Cynthia Owens - Visionvox...Estremecendo de repulsa, ela gemeu baixinho quando a língua úmida...

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Cynthia Owens

O Desconhecido

TraduçãoEliana Campos

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Querida leitora,

Se você gosta de heróis taciturnos e atormentados como Heathcliff, de O Morro dos VentosUivantes... e quem não gosta, fala a verdade?..., certamente vai adorar este romance apaixonante,ambientado na Irlanda após o período da Grande Fome.

Em busca de rendição, de paz e de um futuro melhor, Rory e Siobhán lutam para superar todo osofrimento do passado e acabam descobrindo uma grande paixão, que vai calar fundo no seucoração.

Num cenário vividamente descrito, Cynthia Owens nos conta uma história de amor clássica,encantadora, fascinante, com doçura e à moda antiga.

Leonice PomponioEditora

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Copyright ©2011 by Cynthia Owens

PUBLICADO SOB ACORDO COM HIGHLAND PRESS PUBLISHINGTodos os direitos reservados.

Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas oumortas terá sido mera coincidência.

As publicações da Editora Nova Cultural não podem ser reproduzidas, total ou parcialmente, sejaqual for o meio, mecânico ou eletrônico (inclusive digitalização), sem a permissão expressa daEditora. A reprodução das publicações sem a devida autorização da Editora constitui crime de

violação de direito autoral previsto no Código Penal brasileiro.

TÍTULO ORIGINAL: IN SUNSHINE OR IN SHADOW

EDITORALeonice Pomponio

ASSISTENTE EDITORIALPatricia Chaves

EDIÇÃO/TEXTOTradução: Eliana Campos

CAPA E DIAGRAMAÇÃOMônica Maldonado

ISBN 978-85-13-00889-8

© 2011 Editora Nova Cultural Ltda.Rua Texas, 111 – sala 20ª – Jd. Rancho Alegre – Santana do Parnaíba

São Paulo – SP — CEP 06515-200

www.romancesnovacultural.com.br

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Sobre a Autora

“Eu acredito que estava predestinada a ser uma pessoa interessada em História. Um ancestraldistante meu, Thomas Aubert, velejou pelo rio Lawrence e descobriu – extra-oficialmente – oCanadá, cerca de 26 anos antes da expedição de Jacques Cartier, em 1534. Uma outra parentefoi enviada à Nova França, no século XVII, com um grupo de moças solteiras para serem noivasdos colonos ali radicados.

Minha paixão por leitura sempre me fez ansiar por escrever livros como aqueles que eugostava de ler, e eu comecei a tentar criar sequências para meus mistérios prediletos de NancyDrew. Mais tarde, imaginando a mim mesma como uma versão feminina de Andrew LloydWeber, eu fiz o esboço de um musical ambientado em Paris.

Ex-jornalista e apaixonada pela cultura celta, eu trabalhei como repórter e editora parajornais de bairro antes de retomar minha primeira paixão – a ficção romântica. Minhas históriasnormalmente têm a Irlanda como cenário ou como terra natal do herói ou da heroina, e às vezestodas as três coisas juntas.

Meu primeiro romance, O Desconhecido, se passa no período pós-Carestia na Irlanda e foipublicado pela Highland Press Publishing.

Eu sou membro de várias associações de escritores de romances: Escritores de Romances daAmérica, Corações ao Longo da História, Corações Celtas e Autores Canadenses de Romances.

Eu moro em Montreal, com meu herói celta da vida real e meus dois filhos, que estão emidade escolar.”

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Dedicatória

Ver meu primeiro livro publicado é um sonho que se torna realidade. Mas nenhum sonho éalcançado sozinho. Este livro é dedicado a todas as pessoas que me apoiaram quando me sentisozinha, que acreditaram em mim quando eu duvidava, e que me encorajaram contra todas asprobabilidades negativas.

Para Gary , meu herói e refúgio: obrigada por tudo. Houve altos e baixos e muito trabalho duroe lágrimas, mas você fez cada momento valer a pena. Eu te amo!

Para Megan e David, que nunca deixam de me trazer alegria, e que me trazem de volta àterra, quando eu preciso.

Vocês são o máximo!Para meus pais: sua fé em mim nunca vacilou, e eu estou muito grata por seu amor e apoio.E à minha editora, Leanne Burroughs, obrigada pela paciência por guiar uma novata como eu

pelo caminho para a publicação.

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Prólogo

Ballycashel, Irlanda, 1850

Seu pior inimigo era sua última esperança.Siobhán Desmond parou diante da pesada porta de madeira, tremendo enquanto o vento frio e

úmido de outono apunhalava seu manto esfarrapado. Encolhendo os ombros, ela levantou a mãoe puxou a maçaneta em formato de cabeça de dragão.

Você não tem escolha, lembrou a si mesma quando a porta se abriu com um rangido lúgubre,como o gemido de uma banshee.

— Sim?Mordendo o lábio na tentativa de esconder o tremor, Siobhán encarou o homenzarrão de rosto

escarpado e gélidos olhos azuis. Um calafrio percorreu sua espinha enquanto ela se forçava a nãorecuar.

Lorde Percival Glenleigh. O homem que ela mais odiava no mundo.— Você é uma das minhas inquilinas?Ele não a conhecia, tampouco seus pais e os pais deles, todos inquilinos da família do nobre.

No entanto, não havia uma centelha de reconhecimento que abrandasse o olhar glacial.— Sim, milorde. Meu nome é Siobhán Desmond, senhor.— Desmond? Não me lembro desse nome. Mas não importa. Não se pode manter o controle

de todos os inquilinos. Bem, vamos em frente, Shi... vaun. O que você quer?Siobhán engoliu a onda de ódio borbulhante que tomou forma em seu íntimo.Lembre-se de Ashleen.Ela faria qualquer coisa, até mesmo mendigar migalhas daquele homem repulsivo, se isso

significasse a sobrevivência de sua filha.— Eu... estou procurando trabalho, senhor — murmurou com a cabeça baixa e voz quase

inaudível. — Estou desesperada. O pouco dinheiro que me resta mal dá para manter meu corpo eminha alma unidos. Tenho prática com cozinha e limpeza, e faço rendas muito bonitas. Tentei aentrada dos criados antes, mas ninguém atendeu à porta. Por favor, senhor, eu farei qualquercoisa...

Ah, Deus, como ela odiava aquele tom de súplica!Oh, Michael... Ashleen... Perdoem-me!— Entendo. Como é mesmo seu nome? Shi... Vaun?Siobhán assentiu, enquanto Glenleigh a levava para a sala de visitas. O interior da casa estava

abençoadamente aquecido, com a lareira crepitando acolhedoramente e os tapetes grossosamenizando a dor dos pés nus cheios de bolhas. Ela ansiava por se atirar numa daquelasalmofadas fofas de brocado que enfeitavam os sofás e dormir até esgotar o cansaço que assolavasua alma. Por um segundo, imaginou como seria puxar uma das mantas pesadas sobre os ombrose se aninhar num casulo de calor e paz...

— Então, você está procurando trabalho, não é?— S-sim, senhor. — A voz grave a trouxe para a realidade. — Eu farei qualquer coisa,

milorde. Posso cozinhar, limpar e arrumar os quartos. Apenas me dê uma chance…Ao perceber que ele a fitava, um arrepio brotou em seus braços e percorreu a pele até o

pescoço como milhares de aranhas venenosas. Um sorriso lúbrico curvou os lábios repulsivos,enquanto o olhar de cobiça viajava do rosto ao corpo lamentavelmente subnutrido de Siobhán,mal-escondido sob o manto de lã puída.

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Seus olhos são incrivelmente verdes, querida, Michael lhe dissera com seus próprios olhosazuis transbordando amor. Causariam inveja aos de Erin, que são verdes como a grama.

Ela forçou a mente a voltar ao presente, enquanto ouvia a voz arrogante de Glenleigh.— Está limpa, senhorita?— Eu... limpa? — Por um momento, Siobhán não conseguiu compreender as palavras, até que

todo o seu orgulho irlandês despertou. — Sim, eu estou limpa, milorde. Não temos muito mais doque um pedaço de sabão em casa, mas... — Ela se calou quando o real significado das palavras aatingiram.

Como aquele velho demônio ousava?!... Toda a dor e angústia que ela e sua família haviamsofrido se renovaram. A fome, os pequeninos morrendo, as execuções...

E aquele homem realmente pensava que estava disposta a vender-se? Para ele? E para quê?Por uma côdea embolorada de pão? Um saco de farinha? Um banquete servido à mesa doinimigo?

Não!, sua mente gritou. Ela não podia se rebaixar a tal ponto. Não importava o quê,encontraria alguma outra maneira de mantê-los vivos.

Obrigando-se a se controlar, ela balançou a cabeça, e os longos cabelos ainda úmidos dobanho ondularam sobre os ombros. Retraiu-se quando lorde Percival estendeu as aristocráticasmãos brancas e macias e puxou seu manto.

— Não seja tímida, minha querida. Se você colaborar, tenho certeza de que ficará satisfeita.Posso encontrar alguma comida para você. Os servos não comem tudo que se prepara, e semprehá sobras na cozinha. Se você entrar por um momento…

— Tire suas mãos inglesas de cima de mim! — Aquela era realmente a sua voz? Furiosa,Siobhán lutou para se libertar. — Não serei sua prostituta, milorde. Não me venderia por tãopouco, nem que me prometesse um banquete no céu.

— Ora, sua cadela irlandesa! — Os dedos dele apertaram-se em seus ombros e a bocasequiosa procurou a dela.

A carga maciça de ódio fez o coração de Siobhán disparar, enquanto ela tentavafreneticamente se livrar da prisão daqueles dedos. Estremecendo de repulsa, ela gemeu baixinhoquando a língua úmida penetrou sua boca.

Então, tão subitamente quanto avançaram, as mãos de lorde Percival Glenleigh seafrouxaram e ele emitiu um som áspero. Com os olhos arregalados, agarrou descontroladamenteo próprio peito e abriu a boca, mas apenas um murmúrio estrangulado escapou dos lábiosarroxeados.

Siobhán assistiu, impassível, enquanto o homem alto e corpulento caía de joelhos noexuberante tapete Aubusson, olhando em silêncio para a mão estendida em súplica.

