Currículo e Trabalho Pedagógico - Biblioteca...

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LETRAS LIBRAS|145 CURRÍCULO E TRABALHO PEDAGÓGICO

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LETRAS LIBRAS|145

CURRÍCULO E TRABALHO

PEDAGÓGICO

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CURRÍCULO

E TRABALHO PEDAGÓGICO

Betina S. Guedes

Morgana Domênica Hattge

Maura Corcini Lopes

APRESENTAÇÃO

Olá! Nesse módulo abordaremos o tema “currículo”. Iniciamos convidando-o a

acompanhar conosco esse percurso! Desenvolvemos esse módulo com a intenção de trilharmos

lado a lado com você a construção desse estudo. Para tanto, criamos um contexto de diálogo

entre textos, no qual articulamos à discussão principal do módulo, outros textos que seguindo

uma linha de coerência, complementam e nos desafiam a “saber mais” sobre o tema em questão.

Iniciaremos com uma retomada histórica das primeiras sistematizações que subsidiaram a

organização curricular (escolar e pedagógica), passaremos pelas diferentes ênfases e

possibilidades de leitura do termo currículo até chegarmos aos seus usos, desdobramentos e

ênfases no campo educacional. Seguindo essa linha de discussão, enfocaremos algumas das

principais teorizações sobre o currículo, assim como, o projeto político-pedagógico e as políticas

que determinam e subsidiam sua elaboração. Concluiremos esse percurso delineado, discutindo e

analisando de que formas estamos produzindo a diferença surda no currículo e de que formas

podemos pensar em uma inclusão escolar menos excludente dos surdos no ensino regular.

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SUMÁRIO

1. CURRÍCULO: UMA PISTA DE CORRIDA

1.1. O que é o currículo?

1.2. Um pouco de história

1.3. Escola medieval: a educação para poucos

1.4. Curriculum

2. AS TEORIZAÇÕES SOBRE O CURRÍCULO

2.1. Currículo fabril: organização e eficiência

2. 2. Crítica social, ideologia e emancipação

2.3. Cultura, identidade e disciplina

3. CURRÍCULO, CULTURA E EDUCAÇÃO DE SURDOS

3.1. “A educação que nós surdos queremos”

4. PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO

4.1. Bases Legais

REFERÊNCIAS

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UNIDADE I

1. CURRÍCULO: UMA PISTA DE CORRIDA

Currículo: uma pista de corrida8

Etimologicamente a palavra currículo, vem do latim curriculum, abarcando entre outros

significados o de “pista de corrida”. Pensar no currículo como uma pista de corrida implica em

pensá-lo como um percurso que, não apenas serve de plano ou de base para que a corrida seja

realizada, mas que age no decorrer desse percurso modificando as pessoas que vão seguir tal

currículo. Implícita nas teorizações sobre currículo está posta uma pergunta fundante para

qualquer análise dessa engrenagem que age na produção dos alunos: “o que eles ou ela devem

ser? ou melhor, o que eles ou elas devem se tornar?” (SILVA, 2007, p. 15).

Falar em currículo para professores, talvez possa parecer um tanto quanto redundante,

afinal: como pensar a escola sem o currículo? Seja como estrutura que embasa o desenvolvimento

do cotidiano escolar, como uma das dimensões do Projeto Político Pedagógico, seja como campo

8 Imagem disponível em: http://didactique.blogspot.com/. Consulta em 07/05/11.

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de disputas de poder e de produção de identidades, o currículo está sempre presente nas nossas

práticas. Dentro desse amplo campo de compreensão do currículo coabitam diferentes

possibilidades de definições e aportes teóricos, que engendrados por diferentes movimentos

históricos, criam e sustentam intrincadas redes de poder que constituem diferentes leituras do

currículo e seus efeitos.

Geralmente, em uma leitura mais apressada a palavra currículo é reduzida a uma lista de

informações sobre a vida de alguém ou, quando se refere à escola, a um conjunto de disciplinas,

de conteúdos, de regras, de carga horária, de distribuição de séries e de turmas, etc. Embora esta

seja uma concepção aceita, o currículo a que nos referimos aqui está sustentado em um outro

conceito. Currículo está na dimensão da experiência que atravessa aqueles que se submetem

direta ou indiretamente a ele. Veiga-Neto (2001, p. 235), diz que o currículo “funcionou (e

funciona) como um importante artefato envolvido nos processos de controle em geral (e

dominação) e de subjetivação.” Moreira & Garcia (2004), alertam para a importância de não

enfraquecermos a luta da escola ao conceituarmos currículo em diferentes espaços como tem

feito os Estudos Culturais, pois esse é um termo que pode ser lido e remetido a discussões

variadas devido a não estar limitado ao espaço escolar.

Somos sujeitos marcados por verdades, por comportamentos, por regras sociais, por

lugares e ocupamos posições que se configuram a partir de desenhos traçados por conjuntos de

práticas que balizadas por algumas verdades e sentidos, definem os espaços que devem ser

ocupados pelos sujeitos e os próprios sujeitos. Sujeito/território de acontecimento, lugar onde as

experiências acontecem deixando vestígios, afetos e efeitos (LARROSA, 2004).

A experiência é o que nos passa nos fazendo aprender coisas, comportamentos e elaborar

conceitos. Ela é que permite darmos sentidos às coisas que vemos e falamos, no caso dos surdos,

que vêem e sinalizam. Para além da aquisição da informação que pode ser passada/transmitida, a

experiência permite construção de conceitos que nos permitem pensar o mundo, as relações, as

verdades ensinadas e as mais distintas aprendizagens. Das experiências saem as diferentes

subjetividades o os diferentes sujeitos da educação.

“Talvez possamos dizer que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é também

uma questão de identidade” (SILVA, 2007, p. 16). O currículo abarca significados que vão muito

além de uma estrutura que determina o funcionamento da escola. O currículo produz marcas em

quem passa por ele, o currículo forma, conforma, ensina formas de ser e de estar no mundo,

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produzindo diferentes sujeitos em diferentes épocas. Tudo que é selecionado para compor o

currículo traduz um tipo de percurso a ser trilhado pelos alunos, seguindo determinações de

tempo, sequência, obstáculos, operando o disciplinamento dos saberes e dos corpos dentro de

um espaço previsto de possibilidades. O currículo produz formas de ser aluno, de ser professor, de

ser incluído e excluído, de aprender, de ser avaliado, dentro de um tempo e de um espaço

organizado para esses fins. O currículo (propositalmente) conforma, dá forma, põe na forma.

O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é

trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum

vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso,

documento. O currículo é documento de identidade (SILVA, 2007, p. 150).

Conceituar o currículo como documento de identidade implica entender que o currículo

subjetiva, ao avaliar, nomear e posicionar cada aluno, ensinando o próprio aluno a se olhar de

acordo com os óculos que a escola lhe proporciona. O currículo produz nosso olhar, sobre nós

mesmos e sobre o mundo, instituindo formas de vida. Ao determinar formas de ser aluno, e ao

posicionar os alunos em intrincadas redes de relações, o currículo imprime identidades. Mas

afinal, o que é o currículo?

O Currículo como fetiche – a poética e a política do texto curricular

Não é preciso dizer que a educação institucionalizada e o currículo – oficial ou não – estão, por sua vez, no centro do processo de formação de identidade. O currículo, como um espaço de significação, está estreitamente vinculado ao processo de formação de identidades sociais. É aqui, entre outros locais, em meio a processos de representação, de inclusão e de exclusão, de relações de poder, enfim, que, em parte, se definem, se constroem, as identidades sociais que dividem o mundo social. A tradição crítica em educação nos ensinou que o currículo produz formas particulares de conhecimento e de saber, que o currículo produz dolorosas divisões sociais, identidades divididas, classes sociais antagônicas. As perspectivas mais recentes ampliam essa visão: o currículo também produz e organiza identidades culturais, de gênero, identidades raciais, sexuais... Dessa perspectiva, o currículo não pode ser visto simplesmente como um espaço de transmissão de conhecimentos. O currículo está centralmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o currículo nos produz. (SILVA, 2001, p. 27)SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche – a política e a poética do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2001)

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1.1. O QUE É O CURRÍCULO?

Partindo do pressuposto de que o currículo é construção, subentende-se que as

várias formas que assume obedecem a discursividades diferentes, em que

habitam filosofias resultantes das intencionalidades que o produzem, nos diversos

tempos e nos mais diferentes lugares. Tempo e lugar ou, se se quiser, tempo e

espaço diferentes produzem discursividades diferentes e, portanto, modos

diferentes de entender e de produzir curricula (os currículos) (BERTICELLI, 2005, p.

159).

A epígrafe já nos alerta de que há diferentes formas de entender e de conceituar o

currículo, atendendo a diferentes intencionalidades e discursividades. Definir exatamente o que é

o currículo, talvez não seja tão produtivo quanto entendê-lo a partir de diferentes olhares e

possibilidades de interpretação que o mesmo abarca, posto que buscar a origem definitiva do

currículo não nos isenta de questioná-la enquanto apenas uma leitura possível de um recorte

histórico específico sobre o currículo. “Uma definição não nos revela o que é, essencialmente, o

currículo: uma definição nos revela o que uma determinada teoria pensa o que o currículo é”

(SILVA, 2007, p. 14).

Ao invés de uma abordagem ontológica (o que é verdadeiramente o currículo), faremos, tal

como sugere Silva (2007), uma abordagem histórica traçando caminhos possíveis nos quais

diferentes teorias do currículo foram desdobradas, priorizando determinados enfoques em

detrimento de outros, atendendo a demandas específicas em termos políticos e culturais em cada

época.

Subsidiando tais teorias do currículo podemos inferir que há uma intenção, ou uma

concepção de sujeito a ser formado, tendo como base formas específicas de produzi-lo para um

determinado tipo de sociedade. Esse currículo formalmente embasado por um processo de

seleção de conteúdos (o que ensinar), de distribuição dos mesmos em uma determinada

hierarquia (como ensinar), de uma sistematização em termos de complexidade, de tempo e de

faixa etária (quando ensinar) e de como medir a aprendizagem (o que e como avaliar), é articulado

com um currículo “em ação” ou como alguns preferem chamar, oculto, que também acontece na

escola. Esse currículo em ação é o que acontece em sala de aula, é o imprevisto, é a experiência

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que se desdobra de outras formas não previstas pelo currículo formal ou prescrito. Segundo

Berticelli (2005, p. 165) é exatamente essa maior ou menor prescritividade que determina “[...] os

vários sentidos de currículo e seus vários conceitos”.

O currículo que acontece na escola é construído cotidianamente por todos que compõem a

instituição. Nunca teremos um mesmo currículo em diferentes instituições de ensino, por mais

que no âmbito da documentação o que está dito seja o mesmo. Portanto, sujeitos diferentes

produzem marcas diferentes e são produzidos de diferentes formas por um mesmo currículo.

Nesse campo heterogêneo, prescritivo e ao mesmo tempo imprevisível, o currículo atua

produzindo efeitos, realidades, verdades e sujeitos. O uso desses termos no plural justifica-se pelo

seguinte: não buscamos a Teoria que subsidiaria de uma vez por todas a conceituação do

currículo, instituindo a verdade e a realidade sobre escola, educação e seus demais elementos.

Essa Teoria (propositalmente grafada com letra maiúscula) seria algo inquestionável, naturalizado,

posto que refletiria a verdade absoluta sobre o currículo.

Indo na contramão das grandes metanarrativas, nos interessamos não pela Teoria, mas

pelas teorizações sobre currículo, o que implica em entender que não há a verdade sobre as

coisas, mas diferentes interpretações, formas de olhar e consequentemente, uma pluralidade de

verdades e de realidades postas em funcionamento na escola e no currículo. Seguindo a esteira

desse entendimento, salientamos que o currículo também é um processo de seleção que instituiu

determinados regimes de verdade pautados na lógica disciplinar que dispõe, exclui, inclui, afasta,

estabelece limites, hierarquias e posições de sujeito, de acordo com distintos saberes em tensão

no interior dos jogos de forças estabelecidos dentro e fora do espaço escolar. Neste tensionado

jogo de saber, quem tem o poder de argumentar e de dar as diretrizes do olhar daquele que

ensina, que cuida e que recupera, determina as condições e os próprios sujeitos escolares.

Neste jogo a escola produz formas de olhar os alunos, determinando posições a serem

ocupadas por cada um dentro de limites que definem os mais aptos e os menos aptos, os

aprendentes e os não-aprendentes, os lentos e os hiperativos, os sociáveis e os deprimidos, entre

tantos outros rótulos que utilizam para nomear os alunos. Como mote desse impulso de nomear a

escola cria estratégias de aproximação dos alunos para desenvolver saberes sobre os mesmos,

pois “conhecer o outro é parte da pedagogia que precisa criar estratégias de captura dos sujeitos

para poder ensinar e disciplinar” (LOPES, 2007a, p. 5).

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Muitas estratégias são criadas para se conhecer os alunos e para que todos sejam

mantidos dentro da escola, assim como muitas estratégias são criadas “[...] para que todos

aqueles que estão na escola tenham sucesso nela” (LOPES, 2007a, p. 15). Sucesso e fracasso são

postos como um jogo permanente no currículo escolar, imprimindo marcas nos que dele fazem

parte, ao ensinar formas de ser aluno que correspondem a uma padronização pedagógica que

avalia, nomeia, inclui e exclui. “Efetivamente, o currículo sempre é currículo para alguém,

construído a partir de alguém. [...] O professor se afigura personagem importante deste cenário,

juntamente com seus alunos e não com alunos hipotéticos” (BERTICELLI, 2005, p. 166-7).

Conceber um currículo implica também fazer parte dele, demanda experiência, e ter o

entendimento de que ele produz muito mais efeitos do que simplesmente determinar a

organização do funcionamento escolar.

