservação/preservação enquanto que a outra se associa a
ações potencialmente degradadoras. A Política Nacional de Resíduos Sólidos se integra a esta
agenda e, dado seu objeto, tem uma abrangência social ampla, pois trata de questões de
saneamento, saúde pública, educação e aspectos socioeconômicos ligados à coleta seletiva de
lixo. A administração dos riscos socioambientais expõe cada vez mais a importância de ampliar
o envolvimento público através de iniciativas que possibilitem um aumento do nível de
consciência ambiental dos indivíduos. Assim, a Educação Ambiental e a agenda marrom se
associam, na medida em que a primeira deve reforçar a segunda, enfatizando os problemas
ambientais que decorrem da desordem e degradação da qualidade de vida nas cidades,
estimulando a consciência ambiental que se fundamenta no exercício da cidadania e na
reformulação de valores éticos e morais, individuais e coletivos, numa nova forma da relação
homem/natureza.
Atualmente, os grandes assentamentos urbanos concentram também uma grande
probabilidade de problemas socioambientais como poluição do ar, da água e sonora, destruição
de recursos naturais, degradação social, perda de identidade cultural entre tantos outros. A
ocupação do solo, o provimento de áreas verdes e de lazer, o gerenciamento de áreas de risco,
o tratamento dos esgotos e a destinação final do lixo coletado nem sempre recebem a prioridade
necessária. Estes problemas são ainda mais agravados em se tratando de metrópoles com grande
concentração industrial.
Em relação a isso, no Brasil, o Ministério do Meio Ambiente tem atuado desde 1999,
com a criação da Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos e da
Gerência da Gestão Ambiental Urbana e Regional, buscando articular a questão ambiental com
os problemas econômicos e sociais do país e, paralelamente, prevenir e corrigir as causas da
contaminação e degradação do meio urbano, onde vive mais de 80% da população brasileira.
Dessa maneira, vem se procurando dar à questão ambiental um espaço institucional especifico:
secretarias especializadas com competências para liderar o planejamento e a coordenação da
gestão ambiental integrada, bem como a manutenção de ecossistemas (PESTANA, 2006):
O principal tópico da agenda ambiental brasileira deixou temporariamente de ser a
Floresta Amazônica, a biodiversidade e os índios. A perda dos recursos naturais
continua entre as preocupações de organizações não governamentais e do Ministério
do Meio Ambiente, é claro. Mas a lista foi acrescida de alertas sobre o crescimento
desordenado das cidades brasileiras e a falta de políticas de manejo sustentável nos
grandes centros urbanos. Hoje, até a Amazônia e certas regiões do Centro-Oeste
enfrentam, paralelamente à perda do verde, a pobreza das zonas urbanas (PESTANA,
2006, p.119).
Os impactos socioambientais dos problemas urbanos sob a tutela da “agenda marrom”,
49
ganham mais atenção a cada dia. Porém, a perspectiva sob a qual os mesmos são enfrentados
ainda tem, eventualmente, um caráter curativo e não preventivo. Este tipo de distorção das ações
institucionais pode ser um reflexo de uma perspectiva ambiental alinhada à macrotendência
pragmática e não à crítica, uma vez que a ação preventiva envolve planejamento e este custo
pode não atender aos interesses econômicos de grupos hegemônicos. Cabe então terminar esta
seção aprofundando as questões de pesquisa desta dissertação: que macrotendências do campo
da Educação Ambiental podem estar sendo mais marcantes na construção de sentidos para as
formas como o “lixo” vem sendo apresentado nos livros didáticos de Química?
2.4 – O “lixo” em meio à ecologia dos saberes
Boaventura de Sousa Santos (2010) considera um equívoco supor que o colonialismo
foi um momento histórico que se encerrou com a independência dos países colonizados, sendo
o racismo um exemplo disto, pois reafirma a presença do colonialismo na sociedade
contemporânea. O autor discute a existência de uma linha invisível - característica da
modernidade ocidental - que separa o hegemônico do dominado por um sistema de distinções
visíveis e invisíveis que dividem a realidade social em dois universos ontologicamente
diferentes. Esta fissura entre o norte e o sul é denominada de “linha abissal” e pode ser entendida
a partir de uma matriz de dominação colonial que abrange, também, a colonização epistêmica.
Nessa perspectiva, a colonialidade do poder, é também produtora da colonialidade do saber e,
nesse sentido, ela é tão válida no passado colonial como hoje porque ela representa também um
poder intelectual, o poder de uma determinada forma de pensamento sobre o modo de conceber
o mundo e de o interpretar.
Pode parecer, que por se estar falando de colonialismo, esta realidade tenha sido
superada pelos avanços econômicos e tecnológicos da humanidade. Entretanto, segundo Santos
(2010), “esta realidade é tão verdadeira hoje como era no período colonial” (p.39). As linhas
abissais, que perduraram desde a modernidade até os dias de hoje, não estiveram sempre fixas,
numa mesma posição. Deslocaram-se ao longo do tempo e, nos últimos sessenta anos, passaram
por dois abalos provocados primeiramente pelas lutas anticoloniais, e depois pela expansão “do
lado de lá da linha” (Sul). A sua entrada no “lado de cá da linha” (Norte) vem subvertendo a
lógica jurídica e epistemológica vigente. Deste modo, passa-se do paradigma da
regulação/emancipação para o paradigma da apropriação/violência.
Santos (2010) argumenta que durante algum tempo o paradigma da
apropriação/violência parecia estar chegando ao fim, bem como a divisão abissal entre este lado
50
da linha e o outro lado da linha. Porém, o pensamento abissal moderno possui a capacidade de
produzir e radicalizar distinções, as quais, pertencem a um lado da linha e se associam para
tornar invisível a própria linha abissal na qual estão fundadas. Decorre daí a impossibilidade de
copresença entre os dois lados da linha: um correspondente ao Norte imperial, colonial e
neocolonial, e o outro lado, correspondente ao Sul colonizado, silenciado e oprimido. O
"colonial" é uma metáfora daqueles que entendem que suas experiências de vida ocorrem do
outro lado da linha e se rebelam contra isso.
A distinção que esta linha determina é de tal forma “abissal”, que invisibiliza o que
quer que aconteça a quem e o que ficou do lado de lá da linha. O lado colonizado não tem uma
realidade ou, se a tem, esta existe em função dos interesses do Norte, operacionalizados na
apropriação e na violência. O lado colonizado consiste em um universo que se estende para
além da legalidade e da ilegalidade e para além da verdade e da falsidade. Assim, a exclusão
torna-se ao mesmo tempo radical e inexistente, uma vez que seres considerados subumanos não
são considerados sequer candidatos à inclusão social.
Porém, para Santos (2010), os espaços metropolitanos que se encontravam demarcados
desde o início da modernidade ocidental deste lado da linha estão sendo perpassados pelo
colonial, enclausurando o abissal metropolitano a um espaço progressivamente menor e
instigando-o a reagir remarcando a linha abissal, uma vez que a distinção entre o metropolitano
e o colonial não é mais distinta. A linha deve ser redefinida pois o que habitualmente situava-
se no lado metropolitano da linha é agora um território meandrado por uma linha abissal
sinuosa. Uma cartografia confusa conduz a práticas confusas.
A esta tensão que o colonial impõe à linha corresponde uma reação que é o "regresso
do colonizador", que implica na ressurreição de modalidades de governança colonial. A
expressão mais destacada desse movimento exibe-se como uma modalidade de governo indireto
que se aproveita das instâncias em que o Estado se retira da regulação social, de modo que
potentes atores não-estatais encampam o controle sobre a vida e o bem-estar das populações.
Assim, aos mais fortes, aos grupos de poder dotados de forte capital patrimonial, cabe o poder
de veto sobre a vida e o modo de vida da parte mais fraca.
Santos (2010) avança em suas discussões apresentado algumas formas de fascismo
social. Interessa-me particularmente aquela que ele denomina de fascismo do apartheid social.
Trata-se da segregação social dos excluídos por meio de uma cartografia urbana dividida entre
zonas civilizadas, constantemente ameaçadas pelas zonas selvagens. Essa forma de fascismo
pode ser observada em casos de privatização de serviços públicos (saúde, segurança social,
abastecimento de água, etc.). Nesta circunstância, as agências privadas de serviços ou
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paraestatais passam a atuar na regulação social anteriormente exercida pelo Estado, que se torna
conivente a esta forma de segregação ao imiscuir-se da prestação destes serviços. Ao tomar do
Estado o controle do território onde atuam ou neutralizam esse controle, corrompem as
instituições estatais e passam a atuar no sentido da regulação social sobre os habitantes do
território sem a participação destes e contra os seus interesses.
Em outras palavras, o pensamento abissal moderno, que do lado metropolitano da linha
regulava as relações entre cidadãos e entre estes e o Estado, passa a lidar com cidadãos como
se fossem não-cidadãos e com os não-cidadãos como se fossem perigosos selvagens coloniais.
Desta forma, o fascismo social coexiste com a democracia liberal, o estado de exceção coexiste
com a normalidade constitucional, a sociedade civil coexiste com o estado de natureza e o
governo indireto coexiste com o primado do direito. A linha abissal entre o metropolitano e o
colonial é deslocada transformando o colonial numa dimensão interna do metropolitano. O que
poderia se assemelhar a uma conquista de espaços sociais, acaba por se concretizar na introjeção
das regras que excluem ao próprio grupo excluído ou invisibilizado. Ele pode até estar dentro
da metrópole mas não ganha visibilidade pois não ganha poder. A exclusão social é sempre um
produto de relações de poder desiguais.
Como produto do pensamento abissal, o conhecimento científico não se encontra
distribuído socialmente de forma equitativa - nem poderia estar, uma vez que o seu desígnio
original foi converter este lado da linha em sujeito do conhecimento e o outro lado em objeto
de conhecimento. As intervenções no mundo real viabilizadas pelo conhecimento científico
tendem, portanto, a servir aos grupos sociais que têm maior acesso a esse conhecimento.
A respeito da hegemonia do conhecimento científico e intencionando desafiar o
pensamento abissal e de promover a descolonização do saber, Santos (2010) propõe a busca por
uma ecologia dos saberes. Esta tem por base o que designa por “interconhecimento” e
“conhecimento prudente”, em que crenças e ideias se distribuem respectivamente pelos dois
lados da linha da abissalidade. Com essa proposta, o autor afirma que “a utopia do
interconhecimento é aprender outros conhecimentos sem esquecer os próprios. É esta
tecnologia da prudência que subjaz à ecologia dos saberes” (p.47) e ela propõe fugir da
valorização de alguns saberes em detrimento de outros, que são visibilizados.
A ecologia de saberes proposta se apoia na ideia de que o conhecimento é
interconhecimento. Esta ecologia consiste na “promoção de diálogos entre o saber científico ou
humanístico que a universidade produz e saberes leigos, populares, tradicionais, urbanos,
camponeses, provindos de culturas não ocidentais que circulam na sociedade” (SANTOS, 2004,
p.76). Ela propõe uma articulação entre o saber popular, social, como saber técnico e científico,
52
num processo de mutua fertilização e de inclusão do conhecimento social excluído das
universidades. Baseada numa perspectiva epistemológica que postula o diálogo entre diferentes
tipos de conhecimento, o conceito de ecologia dos saberes defende a diluição da linha abissal
entre duas cartografias: a cartografia de poder, que divide o norte global do sul colonizado, e a
cartografia do saber que divide o conhecimento científico-racional de outros tipos de
conhecimento e “ignorâncias”.
Esta ecologia concebe os conhecimentos em abstrato, mas como práticas de
conhecimento que possibilitam ou impedem certas intervenções no mundo real, porque ela se
apoia na imprescindibilidade de uma reavaliação das intervenções e relações concretas na
sociedade e na natureza que os diferentes conhecimentos proporcionam. Esta ecologia
centraliza seu foco nas relações estabelecidas entre os saberes e nas hierarquias que se
estabelecem entre eles, uma vez que não seria possível nenhuma prática concreta sem essas
hierarquias. É próprio da natureza da ecologia de saberes constituir-se mediante perguntas
constantes e respostas incompletas, o que constitui aquilo que Santos (2010) denomina de
conhecimento prudente: esta ecologia oportuniza uma visão mais abrangente e nos previne de
que aquilo que não sabemos é ignorância nossa e não ignorância em geral.
A primeira condição para um pensamento pós-abissal é a copresença radical. Assim
como a ecologia de saberes, o pensamento pós-abissal tem por premissa a ideia da inesgotável
diversidade epistemológica do mundo, o reconhecimento da existência de uma pluralidade de
formas de conhecimento além do conhecimento científico. Há em todo o mundo não apenas
diferentes formas de conhecimento da matéria, da sociedade, da vida e do espírito, mas também
muitos e diversos conceitos e critérios sobre o que conta como conhecimento. As formas de
ignorância são tão heterogêneas e interdependentes quanto as formas de conhecimento. Assim,
num processo de aprendizagem conduzido por uma ecologia de saberes é crucial a comparação
entre o conhecimento que está sendo aprendido e o conhecimento que nesse processo é
esquecido e desaprendido.
A crítica ao modelo hegemônico de produção de conhecimentos e a apropriação das
contribuições teóricas relacionadas aos paradigmas emergentes é imprescindível para superar a
“monocultura do saber” questionada por Santos (2010), que reclama para si o estatuto da
verdade, aniquilando os saberes populares e submetendo-os à marginalidade epistêmica. Este
modelo de ciência hegemônica e produtivista tem por base, como se refere Boaventura de Souza
Santos (2008), uma epistemologia da cegueira que “exclui, ignora, silencia, elimina e condena
à não-existência epistêmica tudo o que não é susceptível de ser incluído nos limites de um
conhecimento que tem como objetivo conhecer para dominar e prever” (Santos, 2008, p. 49).
53
Para ele, uma alternativa seria a constituição de uma ecologia dos saberes e uma epistemologia
da visão que reconheça as ausências, emergências e possibilidades de outros futuros a partir das
experiências e processos em curso fora do universo eurocêntrico dos países centrais, fora dos
espaços cooptados pelos interesses do mercado nas formas pasteurizadas de produção e
consumo, e que emergem nos espaços de resistências e manifestações que afirmam e expandem
o exercício do viver.
A título de conclusão provisória acerca das ideias de Boaventura Santos, defendo que
a hierarquia que se estabelece momentaneamente entre os saberes é pautada pela existência de
tensões numa linha abissal quando um grupo, correspondente ao Norte imperial, colonial e
neocolonial, percebe a presença de um grupo excluído ou invisibilizado, correspondente ao Sul
colonizado, silenciado e oprimido. O aspecto mais característico desse modo de pensamento é
sua lógica de exclusão. Por não poder existir a copresença entre os dois lados da linha, apenas
os aspectos culturais do “colonial” que interessam e convém aos grupos hegemônicos são
reconhecidos, permanecendo invisibilizados sem passado de segregação e os demais
componentes culturais inconvenientes. Nesse sentido, são elucidativas as palavras de Santos
(2010, p. 39): “A negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui
a condição para a outra parte da humanidade se afirmar enquanto universal”.
Considerando a lógica da ecologia dos saberes, essas concepções de hierarquia entre
grupos humanos e entre as formas de conhecimento a serem aprendidas ou esquecidas podem
auxiliar na compreensão do tratamento dado à temática “lixo”, anteriormente invisibilizada –
ou esporádica e convenientemente associada, a título de exemplo, aos conteúdos e Química – e
na compreensão do status que este tema ganha numa hierarquia de saberes presente em livros
didáticos. Talvez seja possível vislumbrar uma linha abissal entre os grupos sociais associados
à “pauta verde” e à “pauta marrom” ou, pelo menos, uma perspectiva pragmática que
invisibiliza os aspectos considerados mais repugnantes do lixo visibilizando apenas sua
perspectiva socioeconômica em favor da manutenção de um modo de produção predatório, e
negando a existências de culturas invisibilizadas. Afinal, qualquer cartografia que procure situar
o saber no tempo, ou no espaço, não faz nada além de constituir fraturas abissais que contrariam
o próprio desígnio ecológico que defendem.
54
Capítulo 3 - O lixo como um conhecimento a ensinar nos livros didáticos de Química
Neste capítulo apresento a análise sobre a temática ambiental “lixo” numa coleção de
livros didáticos de Química para o Ensino Médio. Considero, para tal análise, os sentidos e
significados possíveis de serem atribuídos às formas como essa temática é apresentada em
textos e imagens inseridos nesses materiais. Com base nas especificidades da disciplina escolar
Química, já apresentadas no capítulo 1, e nas perspectivas selecionadas no capítulo 2 para
pensar o “lixo” como um conhecimento escolar, como parte do campo da educação ambiental
e ainda como possível de ser compreendido numa perspectiva da ecologia dos saberes, discuto
a inserção dessa temática nos livros didáticos a partir de três aspectos: o “lixo” como um
conhecimento químico em suas relações com as tradições do ensino de Química; o lixo
relacionado às questões sociais; e o lixo como algo considerado negativo na cadeia produtiva.
Conforme mencionado anteriormente, a coleção de livros didáticos escolhida foi
“Química: meio ambiente, cidadania e tecnologia”, da autoria de Martha Reis Marques da
Fonseca e publicado pela Editora FTD. Esta coleção faz parte de um conjunto de cinco títulos
que atenderam a todos os requisitos do processo de avaliação e seleção de obras didáticas para
o PNLEM de 2012, lançado em dezembro de 2009 através de edital, dentre um total de
dezenove coleções inscritas.