— Por favor, água — ele sibilou. — Ali, na mesa... rápido, maldita!Impassível, Siobhán olhou de Glenleigh para o brilhante arranjo de copos de cristal Waterford

sobre a elegante mesa de cerejeira, o que o dinheiro podia comprar de melhor... Dinheiro quepoderia ter comprado comida para alimentar seu povo faminto.

Seria fácil, pensou ela. Tão fácil encher um deles e entregar a ele... Uma torrente dememórias a inundou: sua mãe e suas irmãs procurando por alimentos como mendigas, doiscorpos amados balançando na Árvore dos Enforcados, sua irmã, ainda bebê, morrendo em seusbraços...

O que Glenleigh tinha feito por ela?O dono da casa Ballycashel caiu prostrado no chão, e um grito saiu de seus lábios, carregado

de raiva e angústia, num gemido fúnebre vindo do fundo daquela alma atormentada.Siobhán girou nos calcanhares nus e correu para o escuro da noite.

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Capítulo I

Inverno

— Ballycashel foi vendido! — Paddy Devlin, um dos poucos homens jovens da aldeia, trouxea notícia.

Esperança e temor se confundiam em cada uma das expressões do pequeno grupo reunido nacozinha de Siobhán. Ela congelou no ato de cuidar do fogo e se virou com o coração disparado nopeito.

— Como você sabe, jovem Paddy? — exigiu Eileen O’Farrell, amiga de sua querida mãe. —Quem teria lhe contado tais mentiras?

— Não é mentira! — Paddy respondeu com toda a indignação de seus dezessete anos. — Poisnão fui eu quem viu os advogados na casa, e não foi o próprio padre Conor quem me contou?

— Então, deve ser verdade — disse Liam Brady de sua cadeira habitual perto do fogo, ao ladode vovó Meg. O ancião olhou fixamente ao redor, perscrutando os rostos familiares, muitos dosquais ele tinha visto crescer até a idade adulta, viver, amar e perder a família, os filhos, os pais,os maridos e as esposas ao longo dos últimos anos. — Graças a Deus, essa pode ser nossasalvação.

— Ou nossa ruína — acrescentou Mary Daly que, apesar da expressão amarga e dopessimismo, era incapaz de fazer mal a alguém. — Quem é o tal homem que Paddy viu? Podeser um dos proprietários ausentes, ou, que Deus proíba todo o mal, outro lorde Percival Glenleigh.

Mary cuspiu ao pronunciar o nome odiado, e um silêncio caiu sobre o pequeno grupo devalorosos sobreviventes da dominação de Glenleigh sobre a aldeia. Olhares inquietos voaram deum para outro. Siobhán, que ouvia sem emitir qualquer comentário, manteve-se perto do fogo,tentando ignorar o arrepio que corria por sua espinha à simples menção do falecido lorde.

Nos últimos três meses, a vergonha a mantivera em silêncio. Não confidenciara o torturantesegredo sobre a morte do senhorio nem mesmo para sua amada avó Meg.

O fantasma de lorde Glenleigh a perseguia. Nas primeiras horas da madrugada, pouco antesde o galo cantar, o olhar malévolo recaía sobre ela, despertando-a com um sobressalto, fazendo-a ofegar e tremer como uma folha seca num vendaval.

— Por que está tão quieta? Está pensando no novo proprietário?Siobhán levantou os olhos do fogo para a doce expressão de Nora MacGreevy, sua melhor

amiga e confidente. Nora guardava todos os seus segredos e ficara do seu lado durante ocasamento, assim como ela tinha feito quando a amiga aceitara o pedido de casamento de TomFlynn, pouco tempo antes. Ela amava Nora tanto quanto amava suas irmãs. Na verdade, a amigaera como uma tia para Ashleen, sua filha.

— Ou no velho proprietário? — Tom perguntou com uma carranca que distorcia suas belasfeições. — Nenhum mestre poderia ser pior que Glenleigh. Ele quase destruiu o vilarejo,deixando-nos na miséria e aumentando o aluguel até que ninguém pudesse pagar. E quanto aoque ele fez com Michael e Sean...

Tom lançou a Siobhán um olhar que transmitia tanto inquietação quanto desculpas.A dor dilacerou o coração dela ao se lembrar do marido e de seu irmão caçula. Os rostos dos

entes queridos flutuaram diante de seus olhos através de uma cortina de lágrimas.— Tenho de verificar se meu bebê está bem. — Ela se virou abruptamente, apressando-se a

sair.Ajoelhada ao lado da paleta onde Ashleen dormia, Siobhán se esforçou para conter o fluxo de

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raiva e tristeza que ameaçava tragá-la. Com a mão trêmula, alisou os cabelos vermelho-dourados da filha, idênticos aos seus. Todos diziam que Ashleen se parecia com ela, mas elaprópria achava a menina muito parecida com o tio, Sean, num lembrete constante do irmão maisnovo que ela tanto adorava.

Ela ouviu um ruído suave atrás de si, mas não se virou nem mesmo quando a mão gentil tocouseu ombro. Sabia que era Meg, sua amada maimeó, a adorada avó que era seu porto seguro e suasalvação, e que o tinha sido quando a vida fora rasgada em seu peito.

— Você está bem, querida?A voz que, apesar do peso dos anos, ainda soava com intensidade, exigiu a atenção de Siobhán.

Ela virou-se, forçando um sorriso, e recebeu um aceno de aprovação em troca. Meg deu umapalmada em seu ombro e pegou-lhe a mão, conduzindo-a de volta para a cozinha.

— A criança está bem? — Os olhos de Mary transbordavam compaixão, apesar da expressãomordaz.

— Sim. Está dormindo como um anjo, Mary. Obrigada. — Com esforço, Siobhán virou-separa Paddy, a curiosidade momentaneamente substituindo a dor. — Então nos diga, Paddy. Oque mais padre Conor disse sobre o novo mestre?

— Bem, disse que é americano, de um lugar chamado Baltimore, embora eu não saiba ondefica. — Obviamente aliviado por Siobhán não parecer tão aborrecida, o rapazote se animou aprosseguir: — O padre Conor também não sabe, mas diz que o homem deve ser rico, poiscomprou a Casa Grande e todas as terras ao redor.

— E por que um americano se interessaria por propriedades na Irlanda? — Tom piscou paraSiobhán. — Talvez ele tenha nascido aqui.

— O padre Conor não pensa assim. Seu nome é Burke, e é tudo o que ele sabe sobre ohomem.

— Bem, temos de esperar para ver. — Meg deu um bocejo. — É hora de ir para a cama, e oresto de vocês também. E você, Tom Flynn, certifique-se de que a jovem Nora chegue seguraem casa.

— Sim, vovó Meg — Tom disse com um sorriso obediente. — Vamos.— Vão em paz — Meg se despediu.— Fiquem em paz — todos ecoaram, saindo para a noite.Siobhán permaneceu na cozinha, olhando para a escuridão enevoada. De súbito, a saudade

daqueles que já haviam partido a invadiu, como se fosse trazida pela brisa úmida que sopravaatravés da porta entreaberta. Ela se virou e apanhou o manto.

— Querida, o que está fazendo? — Meg gritou do interior da casa. — Está muito tarde paraandar lá fora!

— Eu tenho de ir — Siobhán falou com determinação. — Preciso visitar Michael e Sean. Porfavor, vovó, a senhora melhor do que ninguém pode entender. Fique por perto, caso Ashleenacorde.

Meg considerou o pedido da neta com a brandura da compaixão suavizando os traçosdesgastados. Ternamente, ela levantou a mão e acariciou o rosto de Siobhán.

— Claro, querida. E dê lembranças minhas aos rapazes.Siobhán assentiu com a cabeça, incapaz de falar. Envolvendo seu sobretudo em torno dos

ombros magros, correu para a noite escura.

Maldito clima irlandês!Rory O’Brien, agora conhecido como David Burke, olhou através da chuva e do nevoeiro,

tentando em vão avistar a estrada. Era quase impossível enxergar a própria mão na frente do

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rosto, e a maldita umidade penetrava na pele, congelando os ossos.Sacudindo as gotas geladas dos cabelos, ele se perguntou pela centésima vez se todo aquele

empreendimento fora um ato insano. Por que, em nome de Deus, decidira voltar? As memóriasjá não o torturavam o bastante para convencê-lo de nunca mais pisar naquela maldita aldeia? EKathry n? Como sua filha reagiria ao novo país, tão diferente de tudo o que ela conhecia?

Finalmente, o imenso casarão surgiu em seu campo de visão. A luz trêmula da velaqueimando em uma das janelas trouxe as lembranças, que rastejaram em sua mente comoescorpiões.

Que diabos você está fazendo aqui, rapaz? Volte para o casebre imundo em que vive antes quemeu açoite caia sobre você...

Não, Seamus. Não! Por favor, não machuque o rapaz. Ele não teve intenção de sujar a casacom os pés sujos de barro. É apenas um menino brincando nos campos. Por favor, Seamus, não...

A retumbante bofetada ainda era tão real que ele ouviu o som abafado e se encolheu, quaseesperando encontrar Seamus Doherty e sua mãe chorando, enquanto lutava para se libertar dasgarras cruéis do marido.

Rory balançou veementemente a cabeça, deixando sair o fôlego que prendera sem perceber.O passado ficara para trás. Ele não podia trazer os mortos de volta. O destino de Ballycashelestava agora em suas mãos, e cabia a ele decidir se a aldeia poderia prosperar e crescer, oumurchar e morrer.

Enquanto o cavalo se arrastava de cansaço pela longa viagem, os olhos de Rory se estreitaramcom raiva. Onde estava a magnífica mansão georgiana de que se lembrava? Aquela construçãonão passava de ruínas cobertas de hera!

Ele puxou as rédeas e parou a carruagem diante da casa. A porta se abriu, emoldurando apequena silhueta de uma mulher encurvada pelo peso dos anos. A vela trêmula em suas mãosiluminou as feições familiares. Aquele era o primeiro rosto conhecido que ele via desde quedeixara Baltimore... E fora o último, antes de partir para a América, vinte anos antes. Na ocasião,assim como agora, o gentil rosto de sua tia-avó transmitia o mais puro amor. Os olhos de HannahGorman se encheram de lágrimas enquanto ela corria para cumprimentá-lo.