Inclusão: a invenção dos alunos na escola

Diante de uma demanda tão variada, podemos visualizar as muitas dificuldadesenfrentadas pela escola em trabalhar para normalizar os sujeitos não enquadradosem categorias predefinidas como sendo normais para o desenvolvimento. As escolasvivenciam a crise/tensão da diferença e a crise/tensão tempo escolar versus tempode aprendizagem, de forma a produzir a diferença como algo indesejado e o tempoda aprendizagem como tempo escolar de aprendizagem. Na tentativa de unificação eenquadramento, aqueles mais resistentes são vistos como problemas quenecessitam de atendimento especializado para que sejam normalizados. Nessalógica, a diferença é narrada como sinônimo de deficiência, de indisciplina que podeser tratada por pedagogias disciplinares e corretivas.

Quem está em posição de determinar quem são os diferentes são aqueles que seencontram dentro daquilo que podemos denominar de zona de normalidade. Definirzona de normalidade torna-se tão difícil quanto definir o aluno que ocupa essa zona.A partir da invenção do nível de aproveitamento, do nível de desenvolvimentocronológico e cognitivo, combinado com respostas escolares, e a partir de traçoscomportamentais que implicam ser disciplinado, saber conversar, ser solidário ededicado aos estudos, etc., produz-se a figura daquele que serve como medida paraavaliar a todos – o aluno médio.

Quem é o aluno médio na escola? Essa pergunta poderia conduzir-nos a um conjuntovazio, pois não há nenhum aluno que consiga chegar às exigências feitas para estarnessa posição, o que implica a necessidade de dedicação permanente para atingirum tipo ideal, imaginário, e no limite, inatingível. (LOPES, 2008, p. 37-39). LOPES,Maura Corcini. Inclusão: a invenção dos alunos na escola. In: RECHICO, CinaraFranco; FORTES, Vanessa Gadelha(orgs.). A Educação e a Inclusão naContemporaneidade. Boa Vista: Editora UFRR, 2008, p. 29-80.

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ATIVIDADE:

Você conhece as charges do Francesco Tonucci9? Escolhemos uma delas para pensarmos sobre como o

currículo, e nós professores, inventamos nossos alunos tendo como base um padrão de normalidade. Esse

padrão instituído determina formas de ser aluno e de estar no mundo, determinando lugares a serem

ocupados mais próximos ou mais distantes da normalidade. Essa determinação de lugares e de identidades

se dá nos momentos em que falamos, descrevemos nos pareceres, nos conselhos de classe ou em

quaisquer outros momentos em que colocamos nossos alunos em um jogo de comparação com um perfil

de aluno padrão. Inventamos determinados tipos de alunos para ocupar lugares determinados na

sociedade.

Com base na charge responda: que palavras utilizamos para nomear, e para falar dos nossos alunos nos

diferentes momentos escolares? Que efeitos essas formas de nomear têm na forma como a turma vê e

posiciona cada colega?

9 Francesco Tonuci - educador italiano, desenhista e ilustrador. Autor do livro “Com olhos de criança”. (TONUCCI, Francesco. Com

olhos de criança. Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 168).

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Passaremos agora aos aspectos históricos que nos possibilitam mostrar o currículo como

algo inventado no atravessamento de diferentes tempos históricos, concepções teóricas, políticas

e culturais. Iniciaremos esse percurso pela história do currículo e suas possíveis condições de

emergência.

1.2. UM POUCO DE HISTÓRIA

Em seu contexto de surgimento, a instituição escolar moderna, não guarda relação direta

com as primeiras articulações que dizem de uma estrutura curricular. Antes mesmo da

institucionalização da educação escolarizada, já havia elementos presentes nas modalidades de

ensinos da época que mostram condições de emergência para o que hoje denominamos currículo.

Aparição mais remota do termo curriculum, no Professio Regia de Peter Ramus10

.

10

Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k109353f/f6.image.r=.langPT. Acesso em 09/05/11.

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A origem do currículo é definida de diferentes formas, tendo adquirido também diferentes

ênfases no decorrer da história. Olhar para a origem do currículo (ou suas possíveis origens) não

remete a um trabalho de escrutínio ou de julgamento de qual seria a mais legítima ou “mais

verdadeira”. Remeter o uso do termo ao passado é uma forma de entender como o currículo veio

a constituir-se como o entendemos hoje e que implicações podem ser observadas nesses

diferentes usos.

Seguindo a proposta de Terige (1996, p. 163) destacamos três autores e três origens, a

saber:

· Se o curriculum é a ferramenta pedagógica de massificação da sociedade industrial, acharemos sua origem nos Estados Unidos, em meados do século, como a encontra em Díaz Barriga, ou ainda um pouco antes, na década de 20;

· Se é um plano estruturado de estudos, expressamente referido como curriculum, podemos achá-lo pela primeira vez em alguma universidade européia, como propõem Hamilton;

· Se é qualquer indicação do que se ensina, podemos chegar, como Marsh, a Platão e, talvez, até antes dele.

Essas origens do curriculum destacadas indicam três possibilidades de leitura do termo:

como indicação do que deve ser ensinado, como um plano de estudos estruturado e como

ferramenta pedagógica da sociedade industrial (TERIGI, 1996). Não discutiremos a legitimidade de

cada um desses enfoques, mas convidamos você a fazer o exercício de pensar conosco sobre os

enfoques que nos permitem discutir o que entendemos hoje por currículo.

Vamos rever esse percurso histórico? Começaremos pelos primeiros registros históricos do

uso do termo classe e escola, por entendermos que nesses momentos é possível observar formas

de organização específicas que denotam condições de emergência para o currículo. Salientamos

que não olharemos a história interpretando-a com balizas de leitura contemporâneas, posto que

as palavras não carregam em si mesmas um significado único e definitivo, eles podem mudar de

acordo com os atravessamentos históricos e culturais que a constituem. Não há como interpretar

um conceito retirando-o do seu contexto histórico. Feitas essas ressalvas, iniciaremos com o

termo classe.

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1.3. ESCOLA MEDIEVAL: A EDUCAÇÃO PARA POUCOS

O uso do termo “classe” remonta, para alguns autores, ao período medieval, mas a partir

da Renascença que começa a ser uma prática mais difundida e seu uso ganha contornos mais

específicos. No Compendium Universitatis Parisiensis publicado em 1517 na Universidade de Paris,

o professor Robert Goulet afirma que a série de preceitos descritas deveriam ser adotadas por

todos que desejassem fundar ou reformar um colégio (HAMILTON, 1992).

Além de exortar seus leitores a seguir o modo de vida e de ensino já praticado em

Paris, o primeiro preceito de Goulet também descrevia o plano de um colégio

adequado: “devia haver ao menos doze classes ou pequenas escolas de acordo

com a exigência do lugar e dos auditores” (HAMILTON, 1992, p. 34).

Goulet afirmava também que o termo “escola”, no período medieval, referia-se tanto a um

grupo de pessoas, quanto ao lugar/espaço no qual a instrução acontecia, não condizendo com o

que entendemos hoje como definição dessa instituição, mas denotando uma primeira forma de

organização espacial do lugar onde acontecia o ensino. Hamilton (1992) complementa salientando

que não havia atribuições pedagógicas definidas ao professor, nem mesmo uma estrutura que

regesse suas práticas em relação aos alunos, o ensino organizava-se em uma base individual,

mesmo estando os alunos dispostos em grupos. Não havia também nenhuma preocupação

específica com a aprendizagem do estudante, nem um tempo determinado (e frequência) para

permanecer na escola. À medida que os “objetivos” do estudante na escola eram cumpridos, estes

podiam não mais permanecer frequentando a escola. “Essencialmente, a escolarização medieval

era uma forma organizacional de textura frouxa”, o que não configurava, na época, um fracasso da

organização escolar, mas uma “resposta perfeitamente eficiente às demandas feitas em relação a

ela” (HAMILTON, 1992, p. 36).

Até o século XI a vida intelectual era monopólio da Igreja, assim como as organizações mais

específicas de ensino. Na Baixa Idade Média com a reurbanização e o desenvolvimento das

cidades começa a configurar-se uma nova classe social denominada burguesia. Com o

desenvolvimento do comércio reaparece a necessidade de se aprender a ler, escrever e calcular.

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Dessa forma o ensino instala-se nas cidades com as escolas seculares (do mundo, não-religiosas) e

inaugura-se a abertura das escolas para além dos mosteiros. O conteúdo do ensino era o estudo

clássico das sete artes liberais, seguindo os seguintes decretos capitulares para a organização das

escolas:

- Trivium: abrangia as disciplinas formais – gramática, retórica e lógica (ou dialéctica).

- Quadrivium: abrangia as disciplinas reais – aritmética, geometria, astronomia e música.

As Sete Artes Liberais, figura do 'Hortus deliciarum' de 'Herrad von Landsberg' (século XII)11

11

Disponível em: http://www.thedialecticalplaya.com/?tag=satire. Consulta em 08/05/11.

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Gallo (2007) considera que subjacente a esta concepção medieval de educação e de

currículo, estava uma noção de totalidade formada pelo mundo e pela realidade, que não podiam

ser abarcadas completamente pelo espírito humano. Portanto, seria necessário que os saberes

fossem divididos em áreas distintas, e que fossem estudados e articulados com base em uma visão

enciclopédica. O processo educativo implicava na perda da ignorância, indo das partes para o

restabelecimento da totalidade, necessária ao desenvolvimento da sabedoria. Gallo (2007, p. 2)

considera que esse processo seria o “fundamento primeiro de uma filosofia do currículo

disciplinar”.

Nessa educação baseada nas sete artes liberais, o trivium correspondia ao ensino de nível

médio e o quadrivium ao nível superior e, portanto, estudado por um número menor de pessoas.

Ambos consistiam em grandes sistematizações de campos de saber, ainda não subdivididos pela

Ciência em disciplinas, caracterizando um currículo, posteriormente denominado de clássico e

humanista.

Basicamente, nesse modelo, o objetivo era introduzir os estudantes ao repertório

das grandes obras literárias e artísticas das heranças clássicas grega e latina,

incluindo o domínio das respectivas línguas. Supostamente essas obras

encarnavam as melhores realizações e os mais altos ideais do espírito humano. O

conhecimento dessas obras não estava separado do objetivo de formar um

homem [...] que encarnasse esses ideais (SILVA, 2007, p. 26).

A partir do século XII o ensino começa a voltar-se para aspectos práticos da vida,

substituindo-se o latim pelo ensino da língua nacional e, em vez do trivium e quadrivium, passou-

se a oferecer noções de história, geografia e ciência naturais. Nesse período não havia um espaço

específico destinado à escola, o mestre recebia seus alunos na própria casa, na igreja, ou alugava-

se uma schola (sala). Essas scholas eram independentes umas das outras, não tinham uma

estrutura organizada (mesas e cadeiras) e nelas reuniam-se meninos e homens de diferentes

idades, de 6 a 20 anos (ou mais) (ARANHA, 1989).

No final do século XV o sentido moderno de “classe” foi utilizado pela primeira vez, mesmo

não tendo sido expressamente nomeado, nos estatutos do Colégio de Montaigu, tal como segue:

É no programa de 1509 de Montaigu que se encontra pela primeira vez em Paris

uma divisão precisa e clara dos estudantes em classes. Isto é, divisões graduadas

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por estágios ou níveis de complexidade crescente de acordo com a idade e o

conhecimento adquirido pelos estudantes (HAMILTON, 1992, p. 39).

Mesmo sem ser nomeada a classe aparece descrita no excerto, como subdivisões dentro

do colégio, instituindo novos padrões de organização do espaço e do tempo postos em relação

com a aprendizagem. Mas como essas diferentes articulações e entendimentos de escola e classe

encaminharam-se para as configurações que a escola moderna adquiriu? Aqui começamos a ver

engendrar-se a emergência do termo curriculum.

SAIBA MAIS

A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar12

Saber por que a sala de aula que conhecemos é como é ajuda-nos a ver quais

decisões foram tomadas no passado e que processos ocorreram para chegarmos a esta

determinada configuração. Nosso argumento central é que a sala de aula onde as lições

são ministradas é uma construção histórica, produto de um desenvolvimento que

incluiu outras alternativas e possibilidades. Uma vez que a sala de aula é o recinto

principal de nossa atividade docente, questionar o óbvio, ver por que esta opção

triunfou e quais opções foram excluídas pode contribuir também para pensarmos

outros caminhos para nossas práticas.

Para abordar nossa genealogia, queremos discutir primeiro o que é a sala de

aula. Ela tem, certamente, muitos elementos. Não apenas os docentes e os alunos, mas

também mobiliário, instrumentos didáticos, as questões da arquitetura escolar, tudo

faz parte da sala de aula. Os bancos escolares, as lousas e os cadernos têm uma história

e uma especificidade pouco conhecidas até hoje. Além desse aspecto material, a sala

de aula implica também uma estrutura de comunicação entre sujeitos. Está definida

tanto pela arquitetura e pelo mobiliário escolar como pelas relações de autoridade,

12

DUSSEL, Inês; CARUSO, Marcelo. A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. Tradução por Cristina

Antunes. São Paulo: Moderna, 2003.

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comunicação e hierarquia que aparecem na sala de aula tal como a conhecemos, e que

são tão básicas no momento de ensinar que muitas vezes passam despercebidas.

Como se caracteriza essa comunicação na sala de aula? Sabemos que é uma

comunicação hierárquica: suas regras não são definidas por todos, há muitas decisões

já tomadas quando as crianças e os professores entram na sala de aula. Sabemos

também que é uma relação que não está baseada unicamente no saber, que não trata

apenas de quem sabe mais matemática, mas que é uma relação de poder: o docente,

pelo simples fato de ser professor, independentemente de como ensino ou quanto

saiba, tem mais poder do que as crianças para definir o que transmitir a elas. É claro

que esse poder não é absoluto, uma vez que o docente ensina em uma escola regida

por leis, opiniões, planos de estudo e outras coisas; entretanto ele tem o poder de

definir as pautas dessa relação, de torná-la mais igualitária, mais variada, ou mais

uniforme e hierárquica. Uma vez que a situação de ensino implica uma complexa

situação de poder, consideramos que o ensino, como “condução” da sala de aula, pode

ser analisado em relação à condução das sociedades e dos grandes grupos.

