CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

36

Transcript of CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

Page 1: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO
Page 2: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

MIKHAIL BAKHTINPOR ELE MESMO

Elane Nardotto Rios

Page 3: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

Copyright 2021, Elane Nardotto Rios.Todos os direitos desta edição reservados.

Imagens:Wikipedia Commons

Revisão:Lafayete Menezes de Alencar Lima Rios

Editoração:Elimarcos Santana

Page 4: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

APRESENTAÇÃO

...todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eter-no silêncio do universo [...] todo enunciado [...] tem, por assim dizer, um

princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros [...] o falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar

lugar à sua compreensão ativamente responsiva...

Mikhail Bakhtin

Não é de hoje que venho nutrindo o desejo de elaborar um curso sobre a vida, a obra e alguns conceitos produzidos, até meados do século XX, por Mikhail Bakhtin, filósofo russo que alcançou nosso tempo dada a importância de sua obra para as pesquisas no âmbito das Ciências Humanas. Do sentir ao fazer, eis que materializei o Curso/Projeto de Extensão “Mikhail Bakhtin, por ele mesmo” em parceria com Lafayete Menezes de Alencar Lima Rios que, além de um grande professor, cole-ga de trabalho e organizador do referido curso, é um irmão e Mestre que a vida me presenteou. Nesse percurso, surgiu a ideia deste E-book cujo objetivo é concretizar, publicamente e gratuitamente, as 3 aulas que não só foram proferidas oralmente, bem como estão aqui, escritas, demar-cando a relevância das ideias desse autor e, ao mesmo tempo, trazendo provocações para instigar o aprofundamento de pessoas interessadas na temática.

Desse modo, convidamos à leitura deste material para um desper-tar e um trilhar com/nos escritos do próprio autor não contrariando a sua defesa exposta na epígrafe desta apresentação.

Com carinhoA autora

Jequié-Bahia-Brasil, setembro de 2021

Page 5: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

VIDA, OBRA e CONCEITOS

Ao versar sobre a vida, a obra e os conceitos de Mikhail Bakhtin, tentei seguir os seus passos numa vertente dialógica, discursiva e po-lifônica que não tem momento para acabar enquanto houver pessoas neste mundo. Quando ele faleceu, em Moscou, em 1975, eu tinha 2 anos de idade e já estava inserida numa comunidade de falantes e me apro-priando da condição de ser humana através da linguagem e da troca intersubjetiva entre as pessoas que estavam ao meu redor, naquele mo-mento. Materializamos tal condição de forma involuntária sem nos darmos conta de que a constituição de humanidades implica interação e trocas de valores, sentidos, opiniões, aprendizagens, afetos e conheci-mentos, num processo de transformação e autotransformação adeter-num enquanto houver existência humana, enquanto houver atividade consciente.

Em 2004, comecei a me apropriar desses pressupostos bakhtinia-nos que se referem ao próprio fluxo da vida e da caminhada existencial das pessoas de “carne e osso” que sentem o pulsar das palavras ditas, li-das, ouvidas, respondidas, escritas, verbalizadas nas esferas sociais, cul-turais, ideológicas, nos espaços públicos e privados. No nosso mais ínti-mo, nos recônditos do nosso Ser, naquilo que não dizemos a ninguém; ou seja, em nenhum lugar estamos isentos da palavra de sentido e senti-da por nossa consciência que, mesmo sendo uma essência de uma sub-jetividade única, está repleta de outras vozes que se configuram como nossa palavra quando adentram em nós, desde a tenra idade, quando começamos a interagir com as/os/es outras/os/es pessoas. Concepção da outridade e da vida polifônica...orquestra de vozes habitadas em nós que, quando ditas, agregam o repertório de outras pessoas...intersubje-tividade.

Quando comecei a estudar Bakhtin, já era habitada por outras vozes: do livro, da vida, das conversas e de mim mesma – na minha singularidade em meio à multidão com outras subjetividades. Naquele tempo, fui convidada pelo município de Vitória – ES para fazer parte da construção das diretrizes curriculares. Esse trabalho gerou um grupo,

Page 6: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

formado por docentes da escola pública e pesquisadoras/es da Univer-sidade, que defendeu o conceito de gêneros textuais como unidade da orientação curricular do referido município, especificamente na área de Língua Portuguesa.

Daí em diante, uma trajetória de pesquisa se delineou em minha caminhada acadêmica tendo a voz de Bakhtin permeando as narrativas investigadoras, não de forma solitária, mas em parceria e colaboração com outras pessoas. Seguindo os passos da dialogia, investi em estudos em que busquei as vozes de docentes de Língua Portuguesa para pro-blematizarmos os conceitos do autor russo. Não poderia ser diferente, afinal, esse pensador traz uma concepção de pessoa humana e da vida como

[...] dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo: interrogar, escutar, responder, concordar, etc. Neste diálogo o homem participa todo e com toda a sua vida: com os olhos, lábios, mãos, alma, espírito, com o cor-po todo, com as suas ações. Ele se põe todo na palavra, e esta palavra entra no tecido dialógico da existência huma-na, no simpósio universal (BAKHTIN, 2003, p. 348).

A fascinação de Mikhail Bakhtin pela pluralidade do mundo e ple-nitude das diferenças deveria ser o tom das pesquisas. Assim tentei, so-bretudo, quando realizei uma de minhas investigações ao me apropriar do conceito de polifonia relacionado com o método colaborativo e for-mativo entre docentes da Educação Básica. Na esteira da obra “Proble-ma da Poética de Dostoiévski”, compreendi a pesquisadora-mediadora como uma maestra nos atos colaborativos. Dostoiévski, nos seus textos literários, conseguiu agregar e “orquestrar” as múltiplas vozes no seu universo literário de modo a garantir uma isonomia entre as diferentes consciências das personagens dos seus romances, ou seja, a palavra viva e dita a partir da independência ideológica de cada personagem.

Diferente do romance monológico, no romance polifônico, o au-tor não domina as personagens nem tampouco as tornam acabadas e determinadas no processo de criação. Polifonia, dessa forma, é o ápice do dialogismo em que a posição do autor é a de regente do grande coro de vozes que participam do grande diálogo; o que não quer dizer uma passividade diante da personagem, e sim a promoção de uma interação

Page 7: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

que interroga, provoca, responde, concorda, discorda; uma interação que presentifica uma relação dialógica entre a consciência criadora e a consciência recriada. As personagens alicerçam o direito à sua consci-ência e à interlocução com outras consciências, inclusive com a voz do autor. Na literatura brasileira, há, segundo Paulo Bezerra, um roman-cista polifônico: Machado de Assis.

Nos romances estudados por Bakhtin, as personagens falam, sen-tem, respiram, transam, peidam, cospem, comem e se posicionam com vistas às vozes sócio-histórico-ideológico-culturais, sempre numa pers-pectiva de inacabamento e evolução: embate de vozes, isso é dialogismo! Em “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, o autor acena que a palavra é uma arena de luta de classes, o que reverbera para o grande diálogo polifônico que é orquestrado com todas as contradições inerentes à con-dição humana que opina e se posiciona...isso é dialogismo! E mais, uma voz que não é individual, mas permeada por outras vozes que nos apro-priamos sempre de forma eterna e inconclusa onde houver vida. Dito de outro modo, vivemos inseridas/os/es numa corrente ininterrupta de interação mediada pela palavra, desconstruindo, inclusive, conceitos de autoria e originalidade...enquanto houver vida, há discurso. Isso é dia-logismo!

Não é assim que funciona na vida, na construção da consciência humana? Quando ouço minhas filhas, vejo o quanto de mim está nelas: expressões, gestos, trejeitos e palavras que elas vão agregando a subjeti-vidade, afinal, nos relacionamos a todo o tempo...vivemos numa troca de palavras constitutivas de nossas subjetividades.