— Ah, este é o meu rapaz! — ela exclamou, atirando-se nos braços do sobrinho-bisneto. —Esperei vinte anos para ver esses lindos olhos azuis de novo!

Tenso por um momento, Rory sentiu-se incapaz de retornar a afeição óbvia. Hannah, porém,nem sequer notou a rejeição, mais interessada na menina adormecida no banco da carruagem.

— Então, essa é a pequena? — perguntou baixinho. — Pobre criança! Deve estar esgotada.Você não vai levá-la para dentro? Preparei um quarto ao lado do seu. Tive pouco tempo paraarrumar tudo, pois só cheguei a Bally cashel há uma semana.

— Espero que não tenha comentado com ninguém sobre nosso grau de parentesco.Hannah se espantou, e Rory se arrependeu do tom hostil. Afinal, ela fora a única que

protegera a mãe o melhor que pôde quando eles tinham fugido. Aceitara-os e os escondera atéque Seamus os encontrara, levara-os para a América e passara o resto de sua vida miserávelaterrorizando-os.

Rory endereçou-lhe um olhar de desculpas ao ver a expressão que o apavorou de umamaneira que seu padrasto jamais fizera. Hannah sorriu e estendeu a mão para acariciar-lhe orosto com as palmas calejadas pelo trabalho.

— Querido sobrinho, eu não disse nada a ninguém. — A voz dela era gentil e suave. — Nãotenho ideia do que está em sua mente. Não sei por que insiste em manter segredo, nem por queestá aqui com outro nome. Mas com certeza, você é a imagem de sua mãe, que o Senhor tenhamisericórdia dela, e herdou seu espírito delicado e amoroso.

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Em vez de tranquilizá-lo, as palavras de Hannah fizeram a faca do remorso se afundar aindamais nas entranhas de Rory .

— O bom espírito e o cuidado com os outros fizeram minha mãe memorável, Hannah. Vocêsabe tão bem quanto eu como a vida dela terminou. Mas eu agradeço pelo bom conselho. Voulevar Kathryn para dentro, e depois eu gostaria de dar um passeio.

De onde teria surgido aquela ideia? Ele certamente não tinha desejo algum de andar porBally cashel na chuva, após a longa e exaustiva viagem de Galway .

Tampouco desejava enfrentar seus fantasmas, pelo menos não agora.Sem mais palavras, Rory abriu a porta da carruagem e gentilmente ergueu a filha nos braços,

tropeçando ao escorregar numa poça de lama. Maldição! Aquele clima miserávelaparentemente o afetava mais do que havia percebido.

Ele lançou um rápido olhar para o rosto delicado mergulhado em um sono tranquilo e para oslongos cabelos negros caindo sobre seu braço. Grunhindo pelo esforço, seguiu Hannah paradentro da casa e subiu as escadas para o lindo quarto pintado de cor-de-rosa que ela, obviamente,havia decorado com amorosa expectativa.

Hannah se apressou a retirar a colcha de babados, e Rory deitou a filha com a mesmagentileza com que o fizera no dia de seu nascimento. Quando a tia fez menção de puxar ascobertas sobre a criança ainda adormecida, ele se antecipou e a impediu. Consciente de queestava sendo observado, mas incapaz de quebrar o ritual de tantos anos, pôs-se a cantar baixinhopara ninar a pequena e beijou de leve as bochechas rosadas antes de cobri-la até o queixo.

Com um suspiro satisfeito, ele se endireitou e virou-se para Hannah.— Vou cuidar do cavalo. Trarei minhas malas quando voltar.Sem dizer mais nada, ele se virou abruptamente e desceu a escada com passos rígidos até a

carruagem. Depois de levar o cavalo para o estábulo e providenciar água e feno, Rory deixou obarracão e apanhou as malas. Finalmente, trajando o sobretudo preto, ele fugiu da propriedade ede todas as suas memórias.

Siobhán fez o sinal da cruz e se levantou da sepultura coberta de flores, com o olhar fixo nainscrição sobre a lápide simples: “Michael Patrick Desmond, Amado Marido e Pai”.

— Eu o amava tanto... — ela sussurrou, e as lágrimas se misturaram com os pingos de chuvaem seu rosto. — Mas não foi o suficiente, não é? Você sempre precisou de algo mais. Mesmoquando Ashleen chegou, havia sempre algo que lhe faltava. Sinto muito por não podermos tersido suficientes. Talvez se tivéssemos...

Incapaz de continuar, ela se moveu para outro túmulo, e uma angústia opressora a invadiu.— Oh, Sean... meu amor, por que você teve de fazer isso? Por que teve de segui-los? Foram as

palavras de encorajamento de Michael? Foram os homens da aldeia vizinha? Você não mereciao que aconteceu. Era apenas um garoto inocente atrás de diversão. Oh, Sean, como você pôde?!

Sua voz subiu para um lamento agudo quando ela caiu de joelhos diante do túmulo do irmão,sem se importar com a umidade que penetrava no tecido do vestido desgastado. As memórias achicotearam como uma lufada de vento cruel.

Temos de correr. Glenleigh descobriu. Eu voltarei para você e para nossa filha, meu amor, euprometo.

A voz de Michael ecoou em seus ouvidos como se fossem trazidas pelo vento.Sinto muito, Siobhán. Eu sei que prometi para Da que cuidaria de você. Eu o decepcionei.

Decepcionei a todos. Mas Michael conhece um lugar seguro.— Oh, Sean... — murmurou, recordando-se da expressão assustada do irmão.Não diga nada a ela, rapaz. Será mais seguro se ela não souber de nada. Não diga nada, meu

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amor, nem mesmo que estivemos aqui. Adeus, Siobhán.Aquelas foram as últimas palavras que ela ouvira do marido.Não havia lugar seguro nos domínios de Glenleigh. Quando Michael e Sean saíram do chalé,

depois de se despedirem, os homens do senhorio os esperavam. Eles foram levados para longedela e de Ashleen para sempre.

Cega pelas lágrimas, Siobhán virou-se para ir embora, e quase colidiu com uma muralha demúsculos que parecia ter se materializado do nada.

— A senhora está bem?Assustada com a voz desconhecida no ambiente demasiado familiar, ela olhou para cima e

fitou o demônio.

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Capítulo II

Por um momento, ninguém disse nada. Paralisada, Siobhán olhou para o semblante sombriodo estranho. Podia notar apenas os olhos brilhantes, destacando-se no escuro da noite. Envoltonuma capa e botas pretas, ele se elevava diante dela de forma intimidante. Uma das mãosapertava um cajado de ébano, e a outra se escondia nas dobras da capa.

Até mesmo a voz era sombria, com um intrigante sotaque irlandês.— Peço perdão — ele disse em voz baixa, como se não quisesse ser ouvido por mais ninguém.

— Não queria assustá-la, mas achei que precisasse de ajuda.Siobhán o encarou, tentando distinguir as feições na noite mal-iluminada. Os cabelos escuros e

longos caíam sobre os ombros largos, esvoaçando sobre o queixo barbeado. Enquanto osarrumava, o desconhecido foi forçado a se apoiar pesadamente na bengala que segurava na mãoesquerda.

Uma sensação sufocante de medo tomou conta de Siobhán. Não tinha estado tão perto de umhomem desde...

— Não me toque! — gritou com voz trêmula, tropeçando ao se afastar quando ele estendeu amão para alcançar seu braço. — Quem é você?

Com expressão aborrecida, Rory fechou os dedos ao redor do pulso dela com um apertofirme.

— Eu poderia lhe fazer a mesma pergunta. Pare de lutar! — ordenou, irritado com a tentativafrenética da mulher de se livrar do contato. — Posso lhe assegurar de que não tenho o hábito demolestar mulheres desconhecidas com quem trombo em um cemitério. — Ele estudou a figuraretraída, com cada fibra do corpo tensa e vibrante. — Você é bem desconfiada, não é?

— Quem é você? — ela insistiu, irritada. — É um forasteiro por aqui! Nunca o vi antes. O quequer?

Rory não pôde deixar de sorrir. Onde estava a lendária hospitalidade irlandesa de que selembrava? Certamente não havia nada de acolhedor naquela expressão selvagem, embora osolhos mostrassem uma ardente paixão mantida sob controle havia muito tempo.

Então ele refletiu friamente que, se fosse uma das inquilinas de lorde Percival Glenleigh,talvez tivesse boas razões para desconfiar de estranhos.

Porém, não podia revelar sua verdadeira identidade àquela mulher ferida. Apesar de suaevidente beleza, ela obviamente tinha sofrido. O luar pálido refletia as manchas das lágrimas norosto alvo, o tremor da boca macia e vermelha e o desafio escondido nos olhos brilhantes.

— Minha identidade não é importante. Quando a vi, pensei que talvez precisasse de ajuda.Vejo que estava enganado.

Ele se virou para ir embora, mas, pouco familiarizado com as pedras e o musgo do cemitério,afundou o pé num sulco no solo que o fez tropeçar e cair de joelhos.

— Maldição!Enquanto tateava a grama às cegas tentando encontrar a bengala, sentiu o toque de uma mão

em seu ombro. Ao se virar, viu a mulher a seu lado. Um ruga de preocupação cingia a testa dela.— Deixe-me ajudá-lo.O orgulho e a raiva o fizeram livrar-se da mão que ela oferecia. Colocando-se

desajeitadamente de pé, ele estremeceu sob o efeito da dor lancinante na perna e obrigou-se aimpostar à voz o tom mais arrogante que pôde:

— Se você puder fazer a gentileza de encontrar minha bengala, prometo que a deixareisozinha com suas memórias.

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Siobhán encarou-o por um momento antes de se virar para procurar a bengala. Entregou-asem dizer nada, estudando o rosto viril agora que a lua havia saído do leito de nuvens.

Os cabelos negros ondulavam com a brisa da noite úmida. Cílios longos emolduravam os olhosescuros e turbulentos. O rosto bronzeado sugeria incontáveis horas passadas ao ar livre. Por outrolado, ele tinha a aparência de um cavalheiro. As feições másculas estampavam uma dor antiga.

Em silêncio, ele apanhou a bengala com a mão esquerda, mantendo a outra escondida sob acapa. Por quê?

Com um súbito sentimento de culpa, Siobhán combateu a curiosidade, sentindo-semiseravelmente desleal à memória de Michael.