Figura 3– Capas dos três volumes da coleção “Química: meio ambiente, cidadania e tecnologia”
Os demais títulos selecionados pelo PNLEM 2012 eram: “Química – Ensino Médio”,
1ª edição; “Química cidadã” 1ª edição; “Ser protagonista – Química” 1ª edição; e “Química na
abordagem do cotidiano.” 4ª edição.
55
Figura 4 - “Química – Ensino Médio”
Figura 5 - “Química cidadã”
Figura 6 - “Ser protagonista – Química"
56
Figura 7 - “Química na abordagem do cotidiano"
Segundo o Guia de Livros Didáticos para o PNLD 2012 – Ensino Médio (BRASIL,
2011), as obras inscritas no programa foram avaliadas segundo critérios definidos previamente
no edital. Alguns destes critérios foram comuns a todas as disciplinas e áreas – como, por
exemplo, os que estipulam o respeito à legislação, às diretrizes e às normas oficiais relativas ao
Ensino Médio, à ética, à coerência, à correção e à atualização dos conteúdos apresentados. Mas
alguns critérios foram específicos para a área de Ciências da Natureza e específicos da
disciplina escolar Química, caracterizada como “como um conjunto de conhecimentos, práticas
e habilidades voltadas à compreensão do mundo material nas suas diferentes dimensões”
(BRASIL, 2011, p.9).
Para que integrassem o PNLEM 2012, cada título de Química foi avaliado conforme
parâmetros dentre os quais destaco:
(1) apresenta a Química como ciência que se preocupa com a dimensão ambiental dos
problemas contemporâneos, levando em conta não somente situações e conceitos que
envolvem as transformações da matéria e os artefatos tecnológicos em si, mas também
os processos humanos subjacentes aos modos de produção do mundo do trabalho; (2)
rompe com a possibilidade de construção de discursos maniqueístas a respeito da
Química, calcados em crenças de que essa ciência é permanentemente responsável
pelas catástrofes ambientais e pelos fenômenos de poluição, bem como pela
artificialidade de produtos, principalmente aqueles relacionados com alimentação e
remédios; (...) (7) não apresenta atividades didáticas que enfatizem exclusivamente
aprendizagens mecânicas, com a mera memorização de fórmulas, nomes e regras, de
forma descontextualizada. (BRASIL, 2011, p.9)
A partir desses parâmetros, pode-se concluir que entre os objetivos pretendidos
oficialmente para estes livros didáticos, o diálogo da Química com as questões ambientais é
bastante valorizado por esse documento. Desse modo, a inserção de assuntos relacionados ao
meio ambiente parece ser um critério forte para garantir a seleção das coleções pelo programa.
57
Por outro lado, se de dezenove coleções inscritas para a seleção, apenas cinco – ou seja, menos
que um terço – satisfizeram os requisitos impostos pelo programa (BRASIL, 2011, p.8), é de
se esperar que a temática ambiental se apresentasse de maneira representativa e diversa nas
cinco coleções selecionadas pelo programa.
Um outro aspecto que merece destaque é o que se refere à destinação dos livros
analisados e suas particularidades. Todos os volumes a que tive acesso e nos quais foi feito o
levantamento das inserções do tema “lixo” - levantamento este que conduziu à escolha de uma
coleção – são livros doados pelas editoras aos professores para aos professores para a apreciação
prévia à escolha. Como se pode observar nas figuras 3, 4, 5, 6 e 7, todos trazem uma
identificação de sua destinação. A inscrição pode ser “Manual do Professor”, ou “Material de
divulgação”, mas o propósito é o mesmo: estes livros trazem, além de todo o conteúdo presente
nos livros destinados aos estudantes e mais as orientações aos professores para o uso do mesmo.
O Manual do Professor é parte importante das obras submetidas à avaliação para
integrar o os programas destinados a distribuição de livros didáticos e isso se justifica porque,
além da análise do livro didático, também são analisados por uma comissão designada para este
fim, os manuais. Esses materiais são uma exigência do edital de inscrição no processo de
avaliação para o PNLD, que admite a importância dos mesmos como um meio para a elucidação
das propostas do livro didático. Nesse sentido, o Manual do Professor acata as determinações
do poder público quanto ao entendimento e à disposição das informações que veiculam.
Segundo Paulilo (2012, p.182) “indissociáveis uma da outra, as dimensões editorial e política
desses manuais suscitam questões que, já bastante exploradas por estudos sobre os livros do
aluno, enredam o texto, o livro e as suas estratégias simbólicas”.
Tanto a análise dos livros quanto a dos manuais seguem critérios que estão
especificados no Guia do PNLD 2012 - Química.
As obras de Química submetidas à avaliação no edital do PNLD 2012 foram
analisadas por uma equipe qualificada de especialistas, com competência na área
científica, composta de professores doutores de diferentes universidades brasileiras de
todas as regiões geográficas do Brasil, graduados em e doutores em áreas específicas
da Química ou em ensino de Química, e de professores do ensino médio, que
ministram aulas de Química em escolas públicas brasileiras e que avaliaram os livros
com o olhar da sala de aula, problematizando cada proposta à luz de sua experiência
docente. (BRASIL, 2011, p.10)
Segundo esse Guia,
O Manual do Professor consiste do Livro do Aluno, acrescido de Suplemento para o
Professor. O Suplemento para o Professor apresenta uma parte comum aos três
volumes: apresentação da obra, terminologia usada na obra para referências aos
conteúdos (conceituais, atitudinais e procedimentais), mapas conceituais, informações
sobre atividades experimentais (sugestões de fontes, segurança e descarte de
58
resíduos), questões acerca da avaliação e bibliografia. (BRASIL, 2011, p.25)
Por isso restava decidir se a análise dos livros didáticos seria acompanhada pela análise
dos suplementos destinados aos professores. Minha opção foi a de limitar a análise ao conteúdo
destinado a ambos: professores e alunos. Optei por não investigar as informações a que teriam
acesso apenas os professores por concordar com Paulilo (2012) no sentido de que
Em tese, o docente dispõe do Manual do Professor como um suplemento (...) cujo
argumento invariavelmente compreende os pressupostos teóricos da coleção, a
metodologia de ensino então desenvolvida, os objetivos, a sequência e o
encadeamento das unidades, uma proposta de avaliação, sugestões de material
didático complementar e orientações para a resolução dos exercícios ou atividades
propostas no livro do aluno. Na prática, porém, sem se saber o perfil dos professores
que utilizam o Manual19 ou mesmo se de fato o leem e o usam no preparo das suas
aulas, a análise do efeito produzido no ensino da matéria fica restrita a um inventário
de possibilidades. Mais uma vez aqui, o acúmulo de pesquisa sobre o livro do aluno
deve sinalizar as principais vias de abordagem. (p.193)
Tendo em vista que a proposta desta dissertação previu apenas a análise documental,
as discussões que se sobre as inserções da temática “lixo” na coleção Química: Meio ambiente,
Cidadania e Tecnologia, limitam-se ao conteúdo destinado aos estudantes.
3.1 – A escolha da coleção
Apoiando-me na discussão de Gomes (2008) sobre a inserção da ecologia em livros
didáticos de Ciências no período compreendido pelas décadas de 1930 e 2000, defendo que os
livros didáticos de Química também podem ser entendidos como “guias curriculares com
enfoques e conteúdos que refletem as visões de ensino dessa disciplina nos momentos históricos
em que são produzidos” (GOMES, 2008, p.vii). Esses materiais podem assim ser utilizados
como fontes para estudos que, como este, pretendem contribuir para a compreensão de como
se estruturam os currículos da disciplina escolar Química. Assim, argumento que analisar como
se dá a seleção e organização curriculares, que se expressam no modo como a temática “lixo”
é apresentada nesses livros didáticos, pode trazer luz sobre a compreensão de aspectos sócio-
históricos da disciplina Química na atualidade. Mais importante que a mera presença do tema
“lixo”, é a forma como este se apresenta e qual leitura de sociedade pode sugerir.
Partindo dessa perspectiva sobre os livros didáticos como fontes de estudos,
primeiramente fui construindo uma estratégia que me permitiu escolher, entre as cinco coleções,
aquela que foi analisada mais detalhadamente neste trabalho. Para essa tarefa, considerei que
tanto aspectos qualitativos quando aspectos quantitativos expressam as formas como o meu
19 Grifo meu.
59
objeto de pesquisa é apresentado nos livros didáticos e, portanto, podem ser usados como
indicativos de quais sentidos estão sendo construídos em torno das discussões da temática
“lixo”.
Os critérios, que permitiram as coleções citadas integrar o PNLEM 2012, não poderiam
sugerir uma homogeneidade da abordagem da temática lixo. Por esse motivo, com o intuito de
estabelecer um critério para a escolha da coleção a analisar neste trabalho, fiz inicialmente um
levantamento em todos os volumes de cada uma das coleções que compunham o conjunto de
livros selecionados por essa edição do Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino
Médio. Desse modo, pude identificar cada uma das ocorrências da temática “lixo” em cada um
dos livros. Posteriormente, estes dados foram tabulados de maneira a que pudessem ser
comparados para quantificar e associar aquelas inserções aos tópicos de Química, verificando
de que maneira estavam apresentados (textos do autor, textos de outras fontes, fotos, desenhos,
gráficos).
Decidi levar em consideração somente as ocorrências que estavam presentes nos livros
dos alunos. Tal decisão se deve ao fato de que há mais intenções anunciadas nos livros que as
editoras disponibilizam apenas para os professores que parecem não ser valorizadas nas edições
destinadas aos estudantes. No caso do “lixo” em particular, encontrei muitas menções ao tema
nas orientações para o ensino de uso exclusivo do professor. Estas ocorrências não foram
incluídas em meu levantamento inicial para a decisão de qual coleção analisar. Para este fim,
foquei somente aquilo que aparece nos livros tanto para docentes como para discentes. Em
outras palavras, a decisão em torno de qual coleção analisar mais detalhadamente se deu a partir
dos exemplares destinados aos estudantes.
Os resultados foram organizados em uma tabela que se encontra no anexo A com as
ocorrências da temática lixo por volume, unidade (quando aplicável), título do capítulo, assunto
abordado, página e de que forma a temática se apresentava. Foram tabulados não apenas as
menções diretas e textuais do autor, como também as citações de outras fontes – tais como
outros autores, notícias, sítios de internet – e imagens, na forma de fotos, gráficos e desenhos.
Em alguns casos, foram consideradas inserções nas quais, a despeito de não se encontrar a
palavra “lixo”, palavras sinônimas que davam conta do mesmo tema, também foram
registradas. Entre os sinônimos mais recorrentes destaco “sucata”, “resíduo”, “detrito”.
Considero que a própria tentativa de evitar a palavra lixo pode significar intenções interessantes
para este trabalho.
Como resultado desse esforço inicial, levando em consideração os três volumes de cada
coleção, encontrei dezoito inserções sobre a temática “lixo” na coleção “Química cidadã”, vinte
60
e oito inserções em “Química – Meio ambiente – Cidadania”, doze inserções em “Ser
protagonista”, treze inserções em “Química na abordagem do cotidiano” e dezoito inserções em
“Química – Ensino Médio”. Não compartilho de uma perspectiva meramente quantitativa,
segundo a qual um número de ocorrências é indicativo de qual seja a “melhor coleção”. Minha
opção baseia-se apenas na premissa de que um espaço amostral maior pode possibilitar uma
discussão mais ampla acerca da forma e das intenções que permeiam a presença da temática.
Por este motivo é que a coleção “Química – Meio ambiente – Cidadania”, de Martha Reis
Marques da Fonseca foi escolhida para a análise.
3.2 – A estruturação da coleção escolhida
A análise inicial das coleções que integram o PNLEM de 2012, que me levou à escolha
da referida coleção, me possibilitou um exercício inicial interessante que me permitiu conhecer
o panorama de formas de abordagem do tema “lixo” nesse conjunto de livros didáticos. Em
seguida, dei prosseguimento ao trabalho iniciando a análise, de modo mais qualitativo, da
coleção “Química – Meio ambiente – Cidadania”, de Martha Reis Marques da Fonseca, com o
objetivo de conhecer essa obra com mais detalhes, mais profundamente, no que concerne tanto
às abordagens do “lixo” como às suas relações com outros conteúdos de ensino que representam
as tradições de ensino valorizadas na disciplina escolar Química.
Iniciei pelas capas (figuras 8. 9 e 10), buscando entender a lógica que determinava a
escolha e organização das imagens, bem como a forma como se apresentavam as informações
escritas. Em seguida, observei a maneira como os três volumes organizam as informações,
sejam textos teóricos ou de incentivo à leitura, imagens, exemplos, exercícios, questões e
sugestões de práticas. Observei também de qual maneira os conteúdos foram divididos entre os
três volumes e de qual maneira estes conteúdos podem dialogar com aspectos de outras
disciplinas.
Nas capas dos três volumes encontramos o nome da coleção – Química: Meio
ambiente, Cidadania e Tecnologia – bem como a referência ao nível de ensino ao qual se destina
(médio), o nome da autora e a editora responsável.
O título principal encontra-se escrito em caracteres de dois tamanhos muito diferentes:
a palavra “Química” é escrita em caracteres muito maiores que o restante das palavras. Embora
o nome da coleção envolva tanto aspectos de currículos tradicionais de Química (a tecnologia)
quanto questões mais contemporâneas (o meio ambiente e a cidadania) e todas estas palavras
sejam escritas sem um destaque particular, aponto a presença de uma sugestão de que, apesar
61
das articulações propostas pelo nome, a disciplina em si ainda é mais importante que as
articulações que ela possa mediatizar.
As capas dos três volumes apresentam composições de fotos diferentes em arranjos
semelhantes, com imagens que remetem às temáticas relacionadas no título da coleção – meio
ambiente, cidadania e tecnologia.
As fotos maiores das três capas remetem a instalações industriais: uma termoelétrica
na capa do primeiro volume, um estaleiro no segundo e uma instalação de refino de petróleo no
terceiro. Cada uma das cinco fotos menores aponta para uma das temáticas éticas que intitulam
as unidades do livro. Assim, por exemplo, a primeira foto à esquerda na capa do volume 1,
retrata um furacão e remete ao título da primeira unidade que é Mudanças climáticas. A foto
imediatamente abaixo retrata uma paisagem de jardim e remete à temática da segunda unidade,
que se intitula “Oxigênio e Ozônio”. O lixo está retratado numa foto de sucata eletrônica,
presente na capa do volume dois, no qual a unidade 5 intitula-se Lixo eletrônico. Tais exemplos
expressos nas imagens, à primeira vista parecem sem um propósito, mas relacionam-se com a
maneira como os assuntos da disciplina escolar Química estão distribuídos ao longo dos três
volumes. É o modo como a organização dos eixos temáticos escolhidos para cada volume é
anunciado em cada volume da coleção.
As contracapas dos três volumes (figura 11) apresentam igualmente a letra do Hino
Nacional sobre fundo branco e, na margem inferior, o código de barras com o número do ISBN
correspondente a cada volume. Esta apresentação simples, desprovida de cores e imagens,
contrasta com o aspecto colorido das capas e pode sugerir uma valorização dos símbolos
nacionais20 como uma forma de atender a uma demanda oficial a partir da qual deveriam estar
presentes em todos os materiais didáticos, independentemente da disciplina, série ou nível de
ensino. Escrita em linguagem erudita, distante do modo coloquial e popular, a letra do Hino
Nacional brasileiro parece muito diferente da linguagem utilizada ao longo dos três volumes da
coleção.
20 A Lei 5.700, de 1º de setembro de 1971, também conhecida como Lei do Símbolos Nacionais, alterada pela Lei
nº 8.421, de 11 de maio de 1992, estabelece em seu artigo 1º quais são os Símbolos Nacionais.
Art. 1º - São Símbolos Nacionais, e inalteráveis: I - a Bandeira Nacional; II - o Hino Nacional; III- as Armas
Nacionais; IV- o Selo Nacional.
66
Esses primeiros dados encontrados nas capas e contracapas dos três livros didáticos
podem ser inícios de tradições de ensino escolar que afetam as disciplinas tais como a Química.
Desse modo, podem ser interpretadas como permanências e mudanças que, coordenadamente,
acabam por ser expressar intenções para a educação geral dos estudantes. Por exemplo, a
presença de temáticas ambientais e sociais vislumbrada pelas imagens presentes nas capas dos
livros, confrontada com a presença uniforme de um símbolo nacional na contracapa, sugere que
estes materiais didáticos podem ser compreendidos a partir das teorizações sócio-históricas
sobre padrões de estabilidade e mudança propostos por Goodson (1997).
A coleção “Química – Meio ambiente – Cidadania” sistematiza os conteúdos de
Química de uma maneira bastante frequente nos livros didáticos desta disciplina, que é a de
trazer os conteúdos de Química Geral no volume destinado ao primeiro ano, seguida de Físico-
Química no segundo volume e Química Orgânica, Radioatividade e eventuais temas
complementares no terceiro volume. Cada volume está organizado em cinco unidades sendo o
primeiro dividido em vinte e três capítulos (400 páginas), o segundo volume em vinte e quatro
capítulos (400 páginas), e o terceiro volume, em vinte e dois (416 páginas). Cada unidade dos
volumes 1 e 2 é denominada com uma temática ambiental; no volume 3, as unidades remetem
também a questões sociais diversas, além de discussões sobre petróleo e atividade nuclear. Cada
capítulo traz textos que relacionam conceitos de Química com aspectos do cotidiano e discutem
temas da atualidade, seguindo-se de exercícios e questões. A distribuição dos assuntos, presente
nos sumários (figuras 12, 13 e 14)21, está resumida nas tabelas 1, 2 e 3, a seguir.