O que é a polifonia se não for fala relatada? Sempre falamos o que outros já disseram; ou uma fala bivocal em que duas vozes, até contra-ditórias, habitam uma única subjetividade, sobretudo quando estamos com dúvidas...a mente a fervilhar com diferentes vozes habitadas em nós. A polifonia implica reconhecer que a constituição do ser sempre está condicionada à outridade, que se refere à troca de palavras a todo o tempo na caminhada humana.

Por isso, a linguagem ganha contornos vivos, intensos e profícuos nos escritos bakhtinianos, pois há uma concepção aberta de palavra que transgride o finalizado, o concluído, ou uma verdade absoluta. Tudo é um vir a ser, o que eleva a linguagem, a palavra, como mediadora de um grande diálogo ilimitado. Bakhtin sempre se colocava em oposição

Page 8: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

ao que estava enferrujado e ausente de um diálogo plural, como, por exemplo, a crítica sobre o gênero épico, seco de vida porque não repre-sentava, de fato, o homem grego de seu tempo, na pujança da liberdade construída com a palavra solta na boca das pessoas.

Ao criticar os estudos sobre a língua, de seu tempo, mostra que a ciência linguística queria moldar, abstrair, recortar (função da linguís-tica), mas tudo não passava de uma idealização e/ou abstração porque a palavra está livre entre as pessoas. A translinguística professada em “Marxismo e Filosofia da Linguagem” dialoga com os pressupostos de Ferdinand Saussure. Bakhtin concorda com o autor genebriano sobre a ideia de que o signo é sempre uma unidade inseparável composta de duas partes: uma marca, que é apenas um indicador, o significante; e o conceito, que é assim indicado, o significado. No entanto, o autor rus-so concentra-se no aspecto mundanal, sensorial e ideológico do signo. Para ele, nenhuma mente pode existir fora do oceano dos signos, pois é o mediador entre a consciência e o mundo externo, ou seja, o “eu” é uma função das forças sociais. Sobre isso, escrevi o artigo “O “olhar” bakhtiniano sobre as teorizações de saussure: uma contribuição para o campo da linguística”. Nesse trabalho, discuto o modo como os autores Mikhail Bakhtin e Ferdinand de Saussure concebem a linguagem, a lín-gua e a fala. Analiso, sob o ponto de vista do autor russo, a divergência entre as referidas concepções e sinalizo uma compreensão histórica, so-cial, ideológica e discursiva para as formas linguísticas, ultrapassando a dicotomização entre a fala e a língua defendida por Saussure.

Trilhando o caminho de Bakhtin, percebo que ele nos ensina a resistência da finalização, tão cara para quem problematiza os dogmas religiosos, políticos, sociais e ideológicos; ele mesmo sentiu na “pele” o poder avassalador de um discurso que se diz acabado, oficializado e monologizado. Como um pensador da Totalidade da vida, das expe-riências no aqui e agora, do presente e da corrente discursiva entre as pessoas, trouxe a contradição, própria do dialogismo que, por sua vez, não oblitera os opostos, mas se põe no diálogo aberto para, quem sabe, uma síntese a caminho de um Todo que, longe de se tornar o Absoluto, se abre para outros contrários, ou seja, para outras vozes numa corrente ininterrupta.

Como pesquisadora, sinto que lemos Bakhtin no interesse, talvez, de moldar um acabamento conceitual. No entanto, isso pode ser um

Page 9: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

“perigo” porque, nos seus escritos, há duas forças a serem consideradas: forças centrífugas – energia da variação, força da diferença, da transfor-mação a todo o tempo; forças centrípetas – força da mesmice, da não--mudança. Como exemplo, o conceito de gêneros do discurso quando ele traz a “relativa estabilidade” e nos diz que há, intrinsecamente, uma força latente pela transmutação dos gêneros no seu uso social ao passo que ele vai se estabilizando, também, a partir de sua forma composicio-nal, conteúdo temático e estilo de linguagem. Uma carta, um email, um bilhete, um diário íntimo, um blog, um blog no instagram....as forças centrífugas agindo! Bakhtin se verteu para as forças centrífugas e sem-pre a problematizar as forças centrípetas, ou seja, ele defendia que não dá para enrijecer nem ficar oficializando, pois a sociedade é centrífuga. E é! Por isso que é difícil precisar seus conceitos, embora façamos isso.

Nessa perspectiva, convido para a compreensão de que Bakhtin é um mestre da polifonia de diferentes vozes, dos livros que lia, das pes-soas com quem conversava, das pessoas das ruas nas cidades com quem conversava. Era um cara amistoso e sabia conviver com quem pensava diferente dele. Na sua obra, vibra isso tudo de forma orquestrada num tom inacabado e, por isso, Bakhtin, muitas vezes dá trabalho quando uma/um leitora/leitor deseja dar um tom “acabado” aos seus escritos. Ele, inclusive, jamais chegou a finalizar sua trajetória em um grupo ou aparato ideológico. Por isso, sua obra coincide com sua própria trajetó-ria existencial.

Nasceu em 16 de novembro de 1895 na cidade de Oriel, ao sul de Moscou, na Rússia, no seio de uma família pertencente a uma nobreza em que havia uma preocupação com a boa educação aos filhos e, por isso, um acesso à cultura e ao pensamento europeu 1. Bakhtin tinha 1 ir-mão (Nikolai Bakhtin) e 3 irmãs. Dava um valor enorme ao irmão, pois era mais velho e teve uma forte influência na sua formação acadêmica. No entanto, entre os dois, uma diferença: Nicolai não desenvolveu uma filosofia da linguagem na mesma envergadura que Bakhtin, embora tenha tido condições mais favoráveis. Mikhail, ao contrário, teve as pio-res condições: desterro, desamparo acadêmico, vida à margem da vida

1 Buscamos informações sobre a vida de Bakhtin na obra “Mikhail Bakhtin” de Katarina Clark e Michael Holquist. Sugerimos a leitura desse livro para quem deseja aprofundar.

Page 10: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

intelectual russa e sem material de trabalho (um de seus livros não está entre nós porque ele usou os manuscritos para fumar) e, ainda assim, produziu uma grande obra.

Aos 9 anos, Bakhtin foi morar na Lituânia – era, virtualmente, uma colônia russa (Vilno) – com a família. Vilno, cidade que materia-lizava a variedade e circularidade de línguas, culturas e classes sociais – tema de interesse de Bakhtin e sua obra, em especial a heteroglossia, ou seja, uma ilimitação do uso da linguagem nos seus respectivos con-textos. Ressalte-se que a variedade germânica foi a que exerceu maior impacto nos dois irmãos quando estudavam na escola. Com 15 anos, foi morar em Odessa (Ucrania) e terminou seus estudos secundários por lá. Foi nessa época que Bakhtin teve os primeiros sinais de um de seus primeiros tormentos – osteomielite (infeção nos ossos).

A Revolução Russa, em 1917, coincide com a entrada de Bakhtin na vida adulta, já diplomado em História e Filologia, marcada por de-safios: não usufruía da ração acadêmica; não encontrou facilmente ins-tituição pública para ensinar; foram muitas lutas para se sustentar e di-vulgar suas ideias; estava em descompasso com o marxismo defendido naquele contexto pós-revolução. Sobre a relação de Bakhtin com o Mar-xismo, ressalto que, quando constrói suas concepções de monologismo, dialogismo e polifonia, se aproxima do conceito de reificação de Marx no momento em que este analisou o sistema de produção capitalista: a relação entre a produção da mercadoria e seu produtor, na qual a produ-ção submete o homem a uma metamorfose que o reduz a coisa, a mero reprodutor de papeis, massa de manobra (cito aqui, os profissionais da educação com cargas horárias desumanas; a indústria de estética a es-cravizar as mulheres). Esse automatismo (reificação) surge na sociedade de classes e chega ao auge no sistema capitalista. No romance monoló-gico, isso acontece levando em conta que as personagens são massa de manobra na mão de um criador. Por isso, o romance polifônico se cons-tituiu no capitalismo como uma força motriz de vozes que se libertam e tentam construir sua autonomia, conforme citei acima.