— Se é um forasteiro como imagino, é melhor tomar cuidado com onde pisa. As estradasnesta região podem ser traiçoeiras, senhor.

— Agradeço o conselho, senhora.Inclinando a cabeça num cumprimento cortês, o homem se virou e afastou-se mancando.Siobhán observou-o, e um arrepio percorreu sua espinha. Quem era aquele homem, e o que

significava sua presença tão perto do túmulo de Michael?

Rory não conseguiu relaxar. Ao voltar para Ballycashel, desfez as malas e foi retirando ospoucos pertences que trouxera. Afora algumas roupas confortáveis, seus livros favoritos e duasbengalas, o restante da bagagem chegaria nos dias seguintes.

Depois de se certificar de que Kathryn estava dormindo, ele rondou sem descanso pela casa,passando de um cômodo para o outro com crescente sentimento de horror.

A biblioteca, outrora magnífica, encontrava-se no mais completo caos, com livros querepresentavam verdadeiras relíquias espalhados por todos os lados, recobertos de pó. Na sala dejantar, a mesa continuava arrumada como para uma grande festa, com talheres engordurados eopacos repousando ao lado de pratos que ainda continham restos de comida. Apenas um pequenonicho fora limpo, provavelmente por Hannah. A cozinha, porém, estava impecável.

Ele fez uma pausa à porta do salão de festas, lugar que abrigara cenas gloriosas de luxo eesplendor. Lembrou-se de que ali sua mãe havia trabalhado com submissão servil. Quase podiaver dezenas de fantasmas rodopiando alegremente no amplo salão.

Rory deixou deliberadamente o escritório por último. Empurrando com cautela a portaentreaberta, descobriu que estava exatamente como o deixara em seu último dia em Ballycashel.O sorriso de escárnio no rosto maligno de Glenleigh e a satisfação em sua voz fria e aristocráticaeram tão vívidos que pareciam reais.

Sinto muito, Doherty, mas o aluguel de seu chalé não é pago há mais de um ano. Você terá dedeixá-lo esta noite.

Mas, senhor, eu tenho uma esposa e um filho!A voz chorosa de Seamus Doherty ecoou nos ouvidos de Rory, e ele cerrou os punhos num

gesto involuntário. Mesmo com dez anos de idade, não era tão novo que não pudesse entender asimplicações das palavras do padrasto.

É óbvio que o senhor sabe disso, milorde.O tom irônico de Seamus provocara uma feroz carranca que vincara as sobrancelhas de

Glenleigh quando ele olhara para o pequeno irlandês de cabeça avantajada, desproporcional àestatura.

Não tenho ideia do que você está falando, Doherty. Por acaso, está tentando me chantagear?Eu tinha a intenção de lhe oferecer transporte para outro distrito, talvez até mesmo alguns xelinspara a viagem para a América. Agora, mudei de ideia. Saia de sua casa ao cair da noite ouqueimarei aquele casebre com você e sua família dentro!

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Rory correra de volta à casa para avisar a mãe. Ela reunira às pressas as poucas elamentáveis posses e o levara à casa de Hannah, que os acolhera e tentara protegê-los.

Porém, Seamus os encontrara.Um gemido escapou dos lábios de Rory, e ele pressionou as mãos sobre os olhos para se livrar

dos fantasmas. Seamus, sua mãe e lorde Percival Glenleigh estavam todos mortos. Sua amadaesposa, Charlotte, estava morta. Restavam apenas ele e Kathry n agora. E claro, havia Hannah.Ela fora sua salvação no passado. Talvez agora pudesse trazer esperança não somente para ele,mas para toda a aldeia.

Ele olhou pela janela. O sol pálido e aquoso começava a trilhar seu caminho através daescuridão do amanhecer. Ainda era cedo, mas Hannah certamente estava acordada. Ela semprese levantava com os primeiros raios de sol, segundo a mãe de Rory .

Quase imediatamente, ele ouviu uma batida na porta do escritório.— Entre!Hannah obedeceu, e o calor dos olhos e a alegria no sorriso lembrou-o dolorosamente do

passado. Antes que pudesse falar, ela se apressou em tomar-lhe a mão.— Ah, Rory, meu querido! Você tem o mesmo espírito de sua mãe! Percebi isso ontem à

noite, mas fica ainda mais pronunciado à luz da manhã.Rory enrijeceu ao toque, retraindo-se sem querer.— Eu pedi que não me chame assim, Hannah — disse severamente. — Meu nome aqui na

Irlanda é David Burke, e preciso que se lembre disso. Para que eu tenha sucesso em Ballycashel,minha verdadeira identidade nunca deverá ser revelada.

— Oh, desculpe-me... Foi um deslize dos lábios de uma velha. Mas, diga-me... — O tom devoz dela se tornou sério. — Você realmente acha que pode enganar a todos? Não me refiro aosjovens, pois eram quase todos bebês quando você foi embora. E quanto aos mais velhos, comoMeg Kilpatrick, Eileen O’Farrell e Liam Brady? Sobraram apenas poucos de nós, mas elespodem se lembrar do rapaz pequenino que costumava cantar e dançar para diverti-los.

— Apesar da semelhança com minha mãe, não há mais nada em mim que me torne familiar.E depois de tudo — acrescentou secamente —, eu sou o novo senhor e mestre da aldeia. Duvidode que me questionem.

— Por que deve manter segredo? Você não veio tirá-los de suas terras e deixá-las para asovelhas e o gado.

— Você tem certeza disso? — Sua voz permaneceu calma e intensa, enquanto ele olhava comfirmeza para a mulher mais velha. — Talvez seja exatamente o que eu pretenda fazer.

— Oh, não acredito! Você não seria filho de Mary O’Brien se fosse tão cruel.— E quanto ao meu pai? — O timbre dele assumiu uma gravidade perigosa. — Ou devo dizer

“pais”? Não se esqueça de que representavam o próprio mal encarnado.— Sim, é verdade, e ambos deixaram marcas em você. É inútil negá-lo, rapaz. Eu vi o que a

rejeição do mestre e a violência de Seamus Doherty fizeram com você. Está tentando me dizerque seria capaz de expulsar uma família indefesa das terras simplesmente porque gastaram aspoucas moedas com alimentos, em vez de usá-las para pagar o aluguel? Que você negaria umfilho de sua própria carne e sangue?

Uma onda de desolação tomou conta de Rory David Doherty enquanto pensava nos pecadosde seus pais, o pai biológico, que negara a existência do filho ilegítimo, e o padrasto, que oespancava desde o momento em que ele era capaz de andar. O mal que fluía por suas veiasenvenenara todos que o rodeavam.

— Eu sinceramente não sei — falou em tom baixo e amargo. — Só sei que devo desvendar acharada e chegar a uma conclusão, seja lá qual for.

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Hannah o fitou, a compaixão suavizando o rosto envelhecido.— Eu sei, rapaz. Eu o conheço desde que nasceu, e acredite ou não, sei que tipo de homem se

tornou. Você já sofreu, é verdade, mas está mais forte por causa disso. E eu o vi com aquelacriança. É incapaz de levantar a mão para sua filha, tanto quanto um peixe não pode voar.

Ah, como ele queria acreditar em Hannah! Mas como esquecer a maldição que se assentaraem seus ombros? Primeiro a mãe, e depois Charlotte haviam pagado por seus pecados. Kathry ncertamente não escaparia ilesa.

Não, talvez ele nunca se rebaixasse a ponto de atacar uma criança. Contudo, uma onda geladaatingiu seus ossos quando a eterna questão voltou a assombrá-lo: ele poderia proteger a filha doeterno mal que o acompanhava?

Livrando-se dos pensamentos obscuros, voltou a atenção para assuntos práticos.— Eu gostaria de visitar o padre da aldeia, de preferência antes da missa da manhã. Tenho

assuntos a discutir com ele que certamente afetarão muitos dos seus paroquianos.— O padre Conor ficará feliz em recebê-lo. — Hannah apertou as mãos, apreensiva. — Você

dirá a ele quem realmente é?Rory suspirou, exasperado pela intromissão bem-intencionada.— Direi a ele que sou David Burke, o novo proprietário de Bally cashel, e que gostaria de

contratar uma equipe para arrumar a casa e a propriedade. Vou pedir-lhe que me recomendeum mordomo, bem como uma governanta para Kathryn. Eu não tenho ninguém a não ser você— acrescentou com uma reverência, e Hannah corou como uma adolescente — em quem possaconfiar aqui.

— O bom pastor nunca violaria a santidade do confessionário! — ela retrucou, insatisfeitacom a decisão do sobrinho.

— Talvez não. Mas seria sábio lembrar, Hannah, que as palavras deslizam dos lábios commuita facilidade. — Ele se virou para sair e acrescentou: — Quando Kathry n acordar, veja doque precisa. Talvez possa encontrar alguns livros ou brinquedos para entretê-la até que euencontre uma governanta adequada para cuidar dela.

— E se ela perguntar onde você está?As palavras foram arremessadas num desafio que enrijeceu os ombros de Rory. Sua mão

apertou convulsivamente a bengala.— Diga-lhe que saí para comprar um pônei. É a única coisa que ela deseja ter, além da

própria mãe.

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Capítulo III

Ele se sentiu com dez anos novamente.Assim que entrou na pequena igreja de madeira e viu a cruz de Santa Brígida formada de

juncos que pendia sobre o altar, Rory foi transportado para um tempo que ele ansiavadesesperadamente esquecer.

As velas espalhavam luz sobre a escuridão reverente, e o cheiro de incenso pairavapesadamente no ar. Ele quase podia ver o velho padre Doogan surgir à sua frente, à espera deque confessasse seus pecados.

Em vez disso, assim que a porta se fechou atrás dele, um homem pequeno e despretensiososaiu da sacristia para cumprimentá-lo. Rory sorriu cordialmente e estendeu-lhe a mão.

— Bem-vindo, meu filho. — O dono da voz agradável o fitou com olhar de curiosidade. —Sou o padre Conor McDevitt. Posso ajudá-lo em alguma coisa?

— Acredito que sim. — Rory assumiu sua pose mais arrogante. — Meu nome é Burke. DavidBurke. Sou o novo proprietário de Ballycashel.

— Nesse caso, quero ser o primeiro a lhe oferecer boas-vindas. Faz muito tempo que a CasaGrande está vazia, e desejo-lhe toda a felicidade lá, milorde.