Assim sendo, a sala de aula pode ser analisada como uma situação de governo.

(DUSSEL e CARUSO, 2003, p. 36-37)

1.4. CURRICULUM

Nos registros de 1643 da Grammar School de Glasgow o termo curriculum é utilizado para

fazer referência a um curso inteiro composto por vários anos, devendo ser cursado por cada

estudante. Vê-se aqui que o sentido estrutural do currículo começa a ser articulado, sendo

corporificado pela disciplina (um sentido de coerência estrutural) e pela ordo (um sentido de

sequência interna) (HAMILTON, 1992).

Esse curriculum passa a constituir não apenas um percurso a ser seguido, mas um percurso

que deve ser finalizado, de acordo com uma estrutura, sequência, tempo e com um foco mais

específico tanto em relação ao ensino quanto à aprendizagem.

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As ressignificações do “curriculum” e “classe” foram indicativas de dois movimentos de

reforma pedagógica:

Primeiro, veio a introdução de divisões em classes e a vigilância mais estreita dos

alunos; e segundo, veio o refinamento do conteúdo e dos métodos pedagógicos.

O resultado líquido, entretanto, foi cumulativo: o ensino e a aprendizagem

tornaram-se, para o mal ou para o bem, mais abertos ao escrutínio e ao controle

externos. Além disso, “curriculum” e “classe” entraram na pauta educacional

numa época em que as escolas estavam sendo abertas para uma seção muito

mais ampla da sociedade (HAMILTON, 1992, p.47).

O currículo clássico manteve-se apenas no contexto de uma escolarização secundária de

acesso restrito à classe dominante. Com a democratização da escolarização secundária,

determinou-se o fim do currículo humanista clássico (SILVA, 2007). Em um período marcado

fortemente pelo processo de industrialização crescente, pelo êxodo rural, movimentos

migratórios e a formação das cidades, a massificação da escolarização consolidou-se como um

mecanismo capaz de disciplinar os infantes através da captura dos seus corpos e do seu tempo em

um espaço disciplinarmente geometrizado.

Para tanto, a escola precisou romper com o meio de onde provinham seus alunos para que

pudesse educá-los para a virtude, para o bem comum, para a vida no coletivo e acima de tudo,

dentro de um princípio de racionalidade. As novas configurações que se colocavam com a

Modernidade, exigiam o rompimento com as bases que sustentavam a escola até o Renascimento,

ou seja, bases que não iam muito além de intervenções na vida privada dos indivíduos. Tal

intervenção, como pontuamos anteriormente, se resumia em ensinar a ler, escrever, a falar e

argumentar de forma consistente a um pequeno número de indivíduos.

A ampliação da abrangência da escola foi um acontecimento necessário para que um

projeto de Nação e de Estado se fortalecesse. Era preciso que a educação escolarizada chegasse

cada vez mais a um maior número de pessoas, principalmente a partir do séc. XIX. A garantia de

outra configuração social exigiu que muitos se submetessem a uma mesma orientação, para tanto

a escola constituiu-se em um dos espaços privilegiados de reunião e de circulação de uma lógica

que se queria e se fazia necessário implantar. Longe de entendermos este processo como uma

relação de causa e de consequência, mas o entendendo como um conjunto de causas imanentes

LETRAS LIBRAS|164

em operação sobre as práticas de vida e sobre os regimes de verdade presentes em um

determinado tempo, é possível afirmar que a escolarização operou por meio de um conjunto de

tecnologias, que articuladas produziram outro tipo de indivíduo para os tempos que passavam a

se colocar como emergentes. Tempos que exigiram um esforço concentrado não somente sobre o

corpo dos indivíduos, mas sobre os saberes que os descreviam e os sujeitavam.

Tal abrangência da noção disciplinar foi denominada por Veiga-Neto (1996) de “virada

disciplinar”. A virada deu-se enquanto conteúdos disciplinares e deu-se enquanto princípio

organizador dos conteúdos (VEIGA-NETO, 1996). Essa virada exigiu que a escola passasse a se

organizar de forma sistêmica, com currículos pensados a partir de hierarquias de saberes que

eram amontoados e desconectados de uma vida prática (VARELA E ALVAREZ-URIA, 1992). Essa

fragmentação do currículo, bem como a completa dissociação da experiência vivida, criticada por

Comenius (séc. XVII), contribuiu para fixar, mesmo que por um tempo, posições de sujeito já

ocupadas tanto por aqueles que eram beneficiados, como por aqueles que não integravam os

grupos favorecidos economicamente.

A fragmentação de conteúdos e a dissociação entre o que se ensinava e o que se vivia,

teve importância central no jogo das relações e das disciplinas. Resultante desta lógica de

organização e distribuição de saberes e sujeitos no currículo escolar – recorrente até hoje - foram

produzidos alunos cujos pensamentos que utilizam para olhar e interpretar o mundo e as relações

nele estabelecidas se inscrevem em uma ordem disciplinar (dividida por campos de saber). Com

essa outra lógica estrutural, foi possível melhor controlar o ensino e a aprendizagem, tornando

esses processos, em muitos momentos, ao longo da história das teorizações e da didática,

inseparáveis e entendidos como sendo naturais.

As novas formas assumidas pelo currículo tiveram repercussões mais profundas em termos

sociais, pois foi por intermédio dessa invenção que “[...] a escola se organizou e atuou, inventando

novas formas de vida que romperam com os sentidos e usos medievais do espaço e do tempo”

(VEIGA-NETO, 2002a, p. 1).

Foi com o currículo que ela assumiu uma posição ímpar na instauração de novas

práticas cotidianas, de novas distribuições e novos significados espaciais e

temporais. E, talvez o mais importante: foi pelo currículo que a escola contribuiu

decisivamente para a crescente abstração do tempo e do espaço e para o

estabelecimento de novas articulações entre ambos. Isso foi tão mais decisivo na

LETRAS LIBRAS|165

medida em que tanto a escola fez do currículo o seu eixo central quanto ela

própria tomou a si a tarefa de educar setores cada vez mais amplos e numerosos

da sociedade (VEIGA-NETO, 2002a, p. 1-2).

O currículo escolar moderno ressignificou as noções de espaço e tempo, imprimindo “uma

ordem geométrica, reticular e disciplinar, tanto aos saberes quanto à distribuição desses saberes

ao longo de um tempo” (VEIGA-NETO, 2002a, p. 2). O currículo produziu rotinas para a vida

cotidiana de todos que de alguma forma fazem parte do contexto escolar, com base em

prescrições didáticas para controlar o uso do tempo dos estudantes e dos professores, ordenando

e disciplinando o tempo vivido na escola às disposições temporais comuns a todos (VEIGA-NETO,

2002a).

Sala de aula 113

Sala de aula 214

13

Disponível em: http://jianeevs.blogspot.com/2010_09_05_archive.html. Consulta em: 07/05/11.

LETRAS LIBRAS|166

Sala de aula 315

ATIVIDADE

Faça uma pesquisa e selecione outras imagens de salas de aula e demais espaços escolares em

diferentes tempos históricos.

Com base nessas imagens de salas de aula apresentadas e pesquisadas responda: que relações ou

rupturas podemos estabelecer entre a sala de aula tradicional e a contemporânea? Que

implicações a organização espacial e temporal da escola imprime na formação dos nossos alunos?

PARA SABER MAIS:

Não resta dúvida, a escola vive em outro tempo e espaço16

A escola tem sido denunciada como a mais conservadora das instituições, presa a um tempo e espaço

anacrônico e lento, a um espaço e tempo do passado e do futuro, jamais do presente. É como se a escola

vivesse no passado, preparando seu contingente (alunos e alunas) para que o futuro e o presente ficassem

14

Disponível em: http://cafehistoria.ning.com/forum/topics/1980410. Consulta em: 07/05/11. 15

Disponível em: http://www.ehelpcarolina.com/brasil-melhora-mdia-mas-fica-entre-piores-em-ranking-de-ensino/sala-de-aula/.

Consulta em 07/05/11. 16

FABRIS, Eli Henn. Não resta dúvida, a escola vive em outro tempo e espaço. In: SCHMIDT, Saraí (org.). A educação em tempos de

globalização. Rio de Janeiro, DP&A, 2001, p. 91-97.

LETRAS LIBRAS|167

suspensos, não existissem. A escola, desde sua gênese, vem assumindo um lugar privilegiado e uma

confiança generalizada na instrução e no que isso representa para a ascensão social e econômica. A ideia de

progresso marca toda a educação escolar.

Olhemos para a escola e para o mundo fora dela: algo parece desconectado. O espaço escolar é

marcado por sinetas, por momentos estanques nos quais o relógio e o calendário assumem uma

importância capital. Os muros altos da escola, as paredes da sala de aula, as carteiras escolares delimitam

os territórios dentro e fora da escola. No interior da escola os assuntos versam sobre um tempo passado e

projetos para o futuro, o presente não entra, parece que não é o seu momento ainda.

[...]

Não resta dúvida, a escola vive em outro tempo e espaço!

Olhar para esse tempo e esse espaço, que têm sido referência na organização de nossas ações, no

dia-a-dia de nossas escolas, tem sentido se os tomarmos como construções sociais, como categorias

socialmente inventadas, que, sendo assim, podem ser deslocadas e reinventadas por nós. Dependendo da

forma que experienciamos essas categorias, podemos estar praticando uma política de inclusão ou de

exclusão, e isso faz diferença, quando temos tantos desafios a vencer, que dependem dessa prática cultural,

ou seja, de incluir as diversas vozes silenciadas das diferentes raças/etnias, religiões, classes sociais, opções

sexuais etc. É nesse sentido que podemos privilegiar outros espaços e tempos para a escola, inventar outras

possibilidades mais democráticas e justas. [...]

(FABRIS, 2001, p. 91-93)

LETRAS LIBRAS|168

UNIDADE II

2. AS TEORIZAÇÕES SOBRE CURRÍCULO

Nessa sessão iremos abordar algumas das teorizações existentes no campo educacional

sobre o currículo. Para tanto, dividimos didaticamente essas teorizações em três grandes grupos

seguindo as seguintes denominações:

2.1. Currículo fabril: organização e eficiência

Foco de discussão: teorização tradicional

2. 2. Crítica social, ideologia e emancipação

Foco de discussão: teorizações críticas

2.3. Cultura, identidade e disciplina

Foco de discussão: teorizações pós-críticas

2.1. CURRÍCULO FABRIL: ORGANIZAÇÃO E EFICIÊNCIA

O currículo aparece pela primeira vez como objeto de estudo nos Estados Unidos na década

1920, período regido pelo acentuado processo de industrialização e pelos movimentos

imigratórios (SILVA, 2007). Frente a esse contexto social, a massificação da escolarização atendeu

a uma determinada demanda de formação que seguiu a estrutura e a lógica de funcionamento das

fábricas, processando estudantes como um produto fabril. O expoente dessa forma de conceber o

currículo foi Bobbitt com seu livro “The curriculum” de 1918, nele o currículo é posto como um

“processo de racionalização de resultados educacionais, cuidadosa e rigorosamente especificados

e medidos” (SILVA, 2007, p. 12). A inspiração teórica de Bobbitt para desenvolver essa concepção

de currículo foi a administração científica de Taylor, seguindo especificações precisas de objetivos,

LETRAS LIBRAS|169

procedimentos e métodos, visando obter resultados passíveis de serem mensurados, tendo como

grande eixo a eficiência.

Nesse mesmo período, a vertente progressista de John Dewey, também ganhou

visibilidade. Dewey considerava que os interesses e as experiências das crianças e jovens deveriam

ser levadas em consideração no planejamento curricular, porém sua influência não “[...] iria se

refletir da mesma forma que de Bobbitt na formação do currículo como campo de estudo” (SILVA,

2007, 23).

O modelo curricular proposto por Bobbitt consolidou-se em definitivo com um livro de

Ralph Tyler publicado em 1949. Tal como Bobbitt, Tyler concebia o currículo como uma questão

eminentemente técnica, devendo responder a quatro questões básicas:

1. Que objetivos educacionais deve a escola procurar atingir?

2. Que experiências educacionais podem ser oferecidas que tenham

probabilidade de alcançar esses propósitos?

3. Como organizar eficientemente essas experiências educacionais?

4. Como podemos ter certeza de que esses objetivos estão sendo alcançados?

(SILVA, 2007, p. 25).

Silva (2007) salienta que as quatro perguntas de Tyler descrevem a organização tradicional

da atividade educacional, subdividindo-a em: currículo, ensino e instrução e avaliação. Bobbitt e

Tyler produziram modelos fortemente tecnicistas, mas Tyler ampliou o modelo de Bobbitt ao

incluir nessa organização curricular duas fontes não contempladas pelo seu antecessor: a

psicologia e as disciplinas acadêmicas, submetendo-as posteriormente a dois “filtros”: “a filosofia

social e educacional com a qual a escola está comprometida e a psicologia da aprendizagem”

(SILVA, 2007, p. 25).

Esse enfoque formal e prescritivo do currículo pode ser caracterizado como um programa

de formação global, didaticamente coerente, e subsidiado por uma distribuição do tempo,

sequencial, baseada em situações e atividades ordenadas (BERTICELLI, 2005).

Tanto os modelos mais tecnocráticos (Bobbitt e Tyler), como os progressistas (Dewey) que

emergiram no século XX, nos Estados Unidos, constituíram uma forma de reação ao currículo

clássico e humanista, herdeiro das artes liberais da Idade Média e Renascimento (trivium e

quadrivium). “O tecnocrático destacava a abstração e suposta inutilidade – para a vida moderna e

LETRAS LIBRAS|170

para as atividades laborais – das habilidades e conhecimentos cultivados pelo currículo clássico”.

Já o modelo progressista, centrado na criança, “[...] atacava o currículo clássico por seu

distanciamento dos interesses e das experiências das crianças e dos jovens”, que por estar

centrado nas matérias clássicas “desconsiderava a psicologia infantil” (SILVA, 2007, p. 26-7).