21 Tendo em vista que cada um dos sumários dos três volumes encontra-se distribuídos por três páginas, optei por
condensar cada sumário em uma única imagem, permitindo que se possa acompanhar mais facilmente a
distribuição do conteúdo ao longo da coleção.
67
Tabela 1- Sumário do volume 1
Unidade Conteúdo da unidade Capítulo Conteúdo do capítulo
1 Mudanças climáticas Introdução O que é Química?
1 Grandezas físicas
2 Estados de agregação da matéria
3 Outras propriedades da matéria
4 Substâncias e misturas
5 Separação de misturas
2 Oxigênio e ozônio 6 Reações químicas
7 Átomos e moléculas
8 Notações químicas
9 Fórmulas químicas
10 Alotropia
3 Poluição
eletromagnética
11 Eletricidade e radioatividade
12 Evolução dos modelos atômicos
13 Modelo básico de átomo
14 A eletrosfera
15 Tabela periódica
4 Poluição de interiores 16 Ligações covalentes
17 Ligação polar e apolar
18 Forças intermoleculares
19 Compostos orgânicos
5 Chuva ácida 20 Ligação metálica e ligas especiais
21 Ligações iônicas
22 Oxidação e redução
23 Compostos iônicos
68
Tabela 2- Sumário do volume 2
Unidade Conteúdo da unidade Capítulo Conteúdo do capítulo
1 Umidade relativa do ar 1 Teoria cinética dos gases
2 Equação geral dos gases
3 Misturas gasosas
4 Cálculo estequiométrico
5 Rendimento e pureza
2 Poluição da água 6 Expressões físicas de concentração
7 Concentração em quantidade de matéria
8 Mistura de soluções
9 Propriedades coligativas
3 Poluição térmica 10 Reações exotérmicas e endotérmicas
11 Entalpia-padrão e lei de Hess
12 Cálculos de variação de entalpia-padrão
13 Cinética química
14 Lei de ação das massas
4 Corais 15 Equilíbrio dinâmico
16 Deslocamento de equilíbrios
17 Equilíbrios iônicos
18 Produto iônico da água
5 Lixo eletrônico 19 Introdução à Eletroquímica
20 Pilhas e baterias
Tabela 3- Sumário do volume 3
Unidade Conteúdo da unidade Capítulo Conteúdo do capítulo
1 Petróleo 1 Conceitos básicos
2 Nomenclatura
3 Hidrocarbonetos
4 Petróleo, hulha e madeira
5 Haletos orgânicos
2 Drogas lícitas e ilícitas 6 Funções oxigenadas
7 Funções nitrogenadas
8 Isomeria constitucional
9 Estereoisomeria
3 Consumismo 10 Reações de substituição
11 Reações de adição
12 Reações de eliminação
13 Reações de oxidação e de redução
14 Polímeros de adição
15 Polímeros de condensação
4 Alimentos e aditivos 16 Polímeros naturais
17 Carboidratos
18 Proteínas
5 Atividade nuclear 19 Leis da Radioatividade
20 Período de meia-vida
21 Radioatividade artificial
22 Fissão e fusão nuclear
72
Considerando ser a transformação química o objeto central de tudo que a Química
estuda, é razoável planejar o início dos estudos dos conteúdos dessa disciplina escolar a partir
do reconhecimento e do entendimento de transformações que os estudantes vivenciam, que eles
conheçam ou, mesmo que lhes sejam estranhas, ou que apresentem alguma importância para a
sociedade. Ao longo da história da humanidade, o homem vem modificando o ambiente e seu
modo de vida, criando objetos e materiais a partir dos recursos naturais. Essa característica pode
ser entendida como um vínculo construído entre a ciência Química, as sociedades humanas e a
natureza que possibilita à disciplina escolar Química se apresentar com um perfil que transita
entre finalidades educacionais acadêmicas, utilitárias e pedagógicas como propostas por
Goodson (1983 apud GOMES, SELLES & LOPES, p.478).
Assim sendo, observo, na estruturação dos conteúdos de ensino da obra analisada, que
os diálogos entre finalidades acadêmicas, utilitários e pedagógicas podem produzir uma
ampliação dos sentidos no ensino de Química. A Química pode ser um meio para o exercício
da cidadania e a compreensão dos mecanismos sociais desde que o conhecimento químico seja
fomentado como uma ferramenta para interpretar o mundo e intervir na realidade. Estas
possibilidades não podem ser mutuamente exclusivas, sob risco de que os conteúdos de
Química que integram o saber escolar mediatizem apenas uma perspectiva pragmática,
irreflexiva deixando de se vincular à reflexão cobre o próprio indivíduo e sua existência. É
importante e desejável que o conhecimento químico seja apresentado como uma construção
social e histórica, com seus conceitos, seus métodos e suas linguagens próprias, relacionada não
apenas ao desenvolvimento tecnológico mas também aos muitos aspectos da vida em sociedade.
A finalidade, em especial nas séries do Ensino Médio, é favorecer a compreensão por parte dos
estudantes, dos processos químicos em uma relação com suas aplicações tecnológicas,
ambientais e sociais, de maneira a formar um juízo de valor, decidir individual e coletivamente
de maneira responsável e crítica.
Mortimer & Santos (1999b) sustentam que o ensino tradicional de Química no Brasil
geralmente é fruto de um processo histórico de repetição de fórmulas didáticas bem sucedidas,
fazendo com que o estudante assimile, memorize alguns procedimentos relacionados à
Química. Este tipo de currículo dá destaque aos aspectos conceituais da química sob uma ótica
segundo a qual a cultura escolar química torna-se algo alienado de suas origens científicas e de
qualquer contexto social ou tecnológico, uma Química descontextualizada. Para esse autor, não
há nesses currículos tradicionais, um limite claro entre conceitos e definição, o que leva o aluno
a usar mecanicamente os conceitos em alguns tipos de problemas específicos. É imensa a
quantidade de conceitos/definições apresentados a cada capítulo dos livros didáticos, para que
73
o aluno consiga, em pouco tempo, compreende-los e ligá-los logicamente numa estrutura mais
ampla que dê significado e que contextualize a aprendizagem da química. Afinal, aprender uma
definição não corresponde necessariamente à aprendizagem do conceito.
Dentre as tradições curriculares, na acepção de Goodson (2001) que vêm,
historicamente, conformando a disciplina escolar Química, destaco a sequenciação dos
assuntos. Na primeira série, por exemplo, é comum dar ênfase, logo no início dos conteúdos da
Química para o Ensino Médio, a aspectos microscópicos, apresentando os modelos atômicos
de Dalton, Rutherford, Bohr e o quântico, a distribuição eletrônica em camadas ou níveis e
subníveis energéticos, seguidos da tabela periódica e do estudo das ligações iônicas, covalentes
e metálicas. Essa sequência didática, que parte da apresentação de um modelo atômico
microscópico e abstrato, exige que o aluno compreenda uma possível explicação microscópica
para propriedades macroscópicas dos materiais, antes mesmo de conhecer fatos químicos. Por
isso, concordo com Mortimer & Santos (1999b), a aprendizagem pode se tornar mecânica e
pouco significativa.
Observando a proposta programática dos livros desta coleção nota-se uma ênfase na
articulação entre as questões ambientais e os conteúdos da Química, embora a sequenciação
destes conteúdos siga uma orientação mais tradicional no ensino de Química, que é a de iniciar
o primeiro ano com a Química Geral e Atomística, passando para os conteúdos de Físico-
Química no segundo ano e, no terceiro ano, a Química Orgânica, Bioquímica e Química
Ambiental. Ou seja, a autora organizou os conteúdos de Química buscando associá-los a
temáticas ambientais, mas sem deixar de valorizar mais fortemente aqueles conteúdos
referenciados pela ciência de referência. Entretanto, mesmo percebendo esta valorização, é
interessante notar que as temáticas ambientais aparecem ao longo dos três volumes como eixos
organizadores da apresentação e discussão dos conteúdos de ensino de Química.
75
No início de cada volume, há uma explicação sobre a organização da obra e uma breve
apresentação dos conteúdos. A autora faz uso de algumas seções que são constantes ao longo
de toda a coleção para apresentar o livro. São estas os “Textos de abertura”, “Explorando os
textos”, “Questões”, “Exercitando o raciocínio”, “Experimentos” e “Cotidiano do químico”.
Os “textos de abertura” são trechos de publicações jornalísticas relacionadas às
discussões de cidadania, tecnologia e meio ambiente com propostas para debates ao longo dos
capítulos. Em “Explorando os textos” há recortes dos textos, para serem explorados e discutidos
ao longo dos capítulos. Nestas seções são formuladas algumas perguntas, a propósito dos temas
em questão, para que sejam discutidas de forma concomitante ao conteúdo do capítulo. Foi
neste tipo de seção que se evidenciou a maior quantidade de referências à temática “lixo”. As
seções intituladas “Enriquecendo o aprendizado” apresentam trechos com informações
complementares para auxiliar a discussão das propostas de “Explorando os textos”. Já
“Resgatando o que foi visto” está presente com o propósito de finalizar os debates da unidade.
Por fim, os exercícios de fixação estão dispostos em duas seções intituladas “Questões” e
“Exercitando o raciocínio”.
Há também as seções “Experimentos”, entremeadas às demais, com a proposta de
apresentar conhecimentos químicos e questões a serem respondidas com estes experimentos,
sempre simples, utilizando materiais de fácil obtenção e com orientações acerca dos cuidados
para a condução segura das práticas. Em “Cotidiano do químico” são discutidas também
práticas, mas na forma como elas se dão em laboratórios reais, com equipamentos próprios além
de processos de análise e síntese. E em “Curiosidade” são apresentados pequenos textos com o
intuito de enriquecer o conteúdo, discutindo peculiaridades da produção científica ou histórias
da vida e da obra de cientistas.
Por fim, o livro traz uma marca de coerência com a proposta de uso das temáticas
ambientais como eixos organizadores dos conteúdos de Química: um “carimbo” lembrando os
estudantes de não escrever no livro didático. Afinal, ele não é descartável e deverá ser utilizado
por pelo menos três anos, respondendo a uma demanda das orientações oficiais nacionais de
não produzir mais livros descartáveis e remetendo ao conceito de preservação.
Figura 16 - "Carimbo" de conservação dos livros didáticos
76
Esta marca que aparece ao longo dos três volumes, em todas as unidades e capítulos,
pode ser considerada como uma influência resultante de demandas das orientações oficiais
nacionais de que os livros didáticos devem ser reutilizados. Tal influência se coordena com as
propostas delineadas pela obra relacionadas à valorização das questões ambientais.
Há porém, muito mais que observar nos volumes desta coleção, para além a
estruturação básica aqui delineada. Por isso, passo a apresentar as inserções da temática lixo ao
longo destes três volumes na seção a seguir.
3.3 – As inserções da temática “lixo” na coleção analisada
Na análise aqui apresentada procuro organizar a discussão em torno das intenções,
modos de inserção e configurações explícitas e implícitas em imagens e textos que nos livros
didáticos remetem à temática “lixo”22 ao longo dos três volumes desta coleção. Com esse
propósito, proponho três focos de análise: (i) o “lixo” como parte das tradições de ensino da
Química: (ii) o “lixo” em suas relações com questões sociais contemporâneas que são parte do
cotidiano da vida dos estudantes; e (iii) o “lixo” como algo que é parte da cadeia produtiva
industrial. Esses três aspectos são o resultado das discussões teóricas que apresentei nos
capítulos 1 e 2 em diálogo com a análise dos próprios conteúdos dos materiais analisados. Ao
enfrentar a análise, dos conteúdos sobre o “lixo”, em meio a todos os outros, nos livros
didáticos, só foi possível colocar ordem nos resultados a partir das discussões teóricas sobre a
disciplina escolar Química e suas relações com aspectos do cotidiano tais como as
problemáticas ambientais. Desse modo pude ir compreendendo como o “lixo” se insere nesses
materiais em meio a tendências de pesquisa e ensino tais como as do ensino de Química
(SCHNETZLER, NIEVES & CAMPOS, 2007) e as da Educação Ambiental (LAYRARGUES,
2011; 2012) e considerando um modo de olhar para os conhecimentos com base na ecologia
dos saberes (SANTOS, 2010).
Nessa seção da dissertação, pretendo que os comentários e as análises de cada inserção
sejam apresentados preferencialmente na ordem em que estão distribuídos ao longo dos três
volumes da coleção e, estes volumes, serão analisados na sucessão em que se apresentam. Não
obstante, ficam ressalvadas deste critério, situações particulares em que foi possível estabelecer
comparações importantes entre informações coletadas fora desta ordem. Esta escolha deve-se
22 Considero importante esclarecer que não estão inclusos nesta discussão todas as imagens e textos que tratam da
temática “lixo” na coleção analisada, mas apenas uma parte que permitiu estabelecer correspondências e construir
discussões consistentes. Isso não significa, no entanto, que as demais imagens e textos sejam divergentes dos
escolhidos.
77
ao fato de que, por haver estabelecido que a análise se restringiria aos conteúdos comuns a
professores e alunos, decidi acompanhar a sequência que mais provavelmente seria a adotada
em sala de aula.
Cada livro desta coleção apresenta, após o sumário, uma tabela periódica dos
elementos químicos. Exclusivamente no volume 1, segue-se a esta tabela, um capítulo de
introdução intitulado “O que é Química?”. Já nos volumes 2 e 3, há um texto de uma página
resgatando o que foi “visto” no volume anterior. Se, no que diz respeito à organização dos
conteúdos desta disciplina escolar, os sumários (figuras 18, 19 e 20) demonstram uma
orientação voltada para uma tendência mais “tradicional” do ensino de Química já conhecida,
parece haver algum nível de ruptura com esta visão no texto que compõe o capítulo introdutório
do primeiro volume.
No contexto desse capítulo introdutório, aparecem as primeiras evidências da relação
do lixo com aspectos relacionados a questões sociais levantados a partir de uma discussão em
torno da pergunta “O que é a Química?” (volume 1, p.8-13). Lembrando que alunos do
primeiro ano do Ensino Médio têm contato, com a disciplina Química, de um modo mais geral
e introdutória no Ensino Fundamental, é interessante que esta discussão seja o marco inicial dos
temas da Química. Ao final desta discussão e em meio a temas como “A Química é natural ou
artificial?” (v. 1, p.12) e “A Química polui?” (v. 1, p.12), são mostrados de um lado uma
imagem de gado em meio ao lixo, relacionando-a ao risco de morte de animais pela ingestão de
restos de plástico indevidamente descartados e, da página seguinte, aparece uma figura que irá
se repetir – posteriormente – na metade final do volume 3.
78
Figura 17 - Volume 1, Introdução, páginas 12 e 13
O texto apresentado no volume 1, a propósito das imagens apresentadas na figura 17,
trazem menções – por texto ou pela legenda da foto à direita, sobre a agenda verde através da
Química Verde, e marrom ao discutir as consequências de um modo produtivo altamente
impactante. Mas fica a impressão de que a Química Verde se limita a colocar uma solução
esverdeada em um recipiente de laboratório, ao lado de uma flor, que a solução para a
degradação ambiental e humana se resolve. As duas faces do mesmo contexto, – o mundo
natural de onde vêm os recursos – e o mundo social, onde se acumulam os problemas e as
consequências de uma produção irrefletida em sua dimensão ambiental, não são associadas.
São apresentadas como discussões que não se articulam. Assim, parece ser assumida uma
posição pragmática que não é explorada para possibilidades de propostas pedagógicas que
explorem visões mais críticas a esse respeito. Pode ser considerada uma perspectiva “ingênua”23
23 Cabe uma explicação do sentido desta palavra que se repetirá ao longo das discussões e análise, sempre entre
aspas: “ingênua”. Sua escolha foi uma opção por refletir uma credulidade excessiva ou uma falta de análise mais
amiúde, que permita expor as reais intenções de ações educativas que não são isentas, são parciais e que
representam os valores e o ideário de forças hegemônicas. No caso particular da educação ambiental, esta
79
e limitada que não explora o potencial educativo da problemática ambiental. Estas informações
são apresentadas numa localização privilegiada da coleção – o começo do volume 1 (p.12-13)
– que é onde a Química começa a ser conceituada associando-a a questões ambientais.
Como uma consequência de um processo de forte industrialização observado na
década de 1970, a Química enquanto ciência tem sido associada a problemas oriundos de
atividades industriais. Nesse sentido, as consequências nocivas de tais práticas são associadas
a ideias sobre as possibilidades de minimização dos riscos socioambientais. Segundo Ferreira,
da Rocha & da Silva (2013), o entendimento de que processos ambientalmente amigáveis, ou
seja, aqueles que buscam minimizar ou mesmo eliminar qualquer efeito prejudicial que um
processo pode gerar no meio ambiente, são necessários levou os químicos Paul Anastas e John
C. Warner a estabelecerem em 1998, os doze princípios da Química Verde, que são: 1.
Prevenção; 2. Economia atômica; 3. Síntese de produtos menos perigosos; 4. Modelo de
produtos seguros; 5. Solventes e auxiliares mais seguros; 6. Busca pela eficiência de energia;
7. Uso de fontes renováveis de matéria-prima; 8. Minimização da formação de subprodutos; 9.
Catálise; 10.Desenho para a degradação; 11. Análise em tempo real para a prevenção da
poluição; 12. Química intrinsecamente segura para a prevenção de acidentes (FERREIRA, DA
ROCHA & DA SILVA, 2013, p.88). Mais que uma ciência em si, a Química Verde é um ramo
da Química industrial voltada para a manutenção/recuperação da saúde e da qualidade
ambiental, mas ainda há muito que discutir sobre os meios e os fins desta proposta quando
colocada em prática. Esta Química intenciona possibilitar a execução de projetos com
aplicações mais “amigáveis” ao ambiente.