Rory enrijeceu.— Eu não possuo tal título, padre.— Então, que seja apenas sr. Burke. Bem-vindo a Ballycashel, sr. Burke. Trouxe a família

para desfrutar sua nova casa?Rory não podia deixar de sorrir com a bisbilhotice amigável do padre. Afinal, encontrara a

mesma coisa nas pequenas aldeias por toda parte. O padre Doogan não seria exceção. Noentanto, a menção da família trouxe à tona a antiga dor que o acompanhava.

— Eu tenho uma filha, Mary Kathryn, que tem dez anos de idade. Sou viúvo.— Ah, Deus tenha piedade de sua pobre esposa, e do marido e da filha que deixou para trás.

Veio em busca de uma nova vida?— Minhas razões são particulares, padre, e não quero partilhá-las nesse momento. No entanto,

venho pedir seus conselhos.O padre entendeu que havia ultrapassado os limites e cravou o olhar nas mãos cruzadas.

Provavelmente, receava retaliação por ofender o novo mestre.No tempo de Glenleigh, ele por certo teria recebido retaliação.Com esse pensamento em mente, Rory suavizou o tom de voz.— Perdoe-me, padre, mas acho melhor deixar esse assunto de lado. Estou à procura de

funcionários apropriados para Ballycashel, tanto para a casa como para as terras. Preciso decriados para realizar trabalhos diários, bem como um camareiro e pelo menos dois assistentes.Além disso, tenho de encontrar uma governanta para minha filha. Receio que não seja fácil, ajulgar pelo que vi. Parece-me que os aldeões não tiveram estímulo para promover sua educação.— Certamente não às custas de Glenleigh, ele completou em pensamento. — Talvez o senhortenha alguns contatos.

— Acredito que conheça a moça ideal para esse trabalho! — Um sorriso iluminou o rostoescarpado do padre Conor. — É uma jovem viúva, cujo pai ensinava letras e números por algunsxelins por semana.

— Sei — murmurou Rory, e um formigamento repentino começou a fazer cócegas napenugem da nuca.

— Siobhán Desmond é o nome dela. O senhor não encontrará mulher com grau de

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escolaridade mais alto aqui em Ballycashel. Ela tem uma filha, mas sua avó, MargaretKilpatrick, pode tomar conta da criança. Meg tem sido como uma mãe para a menina desde...

— Vou procurá-la — Rory interrompeu, sem querer ouvir a opinião do sacerdote sobre a sra.Kilpatrick.

Margaret Kilpatrick. Vovó Meg! A mulher devia estar bem velhinha, ele imaginou.Certamente, a visão dela já não era a mesma. Ela nunca o reconheceria.

No entanto, ele jamais se esqueceria de vovó Meg e do que fizera naquela noite chuvosa,quando tinha apenas dez anos de idade, antes de tudo ter mudado.

Afastando as névoas do passado, Rory voltou-se para o padre Conor.— Preciso de pelo menos dois homens para os estábulos. Pretendo criar cavalos de caça, e

quero funcionários hábeis no manejo dos animais.Um brilho repentino iluminou os olhos do sacerdote. Coçando o queixo, ele olhou fixamente

para Rory a ponto de deixá-lo desconfortável.— Se não tem ninguém em mente, posso esperar mais alguns dias.— Não, não... não se trata disso. — O padre estreitou os olhos. — Disse que seu nome é Burke?Confuso com a mudança repentina de assunto, Rory balançou a cabeça, franzindo as

sobrancelhas da maneira que Charlotte dizia que o fazia parecer feroz.— É isso mesmo. Sr. David Burke. Sem título.— E é da América?— Sim, de Baltimore.— Ah... — O padre acenou com a cabeça. — Burke é um sobrenome irlandês. Há muitos

Burke por estas bandas.Rory congelou. Poderia o sacerdote conhecer seu segredo? Teria conhecido Johnny Burke?

Ele o vira pela última vez em Nova York, pouco antes de embarcar no navio que o trouxera devolta.

Mas Johnny nunca trairia sua confiança. Sabia as consequências da traição tanto quanto Rory .Ele flexionou a mão direita e massageou a perna com a outra. Forçou-se a falar, incomodado

com o olhar astuto do padre.— Sou americano e vivi na América toda a minha vida.— Em Baltimore.— Entre outros lugares, sim.— E que outros lugares seriam esses? Veja, nós, sacerdotes, raramente viajamos para fora da

Irlanda, e eu sempre tive vontade de conhecer o mundo.Rory olhou fixamente para o rosto inescrutável do sacerdote. Havia mais do que isso, embora

não tivesse certeza de quanto.— Viajei pelo rio Mississípi e passei algum tempo em Nova York.— Há uma grande comunidade irlandesa em Nova York, desde a Grande Fome.— De fato. Carregamentos chegam todos os dias.— É trágico o que fizeram com nosso povo!— Sem dúvida. — Rory não queria mergulhar mais fundo naquelas águas. A causa da Irlanda

já não era uma das suas preocupações. — Bem, padre, se não tem sugestões imediatas dequalquer camareiro, posso visitá-lo amanhã. Assim, terá mais tempo para pensar.

— Só um minuto, milorde. — O padre refletiu por um momento. — Conheço dois irmãos naaldeia próxima, Joe e Frank Kerrigan. Eles trabalharam com cavalos antes, e eu diria que têmuma afinidade espantosa com os animais. Ambos estão sem trabalho, e tenho certeza de que, secontratá-los, o senhor ficará mais do que satisfeito com a aquisição.

— Muito bem. Envie ambos para Ballycashel, assim como os outros candidatos para as outras

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posições que mencionei. Minha governanta, a sra. Gorman, cuidará de entrevistá-los.— Sra. Gorman? Seria Hannah Gorman de Clifden? E como ela conseguiu garantir uma

posição na Casa Grande, se não se importa de responder?Rory se importava, mas fez o possível para não demonstrar. Era verdade que quanto menos

perguntas aquele padre fizesse, melhor seria. Porém, não podia permitir que tivesse qualquerdesconfiança a seu respeito.

— Nos conhecemos em Galway, onde passei alguns dias com minha filha antes de vir paraBally cashel. A sra. Gorman estava procurando emprego e minha filha se apegou a ela. Pareceser competente — acrescentou, inventando toda a história enquanto falava. Ele fez uma anotaçãomental para inteirar Hannah mais tarde a fim de que confirmasse sua versão caso fossequestionada. — Bom dia, padre. Agradeço as indicações.

— Deus o abençoe, milorde.Rory atravessou a nave, massageando a perna latejante, e teve de parar na última fileira de

bancos para descansar. Entretanto, aquela dor não era nada em comparação às memórias que oatingiram como as asas de uma ave de rapina.

Margaret Kilpatrick. Vovó Meg. Uma mulher alta, mais alta que o homem que fora seumarido por mais de quarenta anos. O funeral de Joseph Kilpatrick estava vívido em sua memória:as feições dos familiares cingidas pela tristeza, o canto fúnebre, a garrafa de uísque passando demão em mão...

Seamus bêbado depois do enterro, chegando em casa para bater na esposa e no enteado, pelosimples motivo de estarem vivos.

Ele não conseguia se lembrar exatamente do que havia feito no dia em que conhecera vovóMeg. Talvez estivesse cantando ou tentando aprender a ler a poesia que tanto amava. Ou então,ele e outros meninos da vila brincavam perto do riacho, pilhando os peixes do proprietário. Fosseo que fosse, Seamus Doherty o pegara e o levara para casa enquanto o espancava pelo caminho.Seamus batera nele até que perdesse a consciência, e ele teria morrido se não fosse pela mulherque se atrevera a salvar um menino das mãos de um louco.

Por acaso, vovó Meg estava no chalé ensinando sua mãe a fazer renda, e intercedera em seunome. Depois de afastar o brutamontes que quase lhe tirava a vida, pedira-lhe para cantar eelogiara o bom rapaz que se tornara. Antes de sair, fizera um sermão que havia deixado Seamusenvergonhado.

Querida vovó Meg!E então, havia seu filho. Rory nutria grande admiração por Sean Kilpatrick. O rapaz fora

generoso ao compartilhar com ele os poucos livros que tinha sido capaz de manter. Quandocriança, Rory adorava folhear os exemplares de poesia de Sean com uma reverência quebeirava o terror. O árduo empenho em aprender a ler, no entanto, fora recompensado. O únicoprofessor da aldeia se oferecera para ensiná-lo sem lhe cobrar honorários, sabendo que Seamusnão disporia de nem um centavo para que Rory tivesse mais educação que ele próprio.

E agora, a filha dele se tornaria a governanta de Kathry n.Rory se lembrava de Siobhán, mesmo que fosse pouco mais que uma criança quando ele

fugira da Irlanda com a mãe e Seamus Doherty. Lembrava-se vagamente de uma meninamagricela, alta para a idade, com os cabelos loiro-avermelhados do pai e os olhos verdesbrilhantes, cheios de curiosidade, como os da mãe.

Sua família teria sobrevivido à Grande Fome? O padre Conor mencionara que Siobhán eraviúva e tinha uma filha. Uma onda de comiseração o invadiu. Seu marido teria morrido durante aGrande Fome, ou antes? Que idade teria a filha? Ela chegara a conhecer o pai? Siobhán amava omarido?

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Ele afastou da mente os pensamentos perigosos. De onde viera aquilo? Na certa, identificara-se com o sentimento de perda que Siobhán tivera com a morte do marido, a mesma desolaçãoque ele próprio tinha sentido quando Charlotte havia morrido.

Mas, ao contrário de Rory O’Brien, Siobhán Desmond não era amaldiçoada.Ou era? Talvez toda a aldeia de Ballycashel fosse amaldiçoada. Talvez tudo o que lorde

Percival Glenleigh uma vez tocara estivesse condenado.Seus pensamentos foram interrompidos por uma voz feminina chamando na escuridão.— Padre?...— Receio que o bom padre esteja ocupado no momento — Rory respondeu, imaginando

quem seria a dona daquela voz melodiosa. — Ele deve retornar em um momento.Siobhán congelou no momento em que reconheceu a voz do estranho que a abordara no

cemitério na noite anterior. Sob a luz fraca da capela, ela finalmente pôde estudá-lo claramente,e sentiu uma onda de leveza enquanto olhava para seu rosto.