Nesse sentido, destaco que meu primeiro artigo sobre Bakhtin, produzido em 2006, foi “A consciência como fato sócio-ideológico: um diálogo Marxista e Bakhtiniano”, cujo objetivo foi abordar a concepção de formação e constituição da consciência humana como fato social dis-cutida pelos autores/filósofos Karl Marx e Mikhail Bakhtin. Apresentei,

Page 11: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

nesse estudo, um breve quadro teórico dos autores com intuito de esbo-çar uma convergência entre as referidas teorizações, especificamente a ideia de consciência como materialidade social. Acredito que Bakhtin se aproximou de muitas teorizações que leu, traduziu e estudou, mas não me dá o direito, com esse artigo, de enquadrá-lo como um marxista, embora ele tenha se aproximado das concepções de Marx.

A esta altura, ele estava em Nevel (Russia). Formou-se, nesse lu-gar, o tão famoso Círculo de Bakhtin – grupos e subgrupos: Volochi-nov, Miedvédiev, Kagan e Iudina (uma mulher). Um grupo que não era, necessariamente, hostis à revolução nem ao socialismo, e sua grande missão era intelectualizar as massas como forma de atenuar a distância entre as classes cultas e as classes que não tinham acesso à cultura. Em seguida, esse círculo começou a migrar para uma cidade chamada Vi-tebski (hoje está num país chamado Bielorrusia, que tem seu território limitado pela Russia) por estar melhor abastecida de comida. Nesse es-paço, Miedvédiev se agregou ao círculo de Bakhtin. Era influente e con-seguiu contratos de palestras e trabalhos para os membros do círculo. Em Vitebski, Bakhtin conheceu sua companheira de vida, Elena. Nesse tempo, a osteomielite se espalhara por outras partes do corpo e ele se tornou dependente da esposa, ao extremo. Ela, uma guerreira invisível, cuidava dele, da alimentação, da casa, e das finanças; dava “um duro” para que ele pudesse pensar e escrever.

Entre os anos de 1924 e 1929, foi bem produtivo, pois ele escreveu muito, mas penou para sobreviver porque tinha um salário minguado. Formou-se o círculo de Lenigrado (São Petersburgo) agregando novas pessoas sem a pretensão de uma organização fixa. Eles se juntavam para debater ideias em comum. Eram veteranos/as e novatos/as excêntricos/as, cheias/os de energia, tinham um espírito livre e não viviam sob ex-pectativas de seus pares. Quando se encontravam, promoviam vários debates intensos e calorosos em terras tão frias.

Até aqui, de um modo geral, entre os anos de 1919 e 1929, pode-mos afirmar que a espinha dorsal da obra de Bakhtin foi uma filosofia da linguagem alicerçada no aspecto da interação humana. Esta nova vi-são da linguagem, como um fenômeno enraizado nas particularidades históricas de enunciações específicas, teve múltiplas consequências para o entendimento da arte, da linguística, da psicologia e da epistemolo-gia. A elocução, nesse bojo, como fator de interação entre as pessoas

Page 12: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

num contexto sócio-histórico-cultural, considerando o auditório e, por consequência, a entoação. O tom, por sua vez, é social por excelência porque envolve toda a atmosfera de interação entre os interlocutores, um elo entre o discurso verbal e o contexto extraverbal. Subjetividades que falam, ouvem, leem, escrevem e isso traz um tom e uma valoração, ou seja, uma força motriz da mudança a todo o tempo levando em conta uma língua que se perfaz na Interação Verbal. Por isso, a palavra mul-tifacetada nas relações sociais em que um eu e um outro concretizam a filosofia das relações: discurso que une pessoas.

Sobre a detenção de Bakhtin, consideremos, inicialmente, que após a Revolução Russa, em outubro de 1917, a posição da Igreja orto-doxa tornou-se difícil no país devido ao ateísmo militante no governo bolchevista. O fato de Bakhtin ter ensinado em cursos pastorais não agradou muito a política oficial pós-revolução. Isso foi visto como um fato grave e ele, juntamente com outros intelectuais, foram levados, primeiramente, à Prisão para Detenção Preliminar. Nesse cenário, ele escreveu muito. Em seguida, foi exilado no Cazaquistão, na cidade de Kustanai. Assim entrou no anonimato.

Acerca da relação de Bakhtin com Deus, destaca-se que, ao invés de buscar o lugar de Deus na estagnação, o autor russo buscava-O na energia e na comunicação, na interação concreta de um mundo real e alinhado com a vida que pulsa em cada esfera. Estudos mostram que ele buscava uma conexão entre Deus e as pessoas, nas forças que possibili-tavam as ligações, na sociedade e na linguagem. A teologia de Bakhtin, desse modo, se baseia numa tradição cristã que honra o presente, o humano, a riqueza e a complexidade da vida cotidiana. Um Deus-Hu-manidade. Um Cristo que abriu mão dos privilégios da divindade para compartilhar da condição humana e sentir na pele e na alma os desafios das agruras, da beleza e das emoções cotidianas.

No que se refere à detenção e ao anonimato de ideias e escritos, escrevi um artigo “Bakhtin e Vigotski: reflexões sobre o ensino da língua materna”. Nesse texto, discuto a concepção de sujeito na perspectiva dos autores Mikhail Bakhtin e Lev Semyonovich Vigotski. Abordo a com-preensão de língua como fato social e discursivo sob a ótica de Bakhtin e como possibilidade de ‘diálogo-ponte’ para as reflexões de Vigotski a respeito do ensino de língua materna (gramática) no espaço escolar. Mi-khail Bakhtin e Lev Vigotski nasceram em anos próximos, viveram na

Page 13: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

Rússia, compartilharam a vivência dos anos revolucionários e adotaram posições teóricas que iam de encontro ao caráter mecanicista e burocrá-tico do período stalinista, o que resultou em perseguições e proibições de publicações de seus respectivos textos. Ainda assim, os dois autores partiram dos pressupostos marxianos, no entanto, que se distanciassem do enrijecimento adotado na era de Stalin. Logo, valorizaram a subje-tividade e a singularidade do homem como ser que constitui e se auto-constitui na vivência da realidade social, bem como nas relações com os seus pares.

Em Kustanai, cidade muito fria, tinha uma vida cultural mínima. Nesse exílio, Bakhtin tinha de se apresentar uma vez por semana à po-lícia de segurança, mas, por ter um temperamento da paz, bem dialógi-co no sentido do acolhimento da oposição, não tinha problemas com a polícia. Em 1934, o exílio acabou, mas ele não pôde voltar a Lenigrado, porque não tinha licença de residência. Em seguida, conseguiu um posto de trabalho em Saransk, capital da Mordóvia, para ensinar no Instituto Pedagógico, no entanto, por perseguição política, não pôde ficar nesse posto. Apesar disso, foi em Saransk que Bakhtin teve uma melhor posi-ção, seja materialmente, seja em reconhecimento local. Nesse cenário, seus problemas se agravaram e ele precisou amputar uma das pernas.

A essa altura, no prenúncio da segunda guerra mundial, estava em Savelovo, cidade próxima a Moscou; período em que escreveu bastante. Ressalte-se que o “Romance Pedagógico” de Bakhtin ficou destruído na Segunda Guerra Mundial, em um bombardeio no prédio onde estava o manuscrito. Nessa cidade, foi nomeado professor de alemão nas escolas locais e construiu a sua teoria do romance, um “queridinho” nas suas teorizações. Um gênero que ele nomeia de anticanônico, um fora da lei, na sua perspectiva. Destaco que o conceito de carnavalização foi con-cretizado em “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais”, que nada mais é do que uma análise de romances que perfazem um anti-ritual minimamente ritualizado, uma celebração festiva do outro, as brechas e buracos em todos os mapea-mentos do mundo delineados nas teologias sistemáticas, nos códigos legais, nas poéticas normativas e nas hierarquias de classe. O riso festivo engendrado pelo carnaval mantém vivo o senso de variedade, mudança e liberdade com quebras de paradigmas e desconstrução centrífuga das normatizações, ditaduras e oficialidades.

