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CURSO DE DIREITO DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE EM HOMICÍDIOS DECORRENTES DE ACIDENTES DE TRÂNSITO ANA REGINA CAMPOS DE SICA R.A: 456077/5 TURMA: 3109-A FONE: (11) 3666-0447 E-MAIL: [email protected] SÃO PAULO 2006 8

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CURSO DE DIREITO

DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE EM HOMICÍDIOS DECORRENTES DE ACIDENTES DE TRÂNSITO

ANA REGINA CAMPOS DE SICA

R.A: 456077/5

TURMA: 3109-A

FONE: (11) 3666-0447

E-MAIL: [email protected]

SÃO PAULO

2006

8

ANA REGINA CAMPOS DE SICA

DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE EM HOMICÍDIOS DECORRENTES DE

ACIDENTES DE TRÂNSITO

Monografia apresentada à Banca Examinadora do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas, como exigência parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito, sob a orientação do Professor Dr. Ivan Carlos de Araújo.

SÃO PAULO

2006

9

BANCA EXAMINADORA:

........................................................................................ Professor-Orientador: Dr. Ivan Carlos de Araújo

.........................................................................................

Professor-Argüidor: ___________________________

.........................................................................................

Professor-Argüidor: ___________________________

10

Dedico este trabalho para:

Virgem Santa e Imaculada, a quem tudo devo e,

à minha mãe Lúcia, a quem por tudo agradeço.

11

Agradeço a todos que, direta ou indiretamente,

influenciaram no meu desenvolvimento intelectual.

Agradeço principalmente ao Professor Ivan Carlos

de Araújo, de quem adquirí não só a paixão

incessante pelo Direito Penal, mas também uma

especial percepção: a de que ele é e sempre será

meu Mestre e eu, consequentemente, sua eterna

aprendiz.

Agradeço ainda, a todos os meus amigos,

especialmente à Ana Carolina Minutti, Andreza

Sangregório, Alexandra Pacanaro, Christiany Conte

e Fátima Belluzzo; as quais, com a gratuidade

peculiar a toda e qualquer amizade, tiveram

participação decisiva no aperfeiçoamento deste

trabalho.

12

SINOPSE

Dentre as diversas espécies de dolo e culpa, nenhuma causa tanta

curiosidade quanto a distinção doutrinária de dolo eventual e culpa consciente, tendo

em vista a sensível disparidade conceitual que existe entre tais institutos.

No plano teórico esta distinção, embora vaga, é de fácil compreensão. O

problema surge quando ela, na prática, é aplicada. Isso porque, os meios utilizados

para constatar a presença ou não do elemento subjetivo do crime sofrem grandes

mutações, variando sempre de acordo com o posicionamento adotado pelos sujeitos

processuais envolvidos.

Assim, para o mesmo fato, surgem várias interpretações. No que se refere,

especificamente, aos crimes de trânsito isto se torna claramente visível.

Logo, se o indivíduo participa de competição não autorizada em via pública e,

em função disso, provoca um acidente com vítima fatal; tem-se a possibilidade de

configuração de dois entendimentos (que, antes da Lei 11.275/2006, também

surgiam no caso de homicídio resultante de embriaguez ao volante):

1º. O agente agiu com dolo eventual em relação ao evento morte, pois a

gravidade de sua conduta inicial evidencia sua total indiferença ao resultado mais

grave.

2º. O agente agiu sob o domínio de culpa consciente, pois em regra, o crime

de homicídio nessas circunstâncias é culposo, caracterizando-se pela grande

imprudência do agente, mas não necessariamente pela sua indiferença.

Portanto, este trabalho aborda diversos conceitos e, cada uma dessas

correntes terminando por incidir em um posicionamento que reflete mais o conteúdo

probatório dos fatos do que a mera aplicação de abstrações.

13

SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO .........................................................................................................8

II. DOLO ....................................................................................................................10

2.1. ASPECTOS GERAIS......................................................................................19

2.2. ELEMENTOS..................................................................................................21

2.3. ESPÉCIES......................................................................................................22

2.3.1. Dolo Natural ou Dolus Bonus e Dolo Normativo ou Dolus Malus .............22

2.3.2. Dolo Direto ou Determinado ou Imediato .................................................24

2.3.3. Dolo Indireto ou Indeterminado ou Mediato .............................................25

2.3.4. Dolo Genérico ..........................................................................................28

2.3.5. Dolo específico.........................................................................................28

2.3.6. Dolo Geral ou Erro Sucessivo ..................................................................29

2.3.7. Dolo de Propósito ou Refletido e Dolo Íntimo ou Repentino ....................29

2.3.8. Dolo de Dano ou Lesão e Dolo de Perigo ................................................30

III. CULPA .................................................................................................................32

3.1 ESTRUTURA...................................................................................................32

3.2. ELEMENTOS..................................................................................................34

3.2.1. Conduta inicial voluntária .........................................................................34

3.2.2. Inobservância do dever objetivo de cuidado ............................................34

3.2.3. Resultado involuntário..............................................................................36

3.2.4. Nexo causal entre a conduta e o resultado ..............................................37

3.2.5. Nexo normativo ........................................................................................37

3.2.6. Previsibilidade do resultado .....................................................................38

3.2.7. Tipicidade.................................................................................................39

3.3. ESPÉCIES......................................................................................................40

3.3.1. Culpa Inconsciente ou Comum ................................................................40

3.3.2. Culpa Consciente .....................................................................................41

3.3.3. Culpa Própria ...........................................................................................41

3.3.4. Culpa Imprópria ou Culpa por Extensão, Assimilação ou Equiparação ...41

3.3.5. Culpa Mediata ou Indireta ........................................................................43

3.3.6. Culpa Concorrente ...................................................................................44

14

3.3.7. Culpa recíproca........................................................................................44

IV. CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO (CTB) ....................................................46

4.1. ASPÉCTOS GERAIS......................................................................................47

4.1.1. Veículo Automotor....................................................................................47

4.1.2. Via Pública ...............................................................................................48

4.2. HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR............49

4.2.1. Aspectos Gerais .......................................................................................49

4.2.2. Causas de aumento de pena ...................................................................52

4.4. PARTICIPAÇÃO EM COMPETIÇÃO NÃO AUTORIZADA.............................57

4.4.1. Aspectos Gerais .......................................................................................57

V. DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE .......................................................62

5.1. DISTINÇÃO ....................................................................................................62

5.2. AFINAL, DOLO EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE?..............................66

VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................75

VII. ANEXO ...............................................................................................................70

VIII. BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................79

15

16

I. INTRODUÇÃO

Por meio do presente estudo, foi feita uma análise objetiva dos elementos

subjetivo e normativo inerentes a todo e qualquer crime, sem ignorar as divergências

doutrinárias incidentes.

Considerando que o objeto central dessa pesquisa é a análise da culpa e do

dolo em crimes de trânsito, foi também feita a abordagem de dois delitos tipificados

na Lei nº. 9503/1997; atual Código de Trânsito Brasileiro. São eles: homicídio

culposo (art.302) e participação em disputa não autorizada (art.308).

A escolha desses dispositivos para a realização de uma abordagem

específica não foi feita por acaso. Ao contrário, baseou-se na maior controvérsia que

existe acerca do reconhecimento da culpa consciente, em contraposição ao dolo

eventual, em caso de homicídio decorrente da conduta do agente que participa de

competição não autorizada em via pública.

Assim, por meio de levantamentos na doutrina e na jurisprudência, pretendeu-

se avaliar a configuração desses elementos (dolo eventual e culpa consciente) em

homicídios decorrentes de acidentes de veículos, tendo em vista que os

administradores da Justiça vêm dispondo de tratamentos diferenciados para delitos

cometidos nas mesmas circunstâncias.

A importância desse trabalho é evidenciada por duas tendências antagônicas.

Uma delas consiste na configuração presumida do dolo eventual sempre que o

acidente de trânsito resultante em vítima fatal ocorrer em virtude de competição não

autorizada. Assim, o acusado é encaminhado a julgamento pelo Tribunal do Júri por

entender-se que ele assumiu o risco de produzir um resultado mais grave ao

executar sua conduta.

17

Logo, a abstração do elemento subjetivo do delito (de homicídio) é feita de

acordo com a conduta anterior ao resultado morte, como se o dolo presente no crime

de participação em disputa não autorizada persistisse no momento de ocorrência do

homicídio.

O outro entendimento, ao contrário, pretende que o agente seja punido a título

de culpa (consciente), pois se considera que, em regra, ninguém ao incidir no crime

em questão, o faz consentindo na ocorrência do possível evento morte.

Portanto, para essa corrente, a superveniência de uma fatalidade configura a

grande imprudência do agente que peca por confiar demais nas próprias habilidades,

ultrapassando os limites do risco tolerado.

Apesar da identidade circunstancial de crimes, tais inclinações dão ensejo a

diferenciados julgamentos. Logo o principal fundamento da presente pesquisa é a

injustiça que esses posicionamentos podem causar quando objetivamente aplicados.

Por fim, em razão desse embate entre os que defendem o dolo presumido e

os que consideram mais adequada a punição a título de culpa, buscou-se esclarecer

os argumentos sustentados por cada um deles, tentando atingir a conclusão mais

condizente possível com o ideal de justiça.

18

II. DOLO

O jurista Antonio Rosa analisa bem a evolução histórica do conceito de dolo:

(...) a palavra “dolo”, significa, em suas origens gregas, “engano”,

“artifício”, “fraude”. O Direito Germânico, a partir da Idade Média,

passou a tomá-lo na acepção de “ato voluntário”. Nos tempos

modernos, o dolo é, geralmente, definido como a vontade de um

responsável, dirigida a uma ilicitude. 1

De acordo com o que dispõe o doutrinador Damásio Evangelista de Jesus, o

dolo constitui elemento subjetivo do tipo (implícito) 2 , pois é ele que direciona a

conduta para um tipo penal ou outro.

Sob uma terceira ótica, tem-se ainda que quanto ao elemento volitivo, o dolo

é a vontade de realização da conduta típica. 3 Tal vontade deve atingir todos os

elementos constitutivos do tipo; sejam eles objetivos ou normativos.

2.1. ASPECTOS GERAIS

Na tentativa de definir o dolo, surgiram três teorias principais:

- Teoria da Representação – entendimento segundo o qual basta que o

indivíduo tenha representado o evento para que o dolo se configure. Neste sentido,

o doutrinador Flávio Augusto Monteiro de Barros esclarece:

1 ROSA, Antonio José Miguel Feu. Direito Penal – Parte Geral, p.314. 2 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal Anotado, p.69. 3 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal-Parte Geral, p.221.

19

De acordo com a teoria da representação, para a configuração

do dolo basta a previsão do resultado. Privilegia-se o momento

intelectual, de ter agido com previsão do evento, deixando de lado o

aspecto volitivo, de querer ou assumir ou risco de produzí-lo. 4

- Teoria da Vontade – o citado autor explica ainda que, para essa teoria, o

dolo apenas subsistirá quando o agente, além de antever o resultado, almejar que

este ocorra reconhecendo assim, o nexo causal entre sua conduta e o evento que

ela ensejará 5. E o Professor Damásio E. de Jesus acrescenta que é preciso que o

agente tenha a representação do fato (consciência do fato) e a vontade de causar o

resultado. 6

- Teoria do Consentimento, Assentimento ou Anuência – ainda que o agente

não deseje diretamente a ocorrência do evento típico, haverá o dolo quando ele

aceitar que ele ocorra. É o que explica o jurista Júlio Fabrini Mirabete:

Para a teoria do assentimento faz parte do dolo a previsão do

resultado a que o agente adere, não sendo necessário que ele o

queira. Para a teoria em apreço, portanto, existe dolo simplesmente

quando o agente consente em causar o resultado ao praticar a

conduta. 7

Ao se analisar o texto do Código Penal Pátrio, fácil é perceber que, no art.18,

inciso I – primeira parte tem-se a codificação da Teoria da Vontade enquanto que na

segunda parte do mesmo dispositivo, prevalece a Teoria do Consentimento. Logo, a

Teoria da Representação não possui respaldo legal. 8

4 Ibid., p.218. 5 Ibidem. 6 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal Anotado, p.288. 7 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral, p.139. 8 Art. 18 do Código Penal Brasileiro: Diz-se o crime: Crime doloso I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.