A Química Verde é a parte da Química que envolve o planejamento da síntese e dos
produtos químicos. Ela busca evitar a poluição e os problemas ambientais sobre os
seres vivos; eliminar os processos químicos prejudiciais ao ambiente e substituí-los
por outros menos agressivos, sustentáveis, recicláveis e não persistentes; implementar
métodos sintéticos para substâncias de alta eficácia com reduzida toxicidade para a
saúde humana e para o meio ambiente; minimizar o uso de energia e usar reagentes
preferencialmente na escala catalítica. (FERREIRA, DA ROCHA & DA SILVA,
2013, p.91)
O principal propósito da Química Ambiental, ou Química Verde é minimizar ao
máximo, o uso e a geração de substâncias perigosas para a saúde humana e para o meio
ambiente, ao longo do processo produtivo. Incentiva assim que este seja mais limpo, com menor
“ingenuidade” aparecerá ao longo desta dissertação, principalmente associada às chamadas “boas práticas” e às
leituras reducionistas da sustentabilidade, que resumem a análise dos problemas ambientais às questões do
consumo, sem fazer uma análise crítica do processo produtivo e das questões sociais que estão envolvidas. É uma
ingenuidade acreditar que o processo econômico se resume ao consumo, sem discutir a organização da sociedade
e transpondo os problemas coletivos para um âmbito em que as soluções são dadas por ações individuais.
80
emissão de poluentes industriais, e com maiores responsabilidades dos fabricantes para com
aquilo que produzem. Porém, a Química Verde perde seu propósito central caso se esteja atento
apenas a parte desses objetivos, sob o risco de se ter uma ação “sustentável” que não se relaciona
à Agenda Verde, mas apenas tinge de verde a pauta marrom.
Para que um produto seja fabricado rigorosamente de acordo com os critérios da
Química Verde, deve-se levar em consideração todo o impacto ambiental desde a sua fabricação
até o fim do seu ciclo de vida, e não é comum encontrar este tipo de informação disponível aos
consumidores, em rótulos ou embalagens. Ao contrário: muitos dados associados àqueles
critérios – tais como “reciclável”, “matérias primas naturais”, “não produz resíduos” – são
informações colocadas à vista do público, agregando algum apelo ou destaque, no mínimo,
falacioso. Alumínio ou aço é reciclável e, por isso, essa é uma informação irrelevante frente aos
impactos ambientais causados pelo processo de extração e produção. Naturais também são os
elementos radiativos – como o urânio – ou tóxicos – como o arsênio e o mercúrio –e o fato de
serem naturais em nada diminui sua periculosidade. Se uma embalagem é feita de papel
reciclado ou se um produto de limpeza alegadamente não deixa resíduos, novamente não se está
discutindo os possíveis danos causados até chegar ao produto final. Produtos em spray com
embalagens que informam serem inofensivos à camada de ozônio porque “não contém C.F.C.”
fazem marketing sobre o óbvio porque o uso dessa substância já está proibido por lei desde
setembro de 2000, quando o Conselho Nacional do Maio Ambiente (CONAMA) implantou a
Resolução 267, regulamentando o uso e comercialização dessas substâncias e sua proibição
total em 2007.
O mais grave desse panorama de desinformação é que ele me leva a crer que, critérios
de produção que deveriam ofertar produtos menos nocivos ao ambiente desde sua fabricação
até o final do processo de consumo, acabam sendo usados enganosamente como um “valor
agregado” que incentiva o aumento do consumo. Aumentar o consumo de qualquer bem para
além das necessidades reais vai contra a lógica da própria Química Verde, uma vez que uma de
suas metas é a economia de átomos.
Esta é a discussão, mais aprofundada, que se apresenta no volume 3 como ilustrado na
figura 18.
82
Neste volume, é retomada a discussão de uma forma menos “ingênua”, com uma
discussão um pouco mais crítica na medida em que aborda o processo industrial, mas ainda
assim não há uma reflexão sobre a cadeia produtiva. A própria retomada de uma discussão
distante no tempo sugere que, se a autora imprime à sua coleção uma noção de complexidade
crescente das discussões ambientais, é pouco provável que um estudante de terceiro ano do
Ensino Médio se recorde do que foi discutido em uma de suas primeiras aulas de Química no
primeiro ano.
Além disso, a autora propõe no capítulo 5 do volume 1 – como mostrarei adiante -
reflexões acerca dos riscos e consequências da disposição inadequada do lixo, do
aumento de sua produção mas, paralelamente a isso, enaltece a indústria da reciclagem
com uma forma de enriquecimento e de “sustentabilidade” do sistema produtivo.
Adota assim uma perspectiva que à primeira vista, pode parecer “ingênua”, não
crítica, mas suspeito que este enfoque desprovido de crítica tem um caráter pragmático
pois, se no volume 3 a autora propõe uma postura mais consciente em termos de
hábitos de consumo, faz – por outro lado- uma apologia à sustentabilidade dos
recursos.24
Retomando as observações do volume 1, é possível reconhecer mais fortemente a
relação do lixo com conteúdos ensinados tradicionalmente na disciplina Química. Um exemplo
disto poder ser observado no capítulo 5 (figura 19) da unidade 1, no qual o lixo é inserido no
assunto “Separação de Misturas” (p. 71). Servindo-me de minha experiência como professora
de Química, posso afirmar que esta é uma associação interessante que permite discutir e
exemplificar processos tais como a catação e a separação magnética. Assim, na primeira página
(p. 71) deste capítulo, a autora propõe uma reflexão acerca da reciclagem de lixo relacionada
ao processo de separar, de uma quantidade de lixo diversificada, os materiais com interesse
comercial. Este texto aparece ladeado pela imagem de uma comunidade de moradias de baixa
renda construídas às margens de um lixão. A despeito de o texto da legenda tratar dos possíveis
prejuízos desta situação para a vida humana, não se estabelece uma relação de causa e
consequência entre o lixo e o problema social. Ao contrário, as explicações e exemplos
apresentados ao longo do capítulo 5 sugerem que, mais importante que um processo de
produção de bens de consumo que produza menos lixo, ou uma mudança de hábitos neste
sentido, a aspecto mais importante é a reciclagem. O lixo não chega sequer a ser considerado
um problema decorrente do processo produtivo ou do consumo supérfluo mas ganha bastante
destaque a perspectiva da importância da reciclagem para o sistema produtivo.
24 Refiro-me a uma inserção presente no volume 3 e que será exibida mais adiante nesta seção (figura 43), na qual
a autora se refere ao vídeo “A carne é fraca”, o qual considero bastante impactante principalmente levando em
consideração que os usuários destes livros didáticos são adolescentes, com poucas exceções.
84
Nas figuras 20 e 21 há imagens e textos apresentados para tratar do conteúdo de
Química proposto para este capítulo – separação de misturas – A autora explora esse tema
servindo-se de exemplos cotidianos que são a separação de impurezas do feijão, a peneiração
da areia e a separação dos componentes do lixo dando destaque para a reciclagem de metais
(Volume 1, capítulo 5, páginas 72 e 73) enfatizando a economia de recursos e energética. Não
obstante, a autora também aborda a importância da reciclagem de outros materiais, como papel
e vidro, novamente relacionando com a economia energética mas também a redução de
consumo de água, de recursos naturais.
No entanto, outra foto (figura 22) também ilustra o conteúdo da reciclagem do lixo no
contexto da separação de misturas, mas esta retrata a condição social de um cidadão
transportando um fardo imenso de metal reciclável. Esta fotografia, embora ilustrativa de como
as questões sociais estão sempre relacionadas com a temática “lixo”, não é aprofundada no texto
que a acompanha. Não há qualquer informação ou discussão a respeito dessas condições de
trabalho. Apenas há uma legenda acerca do fato de que o homem retratado está transportando
as embalagens para a reciclagem. Neste exemplo, além de uma postura pragmática, percebo
também uma tendência a naturalizar as condições subumanas de existência de alguns tipos de
trabalhadores. Não há uma crítica à condição de exploração à qual o indivíduo está sujeito para
minimamente tentar assegurar sua sobrevivência. Há somente a valorização da reciclagem.
Esta mesma situação se repete mais adiante, na página76 do volume 1 (figura 23) onde
é apresentada uma questão em que, apenas a título de ilustração e sem qualquer comentário ou
proposta de reflexão, está posta uma imagem de crianças em uma área de “lixão” e, a título de
esclarecimento, um pouco mais abaixo desta foto está posta seguinte nota (ambas destacadas
em vermelho na imagem): “Lembre-se que lixões são formados pela disposição de lixo a céu
aberto, sem impermeabilização do terreno nem controle posterior” (volume 1, página 76).
88
Figura 23 - Volume 1, unidade 1, capítulo 5, página 76
Novamente são tratados os problemas decorrentes do acúmulo e da disposição
incorreta dos resíduos mas não há uma menção sequer acerca das responsabilidades dos meios
de produção ou mesmo de qualquer outra ação preventiva. Se o lixo é consequência de um
processo produtivo que não respeita a paisagem e os seres vivos que nela habitam, neste
exemplo são discutidas as “consequências das consequências” de um processo produtivo que
acumula e não distribui os bens e as riquezas de forma justa, mas não são abordadas as causas
destes problemas. E tipo de abordagem repete-se em diversos outros exemplos ao longo dos
três livros da coleção. Na figura 24, esta retirada do volume 2, o “lixo” é apresentado como
responsável pelos problemas ambientais.
90
Retomando a análise das inserções finais da temática “lixo” no volume 1 da coleção,
um outro exemplo é explorado na seção “Resgatando o que foi visto” (figura 25), em que no
contexto de uma reflexão sobre as relações entre a temática ambiental organizadora da unidade
- “Mudanças climáticas” - e o lixo, são propostas mudanças de comportamento no que diz
respeito ao consumo e também à ação política dos cidadãos. A proposta de redução da produção
de lixo através de uma “reeducação de hábitos”, subentendidos os de consumo, presente nessa
seção do capítulo 5/volume 1, não é esclarecida nem posta em discussão. Sem a presença de
uma discussão que esclareça o que se pretende atingir com esta mudança de hábitos de
consumo, fica visível uma sugestão de que a melhoria ambiental – ou pelo menos, a redução
dos danos – passa não pela redução do consumo desnecessário mas sim pela escolha de produtos
“ambientalmente corretos”, expressão esta que também não é esclarecida. Nada é mencionado
sobre as responsabilidades do sistema produtivo ou sobre a lógica de mercado que incentiva o
consumo pelo consumo em si mesmo, e não como algo associado a necessidades básicas.
Embora o texto destacado na figura 25 se refira a uma tomada de atitude, o que se propõe é, na
verdade, uma mudança de comportamento. Mészaros (2008 apud Loureiro, 2012) esclarece a
importante diferença entre estes dois conceitos.
As atitudes são um sistema de verdades e valores que o sujeito forma a partir de suas
atividades no mundo. Os comportamentos, por sua vez, são ações objetivas no mundo,
o momento final do processo. Qualquer um de nós pode mudar o comportamento por
força de uma necessidade material, exigência do Estado ou por imposição de alguém,
sem que isso signifique que mudou de atitude. As escolhas pessoais são, assim,
situadas por condições que afetam a cada um em intensidades diferentes. A simples
adequação comportamental, mesmo que relevante imediatamente, não implica a
capacidade cidadã de definir, escolher livremente e exercer o controle social
(regulação democrática) no Estado, e pode apenas expressar a conformação de uma
pessoa à sociedade tal como se configura contemporaneamente (relações assimétricas
de poder, desigualdade econômica e expropriação do trabalhador, preconceitos e
utilização intensiva da natureza para fins de acumulação de riqueza material (p. 85).
Sendo assim, o texto na figura 25 não esgota as possibilidades de discussão que
excedem a sugestão de uma simples mudança de comportamento para propiciar uma real
mudança de atitudes, uma vez que não são discutidas as causas da necessidade destas mudanças.
Ao se referir à necessidade de diminuição da geração de lixo, o texto incentiva o consumo de
uma forma dita “ambientalmente correta”, mas não aprofunda os sentidos que essa expressão
pode possibilitar na formação dos estudantes. Citando Loureiro (2012a), o problema passa a ser
do indivíduo, uma vez que quem decide o que é correto ou incorreto são os grupos hegemônicos
de nossa cultura.
92
No volume 2 da coleção escolhida, as primeiras inserções da temática “lixo”
identificada aparecem na página 85, nos textos de abertura do capítulo 6, (figura 26) e, logo em
seguida, na seção “Explorando os textos” da mesma unidade 2 (p.86), apresentadas
respectivamente nas figuras 26 e 27.
A imagem que se vê na figura 26 repete a mensagem de contaminação de corpos de
água pelo descarte impróprio de lixo (já observado na figura 24) e, de novo, a discussão se
limita ao impacto ambiental sem analisar as causas desta ação, se são de natureza educacionais
ou sociais, como a falta de estrutura adequada para o descarte. Nessa figura, se repete a
responsabilização da disposição imprópria de resíduos, sucata, rejeitos e todas as demais
denominações empregadas para referir-se ao lixo, pelos danos ambientais. Ao abordar a
contaminação de corpos de água pelo despejo de esgoto irregular, a autora relaciona este
lançamento à presença de lixões e ilustra com imagens que mostram, uma delas, as margens de
um corpo de água cobertas de resíduos de diversas naturezas e, em outra foto, uma grande
mortandade de peixes identificada (na legenda) como consequência da produção de substâncias
tóxicas pelo acúmulo de material em lixões. No exemplo desse texto em particular, embora
novamente não esteja presente uma crítica explícita à falta de cuidado com a disposição dos
rejeitos do processo produtivo, há pelo menos o estabelecimento de uma conexão entre a
poluição das águas e a geração de lixo.
As associações entre o descarte impróprio de rejeitos, da geração de lixo e da poluição
das águas propostas nos textos de abertura e na seção “Explorando os textos”, e retratados nas
figuras 26 e 27, sugere que este debate permeará os conteúdos de Química apresentados ao
longo, senão da unidade (cujo tema ambiental é a poluição da água), ao menos no capítulo que
trata de expressões físicas de concentração. Entretanto, a única vez que se repete no volume 2
esta importante questão acerca do lixo, que é a relação entre seu descarte e a poluição das águas
da coleção escolhida, acontece na página 320, já no capítulo 18 (que trata de Produto iônico e
Kps) que é parte da unidade 14, cuja temática ambiental são os corais.
93
Figura 26- Volume 2, unidade 2, foto do texto de abertura do capítulo 18, página 85
Na figura 27 observamos uma foto em que uma pilha de lixo formada por materiais
variados e entre os quais se pode evidenciar alguns recicláveis, porem a legenda não usa a
palavra “lixo”, preferindo tratar como “resquícios”. Ou seja, esta específica problemática perde
destaque após uma apresentação inicial de sua importância ambiental e social, caminhando para
quase nenhuma discussão.
94
Figura 27- Volume 2, unidade 4, capítulo 18, página 320
Figura 28- Volume 2, unidade 2, Explorando os textos (capítulo 6), página 86
95
No segundo volume da coleção, a temática “lixo” se apresenta, além do contexto das
temáticas ambientais que organizam o livro25, dialogando com visões mais contemporâneas. Ao
abordar o “lixo” é usada sucata eletrônica. Dessa forma, é relacionado aos padrões dos currículos
tradicionais de Química, nos quais o conteúdo de segundo ano contempla Físico-Química, entre
estes a Eletroquímica, tema muito alinhado ao lixo eletrônico. Neste caso, considero que este livro
traz uma contribuição que representa uma ruptura nesta tradição de ensino. Ao invés de limitar-
se aos dispositivos eletroquímicos tais como pilhas, bateria e células eletrolíticas, são explorados
aspectos para um panorama mais contemporâneo, abordando também as questões ambientais com
potencial de interlocução com esses conteúdos de ensino mais tradicionais.
O grande destaque que a autora dá à disposição imprópria do lixo e de suas consequências
é visível também no terceiro volume, no âmbito da Química Orgânica. Ao apresentar a imagem de
um depósito clandestino de lixo, é feita uma associação com a produção de um dos principais gases
do efeito estufa, que é o metano (imagem e legenda destacados na figura 29).
Figura 29 - Volume 3, unidade 3, capítulo13, página 249
25 As unidades de 1 a 5 são intituladas, respectivamente, “A umidade relativa do ar”, “Poluição da água”, “Poluição
térmica”, “Corais” e “Lixo eletrônico”.
96
A mesma discussão acerca do descarte do lixo aparece no volume 3 (p.236) ao discutir
a alternativa da reciclagem de lixo tecnológico como opção para minimizar a geração de lixo,
como se pode observar na figura 30.