— Não tema. — O homem sorriu. — Asseguro-lhe de que não tenho nenhuma intenção desequestrar seu pároco ou você. Vim a negócios.

— Negócios? — Siobhán ecoou, intrigada. — Achei que o senhor fosse... como dizer?... Bem,um viajante de passagem pela nossa aldeia.

— Decidi ficar — o homem respondeu com amabilidade, curvando-se numa mesura. —David Burke, a seu serviço, senhorita.

A maneira cortês e o sotaque arrastado da voz suave atordoaram Siobhán por um instante.Incapaz de falar, ela levou alguns segundos para registrar o sentido das palavras.

David Burke! Então, o novo proprietário de Bally cashel era aquele homem moreno, com osprofundos olhos azuis que a fitavam tão atentamente? Seus ombros largos e a alta estatura faziamaté mesmo Siobhán, mais alta que a maioria das mulheres de Ballycashel, sentir-se pequena. Opeito e os ombros largos se evidenciavam sob o manto negro. Aquele era o homem que guardavaem suas mãos o futuro do vilarejo.

Sobre o cabo da elegante bengala, diferente da que ela vira na noite anterior, repousava a mãoesquerda, forte e firme, acostumada ao trabalho duro. Contudo, mais uma vez, a mão direitaescondia-se no bolso do casaco.

Sentindo o olhar sobre si, Burke a encarou como se a desafiasse a falar. Finalmente elaconseguiu encontrar a voz.

— Bem-vindo à aldeia, milorde. Ouvimos falar que Bally cashel foi vendida. Que o senhorpossa viver em paz e prosperar em sua nova casa.

— A senhorita é uma das minhas inquilinas... senhorita...?— Senhora. Meu nome é Siobhán Desmond. Minha família vive em Ballycashel há muitas

gerações, cultivando as terras por todos esses anos, exceto durante a Grande Fome.Será que as palavras tinham soado insinceras? Ele a fitava quase em pânico. O azul dos olhos

aprofundou-se, assumindo o tom da meia-noite, e a mão apertou convulsivamente a bengala.— Há algo errado, milorde?Quando ele não respondeu, Siobhán começou a tagarelar com nervosismo, e o sotaque

irlandês tornou-se cada vez mais carregado enquanto as palavras ganhavam velocidade.— Desculpe se fui rude, senhor. Veja, nós só sabíamos que o senhor tinha comprado a

propriedade, e não qual poderia ser seu título. Lorde Glenleigh era um conde, assim como o pai eo avô, mas não faço ideia de qual seja o seu título, ou até mesmo se existe a mesma hierarquiana América, lugar de onde o padre Conor disse que o senhor vem...

— Basta! — O comando severo a silenciou. — Meu nome é David Burke. Sr. David Burke.Não possuo título, nem estou interessado em adquirir um. Meu interesse se restringe a contratar

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empregados para a minha propriedade. Esse é o negócio que me trouxe aqui hoje.— Entendo.Siobhán, todavia, não entendia. Não completamente. Por que ele não tinha contratado

funcionários em Galway, ou mesmo em Londres, como a nobreza costumava fazer? Por queestaria interessado em seus arrendatários, a menos que planejasse ficar em Ballycashel? Talveztivesse família nos Estados Unidos que se juntaria a ele uma vez que isso fosse resolvido.

Por alguma razão, o pensamento a inquietou. No entanto, de alguma forma, ela não achou queuma mulher estaria à espera dele em casa. O olhar sombrio, a postura tensa, as linhas de tristezaque enquadravam a boca sensual sugeriam uma profunda melancolia. Siobhán ficou imaginandoque tipo de lesão o impedia de andar sem ajuda da bengala. Por que ele insistia em esconder amão direita? E por que um americano supostamente rico estaria a milhares de quilômetros dedistância de casa para resolver negócios naquele canto varrido pelo vento da Irlanda?

— Ah, aqui está você, Siobhán! Perdoe-me, milorde. Vejo que já conheceu a sra. Desmond.É uma estranha coincidência ela ter aparecido como por um passe de mágica logo depois demencionarmos seu nome.

— Estavam falando de mim? Por quê?— Sua Senhoria, isto é, o sr. Burke está à procura de uma governanta para a filha. Expliquei-

lhe que, como filha do professor da aldeia, você é a candidata ideal para a posição, se Meg pudercuidar de Ashleen.

Uma filha! Ele tinha uma filha? Será que se parecia com ele, com cachos escuros e olhosazuis? E quanto à esposa?

Não havia dúvida de que aceitaria a oferta. Deus sabia que recusar levaria mais de umhomem ao sofrimento.

— Tenho certeza de que vovó Meg pode cuidar de Ashleen, senhor. Embora tenha tido poucaeducação formal, adquiri bom conhecimento dos princípios básicos, os quais repasso para minhaprópria filha. Presumo que a sua filha será enviada para a escola na idade certa.

Um brilho fugaz cintilou nos olhos de Burke.— Talvez — disse brevemente. — Cuidarei disso quando chegar o momento.— Quantos anos ela tem?— Kathry n tem dez anos de idade.— É três anos mais velha que minha Ashleen.— De fato.Embora o tom de Burke denotasse desinteresse, Siobhán percebeu o anseio que soava nas

profundidades de sua alma. Mas, por quê?— Aceita minha proposta, então? Já que o padre Conor me informou de que é viúva, imagino

que uma renda extra será benéfica. Há outros membros de sua família que precisem deemprego?

A angústia dilacerou o coração de Siobhán.— Somos apenas três: eu, minha filha e minha avó.— E então?Siobhán tomou uma decisão repentina.— Sim, milorde, aceito a proposta. Só Deus sabe como preciso do dinheiro. O pouco que

temos mal dá para comer, e nem sequer sobra para ser investido no cultivo de sementes paraeste ano.

Seria imaginação, ou um brilho da raiva tinha perpassado o rosto inexpressivo? Mas por queaquele homem se importaria se o povo de Ballycashel estava bem alimentado ou não?

— Você não tem dinheiro para as sementes?

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— A última safra não foi abundante, e lorde Glenleigh, seu antecessor, não era o maisgeneroso dos senhorios. Não se preocupe, milorde, eu farei um bom trabalho para merecer opagamento.

— Não tenho nenhuma dúvida disso. — Os cantos da boca sensual se levantaram, exprimindoadmiração. — Esteja em Ballycashel amanhã de manhã. Minha governanta, a sra. Gorman, alevará a Kathryn e cuidará para que tenha tudo de que precisa.

Com uma leve inclinação de cabeça, David Burke colocou o chapéu e caminhoudesajeitadamente para fora da igreja, com a capa ondulando atrás dele como uma nuvem detempestade, predizendo destruição.

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Capítulo IV

— Ah, sr. David Burke, o senhor é um homem ocupado... — Siobhán parou diante dasmaciças portas de carvalho na fachada da Casa Grande. — Metade do vilarejo deve estartrabalhando aqui esta manhã!

Ela olhou ao redor, tentando observar todas as atividades de uma vez. Trabalhadores ocupadosreparavam os estábulos, a horta e as dependências da casa principal. Dois magníficos cavalosempinavam-se dentro do cercado recém-construído, e um alegre pônei de pelagem acinzentadapastava na grama recém-cortada. Quatro jardineiros arrancavam ervas daninhas e podavam ahera das paredes, e a dupla de pedreiros consertava a passarela que atravessava o riacho.

As portas e janelas escancaradas permitiam a circulação do ar estagnado dos últimos meses.Dentro da casa grande, mulheres limpavam e poliam o piso de madeira, arrancavam teias dearanha do teto e batiam tapetes para tirar a poeira acumulada.

Então, Burke realmente pretendia ficar em Ballycashel? O pensamento a tranquilizou, emboraela não soubesse explicar o porquê. Afinal, o que o novo mestre tinha a ver com ela?

Antes que os pensamentos pudessem ir mais longe, uma menina correu para fora, seguindodiretamente para o cercado dos cavalos. Alta e magra, com cabelos escuros esvoaçando nabrisa, Siobhán não teve dúvida de que era sua nova pupila. Embora não pudesse ver direito, elateve certeza de que os olhos eram azuis, assim como os do pai.

Ao vê-la, a menina correu em sua direção, a curiosidade iluminando os olhos que eram defato azuis, num tom mais claro que os de Burke.

— Olá! Sou Kathryn. A senhora vai trabalhar para o papai?— Sim. — Siobhán sorriu, encantada com a garota. — Sou a sra. Desmond, sua governanta.— Foi o que pensei. Todo mundo já está aqui.— Todo mundo?A criança acenou com a cabeça, vigorosamente.— Oh, sim, tem muita gente aqui agora. Não é mais assustador como ontem à noite. Estava

escuro, e tive medo de sair do meu quarto e me perder. Mas agora temos aias, cozinheiras,jardineiros e até mesmo um cocheiro para o meu pônei. Ah, para Ree e Maeve também. — Elaapontou para os dois formosos animais no cercado. — Eles não são lindos?

— São maravilhosos! E qual é o nome do seu pônei?Kathryn franziu a testa.— Ele ainda não tem nome. Papai o trouxe para casa ontem à noite, e eu estava dormindo. Só

o conheci hoje de manhã. Como você acha que devo chamá-lo?Enquanto conversavam, as duas seguiram para o cercado. O pônei se aproximou de Kathryn,

mas o magnífico garanhão puro-sangue negro se empinou, relinchando em desafio.— Oh! Ele é tão lindo! — Kathryn acariciou o focinho aveludado do pônei.— É um garotão forte e resistente. — Siobhán acariciou as orelhas macias. — Parece capaz

de levar você para dançar nas estrelas.— Oh, esse é o nome perfeito para ele! — Kathryn exclamou em voz baixa. — Star Dancer.

Obrigada, sra. Desmond! Sei que vamos nos entender maravilhosamente bem!Siobhán mal pôde conter o ímpeto de acolher a menina em seus braços e sufocá-la em um

abraço. No entanto, sabia que não era correto tomar tal liberdade com a filha do patrão. Com umgesto contido, alisou a mecha de cabelos negros e ajeitou-a por trás da orelha de Kathryn.