“Na modernidade, com o advento do método científico, assistimos a uma proliferação cada

vez maior e mais rápida das disciplinas, que num movimento intenso de especialização, vão se

subdividindo e criando novas áreas” (GALLO, 2007, p.2), a totalidade de um currículo voltado

apenas para o como fazer, vai sendo gradativamente desmembrada nas disciplinas. Perde-se a

totalidade em prol da especialização das áreas específicas. Talvez a marca desse

desmembramento acentuado venha a ser sentida posteriormente, quando em um movimento

inverso os curriculistas passam a buscar a interdisciplinaridade, face à crescente fragmentação do

ensino das décadas que sucedem.

TEORIZAÇÃO TRADICIONAL

Características:

- Reação ao currículo clássico humanista;

- Processo de industrialização, movimentos migratórios, êxodo rural, formação das cidades, massificação da

escolarização,

- Currículo como questão técnica – Princípios da administração, da racionalidade técnica (organização,

planejamento, eficiência e objetivos);

- Foco na organização e elaboração do currículo – como fazer o currículo.

- Cientificismo e padronização dos processos pedagógicos;

- Modelo de produção industrial (Taylorismo) – controle do tempo e do espaço;

- Orientação comportamentalista (tecnicismo intensificado nos anos 1960);

- Modelos tecnocráticos (Bobbitt e Tyler); modelo progressista de base psicológica (Dewey);

Principais autores: Bobbitt, Tyler e Dewey.

2.2. CRÍTICA SOCIAL, IDEOLOGIA E EMANCIPAÇÃO

No final da década de 1960, no Brasil, em um período marcado pelo golpe militar, currículo

e sociedade começaram a serem postos em relação. Na literatura educacional estadunidense essa

LETRAS LIBRAS|171

renovação da teorização sobre currículo foi chamado “movimento de reconceptualização”. Na

França destaca-se as contribuições de Althusser, Bourdieu e Passeron, Baudelot e Establet (SILVA,

2007). Na literatura inglesa foi nomeado de Nova Sociologia da Educação (NSE), sendo associado

ao sociólogo Michael Young. Posteriormente, a NSE deu origem à Sociologia do currículo. Partindo

de quatro questões principais, os estudos da Sociologia do Currículo desencadearam suas

discussões:

(a) O que pode ou não ser considerado de valor educativo para fazer parte dos conteúdos a serem transmitidos pela escola? (b) Quem faz a seleção dos conteúdos e, portanto, dos elementos das culturas que fazem parte dos currículos? (c) A quem servem os conteúdos ensinados nas escolas? (d) Como é tratada a cultura das classes populares nos currículos? (BERTICELLI, 2005, p. 169).

Em contrapartida à padronização tecnicista dos processos pedagógicos, começa a ganhar

repercussão uma discussão crítica em relação ao currículo, potencializando sua posição

estratégica em termos sociais, de instituir a formação dos indivíduos a partir de uma ideologia

dominante pautada em uma cultura tida como legítima. Ao desconfiar do status quo e

responsabilizá-lo pelas desigualdades e injustiças sociais, as teorizações críticas colocam em

questão os pressupostos educacionais que sustentavam até então a teoria curricular tradicional e

o que o currículo produzia a partir disso. “Para as teorias críticas o importante não é desenvolver

técnicas de como fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender o

que o currículo faz” (SILVA, 2007, p. 30).

Ao enfatizar o processo de seleção que constitui o currículo, a teorização crítica passa a

questionar “porque prioriza-se tais conteúdos e não outros”, defendendo que essas variáveis não

são neutras, mas sustentadas por uma trama social complexa. “O currículo é um dos “lugares” em

que se “concede a palavra” ou “se toma a palavra”, no jogo das forças políticas, sociais e

econômicas” (BERTICELLI, 2005, p. 168).

A teorização educacional crítica tornou problemática a questão de “o que ensinar”, pois da

forma como estava posto, apenas mantinha as assimetrias sócio-econômicas, que se pautavam na

distribuição assimétrica do conhecimento (tanto em termos quantitativos, quanto qualitativos). A

intenção dessa teorização era superar as desigualdades, estabelecendo a distribuição equitativa

do conhecimento. (VEIGA-NETO, 2002b).

LETRAS LIBRAS|172

Silva (2007, p. 30) nos mostra uma breve cronologia do que considera os marcos

fundamentais da teoria crítica, enfatizando que a mesma é composta por duas ênfases: a teoria

educacional crítica mais geral e a teoria crítica sobre currículo. Nessa linha do tempo é possível

também observar quais foram os principais nomes que fizeram parte desse movimento. Segue a

cronologia em questão:

1970 – Paulo Freire: A pedagogia do oprimido

1970 – Louis Althusser: A ideologia e os aparelhos ideológicos de estado

1970 – Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron: A reprodução

1971 – Baudelot e Establet: L’école capitaliste em France

1971 – Basil Bernstein: Class, codes and control, vol I

1971 – Michael Young: Knowledge and control: new directions for the sociology of education

1976 – Samuel Bowles e Herbert Gintis: Scholing in capitalist America

1976 – Wiliam Pinar e Madeleine Grumet: Toward a poor curriculum

1979 – Michael Apple: Ideologia e currículo

TEORIZAÇÃO CRÍTICA

Características:

- Auge das teorias críticas: anos 70 e 80;

- Foco nas desigualdades sociais – crítica à sociedade capitalista pelo seu determinismo econômico – escola

como reprodutora da hegemonia dominante;

- Conexão entre educação e ideologia;

- Escola: aparelho ideológico central, atuando ideologicamente através do currículo (reprodução das

relações sociais capitalistas);

- Domínio simbólico – cultura dominante (a cultura legítima, naturalizada);

- Currículo: imposição da cultura dominante – produz um ciclo de reprodução cultural – a classe dominante

reafirma seu status;

LETRAS LIBRAS|173

2.3. CULTURA, IDENTIDADE E DISCIPLINA

Entendemos o currículo como a porção da cultura – em termos de conteúdos e

práticas (de ensino e aprendizagem, de avaliação etc.) – que, por ser considerada

relevante num dado momento histórico, é trazida para a escola, isto é, é

escolarizada (Williams, 1984). De certa forma, então, um currículo guarda estreita

correspondência com a cultura na qual ele se organizou, [...]. Esse é o motivo pelo

qual o currículo se situa no cruzamento entre a escola e a cultura (VEIGA-NETO,

2002b, p. 44)

A escola desde sua criação sempre teve a tarefa de difundir uma determinada cultura

considerada válida, a chamada “alta cultura”. Em nome dessa “alta cultura”, hoje entendemos que

muitas culturas consideradas “baixa cultura”, de menor valor, foram negligenciadas e silenciadas

na escola. E é através do currículo que essa representação ou o silenciamento de determinada

cultura são colocados em funcionamento na escola, uma vez que é o currículo que possibilita a

operacionalização das práticas escolares em todos os seus níveis no espaço escolar. Segundo Silva

(2007, p. 17) “ao enfatizarem o conceito de discurso em vez do conceito de ideologia, as teorias

pós-críticas de currículo efetuaram um outro importante deslocamento na nossa maneira de

conceber o currículo”. Para Costa

não há realidade intrinsecamente verdadeira, pois os enunciados tomados como

verdades são construídos discursivamente segundo um regime ditado por

relações de poder. Representar é produzir significados segundo um jogo de

correlação de forças no qual grupos mais poderosos [...] atribuem significado aos

mais fracos e, além disso, impõem a estes seus significados sobre outros grupos

(1999, p. 42-43)

Na história ocidental os indivíduos têm sido conduzidos a ocuparem distintas funções

sociais que exigem destes cada vez mais comportamentos que estejam enquadrados dentro de

normas estabelecidas e aceitas pelo grupo, no interior de uma determinada cultura. Portanto,

mesmo que pareça estranho ou contraditório, os indivíduos estão sendo conduzidos para que se

diferenciem entre si, dentro de um limite previsto de homogeneidade. Trata-se de um processo de

individualização que não desvincula, porém, esse indivíduo de seu meio cultural. Veiga-Neto

(1996, p.253), ao escrever sobre a homogeneidade salienta:

LETRAS LIBRAS|174

[...] falar em homogeneidade não é tanto falar em indistinção entre as partes de

um todo, senão é falar de partes que se associam, se complementam, se

entrechocam, se conflitam, justamente porque, de origem comum, participam,

cada uma a seu modo, de um mesmo todo. Em outras palavras, o processo

civilizatório pode ser visto como um afastamento em relação ao cenário social e

econômico fragmentado que perdurou na Europa até a virada do milênio, em que

nem mesmo as cidades funcionavam com alguma articulação.

O crescente processo de diferenciação colocado sobre o coletivo e sobre o indivíduo, visto

acontecer em toda a Modernidade, não se deu por uma suposta evolução da disciplina,

considerando que esta já existia de outras formas desde a Alta Idade Média. O movimento de

constantes deslocamentos de práticas sociais exigiu outras configurações disciplinares, que

pudessem estar instrumentalizando os indivíduos para viverem o social de forma regrada, contida

e auto-controlada. Sociedade e indivíduo fazem uma mistura produtiva e não homogênea de

elementos que necessitam da educação e mais especificamente, da educação escolarizada e da

disciplina para acontecerem.

Veiga-Neto (1996, p.255), ao problematizar a disciplinaridade como uma forma de estar no

mundo e o currículo como dispositivo por onde tal forma pode materializar-se nas ações e nos

indivíduos escreve

o currículo pode ser compreendido como o braço escolar dos procedimentos e mecanismos de objetivação e subjetivação (Popkewitz, 1994). Um braço que prepara as disposições pelas quais, como discutirei mais adiante, cada um pode se tornar duplamente um sujeito: sujeito enquanto objeto de si mesmo e sujeito enquanto sujeitável ao poder disciplinar.

O sujeito assujeitado pode ser narrado e identificado pelo outro e por si próprio, a partir de

diferentes posições sociais que trazem consigo marcas que permitem o estabelecimento de traços

de identidade. Identidades sociais são constituídas na relação com o outro e na determinação

dinâmica de marcadores culturais (LOPES & VEIGA-NETO, 2006) forjados no interior das práticas

sociais institucionalizadas ou não e nas práticas disciplinares. Neste processo de produção de

LETRAS LIBRAS|175

sujeitos e de identidades faz-se necessário descentralizá-lo para podermos pensá-lo e

problematizarmos as verdades que o posicionam na escola.

Problematizando essas verdades, vê-se o funcionamento da escola como maquinaria que

com base nos processos que articula, age na produção dos sujeitos e de identidades sociais

adequadas aos lugares que lhes são destinados. Uma maquinaria que opera com tecnologias

capazes de disciplinar e produzir verdades sobre os sujeitos. Neste contexto, a palavra disciplina

pode ser entendida por meio de duas dimensões: a do corpo e a dos saberes (VEIGA-NETO, 1996).

Na dimensão do corpo temos a disciplina que visa produzir corpos dóceis e úteis. Na dimensão dos

saberes temos o currículo compartimentalizado em uma série de disciplinas. Tais dimensões são

eficientemente postas em ação pela escola. Varela e Alvarez-Uria (1992) afirmam que há uma

complexa engrenagem formada por um conjunto de máquinas e suas peças compondo o que

denominamos de escola moderna. Tal conjunto de máquinas e peças pode ser entendido como

conjuntos de práticas discursivas e não-discursivas que ao se articularem criam verdades sobre os

sujeitos constituindo-os dentro de padrões sociais, espaciais e temporais específicos. Tais

máquinas não pré-existiam à instituição escola; mas também não foi a escola que as inventou para

disciplinar (VEIGA-NETO, 1996).

Veiga-Neto (1996), salienta que as disciplinas percorreram caminhos para que chegassem à

posição que ocupam na Modernidade, ou seja, a posição de parte integrante e fundamental do

processo institucionalizado de criar uma sociedade disciplinar e civilizada. Tal processo contou

com técnicas de disciplinamento do corpo (em uma primeira instância) e da alma. Embora

inicialmente esse processo tenha contado com técnicas de disciplinamento do corpo ele visa

atingir não só ao indivíduo, mas todos os sujeitos e espaços que possam estar sendo ocupados

pelos sujeitos sociais. Veiga-Neto (1996, p.251) escreve: “enfim o que se observa é que todo o

espaço social tende a uma maior homogeneidade e a uma maior previsibilidade em termos de

comportamentos individuais, tempos, espaços, ritmos, etc.”

LETRAS LIBRAS|176

PARA SABER MAIS

A escola inclusiva e alguns desdobramentos curriculares17

Com a generalização da escola, com sua obrigatoriedade, ela passou a ter uma importância

fundamental para produzir novos modos de vida. [...] Assim, a escola torna-se um espaço curioso

e interessante para que outras ordens sociais e políticas se estabeleçam. Isso só tem sido possível

através de toda uma gramática da escola moderna, capaz de inventar uma estrutura celular,

agrupamentos diferenciados por idades escolares, por conhecimento a ser transmitido, por

comportamentos e cognição demonstrados pelos alunos etc. [...] Hoje, mesmo passando por

todas as reformas que passou, a escola continua sendo uma máquina eficiente na produção de

determinadas formas de vida, organizada pelo saber da ciência, que divide, ordena e organiza o

mundo. [...] Se o currículo determina espaço e tempo de aprender, homogeneizando e, ao

mesmo tempo, individualizando a educação de todos através dos processos de escolarização,

podemos perguntar pelo operador de tal processo: o que o coloca em funcionamento? Cada vez

mais o ensino se volta para o indivíduo, suas formas de aprender e seu ritmo de aprendizagem.

No entanto, a individualização desse processo de ensino caminha conjuntamente com os

processos que homogeneízam as práticas escolares. Alguns exemplos dessa homogeneização

podem ser vistos nas recomendações mais recentes dos organismos internacionais, as quais vão

produzindo os efeitos necessários para orientar os currículos escolares. (KLEIN, 2010, p. 17-18)

ATIVIDADE

Apresentamos a seguir mais uma charge de Tonucci18:

17

KLEIN, Rejane Ramos. A escola inclusiva e alguns desdobramentos curriculares. In: KLEIN, Rejane Ramos. HATTGE, Morgana

Domênica. Inclusão Escolar: implicações para o currículo. Sào Paulo: Paulinas, 2010, p. 11-27.