Figura 30 - Volume 3, unidade 3, capítulo11, página 236
Retomando a análise das inserções da temática “lixo” na coleção segundo a ordem
numérica de volumes e capítulos, retomo aquelas que estão presentes no segundo volume da
coleção, onde a autora lançou mão de forma mais evidente da relação entre o “lixo” e a Química,
ao determinar “Lixo Eletrônico” como eixo ambiental de discussão, relacionando-o aos
conteúdos de Eletroquímica. A presença destes no segundo ano do Ensino Médio pode ser
considerada como parte de uma tradição de ensino desta disciplina. E, no contexto dessa
97
tradição de ensino, a sua abordagem à luz de uma questão ambiental como a disposição final
de pilhas, baterias e dispositivos eletrônicos pode ser considerado como um avanço em relação
ao caráter relacional dos saberes. Assim, ao exceder os limites das discussões essencialmente
tecnológicas e dialogar com problemáticas ambientais amplia-se as possibilidades do ensino
para abordagens que têm um caráter crítico.
Embora os textos de abertura do capítulo 19 (p. 326), mostrados na figura 31, alertem
para os riscos de que o descarte de resíduos eletroeletrônicos possa levar a situações
potencialmente perigosas para a saúde das pessoas e do ambiente, a imagem de pessoas lidando
com a reciclagem deste tipo de lixo não deixa claras marcas sociais de separação que
determinam quem lida com esse processo.
O texto da figura 31 aponta para o perigo da acumulação de lixo eletrônico e para as
medidas que estão sendo tomadas para minimizar os seus prejuízos. Alerta ainda para o seu
avanço em progressão geométrica, uma vez que a substituição de equipamentos eletrônicos por
outros de tecnologia mais recente, torna-se cada vez mais rápida e a produção de lixo,
proporcionalmente maior.
98
Figura 31 - Volume 2, unidade 5, Texto de abertura do capítulo 19, páginas 326 e 327
Como se pode constatar na foto abaixo e à direita da figura 32, o livro novamente
apresenta ainda que apenas em imagens, pessoas desfavorecidas, ou trabalhadores de condições
humildes envolvidas na lida do lixo. Agora o lixo aparece também associado às questões
99
sociais, conforme uma das categorias escolhidas para o exame desta coleção didática. Esse
trecho repete a sugestão de segregação social que se havia evidenciado na figura 22. Embora o
subtítulo do texto retratado na figura 32 deixe claro os riscos envolvidos na lida do lixo, não se
vê na foto menor mais que uma máscara facial à guisa de equipamento de proteção. Numa
lógica de exclusão social, o trabalho com o que há de mais desagradável, com o que é perigoso
ou simplesmente com os restos do consumo de outrem, cabe aos mais pobres. Se há riscos, eles
não receberão destaque porque, aproveitando o pensamento de Boaventura Santos (2010), estas
pessoas e suas atividades estão no lado invisível da linha abissal.
Aliás, nas imagens da figura 32, observa-se pelo menos dois aspectos que se remetem
à cartografia abissal de Boaventura Santos (2010): o “norte” industrializado, consumista e
poluidor, e um “sul” ao qual restam as atividades que ninguém mais quer desempenhar, sem a
preocupação de que apesar de se tratarem de pessoas de segmentos sócio/culturais/econômicos
distintos, ainda são pessoas que tratadas de forma desigual. O próprio texto dá indícios
geográficos para que se possa localizar os indivíduos retratados nas fotos: uma cena de lixo se
acumulando em calçadas da cidade de Nápoles e um trabalhador de alguma região na Ásia ou
África trabalhando na separação do lixo.
100
Figura 32 - Volume 2, unidade 5, Texto de abertura do capítulo 19, páginas 328 e 329
No término deste capítulo, a seção “Explorando os Textos” (figura 33) novamente se
curva para a lógica de mercado, de atendimento não às necessidades sociais, mas sim aos
interesses hegemônicos. O texto lança uma pergunta para reflexão intitulada “Quais os metais
valiosos que podem ser encontrados no lixo?” (p.330). Então, a reciclagem de materiais
101
provenientes de dispositivos eletroquímicos interessa mais a quem utiliza as matérias primas
separadas a partir desta reciclagem para aumentar seu lucro, do que aos grupos sociais
vulneráveis, a quem interessa pelo menos sobreviver.
Figura 33 - Volume 2, unidade 5, Explorando os textos (capítulo 19), página 330
102
A discussão do descarte do lixo eletrônico em aterros sanitários e a própria
conceituação destas áreas, aparece ainda no volume 2, algumas páginas mais adiante, conforme
de pode observar na figura 34.
São discutidos os aspectos ambientais e químicos que relacionam a disposição de
pilhas, baterias e demais equipamento eletrônicos em ambientes controlados, de que forma se
faz este descarte e como o aterro sanitário se configura de forma a não representar um perigo
ao ambiente e aos indivíduos da mesma que nos lixões. Aqui, os conteúdos de Química parecem
dialogar com aspectos tanto da Biologia quanto da própria Educação Ambiental e este diálogo
vai retornar ainda neste segundo volume, na página 363 (figura 35) porem retomando os
aspectos nos quais o lixo passa a ser encarado como algo errado na cadeia produtiva, mas sem
crítica a esta cadeia. Neste ponto (página 363) a autora retoma a abordagem dos riscos advindos
de resíduos de metais pesados, proveniente de lixo contendo pilhas que não estão em
conformidade com as disposições legais e propõe uma discussão intitulada “Como é feita a
reciclagem responsável do lixo eletrônico?” (figura 35).
Figura 34 - Volume 2, unidade 5, capítulo 20, páginas 350 e 351
103
Figura 35 - Volume 2, unidade 5, capítulo 20, página 363
Destaco do texto observado da página 363 (volume 2, unidade 5, capítulo 20) um
parágrafo sublinhado pela contradição que representa a uma abordagem crítica da exploração
104
de recursos naturais.
A princípio isso não seria um problema já que, desde o ano 2000, uma nova legislação
impôs uma séria redução nos níveis de materiais tóxicos que poderiam estar presentes
em pilhas e baterias, como chumbo e cádmio e assim, alguns tipos de pilha- com as
alcalinas – cujos níveis de resíduos tóxicos ficaram abaixo do limite estabelecido no
artigo 6º dessa lei, agora podem ser descartados diretamente no lixo doméstico para
serem encaminhados, segundo consta no artigo a “aterros sanitários licenciados”.
O problema é justamente esse. Como já dissemos, não há danos ao meio ambiente
quando as pilhas vão parar em um aterro sanitário, mas apenas 10% dos aterros
brasileiros, segundo estimativa do instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) atendem esse quesito.26
Também é preciso considerar que nem todas as pilhas que compramos estão dentro
do padrão. Segundo o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) cerca de
33% das pilhas e baterias existentes no país são provenientes de contrabando ou de
outras origens, ou seja, temos em circulação cerca de 400 milhões de pilhas e baterias
que podem estar fora do padrão de segurança. E depois, ainda que a quantidade de
substâncias tóxicas seja mínima em cada pilha vendida dentro da lei, são milhões de
pilhas descartadas que, juntas, somam uma quantidade considerável dessas
substâncias.
Num mesmo trecho em que a autora argumenta em prol de uma atitude de preservação
ambiental, faz uma ressalva de que o “único problema” é o descarte impróprio das pilhas, como
se a própria extração, progressivamente maior para acompanhar a demanda, de todos os metais
necessários a estes dispositivos, não trouxesse danos à natureza. Como se a extração exaustiva
de recursos naturais não fosse nociva aos homens e, mais especialmente, às comunidades que
vivem próximas às áreas de extração e processamento. Novamente a responsabilidade sobre a
geração de lixo e suas consequências socioambientais é deslocado do processo produtivo
exclusivamente para os indivíduos. Como se o consumo e a produção não se alimentassem
mutuamente.
No terceiro volume da coleção, a autora traz a discussão de hábitos de consumo como
contexto para a apresentação de conhecimentos do currículo de Química, trazendo o lixo como
viés ambiental, reaparece no terceiro volume, conforme se observa na figura 36.
Conforme propus no início desta seção, as categorias de análise da forma como a
temática “lixo” está distribuída ao longo da coleção, foi inicialmente delimitada como: (i) o
“lixo” como parte das tradições de ensino da Química: (ii) o “lixo” em suas relações com
questões sociais contemporâneas que são parte do cotidiano da vida dos estudantes; e (iii) o
“lixo” como algo que é parte da cadeia produtiva industrial. Já foram destacados exemplos das
tradições de ensino da Química – como o relatado sobre a separação de substâncias, no volume
1 e também das relações “lixo” com a cadeia produtiva, numa abordagem acrítica.
26 Grifo meu.
105
Figura 36- Volume 3, unidade 3, textos de abertura do capítulo 10, páginas 206
Na unidade 3 do volume destinado ao terceiro ano do Ensino Médio, o consumismo é
a temática ambiental que permeia o conteúdo do currículo de Química, que são as reações
orgânicas. Essas reações são as responsáveis pelo processamento do petróleo, pela produção de
106
polímeros e de outros materiais plásticos, o que por sua vez, contribui para a produção de lixo
principalmente na forma de embalagens descartáveis. Os resíduos de plásticos mais encontrados
na composição dos lixos são aqueles provenientes de embalagens (polietileno, politereftalato
de etileno, polipropileno e PVC, entre outros).
O problema é que, embora todas as variedades de materiais plásticos possam ser
recicladas somente cerca de 15% dos plásticos rígidos e filmes consumidos no Brasil retornam
à produção como matéria-prima (ALBUQUERQUE, 2000, p.262). A situação torna-se ainda
pior ao considerarmos que a maioria dos plásticos não é biodegradável o que significa que eles
levarão um longo tempo para se decomporem. Há uma relação direta entre o aumento de
consumo e o aumento do descarte de embalagens – entre estas, as de plástico. Aí retoma-se a
discussão sobre o impacto do aumento de produção de um tipo de lixo que ainda não é
reaproveitado em seu pleno potencial no Brasil e que, como já ficou evidenciado em figuras
anteriores, compõe uma grande parte do lixo disposto incorretamente no Brasil.
Os textos de abertura da unidade 3 do terceiro volume (onde está a figura 36), propõem
uma reflexão sobre práticas de consumo não apenas dos materiais plásticos (que integram o
conteúdo de Química dessa unidade), mas também no tocante a hábitos alimentares (figura 37).
A autora do texto lança mão de argumentos de natureza emocional, como os trechos
transcritos mostram (Volume 3, unidade 3, capítulo 10, página 220.)
Podemos criar um estilo de vida mais simples, que não apenas requeira muito menos
dinheiro, como também nos proporcione tempo para as tarefas que realmente
importam.
Confeccionar algo por conta própria ou preparar uma comida favorita ou sobremesa
especial, sair para um passeio ou nadar, ver um filme juntos pode ser mais
significativo.
O texto retratado na figura 37 não é da autora da coleção mas sua escolha aponta para
uma concordância com as ideias nele contidas. Os trechos que destaquei permitem supor que a
autora situa a questão ambiental fora do terreno político mas apenas dentro do âmbito da
mudança de comportamento e não incentiva uma reflexão dos possíveis ganhos sociais. Propõe
que se destine tempo para as “tarefas que realmente importam” mas não discute quais sejam
estas. Além disso, sugere um novo “estilo de vida” e não a “promoção de uma mudança
cultural”. Nesse sentido, como afirma Layrargues (2006)
Um cidadão “ecologicamente correto”, preocupado com a construção da
sustentabilidade planetária, pode ser um cidadão que adote comportamentos que
favorecem o capital ou o trabalho, o mercado ou a sociedade, os princípios liberais ou
o ideal da justiça distributiva. E tantas outras implicações e decorrências das escolhas
que são feitas, para se corrigir o rumo civilizatório... (p. 2)
108
O texto destaca mais a relação dos seres humanos com a natureza do que dos seres
humanos entre si, não discute padrões de riqueza e consumo e propõe mudanças superficiais de
atitude mas associa-as aos aspectos econômicos.
Figura 38- Volume 3, unidade 3, capítulo 10, página 220
109
Se nos textos de abertura do capítulo 10 do volume 3, a autora expõe um
posicionamento superficial e “ingênua” na abordagem de problemas ambientais,
negligenciando seus aspectos sociais, na página 220 do mesmo volume, ela lança mão de uma
perspectiva pragmática de sustentabilidade (figura 38).
A legenda da foto à esquerda do texto da página 220 (figura 38) apresenta a seguinte
legenda:
“Poder de compra: atributo extremamente valorizado na sociedade capitalista, cujos
padrões de consumo já se tornaram insustentáveis. A única saída é o consumo
consciente e sustentável”.
Ao abordar novamente o consumo mas não às questões sociais relacionadas a ele, a
autora sugere que o consumo consciente é sustentável, mas não expõe de qual sustentabilidade
está se referindo. Este tipo de associação, se não reflete uma postura “ingênua”: remete aos
interesses hegemônicos. Consumo sustentável é uma expressão que traz em si sua própria
contradição, pois a preservação dos recursos naturais remanescente depende da redução do
consumo até os níveis da necessidade objetiva (LAYRARGUES, 2002)
Segundo Loureiro & Lima (2012),
No âmbito do debate sobre sustentabilidade, necessidades são vistas tanto no sentido
material quanto simbólico – portanto, econômico e cultural (...). Portanto, sustentável
não é o processo que apenas se preocupa com uma das duas dimensões, mas que
precisa contemplar ambas, o que é um enorme desafio diante de uma sociedade que
prima pelos interesses econômicos acima dos demais. (p.293)
Nessa mesma unidade e capítulo, a autora retoma a discussão da Química Verde
iniciada na abertura do volume 1 da coleção, e já comentada anteriormente. Esta apresentação
da Química Verde é precedida de um parágrafo que procura estabelecer uma relação entre a
temática ambiental – Consumismo – e os conteúdos de Química da unidade, que são as reações
orgânicas.
111
A unidade 3 do terceiro volume, encerra a apresentação dos conteúdos relacionados à
química orgânica pois as duas unidades subsequentes tratam de bioquímica e radioatividade.
Há uma relação conceitual que pode explicar a copresença dos temas petróleo
(Unidade 1), química orgânica (Unidade 3) e bioquímica (Unidade 4) num mesmo volume da
coleção: os conteúdos de química orgânica constituem um importante fundamento para a
química do petróleo e a bioquímica. Mortimer, Machado e Romanelli (1999, p. 278-279)
propõem que o currículo de Química para o terceiro ano do Ensino Médio contemple os
conteúdos de química orgânica, bioquímica, química ambiental, radioatividade e química e
saúde. Na coleção de livros didáticos analisada, os temas ambientais que perpassam esses
conteúdos são: (i) Consumismo, (ii) Alimentos e aditivos e (iii) Atividade nuclear. Entendo que
esta escolha se deve ao fato de que em currículos tradicionais de Química, a discussão de
assuntos voltados ao meio ambiente, como a própria Química Ambiental é oferecida aos
estudantes do terceiro ano do Ensino Médio.
Para além das tradições escolares, uma razão que aponto como possível para que, junto
à química orgânica, bioquímica, química ambiental, esteja proposta também a Radioatividade
e seus temas afins para o terceiro ano do Ensino Médio – e por decorrência, para o volume final
das coleções de Química – é que, dentre os nove temas estruturador es propostos no PCN+
(BRASIL, 2002) para o ensino desta disciplina, estes dois assuntos estão entre os quatro
últimos. Estes temas são: Reconhecimento e Caracterização das Transformações Químicas;
Primeiros Modelos de Constituição da Matéria; Energia e Transformação Química; Aspectos
dinâmicos das Transformações Químicas; Química e a Atmosfera; Química e a Hidrosfera;
Química e a Litosfera; Química e a Biosfera; e Modelos Quânticos e Propriedades Químicas.
Ao apresentar a organização do trabalho escolar, o texto do próprio PCN+ aponta:
Os quatro primeiros temas estruturadores apresentam uma sequência na qual o
entendimento da transformação química se dá em níveis de complexidade crescentes,
tanto em termos macroscópicos quanto microscópicos, com conteúdos básicos que
favorecem uma visão ampla da Química.
Os quatro temas relacionados à química e sobrevivência (Q5 a Q8), não são
sequenciais, sendo que o entendimento da transformação química é ampliado, em cada
um deles, possibilitando uma visão mais integrada do mundo físico, natural e
construído. (BRASIL, 2002, p.144-145)
Isso pode ser uma explicação para a aparente descontinuidade dos assuntos integrantes
do currículo de Química no terceiro ano do Ensino Médio, retratados pela organização da
coleção didática escolhida bem como outras. Nesta medida, a autora da coleção analisada
aproveita os conteúdos e Radioatividade para discutir as implicações ambientais do uso desta
tecnologia, entre estas, retorno ao tema ambiental focado por esta dissertação, que é o lixo,
112
agora em sua apresentação radioativa.
Ao término do capítulo 20 do terceiro volume, intitulado Período de meia-vida, a
autora apresenta um texto na seção “Curiosidades”, denominado “O acidente de Goiânia”
(página 392). Algumas das personagens reais enunciadas neste texto (ver figura 40) são
relembradas no fechamento desta unidade, do volume e da coleção, na seção “Resgatando o
que foi visto” (página 415) estabelecendo assim, através das pessoas citadas, um fio condutor
do assunto, que é a radioatividade, ao longo da unidade 5(ver figura 42).
O primeiro desses textos é a transcrição de uma matéria jornalística narrando os fatos
que conduziram ao acidente ocorrido em 1987, na cidade de Goiânia, quando uma cápsula de
césio-137, parte integrante de um equipamento de radiologia, foi rompida por dois catadores de
lixo.