20

De acordo com o Promotor Fernando Capez a conduta dolosa do agente se

configura em duas fases distintas:

a) fase interna: opera-se no pensamento do autor. Caso não

passe disso, é penalmente indiferente. Isso ocorre nas hipóteses em

que o agente apenas se propõe a um fim (...); em que tão somente

seleciona os meios para realizar a finalidade (...); em que se

considera os efeitos concomitantes que se unem ao fim pretendido

(...).

b) fase externa: consiste em exteriorizar a conduta, numa

atividade em que se utilizam os meios selecionados conforme a

normal e usual capacidade humana de previsão. Caso o sujeito

pratique a conduta nessas condições, age com dolo (...). 9

O juiz Flávio A. M. de Barros alerta que apesar de o art.18 do Código Penal

referir-se ao dolo como sendo a intenção de dar causa ao resultado, tal elemento

subjetivo está presente não só em crimes formais e materiais, mas também em

crimes de mera conduta. 10

2.2. ELEMENTOS

Por todo o exposto, de acordo com o jurista Mirabete, são elementos do dolo

(natural):

São elementos do dolo, portanto, a consciência (conhecimento

do fato – que constitui a ação típica) e a vontade (elemento volitivo

de realizar esse fato). A consciência do autor deve referir-se a todos

os elementos do tipo, prevendo ele os dados essenciais dos

9 FERNANDO, Capez. Curso de Direito Penal – Parte Geral, p.153. 10 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Op. Cit., p.217.

21

elementos típicos futuros em especial o resultado e o processo

causal. A vontade consiste em resolver executar a ação típica (...). 11

O Professor Heleno Cláudio Fragoso acrescenta ainda como elemento o nexo

causal entre conduta e resultado: nos crimes materiais (...) é indispensável

estabelecer a relação da causalidade entre a ação e o resultado. Tal evento, em tais

casos, integra a descrição da conduta proibida e dele depende a tipicidade. 12

Para os que consideram que o dolo é normativo (adeptos da Teoria

Normativa), além dos elementos já expostos, é preciso ainda, para que o dolo se

configure, que o agente tenha a potencial consciência da ilicitude do fato. Ou seja, o

indivíduo precisa ter a possibilidade de conhecer o caráter imoral do fato típico.

Não basta que o autor represente e deseje o evento, diz o Professor Paulo

José da Costa Jr., será ademais necessária a consciência do injusto. Vale dizer, o

agente deverá saber que está a praticar algo de errado, pelo qual poderá ser

censurado (...) 13.

2.3. ESPÉCIES

2.3.1. Dolo Natural ou Dolus Bonus e Dolo Normativo ou Dolus Malus

De acordo com a projeção histórica relatada por Heleno Cláudio Fragoso14 e

Francisco de Assis Toledo15, a diferença entre essas espécies está intimamente

ligada a dois entendimentos doutrinários que tentam abordar o conceito de crime.

11 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op.Cit., p.140. 12 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal – Parte Geral, p.200. 13 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal, p.69. 14 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op.Cit., p.179. 15 Ibid., p.93.

22

A Concepção Psicológica, também chamada Teoria Naturalística ou Causal,

sob influência da Concepção Normativa, consagrou o dolo normativo.

Já a Concepção Normativa Pura ou Teoria Finalista, ainda de acordo com os

referidos autores, adotou o dolo natural tendo por respaldo o texto do Código Penal

após a grande reforma feita pela Lei nº. 7.209/84 à Parte Geral; o qual dispõe nos

seguintes termos: diz-se o crime doloso quando o agente quis o resultado ou

assumiu o risco de produzí-lo.(art. 18, I do C.P.).

Ao interpretar este dispositivo, Magalhães Noronha esclarece:

Tem-se objetado que nossa lei não inclui o elemento

normativo no conceito de dolo. Aponta-se para isso, o art.18, I, e

alega-se que, quando o Código exige o conhecimento da

antijuridicidade, di-lo expressamente com as expressões:

“indevidamente”, “ilicitamente”, “sem justa causa” etc. 16.

Assim, de acordo com esse entendimento, a normatividade (como sendo a

potencial consciência da ilicitude), continua integrando a culpabilidade, mas de modo

desvinculado do dolo. Isso significa que, de acordo com o que dispõe o próprio

Código Penal (art.21, caput), o desconhecimento da ilicitude do fato nunca exclui o

dolo posto que, tal consciência é elementar da culpabilidade e não do elemento

subjetivo do tipo.

Em contraposição a esta corrente, tem-se a Teoria Naturalista (ou Causal),

segundo a qual, crime é todo fato típico, antijurídico e culpável. O Promotor

Fernando Capez, embora seja finalista, conceitua o dolo normativo de modo singular:

16 NORONHA, Magalhães. Direito Penal – Introdução e Parte Geral, p.137.

23

Dolo normativo (...) é considerado requisito da culpabilidade

e possui três elementos: a consciência, a vontade e a consciência

da ilicitude. Por essa razão, para que haja dolo, não basta que o

agente queira realizar a conduta, sendo também necessário que

tenha a consciência de que ela é ilícita, injusta, errada. Como se

nota, acresceu-se um elemento normativo ao dolo, que depende de

um juízo de valor, ou seja, a consciência da ilicitude. Só há dolo

quando, além da consciência e da vontade de praticar a conduta, o

agente tenha a consciência de que está cometendo algo censurável. 17

2.3.2. Dolo Direto ou Determinado ou Imediato

Nele o agente deseja produzir determinado evento. A esse respeito, o jurista

Luiz Régis Prado anota que a vontade se dirige à realização do fato típico, querido

pelo autor (teoria da vontade – art.18, I, CP). 18

É o caso, por exemplo, do indivíduo que conduz seu veículo com a intenção

de participar de competição não autorizada.

O Professor Heleno Cláudio Fragoso explica que, ainda que o resultado não

seja primariamente desejado pelo agente, sendo certa a ocorrência do evento,

haverá dolo direto (de segundo grau):

Há dolo direto também em relação ao meio e ao resultado que

necessariamente estão ligados à realização da conduta típica,

mesmo que não sejam desejados pelo agente. Se este sabe que a

ação necessariamente acarreta resultado concomitante, e não

17 FERNANDO, Capez. Curso de Direito Penal – Parte Geral, p.155. 18 BITENCOURT, César Roberto. PRADO, Luiz Régis. Código Penal Anotado, p.198.

24

obstante a pratica, quer, por certo, também esse resultado, embora

o lamente. 19

2.3.3. Dolo Indireto ou Indeterminado ou Mediato

De acordo com Magalhães Noronha, o dolo é indireto quando, apesar de

querer o resultado, a vontade não se manifesta de modo único e seguro em direção

a ele, ao contrário do que sucede na espécie anterior. 20

Portanto, trata-se de um dolo de conteúdo impreciso, pois não há desígnio de

evento específico. Em virtude dessa imprecisão, tem-se a subclassificação dessa

espécie de dolo nas seguintes modalidades:

а) Dolo Alternativo

Caso em que o agente tem por intuito produzir um ou outro resultado,

satisfazendo-se com a ocorrência de qualquer deles. Neste sentido, Paulo José da

Costa Jr. conceitua: no dolo alternativo o agente quer indiferentemente, um evento

ou outro (matar ou ferir). Representa com probabilidade o resultado (na

representação do dolo direto, tem a certeza da realização do evento). 21

Assim, o dolo alternativo estará configurado sempre que o agente quiser

produzir “um” resultado e não “o” resultado. 22

b) Dolo Eventual

19 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. Cit., p.211. 20 NORONHA, Magalhães. Op. Cit., p.138. 21 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Op. Cit., p.74. 22 FERNANDO, Capez. Op. Cit., p.156.

25

Torna-se presente quando, inicialmente, o agente não quer o evento delitivo,

mas assume o risco de produzí-lo no momento em que, prevendo a possibilidade de

ocorrência daquele, se mantém indiferente. Logo, esclarece Aníbal Bruno no

seguinte sentido:

(...) no dolo eventual a vontade do agente não se dirige

propriamente ao resultado, mas apenas ao ato inicial, que nem

sempre é ilícito, e o resultado não é representado como certo, mas

como possível. Mas o agente prefere que ele ocorra, a desistir da

conduta. 23

Observe que, de acordo com o referido autor, no dolo eventual a anuência do

agente refere-se sempre a um resultado incerto. É o que esclarece o advogado

Cornélio José Holanda:

(...) se o agente tem como certo o resultado, e mesmo assim

age, atuará (...) não com dolo eventual, que requer para sua

configuração, a anuência para um resultado provável, e não a um

resultado induvidoso. Neste, estará presente sempre um

componente de azar, pois a consumação danosa, apesar de

possível ou provável, poderá não ocorrer. 24

Seguindo o mesmo raciocínio, o jurista Luiz Régis Prado complementa que no

dolo eventual o agente não quer diretamente a realização do tipo objetivo, mas a

aceita como provável ou possível – assume o risco de produção do resultado (teoria

do consentimento – art.18, I, in fine, CP). 25

23 BRUNO, Aníbal. Direito Penal-Parte Geral, p.73. 24 HOLANDA, Cornélio José. O dolo eventual nos crimes de trânsito. (Obtido em 30 de março de 2005). Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5263. 25 BITENCOURT, César Roberto. PRADO, Luiz Régis. Código Penal Anotado, p.198.

26

A doutrina analisa ainda, o real significado do termo “assumir o risco de

produzir o resultado”, que está expresso no art.18, I – parte final do CP. A esse

respeito Celso Delmanto explica que no dolo eventual não é suficiente que o agente

se tenha conduzido de maneira a assumir o resultado; exige-se mais, que ele haja

consentindo no resultado. 26

Por fim, Magalhães Noronha faz uma interessante distinção: (...)

sinteticamente, costuma estremar-se o dolo direto do eventual, dizendo-se que o

primeiro é a vontade por causa do resultado; o outro, é a vontade apesar do

resultado. 27

c) Dolo Cumulativo

Para Paulo José da Costa Jr. o dolo indireto pode ainda manifestar-se por

meio do que ele denomina dolo cumulativo. E ele explica: no dolo cumulativo o

agente pretende a realização de dois resultados (matar e ferir), tendo igualmente a

certeza de obter o que tenciona. 28

Em outras palavras, o indivíduo tem por intuito obter dois ou mais eventos

típicos distintos cumulativamente, ou seja, ele direciona sua conduta de modo a

produzir mais de um resultado lesivo; desejando cada um deles.

Prevalece, no entanto, o entendimento de que tal situação caracteriza o dolo

direto em relação a cada resultado pretendido. Neste sentido, o advogado Cornélio

de Holanda posicionou-se: (...) entendemos que, mesmo sendo múltiplos os

26 DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado, p.30. 27 NORONHA, Magalhães. Op. Cit., p.139. 28 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Op. Cit., p.74.

27

objetivos, se o agente procede à realização da conduta necessária aos resultados

visados, existe dolo direto. 29

2.3.4. Dolo Genérico

Caso em que o agente realiza uma conduta típica sendo que, sua motivação

ou finalidade é irrelevante para configuração do crime. Assim, de acordo com as

lições de Fernando Capez, tem-se:

Dolo genérico: vontade de realizar a conduta sem um fim

especial, ou seja, a mera vontade de praticar o núcleo da ação típica

(o verbo do tipo). Nos tipos que não têm elemento subjetivo, isto é,

nos quais não consta nenhuma exigência de finalidade especial (os

que não têm expressões como “com o fim de”, “para” etc.), é

suficiente o dolo genérico. 30

2.3.5. Dolo específico

O Professor Heleno Cláudio Fragoso ensina que, em contraposição ao

anterior, configura-se o dolo específico quando a finalidade do agente ou sua

motivação se tornar elementar do crime:

Em certos casos, no entanto, verifica-se que a ilicitude

depende de um especial fim ou motivo de agir, que amplia o aspecto

subjetivo do tipo. (...). O especial fim ou motivo de agir que aparece

em certas definições do delito condiciona ou fundamenta a ilicitude

do fato. Trata-se, portanto, de elemento subjetivo do tipo (...). 31

29 HOLANDA, Cornélio José. O dolo eventual nos crimes de trânsito. (Obtido em 30 de março de 2005). Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5263. 30 CAPEZ, Fernando. Op. Cit., p.157. 31 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. Cit., p.213.