18 TONUCCI, Francesco. Com olhos de criança. Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 144-145.

LETRAS LIBRAS|177

A GRANDE MÁQUINA ESCOLAR

Realize uma reflexão articulando a charge de Tonnuci e o excerto do texto de Rejane Ramos Klein

apresentado no quadro acima (Para saber mais).

Dando continuidade ao que vínhamos argumentando, colocaremos foco na concepção de

currículo para as teorizações pós-críticas, salientando que no interior desse campo de estudos

existem diferentes formas de conceber o currículo que partilham de alguns pontos em comum e

se distanciam em outros. Entram nesse campo teorizações tais como: o multiculturalismo, as

pedagogias feministas, a teoria queer, o pós-estruturalismo, os Estudos Culturais, entre outros.

De forma ampla, podemos inferir que o currículo é entendido nesse referencial como um

campo de disputas pela significação, como um universo simbólico no qual estão em jogo questões

políticas e culturais, como um campo no qual é posto em funcionamento a fabricação de

LETRAS LIBRAS|178

determinados tipos de sujeitos de acordo com determinadas finalidades político-pedagógicas e

sociais.

Essa forma de conceber o currículo é caracterizada, principalmente, por uma concepção

de poder diferente daquela que orienta uma visão crítica de currículo e de educação. Referimo-

nos a um poder que não está fixo no econômico, que não é negativo e, nem mesmo, positivo, que

não pode ser desejado e nem tomado de um provável sujeito que o detenha. Poder para aqueles

intelectuais curriculistas que compartilham de uma concepção pós-crítica de educação, significa

potência, operação de uns sobre as ações de outros. Ao invés de uma visão centralizadora e

negativa do poder, as teorizações pós-críticas sugerem que o mesmo se dá de forma desarticulada

de um ponto irradiador, distribuindo-se em redes e relações de forma capilarizada. Não

comandando ou impondo formas de fazer, ser ou viver, mas constituindo essas construções

históricas em constante rearticulação. O poder é entendido como algo que se dá com base em

relações flutuantes, não se ancorando em nenhuma instituição, não se apoiando em “[...] nada

fora de si mesmo, a não ser no próprio diagrama estabelecido pela relação diferencial de forças”,

que o constitui (VEIGA-NETO, 2004, p.157).

Diferentemente do poder, o saber é entendido como apreensível, ensinável e

domesticável, encontrando sustentação na matéria / conteúdos e em elementos formais que lhe

são exteriores. Nessa concepção o saber é entendido como uma construção histórica, que ao

articular-se com o poder age na produção de regimes de verdade, conjugando-se no conceito

“poder-saber”. O poder-saber é posto como dois lados de um mesmo processo. Não há

centralidade nessa relação, mas múltiplas ramificações. O saber entra nessa relação como

elemento condutor do poder, como meio transmissor e naturalizador do poder (VEIGA-NETO,

2004, p.147).

Para completar a tríade em que o poder e o saber se articulam, coloca-se o sujeito. Nessa

relação entre os três elementos posta em funcionamento no currículo, o poder-saber age na

produção do sujeito, entendido como seu produto concreto. Como produto desse processo o

sujeito é concebido como elemento constituído permanentemente no interior das relações de

poder.

O currículo é entendido nesse referencial como um campo de disputas pela significação,

como um universo simbólico no qual estão em jogo questões políticas e culturais, como um campo

LETRAS LIBRAS|179

no qual é posto em funcionamento a fabricação/(con)formação de determinados tipos de sujeitos

de acordo com determinadas finalidades político-pedagógicas e sociais.

Em meio a uma ampla gama de conhecimentos, saberes e relações de poder, o currículo se

constitui no contexto educacional como o resultado de uma seleção. Seleção que terá como

finalidade determinar, além do que será ensinado, também o que determinados alunos ou alunas

deverão se tornar ao final do processo pedagógico.

“Afinal, um currículo busca precisamente modificar as pessoas que vão “seguir” aquele

currículo” (SILVA, 2007, p.15), fabricando, no decorrer da “corrida” um determinado tipo de

sujeito para um determinado tipo de sociedade, produzindo subjetividades e identidades em um

campo de disputas que se dá na cultura.

TEORIZAÇÕES PÓS-CRÍTICAS

Características:

- Ênfase nos conceitos de significação e discurso;

- Compreendem o currículo com imbricado em relações de saber-poder;

- Compreendem o poder como constituindo toda a trama social;

- Falar de teorias pós-críticas não significa a referência a um grupo homogêneo de teorias que se

inter-relacionam;

- Concepção de sujeito múltiplo, fragmentado, constituído no interior de práticas discursivas e

não discursivas;

- Inserção de temas culturais no currículo: raça, etnia, gênero e sexualidade, entre outros.

LETRAS LIBRAS|180

UNIDADE III

3. CURRÍCULO, CULTURA E EDUCAÇÃO DE SURDOS

Segundo Veiga-Neto (2002b) pode-se entender o currículo como um artefato educacional

que ao fazer uso dos elementos de uma cultura os escolariza, estando dessa forma, vitalmente

implicado com a sociedade que o produz. Ao conceber o currículo como algo inerente à cultura,

coloca-se nessa relação a condição de que é com base na cultura que o currículo é pensado e

organizado, priorizando determinados conteúdos e não outros, de acordo com os critérios de

escolha do grupo que o elabora, transitando permanentemente no entrecruzamento entre a

escola e a cultura, ou melhor, entre escolas e culturas. Ao entender a cultura como plural, como

um amplo campo de possibilidades no qual se produzem culturas, desconstrói-se a noção

essencialista de uma cultura hegemônica e auto-referenciada, ampliando-se o leque de

questionamentos e de diferentes posicionamentos ao se problematizar o currículo. Nas palavras

de Veiga-Neto (2002b),

[...] como poderemos ensinar para culturas diferentes da nossa, sem colonizá-las?

Ou, em outras palavras: como (e também que) ensinar para outros grupos sem

impor a eles a minha cultura? E não é demais lembrarmos que, levada ao seu

limite, essa pergunta torna altamente problemático qualquer projeto

educacional: afinal, educar não envolve um processo de colonização de mentes e

corpos? Essa é uma pergunta de natureza ética não trivial. Mas há ainda uma

outra pergunta, também radical, porém de natureza epistemológica: será possível

eu realmente me comunicar com outra cultura, a partir da minha? Ou será que

falamos “dialetos culturais” (Vattimo, 1994), diferentes e, a rigor, intraduzíveis, de

modo que a nossa intercomunicação é ilusória? (VEIGA-NETO, 2002b, p.48).

Tendo como base os questionamentos acima, estabelecemos alguns direcionamentos,

contextualizando a discussão sobre currículo na educação de surdos, entendendo a surdez como

criando e constituindo uma diferença político-cultural. Não cabe nesse texto discutirmos de que

formas um currículo poderia ser pensado de forma a contemplar (sem colonizar ou submeter) a

cultura surda, pensando-se em um contexto escolar no qual alunos surdos estariam inseridos.

LETRAS LIBRAS|181

Olhando para essa discussão de outra forma, mas sem perder de vista os aspectos políticos que a

envolvem, cabe nesse texto estabelecer relações entre o currículo, concebido como engrenagem

operante e constituinte da grande maquinaria escolar, e os efeitos desse funcionamento na

produção dos alunos surdos. Salientamos que de acordo com as concepções de surdez e de sujeito

surdo que embasam o currículo, diferentes sujeitos serão formados no decorrer do processo de

escolarização.

Falar de surdos ou de deficientes auditivos não remete a uma mesma condição de viver a

surdez, posto que não são sinônimos, mas sim interpretações possíveis sobre aquele que não ouve

e formas distintas de inventar a surdez. Lopes (2007, p. 07), ao abordar a surdez como uma grande

invenção, afirma que “todas as interpretações possíveis sobre o que convencionamos chamar de

surdez são interpretações sempre culturais”, com base nesse entendimento a surdez pode ser

inventada de diferentes formas “dentro de distintas narrativas associadas e produzidas no interior

[...] de campos discursivos distintos – clínicos, linguísticos, religiosos, educacionais, jurídicos,

filosóficos, etc”. Salienta que uma narrativa não se propõe a anular a outra, todas elas constituem

interpretações possíveis sobre a surdez, porém alojadas em distintos campos de sentidos.

Qualquer escolha será sempre feita a partir de interpretações e representações

que construímos, partindo de um conjunto de justificativas que escolhemos para

sustentar nossas formas de entender aquilo que somos e aquilo que o outro é.

Toda escolha que fazemos e as justificativas que lhe damos são culturais, mas

nem toda interpretação feita sobre a surdez está sustentada em uma teorização

de base antropológica” (LOPES, 2007, p.08).

A surdez como deficiência foi inventada pela ciência tendo como base níveis de perdas

auditivas, de lesões no ouvido interno e de traumas pré ou pós-natais. Utilizamos o termo

“invenção” não com a pretensão de negar a existência física/orgânica do déficit auditivo, mas,

para mostrar que, assim como a surdez cultural, a deficiência auditiva também é uma invenção

que se dá na cultura. Tanto a surdez cultural quanto a deficiência auditiva são inventadas por

grupos culturais, incluindo-se aí os especialistas das áreas da educação e da saúde.

O deficiente auditivo é caracterizado e determinado pelos diagnósticos médicos, tendo

todo seu desenvolvimento regido pelo grau de acometimento auditivo diagnosticado

clinicamente. O deficiente auditivo faz uso de aparelho auditivo, é submetido a longos

LETRAS LIBRAS|182

tratamentos fonoterápicos e comunica-se através da oralização e da leitura labial, buscando

permanentemente adequar-se o máximo possível aos padrões ouvintes: padrões

comportamentais, de aprendizado, culturais e principalmente linguísticos e de comunicação.

Já aos surdos, o grau de perda de audição é irrelevante, sendo as suas escolhas pessoais,

de identificação e de reconhecimento de elos identitários, que irão influir na aproximação com a

cultura e com a comunidade surda. Trata-se de, com base na materialidade da surdez,

estabelecer-se a criação de um vínculo de pertencimento, de identificação com os pares surdos,

com a língua de sinais, com os aspectos culturais da comunidade surda, e com a possibilidade de

vivenciar a surdez como uma experiência visual, e não como uma condição (ou imposição) de

deficiência.

De forma esquemática, apresentaremos a seguir o conceito clínico-terapêutico de surdez e

de pessoa surda e o conceito antropológico-cultural de surdez e de pessoa surda, para

contextualizarmos as relações que pontuaremos entre currículo e educação de surdos.

Conceito clínico-terapêutico de surdez e de pessoa surda

Conceito sócio-antropológicos de surdez e de pessoa surda

- Surdez é a redução ou ausência da capacidade para

ouvir total ou parcialmente sons devido a problemas que

afetam o aparelho auditivo.

- Deficiência auditiva é uma perda uni ou bilateral, parcial

ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida

por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz,

2.000Hz e 3.000Hz.

- Deficiência auditiva de caráter permanente ou

transitório a diminuição da capacidade auditiva em graus

e intensidade distintas.

- Incapacidade ou dificuldade transitória ou definitiva,

estacionária ou progressiva, de ouvir sons.

- Inabilidade ou dificuldade para ouvir sons específicos,

da fala humana e/ou ambientais.

- Incapacidade de ouvir que gera a ausência natural da

fala.

- O modelo linguístico da pessoa com deficiência auditiva

- Surdez não é marcada pela falta, mas pela presença

do olhar.

- Marca primordial que caracteriza os integrante da

comunidade surda e os diferencia de outras

comunidades não surdas.

- As pessoas surdas são usuárias de língua de sinais,

no caso dos surdos brasileiros são usuários de Língua

Brasileira de Sinais (LIBRAS).

- As pessoas surdas se autodeclaram como surdas e

como pertencentes a uma comunidade surda.

- As pessoas surdas possuem como primeira língua a

língua de sinais. O português é a segunda língua dos

surdos brasileiros.

- A pessoa surda integra a comunidade surda.

- O modelo linguístico cultural dos surdos é o próprio

surdo.

- A pessoa surda deve estar em contato com outras

pessoas surdas o mais cedo possível para que tenha

LETRAS LIBRAS|183

é o ouvinte.

- A pessoa com deficiência auditiva vive entre ouvintes e

é indicado para a melhoria de suas condições de

comunicativas e de vida a prótese auditiva.

acesso a comunicação visual.

Quadro 1 – Concepções de surdo e de surdez19

Historicamente a surdez vem sendo significada, prioritariamente, dentro de campos

discursivos que a tem determinado como condição de falta, de déficit, de deficiência, como se

fosse possível aprisioná-la em uma única realidade condicionada pela materialidade do déficit

auditivo. Essa imposição de significados vem sendo constituída ancorada em uma lógica binária,

localizando surdos e ouvintes em posições supostamente fixas, sendo sempre o surdo o outro na

relação com a normalidade ouvinte. Toda essa produção de significados, sustentada por discursos

clínicos produzidos principalmente por saberes da área da Medicina, se colocam nessa relação

como inquestionáveis, como verdades essencializadas e inegociáveis, pela legitimidade científica

que as sustenta (GUEDES, 2010).

Ao assumirmos a linguagem como constitutiva dos sentidos que damos ao mundo,

enfatizamos o caráter inventado das verdades, dos sujeitos e das relações que nele circulam. Se as

verdades são inventadas, datadas e localizadas historicamente, elas podem ser entendidas como

contingentes e como negociáveis. Nesse sentido, a surdez pode ser entendida como uma invenção

determinada por discursos passíveis de serem questionados e colocados em relação a outras

possibilidades de interpretação da materialidade determinada pela surdez.