Page 14: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

Nos estudos sobre o romance, ele buscou a totalidade da relação entre autor-texto-leitor, além de um conceito de estilo que se configura com caráter político no sentido de materializar vozes que ora concor-dam, discordam, combatem e debatem ao tom de uma orquestra poli-fônica. Uma estética constituída de liberdade e desenvolvida na teoria da comunicação na qual a personalidade do autor, os valores éticos e o contexto social são as feições definidoras de uma elocução, inclusive de um texto literário. Traz o conceito de cronótopo que se refere a tempo/espaço. Na literatura, isso se materializa considerando que os autores são forçados a empregar as categorias organizadoras dos mundos que eles próprios habitam. Em Bakhtin, é um tempo/espaço engajado na realidade, ou seja, a natureza histórica em épocas diferentes, combina-ções de espaço e tempo que moldam a realidade. Um espaço/tempo que se acopla no cotidiano imediato, no aqui e agora, na dimensão sócio--histórico-cultural. Nos romances de aventuras, na épica, Bakhtin diz que o tempo/espaço é o destino, o acaso, podendo ocorrer em qualquer espaço geográfico ou tempo histórico, tornando-se abstrato porque não dialoga com um tempo/espaço mais concreto e de uma vida cotidiana inacabada.

Diferentemente, o romance fortalece a heteroglossia (contextos enunciativos/sociais ilimitados) e, para Bakhtin, esse gênero é o gran-de livro da vida. Isso em oposição aos pressupostos formalistas de sua época que, por seu turno, construíram poderosos argumentos para conceber o texto literário como produto de forças impessoais em ação no próprio sistema da linguagem literária. Os Formalistas distinguiam linguagem poética de linguagem prática, distanciando a poesia da for-ça da vida. No escrito “Discurso na vida e discurso na arte”, Bakhtin/Voloshinov mostram uma problematização sobre isso quando traz uma pergunta retórica: “de que modo um enunciado verbal artístico – uma obra completa de arte poética – difere de um enunciado na corrente da vida?” Para o autor russo, o discurso na arte não é nem pode ser depen-dente a todo o tempo do contexto extraverbal. Os julgamentos de valor determinam a seleção de palavras do autor e, também, a recepção pelo ouvinte. Nenhum escritor seleciona as palavras de um dicionário para a sua escritura, mas sim das esferas da vida de onde estão impregnadas de valor.

Com a morte de Stálin, em março de 1953, muitas injustiças con-

Page 15: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

tra intelectuais foram revistas e, nesse ínterim, os textos de Bakhtin ca-íram no gosto de estudantes na Universidade de Moscou. Um grupo, sabendo que ele estava vivo, trouxe-o para Moscou e cuidou de seus escritos para uma nova publicação, além de ter cuidado da saúde do casal. Mas, Elena, a esposa de Bakhtin, morreu antes, deixando-o na incompletude, pois era sua grande companheira: cuidava da vida dele como um todo.

Destaco que, quando Bakhtin e sua obra foram redescobertos nos idos 1960, veio a dúvida sobre a autoria de alguns livros escritos na dé-cada de 1920, como é o caso de “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, assinado por um membro e amigo de seu círculo, Voloshinov. Além de “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, há outros textos que carregam autorias de membros do círculo, mas que os estudiosos defendem como sendo de Bakhtin; são os textos disputados: “O Freudismo”, “Para além do Social”, “O Discurso na Vida e o Discurso na Arte”, “As Últimas Ten-dências do Pensamento Linguístico no Ocidente”, “Estilística do Texto Literário”, “Nas Fronteiras da Poética e da Linguística”. A grande questão é que esses textos, assinados por Voloshinov, apresentam uma espinha dorsal comum: uma teoria da enunciação pautada na condição discur-siva implicada na relação interlocutiva – quem ouve, quem fala; a tra-ma dialógica da atividade discursiva. Nesse cenário, o próprio Bakhtin contou a seus testamenteiros literários que todas as obras acima foram escritas por ele, exceto “A Estilística do Discurso Literário”.

Em Moscou, nos idos de 1970, conquistou reconhecimento e fama. Em 1974, o estado de saúde de Bakhtin se agrava e ele não pode mais trabalhar. Morreu em março de 1975. Suas últimas palavras, se-gundo uma enfermeira: “eu vou ter contigo”! Com quem? A esposa? Deus? Essa frase revela toda a sua trajetória, sempre indo ao encontro do outro2.

2 Reitero que, para aprofundamento na vida de Mikhail Bakhtin, a leitura da obra “Mikhail Bakhtin” de Katarina Clark e Michael Holquist, onde buscamos dados biográficos sobre o autor em questão.

Page 16: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

FORMAÇÃO HUMANA – CONCEPÇÃO DE OUTRIDADES

Para mergulhar nos conceitos de Mikhail Bakhtin é necessário, a meu ver, compreender sua concepção de formação humana, formação de subjetividade que vem ao encontro de sua defesa nos escritos: outri-dade. Desse modo, já inicio com a seguinte passagem dita por ele: “O que ocorre, de fato, é que, quando me olho no espelho, em meus olhos olham olhos alheios; quando me olho no espelho não vejo o mundo com meus próprios olhos desde o meu interior; vejo a mim mesmo com os olhos do mundo – estou possuído pelo outro”.

Essa passagem, eu coloquei como epígrafe em um texto meu in-titulado “Escuta sensível, empatia e acolhimento” entre outros textos presentes no livro “Filosofias Femininas...Da vida experimentada”, de minha autoria. Inicio esse texto mostrando a importância da polifonia de vozes na pesquisa, ou seja, uma escuta sensível das pessoas que parti-cipam de nossas investigações de forma respeitosa, o que não quer dizer concordar com tudo o que a outra pessoa defende, mas abrir-se ao gran-de diálogo com todas as contradições inerentes, pois, conforme nos diz Bakhtin, a palavra é o lugar da arena de luta, própria do dialogismo que acolhe as múltiplas vozes. Tal polifonia se refere ao processo de consti-tuição da formação de subjetividades.

Para versar sobre isso, “lanço mão” do artigo “Bakhtin e Vigotski: reflexões sobre o ensino da língua materna”, de minha autoria. Nesse es-tudo, mostro que Mikhail Bakhtin e Lev Vigotski nasceram em anos pró-ximos, viveram na Rússia, compartilharam a vivência dos anos revolucio-nários e, conforme sinalizei, eles adotaram posições teóricas que iam de encontro ao caráter mecanicista e burocrático do período stalinista, o que resultou em perseguições e proibições de publicações de seus respectivos textos. Ainda assim, os dois autores partiram dos pressupostos marxia-nos, no entanto, que se distanciassem do enrijecimento adotado na era de Stalin. Logo, valorizaram a subjetividade e a singularidade da pessoa humana como ser que constitui e se autoconstitui na vivência da realidade social, bem como nas relações com os seus pares (NARDOTTO, 2007).

Page 17: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

Como se dá essa constituição e autoconstituição? O que estamos chamando de formação humana e a importância da outridade tão de-fendida por Bakhtin? A perspectiva é a de que a pessoa humana, ao se lançar num mundo ou a vir ao mundo, está constituída por sua condi-ção essencial de natureza biológica e fisiológica. Uma/um bebê está tão plenamente nesse estado instintivo/biológico que se aproxima de outros mamíferos dada sua formação balizada por atos como chorar, gritar, co-mer, fazer coco e xixi. A natureza fisiológica, sensorial e biológica é esse primeiro horizonte de quem chega ao mundo; e como diriam Marx e Engels, na obra “A Ideologia Alemã”, a motivação desse estado são os motivos biológicos. À medida que os bebês vão crescendo, eles vão se inserindo na realidade sócio-histórico-cultural da qual participam, o que coincide com a própria evolução da humanidade sob a perspectiva materialista e histórica, considerando que a diferença das pessoas para os outros animais é a forma como a humanidade começou a produzir seus meios de existência. Em outrora, nas sociedades Neolítica e Pale-olítica, houve uma passagem do mundo sensorial/biológico/instintivo para o mundo racional a partir do momento em que as pessoas daquela época começaram a montar seus planejamentos, como, por exemplo, a divisão das tarefas na caça, no momento de buscar os alimentos. As pin-turas desse tempo, que vemos hoje, nos revela esse prenúncio da ativida-de mental voltada para a ação planejada, iniciando um processo de nos diferenciarmos de outros animais. Podemos afirmar que essa diferen-ciação ocorre mediante a nossa capacidade de agir para além do instinto biológico mediante o planejamento das ações. Inicia-se, nesse período, a história da humanidade concebida como a constituição da produção dos meios de existência, aliada às relações construídas entre nós e a na-tureza, ou seja, não só a adequação à Natureza como assim fazem ani-mais não-humanos, mas a transformação dessa Natureza. Se estivesse chovendo, a civilização daquela época fazia uma cabana por meio do planejamento e, dessa forma, iam construindo o pensamento racional ao transformar a realidade em que viviam. Assim, constituíam a vida prática através das comunidades e suas ferramentas de transformação da Natureza: machado, fogo, entre outras. Com isso, a linguagem, como capacidade humana, começou a se desenvolver e as relações sociais se ampliaram até chegar ao que temos hoje: relações sociais entre pessoas mediadas pela linguagem, pela palavra escrita e falada.