28

2.3.6. Dolo Geral ou Erro Sucessivo

Trata-se do erro sobre o nexo causal entre conduta e resultado. Logo, de

acordo com Flávio Augusto Monteiro de Barros, verifica-se o dolo geral quando o

agente, supondo ter produzido o resultado visado, realiza nova conduta com

finalidade diversa sendo que esta é que acaba efetivamente produzindo o evento de

início desejado. 32

O Professor Heleno Cláudio Fragoso explica que, tecnicamente, deveria

haver o concurso entre o crime doloso tentado e o crime culposo, mas logo em

seguida ele esclarece: (...), todavia, tal solução não satisfaz o sentimento jurídico (...),

motivo pelo qual, na prática se considera o acontecimento um processo unitário,

resolvendo-se a hipótese como crime único (homicídio doloso consumado). 33

Assim sendo, nesse caso, o dolo do agente não se descaracteriza afinal, seja

por meio da conduta inicial; seja por meio da conduta posterior, foi ele quem desejou

e deu causa ao resultado (art.13, caput do C.P.).

2.3.7. Dolo de Propósito ou Refletido e Dolo Íntimo ou Repentino

Intimamente ligado à premeditação, o dolo de propósito se manifesta quando

há um lapso de tempo relevante entre a representação psicológica do crime pelo

agente e sua efetiva execução. Assim, basta que tenha decorrido um lapso temporal

considerável entre o propósito criminoso e a atuação, e que esta tenha sido

precedida de uma preparação minuciosa. 34

32 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Op. Cit., p.221. 33 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. Cit., p.220. 34 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Op. Cit., p.77.

29

Já no dolo de ímpeto, a conduta do agente é imediatamente posterior a

mentalização do crime por ele idealizado, sendo aquela, portanto, é

automaticamente realizada. É o que afirma Paulo José da Costa Jr.:

O dolo de ímpeto não admite, entre a formulação do propósito

delituoso e a conduta, um hiato temporal. Quando menos, haverá de

existir uma solução de continuidade cronológica exígua ou razoável.

Tal não implica que a vontade delituosa tenha sido formada debaixo

do influxo de qualquer paixão, já que a conduta poderá desenvolver-

se com calma e frieza. 35

2.3.8. Dolo de Dano ou Lesão e Dolo de Perigo

Importante é destacar que dano (prejuízo) é tudo aquilo que impede, total ou

parcialmente, a satisfação das necessidades humanas (...), ou seja, (...) é tudo que

implique a destruição ou diminuição de um bem. 36

Já o perigo deve ser entendido como juízo probabilístico de superveniência do

dano, com base naquilo que costuma acontecer. 37 Ou seja, é a mentalização de

uma possibilidade concreta (probabilidade). Logo, ainda em consonância com os

comentários dos juristas Paulo José da costa Jr. e Maria Elizabeth Queijo, o perigo

deve estar efetivamente presente, ou seja, deve ser atual ou eminente (nunca futuro).

Assim, de acordo com o Professor Damásio, o dolo de dano é aquele em que

o agente visa lesar um bem juridicamente tutelado (ou assume o risco de fazê-lo). 38

35 Ibidem. 36 COSTA JUNIOR, Paulo José da, QUEIJO, Maria Elizabeth. Comentários aos Crimes do Código de Trânsito, p.07. 37 Ibidem. 38 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal - Parte Geral, p.293.

30

Quem age com dolo de perigo, conforme o mesmo autor, dirige sua conduta

com o objetivo de expor o bem tutelado a uma situação que provavelmente o

danificaria; sem desejar, no entanto, que esse dano realmente ocorra. Isto é, o

agente tem por intuito expor o bem ao perigo de lesão e não à lesão efetiva.

Deste modo, o Professor Paulo José da Costa Jr. sinteticamente conclui: faz-

se a distinção com base na ofensa produzida ao bem tutelado pela norma penal. O

dolo será de dano se o sujeito quis lesar o bem tutelado. 39

Cumpre, contudo, observar que a superveniência do resultado lesivo pode

transmudar o crime doloso de perigo em crime culposo de dano 40, pois segundo

esse entendimento, quem age com dolo de perigo não assume o risco de produzir o

resultado lesivo.

Mirabete, no entanto, entende que dolo de dano e dolo de perigo são

espécies substancialmente idênticas. Dolo existe quando o agente quer ou consente

na realização da figura típica ou, nos termos da lei, quando quer ou consente no

resultado, não importando que esse tipo seja de dano ou de perigo. 41

39 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal, p. 76. 40 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal-Parte Geral, p.225. 41 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral, p.144.

31

III. CULPA

A melhor definição é delineada por Aníbal Bruno: (...) consiste a culpa em

praticar voluntariamente, sem a atenção ou o cuidado devido, um ato do qual

decorre um resultado definido na lei como crime, que não foi querido pelo agente,

mas que era previsível. 42

Sob outra ótica, a culpa na doutrina finalista da ação, constitui elemento do

tipo (...). É, também, puro juízo de reprovação, uma vez que é normativa e não

psicológica (...). 43

3.1 ESTRUTURA

O jurista Luiz Regis Prado, oportunamente, faz a seguinte distinção:

No tipo injusto doloso é punida a ação ou omissão dirigida a

um fim ilícito, ao passo que no culposo pune-se um comportamento

mal conduzido a um fim irrelevante ou lícito. Há uma contradição

essencial entre o querido e o realizado pelo autor; vale dizer, a

direção finalista da ação não corresponde à diligência devida (...).

Como infração a uma norma de cuidado, a culpa emerge como

elemento normativo do tipo, não fazendo parte do tipo subjetivo,

nem compondo como elemento normativo o tipo de injusto doloso

(...). 44

Analisando-se o texto da lei (art. 18, II do C.P.) 45 percebe-se que a falta de

intenção do indivíduo em obter determinado evento, faz dos crimes culposos tipos

42 BRUNO, Aníbal. Direito Penal-Parte Geral, p.80. 43 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal - Parte Geral, p.297. 44 BITENCOURT, César Roberto. PRADO, Luiz Régis. Código Penal Anotado, p.199. 45 Art.18 do Código Penal Brasileiro: Diz-se o crime:

32

penais abertos que constam, na lei, apenas do resultado. É o que explica o

Professor Heleno Cláudio Fragoso:

São tipos abertos os dos crimes culposos, que apenas

descrevem resultados e devem ser completados com a ação ou

omissão contrária ao dever objetivo de cuidado. A ação em tal

categoria de delitos, não se dirige no sentido do resultado, mas a

outros fins, geralmente lícitos, fora do tipo. Sabe-se apenas da ação

típica dos crimes culposos que deve causar certo resultado e que

deve ser praticada com negligência, imprudência ou imperícia

(art.18, II, CP), ou seja, com transgressão do dever objetivo de

cuidado, que competia o agente observar, determinando assim, a

tipicidade. 46

Assim, de acordo com Francisco de Assis Toledo os crimes culposos apenas

se configurarão se, após a análise comparativa entre a conduta efetiva e a conduta

devida (de acordo com o juízo do homem médio), chegar-se à conclusão de que o

resultado não teria ocorrido se a conduta do acusado tivesse sido calcada no dever

objetivo de cuidado:

Tipo aberto (...) consiste na descrição incompleta do modelo

de conduta proibida, transferindo-se para o intérprete o encargo de

completar o tipo, dentro dos limites e das indicações nele próprio

contidas. São os denominados “tipos abertos”, como se dá em geral

com os delitos culposos que precisam ser completados pela norma

geral que impõe a observância do dever de cuidado. 47

Fernando Capez, por sua vez, complementa:

Crime Culposo

II – culposo, quando o agente causa o resultado por imprudência, negligência ou imperícia. 46 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. Cit., p.224. 47 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal, p.136.

33

Culpa é elemento normativo da conduta. A culpa é assim

chamada porque sua verificação necessita de um prévio juízo de

valor, sem o qual não se sabe se ela está ou não presente. (...). A

culpa, portanto, não está descrita, nem especificada, mas apenas

prevista genericamente no tipo. Isso se deve ao fato da absoluta

impossibilidade de o legislador antever todas as formas de

realização culposa (...). 48

3.2. ELEMENTOS

São elementos da culpa:

3.2.1. Conduta inicial voluntária

Cabe destacar que tal voluntariedade recai sempre sobre a realização da

conduta; nunca sobre a obtenção do resultado definido como crime. Tal elemento é

muito bem ilustrado por Magalhães Noronha:

O agente quer praticar a ação com a mesma vontade do fato

doloso: o chofer, que dirige seu automóvel a 120 km por hora e

desastradamente atropela alguém, quer a ação de dirigi-lo assim, do

mesmo modo que a quer aquele que imprime essa velocidade a seu

veículo para atirá-lo propositadamente sobre o pedestre, seu inimigo.

Em ambos os casos a ação causal é voluntária. 49

3.2.2. Inobservância do dever objetivo de cuidado

48 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Geral, p.160. 49 NORONHA, Magalhães. Op. Cit., p.142.

34

A título de culpa, a punição do agente apenas se justifica se ficar provado que

ele não agiu com a devida cautela ao executar sua conduta. É o que esclarece

Heleno Cláudio Fragoso:

(...) a ação delituosa que a norma proíbe é a que se realiza com

negligência, imprudência ou imperícia, ou seja, violando o dever

objetivo de cuidado, atenção ou diligência, geralmente imposto na

vida de relação, para evitar dano a interesses e bens alheios e que

conduz, assim, ao resultado que configura o delito. 50

Assim sendo, a inobservância do dever de cuidado pode ser manifestada de

três modos:

◦ imprudência = comportamento positivo que Celso Delmanto chama de

prática de ato perigoso. 51

◦ negligência = de acordo com Magalhães Noronha, tal modalidade de

culpa é:

(...) no sentido do Código (...) a inação, inércia, passividade. Decorre

de inatividade material (corpórea) ou subjetiva (psíquica). Reduz-se

a um comportamento negativo. Negligente é quem, podendo e

devendo agir de determinado modo, por indolência ou preguiça

mental, não age ou se comporta de modo diverso. 52

50 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. Cit., p.272. 51 DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado, p.31. 52 NORONHA, Magalhães. Op. Cit., p.144.

35

◦ imperícia = trata-se da culpa profissional já que, deve sempre ocorrer

no exercício de uma atividade (...) que o agente está autorizado a exercer. 53 Assim,

de acordo com Luiz Regis Prado, tem-se:

Imperícia é a incapacidade, a falta de conhecimentos técnicos

precisos para o exercício de profissão ou arte, a inaptidão ou a

incompetência técnico–científica para o exercício profissional (...).

Em havendo imperícia fora do âmbito profissional, a culpa é

atribuída a título de imprudência ou negligência. 54

Cabe observar que, a exemplo do que fez vários autores, César Bitencourt

destacou uma importante distinção:

Imperícia não se confunde com erro profissional. O erro

profissional é um acidente escusável, justificável e, de regra,

imprevisível, que não depende do uso correto e oportuno dos

conhecimentos e regras da ciência. Deve-se à imperfeição e

precariedade dos conhecimentos humanos, operando, portanto, no

campo do imprevisto e transpondo os limites da prudência e da

atenção humana. 55

3.2.3. Resultado involuntário

Conforme esclarece Flávio Monteiro de Barros, o resultado não desejado é

elementar do tipo em crimes culposos, pois a inocorrência do evento delitivo mantém

atípica a conduta:

53 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Op. Cit., p.225. 54 BITENCOURT, César Roberto. PRADO, Luiz Régis. Código Penal Anotado, p.200. 55 BITENCOURT, César Roberto. Manual de Direito Penal, p.250.