Segundo a apostila “Radioatividade” publicada em 2000 pela Comissão Nacional de
Energia Nuclear (CNEN), qualquer instalação que utilize fontes radioativas, deve ter pessoas
qualificadas em radioproteção, para que o manuseio do material seja realizado de forma
adequada (CARDOSO, 2000, p.16). Os locais destinados ao armazenamento provisório de
fontes ou rejeitos devem conter estes materiais com segurança física e radiológica, até que
possam ser removidos para outro local, com aprovação da CNEN.
Anjos et al. (2000) relatam que em setembro de 1987, uma parte de um equipamento
de radioterapia em cujo interior havia uma cápsula com Césio-137, foi retirado dos escombros
do antigo Instituto Goiano de Radioterapia, o qual havia se transferido para outras instalações,
deixando para trás aquele equipamento, sem dar baixa do mesmo junto à CNEN. A sucata foi
desmantelada e as partes metálicas, vendidas para um ferro velho. Ao romper a blindagem,
ficou à mostra o césio, na forma de cloreto, que tem uma cor azul brilhante visível mesmo no
escuro. Cerca de 19 gramas deste material foram distribuídos entre familiares e vizinhos dos
envolvidos na venda da sucata e este contato com o cloreto de césio, causou a morte de quatro
pessoas, dentre 249 contaminadas.
O texto da página 392 do volume 3 (figura 40) foi retirado da edição de número 40 da
revista Ciência Hoje e, apesar de não ser muito extenso, é satisfatoriamente detalhado para
esclarecer aos leitores um panorama de como o acidente ocorreu, suas causas e consequências.
Embora não traga em seu conteúdo qualquer menção ao lixo radioativo, presta-se como uma
boa introdução para as informações que são apresentadas na página subsequente do livro
(p.393) e, nesse caso, imagens e texto tratam com detalhamento suficiente e num nível
apropriado para que um estudante de Ensino Médio seja capaz de acompanhar os aspectos
técnicos do processo químico de descontaminação de lixo radioativo.
115
Embora o rigor científico das informações contidas no texto da página 39327 (figura
41) seja satisfatório considerando-se que é destinado a estudantes de nível médio, a discussão
que se faz acerca do acidente radioativo não excede a esfera do conhecimento técnico. Não se
observa nenhum comentário que denuncie os motivos pelos quais as pessoas envolvidas,
desmontaram a sucata que continha o Césio-137, para vender o material metálico. O
desconhecimento, a desinformação e, acima de tudo, a necessidade de viver às custas do
comercio do lixo, são questões totalmente negligenciadas nesta inserção da temática “lixo”.
Ao final do capítulo 22, algumas reflexões são propostas na seção “Recuperando o que
foi visto”. O texto (figura 42) destaca a importância do cuidado no uso e descarte de materiais
de tecnologia nuclear, associando também os exemplos dos “acidentes” de Three Miles Island
e de Chernobyl.
Ao citar estes dois exemplos juntamente ao evento brasileiro, aponto para uma
intenção da autora em superar diferenças políticas, geográficas e socioeconômicas, destacando
a necessidade de que todos deem o tratamento apropriado aos rejeitos radioativos. Este tipo de
discussão alinha-se não apenas aos aspectos tecnológicos destes conteúdos mas também às
questões sociais, uma vez que vidas foram perdidas.
Mas a autora também é exemplo da desatenção com as questões afeitas a
radioatividade, na medida em que informa que “uma bomba de cobalto não pode ser deixada
abandonada em um prédio vazio, como se fosse lima sucata qualquer”. Ao tecer estes
comentários, a autora estabelece uma escala de importância/risco entre diferentes tipos de
lixo/sucata/resíduo, abordagem que não tinha feito anteriormente em nenhuma das incidências
desta temáticas observadas e relatadas, ao longo de toda a coleção. O equipamento que a própria
autora mencionou como origem da contaminação, em suas palavras, continha césio e não
cobalto. Revela assim, um descuido na discussão de um assunto que a própria enuncia como de
relevante importância. Além disso, novamente culpabiliza os indivíduos e não o sistema pelo
ocorrido. Embora destaque que os dois catadores não tinham noção do material com que
estavam lidando, não crítica os fatos que levaram estas pessoas a viverem “do lixo”, e a
desconhecerem os sinais de alerta que deveriam mantê-los afastados da lida com este tipo de
material. Ao não criticar o sistema e novamente apontar a culpa para os indivíduos, a autora
mantem uma postura acrítica acerca das implicações sociais e ambientais da radioatividade.
27 Este texto também não é da autora da coleção. Trata-se de uma reprodução do texto de Sonia Fonseca da Rocha
publicado em 20 de agosto de 2009, publicado na revista Navigator Especial.
117
Considerações Finais
Ao propor para este trabalho, a temática “lixo” em livros didáticos de Química para o
Ensino Médio, tem sido de grande importância procurar manter o foco na ideia de que venho
estudando uma materialização do currículo escolar. Entendo que esses livros, que integram um
programa governamental de material didático, evidenciam que o currículo não é um território
neutro de escolha do que se ensina para quem, quando e como, mas sim um espaço de conflitos
e disputas entre variadas perspectivas sociais, projetos de organização, produção e transmissão
do conhecimento escolar. Aliás, o próprio processo de disputas também é o que chamamos de
currículo (SILVA, 2012)
Também a escolha de conduzir esta análise segundo uma abordagem prioritariamente
crítica foi feita à luz da certeza de que, embora esta não dê conta de alguns aspectos importantes
da organização curricular, mostrou-se por certo a de maior abrangência, inclusive no que diz
respeito ao espectro de autores com cujos textos pude dialogar. Optei por trabalhar na linha
critica mas com abertura para perspectivas pós-críticas e tendo em vista que, ao se delimitar um
currículo disciplinar existem forças que falam da importância que se atribui aos saberes
contemplados neste currículo, mas existe também a força de onde este currículo é enunciado.
Não há desinteresse ou neutralidade na delimitação de um conjunto de saberes. Os saberes
elencados estão diretamente relacionados com os conceitos de cultura que se pode vislumbrar
nos textos dos livros didáticos. O próprio processo de seleção destes saberes é tão importante
quanto o resultado das escolhas, uma vez que revela as intencionalidades, as visões políticas e
as expectativas dos diferentes grupos que em função disso se articulam para procurar fazer as
suas escolhas se sobressaírem em relação às de outros grupos, de modo acabam sendo
perpetuadas percepções escolares, sociais e culturais consideradas válidas.
Entretanto, se o livro didático tem um potencial para a reprodução dos valores culturais
hegemonicamente ratificados e que criam um padrão repetitivo, ao se expor estes valores, abre-
se um espaço para a contestação destes mesmos padrões. Soma-se a essa importância dos
conteúdos intencionalmente selecionados para integrar os livros didáticos, a importância deste
recurso em si. Segundo Midões (2009),
O livro didático é um dos recursos pedagógicos mais utilizados em sala de aula,
exercendo grande influência nos processos de ensino e aprendizagem. Assim, é
relevante analisar como os conteúdos e metodologias são apresentados por este
material. No ano de 2005, foi lançado o edital do Programa Nacional do Livro
Didático para o Ensino Médio (PNLEM-2007), que divulgou os princípios e as
orientações para a avaliação dos livros didáticos. No caso do PNLEM de Química, de
um total de 21 livros submetidos, apenas seis foram recomendados, sendo dois deles
oriundos de projetos de pesquisa em Ensino de Química. (p.1)
118
Levando em consideração a tendência CTS no ensino de Química, a temática
socioambiental “lixo” pode se relacionar a qualquer uma destas categorias – ciência, tecnologia,
sociedade – ou mesmo a nenhuma, dependendo da forma como é apresentada e discutida. Na
coleção escolhida para esta dissertação, esta temática dialoga e se mescla aos textos principais,
sendo tema de discussões de conteúdos de Química e trazendo a disciplina escolar Química
para o centro das discussões de questões sociais e ambientais em diversos momentos. Esta
temática excede a condição de coadjuvante do currículo apresentado nos livros. Ao longo dos
três volumes da coleção escolhida para esta dissertação, a temática “lixo”, foi- se delineando
não apenas como um tema ambiental mas, pela discussão de aspectos sociais relacionados ao
lixo, este foi tratado com uma questão socioambiental. A inserção da temática não se deu apenas
em boxes, texto paralelos ou complementares, ou ainda limitando-se a exemplos úteis aos
conteúdos gerais de Química destinados ao Ensino Médio. Este assunto estava também no
centro das discussões, associado aos conhecimentos da Química, em propostas de discussão e
reflexão.
A forma entrelaçada como a temática “lixo” apresenta-se distribuída ao longo dos três
volumes da coleção escolhida representou um ponto de interrogação ao longo de minha análise.
Uma vez que a escolha para esta dissertação foi a de conduzir uma análise pontual, que não
levava em consideração mudanças ao longo do tempo, faltavam-me dados para entender se a
discussão dessa temática ou, pelo menos, de temas CTS ficavam à margem dos componentes
curriculares da Química ou a eles se mesclavam. A resposta para essa questão veio através da
dissertação de mestrado de Midões (2009), que analisou os livros de Química integrantes do
PNLEM de 2007. Nessa edição, de um total de vinte e uma submissões, somente seis títulos –
entre coleções de três volumes e volumes únicos - foram aprovados. Em seus resultados, essa
autora relata que “apenas um livro apresentou uma organização curricular centrada em temas
de interesse social e os demais foram organizados a partir dos conteúdos específicos de Química
(p.1). Na maioria dos livros as interrelações Ciência, Tecnologia e Sociedade não permeiam o
texto principal, sendo apresentadas na forma de box ou ao final dos capítulos. Assim, observou-
se que tais relações têm a função de motivação ou de ilustração, estando distantes da abordagem
CTS defendida por muitos pesquisadores que visa à formação do cidadão, como SANTOS e
MORTIMER (2001). ”
O trabalho de Midões (2009) foi uma contribuição oportuna que me permitiu pensar
que a coleção “Química: meio ambiente, ciência e tecnologia” de Martha Reis Marques da
Fonseca pode ser percebida em suas relações com as coleções analisadas nesse trabalho, uma
vez que trata da mesma disciplina do Ensino Médio e integra o mesmo programa
119
governamental. Neste caso, a coleção “Química: meio ambiente, ciência e tecnologia” é uma
das cinco coleções integrantes do PNLEM de 2012, resultantes de uma seleção a partir de
dezenove títulos.
Os movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970 concorreram para uma reflexão
sobre os progressos científicos e tecnológicos e suas consequências e, por decorrência para uma
proposta de reorientação destes avanços. O movimento CTS surgiu no âmbito destas discussões,
como uma proposta de caráter interdisciplinar que relaciona a natureza social do conhecimento
científico e tecnológico com suas implicações nos diferentes âmbitos econômicos, sociais,
ambientais e culturais (OSÓRIO, 2002). Este movimento critica a separação entre bem estar
social e desenvolvimento científico e tecnológico, assumindo que a melhoria da qualidade de
vida deveria acompanhar os avanços da tecnologia. Propõe que se discuta como as descobertas
científicas e suas consequentes aplicações tecnológicas relacionam-se com outros
desenvolvimentos sociais, na cultura, na ética e nas questões ambientais.
Segundo Pinheiro e Bazzo (2005), o movimento CTS no âmbito internacional está
presente nos periódicos da área de Ensino de Ciências, com destaque para a Revista
Science & Education e International Journal of Science Education, que publicou um
volume especial, o Special Issues: Science, Technology and Society (v. 10, n. 4, 1988)
sobre a educação CTS. Mais recentemente, em 2006, a International Organization for
Science and Technology Education (IOSTE) realizou seu décimo segundo simpósio
internacional, com o intuito de discutir assuntos que envolvem o contexto científico,
tecnológico e social. (MASCIO, 2009, p.10)
Os objetivos principais da abordagem CTS são: desenvolver habilidades de previsão
das consequências de ações tecnológicas e científicas; e agir de forma social e ambientalmente
responsável para prevenir e/ou solucionar problemas decorrentes de processos produtivos. A
proposta CTS não pretende fazer uma crítica radical da ciência mas sim fazer do conhecimento
científico e tecnológico também um objeto de estudos das ciências sociais. A proposta de um
currículo de Química que ajude a desenvolver nos estudantes a possibilidade de decidir de
forma responsável, acerca de assuntos inerentes à ciência e tecnologia na sociedade, é o foco
do ensino CTS (SANTOS & MORTIMER, 2001). Desse modo, as questões da Educação
Ambiental e as propostas do ensino CTS podem dialogar no contexto do currículo de Química
para o Ensino Médio propondo debates sobre as atribuições da ciência, da tecnologia e de suas
relações com a sociedade e discutindo tantos os temas que tradicionalmente integram este
currículo como também assuntos tais como as consequências da produção industrial de bens.
Sendo assim, pode-se considerar que o tema “lixo” é de grande importância já que impacta não
apenas a cadeia produtiva mas igualmente o bem estar social.
Entretanto, seria muita “ingenuidade” assumir que o movimento CTS seria o bastante
120
para que a formação escolar viabilizasse apenas de per si uma formação mais cidadã dos
estudantes. Tratando mais especificamente das questões sócio ambientais, as distorções, a
exploração, o desrespeito às necessidades individuais das mais diversas naturezas, continua
posto. Educação escolar é um processo que repete a sociedade ao seu redor e não há mágica
para romper com a injustiça social. O que se observa de uma maneira quase que generalizada é
que o avanço da tecnologia contribui mais para o agravamento das mazelas socioambientais do
que para a melhoria da qualidade de vida.
Para Boaventura Santos (1998), o motivo deste agravamento de injustiças sociais se
deve a uma perspectiva pragmática de ciência que valida apenas o que se pode testar, quantificar
e generalizar, preservando assim, uma concepção simplista de ciência objetiva, neutra e alheia
ao uso que a sociedade faz da mesma, e que despreza os aspectos sócio-históricos relacionados
às atividades científicas e tecnológicas. Essa perspectiva tem levado a uma noção equivocada
de que é necessário estabelecer no ensino escolar atual, relações inequívocas entre a ciência, a
tecnologia e sociedade. Essa ideia vem na contramão da possibilidade de que cidadãos opinem
sobre os avanços científicos e tecnológicos contemporâneos e proponham ações sobre a
validade e a adequação desses avanços para suas vidas.
Como mencionado no início do capítulo 3, as obras inscritas no PNLD 2012 (BRASIL,
2011) foram avaliadas segundo critérios definidos previamente no Edital, alguns dos quais eram
específicos para a disciplina escolar Química, caracterizada como “como um conjunto de
conhecimentos, práticas e habilidades voltadas à compreensão do mundo material nas suas
diferentes dimensões”. (BRASIL, 2011, p.9). Dentre os parâmetros analisados, destaquei a
preocupação de que os livros didáticos apresentassem a Química como uma ciência interessada
com a dimensão ambiental dos problemas contemporâneos, levando em conta também os
processos humanos subjacentes aos modos de produção do mundo do trabalho; e de que é
falaciosa a perspectiva de uma permanente responsabilidade desta ciência por problemas
ambientais (BRASIL, 2011). Partindo destas orientações, assumi que o diálogo da Química
com as questões ambientais não apenas deveria estar presente nos livros didáticos submetidos
à apreciação para integrar o PNLEM-2012. A ausência desse diálogo seria, portanto, um critério
de exclusão no processo seletivo.
Essas informações vêm ao encontro da perspectiva de que, a despeito das iniciativas
de grupos disciplinares bem como das orientações legais, a disciplina escolar Química ainda
apresenta um vínculo importante com tendências à transmissão de informações, à aprendizagem
mecânica de definições e de leis, na memorização de fórmulas e equações, numa sucessão de
informações desligadas de suas reais compreensões. E mesmo quando o conteúdo do livro
121
didático contempla assuntos que escapam às tradições do ensino de Química, buscando
contextualizar os temas abordados, este não necessariamente traz este saber para perto da
realidade do aluno porque contextos e cotidianos são perspectivas múltiplas, são pontos de vista
que não necessariamente dialogam entre si. Ao contextualizar, o livro pode situar um saber em
um ambiente que continua distante da realidade do estudante. Assim, ao contextualizar o saber
num cotidiano distante dos estudantes, estes permanecem alienado do saber não porque não
lhes tenha sido apresentado um dado conteúdo, mas por desconhecerem a realidade ofertada
como contexto. Para Fracalanza, Amaral e Gouveia (1986), o interesse na cotidianidade
presente nos processos de contextualização, não é uma limitação dos conhecimentos dos alunos
à realidade imediata mas algo que possibilite ao estudante compreender melhor o conteúdo
escolar pela compreensão do contexto.
Uma forma de contextualização que não dialoga com a realidade do estudante pode
acabar por espoliá-lo do conhecimento. Isto pode criar, como proposto por Boaventura Santos
(2010), uma linha abissal entre o que o estudante pode e não pode perceber. E, ao contextualizar
os conteúdos escolares na perspectiva do cotidiano, emerge a necessidade de contextualizá-los
no conjunto das disciplinas escolares, relacionando e/ou situando os saberes no contexto de
cada disciplina escolar como entre as diferentes disciplinas do currículo escolar. De fato,
conforme apontado nas DCNEM (BRASIL, 1998), interdisciplinaridade e contextualização são
princípios organizadores do currículo que permitem ampliar as inúmeras possibilidades de
interação entre disciplinas e entre áreas nas quais estas disciplinas estão agrupadas.