Seguindo esse entendimento, as possibilidades de narrar a surdez não se alojam na

materialidade que determina quem é surdo. A materialidade produz condições para inesgotáveis

produções de sentidos sobre a surdez e sobre os surdos, inventando esses sujeitos continuamente

de acordo com os discursos postos nessa relação, sejam eles clínico-terapêuticos, antropológico-

culturais, políticos, entre tantos outros.

Agindo na produção e na legitimação de verdades, o currículo em funcionamento na

escola, atua como uma maquinaria de disciplinar e subjetivar sujeitos, produzindo determinados

tipos de alunos. No currículo, verdades sobre os surdos são criadas e legitimadas, identidades

19

Quadro desenvolvido para o material pedagógico do Letras Libras de Uberlândia (MG) pelas professoras Maura C. Lopes e Betina

S. Guedes no ano de 2010.

LETRAS LIBRAS|184

vinculadas à condição de deficiente, de portador de uma patologia, de sujeito cultural ou de

pertencente a uma minoria linguística, são produzidas, determinando lugares a serem ocupados

por esses sujeitos. Organiza-se toda uma lógica de captura desse corpo e de produção desse

sujeito de acordo com as formas de conceber os surdos e a surdez que circulam no currículo.

A escola põe em funcionamento uma maquinaria que não só produz o aluno, como

também o ensina a olhar-se de determinadas formas. Tendo como base a materialidade da

deficiência ou a marca da cultura, inventa não só a realidade escolar desses sujeitos, como

também cria realidades familiares, sociais, etc, a partir das quais esses sujeitos serão lidos. Todo o

grande enredo no qual esse sujeito transita nos diversos contextos da sua vida, se vê determinado

e conduzido por essa forma de leitura ou pela identidade a qual é vinculado pelas “verdades” que

a escola conta. O aluno surdo é permanentemente produzido pelo currículo, que em

funcionamento na maquinaria escolar, institui formas de vida e formas de ser surdo. Discutir a

questão do currículo em relação à educação de surdos é fundamental para que possamos manter

viva a discussão sobre o direito dos surdos de serem reconhecidos como pertencentes a uma

minoria linguística e cultural e não como deficientes.

PARA SABER MAIS

Sobre pseudo-bilinguismo e cultura surda

Mau uso?Banalização da língua surda?

Vejo a inter-relação dessas possibilidades culminando no apagamento da diferença surda. Como? Explico.

Todo esse processo não conflui apenas na redução da língua de sinais a um instrumento, o que por si só já é

extremamente problemático, mas se trata fundamentalmente de reduzir uma comunidade e uma cultura a

um conjunto de gestos artificializados e pedagogizados pelo processo de institucionalização escolar e

político, resultando em um contexto relativamente recente e crônico: a Língua de sinais “[...] no contexto

escolar, é inferiorizada e descaracterizada, sendo “utilizada apenas como uma ferramenta para o

aprendizado do português” (KARNOPP, 2003, p. 57) e considerada “como uma mera facilitadora de

comunicação e não como um objeto de estudo” (STUMPF, 2004, p.146).

LETRAS LIBRAS|185

Os professores estão sendo formados para que se comuniquem através da LIBRAS com seus alunos surdos

mas “[...] no entanto, esta aprendizagem ainda é muito tímida. Há um fazer de conta de que a Língua de

Sinais faz parte da escola como primeira língua, não se nega a sua importância e legitimidade, mas os

professores a conhecem muito pouco e acabam simplificando o seu uso” (GIORDANI, 2003, p. 90).

Os efeitos disso tudo os próprios surdos descrevem:

“Na escola as professoras ainda não sabem muitos sinais, precisa de professor surdo na educação dos

surdos. [...] Agora está muito fraco, na escola as crianças crescem e aprendem muito pouco sinais

demoram, para aprender sinais (Mulher surda, 25 anos)20”

“Cada palavra precisa ter seu significado explicado em sinais, precisamos discutir em sala de aula, o

professor precisa saber a língua de sinais, não saber um pouco, precisa saber muito” – Gilberto.21

“Para a maioria dos professores não há preocupação em aprender a língua de sinais com mais intensidade,

os professores que têm maior preocupação já estão sem intérpretes, no próximo ano nós não queremos

mais intérpretes, os professores precisam aprender LIBRAS” – Ricardo.22

O apagamento da cultura surda se dá nos usos que estão sendo feitos do movimento político da

comunidade surda, que culminou com a oficialização da LIBRAS, possibilitando e/ou favorecendo a inclusão

dos surdos no ensino regular devido ao “respaldo” 185ingüístico que se criou. A Língua de Sinais colocada

como elemento de acessibilidade ganha outros contornos que extrapolam e se sobrepõem ao 185ingüístico

e ao cultural... E a mobilização política da comunidade surda está sendo pouco a pouco diluída... Na

inclusão social, na educação para a diversidade e na exaltação das diferenças... Exaltação? Ou apagamento

das diferenças?

(GUEDES, 2010, p. 21-22).

3. 1. “A EDUCAÇÃO QUE NÓS SURDOS QUEREMOS”

Durante o V Congresso Latino de Educação Bilíngue para Surdos, realizado na Universidade

Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em abril de 1999, a comunidade surda elaborou o

documento intitulado “A educação que nós surdos queremos23”. Selecionamos a sessão do

documento que aborda a questão do currículo e reproduzimos a mesma no quadro que segue:

20

(LEBEDEFF, 2006, p. 60).

21 (GIORDANI, 2003, p.123).

22 (GIORDANI, 2003, p.122-3).

23 Disponível na íntegra no site da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS) – www.feneis.com.br.

LETRAS LIBRAS|186

O CURRÍCULO DA ESCOLA DE SURDOS

69. Criar programas24 específicos para serem desenvolvidos antes da educação escolar da criança surda

visando à fluência em língua de sinais.

70. Utilizar a língua de sinais dentro do currículo como meio de comunicação.

71. Fazer da língua de sinais uma disciplina no currículo, envolvendo o ensino de sua morfologia, sintaxe, e

semântica.

72. Elaborar para as escolas de surdos, uma proposta pedagógica, orientada pela comunidade surda e por

equipe especializada em educação do surdo.

73. Reestruturar o currículo atendendo às especificidades da comunidade surda, incluindo no planejamento

curricular disciplinas que promovam o desenvolvimento do surdo e a construção de sua identidade.

74. Fazer com que a escola de surdos insira no currículo as manifestações da/s cultura/s surda/s: pintura,

escultura, poesia, narrativas de história, teatro, piadas, humor, cinema, história em quadrinhos, dança e

artes visuais, em sinais. A implantação de laboratórios de cultura surda se faz necessária.

75. Contar com a ajuda de professores e pesquisadores surdos na mudança do currículo, para o qual devem

ser consideradas inclusive as especificidades da comunidade surda, incluindo para os surdos os mesmos

conteúdos das escolas ouvintes.

76. Usar a comunicação visual para o ensino dos surdos em suas formas: línguas de sinais, escrita em sinais,

leitura e escrita do português. Considerar que existe toda uma problemática na aprendizagem do

português, que deve ser considerada como segunda língua.

77. Informar os surdos sobre educação profissional, propostas salariais e acesso à cursos profissionalizantes

e concursos.

78. Contra-indicar uso de livros e materiais didáticos que ofereçam imagens estereotipadas, responsáveis

por manter discriminações em relação aos surdos.

24

Grifos nossos.

LETRAS LIBRAS|187

79. Criar livros e histórias onde apareça o sujeito surdo sem presença de estereótipos.

80. Oferecer aos educandos surdos o conhecimento de tecnologia de apoio, ou seja: os aparelhos especiais

para uso de surdos, por exemplo, aparelhos TDD, TV com decodificador de legenda e equipamentos

luminosos para construções e trânsito.

81. Conhecer a história surda e seu patrimônio, os quais proporcionam o estabelecimento de sua

identidade surda.

Destacamos os seguintes pontos:

- A Língua de Sinais como meio de comunicação primordial na escola;

- A Libras como disciplina curricular com toda a sustentação linguística que o ensino de

uma língua exige;

- Uma proposta pedagógica que contemple a participação da comunidade surda;

- Um currículo que desvincule os surdos de identidades estereotipadas e que promova a

identificação com a cultura surda e a construção elos identitários entre os surdos;

- A cultura surda como elemento curricular, abrangendo todas as suas formas de

manifestação artística;

- Adequação do mesmo conteúdo trabalhado com os ouvintes;

Nesse elenco de características que definem a educação que os surdos gostariam de ter, o

currículo aparece marcadamente vinculado ao direito de ser surdo na escola e de aprender a

partir dessa condição primeira. Direito de ter acesso à cultura surda, à língua de sinais e aos

demais elementos que propiciam o fortalecimento das identidades que definem esses sujeitos

como pertencentes a uma comunidade específica e não como deficientes.

“Toda e qualquer proposta de escola de surdos, quando em operação, cria perfis aceitos

para um determinado grupo em um determinado tempo, considerando um conjunto de exigências

sociais, políticas e econômicas de diferentes grupos culturais” (LOPES, 2007b, p. 85). Mesmo

LETRAS LIBRAS|188

buscando a construção coletiva de um currículo, nada temos de garantia, que os surdos tenham

acesso ao que chamamos de currículo surdo.

Nada nos garante que a Libras não seja simplesmente um meio para se chegar a

uma normalização surda. Nada nos garante que conteúdos surdos não sejam

dados simplesmente porque os entendemos como sendo parte de uma lista de

conteúdos que devem ser dados para os alunos, até o final de cada período letivo,

independentemente da identificação que os alunos surdos fazem de tais

conteúdos com suas próprias histórias (LOPES, 2007b, p. 85).

Pensar em um currículo surdo é pensar que as diferenças surdas devem estar presentes na

luta pelo direito de se auto-representarem. É pensar que nesta disputa aqueles que estão

ocupando posições de destaque devido, talvez, a terem suas marcas decodificadas pelos ouvintes

que estão trabalhando e dirigindo a escola, dêem as cartas da representação.

Falar de currículo que contemple as diferenças não é o mesmo que dizer que a escola irá

contemplar todas as diferenças surdas, pois elas não são capturáveis ou definíveis em uma gama

de possibilidade. Um currículo que contemple as diferenças significa que ele possibilita desde o

início o aparecimento de diferenças silenciadas, mas que estão circulando no espaço da escola, o

que não é o mesmo que exaltá-las. Significa que a comunidade escolar, sabendo dos

silenciamentos, esteja atenta à leitura de outras manifestações culturais. Enfim, língua de sinais, a

luta e a necessidade de comunidade são marcas surdas que enunciam uma diferença que

necessita de movimento e de espaço para acontecer, daí a preocupação de alguns surdos com o

esmaecimento da luta pelas gerações mais novas e com o fechamento das escolas de surdos em

prol do estabelecimento da proclamada educação inclusiva.

Então, é possível um currículo surdo? Se entendermos ele em permanente reconstrução e

como espaço de embates onde se travam lutas com imposições externas às da comunidade e

internas (da comunidade), podemos dizer que sim, embora este nunca dará conta do que

chamamos metaforicamente de universo surdo.

O currículo surdo não pode ser entendido apenas no âmbito das práticas

cotidianas, de metodologias, de ter ou não ter domínio de um vocabulário em

língua de sinais; ele nem mesmo pode ser entendido como sendo uma inclusão

simplificada de conteúdos sobre a história surda, sobre a língua escrita dos

surdos, etc. Um currículo surdo exige que nós pensemos na nossa capacidade de

LETRAS LIBRAS|189

olhar para os surdos colocando-os em outras tramas, que não aquelas atreladas

às pedagogias corretivas (LOPES, 2007b, p. 86).

Partimos do “pressuposto de que um currículo ultrapassa a ideia de proposta curricular”

(LOPES, 2007b, p. 86), e é nesse ultrapassar que outras práticas podem ser desenvolvidas

descoladas do movimento de captura em uma identidade que abarca a surdez cultural como algo

definitivo. Para além de definirmos e legitimarmos um currículo “verdadeiramente” surdo,

entendemos ser mais produtivo pensar (permanentemente) em outras práticas pedagógicas que

possibilitem que a diferença surda continue produzindo diferentes formas de aprender, de ensinar

e de viver.

ATIVIDADE

O currículo desenvolvido em grande parte das nossas escolas tem como base um padrão de

normalidade centrado em uma cultura auditivo-oral, voltada a sujeitos ouvintes e falantes. E quando temos

em nossas escolas alunos surdos25? Como podemos pensar em um currículo que contemple a diferença

surda no contexto da educação inclusiva? Como estamos produzindo os alunos surdos nas nossas escolas?

Para responder essas perguntas leia o excerto da reportagem “Falar com as mãos” da Revista Nova

Escola na Edição 221/Abril 200926 e relacione com as discussões que foram propostas anteriormente.

25

Entendemos como surdo o sujeito que se identifica com os aspectos culturais que definem e conformam a comunidade surda,

que usa língua de sinais para comunicar-se e constrói sua percepção de mundo com base em uma experiência de vida visual. 26

Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/inclusao/educacao-especial/falar-maos-432193.shtml. Consulta em 28/04/11.

LETRAS LIBRAS|190

“Falar com as mãos”

Levar os surdos para a sala regular exige nova postura do professor, tato para lidar com o intérprete e, acredite,

muitas explicações orais

Cinthia Rodrigues ([email protected])

O VALOR DA FALA NAS AULAS COM SURDOS

A professora de Geografia Marilda Dutra, de São José, na Grande Florianópolis, aprendeu rápido que o

uso do quadro-negro precisa ser revisto. Acostumados com a comunicação oral, os alunos com deficiência

têm maiores dificuldade para ler. "Quando escrevo, é mais difícil perceber quem entendeu. Se explico, vejo

no rosto de todos (dos que escutam e não) se estão acompanhando. Desenho e gesticulo o quanto

precisa.".