36

No crime culposo, o resultado aloja-se dentro do tipo,

conferindo-lhe a essência criminosa. Tanto é assim que a simples

conduta não caracteriza crime. A integralização do tipo penal

culposo depende da superveniência do resultado indesejado: se

este não ocorre, a simples conduta, conforme o caso constitui fato

atípico (...). 56

3.2.4. Nexo causal entre a conduta e o resultado

A relação de causalidade, diz Cezar Roberto Bitencourt, nada mais é do que a

imputação física do crime ao autor da ação produtora do resultado. Em seguida ele

explica:

(...) é indispensável que o resultado seja conseqüência da

inobservância do cuidado objetivo, ou, em outros termos, que este

seja a causa daquele (...). Atribuir-se, nessa hipótese, a

responsabilidade ao agente cauteloso constituirá autêntica

responsabilidade objetiva, pela ausência do nexo causal. A

inevitabilidade do resultado exclui a própria tipicidade. 57

3.2.5. Nexo normativo

Relevante para se auferir a culpa mediata (ou indireta), trata-se de um

elemento destacado por Fernando Capez, o qual fundamenta:

Além do nexo causal é preciso que o agente tenha culpa em

relação ao segundo resultado, que não pode derivar nem de caso

56 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Op. Cit., p.234. 57 BITENCOURT, César Roberto. Op. Cit.,, p.247.

37

fortuito nem de força maior. Desse modo, a culpa indireta pressupõe:

nexo causal (que o agente tenha dado causa ao segundo evento) e

nexo normativo (que tenha contribuído culposamente para ele). 58

3.2.6. Previsibilidade do resultado

Ninguém pode ser punido por fato imprevisível. Nesse sentido, adverte o

Professor Julio F. Mirabete:

(...) não haverá crime culposo mesmo que a conduta

contrarie os cuidados objetivos e se verifica que o resultado se

produziria da mesma forma, independentemente da ação

descuidada do agente. Assim, se alguém se atira sob as rodas do

veículo que é dirigido pelo motorista na contra-mão de direção, não

se pode imputar a este o resultado (morte do suicida). Trata-se, no

caso, de mero caso fortuito. 59

Ao se analisar a previsibilidade em crimes culposos, deve-se proceder à

análise tanto da previsibilidade objetiva (baseada no cuidado inerente ao homem

médio ou comum), quanto da previsibilidade subjetiva (baseada em aspectos

pessoais do acusado). Assim, ainda de acordo com o referido autor, verificado que o

fato é típico, diante da previsibilidade objetiva (do homem razoável), só haverá

reprovabilidade ou censurabilidade da conduta (culpabilidade) se o agente puder

prevê-la (previsibilidade subjetiva). 60

Logo, a previsibilidade objetiva é elementar do tipo, pois consiste na

possibilidade, diante das circunstancias, de se antever o resultado; enquanto que, a

previsibilidade subjetiva é pressuposto de culpabilidade, já que se baseia na

capacidade do indivíduo de fazê-lo. A esse respeito, Fernando Capez adverte:

58 CAPEZ, Fernando. Op. Cit., p.167. 59 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit., p.147. 60 Ibidem.

38

Atenção: a ausência de previsibilidade subjetiva não exclui a

culpa, uma vez que não é seu elemento. A conseqüência será a

exclusão da culpabilidade, mas nunca da culpa (o que equivale dizer,

da conduta e do fato típico). Dessa forma, o fato será típico porque

houve conduta culposa, mas o agente não será punido pelo crime

cometido ante a falta de culpabilidade. 61

Isso, no entanto, não é o que entende o Professor Julio F. Mirabete, para

quem, a previsibilidade objetiva não possui razão de existir; sendo relevante apenas

proceder-se à análise da previsibilidade subjetiva. Esta, por sua vez, é (para ele)

elementar do tipo culposo e não da culpabilidade:

Essa colocação doutrinária, para nós, não é perfeita. Em

primeiro lugar, por se fundar a previsibilidade objetiva uma

abstração (homem razoável, homem médio, homem padrão, homem

modelo etc.) que não se consegue caracterizar suficientemente. Em

segundo lugar porque fica excluída a tipicidade do fato praticado por

alguém que, por suas qualificações tem maiores possibilidades de

prever o resultado que o homem comum (...). Por essa razão, (...) a

previsibilidade deve ser estabelecida conforme a capacidade de

previsão de cada indivíduo, sem que para isso se tenha de recorrer

a nenhum “critério de normalidade”. Assim, pode haver ou não

tipicidade conforme a capacidade de prever do sujeito ativo. A

previsibilidade subjetiva é pra nós elemento psicológico (subjetivo)

do tipo culposo. 62

3.2.7. Tipicidade

61 FERNANDO, Capez. Op. Cit., p.162. 62 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit., p.148.

39

Há na culpa, diz Damásio, um primeiro momento em que se verifica a

tipicidade da conduta: é típica toda conduta que infringe o “cuidado necessário

objetivo”. Completando esse raciocínio, Flávio A. M. de Barros argumenta:

Os crimes culposos são tipos abertos, pois a

complementação da definição típica depende de um juízo valorativo

do magistrado. A tipicidade depende da concretização de todos os

elementos do crime culposo, dos quais merecem destaque a

violação do dever de cuidado e a previsibilidade objetiva do

resultado. 63

Cabe observar, por fim, que na legislação penal brasileira a punição do

agente a título de culpa é uma ressalva; tendo em vista o disposto no próprio Código

Penal (art.18, §único): salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido

por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.

3.3. ESPÉCIES

3.3.1. Culpa Inconsciente ou Comum

Nesta, diz Magalhães Noronha, o resultado previsível não é previsto pelo

agente. (...). É a chamada culpa “ex ignorantia”. 64

Nos ensinamentos de César Roberto Bitencourt, tem- se:

Na culpa inconsciente, apesar da presença da previsibilidade,

não há previsão por descuido, desatenção ou simples desinteresse.

63 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Op. Cit., p.237. 64 NORONHA, Magalhães. Op. Cit., p.143.

40

A culpa inconsciente caracteriza-se pela ausência absoluta nexo

psicológico entre o autor e o resultado de sua ação. 65

3.3.2. Culpa Consciente

Também chamada culpa ex lascívia, trata-se de uma excepcionalidade em

que a culpa é dotada de previsão. O assunto é melhor abordado por Luiz Regis

Prado:

Na culpa consciente o agente afasta ou repele, embora

inconsideradamente, a hipótese de superveniência do evento e

empreende a ação na esperança de que esse evento não venha a

ocorrer – prevê o resultado como possível, mas não o aceita nem o

consente. 66

3.3.3. Culpa Própria

Trata-se da culpa em que o agente não quer nem assume o risco de produzir

o resultado. 67 (grifo nosso).

Logo, a classificação entre culpa comum e consciente está ligada à previsão

ou não do evento. Já a caracterização da culpa própria tem conexão com o

elemento volitivo.

3.3.4. Culpa Imprópria ou Culpa por Extensão, Assimilação ou Equiparação

65 BITENCOURT, César Roberto. Op. Cit., p.251. 66 BITENCOURT, César Roberto. PRADO, Luiz Régis. Código Penal Anotado, p.200. 67 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral, p.151.

41

De acordo com as lições do Professor Damásio, são casos de culpa imprópria

os previstos nos arts. 20, §1º, 2ª parte e 23, §único, parte final 68 do Código Penal.

Assim sendo, nos termos deste diploma legal, tem-se:

* Art.20, §1º = descriminantes putativas:

É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas

circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a

ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de

culpa e o fato é punível como crime culposo. (Grifo nosso).

De íntima conexão com os tipos permissivos, (excludentes da antijuridicidade),

trata-se da culpa presente nas chamadas discriminantes putativas inescusáveis.

Nessas, o agente incide em erro vencível quanto à situação de fato, pois comete um

crime supondo estar agindo licitamente ao imaginar que se encontram presentes os

requisitos de uma das causas justificativas previstas em lei (...) 69 (legítima defesa,

estrito cumprimento do dever legal, estado de necessidade ou exercício regular de

um direito).

Assim sendo, o Desembargador Antonio Rosa sinteticamente expõe:

Há ocasiões em que o agente pratica o ato criminoso,

pensando que limita em seu favor uma causa de justificação

qualquer. Por erro de avaliação, ele se julga em legítima defesa, ou

em estado de necessidade, etc. 70

* Art. 23, §único = excesso punível:

68 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal - Parte Geral, p.304. 69 Ibid., p.204. 70 ROSA, Antonio José Miguel Feu. Direito Penal – Parte geral, p.340.

42

O agente em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá

pelo excesso doloso ou culposo. (Grifo nosso).

Essa forma de manifestação da culpa imprópria é muito bem explicada pelo

Promotor Victor Gonçalves:

É a intensificação desnecessária de uma conduta inicialmente

justificada. O excesso sempre pressupõe um início de situação

justificante. A princípio o agente estava agindo coberto por uma

excludente, mas em seguida, extrapola. (...). O excesso (...) culposo

(ou excesso inconsciente ou intencional) é o que deriva de culpa em

relação à moderação, e, para alguns doutrinadores, também quanto

à escolha dos meios necessários. Nesse caso o agente responde

por homicídio culposo. Trata-se de caos de culpa imprópria. 71

3.3.5. Culpa Mediata ou Indireta

De acordo com os ensinamentos de Fernando Capez, deve ser entendida

como sendo a culpa presente quando o agente produz indiretamente o resultado. É

o caso (...) de um assaltante que, após assustar a vítima, faz com que ela fuja e

acabe sendo atropelada. 72

Ainda de acordo com o ilustre jurista, é preciso, no caso dessa espécie de

culpa, que estejam presentes tanto o nexo causal quanto o normativo, conforme

oportunamente visto. 73

71 GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal – Parte Geral, p.84. 72 FERNANDO, Capez. Curso de Direito Penal – Parte Geral, p.166. 73 Ibidem.

43

3.3.6. Culpa Concorrente

Havendo concorrência de culpa, diz César Roberto

Bitencourt, os agentes respondem, isoladamente, pelo resultado

produzido. (...) Nessa hipótese, não se pode falar em concurso de

pessoas, ante a ausência do vínculo subjetivo. 74

É o caso, por exemplo, de um acidente de carros com vítima fatal, em que

todos os motoristas foram imprudentes. Todos os condutores que concorreram

culposamente para a ocorrência do evento morte, por esse deverão responder. O

exemplo é de Julio Fabbrini Mirabete. 75

3.3.7. Culpa recíproca

Caracteriza-se sempre que, nas circunstâncias de fato estiverem presentes

tanto a culpa do agente quanto da vítima. Neste sentido, Magalhães Noronha

esclarece:

Ao inverso do que sucede no direito privado, não admite o

penal compensação de culpas. O proceder culposo do ofendido não

elide o do agente. (...). Só se isentará de pena alguém quando o

resultado for atribuído exclusivamente à culpa da vítima. 76 (Grifo

nosso).

De acordo com Fernando Capez 77, apesar de a culpa da vítima não excluir a

culpa do agente, nos termos do art.59 do C.P. ela tem utilidade no momento de

74 BITENCOURT, César Roberto. Op. Cit., p.253. 75 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit., p.152. 76 NORONHA, Magalhães. Op. Cit., p.145. 77 FERNANDO, Capez. Op. Cit., p.171.

44

fixação da pena base posto que, o “comportamento da vítima”, nesse caso, pode ser

aproveitado em benefício do agente.