Page 18: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

E não é assim que funciona com as/os/es bebês que nascem? Com essas novas pessoas de “carne e osso” que chegam ao mundo? Seres hu-manas/os/es que vão se apropriando da cultura, das condutas da huma-nidade, não de forma independente, mas com a ajuda de outras pessoas. Lev Vigotski vai afirmar que o desenvolvimento humano se concretiza por meio da aprendizagem. A apropriação dos conhecimentos se re-laciona com as situações culturais construídas pela humanidade, e as mudanças que ocorrem nas condutas humanas desde o nascimento, fa-zem-se através de vínculos sociais com a/o/e outra/o/e, tendo os signos1 como potencializadores de significados e sentidos dessa relação (NAR-DOTTO, 2007).

Os escritos de Bakhtin convergem nessa perspectiva, pois a sua tese é a de um signo2 como uma materialidade social que dá sentido às relações entre as pessoas, ou seja, instrumento de interação e apro-priação nas relações entre indivíduos organizados socialmente. Nesse contexto, as pessoas constroem visões de mundo acerca do que está a sua volta, revestindo os signos de concepções ideológicas. Nessa pers-pectiva, o signo ideológico professado por Bakhtin é instrumento so-cial de interação entre as pessoas considerando que o mundo interior (a consciência, a noção de pessoa, subjetividade) só pode ser interpretado à luz desse mesmo signo. Nesse caso, as pessoas se constituem no en-contro com outras pessoas, mediado pelo material semiótico na inte-ração social. Por isso, Bakhtin defende o conceito de polifonia que, na sua essência, nada mais é do que todas as vozes que se perfazem na vida social de todas as pessoas e, quanto mais vamos nos inserindo nas esfe-ras culturais, mais essas vozes impregnam nossa consciência. As vozes que habitam no nosso Ser, consciência, nossa subjetividade adulta/o/e,

1 O signo na ótica de Vigotski está no sentido atribuído por Engels a instrumento. Para este autor, a interação entre o homem e o ambiente é mediado pelos instru-mentos. Vigotski traz, além dos instrumentos, os sistemas de signos (a linguagem, a escrita, os números), como aqueles que regulam as ações sobre o psiquismo das pessoas.

2 O signo, numa perspectiva bakhtiniana, transgride a construção estabelecida por Saussure (2004). Em “Curso de Linguística Geral”, Saussure confinou os signos lin-guísticos no âmbito da dicionarização. Bakhtin retira esse signo do confinamento, para trazê-lo ao campo da significação humana, logo signos ideológicos.

Page 19: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

nada mais é do que todas as vozes que vamos nos apropriando desde que nascemos:

Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha mãe, etc.) [...] A princípio eu tomo consciência de mim através dos outros; deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação da pri-meira noção de mim mesmo (BAKHTIN, 2003, p. 374).

Em “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, na primeira parte, Bakhtin tece críticas a algumas perspectivas do campo da psicologia. Para isso, defende o signo ideológico como algo situado no mundo ex-terior da consciência que, por sua vez, encarna a realidade dos signos, sentidos e significações quando interage com outras consciências, ou seja, a formação humana se dá na interação entre consciências, entre subjetividades, entre pessoas numa realidade sócio-histórico-ideológica materializada em signos ideológicos que foram construídos por quem nos antecedeu. Para isso, são necessárias pessoas organizadas social-mente que, no decorrer da história da humanidade, constroem as esfe-ras sociais das quais participam.

Nessa perspectiva, chamo a atenção para a máxima de Bakhtin em cuja percepção está a palavra, o discurso, a linguagem como o signo ideológico por excelência. Retomando às/aos nossas/os/es be-bês, considero que a constituição da formação humana se dá no mo-mento em que essas/es seres se formam com a interação das outras pessoas – a presença, sobretudo da mãe, nos primeiros meses de vida –, tendo a linguagem como presentificadora dos atos humanos. Para o autor russo,

[...] a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios (BAKHTIN, 1981, p. 41).

Page 20: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

Uma questão: se as crianças não tiverem a mediação de outras pessoas para a inserção nas condutas humanas construídas, histori-camente, o que ocorrerá? Como seria a vida psíquica humana sem a interação entre grupos socialmente organizados? Para Bakhtin, a rea-lidade psíquica é a realidade do signo como artefato de significações construídas pela humanidade nas diferentes esferas sociais. Sem a signi-ficação, a psique/a consciência se torna um organismo na sua dimensão orgânico/fisiológica e esvaziada de expressão de vida: valores, opiniões, pensamentos, sentidos, emoções, construção de subjetividades. Parti-mos do pressuposto bakhtiniano de que o mundo exterior e mundo in-terior/consciência são sociais e estão interrelacionados a todo o tempo. Os signos ideológicos banham-se e renovam-se na atividade psíquica que, a sua vez, se constitui e se forma na apropriação desses signos: “o signo ideológico tem vida na medida em que ele se realiza no psiquis-mo e, reciprocamente, a realização psíquica vive do suporte ideológico” (BAKHTIN, 1981, p. 64).

Como esse signo ideológico é burilado e ressignificado na re-alidade objetiva? Através do grande diálogo entre as pessoas. O que é o dialogismo se não for essa trama comunicativa, ou seja, a trama da outridade sempre: eu me constituo a partir da outra pessoa e esta se constrói a partir de mim...uma troca intersubjetiva com e através da lin-guagem em pé de igualdade adeternum enquanto houver vida humana.

Daí, compreendemos a ideia de inacabamento nos pressupostos de Bakhtin, a qual se vale de uma concepção de consciência como es-pinha dorsal de todo o seu arcabouço teórico. Por trás dos conceitos de dialogismo, polifonia, gêneros do discurso, enunciado concreto, entre outros, está o princípio de que a construção do “eu” não pode ser con-cebida como absoluta e destituída de socialização, já que, está sempre refratada pela/o/e outra/o/e. O autor russo aprofunda ainda mais ao nos dizer que, somente por meio da outra pessoa, o “eu” obtém a sua ma-terialidade. As/os/es bebês crescem e começam a se enxergar com os “olhos das mães”. No entanto, não é algo determinado nem tampouco a ideia de que o meio constrói a subjetividade de forma estanque, porque, na perspectiva de Bakhtin, esse “eu” ao passo que vai se apropriando das vozes para constituir a sua consciência, capacita-se a transformar a realidade circundante dando um tom, através da sua subjetividade em construção, para essa realidade. Se isso ocorre, as esferas sociais estão

Page 21: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

sempre em transformação e inacabadas, também, como a consciência. O que ocorre é um processo de retroalimentação e trocas de vozes a todo o tempo entre subjetividades mediadas pela organização da rea-lidade concreta permeada de signos ideológicos. Dito de outro modo, o eu completa a outra pessoa; do mesmo modo, se autocompleta com outras/os/es numa incompletude e inconclusão eternas. Uma força cen-trífuga que destrói qualquer completude e sempre em vias de manter um devir. Por isso, a condição humana é sempre dialógica.