Foto: Eduardo Lyra

A inclusão de crianças com deficiência auditiva sempre foi polêmica, mas recentemente ganhou um novo

rumo em nosso país. De acordo com a política do governo federal, elas não devem mais ficar segregados

nas escolas especiais e precisam estudar desde cedo em unidades comuns, com um intérprete que traduza

todas as aulas para a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e o contraturno preenchido por atividades

específicas para surdos. Problema resolvido? Nem de longe. Enquanto entidades do setor ainda denunciam

a falta de estrutura para a implementação das regras, os docentes já começam a receber parte dessa nova

clientela e estão criando formas próprias de trabalho - muitas com sucesso.

Não é uma tarefa fácil nem existe uma fórmula conceitualmente correta para lidar com a situação. Cada

caso é um caso. A professora de Geografia Marilda Dutra, da EE Nossa Senhora da Conceição, em São José,

LETRAS LIBRAS|191

na Grande Florianópolis, por exemplo, aprendeu uma lição curiosa logo nos primeiros dias de trabalho.

Para ensinar quem não ouve, ela tem de falar mais. A maior mudança foi deixar o giz em segundo plano.

Cada tipo de relevo, clima e vegetação precisava de fotografias, desenhos, gravuras e muitos exemplos

verbais. Em vez de simples mapas, o mundo passou a ser representado em bolas de isopor para facilitar a

compreensão dos meridianos.

Maria Inês Vieira, coordenadora do Programa de Acessibilidade da Divisão de Educação e Reabilitação dos

Distúrbios da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Derdic-PUC), explica o motivo

da necessidade de rever o uso do quadro-negro. "Mesmo que o surdo já saiba ler e escrever em português,

ele demorará mais para entender orientações por escrito", diz. A especialista ensina que o ouvinte entende

a sequência de palavras escritas porque tem uma cultura prévia oral. Já quem não ouve está sendo

apresentado ao português como um todo e não conhece a organização da língua. "Os conjuntos de

palavras podem não fazer sentido na maneira como ele aprendeu a pensar. É como traduzir apenas as

palavras de um texto em alemão ou chinês. Não é o suficiente para a compreensão do todo", diz.

Em Florianópolis, a professora de Matemática Silvana Maria Soster teve outra reação no início do ano

passado, quando foi informada pela direção da EM Luiz Cândido da Luz que uma de suas classes da 2ª fase

do ciclo 2 (equivalente ao 5º ano, mas já com um docente por disciplina) teria quatro alunos surdos. "Tomei

um susto. Nunca tinha passado por isso e pensei: será que posso?", conta. Para Roseli Baumel, educadora

livre-docente especializada em Educação Especial da Universidade de São Paulo (USP), esse tipo de dúvida

é natural. "Temos de ser honestos e admitir que não estamos prontos", orienta a especialista. [...]

LETRAS LIBRAS|192

UNIDADE IV

4. PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO

[...] o projeto pedagógico é caracterizado como ação consciente e organizada. O projeto deve

romper com o isolamento dos diferentes segmentos da instituição educativa e com a visão

burocrática, atribuindo-lhes a capacidade de problematizar e compreender as questões postas pela

prática pedagógica (VEIGA, 2003, p. 279).

Precisamos desalojar a ideia de que o projeto político-pedagógico é um documento escrito por um

grupo de técnicos da escola em seus gabinetes de trabalho para ser apresentado aos educadores

como regras a serem seguidas, ou para cumprir formalidades legais (CARVALHO, 2010, p. 106).

Selecionamos essas duas citações para iniciar essa sessão com a intenção de enfatizar que

o projeto político-pedagógico constitui o grande eixo que mobiliza a escola em todos os seus

desdobramentos curriculares, envolvendo todos os sujeitos que fazem parte do contexto escolar e

suas possibilidades de atuação. Inserir a discussão do projeto político-pedagógico nessa

perspectiva mais ampla, implica em entendê-lo não como um documento elaborado por alguns

para ficar guardado em uma gaveta da escola, mas como um documento elaborado por todos e de

uso comum, sendo peça fundamental para o professor embasar sua prática pedagógica.

Por se tratar de um documento que rege todo o funcionamento da escola, o projeto

político-pedagógico pode ser utilizado como um meio que permite potencializar o trabalho

colaborativo e o compromisso com objetivos comuns de toda a equipe diretiva e demais

componentes da comunidade escolar. Sua concretização pode exigir rupturas na organização do

trabalho desenvolvido, das práticas pedagógicas e do funcionamento da instituição escolar,

cabendo aos gestores a tarefa de consolidar o importante papel que o projeto político-pedagógico

ocupa como mobilizador da escola, partindo da sua estreita relação com o currículo escolar e seus

efeitos.

LETRAS LIBRAS|193

O projeto curricular de uma escola faz parte do seu projeto político-pedagógico,

entendido como um conjunto de decisões tomadas pela comunidade acadêmica,

nela incluídos os gestores, os professores e todo o pessoal de apoio

administrativo, além de representantes das famílias, da comunidade e do corpo

discente (CARVALHO, 2010, p. 106).

Veiga (2011) argumenta em favor de que podemos definir quatro dimensões fundamentais

do Projeto Político Pedagógico. A primeira dimensão diz respeito ao contexto das políticas

educacionais, que se traduzem em questões mais amplas, relacionadas à sociedade e cultura

contemporâneas nas quais a escola está inserida. A segunda dimensão relaciona-se à participação

da comunidade escolar no contexto da escola, e a importância da definição dos territórios de

intervenção de cada uma das instâncias dessa comunidade escolar (comunidade, família, equipe

gestora, professores, alunos). Uma terceira dimensão está relacionada aos desafios colocados à

escola através do currículo e da avaliação, que mobilizam as ações da escola e nos levam à quarta

dimensão, que se refere à construção das identidades dos sujeitos do processo educativo. Já

dissemos anteriormente que as escolhas curriculares que a escola assume implicam em formas de

subjetivação dos sujeitos interpelados por esse currículo. Dessa forma, concordamos com a autora

quando ela estabelece uma relação fundamental entre essas quatro dimensões do Processo

Político-Pedagógico, entendendo que todos esses elementos trabalham de forma articulada na

constituição dos sujeitos do processo educativo, pois o currículo é sempre resultado de uma

seleção, de uma escolha, que será decisiva no tipo de sujeito que formaremos e essas escolhas

curriculares se dão, na escola, nesse momento privilegiado de tomada de decisões que é o

momento coletivo de discussão e elaboração do Projeto Político- Pedagógico de uma instituição

educacional.

4.1. BASES LEGAIS

No que diz respeito às bases legais que orientam a construção do Projeto Político

Pedagógico das escolas hoje em sua relação com a produção do currículo dessa escola, temos um

LETRAS LIBRAS|194

importante documento balizador, que é a Resolução nº 4, de 13 de julho de 201027, do Conselho

Nacional de Educação, Câmara de Educação Básica.

Art. 1º A presente Resolução define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para

o conjunto orgânico, seqüencial e articulado das etapas e modalidades da

Educação Básica, baseando-se no direito de toda pessoa ao seu pleno

desenvolvimento, à preparação para o exercício da cidadania e à qualificação para

o trabalho, na vivência e convivência em ambiente educativo, e tendo como

fundamento a responsabilidade que o Estado brasileiro, a família e a sociedade

têm de garantir a democratização do acesso, a inclusão, a permanência e a

conclusão com sucesso das crianças, dos jovens e adultos na instituição

educacional, a aprendizagem para continuidade dos estudos e a extensão da

obrigatoriedade e da gratuidade da Educação Básica.(BRASIL, 2010, art.1º)

Como podemos perceber no excerto acima, essa resolução define as diretrizes curriculares

nacionais gerais para toda a educação básica, de forma que nela estejam explicitadas as

orientações legais para a construção do currículo das escolas, em todas as suas etapas desde a

Educação Infantil, passando pelo Ensino Fundamental ao Ensino Médio, e em todas as suas

modalidades, a saber, Ensino Regular, Educação de Jovens e Adultos, Educação Especial, Educação

Profissional e Técnológica, Educação do Campo, Educação Escolar Indígena e Educação a Distância.

Cada instituição educativa, ao elaborar seu projeto, deve levar em consideração o atravessamento

de cada uma das etapas com as quais trabalha e as diferentes modalidades de ensino em que se

insere, de acordo com as questões pertinentes à comunidade em que está inserida a escola e as

demandas que dela advém.

No referido documento, convém destacar ainda o Capítulo I, que trata das formas da

organização curricular. Temos aí uma concepção de currículo colocada para as escolas de todo o

país com o objetivo de se consolidar uma educação com referência a uma Sistema Nacional de

Educação. Nessa concepção, o currículo,

configura-se como o conjunto de valores e práticas que proporcionam a

produção, a socialização de significados no espaço social e contribuem

27

Resolução CNE/CEB 4/2010. Diário Oficial da União, Brasília, 14 de julho de 2010, Seção 1, p. 824. Também disponível em

http://www.ceepi.pro.br/Norma%20federal/2010%20Res%20CNE.CEB%2004-Diretrizes%20da%20EB.pdf. Acesso em 15 de abril de

2011. Ao longo do texto apresentamos alguns excertos que entendemos como importantes nesse momento, para a discussão

proposta, mas sugerimos a leitura do documento na íntegra.

LETRAS LIBRAS|195

intensamente para a construção de identidades socioculturais dos educandos. [...]

Na organização da proposta curricular, deve-se assegurar o entendimento de

currículo como experiências escolares que se desdobram em torno do

conhecimento, permeadas pelas relações sociais, articulando vivências e saberes

dos estudantes com os conhecimentos historicamente acumulados e contribuindo

para construir as identidades dos educandos. (BRASIL, 2010, art. 13)

PARA SABER MAIS

AS BASES LEGAIS: UMA BREVE REFERÊNCIA28

A LDB (Lei nº. 9394/96), em seu art.12, estabelece uma orientação legal de confiar à escola a

responsabilidade de elaborar, executar e avaliar seu projeto pedagógico. A legislação define também

normas de gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com suas peculiaridades e

conforme os seguintes princípios estabelecidos pelo art.14:

I. participação dos profissionais de educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;

II. participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares equivalentes.

Ao mesmo tempo a legislação definiu no art. 15 a seguinte diretriz: “Os sistemas de ensino assegurarão às

unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia

pedagógica, administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro

público”.

Os dois princípios definidos de gestão democrática de ensino público ratificam o Inciso VI do art. 206 da

Constituição Federal.

28

VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Projeto político-pedagógico, conselho escolar e conselho de classe: instrumentos da organização

do trabalho. Cadernos ANPAE. N° 4, 2007.

LETRAS LIBRAS|196

A participação dos professores e especialistas na elaboração do projeto pedagógico da escola e o

congraçamento funcionam como balizamento da dimensão utópica da gestão democrática no âmbito das

instituições públicas. Nesta perspectiva, as decisões centralizadas no diretor cedem lugar a um processo de

fortalecimento da função social da escola por meio de um trabalho coletivo entre todos os segmentos da

escola e destes com a comunidade.

Entre as prioridades propostas no Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei nº. 10172/2001, está a de

que as políticas públicas de educação devem "promover a participação da comunidade na gestão das

escolas, universalizando, em dois anos, a instituição de conselhos escolares em órgãos equivalentes (...)".

Como objetivo destaca "a descentralização da gestão educacional com o fortalecimento da autonomia da

escola, garantida a participação da sociedade na gestão da escola e da educação". (VEIGA, 2007, p. 1-2).

Apresentamos a seguir algumas características fundamentais do projeto político-

pedagógico (VEIGA, 2003), com a intenção de retomarmos as discussões que desenvolvemos até

então sobre currículo.

a) O projeto político-pedagógico é um movimento em prol da democratização da escola, que visa

orientar a reflexão e ação da mesma.

b) Está voltado para a inclusão a fim de atender a diversidade de alunos, sejam quais forem as

suas características de aprendizagem e de desenvolvimento.

c) É coletivo e integrador, devendo ser executado e avaliado com base na troca mútua,

cooperação, negociação e no direito das pessoas intervirem na tomada de decisões que

interferem diretamente na vida da instituição educativa, assim como, de comprometerem-se com

a ação.

d) O projeto político-pedagógico estabelece um vínculo muito estreito entre autonomia e gestão

democrática no funcionamento da escola.

e) “A legitimidade de um projeto político-pedagógico está estreitamente ligada ao grau e ao tipo

de participação de todos os envolvidos com o processo educativo, o que requer continuidade de

ações” (VEIGA, 2003, p. 275).

f) O projeto político-pedagógico configura coerência ao processo educativo, colocando foco no

trabalho pedagógico. Enfatiza não só questões metodológicas e técnicas, como também questões

mais amplas relacionadas ao contexto social no qual a instituição está inserida.

LETRAS LIBRAS|197

Mesmo correndo riscos de simplificar os entendimentos sobre projeto político-pedagógico,

o esquema abaixo o ilustra da seguinte forma:

Outra questão fundamental a ser discutida e fundamentada no projeto político-pedagógico

da escola é a questão da organização da escola a partir das atuais políticas de inclusão escolar.

Cada vez mais somos desafiados a construir uma escola para todos e isso significa, em termos

legais, organizar os processos escolares de forma que eles atendam às necessidades das

diferenças étnicas, das diferenças culturais, religiosas e também aos sujeitos da Educação Especial,

que é reiteradamente apresentada como:

PROJETO

POLÍTICO-

PEDAGÓGICO

É um movimento de luta em prol da democratização da

gestão escolar.

Tem na diferença, na inclusão, no

ensino e na aprendizagem seus

grandes eixos de articulação.

Configura unicidade,

coerência e intencionalidade ao

processo educativo.

Proposta curricular

como baliza para a organização pedagógica.

Sua legitimidade está ligada ao grau

de participação

dos envolvidos e da articulação da

gestão administrativa

Pauta-se no diálogo, e na cooperação.