Na coleção de livros didáticos analisada nesta dissertação está posta a proposta de
viabilizar a alunos e professores uma reflexão mais crítica sobre as relações que envolvem o
meio ambiente. Tal proposta é evidenciada nos conteúdos textuais e nas imagens. Entretanto,
na maioria das vezes, apresenta poucos questionamentos sobre os temas tratados não
aprofundando seu potencial crítico para a formação dos estudantes. Aspectos relacionados ao
“lixo” parecem se aproximar de ideais preconizados por uma Educação Ambiental crítica, mas
são tratados de forma pragmática, favorecendo um trabalho educacional mais voltado para a
aquisição de conceitos da Química. Dessa maneira, as questões socioambientais ligadas à
degradação ambiental e à redução da qualidade de vida dos seres humanos e demais seres vivos
são minimizadas. Esse tipo de abordagem não concorre para a formação de sujeitos críticos e
participativos.
Nessa coleção, os processos químicos e suas consequências são abordados, mas ainda
de forma dicotômica: o bem e o mal, o certo e o errado, o que preserva a natureza e o que a
destrói. As possibilidades de crítica parecem estar invisibilizadas como se não existissem. Isso
122
pode ser interpretado como um possível processo de descolamento de uma perspectiva
tradicional do ensino de Química, conteudista e apartada da realidade socioambiental para
perspectivas que valorizam a contextualização, a interdicisplinaridade e, portanto, o potencial
crítico do ensino de Química. Isso evidencia uma possibilidade de ruptura com modelos
ultrapassados ao enunciar e associar as questões ambientais aos conteúdos de Química logo a
partir do início do primeiro volume. Mas à medida que as discussões avançam, ao longo da
apresentação dos conteúdos de ensino dos três livros, observa-se que as abordagens
relacionadas ao “lixo” não são críticas. São pragmáticas, não aprofundando a discussão sobre
as consequências do processo industrial de produção de bens. O “lixo” é apresentado repetidas
vezes como algo problemático na cadeia produtiva, mas não há uma crítica a esta cadeia.
A temática ambiental “lixo” encontra-se dispersa ao longo dos três volumes – ainda
que existam pontos de concentração até porque alguns temas do currículo de Química parecem
ser mais propícios ao diálogo com essa temática, assim como com outros temas tais como a
poluição de corpos de água e do ar, a mudança no hábito alimentar de consumo de carne em
prol de uma menor geração de gases do efeito estufa. A presença desses assuntos indica a
existências de oscilações entre tradições curriculares acadêmicas, utilitárias e pedagógicas nas
disputas que ocorrem no interior dos grupos disciplinares de ensino de Química. (GOODSON,
2001).
Assim, quando os conteúdos da Química propostos nestes livros didáticos não
conseguem exceder os limites de modelos teóricos abstratos e desvinculados da realidade, por
mais que se apresentem exemplos e associações com a temática “lixo” ou quaisquer outras
temáticas ambientais, não são superadas as características de uma tradição acadêmica no ensino
desta disciplina. Além disso, essas associações acabam por se revestir por um conservacionista
ou pragmático, em relação ao campo da Educação Ambiental, não promovendo um avanço em
discussões que possam contribuir de maneira mais ampla para a compreensão do real. Não há
dúvida de que a geração de lixo deve ser minimizada, de que o descarte deve ser feito de forma
apropriada e que a reciclagem ajuda a minimizar os impactos perversos dos resíduos advindos
da produção de bens de consumo. No entanto, quando a discussão de temas ambientais como é
o “lixo”, naturaliza o óbvio e não possibilita uma discussão que exceda o consenso e a
experiência prática, quando não se promove o debate e a questão ambiental fica restrita a uma
associação de conteúdos escolares, o aprendizado que se efetiva é aquele que atende à
reprodução dos modelos hegemônicos.
A adoção de um estilo de vida “sustentável” como uma solução para a redução da
geração de lixo ou para um descarte adequado, sem discussões não é uma mera questão de
123
escolha. Qual é o tipo de sustentabilidade que advém desta educação sem reflexão? Esse tipo
de discussão consensual traz um apagamento dos conflitos sociais que permeiam as questões
ambientais, principalmente as que envolvem a geração, o descarte e a lida com o lixo. Há na
coleção escolhida, diversas imagens que associam pessoas a estas situações: crianças
manuseando resíduos em um “lixão”, cidadãos cuja apresentação sugere uma condição de
vulnerabilidade social (pobres, com menor escolaridade ou de etnias desprivilegiadas) lidando
com o lixo em processos de reciclagem, sem que estejam evidentes todos os necessários
equipamentos de proteção individual. Mas não há a necessária e suficiente discussão – ou pelo
menos a proposta para a mesma – do porquê que apenas estes segmentos sociais lidam com o
lixo.
Desta forma, a inserção da temática ambiental “lixo” em livros didáticos de Química
atende mais a uma macrotendência pragmática do que à crítica, pois dá mais destaque àquela
temática pelo foco da coleta seletiva, da reciclagem de resíduos como matéria prima para a
produção industrial, sem esclarecer sua orientação político-pedagógica nem interferir em
conflitos socioambientais, privilegiando ações individuais e comportamentais no âmbito
doméstico e privado, de forma a-histórica, apolítica, conteudística, instrumental e normativa
(LAYRARGUES, 2012).
Segundo Boaventura Santos (2010), o pensamento moderno estabelece linhas abissais
que dividem a realidade social em dois universos distintos que, nas suas palavras, podem ser
caracterizados como “deste lado da linha” e “do outro lado da linha”. Este último é produzido
enquanto não existência. Mas, “a característica fundamental do pensamento abissal é a
impossibilidade da copresença dos dois lados da linha” (SANTOS, 2010, p.31). O autor
argumenta que as linhas cartográficas "abissais" que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na
era colonial perduram estruturalmente no pensamento moderno ocidental e continuam sendo
características das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sistema mundial
contemporâneo. Estas linhas invisíveis que dividem o mundo em países desenvolvidos,
subdesenvolvidos e evidencia as dominações econômicas, políticas e culturais, são reveladas
por um lado na hierarquização dos saberes e, por outro, na negação de diversidades sociais.
Estas diversidades não podem ser entendidas apenas pela óptica do direito ao acesso a alguns
bens e serviços. É preciso considerar também os direitos de integração, que são aqueles que
faculta aos indivíduos o pleno direito de viver em sociedade, envolvidos no seu processo
político-democrático.
Na coleção aqui analisada, a perspectiva desse autor contribui para a identificação dos
diversos lados das linhas abissais. Os grupos socialmente vulneráveis, vítimas de alguma forma
124
de “racismo ambiental” (HERCULANO, 2006, p.11)28 aparecem, principalmente em imagens
(embora também haja, em menor quantidade, a menção em textos) associados à lida do lixo,
enquanto os tipos humanos associados às classes hegemônicas representam os geradores de lixo
pela ação do consumo. As imagens que evocam os danos ambientais estão sistematicamente
desprovidas de figuras humanas, como se a ação predatória não tivesse autores, como se o
consumo não tivesse consequências e como se os únicos responsáveis pela recuperação dos
danos fossem os grupos vulneráveis.
Como mencionado no capítulo 2, ao discutir “O lixo e as tradições do ensino de
Química” no Brasil há indícios históricos que sugerem a associação de cidadãos pobres, negros
e pardos à lida do lixo. Não se trata de uma questão de senso comum mas de uma condição de
vulnerabilidade e desprestigio social perpetuada ao longo da história. Imagens que reforçam
esta separação social, invisibilizam também o sentido de cidadania e de direitos destes grupos
sociais que ainda encontram um espaço relativamente pequeno na nossa sociedade, apesar da
luta de tantos movimentos e pessoas em favor de uma sociedade que não trate as diferenças
como desigualdades. Isso se reflete no campo ambiental, a falta de apreço pelo espaço comum
e pelo meio ambiente se confunde com o desprezo pelas pessoas e comunidades. Nesse sentido,
a coleção didática analisada traz as questões ambientais como conteúdos de Química, mas algo
continua invisível.
Foi possível perceber que, no material investigado, está posta a necessidade de
viabilizar a alunos e professores uma reflexão mais crítica sobre as relações que envolvem o
meio ambiente com seus conteúdos, imagens, atividades e atividades complementares. No
entanto, esses temas são tratados com pouca profundidade e carecem de abordagens que
explorem o seu potencial formativo dos estudantes. Determinados aspectos relacionados ao
“lixo”, por exemplo, são tratados de forma pragmática, favorecendo um trabalho educacional
mais voltado para a aquisição de conceitos da Química, sem possibilitar a discussão de questões
socioambientais ligadas à degradação ambiental e à redução da qualidade de vida dos seres
humanos e demais seres vivos. Esse tipo de abordagem não concorre para a formação de sujeitos
críticos e participativos.
28 Segundo Selene Herculano, o racismo ambiental é definido como, um conjunto de ideias e práticas das
sociedades e seus governos que aceitam a degradação ambiental e humana, sob uma alegada busca do
desenvolvimento que naturaliza implicitamente a inferioridade de segmentos da população afetados – negros,
índios, migrantes, extrativistas, pescadores, trabalhadores pobres, que sofrem os impactos negativos do
crescimento econômico e a quem é imputado o sacrifício em prol de um benefício para os demais. A autora propõe
que a primeira manifestação contra o racismo ambiental surgiu na década de 1990, na Carolina do Norte, Estados
Unidos, quando um grupo de indivíduos negros protestou contra a instalação de um aterro contendo compostos
organoclorados, na comunidade em que residiam.
125
Nesse sentido, nos livros didáticos analisados, há a proposição de reflexões acerca dos
riscos e consequências da disposição inadequada do lixo e do aumento de sua produção. Mas,
paralelamente a isso, há o enaltecimento da indústria da reciclagem como uma forma de
enriquecimento e de “sustentabilidade” do sistema produtivo. É adotada assim uma perspectiva,
que pode parecer “ingênua”, não crítica. Entendo que seu enfoque é, na verdade pragmático
pois, se num volume da coleção, propõe uma postura mais consciente em termos de hábitos de
consumo (volume 3), se servindo de estratégias de alto impacto visual29, num momento anterior,
faz uma apologia à sustentabilidade dos recursos.
Porém, é importante destacar que o professor tem o importante papel de transformar,
questionar e refletir sobre as informações contidas em livros didáticos. A figura do professor é
primordial na ação escolar, porque suas opções, relacionadas ao uso desses materiais em sala
de aula, são repletas de facetas e peculiaridades específicas (FERREIRA, 2013)30
"o professor tem uma função na educação que vai além daquela de um simples
reprodutor de saberes, superando isto ao compartilhar com os alunos novas visões de
mundo, estimular transformações e assumir um papel de professor que interfere
diretamente na realidade educacional, política, social e cultural dos educandos."(p.16)
Ao longo das muitas e variadas inserções da temática “lixo” e seus desdobramentos
que dialogam com outras temáticas ambientais, como a poluição de corpos d’água por exemplo,
é evocada a proteção ao meio ambiente, com pouco ou nenhum destaque para as relações com
a luta contra a pobreza e a desigualdade social. Como apresentei no começo destas
considerações finais, entendo que esta coleção representa um avanço ao trazer a temática
ambiental “lixo” para o centro dos conteúdos de Química, diferentemente do que relata Midões
(2009) quanto ao posicionamento das discussões ambientais em livros de Química do PNLEM
anterior. Porém, esta presença ainda se mostra muito voltada para uma perspectiva acrítica,
desenvolvimentista e cientificista de ciência, capaz de responder às expectativas hegemônicas
correntes que visam a rentabilização de capitais em nome da geração de emprego e renda, como
uma forma de legitimar questões ambientais.
O tema “lixo” permanece relacionado principalmente às tradições do ensino de
química, ou seja, como um conhecimento químico. Uma evidência é o fato de que a discussão
29 Refiro-me ao vídeo “A carne é fraca”, produzido em 2004 pelo Instituto Nina Rosa. No website do instituto, o
vídeo é apresentado da seguinte forma: “Alguma vez você já pensou na trajetória de um bife antes de chegar ao
seu prato? Nós pesquisamos isso para você e contamos neste documentário aquilo que não é divulgado. Saiba os
impactos que esse ato – de comer carne representa para a sua saúde, para os animais e para o planeta. Com
depoimentos dos jornalistas Washington Novaes e Dagomir Marquezi, entre outros”. Disponível em
http://www.institutoninarosa.org.br/site/material-educativo-2/a-carne-e-fraca/ . Acessado em 19/05/2014. 30
126
desta temática domina a apresentação dos conteúdos de “Separação de Misturas”, presentes no
volume 1. Nesta seção e em outras ao longo da coleção, a autora não faz uma crítica consistente
ao processo produtivo ficando prioritariamente no âmbito das considerações sobre a disposição
de resíduos. Os processos químicos e suas consequências são apresentados de forma
dicotômica: o bem e o mal, o certo e o errado; não há crítica, não há meio termo. A autora
demonstra boas intenções ao enunciar e associar as questões ambientais aos conteúdos de
Química logo no início do primeiro volume, mas não o faz de forma crítica pois não traz uma
discussão do processo industrial, deixando uma lacuna a ser ocupada pelo viés pragmático.
Entretanto, há que se destacar que o avanço nessas discussões se evidencia também em
pequenos indícios. Por exemplo, a autora imprime ao livro uma marca de coerência com a ideia
da conservação ao apresentar em diversas páginas – principalmente nos exercícios – um
“carimbo” (ver figura 22) para não escrever no livro didático.
É importante lembrar que, dos problemas ambientais contemporâneos, o lixo é
provavelmente o de origem mais antiga. Nas primeiras formas de sociedade, o homem convivia
em interior de cavernas que habitava, com os resíduos de caças e restos de animais com os quais
se alimentava. Ao construir seus primeiros aldeamentos, passou a jogar o lixo em sua periferia
(VALLE, 2004). A diferença entre ser um problema social ou um interesse para os processos
produtivos está na forma como ele impacta diferentemente os indivíduos, separando-os e
submetendo-os a condições desiguais e degradantes. É também indiscutível a importância da
reciclagem dos resíduos. Suspeito que com a mitigação dos recursos naturais e a elevação dos
custos e riscos da extração dos mesmos, a evolução de técnicas de reciclagem de materiais
poderá dar lugar a uma cultura da matéria-prima a ser reaproveitada e palavra lixo não venha
mais a ser usada, sendo substituída pela expressão “resíduos sólidos”. A questão é que esta
mudança tem que ser acompanhada de mudanças em seus componentes sociais, de forma que
o lixo não seja mais uma marca associada a negros, pobres e outros grupos em condições de
precária existência. Se o lixo pode ser reciclado, é imprescindível reciclar também as
concepções sócio ambientais associadas a estas pessoas.
Um último aspecto relacionado ao conteúdo da coleção escolhida que carecia de
discussão é o que trata da organização dos assuntos integrantes do currículo de Química para o
Ensino Médio. Como mencionei anteriormente, considero que uma das “tradições curriculares”,
como propostas por Goodson (2001), que vêm moldando os currículos da disciplina escolar
Química ao longo de sua história, é a sequência dos conteúdos a ensinar ao longo das três séries
do Ensino Médio. No primeiro ano, é comum dar ênfase à apresentação dos conteúdos de
atomística e constituição da matéria, sendo apresentados conceitos fundamentais da Química.
127
É ainda compartilhada a linguagem básica da Química. Em seguida, os conteúdos de físico
química são discutidos no segundo ano e, no terceiro ano, química orgânica, bioquímica e
química ambiental. Observando a proposta programática dos livros da coleção analisada, é
possível notar uma ênfase na articulação entre as questões ambientais e os conteúdos da
Química, embora a sequência destes conteúdos siga essa tradição característica do ensino de
Química. Ou seja, a autora organiza os conteúdos de Química na forma como usualmente se
apresentam nos livros didáticos de Química para o Ensino Médio31, mas buscando associá-los
a temáticas ambientais com as quais aqueles conteúdos tem capacidade de dialogar
“cientificamente”. E estas temáticas aparecem ao longo dos três volumes como eixos
organizadores da discussão das questões ambientais no âmbito dos conteúdos de Química. Mas
é arriscado imputar o adjetivo “tradicional” a esta forma de sequenciação, ainda que na análise
prévia das coleções integrantes do PNLEM de 2012, o mesmo tenha sido observado nas outras
quatro coleções que não foram discutidas nesta dissertação pois, como Neto (2003) aponta
A organização é um item bastante importante na avaliação de uma obra didática, uma
vez que pode implicar decisivamente no planejamento das atividades do professor que
adota o livro. Pode-se interpretar que o professor, via de regra, adota um livro porque
concorda com sua organização e assim sendo planeja executar suas atividades na
sequência que é proposta por ele. Um dos motivos para essa aceitação é o
entendimento que o professor tem a respeito da existência de relações de precedência
entre os temas ou conceitos presentes na obra. Por exemplo, se o tema C é precedido
por B que é precedido por A, implicando a relação {A, B, C}, não parece sensato
apresentar C antes de B ou de A, uma vez que podem existir noções ou conceitos
cruciais em A ou B que impeçam ou dificultem a correta apreensão do tema C. É claro
que o professor possui autonomia na execução de suas atividades e que poderia
apresentar o que considera necessário para a apreensão de um determinado tema, sem
se influenciar pela ordem que aparece no livro. No entanto, a literatura revela
(Santomé, 2000) que existe uma forte relação entre a organização apresentada nos
livros e a praticada pelos professores em sala de aula. (p.136).