Page 22: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

CONCEPÇÃO DE LÍNGUA

Se a concepção humana é devir, a linguagem/língua é sempre pros-pectiva, ou seja, é movida pela mudança, instabilidade, variabilidade e construção a todo o tempo, considerando a sua condição social de estar nas vozes das pessoas que falam, ouvem, escutam, leem e interagem nas diferentes esferas sociais e privadas mediante a palavra que, por sua vez, é o signo ideológico por excelência. De acordo com Bakhtin (2003), é materialidade de uma “ativa atitude responsiva” onde não há um fim nem começo, mas um fluxo contínuo dos usos sempre (re) editados des-se signo. Uma inter-relação entre mente e mundo, social e individual, através da palavra: constituímos a nossa consciência a partir de vozes apropriadas no meio social desde que nascemos, ao passo que constru-ímos o meio social com a nossa voz, nosso tom e a nossa subjetividade.

O autor russo defende uma concepção de língua/linguagem como Interação Verbal tendo a palavra como ferramenta de ponte lançada en-tre o locutor, o interlocutor e os signos do mundo social, ou seja, a pala-vra como material semiótico da psique da pessoa e como parte constitu-tiva da consciência, por cuja formação se perfaz nos modos de interação que essa pessoa empreende com a/o/e outra/o/e nas relações sociais. Por isso, a importância da outra pessoa nas teorizações de Bakhtin conside-rando a constituição de um “eu”, de uma formação humana conquistada pela Interação Verbal com o uso da palavra escrita, lida, escutada e dita. Uma concepção de língua numa dimensão discursiva, social e histórica.

Para isso, esse autor empreende críticas a duas correntes do pen-samento filosófico e linguístico do seu tempo: o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato. A primeira, porque os fatos da fala são objeto de estudo e o psiquismo individual é considerado como fonte da língua, sendo “uma atividade, um processo criativo e ininterrupto de constru-ção (“energia”), que se materializa sob a forma de atos individuais de fala” (BAKHTIN, 1981, p. 73). Já o objetivismo abstrato, porque conce-be a língua como um sistema de formas fonéticas, gramaticais e lexicais independente de qualquer ato individual e, por isso, um sistema imutá-vel e estável para o indivíduo (NARDOTTO, 2018).

Page 23: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

A primeira orientação, criticada por Bakhtin, defende a criação individual como o fundamento da língua materializado em atos de fala de caráter solitário e à revelia do mundo externo, de um sistema linguís-tico e de qualquer interação. Aqui, defende-se uma liberdade do falante que se torna, de forma idealizada e espiritual, o “dono” do seu dizer sem uma relação com as esferas sociais em que vive; como se não houvesse um sistema linguístico e acordos de significação das palavras construí-dos pelas pessoas num processo de Interação Verbal. A essência da lín-gua, nessa perspectiva, é uma renovação constante e uma instabilidade, já que, as enunciações são professadas por uma consciência individual que cria de modo não reiterável.

Já para a segunda orientação, a língua é concebida à revelia da subjetividade das pessoas e seu centro organizador é no sistema de for-mas linguísticas – fonemas, formas gramaticais e léxicos dicionariza-dos. Para Bakhtin (1981, p. 78), “a língua opõe-se ao indivíduo enquan-to norma indestrutível, peremptória, que o indivíduo só pode aceitar como tal”. Toda valoração e burilamento das pessoas com o uso desse sistema normativo é abortado porque está independente de impulsos criadores e ações individuais. As palavras, nessa vertente, encontram-se “presas” ao dicionário não importando o uso vivo que se fazem delas no meio social dinâmico. O autor russo conversa diretamente com Ferdi-nand Saussure – defensor dessa vertente abstrata do sistema linguístico.

Sobre isso, escrevi o artigo “Olhar” bakhtiniano sobre as teoriza-ções de Saussure: uma contribuição para o campo da Linguística”. Inferi, nesse estudo, que o interesse de Saussure foi conceber a língua como um sistema e, em razão disso, não se interessou pela subjetividade discur-siva “imprimida” pelos usuários da língua em tal sistema. Desse modo, em detrimento de uma consciência individual, há um esvaziamento de qualquer valoração ideológica, e a língua torna-se um fenômeno nor-mativo para o universo individual da pessoa.

O autor genebriano, em “Curso de Linguística Geral”, concebe a fala como individual e deformadora do sistema formal da língua, não se constituindo, desse modo, em objeto de estudo para ele. Saussure parte da ideia de que a língua é de natureza homogênea, o que oferece uma grande vantagem para o seu estudo, desde que, desprovida da subjeti-vidade do falante. Contrário a tais pressupostos, Bakhtin (1992, p. 95) afirma que a língua, em seu estado puro, formal e desprovida de signi-

Page 24: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

ficação ideológica, materializa-se como “deformadora” da fala, já que, para o autor russo, a língua é plástica, ubíqua e burilável.

A resolução dada por Bakhtin é uma síntese dialética entre as duas orientações com uma proposta, conforme vimos, de concepção de língua como interação, na qual o processo de apropriação dessa língua se dá nas relações contextualizadas, ou, mais especificamente, nas prá-ticas sociais e históricas entre as pessoas. A prática viva da língua nos mostra que

[...] não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importan-tes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um senti-do ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida (BAKHTIN, 1981, p. 95).

Percebemos com a passagem acima o quanto necessitamos de uma unidade dialética entre mente e mundo, atividade psíquica e meio so-cial configurados na palavra viva trocada entre as pessoas. Reagimos às ressonâncias porque não somos tábua rasa e repositório de um sistema abstrato da língua que adentra em nós sem a nossa implicação subjetiva que, também, transforma o contexto. Ao mesmo tempo, essa implica-ção não está à revelia dos signos construídos socialmente, entre eles, a língua enquanto aparato cultural. Quando nascemos nos inserimos no fluxo da corrente enunciativa verbal e vamos nos apropriando da “relati-va estabilidade” da comunidade linguística em que participamos. Desse modo, há uma interdependência entre mundo interior da consciência e mundo exterior da palavra e ambos pertencem à dimensão ideológica. Tudo está permeado pelos valores constituídos na organização social humana, pois “a palavra, como signo, é extraída pelo locutor de um es-toque social de signos disponíveis, a própria realização deste signo so-cial na enunciação concreta é inteiramente determinada pelas relações sociais” (BAKHTIN, 1981, p. 113). Para exemplificar, temos as crianças que, “assimila [m] sua língua materna [...] na comunicação verbal. À medida que essa integração se realiza, sua consciência é formada e ad-quire seu conteúdo” (BAKHTIN, 1981, p. 108).

Page 25: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

Nesse contexto, Bakhtin (1981, p. 124/125) propõe uma ordem metodológica para o estudo da língua:

1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação

com as condições concretas em que se realiza.2. As formas das distintas enunciações dos atos de fala

isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal.

3. A partir daí, exame das formas da língua na sua inter-pretação linguística habitual.

Com o exposto, a teoria de Bakhtin antecipou ao que estamos as-

sistindo, na atualidade, como movimento teórico no campo da Linguís-tica. Ressalto que o livro onde ele se dedica a essa discussão é “Marxis-mo e Filosofia da Linguagem” cujo objetivo foi uma aproximação com os estudos linguísticos daquela época, o que não quer dizer um enqua-dramento desse autor como um linguista. Já vimos que seus escritos, de modo geral, versam sobre a vida e a formação humana e, nesse contexto, ele dialoga com a psicologia, a filosofia, a linguística e a literatura, entre outras áreas do conhecimento.

Page 26: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

GÊNEROS DO DISCURSO

Na seção anterior, vimos que Bakhtin se interessou e defendeu uma concepção de língua/linguagem que se constitui com/na/através da interação entre pessoas organizadas socialmente, tendo o signo ide-ológico como mediador dessa relação; uma proposta translinguística, já que, há uma perspectiva de compreensão do sistema linguístico apoiado nas elocuções proferidas/expressadas na realidade concreta em que a língua se presentifica considerando a entonação discursiva com vistas a um auditório/um destinatário que “regula” tais elocuções, pois há, sem-pre, “um horizonte apreciativo de um dado grupo social” (BAKHTIN, 1981, p.136) em que as pessoas estão inseridas.