45

IV. CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO (CTB)

Promulgada em 23 de setembro de 1997, a Lei nº. 9503 (que entrou em vigor

em 22 de janeiro de 1998), surgiu da tentativa de atender aos anseios sociais. É o

que explica José Geraldo da Silva:

A situação do trânsito brasileiro é caótica, e com uma frota que

se agiganta a cada ano (...), aliada ao número assustador de

pessoas mortas e feridas em acidentes de trânsito, tornou-se mister

a codificação de tipos penais que criminalizem condutas

relacionadas ao mau uso do automóvel.78

De acordo com o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) da Secretaria

Estadual de Saúde, o trânsito, no Brasil, é uma das principais causas de mortes

estando atrás apenas, da violência urbana. Na região sul do país, no entanto, esse

quadro se inverte e a imprudência dos motoristas se torna a maior vilã. 79

O CTB, responsável pela revogação da Lei nº. 5108/66, trouxe inovadores

mecanismos de repressão à criminalidade no trânsito, dando origem a tipificações

penais até então inexistentes e a preceitos secundários consideravelmente rígidos

se comparados aos previstos no Código Penal. Sujeito a regulamentações, prevê a

possibilidade de se instituir medidas de conscientização que eduquem motoristas e

pedestres de modo a reduzir a ocorrência de acidentes.

De acordo com Assessoria e Consultoria de Documentos – Marinho

Despachantes tem-se:

78 GENOFRE, Fabiano, LAVORENTI, Wilson, SILVA, José Geraldo. Leis penais Especiais Anotadas, p.09. 79 Trânsito lidera ranking de mortes. Disponível em: http://an.uol.br/2002/set/20/0ger.htm. Acesso em 15 de novembro de 2005.

46

O Brasil registra anualmente cerca de 1,5 milhão de acidentes,

que resultam na morte de 34 mil pessoas e outras 400 mil ficam

feridas nos centros urbanos do país. Isso representa uma média de

80 mortes e mil pessoas feridas por dia. 80

É nesse quadro crítico que vigora o CTB. Esse, por sua vez, consubstancia

um antagonismo: prevê, por um lado, diversos tipos penais que configuram crimes-

obstáculo, visando a impedir a verificação de eventos mais graves 81, consagrando,

por outro lado, diversos retrocessos em matéria penal e processual penal, por ter

ferido garantias fundamentais, construídas ao longo dos séculos. 82

4.1. ASPÉCTOS GERAIS

4.1.1. Veículo Automotor

A aplicação do CTB pressupõe sempre, que o agente esteja na direção de

veículo automotor. O conceito desse vem expresso no próprio CTB (anexo I):

(...) todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios

meios, e que serve normalmente para o transporte de pessoas e

coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o

transporte de pessoais e coisas. O termo compreende os veículos

conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos

(ônibus elétricos).

80 . PANORAMA – Marinho Despachantes. Curso de Direção Defensiva passa a ser obrigatório, p.07. 81 COSTA JUNIOR, Paulo José da, QUEIJO, Maria Elizabeth. Comentários aos Crimes do Código de Trânsito, p.XI. 82 Ibid., p.XII.

47

Diante de tal definição, os Promotores Victor Gonçalves e Fernando Capez

concluem que os veículos de tração animal (como a carroça) e os de propulsão

humana (como a bicicleta) estam excluídos do âmbito de incidência do CTB. 83

Cabe anotar ainda, que também:

(...) não estão incluídos no conceito de veículo automotor, para fins

de aplicação do Código de Trânsito, todos aqueles que, embora

movidos a motor de propulsão e que circulem por seus próprios

meios, não transitem sobre vias urbanas terrestres e rurais (...)

como lanchas e barcos. 84

4.1.2. Via Pública

Alguns dos crimes previstos no CTB (como o de participação em competição

não autorizada) apenas são puníveis quando ocorridos em via pública.

Via é superfície por onde transitam pessoas, veículos e animais,

compreendendo a pista, a calçada, o acostamento, ilha e canteiro central (anexo I do

CTB).

Via pública, de acordo com Fernando Capez e Victor Gonçalves, é um local

aberto a qualquer pessoa, cujo acesso seja sempre permitido e por onde seja

possível a passagem de veículos automotor (ruas, avenidas, alamedas, praças

etc.).85

83 CAPEZ,Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos Criminais do Código de Trânsito Brasileiro, p.05. 84 COSTA JUNIOR, Paulo José da, QUEIJO, Maria Elizabeth. Op. Cit., p.56. 85 CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Op. Cit., p.45.

48

Segundo tais doutrinadores, consideram-se ainda vias públicas, as ruas dos

condomínios particulares. 86

Damásio Evangelista de Jesus ainda acrescenta que pode ocorrer, entretanto,

que o local não seja especificamente destinado ao tráfego de veículos, como

grandes jardins, praças, calçadas, passeios, terrenos, gramados, etc. 87 Ainda assim,

para efeitos de aplicabilidade do CTB, deverão ser considerados como vias públicas.

4.2. HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR

Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo

automotor:

Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou

proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir

veículo automotor.

4.2.1. Aspectos Gerais

a) Objetividade jurídica:

É a tutela da vida humana, cuja proteção por sua extrema importância, é um

imperativo de ordem constitucional (art.5º, caput da CF/88). 88

b) Sujeitos:

86 Ibid, p.46. 87 JESUS, Damásio Evangelista. Crimes de Trânsito, p.157. 88 COSTA JUNIOR, Paulo José da, QUEIJO, Maria Elizabeth. Op. Cit., p.53.

49

O crime é praticado pelo condutor do veículo (habilitado ou não) contra

qualquer pessoa. Neste sentido José Geraldo da Silva. 89 Logo, trata-se de um crime

comum quanto aos sujeitos.

c) Elemento objetivo:

Como o tipo penal não faz restrições, o crime se configura em qualquer que

seja o local do delito, desde que o agente esteja na direção de veículo automotor.

Logo, pode ocorrer em via pública ou não. 90

Note que, o delito em questão pressupõe sempre a existência de alguém na

condução do veículo. Assim, se por negligência, o agente deixar o freio de mão solto

ao estacionar em uma rua inclinada e, sem que ninguém esteja na direção do carro,

esse vier a deslizar atingindo um terceiro e, provocando-lhe a morte, caracterizado

estará o homicídio culposo previsto no Código Penal (art.121, §3º) e não o crime do

CTB. O exemplo é da Professora Ana Paula da Fonseca Rodrigues. 91

d) Elemento subjetivo:

Considerando-se que se trata de um crime culposo e, portanto, desprovido de

intenção, não há elemento subjetivo do tipo, mas sim elemento normativo.

89 GENOFRE, Fabiano, LAVORENTI, Wilson, SILVA, José Geraldo. Leis penais Especiais Anotadas, p.13. 90 JESUS, Damásio Evangelista. Crimes de Trânsito, p.78. 91 Exemplo dado em aula ministrada no dia 19. 09. 2005, ao oitavo semestre (período diurno) do Curso de Direito da UniFMU.

50

A esse respeito, o Professor Damásio, calcado na Teoria Finalista, explica

que a culpa configura elemento expresso do tipo (...). Trata-se de elemento

normativo: exige do magistrado uma apreciação valorativa do fato. 92

De acordo com os doutrinadores Paulo José da Costa Jr. e Maria Elizabeth

Queijo, é a culpa, que poderá apresentar-se na modalidade de imprudência (fazer

aquilo que não deve), negligência (deixar de fazer aquilo que deve ser feito) ou

imperícia (culpa técnica). 93

e) Tentativa e Consumação:

Em conformidade com os ensinamentos do autor supracitado, a consumação

do crime depende da morte da vítima tratando-se assim, de um crime material

insuscetível, no entanto, de tentativa dado o seu caráter culposo; desprovido,

portanto, de intenção. 94

f) Ação penal

De acordo com Alexandre de Morais e Gianpaolo Smanio, trata-se de um

crime que se processa mediante ação penal pública incondicionada. 95

A punição abrange a privação de liberdade do agente e a aplicação de uma

interdição de direitos (proibição para exercer o direito de dirigir veículos

automotores).

92 JESUS, Damásio Evangelista. Crimes de Trânsito, p.79. 93 Ibidem. 94 Ibid., p.78. 95 MORAIS, Alexandre, SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação Penal Especial, p.229.

51

José Geraldo da Silva esclarece que pelas regras do Código Penal, não se

pode aplicar, em razão do mesmo delito, uma pena privativa de liberdade e outra

restritiva de direitos dado o caráter substitutivo da última. No caso do CTB, no

entanto, isso será possível sempre que o agente for reincidente específico nos

crimes previstos no CTB (art.296) ou quando o preceito secundário de seus

dispositivos expressamente o determinarem. É o que ocorre na tipificação do

homicídio culposo. 96

Conforme destaca Alexandre de Morais e Gianpaolo Smanio, o art.293 do

CTB determina que o período de proibição para exercer o direito de dirigir veículos

automotores varia de dois meses a cinco anos. Evidentemente, nos termos do

próprio art.293, §2º do CTB, deve o agente cumprir primeiro a pena privativa de

liberdade para depois cumprir a restritiva de direito sob pena de a última configurar-

se inócua. 97

4.2.2. Causas de aumento de pena

Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de

veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o

agente:

a) I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;

A diferença entre permissão e habilitação é bem delineada por José Geraldo

da Silva:

A Permissão é um documento conferido ao candidato aprovado

em todos os exames de habilitação, e possui a validade de um ano,

96 GENOFRE, Fabiano, LAVORENTI, Wilson, SILVA, José Geraldo. Op. Cit., p.11. 97 MORAIS, Alexandre, SMANIO, Gianpaolo Poggio. Op. Cit., p.224.

52

conhecido como período de prova. A habilitação é o documento

definitivo conferido a pessoa que cumpriu o período de prova, sem

cometer nenhuma infração grave ou gravíssima, ou não ser

reincidente em infração média, nos termos do art.148, §§2º e 3º,

Código de Trânsito Brasileiro. 98

Segundo Arnaldo Rizzardo, haverá a incidência dessa causa de aumento de

pena sempre que o indivíduo não for autorizado a dirigir ou, encontrar-se, no

momento do fato, sem o documento. 99

Há, no entanto, entendimentos diversos, como o de José Geraldo da Silva, no

sentido de que o fato de o agente cometer homicídio culposo na direção de veículo

automotor, sem ser devidamente habilitado, autoriza a incidência da causa de

aumento de pena. 100 (Grifo nosso).

Isso, portanto, exclui o caso de ter a permissão, mas não estar com ela no

momento do acidente.

b) II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;

A majoração de pena, nesse caso, é bem justificada pelos Promotores

Fernando Capez e Victor Gonçalves:

Entendeu o legislador que a conduta culposa é mais grave

nesses casos, uma vez que a vítima é atingida em local destinado a

lhe dar segurança na travessia das vias públicas, demonstrando um

total desrespeito do motorista em relação à área. 101

98 Ibidem. 99 RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro, p.760. 100 GENOFRE, Fabiano, LAVORENTI, Wilson, SILVA, José Geraldo. Op. Cit., p.14. 101 CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Op. Cit., p.33.

53

Conforme esclarece Alexandre de Morais e Gianpaolo Smanio, é necessário

que a conduta tenha sido praticada na faixa de pedestres ou na calçada. A vítima

pode ter morrido em outro lugar. 102

c) III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima

do acidente;

De acordo com Fernando Capez, esse aumento de pena é aplicável apenas

ao motorista que deu causa ao acidente:

Essa hipótese somente é aplicável ao condutor do veículo que

tenha agido de forma culposa. Caso não tenha agido com

imprudência, negligência ou imperícia e deixe de prestar socorro à

vítima, estará incurso no crime de omissão de socorro de trânsito. 103

Logo, o sujeito ativo do crime autônomo de omissão de socorro previsto no

art.304 do CTB é a pessoa que, conduzindo um veículo automotor, envolve-se em

um acidente sem que o tenha ocasionado. 104

No que diz respeito à omissão de socorro prevista no Código Penal (art.135),

o sujeito ativo é qualquer pessoa que não tiver qualquer ligação com o acidente

(nem o deu causa nem com ele se envolveu). 105

Alexandre de Morais e Gianpaolo Smanio destacam que a circunstância

somente incidirá se for possível o socorro. Se a vítima falece no momento da

102 MORAIS, Alexandre, SMANIO, Gianpaolo Poggio. Op. Cit., p.228. 103 CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Op. Cit., p.34. 104 Ibid., p.36. 105 Ibidem.