— Parece que o cavalo de seu pai não é tão amigável quanto os nativos. — Ela olhou comadmiração para o animal. Num impulso, tirou do bolso a maçã vermelha que levara para o

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lanche e entregou-a para a garota. — Será que isto o deixará mais amigável?Um sorriso malicioso transformou o semblante de Kathryn de solene em animado.— Vale a pena tentar, não é?A menina estendeu a maçã, e o cavalo a farejou com cautela. O olhar espantado de deleite

atravessou o rosto de Kathryn.— Está vendo? — Siobhán disse, triunfante. — Ele gosta de você.— Kathry n!A menina deu um pulo ao ouvir a voz áspera, cujo eco fez o cavalo arisco relinchar com

nervosismo. Kathry n e Siobhán se viraram para ver David Burke vindo em sua direção.Ele é tão magnífico quanto seus cavalos, Siobhán pensou, com a respiração presa na garganta.

As sobrancelhas emolduravam os olhos claros num arco perfeito. Os cabelos ondulando sobre osombros largos assemelhavam-se a asas de ébano, fluidos e reluzentes. Ele trazia consigo umabengala diferente da que tinha usado na capela, e mais uma vez a mão direita estava enfiada nasdobras do manto.

Ele se dirigiu a Siobhán, ignorando a presença da filha.— O que significa isso?— Papai, nós...— Silêncio, Kathry n! — ele trovejou. — Estou falando com a sra. Desmond.— Mas... — A garota calou-se sob o olhar feroz do pai, embora um traço de rebeldia

permanecesse no olhar ferido.Burke se voltou para Siobhán.— Repito, sra. Desmond, qual é o significado disso?Rory tinha de dar certo crédito à mulher. Ela sustentou o olhar com o queixo empinado e

chispas de fogo flamejando nos olhos verdes. Em deferência à criança, manteve a voz baixa euniforme.

— Sua filha e eu estávamos apenas nos familiarizando com os cavalos, senhor. E uma com aoutra. — Ela enviou a Kathryn um sorriso radiante. — Não é verdade, Kathryn?

O estômago de Rory se contorceu quando a filha acenou com a cabeça, sem levantar o olhardo chão. Droga! Ele fizera de novo! A mão direita flexionou-se sob o tecido, e no mesmo instanteKathry n recuou e aproximou-se de Siobhán Desmond, tremendo de medo. A desolação tomouconta dele. Será que conseguiria ser o tipo de pai que Kathryn precisava? O tipo de pai que elamerecia?

Ele respirou cuidadosamente, tentando afogar a raiva.— Eu prefiro que Kathryn fique longe dos meus cavalos, sra. Desmond, particularmente do

garanhão, Ree. Ele é muito sensível e arisco. Nas circunstâncias erradas, pode ser perigoso.Ela o fitou de volta, os seios exuberantes arfando com a respiração pesada.— Tudo o que esses cavalos precisam é de amor e carinho.Os lábios de Rory se contraíram ao ouvir o sotaque irlandês carregado, e ele flagrou-se

imaginando como seria receber amor e carinho daquela mulher que encarnava o espírito dafeminilidade.

Então, o familiar remorso o assolou novamente. Ele nunca poderia ter outra mulher depois damorte da esposa. Já bastava se responsabilizar por Kathryn até que ela tivesse idade suficientepara se casar. Muitas pessoas haviam se machucado pela associação com ele, e as cicatrizesestavam lá para lembrá-lo. O lembrete constante o alertava para jamais permitir que outrapessoa, especialmente uma mulher, fosse tocada pelo seu mal.

Ele se virou para afastar-se e hesitou.— Espero vê-la esta noite antes de ir embora, sra. Desmond. Quero saber como a senhora e

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minha filha se saíram em seu primeiro dia juntas.Ele sentiu o olhar de Siobhán cravado em sua nuca, enquanto andava rigidamente em direção

ao estábulo. Apesar da dor lancinante na perna, obrigou-se a não mancar. Não queria que ela oachasse um inválido patético e sentisse pena.

Mas por que diabos deveria se importar, afinal?, refletiu, irritado.Ainda assim, não pôde resistir e olhou por sobre o ombro. Quando viu Siobhán Desmond

tomar Kathryn pela mão e levá-la para a casa, sentiu um aperto no local onde seu coraçãoestava sepultado.

Era disso que Kathry n precisava: uma mãe amorosa, cuja mão a guiaria para a vida adultacom amor, carinho e a dose certa de disciplina. Era o que ela jamais teria do pai equivocado,cuja vida estava arruinada antes mesmo de seu nascimento.

Rory se apoiou pesadamente na bengala e foi até o estábulo sem mancar. Engoliu um gemidode dor por causa da perna ferida e seguiu em frente, arcando com o ônus de seu orgulho.

O olhar de Siobhán se desviou para o minúsculo relógio de bronze na sala de aula dosaposentos infantis pela centésima vez. Logo seria hora de deixar Kathryn e ir para casa, onde suaprópria filha a esperava. O motivo de sua ansiedade não era preocupação com Ashleen, pois nãosó a avó como todos que viviam em Ballycashel tomariam conta dela. O nervosismo se devia àiminente reunião com David Burke.

Seu novo patrão era um compêndio de contrastes. Ele parecia bruto, mas a superproteçãoferoz com a filha era evidente nos olhos azul-escuros. Era óbvio que adorava Kathry n, ainda queseu olhar evitasse o da menina. Era como se estivesse determinado a se manter distante.

Por quê? E onde estaria a mãe de Kathry n? Teria morrido, talvez no acidente que causara alesão na perna de Burke... E provavelmente na mão direita também, sempre escondida...

Talvez, ela pensou ao seguir para o escritório, estivesse prestes a descobrir. Bateu de leve naporta e abriu-a ao ouvi-lo autorizar sua entrada.

— Vim reportar os progressos de sua filha, milorde.Rory ergueu o rosto com expressão ilegível.— Eu já lhe disse, sra. Desmond, meu nome é David Burke. Pode me chamar de sr. Burke ou

até mesmo de David, se quiser, mas por favor, deixe de fora o formalismo. Isso perturba aindamais minha casual alma americana. — Se eu tivesse alma, ele refletiu.

— Sinto muito, senhor. O antigo proprietário exigia ser tratado assim.— Então, talvez você deva me considerar como um amigo.Siobhán arqueou uma sobrancelha, surpresa. Poucos senhorios se consideravam amigos dos

inquilinos. E quando os lábios viris se contraíram, ela imaginou como ele ficaria mais bonito sedesse um sorriso genuíno.

— Muito bem. Então, suponho que “sr. Burke” servirá. Diga-me, como foi o primeiro dia comminha filha?

Aquele homem raramente usava o nome de Kathryn, ela observou com estranheza.— Kathry n é uma criança maravilhosa — disse com sinceridade. — Suas habilidades de

leitura são excelentes, e ela é muito inteligente. Perguntou-me se havia livros sobre cavalos nabiblioteca, e com sua permissão, vamos explorar o local amanhã para ver o que podemosencontrar.

Ele ficou tenso, como se pressentisse algum tipo de perigo.— Prefiro que fiquem longe da biblioteca. — A voz soou firme. — Eu mesmo vou procurar os

livros quando considerar a sala limpa e segura o suficiente. Aquela biblioteca não é usada háanos, e Glenleigh não cuidava da manutenção. A madeira de alguma prateleira pode ter

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apodrecido.— Como tem tanta certeza?Siobhán foi surpreendida com a exatidão da declaração de Burke. Era verdade que Glenleigh

não se importava com nada além do dinheiro do aluguel que recebia, mas o novo senhorio nãotinha como saber disso.

Burke enrijeceu, e a mão esquerda massageou a perna estendida na frente dele. Ficou emsilêncio por um momento enquanto olhava fixamente para ela. Por fim, endereçou-lhe sorrisoindolente.

— Basta observar a condição vergonhosa da sala, sra. Desmond. É óbvio que Glenleighpassava pouco tempo em casa, ou mesmo na própria Irlanda.

— É verdade. Eram raras as visitas que fazia a Ballycashel — ela concordou, com cada umadessas ocasiões gravadas indelevelmente na memória. — Ele era o que chamamos de umproprietário ausente, a menos que houvesse alguma ocasião para mostrar sua riqueza aos amigos.No entanto, se alguém pedisse um telhado novo, ele se tornava invisível como dentes numagalinha.

Um sorriso amargo torceu os lábios de Rory .— Quer dizer que não houve reparos nas casas desde que Glenleigh morreu?— Ah, desde muito antes disso! — Ela se viu repentinamente assustada com o brilho raivoso

que iluminou os olhos azuis. — Veja, senhor, nós tivemos sorte em Bally cashel. A quinzequilômetros daqui, aldeias inteiras foram dizimadas pela fome. Não fomos tão castigados,embora não tivéssemos quase nada para comer. O milho que os homens de Trevely an nosforneceu foi o que nos sustentou. Ficamos surpresos com a ajuda, uma vez que ele nunca seaventurou para fora de Dublin.

Lembranças amargas inundaram o coração de Siobhán. Aquele milho fora o último prego nocaixão de seu casamento.

Burke observava atentamente quando ela piscou para conter as lágrimas e engolir algumaemoção desconhecida.

— Foi quando seu marido morreu?Ela arregalou os olhos, espantada, e Rory julgou ver culpa e medo naqueles olhos.— Sim — ela sussurrou por fim, vencida pela emoção.— Sinto muito pela sua perda.Siobhán se empertigou na cadeira, colocando um sorriso corajoso nos lábios voluptuosos.— Não sou a única que perdeu a família. Metade do povo de Bally cashel já sofreu a dor de

perder um marido, uma esposa, um irmão ou irmã, um filho...Rory inclinou-se para a frente, recusando-se a admitir até para si mesmo quão importante era

aquela resposta.— E quantas perdas você sofreu, Siobhán? Quantos de sua família você foi forçada a enterrar

em valas comuns na Irlanda faminta?Siobhán permaneceu em silêncio por um longo tempo, e Rory achou que ela não fosse

responder. Finalmente, falou com uma voz tão baixa e cheia de dor que cortou Rory como umaespada no coração.

— Eu perdi todos. Minha mãe, meu marido, minhas três irmãs e meu irmão, Sean. Ele tinhaapenas quinze anos, mas fazia o trabalho de um homem. — Os lábios carnudos se apertaram eela o fitou com verdadeiro horror. — Desculpe-me, milorde... digo, sr. Burke. Eu não queria falartanto assim. O senhor perguntou sobre Kathry n, e acabei contando a história da minha vida. —Ela levantou-se apressada. — Preciso ir para casa agora. Minha avó está cuidando de Ashleen,mas tenho o jantar para fazer.