Nesse contexto, o autor apresenta a interdependência entre tema e significação. O tema concebido como a totalidade de uma elocução/enunciação não repetível e configurada com elementos verbais e não verbais numa dada situação única, uma vez que nenhuma atividade dis-cursiva se repete da mesma forma nas esferas sociais. A significação, à sua vez, são os elementos reiteráveis e idênticos cada vez que são re-petidos e se constituem como ferramentas para que o tema se realize. Uma palavra, no âmbito de uma significação, está dicionarizada; ape-nas significa. Essa mesma palavra, na concretude da vida, transgride a significação do dicionário e se torna potencialidade viva dos temas, dos textos, das enunciações, das elocuções. Uma interdependência entre estabilidade e instabilidade, entre forças centrípetas e centrífugas, pois cada palavra estabilizada no dicionário, por exemplo, está na ordem do repetível, mas se torna instável quando ganha vida nas elocuções co-tidianas. Desse modo, novos sentidos se estabilizam, se dicionarizam para serem rompidos na corrente enunciativa de forma ad aeternum en-quanto houverem pessoas fazendo usos com a língua.

Com isso, não há dúvida de que “Marxismo e Filosofia da Lin-guagem”, onde se encontra esse debate, é de autoria bakhtiniana, pois é latente que a defesa da interdependência entre tema e significação é uma matriz para o conceito de gêneros do discurso e sua relativa estabilidade mediada pelas infinitas possibilidades de atividade humana com o uso

Page 27: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

da língua. Mesmo tendo formas relativamente estáveis, cada gênero se constitui na sua inteireza porque cada ato enunciativo é único e irre-petível. O que se repete são as unidades da língua que estão a serviço da produção de sentido fomentada por pessoas que pensam, sentem, gritam, professam, defendem pontos de vista e carregam subjetividades.

Dessa forma, nenhum escrito bakhtiniano se encontra dissociado de sua defesa da formação humana como ato social, histórico, cultural, ético e implicado com as contradições inerentes a essa formação se con-sideramos a palavra como arena de luta entre as classes sociais. Por isso, além desse prenúncio do conceito de gêneros do discurso na obra “Mar-xismo e Filosofia, constatei, em 2006, no artigo “Entre prosas e linguagens: os gêneros discursivos numa perspectiva bakhtiniana”1, que esse conceito foi versado em “Questões de Literatura e Estética”, especificamente no ca-pítulo “Epos e romance”, quando o autor aponta que os gêneros literá-rios na Antiguidade constituíam-se por seu acabamento e possuíam uma forma composicional fixa, definida e representavam um mundo lendário distante do cotidiano e das experiências dos homens. Para além de um mundo real de pessoas de “carne e osso”, a perspectiva era de um mundo extraordinário sem aplicação com o contexto social e do homem grego daquela época. As personagens de Homero, por exemplo, situam-se num mundo fechado e encerrado das lendas com finalidade de encantamento a partir da riqueza de imagens abstratas sem correspondência com a vida cotidiana daquelas pessoas que fazem a história no aqui e agora.

Bakhtin, conforme anunciei, interessou-se pela vida ordinária, na palavra viva das feiras, dos corredores, do carnaval, da perícia de rua, na infraestrutura e na produção do que está, muitas vezes, na margi-nalidade e que se distancia das oficialidades e das superestruturas. Por isso, teceu críticas ao gênero literário épico e construiu uma teorização polifônica a partir do gênero romance por este trazer, inerentemente, o inacabamento configurado nas vozes vivas aterradas na dimensão só-cio-histórico-cultural e com todas as nuances ideológicas.

Tais vozes, descortinadas nos romances polifônicos, nada mais são do que as vozes das pessoas nas esferas sociais; na interação verbal do uso

1 Artigo elaborado na disciplina Seminário Avançado C: A concepção de linguagem na perspectiva bakhtiniana, sob orientação da Professora Doutora Cláudia Maria Mendes Gontijo.

Page 28: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

da língua/linguagem entre os interlocutores implicada com as instân-cias culturais e históricas, nas esferas públicas e privadas. Formas de interação que, relativamente, se estabilizam, já que, as situações discur-sivas vão constituindo uma constância de usos da língua, o que não quer dizer enrijecimento. Essa relativa estabilidade constroem os gêneros do discurso considerando que “evidentemente cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2003, p. 262).

Nesse contexto, consideramos, a partir dos escritos de Bakhtin, que a natureza da diversidade dos gêneros do discurso está em estreita relação com a diversa e inesgotável atividade humana. Cada situação de comunicação acontece em condições e finalidades específicas, o que re-sultará marcas nas três dimensões que caracterizam os gêneros: o conte-údo (tema), o estilo verbal (seleção de recursos da língua) e, sobretudo, a construção composicional. Nessa perspectiva, os gêneros do discurso são definidos como tipos relativamente estáveis de enunciados, elabo-rados pelas esferas de utilização da língua, sem os quais a comunicação torna-se quase impossível2.

Devido à heterogeneidade dos gêneros, perpassando circunstân-cias imediatas como as conversas do cotidiano até as circunstâncias mais complexas de comunicação cultural, como o romance e as pesquisas científicas de toda espécie, Bakhtin diferenciou os gêneros discursivos em primários (simples) e os secundários (complexos). Todavia, diferen-ciar os gêneros numa perspectiva sócio-discursiva de linguagem não significa estruturá-los e categorizá-los, uma vez que os gêneros primá-rios e secundários não se sobrepõem, e sim interpenetram-se. Confor-me dito, Bakhtin privilegia o estudo do romance, por considerá-lo, em sua essência, “um fenômeno pluriestilístico, plurilinguístico e plurivocal”.3

2 A partir desta parte do texto utilizei dados do artigo “Entre prosas e linguagens: os gêneros discursivos numa perspectiva bakhtiniana.

3 Esses conceitos estão contemplados na obra “Questões de literatura e estética”, e todos eles estão relacionados as vozes humanas materializadas no gênero romance: a voz do autor intercambiadas com as vozes dos personagens com suas visões de mundo, correspondendo a um contexto sócio- histórico- ideológico em que o romance foi constituído.

Page 29: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

Segundo o autor, o romance (gênero secundário) apresenta em seu interior os gêneros primários, como as réplicas do cotidiano ou cartas pessoais, que adquirem características particulares, mantendo “[...] a sua forma e seu significado cotidiano apenas no plano do conteúdo romanesco” (BAKHTIN, 2003, p. 264).

O autor russo observa que, na estilística, nem todos os gêneros são aptos a refletir a singularidade de quem profere o enunciado. Ele cita, como os mais favoráveis à individualização do enunciado, os gê-neros literários, que trazem a(s) voz(es) do(s) autor, que têm “liberda-de” para exprimir sua individualidade em seus textos, mas que, de cer-ta forma, é um produto complementar do gênero. Em contrapartida, Bakhtin aponta documentos padronizados como os gêneros de menor possibilidade de influência de um estilo, pois seguem normas, padrões que impedem (ou dificultam) a expressão da individualidade, como as ordens militares que, na sua essência, não possibilitam respostas e com-preensão; o discurso se encerra para ativas atitudes responsivas. Nesse sentido, em cada enunciado tem um lugar de quem fala, de onde se fala, para quem se fala, o que vai sendo alterado a partir do momento em que se alteram/alternam esses enunciadores/enunciatários, esses lugares.

Desse modo, Bakhtin, ao definir os elementos constitutivos dos gêneros discursivos (estilo de linguagem, forma composicional e conte-údo temático), coloca-os no âmbito da inseparabilidade, o que implica levá-los em consideração a fim de compreender a totalidade dos gêneros como uma unidade real da comunicação discursiva. Isso se contrapõe à fragmentação empreendida pelas duas orientações linguísticas de sua época, conforme sinalizamos na seção anterior: Subjetivismo Idealista e Objetivismo Abstrato, uma vez que ambas não compreenderam a totali-dade da linguagem materializada nos gêneros do discurso.