54

conduta culposa, não há que se falar em omissão de socorro. (...). Se houver perigo

de linchamento não haverá agravação da pena. 106

Fernando Capez, por sua vez, complementa:

Se o agente não possui condições de efetuar o socorro ou

quando também ficou lesionado no acidente de forma a não poder

ajudar a vítima, não terá aplicação o dispositivo. O instituto

igualmente não será aplicado se a vítima for de imediato, socorrida

por terceira pessoa. 107

Alexandre de Morais e Gianpaolo Smanio, no entanto, citam o entendimento

em sentido contrário da doutrina majoritária:

Caso a vítima seja socorrida por terceiros, haverá agravação

de pena, uma vez que a omissão de socorro ocorreu e foi

descumprido o dever de solidariedade humana. 108

d) IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de

transporte de passageiros.

Nesse caso, de acordo com Alexandre de Morais e Gianpaolo Smanio,

justifica-se o aumento de pena porque, por parte do motorista profissional, o dever

de cuidado é maior do que o das outras pessoas, residindo aí, a maior gravidade da

conduta. 109

106 MORAIS, Alexandre, SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação Penal Especial, p.228. 107 CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Op. Cit., p.34. 108 MORAIS, Alexandre, SMANIO, Gianpaolo Poggio. Op. Cit., p.228. 109 Ibidem.

55

Fernando Capez e Victor Gonçalves destacam que esse dispositivo é

aplicável aos motoristas de ônibus, táxi, lotação, bonde, etc. e, em seguida,

complementam:

O instituto não deixará de ser aplicado mesmo que o veículo de

transporte de passageiros esteja vazio ou quando está sendo

conduzido até a empresa após o término da jornada e, ainda que o

resultado tenha alcançado pessoa que não estava no interior da do

veículo. 110

e) V - estiver sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de

efeitos análogos.

Trata-se de um dispositivo inserido ao art.302 do CTB pela Lei 11.275 de 07

de fevereiro de 2006. Logo, também é causa de aumento de pena o homicídio

culposo decorrente de embriaguez ao volante. (Vide anexo, p.71).

Diante de tal alteração, o Professor Ivan Carlos de Araújo convenientemente

alerta que o concurso de crimes entre o art.302 (homicídio culposo no trânsito) e o

art.306 (que prevê o crime autônomo de embriaguez ao volante), no caso de

embriaguez ao volante com evento morte, deixa de existir. Surge, no entanto, o

conflito aparente de normas que deverá ser solucionado pelo princípio da

subsidiariedade tácita. Tal princípio, por sua vez, é muito bem explicado por

Francisco de Assis Toledo:

(...) há subsidiariedade quando diferentes normas protegem

o mesmo bem jurídico em diferentes fases, etapas ou graus de

agressão. Nesta hipótese o legislador ao punir a conduta da fase

110 CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos Criminais do Código de Trânsito Brasileiro, p.35.

56

anterior, fá-lo com a condição de que o agente não incorra na

punição da fase posterior, mais grave, hipótese em que só esta

última prevalece.(...) A norma secundária só é aplicada na ausência

de outra norma – a norma primária -, já que esta última envolve por

inteiro a primeira. (...) Há subsidiariedade tácita nos delitos punitivos

que descrevem fase prévia, de passagem necessária para a

realização do delito mais grave cuja punição abrange todas as

etapas anteriores de execução.111

Portanto, se o agente, sob a influência de entorpecentes, na direção de

veículo automotor, imprudentemente der causa a morte de alguém estará sujeito à

aplicação de pena prevista no art.302, V do CTB (não mais no art.306 em concurso

com o art.302, caput do CTB).

4.4. PARTICIPAÇÃO EM COMPETIÇÃO NÃO AUTORIZADA

Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via

pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não

autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano

potencial à incolumidade pública ou privada:

Penas - detenção, de seis meses a dois anos, multa e

suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação

para dirigir veículo automotor.

4.4.1. Aspectos Gerais

a) Objetividade jurídica:

111 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal, p. 52.

57

É tutela da incolumidade pública, especificamente no que se refere à

segurança viária, posta em risco pela imprudência. (...) a referência à incolumidade

privada (...) está abrangida na incolumidade pública. 112.

b) Sujeitos:

De acordo com José Geraldo da Silva, o sujeito passivo é a coletividade. 113 E

Fernando Capez e Victor Gonçalves ainda complementam: (...) de forma secundária

e eventual, a pessoa exposta a risco em virtude da disputa. 114

Quanto ao sujeito ativo, Alexandre de Morais e Gianpaolo Smanio

especificam:

Os condutores participantes. Pode ser qualquer pessoa,

habilitada ou não. Crime de concurso necessário: não pode ser

praticado por uma só pessoa. O tipo exige a participação de dois ou

mais motoristas. Concurso de agentes: respondem também pelo

crime, como partícipes, co-pilotos, promotores de evento, fiscais da

competição etc. 115

Fernando Capez e Victor Gonçalves mais uma vez acrescentam que

espectadores e passageiros que estimulem a corrida serão também

responsabilizados na condição de partícipes (art.29 do CP). 116

c) Elemento objetivo:

112 COSTA JUNIOR, Paulo José da, QUEIJO, Maria Elizabeth. Comentários aos Crimes do Código de Trânsito, p.76. 113 GENOFRE, Fabiano, LAVORENTI, Wilson, SILVA, José Geraldo. Leis Penais Especiais Anotadas, p.21. 114 CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Op. Cit., p.47. 115 MORAIS, Alexandre, SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação Penal Especial, p.243. 116 CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Op. Cit., p.51.

58

Quanto aos elementos objetivos, tem-se que o núcleo do tipo é participar no

sentido de tomar parte de:

- corrida – é unilateral, isolada. Trata-se do motorista que, em plena via

pública, dirige em desabalada carreira, para provar a potência do veículo ou para

exibir-se. 117

- disputa – é o racha, o desafio (...) entre dois motoristas. Ambos, (...) se

confrontam em via pública. 118

- competição – é a disputa coletiva, reunindo três ou mais motoristas. 119

De acordo com José Geraldo da Silva, são exigidos quatro requisitos para a

configuração do delito:

1) participar na direção de veículo automotor (...). Se não se tratar

de veículo automotor, como: charrete, carroça, mobilete, bicicleta,

poderá haver a responsabilização pela contravenção do art.34, LCP;

2) participar (...) em via pública. (...);

3) (...). É um elemento normativo do tipo corrida, disputa ou

competição não seja autorizada pela autoridade competente. (...)

4) (...). A norma penal exige que ocorra dano potencial à

incolumidade pública, que pode acontecer com a velocidade

excessiva, manobras arriscadas, cavalo-de-pau (...) etc. 120

117 COSTA JÚNIOR, Paulo José e QUEIJO, Maria Elizabeth. Comentários aos Crimes de Trânsito, p.76. 118 Ibidem. 119 Ibidem. 120 GENOFRE, Fabiano, LAVORENTI, Wilson, SILVA, José Geraldo. Leis Penais Especiais Anotadas, p.22.

59

d) Elemento subjetivo:

É o dolo, que consiste na vontade livre e consciente de participar de disputa,

competição ou corrida automobilística. 121

e) Tentativa e Consumação

Prevalece o entendimento de que é possível haver tentativa. É a hipótese em

que, estando os carros alinhados e com os motores aquecidos, são impedidos de

partirem. 122

Para Fernando Capez e Victor Gonçalves, no entanto, a tentativa é

inadmissível. 123

A consumação, por sua vez, ocorre quando a corrida, disputa ou competição

se inicia. 124

Cabe observar que, no entendimento de Paulo José da Costa Jr. e Maria

Elizabeth Queijo a mera participação (...) não configura o crime. Faz-se mister que a

conduta resulte dano potencial à incolumidade pública. Assim, se a via pública

estiver deserta, o dano potencial não se apresenta. 125

121 Ibidem. 122 Neste sentido: Paulo José da Costa Jr.; Maria E. Queijo; Alexandre de Morais; Gianpaolo Smanio;

José Geraldo da Silva e Damásio E. de Jesus. 123 CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Op. Cit., p.53. 124 GENOFRE, Fabiano, LAVORENTI, Wilson, SILVA, José Geraldo. Op. Cit., p.22. 125 COSTA JÚNIOR, Paulo José e QUEIJO, Maria Elizabeth. Op. Cit., p.76.

60

Neste mesmo sentido, José Geraldo da Silva explica: se a disputa ocorrer em

local deserto ou em propriedade particular, não estará configurado o delito deste

artigo. 126

Para Fernando Capez e Victor Gonçalves, no entanto, a consumação

ocorrerá sempre que tal participação desrespeitar as normas de segurança de

trânsito (excesso de velocidade, manobras perigosas); independentemente de a via

pública estar ou não deserta. 127

f) Ação penal:

O delito em pauta é processado mediante ação penal pública incondicionada,

dada a inviabilidade de que se proceda mediante representação.128

126 GENOFRE, Fabiano, LAVORENTI, Wilson, SILVA, José Geraldo. Op. Cit., p.22. 127 CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Op. Cit., p.53. 128 MORAIS, Alexandre, SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação Penal Especial, p.245.

61

V. DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE

Muito se discute se, quem causa a morte de alguém por ocasião de uma

conduta inicial de embriaguez ao volante ou “racha”, age sob o domínio de dolo

eventual ou culpa consciente; havendo julgados em ambos os sentidos.

5.1. DISTINÇÃO

A diferença entre tais elementos subjetivos foi delineada por duas teorias

principais:

- Teoria da Probabilidade, Representação ou Verossimilhança – segundo a

qual deve-se avaliar o elemento intelectivo do dolo. A esse respeito, Cornélio

Holanda sintetiza a disparidade entre os institutos:

Se o resultado é previsto apenas como possível, há culpa

consciente; ao contrário, se é representado mentalmente como

provável, estaremos no campo do dolo eventual. 129

Essa corrente foi alvo de muitas críticas posto que, ignora o principal

elemento do dolo que, como visto, é o volitivo (vontade de atingir o evento típico ou

pelo menos, o consentimento na ocorrência do mesmo). É o que explica o advogado

Alexandre Wundelich:

Nos filiamos aqueles que acreditam que a teoria da

probabilidade parte apenas do elemento intelectivo do dolo,

esquecendo-se de valorar o elemento volitivo (elemento essencial

do dolo sublinhe-se!). (...). Contra a teoria da probabilidade (...) se 129 Holanda, Cornélio José. O dolo eventual nos crimes de trânsito. Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5263. Acesso em 30 de março de 2005.

62

tem dito e repetido que ela exige apenas que o autor tenha decidido

realizar um ato que provavelmente implicará lesão de um bem

jurídico. Ocorre que assa representação da probabilidade de lesão

não é suficiente para se acreditar que o autor realmente tenha

assumido o risco de produzir determinado resultado, uma vez que,

embora a realização seja provável, poderá o autor, confiando em

sua boa fortuna, acreditar que o resultado não se produzirá. 130

- Teoria do Consentimento, da Aprovação ou Aceitação – em que, além da

representação do provável evento lesivo, deve o agente consentir na ocorrência

daquele para que o dolo eventual surja. Sem tal anuência, delineada estará a culpa

consciente. Nesse sentido, o procurador Sérgio R. F. Pepeu esclarece:

Poderíamos simplesmente determinar, que para a figura do

dolo indireto do tipo eventual, não se esgota na possibilidade de

previsão do acontecimento, mas sim, e, precisamente, na

indiferença a esse resultado por parte do agente. Se o agente

pensa: "Se eu continuar a dirigir assim posso vir a matar alguém,

mas confio na minha habilidade, isto não ocorrerá..." presente estará

a culpa consciente, por sua leviandade. A "contrario senso" se ele

refletir: "Se eu continuar a dirigir assim posso vir a matar alguém,

mas não me importa, que aconteça, vou continuar.." presente estará

o elemento volitivo e, consequentemente, o dolo eventual por seu

egoísmo.131

Tendo por base as fórmulas de Frank, a Teoria do Consentimento se divide

em duas espécies:

130 WUNDERLICH, Alexandre. O dolo eventual nos homicídios de transito: uma tentativa frustrada. In Revista dos Tribunais, v.754, p.463. 131 PEPEU, Sergio Ricardo Freire. O dolo eventual e a culpa consciente em crimes de trânsito. (Obtido em 26 de fevereiro de 2005). Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1731.