Tendo analisado onze títulos de Química para o Ensino Médio, compreendidos entre
os anos de 1998 a 2001, alguns na forma de volume único e outros na forma do volume
destinado ao primeiro ano, esse autor identificou a existência de um padrão de grande
regularidade na sequência dos temas de primeiro ano. Embora não tenha relatado se o mesmo
fenômeno se repete para os conteúdos de segundo e terceiro anos do Ensino Médio, acho seguro
assumir que isso acontece. E considerando que os estudos que deram origem a sua dissertação
já distam onze anos do momento atual, aponto com segurança que a distribuição de temas
adotada na coleção por mim analisada, encaixa-se numa perspectiva de “tradição” do ensino de
Química, uma vez que segue uma distribuição que praticamente não difere da observada por
31 Essa consistência no padrão de sequenciação dos conteúdos de Química para o Ensino Médio pode ser constatada
pela observação das tabelas presentes no anexo A, que traz as inserções da temática “lixo” identificadas nas cinco
coleções previamente avaliadas.
128
Neto (2003).
Desta forma, após a seleção prévia de uma dentre as cinco coleções integrantes do
PNLEM-2012, a análise mais detalhada da coleção escolhida, me permite argumentar que a
temática ambiental “lixo” encontra-se entrelaçada aos conteúdos tradicionais do currículo de
Química. A sua posição não é periférica, tem a mesma relevância que outros conteúdos. Porém,
essa seleção curricular ainda se apresenta de forma muito subordinada aos currículos
tradicionais desta disciplina, revelando-os como um espaço de disputa por status e
reconhecimento. Nesse espaço já se pode reconhecer a importância da discussão de questões
ambientais, mas que ainda não avançou para uma perspectiva sócio ambiental contemporânea.
A presença deste conflito revela padrões de persistência curricular face ao ingresso de
inovações que buscam trazer em seu bojo os debates de legítimas preocupações ambientais e
sociais, relacionadas ao lixo, que é uma presença inevitável em uma sociedade industrializada,
que incentiva o consumo e que ainda busca naturalizar as relações de exploração exaustiva da
natureza sob a justificativa falaciosa do desenvolvimento como um bem para todos. Assim,
pude perceber que a presença do “lixo”, tão relevante dentre outros temas ambientais, ainda não
dá conta das questões que separam e diferenciam os indivíduos, invisibilizando estas distinções
e reforçando a necessidade de que este debate se aprofunde no âmbito escolar.
A investigação destes materiais reforçou a noção da grande representatividade dos
livros didáticos enquanto material escolar de mais ampla abrangência no Brasil e a necessidade
de se manter uma constante investigação do que neles se apresenta, sob o risco de que pelas
mãos e interesses de grupos hegemônicos, a construção do saber escolar atenda aos interesses
exclusivos daqueles grupos. Além disso, o trabalho trouxe à luz a persistência de conflitos
nestes materiais didáticos, que refletem os currículos da mesma disciplina, mas também
despertou em mim o interesse na continuidade do exame e da exploração dos currículos desta
disciplina ao longo de sua história e talvez em outros segmentos. Creio ser este um relevante
objeto de pesquisa que faz jus à continuidade de investigações posteriores. Por estas reflexões,
chego ao fim deste texto com a certeza de que todo o esforço resultou em informações
relevantes, que espero, possam contribuir também nas indagações de outros pesquisadores. Este
“fim”, como muitos outros, é transitório pois a cada ponto final segue-se uma nova frase e novos
questionamentos.
129
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BRASIL. Decreto nº 7.494 de 23 de dezembro de 2010. Regulamenta a Lei no 12.305, de 2 de
agosto de 2010, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos e dá outras
providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 23 de
dezembro de 2010.
BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. Guia de livros didáticos:
PNLD 2012: Química, Brasília: Ministério da Educação, 2011b, 52 p.
138
BRASIL. Temas e agendas para o desenvolvimento sustentável. – Brasília: Senado Federal,
Subsecretaria de Edições Técnicas, 2012. 263 p.
Coleções de livros didáticos de Química para o Ensino Médio, integrantes do PNLEM de
2012
PERUZZO, Francisco Miragaia; CANTO, Eduardo Leite do. Química na abordagem do
cotidiano. 4ª ed. São Paulo: Moderna, 2006.
FONSECA, Martha Reis Marques da. Química: meio ambiente, cidadania e tecnologia. 1ª ed.
São Paulo: FTD, 2011.
LISBOA, Julio Cesar Foschini. Ser protagonista Química. 1ª ed. São Paulo: SM, 2010.
SANTOS, Wildson Luiz Pereira, MÓL, Gerson de Souza. Química cidadã. 1ª ed. São Paulo:
Nova Geração. 2010.
MORTIMER, Eduardo Fleury; MACHADO, Andréa Horta Química – ensino médio. 1ª ed. São
Paulo: Scipione, 2010.
139
Anexo A – Levantamento das ocorrências da temática “lixo” nos livros didáticos de Química do PNLEM 2012
LISBOA, Julio Cesar Foschini. Ser protagonista: Química. 1ª ed., São Paulo: SM, 2010.
Volume Unidade Capítulo Título do capítulo Assunto Página Formato Imagem
1
1
1 1 Química: objeto de estudo e aplicações Normas de segurança, símbolos e
tratamento de resíduos (atividade
experimental)
23 TA DC (6)
2 5 Separação de misturas Despoluição de lagos e rios 75 TA, N DC(1)
2
2
3 6 A rapidez das reações químicas Decomposição rápida 129 N FC(1)
7 19 Aplicações da eletrólise Do pó ao cobre – Reciclagem de sucata
eletrônica permite obtenção de matéria
prima nobre (obs: lixo = sucata)
352 N FC(1)
8 22 Transmutações artificiais, fissão e fusão
nucleares
Lixo nuclear 389 TA GC(1)
3
3
2 3 Compostos da função hidrocarboneto Metano, gás natural, gás dos pântanos,
biogás ou gasolixo
4 6 Funções com nitrogênio Controle químico de plantas daninhas
aquáticas (eutrofização por lixo)
155 N FC(1)
8
8
21 Polímeros naturais e sintéticos Polímeros de adição (sacos de lixo feitos
com PET)
395 TA FC(1)
22 O ser humano e o meio ambiente Introdução (texto sobre lixo eletrônico) 416 TA FC(1)
Polímeros, ambiente, políticas públicas e
cidadania (apresenta definição de lixo)
417 N DP(1)
Aterros sanitários 418 TA DC(1)
Incineração/reciclagem 419 TA FC(2)
Lixo espacial (Ciência, tecnologia e
sociedade)
425 N FC(1)
140
FONSECA, Martha Reis Marques da. Química: meio ambiente, cidadania e tecnologia. 1ª ed. São Paulo: FTD, 2011.
Volume Unidade Capítulo Título do capítulo Assunto Página Formato Imagem
1 1
1
Introd. O que é Química? Saneamento básico 10 E -
O que é Química? A Química polui? 12-13 TA FC(1)
5 Separação de misturas Reciclagem do lixo (5.1) 71 TA, CA FC(2)
Tratamento físico do lixo 72 TA, CA FC(3)
Reciclagem do vidro 73 TA, CA DC(1)
Reciclagem de papel e papelão 73 TA, CA FC(1)
Reciclagem de metais 73-74 TA, CA FC(2)
Reciclagem de plásticos 74-75 TA FC(1)
Reciclagem/aquecedor ecológico 75-76 CA DC(2)
Questões (lixão) 77 E FC(1)
“exercitando o raciocínio” (5.1) 89 E
(ENEM) -
“Resgatando o que foi visto” (retomando
o tema da unidade 1), RRR
91 CA
proposta
de
discussã
o
GC(1)
2
2
1 5 Rendimento e pureza “Resgatando o que foi visto” (retomando
temas do vol.1 – contaminação de corpos
de água)
81 CA
proposta
de
discussã
o
FC(1)
2
2
6 Expressões físicas de concentração Poluição da água (texto de abertura) 82 CA FC(2)
Mares mortos (texto de abertura) 85-86 CA
prop.
disc.
FC(1)
4 18 Produto iônico da água Como o turismo e o uso de fertilizantes
nas plantações próximas à costa podem
prejudicar os corais
320 - FC(1)
5 19 Introdução à Eletroquímica Lixo eletrônico à deriva (texto de 326- CA FC(4)
141
5 abertura) 327
Nápoles: lixo causa crise na segurança
(texto de abertura)
328-
329
CA FC(1)
Lixo eletrônico tem substâncias perigosas
p/a saúde humana (texto de abertura)
329 CA FC(1)
“Explorando os textos” 330 CA -
20 Pilhas e baterias O que é um aterro sanitário? Como os
resíduos do lixo eletrônico podem atingir
os corpos d’água
350-
352
TA, CA FC(3)
É possível obter um fertilizante adequado
a partir do lixo? E como ocorre a
contaminação deste fertilizante
353 TA, CA FC(3)
Como é feita a reciclagem responsável do
lixo eletrônico
363 TA FC(3)
Questões (n. 2) 376 E -
3 3
3
10 Reações de substituição Consumismo 206 TA FC(2)
11 Reações de adição Amar as coisas e usar as pessoas 207 TA FC(3)
13 Reações de oxidação e de redução “Explorando os textos” 208 CA -
5 20 Atividade nuclear Não existe nenhuma tecnologia sendo
desenvolvida com o intuito de reverter os
danos ao meio ambiente?
235-
236
TA FC(2)
20 Atividade nuclear (Nox (não há subtítulo) 249 - F(1)
(“curiosidade”) O acidente de Goiânia 392 N FC(1),GC
(1)
Como é feita a descontaminação de
pessoas que entram em contato com
material radioativo?
393 TA, CA FP(2)
Questões (n.2 – ENEM) 410 E -
Resgatando o que foi visto 415 TA -
Período de meia vida (lixo atômico) 390 TA, CA GC(1)
142
PERUZZO, Francisco Miragaia; CANTO, Eduardo Leite do. Química na abordagem do cotidiano. 4ª ed. São Paulo: Moderna, 2006.
Volume Unidade Capítulo Título do capítulo Assunto Página Formato Imagem
1 - Não foram localizados textos, exercícios, complementos ou imagens em que estivesse presente o tema“lixo”.
22 -
-
4 Eletroquímica: celas galvânicas (6.6) Baterias de hidreto metálico 151 TA -
5 Eletroquímica: celas eletrolíticas “Exercícios adicionais” (n. 75) 188 E -
Informe-se sobre a Química – A
importância da reciclagem do alumínio
189-
190
CA FP(1)
9 Radioatividade: fenômeno de origem
nuclear
Fusão Nuclear 347 TA FV(1),
DC(1)
3
3
-
-
5 Reações de substituição A Química verde 177 TA -
9 Polímeros sintéticos
O que os ecologistas veem de errado na
água engarrafada
259 CA -
O impacto ambiental causado pelos
plásticos
260 CO GC(1)
Sacola plástica usada pelo comércio gera
problema ambiental no estado
260 N DC(4)
Exercício 268 E DC(1)
11 A Química orgânica e o ambiente
“Pare e situe-se” (texto de abertura sobre
combustíveis fósseis, aumento de
produção e de geração de lixo)
302 CA -
Biogás (item 4) 317 TA -
O lixo e seu destino (item 5) 319 TA -
O descarte do lixo (item 5.1) 320-
323
TA, CA FC(2),
GC (2)
O reaproveitamento do lixo (item 5.2)
Resíduos viram lucrativa biomassa 326 TA -
143
SANTOS, Wildson Luiz Pereira, MÓL, Gerson de Souza. Química cidadã. 1ª ed. São Paulo: Nova Geração. 2010.
Volume Unidade Capítulo Título do capítulo Assunto Página Formato Imagem
1 1
1
2 Materiais e processos de separação Reutilizar e reciclar: retornando o material
ao ciclo útil
46-48 CA DC(3),
QC(5)
Atitude sustentável: destino de resíduos
sólidos domésticos
51-52 TA DC(1)
...Pense, debata e entenda (questões sobre
lixo)
53 E TC
Lixo: tratamento e disposição final 70-75 CA FC(1),
TC (1)
...Pense, debata e entenda (questões sobre
lixo)
76 E GC(2),
TC(1)
(Observação: na discussão de consumo
sustentável, China associada ao “3º
mundo” – p.97)
3 8 Interações entre constituintes e
propriedades das substâncias
inorgânicas e orgânicas
Agricultura sustentável: opção inteligente 312-
313
CA FC(4)
4 9 Unidades utilizadas pelos químicos Na medida certa: evitando o desperdício 338 CA FC(4) –
fotos de
alimento
s jogados
no lixo,
DC(1)
2 1 2 Propriedades da agua, solubilidade e
propriedades coligativas
Gestão dos recursos hídricos 64-65 CA FC(3),
TC(1)
2 6 Modelos atômicos, radioatividade e
energia nuclear
Energia nuclear como fonte de produção
de energia elétrica
216-
221
FC(6),
GC(1)
Rejeitos nucleares 238-
240
FC(2),
TC(1)
144
9 Equilíbrio químico A Química, o tratamento da água e o
saneamento básico
353-
355 e
363
FC(1) de
lixo
acumula
do em
margens
de rio
3 11 4 Polímeros e propriedades das
substâncias orgânicas (texto de abertura
do cap.)
Os plásticos e o ambiente 132-
136
TA, CA FC(5),
GC(1)
5 Indústria química e síntese orgânica Indústria química e sociedade 166 - FC(1)
(de lixo)
(Observação: discussão sobre o discurso
da sustentabilidade sem consciência
social- p.173)
2
2
7 Pilhas e eletrólise Descarte de pilhas e baterias 238-
242
CA FC(5),
DP(4),
TC(1)
Metais, sociedade e ambiente (no contexto
de reciclagem, especialmente do Al)
250-
251
CA FC(2)
3
3
9 Transformações nucleares Lixo nuclear 345-
36
TA FC(1)
Acidente radioativo de Goiânia 348-
350
TA FC(3)
145
MORTIMER, Eduardo Fleury; MACHADO, Andréa Horta Química – ensino médio. 1ª ed São Paulo: Scipione, 2010.
Volume Unidade Capítulo Título do capítulo Assunto Página Formato Imag
em
1 -
-
- O que você vai estudar neste livro Apresentação do programa de Química do
1º ano (informa sobre o lixo no cap. 4)
11 - FC(1)
4 Aprendendo sobre o lixo urbano Conceitos, caracterização, separação de
lixo, lixo urbano, reciclagem
86-89 TA FC(5),
DC(3)
Atividade 1: Planejando um acampamento
selvagem.
90-91 TZ FC(5),
DC(3)
Texto 2: “Lixo do Rio se sofistica com o
plano Real”
91-92 CA, N -
Atividade 2: Determinando a composição
do lixo doméstico (critérios, coleta,
discussão)
93-96 TA FC(5)
Atividade 3:Mudança nos padrões de
consumo e de produção de lixo
96-97 TA FC(2)
Atividade 4: Ciclo de vida das embalagens 98-99 TA DC(1),
GC(3)
Texto 3:Produção mais limpa 100-
101
TA -
Atividade 5: Outros tipos de lixos
existentes no ambiente urbano
101 TA FC(3)
Atividade 6: Destinos finais do lixo 102-
103
TA FC(2)
Atividade 7:Como manter uma cidade
mais limpa
104 TA -
Atividade 8: O lixo como fonte de renda. 105 TA -
2 - - Observação: somente a foto das lixeiras
para descarte seletivo, presente no
sumário, se explicação ou legenda)
146
5 Movimento dos elétrons: uma
introdução ao estudo da Eletroquímica
Introdução ao estudo das reações de
oxirredução (comentários sobre descarte
de pilhas)
174 TA FC(3)
Descarte e reciclagem 211 T FC(1),
FP(5)
3 - 3 Água nos ambientes urbanos: Química
para cuidar do planeta
Texto 1: As águas de nossa cidade e sua
qualidade
144-
145
- FC(1)
foto
mostrado
coro de
água cm
lixo
5 Química de materiais recicláveis Texto 1: Qual parte do lixo d nossa casa é
reciclável (RRR; tipos de embalagens)
235-
238
TA FC(2)
Texto 5: Para onde vão as garrafas PET?
(reintrodução sobre matéria e energia)
247-
248
TA FC(2)
Texto 13: Ciclo de vida do Alumínio:
reciclagem (Observação: não usa a
palavra “lixo” mas sim a foto)
279-
280
TA FC(1)
foto
igual à
p.211 do
vol.2)
Formato: (TA) teoria/autor; (CA) texto complementar/autor, inclusive exemplo; (CO) complementar de outrem; (N) texto (com ou sem
imagem) de notícia, reportagem ou similar; (E) exercício; (O) outros.
Imagem: (FC) foto colorida; (FP) foto preto e branco; (GC) gráfico colorido; (GP) gráfico preto e branco; (DC) desenho colorido, (TC)
tabela colorida, (QC) quadro colorido
147
Anexo B - Levantamento de artigos em bases CAPES, SCIELO
e Google Schoolar
ABREU, Rozana Gomes. A concepção de currículo integrado e o ensino de Química no “novo
ensino médio”. 2001. Disponível em http://www.cefetes.br/gwadocpub/Pos-
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