LETRAS LIBRAS|198

A Educação Especial, como modalidade transversal a todos os níveis, etapas e

modalidades de ensino, é parte integrante da educação regular, devendo ser

prevista no projeto político-pedagógico da unidade escolar. [...] Os sistemas e as

escolas devem criar condições para que o professor da classe comum possa

explorar as potencialidades de todos os estudantes, adotando uma pedagogia

dialógica, interativa, interdisciplinar e inclusiva e, na interface, o professor do AEE

deve identificar habilidades e necessidades dos estudantes, organizar e orientar

sobre os serviços e recursos pedagógicos e de acessibilidade para a participação e

aprendizagem dos estudantes. (BRASIL, 2010, art. 29)

Dessa forma, para que seja possível tornar os processos escolares cada vez "mais

inclusivos", entendemos que seja fundamental que a escola se desafie a repensar práticas

historicamente construídas. Sabemos que a escola, em sua concepção, foi organizada para

atender a uma determinada parcela da população. Com a democratização do acesso ao espaço

escolar, novas demandas e outros desafios se colocam a essa instituição e com certeza, seus

processos não mais atendem as necessidades de todos os sujeitos que por ora dela fazem parte.

Dussel e Caruso nos convidam a refletir sobre a seguinte questão:

Muitas técnicas e palavras que utilizamos para nos referir ao que

acontece na sala de aula têm um passado, surgiram em situações

concretas como respostas a desafios ou problemas específicos, e que

provavelmente, quando as utilizamos hoje em dia, ainda trazem parte desses

significados. Compreender de onde surgem, de quais estratégias e problemas

fazem parte, como foram ou são utilizadas, e que efeitos causaram pode

ajudar-nos a avaliar essa carga e assumir nossa tarefa como uma reinvenção

própria das tradições que recebemos (2003, p. 17).

Concordamos com os autores que se faz necessário conhecer a história e compreender

com que objetivo determinados processos, determinadas práticas foram constituídas como

naturais na escola de modo que tenham se tornado praticamente inquestionáveis e de forma que

nos seja praticamente impossível imaginar a escola sem elas. No momento em que

compreendemos que essas práticas foram inventadas em um determinado tempo para atender a

determinadas demandas contingentes e datadas, é possível nos desafiarmos a reinventá-las,

LETRAS LIBRAS|199

buscando atender as contigências desse tempo histórico em que vivemos, em que os sujeitos se

constituem de outras formas e o contexto social não é mais o mesmo.

Nesse sentido, uma das primeiras discussões que se faz necessária diz respeito à

concepção pedagógica dessa escola, pois na base da construção do projeto político-pedagógico

estão as concepções, os princípios orientadores de todo o currículo da escola. Uma concepção

pedagógica alicerçada em princípios que dialoguem com as diferenças e as percebam como

potencialidades a partir das quais a escola possa se permitir mudar, se constitui em um primeiro

passo para a construção de processos inclusivos na escola regular. A partir dessa concepção

pedagógica com uma visão ampliada, as orientações curriculares devem ser pautadas por critérios

de flexibilidade e democratização do acesso ao conhecimento como um todo, entendendo-se que

todos os alunos possuem suas especificidades e diferenças. É um erro pensar que uma escola

inclusiva precisa rever suas concepções apenas para atender aos alunos considerados sujeitos da

Educação Especial. Se essa escola se coloca o desafio de atender a todos, é necessário que ela

possa, além de prever orientações curriculares mais flexíveis, repensar seus critérios de avaliação

e a forma como se dão as práticas avaliativas, para que possibilitem a inclusão de todos no

processo pedagógico.

Porem, é claro que há questões a serem consideradas que dizem respeito,

especificamente, aos sujeitos da Educação Especial e negar essas questões específicas, implicaria

em desconsiderarmos as necessidades próprias desses sujeitos.

Essas questões específicas dizem respeito a duas dimensões fundamentais. A primeira

delas diz respeito aos recursos materiais, como a acessibilidade arquitetônica e o acesso a

sistemas de comunicação e informação, equipamentos e transportes, sem os quais a inserção

desses alunos torna-se inviável do ponto de vista do acesso. A segunda dimensão trata dos

recursos didático-pedagógicos, como a disponibilidade de recursos humanos, da formação

continuada dos professores, adaptações curriculares e Atendimento Educacional Especializado

numa perspectiva de trabalho associado entre a sala de aula regular e o AEE, que se constituem

em condição fundamental para que o acesso possibilitado em um primeiro momento possa se

traduzir na inclusão desses sujeitos no processo-pedagógico. Isso significa que a inclusão deve

estar para além do simples acesso à sala de aula na escola regular. O processo de inclusão está

para além de simplesmente fazer parte de um grupo; o processo de inclusão pressupõe

participação efetiva nas construções desse grupo, incluindo-se aí as questões de socialização e de

LETRAS LIBRAS|200

aprendizagem, foco do trabalho pedagógico da escola. Vale aqui uma ressalva, pois é importante

dizer que não entendemos a inclusão como uma estado permanente, ideal. A inclusão é um

processo constituído de ambivalências, de desencaixes, de tensão permanente entre as

diferenças. Entendemos, também, que os sujeitos vivenciam permanentemente processos de

in/exclusão, não mais definidos por fronteiras físicas que determinavam o dentro e o fora, mas,

sim, por processos relacionais e subjetivos. A inclusão e a exclusão operam de forma imanente, ou

seja, uma determina as condições da outra. Tal determinação se dá a tal ponto que a inclusão não

existe sem seu outra a exclusão, por isso a grafia in/exclusão. e eles fazem parte do cotidiano de

todos nessa sociedade contemporânea. De acordo com Lopes, Lockmann, Hattge e Klaus

torna-se difícil utilizar, em nossas análises, a caracterização de incluído e de

excluído de forma separada, pois qualquer sujeito, dentro "de seu nível de

participação" poderá, a todo o momento, estar incluído ou ser excluído de

determinadas práticas, ações, espaços e políticas. (2010,p. 5-6)

Pensando na escola regular e em sua organização, podemos dizer que os alunos vivenciam

permanentemente esses processos de in/exclusão, mas a consideração dessa ambivalência

própria da inclusão escolar não pode significar uma inclusão que exclui. Se não garantirmos aos

sujeitos as condições mínimas para sua inserção na escola, conforme as dimensões que

apontamos anteriormente, corremos o risco de estarmos impondo a esses alunos uma

"inexclusão" em que cada aluno representa apenas “mais um” na sala de aula. Sua presença

restringe-se a “ocupar um espaço” que não foi pensado para ele, do qual ele não se sente fazendo

parte, pois lhe é muito difícil “dar conta” das demandas colocadas por essa escola moderna que

institui uma zona de normalidade (ainda restrita) na qual todos os sujeitos devem transitar. Para

aqueles que não conseguem permanecer dentro dessa zona, resta ocupar uma classe na sala de

aula e acumular fracassos, frustrações, experiências de não-aprendizagem, de não-socialização, de

“não-tantas coisas”. Lopes (2004) alerta para o fato de que estar incluído fisicamente na escola

regular ou estar citado no projeto político-pedagógico da escola, não garante a qualidade de

participação, nem tampouco que os processos de ensino e de aprendizagem se estabeleçam para

todos.

Feita essa ressalva queremos reiterar nosso argumento de que a escola, a partir da revisão

de suas concepções pedagógicas e da reorganização de seus processos, pode construir práticas

LETRAS LIBRAS|201

inclusivas em que a ambivalência e a tensão, essas geradas inevitavelmente no convívio social e

cultural, não serão descartadas da escola e do currículo, mas, sim, potencializadas como

elementos integradores do trabalho pedagógico.

ATIVIDADE

Selecionamos três das questões essenciais sobre projeto político-pedagógico elencadas em uma

reportagem29 da Revista Nova Escola. Leia o excerto da reportagem que segue e realize uma análise do

projeto político-pedagógico da sua escola.

______________________________________________________________________

É papel do diretor gerir a equipe na condução do famoso PPP. Veja aqui respostas para as dúvidas

frequentes nesse processo

Desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996, toda escola precisa

ter um projeto político pedagógico (o PPP, ou simplesmente projeto pedagógico). Esse documento deve

explicitar as características que gestores, professores, funcionários, pais e alunos pretendem construir na

unidade e qual formação querem para quem ali estuda. Tudo preto no branco. Elaborar um plano pode

ajudar a equipe escolar e a comunidade a enxergar como transformar sua realidade cotidiana em algo

melhor. A outra possibilidade - que costuma ser bem mais comum do que o desejado - é que sua

elaboração não signifique nada além de um papel guardado na gaveta.

Se bem formatado, porém, o próprio processo de construção do documento gera mudanças no modo de

agir. Quando todos enxergam de forma clara qual é o foco de trabalho da instituição e participam de seu

processo de determinação, viram verdadeiros parceiros da gestão. O processo de elaboração e implantação

do projeto pedagógico é complexo e dúvidas sempre aparecem no caminho. A seguir, respondemos às oito

perguntas mais comuns nesse percurso.

Em que contexto histórico surgiu o projeto pedagógico?

Na década de 1980, o mundo mergulhou numa crise de organização institucional, quando se passou a

questionar o modelo de Estado intervencionista - que determinava o funcionamento de todos os órgãos

públicos, inclusive a escola. Nesse contexto internacional, o Brasil vivia o movimento de democratização,

29

“8 questões essenciais sobre projeto político-pedagógico”. Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/gestao-

escolar/diretor/questoes-essenciais-projeto-pedagogico-427805.shtml. Consulta em 20/05/11.

LETRAS LIBRAS|202

após um longo período de ditadura. A centralização e a planificação típicas do governo militar passaram a

ser criticadas e, na elaboração da Constituição de 1988, o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (que

congregava entidades sindicais, acadêmicas e da sociedade civil) foi um dos grandes batalhadores pela

"gestão democrática do ensino público", um conceito que pretendia oferecer uma alternativa ao

planejamento centralizador estatal. Outro aspecto importante é que nessa mesma época a escola brasileira

passou a incluir em seus bancos populações antes excluídas do sistema público de ensino. Ela ficou, assim,

mais diversa e teve de adequar suas práticas à nova realidade. A instituição de um projeto pedagógico

surgiu como um importante instrumento para fazer isso.

2. Qual é a relação do global e do local com o plano?

No modelo vigente durante a ditadura, o que era permitido aos professores ensinar (e aos alunos

aprender) ao longo do processo de escolarização era decidido quase exclusivamente pelo governo militar.

A Educação era toda organizada com base em determinações do poder central. Assim, os conteúdos eram

tratados de maneira hegemônica e as instâncias locais (ou seja, as próprias escolas) ficavam numa posição

de "passividade" diante dessas imposições. Com a instituição do projeto pedagógico, na Constituição de

1988, a realidade local passou a funcionar como "chave de entrada" para a abordagem de temas e

conteúdos propostos no currículo - justamente por serem relevantes na atualidade. O plano, por outro

lado, deve prever que a escola conecte seus alunos com as discussões globais, re-encontrando sua

importância cultural na comunidade.

3. O que o bom projeto pedagógico deve conter?

Alguns aspectos básicos devem estar presentes na elaboração do projeto pedagógico de qualquer escola.

Antes de mais nada, é preciso que todos conheçam bem a realidade da comunidade em que se inserem

para, em seguida, estabelecer o plano de intenções - um pano de fundo para o desenvolvimento da

proposta. Na prática, a comunidade escolar deve começar respondendo à seguinte questão: por que e para

que existe esse espaço educativo? Uma vez que isso esteja claro para todos, é preciso olhar para os outros

três braços do projeto. São eles:

- A proposta curricular - Estabelecer o que e como se ensina, as formas de avaliação da aprendizagem, a

organização do tempo e o uso do espaço na escola, entre outros pontos.

- A formação dos professores - A maneira como a equipe vai se organizar para cumprir as necessidades

originadas pelas intenções educativas.

- A gestão administrativa - Que tem como função principal viabilizar o que for necessário para que os

demais pontos funcionem dentro da construção da "escola que se quer".

LETRAS LIBRAS|203

Assim, é importante que o projeto preveja aspectos relativos aos valores que se deseja instituir na escola,

ao currículo e à organização, relacionando o que se propõe na teoria com a forma de fazê-lo na prática -

sem esquecer, é claro, de prever os prazos para tal. Além disso, um mecanismo de avaliação de processos

tem de ser criado, revendo as estratégias estabelecidas para uma eventual re-elaboração de metas e ideais.

Indo além, o projeto tem como desafio transformar o papel da escola na comunidade. Em vez de só

atender às demandas da população - sejam elas atitudinais ou conteudistas - e aos preceitos e às metas de

aprendizagem colocados pelo governo, ela passa a sugerir aos alunos uma maneira de "ler" o mundo.

PARA SABER MAIS

Inclusão: (im)possibilidades para a educação30

Penso que tomar a inclusão como um assunto em pauta no cotidiano escolar, por um lado, parece

apontar uma possibilidade para que finalmente se construa uma escola para todos. Já por outro lado, essa

ampliação da discussão sobre inclusão tem provocado o uso descuidado do termo, resultando no seu

enfraquecimento, na sua banalização e também na perda de sua força política. Dessa forma, reduzir o

processo de inclusão a uma escola que atenda a todos é trabalhar com a ideia de que a socialização

daqueles considerados como "alunos de inclusão" é suficiente. Essa redução do processo de inclusão à

socialização consiste em uma negação da igualdade de direitos, de permanência e, principalmente, de

aprendizagem aos sujeitos da educação.

Juntamente com a redução da educação desses sujeitos à socialização, a banalização de conceitos

como diferença, igualdade, (a)normalidade, etc. vem provocando - na minha opinião- um

enfraquecimento do processo de inclusão. Isso tem feito com que "incluir" aconteça apenas pelo fato de

haver uma legislação que a sustente, descuidando-se da aprendizagem dos sujeitos. A inclusão reduzida

apenas à possibilidade de acesso de todos à escola regular acaba transformando a educação em uma

educação de "faz de conta", em que as condições de permanência e aprendizagem têm passado

despercebidas. (ACORSI, 2010, p. 178)

30

ACORSI, Roberta. Inclusão: (im)possibilidades para a educação. In: LOPES, Maura Corcini; FABRIS, Elí Henn (orgs.). Aprendizagem

e Inclusão: implicações curriculares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010.

LETRAS LIBRAS|204

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