63

* Teoria hipotética do conhecimento = em que, de acordo com referido

procurador a previsão do resultado como possível somente constitui dolo, se a

previsão do mesmo resultado como certo não teria detido o agente, isto é, não teria

tido o efeito de um decisivo motivo de contraste. 132

Ou ainda, nas palavras do Professor Damásio, teoria hipotética do

consentimento, hoje quase abandonada, funda-se na previsão da possibilidade do

evento, de acordo com a fórmula 1 de Frank (...).133

* Teoria positiva do conhecimento = em que, com base na fórmula 2 de

Reinhard Frank, entende que no dolo eventual o sujeito não leva em conta a

possibilidade do evento previsto, agindo e assumindo o risco de sua produção (“seja

assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso agirei”). 134

Diante do exposto, o advogado Cornélio Holanda sintetiza:

A Teoria do Consentimento (...) subdivide-se em Teoria

Hipotética do Consentimento, para a qual, mesmo a antevisão da

certeza da ocorrência do resultado lesivo não faz o agente recuar

sua conduta; e na Teoria Positiva do Consentimento, onde o agente

ignora a possibilidade da consumação ou não de qualquer evento

danoso e realiza a conduta. 135

O advogado Alexandre Wundelich alerta que a grande crítica que se faz a

essa posição refere-se à dificuldade de produção de provas desse processo

132 Ibidem. 133 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal - Parte Geral, p.291. 134 Ibidem 135 Holanda, Cornélio José. O dolo eventual nos crimes de trânsito. (Obtido em 30 de março de 2005). Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5263.

64

psicológico. Ainda assim, trata-se da posição dominante, adotada inclusive pelo

Código Penal pátrio. 136

Observe que, de acordo com Cláudio Heleno Fragoso, a expressão “assumir

o risco” é imprecisa para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve ser

interpretada em consonância com a teoria do consentimento. 137

Seguindo o mesmo raciocínio, Alexandre Wunderlich explica:

Na realidade, num planeta extremamente motorizado, a expressão

empregada na legislação brasileira tornou-se inadequada. Assumir o

risco´ é pouco. Em sentido lato, para assumir o risco basta sentar à

direção de um veículo. É preciso mais do que isso, sob pena de

darmos demasiada elasticidade ao conceito e, assim, punirmos não

só o agente que age dolosamente, mas até o motorista que age

culposamente, como se em todos os crimes de trânsito com

resultado morte estivesse presente a figura do dolo eventual.138

Assim sendo, o advogado Cornélio de Holanda diferencia:

Na culpa consciente existe, após a previsão positiva do resultado

lesivo, uma previsão negativa de que este não ocorrerá; no dolo

eventual, após a previsão positiva do resultado, sucede outra, de

feição ao menos parcialmente positiva, de que é provável a

ocorrência do evento lesivo, não tendo força, entretanto, para

impedir o infrator de realizar a atividade. 139

136 WUNDERLICH, Alexandre. O dolo eventual nos homicídios de transito: uma tentativa frustrada. In Revista dos Tribunais, v.754, p.464. 137 FRAGOSO, Cláudio Heleno. Lições de Direito Penal – Parte Geral, p.278. 138 WUNDERLICH, Alexandre. O dolo eventual nos homicídios de transito: uma tentativa frustrada. In Revista dos Tribunais, v.754, p.470. 139 Holanda, Cornélio José. O dolo eventual nos crimes de trânsito. (Obtido em 30 de março de 2005). Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5263.

65

Diante de todo o exposto, é evidente que a única diferença entre os institutos

subjetivos em questão é a anuência que o agente presta ou não ao resultado sendo

que, na culpa consciente, o agente apesar de sabê-lo possível, acredita

sinceramente poder evitá-lo; o que só não ocorre por erro de cálculo ou por erro na

execução. 140

Vê–se pois, diz Luiz Régis Prado, que o critério decisivo se encontra na

atitude emocional do sujeito.141

5.2. AFINAL, DOLO EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE?

Os argumentos sustentados por quem defendeu a “previsão legal do dolo nos

delitos de trânsito” refletem a angústia dos que acreditam que tal tipificação é a mais

condizente com a gravidade dos delitos em questão.

Neste sentido, o senador Sérgio Machado (citado pelo Dr. Ruy Carlos de

Barros Monteiro) dispôs nos seguintes termos:

Em face da ocorrência de morte, quando o agente conduzia sob a

influencia de álcool ou substancia de efeito análogo (...) ou quando o

agente participava de corridas em via pública, por espírito de

emulação – os vulgarmente chamados rachas (...), haverá

presunção legal de que o condutor assumiu o risco de produzir o

resultado – morte, devendo, portanto, ser julgado pela prática de

homicídio doloso. 142

140 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal,p.302. 141 BITENCOURT, César Roberto. PRADO, Luiz Régis. Código Penal Anotado, p.200. 142 MONTEIRO, Ruy Carlos de Barros. Crimes de Trânsito, p.142.

66

O Dr. Ruy Carlos de Barros Monteiro (autor do Capítulo XIX – Dos Crimes de

Trânsito), relata que esse anseio foi alvo de intensas discussões desde que o

Anteprojeto do Ministério da Justiça (de 1976) consagrou a modalidade dolosa dos

crimes de trânsito (homicídio e lesão corporal), embora tal projeto não tenha sido

aprovado. 143

Assim, a própria conduta, dado o seu grau de reprovabilidade, já induz o

agente a assumir o risco de obter um resultado mais grave. Logo, quem dirige

embriagado ou participa de competição não autorizada já tem consciência de que tal

conduta potencializa a ocorrência de um crime mais danoso e, a indiferença do

agente em relação a essa possibilidade faz surgir o dolo eventual.

Tal indiferença, no entanto, se materializa na própria execução da conduta. É

o que se pode concluir a partir da análise de diversos acórdãos que tipificaram o

crime com base no dolo eventual.

Nesse sentido, tem-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar o

recurso em sentido estrito (nº.243.231.3/8-000), cujo relator foi o Desembargador

David Haddad, decidiu da seguinte forma:

A pratica de racha, em via publica de intensa movimentação,

caracteriza o dolo eventual, pois demonstra a total indiferença do

agente para com o resultado, fatal ou não, porventura ocorrido.

Com a finalidade de melhor fundamentar a decisão, o mencionado magistrado

citou nesse acórdão uma jurisprudência que dispõe nos seguintes termos:

143 Idem, p.140.

67

Não pode alegar ausência de dolo o agente que, por espírito de

emulação , tendo equipado seu veículo com sistema de turbinas

para aumentar a potencia, participa de racha, em logradouro público,

gozando de consciência inequívoca de seu proceder assumindo o

risco de produzir o evento lesivo. (TJSP, Rel. Des. Christiano Kuntz,

RT 728/529).

Ainda de acordo com o Dr. Ruy Carlos de Barros Monteiro as críticas à

presunção legal de dolo em crimes de trânsito foram tantas, que em 1980 o

Anteprojeto do Ministério da Justiça foi modificado, passando a prever a modalidade

culposa dos crimes de homicídio e lesão corporal típicos de trânsito; o que bem mais

tarde (em 1997) foi sancionado pelo então Presidente da República (Fernando

Henrique Cardoso). 144

Diante dessa ausência de presunção legal de dolo eventual, os defensores

desse passaram a estipular uma espécie de presunção circunstancial do mesmo em

que, para que se considere que o agente agiu sob o domínio de culpa consciente, as

provas a esse respeito devem ser incontestáveis. É o que explica o advogado

Cornélio Holanda:

(...) a existência de apenas um elemento ou conduta normalmente

não será suficiente para a comprovação do dolo eventual (...).

Outras vezes, porém, a existência de apenas um elemento será

forte indicador do dolo eventual. É o que acontece com o elemento

de condução perigosa na forma de pegas ou rachas. 145

Essa conclusão pode ser também extraída da ementa de julgamento de um

recurso especial julgado pela Quinta Turma do STJ:

144 Idem, p.141. 145 Holanda, Cornélio José. O dolo eventual nos crimes de trânsito. (Obtido em 30 de março de 2005). Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5263.

68

(...) Na hipótese de “racha”, em se tratando de pronúncia, a

desclassificação da modalidade dolosa de homicídio para culposa

deve ser calcada em prova por demais sólida. (...) O dolo eventual,

na prática, não é extraído da mente do autor, mas, isto sim, das

circunstancias. Nele se exige (...) que a aceitação se mostre no

plano do possível, provável. (...) O tráfego é atividade própria de

risco permitido. O “racha”, no entanto, é anomalia que escapa dos

limites próprios da atividade regulamentada.146

O resumo estruturado do julgamento de um recurso especial (também pela

Quinta Turma do STJ), evidencia que antes da recente Lei 11.275/2006, havia uma

tendência mais radical também em relação ao crime de embriaguez ao volante:

Descabimento, desclassificação do crime, homicídio doloso,

homicídio culposo, hipótese, acidente de trânsito, decorrência,

embriaguez, motorista, (...), existência, dolo eventual (...). 147

Também o STF via habeas corpus, já decidiu nesse mesmo sentido:

Delito de trânsito, praticado em estado de embriaguez. Para se

concluir pela não ocorrência de dolo eventual, torna-se necessário o

exame acurado de provas (...). HC indeferido. 148

Essa presunção de vontade contida na causa do crime mais grave pode ser

também auferida no seguinte julgado do recurso em sentido estrito nº.189.655-3,

cujo relator foi o Desembargador Silva Pinto da Segunda Câmara Criminal do

Tribunal de Justiça de São Paulo:

146 STJ – Recurso Especial 247263/MJ – Quinta Turma – Rel. Min. Felix Fischer – J. 05.04.2001.

147 STJ – Recurso Especial 186440/SC – Quinta Turma – Rel. Min. Felix Fischer – J. 02.02.1999. 148 STJ – HC 60065/RS – Segunda Turma – Rel. Min. Cordeiro Guerra.

69

O veículo automotor, cada vez mais sofisticado e veloz,

quando entregue nas mãos de motoristas menos preparados, em

face da embriaguez, passa a constituir arma perigosa, impondo

grande risco às pessoas que se encontram nas vias públicas. Ora,

aqueles que usam essa arma de modo inadequado se não querem o

resultado lesivo, assumem, pelo menos, o risco de produzi-lo.

Apesar de todos esses julgados, nem todos os acórdãos são pautados em

presunções. Circunstâncias outras, que não apenas o homicídio em função da

participação em competições não autorizadas, têm também sido levadas em

consideração por alguns magistrados para verificar se de fato houve ou não a

configuração do dolo eventual.

Aliás, o magistrado Carlos Biasotti, citado pelo procurador Sérgio Pepeu:

Em verdade, (...) conhecem-se casos de motoristas que respondem

a processo perante o Júri, por haver causado a morte de pedestres.

Tê-la-iam causado por inobservância desmarcada de regras de

transito, como: dirigir em estado de embriaguez (...), disputar corrida

por espírito de emulação etc. (...) A afirmação de que o autor da

morte de trânsito, naquelas circunstâncias, deve ser julgado pelo

Júri, porque praticou o delito dolosamente, contém falsa premissa.