Para além dessas duas correntes do campo da Linguística, Bakhtin mostra que não há passividade na corrente enunciativa, ou seja, na re-lação entre os interlocutores: quem fala e quem ouve. O ouvinte, por exemplo, posiciona-se em relação ao discurso emitido pelo falante com uma ativa atitude responsiva, o que significa levar em consideração o que é dito, por quem, para que finalidade e em que situação, tendo em vista um ouvinte que,

Page 30: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

Ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, [...] concorda ou discorda dele (total ou parcial-mente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc. Essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu iní-cio [...] (BAKHTIN, 2003, p. 271)

O ouvinte, nessa perspectiva, se torna falante responsivo porque produz sentido a partir de sua subjetividade e das outras vozes que com-põem o seu repertório de pessoa humana. Ademais, o falante, ao ela-borá-lo, é um respondente, porque, ao construir o enunciado, “lançou mão” de outros enunciados para consubstanciar-se com o seu. Assim, na vida social dos falantes e ouvintes, não existe passividade em nenhu-ma das partes.

Conforme vimos, a ativa atitude responsiva coloca em xeque te-orias apresentadas no campo da linguística. Saussure, em “Curso de Linguística Geral”, como exemplo, desconsiderou a totalidade da lin-guagem, ou seja, o enunciado, ao separar a língua da fala. O autor, ao estabelecer o seu objeto de estudo – o sistema da língua –, esvaziou-a e obliterou toda a subjetividade do falante e ouvinte (a relação intersubje-tiva), para compreendê-la como uma estrutura normativa a ser interna-lizada passivamente.

Nesse contexto, fluxos da fala, bem como elos enunciativos ou ca-deia discursiva numa perspectiva bakhtiniana, implica compreender o enunciado como uma unidade real da comunicação, o que contraria a fala como algo convencionalizado e limitado, concebido de forma frag-mentada (unidades de uma língua).

Bakhtin propõe três características intrínsecas ao enunciado a fim de que compreendamos a sua relação com as atividades humanas no que concerne à linguagem. No lugar do artificialismo, concebamos fa-lantes e ouvintes como pessoas “de carne e osso”. Para isso, a alternância dos sujeitos do discurso, que se denomina réplicas, é parte constitutiva da interlocução.

Todo enunciado – da réplica sucinta (monovocal) do diá-logo cotidiano ao grande romance ou tratado científico – tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim abso-luto: antes do seu início, os enunciados dos outros; depois

Page 31: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

do seu término, os enunciados responsivos de outros [...]. O falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente respon-siva (BAKHTIN, 2003, p. 275).

A alternância dos sujeitos nos leva à segunda particularidade do enunciado: a conclusibilidade. Esta, por sua vez, cambiará de acordo com as escolhas dos gêneros do discurso e as relações entre os interlo-cutores da enunciação. Um diálogo do cotidiano será concluído a partir do que for estabelecido pelos enunciadores. Já uma ordem militar carac-teriza-se por uma conclusão imediata, o que não acontece, por exemplo, com o romance, uma vez que a conclusibilidade pode estar no âmbito das atitudes responsivas posteriores pelo leitor.

A terceira peculiaridade do enunciado é a relação deste com o fa-lante e com outros participantes da comunicação discursiva. A materia-lização dos gêneros do discurso incide “duplamente” na ideia de sujeito: o falante, ao elaborar o seu enunciado, imprime nele um tom valorativo emocional, já que, vai levar em consideração as visões de mundo, anti-patias e simpatias que caracterizam o ouvinte de seu discurso. Há, neste caso, uma antecipação por parte do falante em relação à atividade res-ponsiva do destinatário. Diante das características do enunciado, logo dos gêneros do discurso, faz-se necessário questionar:

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenômeno da língua como sistema? Pode-se falar de aspec-to expressivo das unidades da língua, isto é, das palavras e orações? (BAKHTIN, 2003, p. 289).

Nesse percurso, concebemos que a oração é uma unidade neutra, abstrata, relativamente acabada e desprovida do contato imediato com a situação extraverbal, tendendo à estabilidade e à permanência pelas suas fronteiras gramaticais. Já o enunciado, na dialogicidade de Bakhtin, é concebido pela alternância dos sujeitos falantes num contato imediato com a realidade, dispondo da capacidade de determinar imediatamente a ativa atitude responsiva da/o/e outra/o/e. A oração só tem a capacida-de de se tornar uma expressão de posição da/o/e falante individual em uma situação concreta de comunicação discursiva, quando ela funciona em um enunciado concreto que tende ao fluxo contínuo da linguagem.

Page 32: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

Nesse sentido, a oração, enquanto elemento significativo dos elos enunciativos, poderá suscitar diferentes respostas, dependendo da si-tuação extraverbal em que estiver inserida. O enunciado pode ser, por exemplo: “Hoje é meu aniversário. Que alegria!”. A compreensão res-ponsiva: “Sim. Teremos uma grande festa!”. Porém, o enunciado pode ser também assim: “Hoje é meu aniversário. Que tristeza!”. E a atitude responsiva: “Estou ficando mais velha.” ou “Agora tenho um ano a me-nos de vida”. Assim, cada atitude responsiva vai depender do contexto enunciativo. Segundo essa distinção, todo enunciado envolve uma pro-dução e um ato de compreensão ideológica ativa, ou seja, uma resposta por parte da/o/e interlocutora/or que é oferecida por suas contrapala-vras na construção do sentido que se constitui na e pela relação verbal entre interlocutoras/es. Essa compreensão do sentido constitui-se num processo dialógico ativo, conferido por um contexto e uma situação de uma enunciação particular, em que se busca o caráter de novidade e não somente de conformidade à norma, como é o caso da oração isolada, em que é possível compreender o significado somente em seus aspectos linguísticos.

Page 33: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

UMA POSSÍVEL SÍNTESE

Com essa breve apresentação, constatamos o quanto a vida, a obra e os conceitos bakhtinianos estão interligados formando um fluxo dis-cursivo que, longe de ter uma finalização, se configura como inacabado e pronto para ser lapidado pelas leituras que serão feitas deste E-book e da escritura do próprio autor. Partimos do princípio de que não há um começo mítico e metafísico para a primeira palavra a ser dita, como não há um fim enquanto pessoas estiverem neste mundo. Desse modo, com a leitura-voz deste trabalho, anunciemos a nossa voz, que nada mais é do que todas as vozes de uma caminhada existencial mediada pela alteridade e pelos signos ideológicos construídos socialmente. Assim, sigamos a nutrir esse fluxo!

Page 34: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Huci-tec, 1981.

______. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. 3. ed. São Paulo: Ed. Unesp, 1993.

______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

CLARK, Katarina; MICHAEL, Holquist. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998.

NARDOTTO, E. Bakhtin e Vigotski: reflexões sobre o ensino da língua materna. Aprender: Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação/UESB. Ano V, N. 07, 2007.

______. Ensino/aprendizagem de conhecimentos gramaticais na perspectiva dos gêneros textuais escritos em aulas de Língua Portu-guesa. Dissertação (Mestrado): PPGE-UFES, 2008.

_______. Do gaveteiro à análise linguística: práticas colaborativas no ensino de Língua Portuguesa. Tese (Doutorado): PPGE-UFBA, 2015.

_______. Colaboração, Formação Docente e Produção de Conheci-mento em Pesquisa. Revista Profissão Docente. Uberaba, v. 16, p. 46-56, ago-dez, 2016.

Page 35: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO

ELANE NARDOTTO RIOS

Mulher, Mãe de Anita e Tarsila, professora, feminista fortalecida pelo sagrado feminino, terapeuta reikiana, Doutora em Educação, Pro-fessora do IFBA, Escritora.

Page 36: CURSO/PROJETO DE EXTENSÃO