Deveras, não foi dolo o que aí pudera ter existido, nem sequer dolo

eventual, senão culpa (ainda consciente). 149

É o que também se pode concluir a partir do seguinte trecho de um acórdão

(que diz respeito aos crimes de homicídio e lesão corporal em virtude de “racha”)

emitido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da apelação 149 PEPEU, Sérgio Ricardo Freire. O dolo eventual e a culpa consciente em crimes de trânsito. (Obtido em 26 de fevereiro de 2005). Disponível em http: www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1731.

70

nº.333.631.3/0 cujo relator foi o Desembargador Canguçu de Almeida e, em que o

terceiro juiz (o Desembargador Pires Neto), em declaração de voto vencedor dispõe

nos seguintes termos:

Não encontrei nesses autos, “premissa vênia”, elementos de prova

aptos para justificar, ainda que superficialmente, o entendimento de

que os apelantes tenham previsto o resultado danoso e, mais do

que isso, tenham aceitado como uma das alternativas possíveis,

consentindo no trágico resultado (...).

Não raramente, essa análise mais apurada de provas leva à tipificação do

homicídio em sua modalidade culposa. Aliás, em relação aos crimes de homicídio e

lesão corporal dolosos, Damásio E. de Jesus, citado por Ruy Carlos de B. Monteiro,

na época de elaboração do Anteprojeto do Ministério da Justiça posicionou-se:

Não concordamos com a inserção como “crimes de trânsito” do

homicídio e lesão corporal dolosos. Estes, na verdade, mesmo

quando tem o automóvel como meio de execução, não constituem

propriamente “delitos de trânsito”, mas crimes comuns. Como ensina

José Frederico Marques, “quem usa de automóvel intencionalmente,

para matar ou ferir alguém, não está praticando um delito do

automóvel, mas servindo-se desse para cometer um homicídio

doloso (...)”. Isso porque o típico delito de trânsito é praticado contra

a vida ou a incolumidade física culposamente.150

Esse entendimento reflete a posição da doutrina dominante, a qual, calcada

na teoria do consentimento, ressalta que uma conduta inicial, ainda que ilícita, não

justifica uma imputação objetiva pelo resultado maior. Isto é, ter o agente agido com

dolo no antecedente, não significa que ele também o tenha feito em relação ao

subseqüente.

150 MONTEIRO, Ruy Carlos de Barros. Crimes de Trânsito, p.141.

71

É evidente que verificar a existência ou não do elemento subjetivo do tipo nas

circunstâncias do crime é uma tarefa árdua. É por causa dessa dificuldade que

inúmeros criminosos de trânsito são submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri,

tendo em vista a aplicação do princípio in dubio pro societate. É o que comenta o Dr.

César Vidor:

(...) destacamos que a aplicação do dolo eventual para motoristas

causadores de fatalidades é movida unicamente por "política

criminal" e nada mais representa do que um excesso cometido pelo

poder judiciário, que visa tão somente satisfazer à opinião pública,

ainda que calcado em teorias consagradas do Direito Penal. 151

No entanto, ao final do processo, se a dúvida persistir, deverá ser aplicado

o princípio do “in dubio pro reo”. É o que explica Celso Delmanto:

(...) evidentemente, havendo dúvida quanto ao conteúdo psicológico

da conduta - sempre de difícil aferição -, prevalecerá a hipótese

menos gravosa de culpa consciente, em face do primado ‘favor

libertatis’ que é fonte de todo o Estado Democrático de Direito, o

qual, em matéria probatória nos campos penal e processual penal,

se traduz na máxima “in dubio pro reo.152

No entanto, citado por diversos acórdãos, Alexandre Wunderlich fez questão

de transparecer a seguinte crítica a esse fato:

(...) existe notoriamente uma tentativa de se levar os casos de

homicídio no trânsito ao crivo do júri popular, acreditando-se que tais

agentes agiriam com manifesto dolo eventual (...). Diga-se, então,

que o dolo eventual nos crimes de trânsito é uma ficção jurídica 151 VIDOR, César. Dolo eventual nos acidentes de trânsito. (Obtido em 28 de julho de 2005). Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2776. 152 CELSO, Delmanto. Código Penal Comentado, p.33.

72

utilizada fantasiosamente para compensar uma legislação

inadequada. 153

Essa censura foi reforçada pelo próprio Desembargador Pires Neto em

fundamentação ao acórdão supracitado:

(...) se convencionou de forma tácita haver necessidade de punição

a seus agentes como meio de afastar a impunidade de corrente de

uma frouxa legislação de trânsito. (...) É ressabido que, em matéria

penal, a responsabilidade objetiva não é admitida nem mesmo para

atender à grande repercussão do fato delituoso e impor punição

mais severa a seus agentes quando, como aqui, a legislação

específica, por inoperância legislativa, se revela inexpressiva e

tênue, gerando, no meio social, uma sensação de impunidade, que,

na verdade, não pode ser imputada ao Judiciário, a quem incumbe,

por preceito constitucional, a atuação da lei (stricto sensu) aos casos

concretos, inexistente a possibilidade jurídica, no plano

constitucional, de o Estado-Juiz arvorar-se em legislador para suprir

a inoperância negligente do Poder Legislativo.

Por fim, a partir de tão convenientes argumentos, torna-se fácil a

compreensão de julgados de Tribunal de Justiça de São Paulo que, a exemplo do

que fez o Desembargador Gentil Leite, relator do recurso em sentido estrito nº.

219.432.3/4-00, optam pela punição dos agentes de trânsito a título de culpa

consciente, fundamentando tal decisão com julgados proferidos pelo já extinto

Tribunal de Alçada Criminal, os quais dispõem nos seguintes termos:

Revela culpa o condutor que provoca acidente quando dirige em

velocidade desmedida (...). (Rel. Veiga de Carvalho - JUTACRIM

78/234). A embriaguez em condução de veículo é conduta

153 WUNDERLICH, Alexandre. O dolo eventual nos homicídios de transito: uma tentativa frustrada. In Revista dos Tribunais, v.754.

73

imprudente, caracterizando sua condução perigosa, pois afeta os

reflexos, a atenção e a avaliação das situações a serem enfrentadas

no trânsito. (TACRIM – SP – 320.611 – Rel. Fernandes Braga).

Não há dúvidas de que toda essa problemática justifica a preocupação

manifestada pelo Promotor de Justiça Rogério Greco (também citado pelo Dr.Ruy

Monteiro):

(...) acho muito perigoso você conjugar embriaguez mais velocidade

como sinônimo de dolo eventual, em razão de uma simples

expressão contida no art.18, I do Código Penal... O que deve ser

explicado e que deve ser frisado nessa oportunidade é que

particularmente minha posição não é beneficiar criminosos do

trânsito, pelo contrário, o que o Ministério Público, principalmente o

que eu quero, é que todos nós tenhamos a certeza de que se

praticarmos um fato igual no Paraná, no Rio Grande do Sul, em

Santa Catarina, em Minas Gerais, todos nós seremos punidos da

mesma forma, o que não pode é um Estado aplicar uma

determinada pena, em face de uma interpretação e outro, uma pena

completamente diferente face de uma outra interpretação. 154

154 Idem, p.143.

74

VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do estudo das modalidades de dolo e culpa foi possível constatar que

entre o dolo eventual (que é uma modalidade de dolo indireto) e a culpa consciente,

há uma linha tênue no que tange à configuração ora de um instituto, ora de outro.

Nesta esteira, configura-se o dolo eventual quando a indiferença do agente

evidenciar que este assumiu o risco de produzir determinado resultado. Em

contrapartida, caracteriza-se a culpa consciente sempre que o indivíduo, ao antever

a possibilidade de ocorrência do evento típico, confiar que, em função de suas

habilidades pessoais, este não ocorrerá.

O estudo da distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente torna-se

ainda mais relevante quando da caracterização do homicídio culposo previsto no

art.302 do CTB, especificamente se este resultar do crime de participação em

disputa não autorizada (art.308 do CTB). Afinal, há posicionamentos no sentido de

que, aquele que realiza a referida conduta (dado o grau de reprovabilidade desta),

assume o risco de produzir o evento morte.

Por outro lado, há quem entenda que nesta mesma situação deve o acusado

ser punido a título de culpa consciente em relação ao evento morte, pois o dolo

existente no momento da participação em disputa não autorizada não persiste no

momento do homicídio havendo, portanto, concurso de crimes.

Insta salientar que tal problemática também se apresentava no caso do crime

de embriaguez ao volante (art.306 do CTB). No entanto, com o advento da Lei

11.275/2006, o art.302, parágrafo único do CTB foi acrescido do inciso “V”, que

passou a prever a “influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de

efeitos análogos” como uma causa de aumento de pena do homicídio culposo

previsto na legislação especial em tela.

75

Assim, diante do conflito aparente de normas, se a imprudência do acusado

atingir de modo mais gravoso os bens juridicamente tutelados envolvidos (no caso,

segurança viária e direito à vida), esta causa de aumento de pena sempre

prevalecerá sobre o crime autônomo de embriaguez ao volante, pois pelo princípio

da subsidiariedade tácita, ela é mais abrangente.

A jurisprudência oscila entre tais correntes, mas tem prevalecido, no início dos

processos, a tipificação do crime de homicídio em sua modalidade dolosa (de acordo

com art.121 do Código Penal) em função da aplicação do in dubio pro societate. Ao

final dos mesmos, no entanto, persistindo a dúvida, o quadro se inverte e, em geral,

o agente é punido a título de culpa consciente.

Assim, um posicionamento taxativo, em um ou outro sentido se torna

impossível na medida em que, sendo cada caso um caso; não se pode estabelecer

uma regra fixa de enquadramento em certo tipo penal.

Certo é que, uma legislação inadequada (como a em questão) e o anseio

social por uma efetiva punição aos infratores de trânsito não justificam a aplicação

de uma pena que não seja condizente com as reais circunstâncias do crime.

Sendo a lei ineficaz, não cabe ao Poder Judiciário inovar, mas apenas aplicá-

la; seja ela, no plano social, satisfatória ou não.

Portanto, em regra, o homicídio praticado na direção de veículo automotor é

culposo e o concurso desse com outros crimes de trânsito não possui o condão de,

presumidamente descaracterizar a modalidade culposa do primeiro.

Tratar-se-iam, na realidade, de delitos preterdolosos, cujo resultado mais

grave justificaria a majoração de pena. No entanto, diante da ausência de previsão

76

legal nesse sentido, é importante que o indivíduo seja punido de acordo com seu

elemento subjetivo (ou a ausência dele) em face de cada enquadramento típico, vale

dizer, de acordo com cada crime praticado.

Assim, não se afasta a possibilidade de configuração nem do dolo eventual e

nem da culpa consciente, pois tudo dependerá da apreciação que se fará do

conjunto probatório dos fatos. Este, por sua vez, indicará se o agente ao prever o

evento típico, assumiu o risco de produzí-lo (agindo com dolo eventual – o que

afasta a incidência do art.302 do CTB) ou não, caso em que haverá a configuração

da culpa consciente.

77

VII. ANEXO

Lei n º 11.275, de 7 de fevereiro de 2006 que altera a redação dos arts. 165, 277 e 302 da Lei n° 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro. 155

O Presidente da República Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o Esta Lei altera os arts. 165, 277 e 302 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997, que passam a vigorar com a seguinte redação:

Art. 1º Esta Lei altera os arts. 165, 276, 277 e 302 da Lei nº. 9.503, de 23 de setembro de 1997, que passam a vigorar com seguinte redação:

Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica:

Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool, será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.

§ 1º Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos.

§ 2º No caso de recusa do condutor à realização dos testes, exames e da perícia previstos no caput, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, pelo agente de trânsito, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor. (NR)

Art. 302. Parágrafo único.

V - estiver sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos. (NR)

Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 7 de fevereiro de 2006. / LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

155 Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11275.htm. Acesso em 08 de fevereiro de 2006.

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