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— Não vá.Impulsivamente, Rory estendeu a mão para detê-la, sabendo que sua dor devia ser tão grande

quanto a dele. Não seria maior, por ter perdido mais e por não guardar nenhum tipo de culpa?Um surto de raiva o percorreu ao pensar que Glenleigh deixara aquelas pessoas de bom coraçãomorrer, e apertou a mão dela com uma pressão suave.

Claramente confusa, o olhar dela o percorreu do rosto à mão sobre seu braço.— Não — ela murmurou com voz agonizante. — Eu preciso ir.O tom aflito denunciou o nervosismo de Siobhán, e ela tentou se desvencilhar.Rory a libertou abruptamente, mantendo a expressão impassível. Como podia ter se

esquecido? Como podia correr riscos de forma tão descuidada por causa de um momento de tolacompaixão? Mascarando a dor que sentia, ele flexionou a mão.

— Muito bem, sra. Desmond. Está dispensada. Esperarei um relatório sobre os progressos deminha filha todos os dias, antes que vá para sua casa.

— Sim, senhor.Segurando o manto surrado sobre os ombros, Siobhán saiu do escritório como se estivesse

desesperada para escapar daquela presença repugnante, enquanto Rory tentava se livrar daabsurda dor da frustração.

Ele poderia sondar por respostas no dia seguinte, refletiu. No entanto, não poderia esquecer abreve expressão de terror naqueles olhos verdes, nem o calor do toque na mão delicada.

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Capítulo V

— Ashleen, abra espaço na mesa para o pão, querida.Afastando a mecha de cabelos esbranquiçada de farinha para dentro do gorro, Siobhán retirou

a forma fumegante do forno e levou-a para esfriar.Ashleen se inclinou e inalou profundamente.— Hum... O cheiro está maravilhoso, mamãe. Quando podemos comer?— Você terá de esperar até que esfrie — Meg respondeu com firmeza, com um sorriso

suavizando o tom áspero. — Quando sua mãe voltar da Casa Grande, vamos espalhar manteiganas fatias e fazer uma bela refeição.

— Eu queria que a senhora não precisasse ir.Siobhán viu o lábio inferior da filha se enrugar num muxoxo que a fez lembrar-se de Sean

quando era bebê, e seu coração se apertou. Mesmo depois de cinco anos, ainda sentia falta dojeito travesso, do sorriso fácil e do bom humor do irmão. Ela enxugou as mãos no avental eabraçou a filha.

— Eu sei, meu amor. Mas você passará bons momentos com vovó Meg, e Tom e Noraprometeram levá-la para passear no barco dele. Talvez você possa pescar um peixe paracomermos com o pão, hein?

O rosto de Ashleen se iluminou com um sorriso.— Sim, mas mesmo assim eu preferia que a senhora fosse com a gente...— Ah, querida... — Meg alisou os cabelos vermelho-dourados da menina. — Se desejos

fossem cavalos, os mendigos poderiam montar.— Nós somos mendigos, vovó Meg?A bisavó riu.— Na verdade, não somos! Nossos antepassados foram os Kilpatrick de Ballycashel. Eles

eram reis e rainhas da Irlanda, e nunca tivemos de pedir esmolas a ninguém!Uma rápida batida à porta interrompeu as risadas. Siobhán e a avó se entreolharam. Em

Ballycashel, não era costume as pessoas baterem à porta. Com uma careta confusa, ela foi verquem era.

Siobhán prendeu a respiração, surpresa, quando se inclinou sobre a metade superior da porta eviu o rosto tenso de David Burke.

— Sinto muito por incomodá-la — começou ele, com uma formalidade exagerada. — Possofalar com a senhora um momento?

— Claro. — Siobhán afastou-se e abriu passagem para que ele entrasse. — Não repare nabagunça. Estávamos fazendo pão.

— Então, esse é o aroma delicioso que eu senti durante todo o caminho da Casa Grande paracá? — Burke sorriu, mas não havia humor em sua expressão. — Vim avisá-la de que Kathrynestá doente e vai passar o dia na cama, sra. Desmond. Portanto, não é necessário que vá aBallycashel hoje.

— Entendo. — Siobhán sentiu um calafrio, numa reação automática a qualquer menção dedoença, especialmente em uma criança. — Espero que não seja nada sério.

— Não. É apenas um resfriado. Ela está entediada e gostaria que a senhora estivesse lá paraler uma história, mas prefiro que Kathryn mantenha o repouso. Ela lhe mandou lembranças.

Alívio e ternura inundaram Siobhán. Durante o mês que atuara como tutora de Kathryn, suaafeição pela menina crescia a cada dia. Kathryn era rápida, inteligente, e tinha uma imaginaçãovívida. Tornara-se apaixonadamente devotada ao pônei, batizado como Star Dancer, e adorava

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montar mesmo com a chuva e o vento típicos da Irlanda.— Quem é, mamãe? — Ashleen veio dançando da cozinha e derrapou até parar quando

avistou o desconhecido. — Olá — cumprimentou com educação. — Eu sou Ashleen. Qual é oseu nome?

Siobhán observou atentamente quando Burke olhou para sua filha. Uma miríade de emoçõesperpassou o rosto dele: ternura, surpresa, uma certa cautela...

Burke ajoelhou-se até que seus olhos estivessem no mesmo nível dos de Ashleen.— Meu nome é David. Sua mãe é preceptora da minha filha.— Quem está aí, Siobhán?Quando Meg surgiu atrás dela, Siobhán notou a abrupta tensão de Burke, e a expressão se

tornou ainda mais rígida que antes. Por quê? Embora Meg parecesse severa e inflexível, Burkeera o dono e senhor de Ballycashel. Certamente uma anciã locatária de suas terras não poderiaintimidá-lo.

Ela olhou de um para o outro, confusa, observando o olhar intenso que iluminou o rosto da avó.Era quase como se reconhecesse Burke, embora Meg ainda não conhecesse o novo proprietáriode Bally cashel.

— Vovó Meg, este é o sr. David Burke, senhorio de Ballycashel. Sr. Burke, esta é minha avó,Margaret Kilpatrick.

— Sra. Kilpatrick — ele saudou com uma mesura exagerada.— É um prazer conhecê-lo, milorde — Meg respondeu, cordialmente, ainda estudando-o com

discrição.Rory tentou não se abalar sob o olhar penetrante, sentindo-se com dez anos de idade

novamente.Oh, Deus, que ela não me reconheça!, rezou em segredo.— O senhor machucou a mão?A voz da menina curiosa o trouxe de volta ao momento presente, ao mesmo tempo que enviou

a dor lancinante da mão diretamente para o coração. Tristeza e culpa o angustiarammomentaneamente, obstruindo a garganta, e ele olhou emudecido para a menina.

— Está escondendo a mão. Achei que estivesse machucada.Uma risada trêmula irrompeu da garganta obstruída quando ele estendeu a mão esquerda e

tomou a de Ashleen, maravilhado com sua delicadeza.— Sim, Ashleen, eu me machuquei há muito tempo.— Como?Oh, Deus!O antigo horror o invadiu, e com ele, as lembranças, que lhe invadiram a mente como um

enxame de abelhas furiosas. O calor escaldante... O flamejar de chamas vermelhas... Assufocantes nuvens de fumaça negra... Os gritos e gemidos... O choro de uma criançaaterrorizada... E o desamparo, a sensação de impotência, quando ele percebeu que não poderiasalvar a todos.

— Ashleen, chega de perguntas — repreendeu Meg com firmeza.Rory a fitou com alívio, antes de ser envolvido pelo olhar de compaixão da anciã. O suor frio

brotou em sua testa. Será que ela suspeitava de algo? Será que, de alguma forma, teriaadivinhado sua verdadeira identidade? Será que se lembraria de sua fisionomia? Teria visto nelealguma semelhança com a mãe?

Ele foi salvo da necessidade de uma resposta quando um casal entrou na casa.— Deus abençoe a todos aqui! — disseram em uníssono antes de parar pouco atrás dele,

obviamente envergonhados por encontrarem a presença inesperada do senhor de Ballycashel.

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— Tom! Nora!Ashleen se atirou nos braços dos dois, recebendo abraços calorosos em troca. Rory não pôde

deixar de notar a maneira como os olhares inquisitivos se dirigiram a Siobhán.— Sua Senhoria... — Tom falou primeiro, com o braço deslizando de forma protetora ao

redor da menina. — Sinto muito se o interrompemos.— De jeito nenhum... Fly nn, não é?Ele estava em terra firme, com as maneiras da corte que havia aprendido no Sul servindo-o

naquele momento. Deu ao outro homem um sorriso cordial, com profunda satisfação quando elerelaxou o suficiente para assentir em resposta.

— Sim, senhor. Tom Flynn é o meu nome.— E o nome de sua linda esposa?A jovem ao lado dele sorriu de modo encantador.— Ainda não somos casados, milorde. O padre Conor já foi comunicado da nossa intenção,

mas temos de esperar até o fim da colheita para então realizar a cerimônia.— Ah, sim... Lembro-me agora. Perdoe-me. Você seria Nora MacGreevy, que mora com

seus primos no chalé da viúva Reilly ?A moça arregalou os olhos, surpresa, e Rory se amaldiçoou em pensamento. Na verdade, a

surpresa era por ele saber da existência da viúva Reilly, falecida vinte e dois anos antes. Rory selembrava muito bem do jovem casal com um bebê que tinha assumido a casa e as terras, asmesmas que Seamus Doherty quisera para si e, amargamente, havia conseguido por meio dealguma forma fraudulenta.

Ele tinha de dizer alguma coisa. Todos o encaravam, exigindo respostas que não se atreveria adar, caso quisesse proteger sua identidade. Ele flexionou a mão direita dentro do bolso do casaco,esforçando-se para encontrar as palavras certas.

— De acordo com um dos meus inquilinos, havia uma história em torno do evento. LiamBrady afirmou que um fazendeiro vizinho ficou aborrecido quando os MacGreevy se mudarampara o chalé.

— Sim, é verdade — Meg concordou, mas seu olhar se fixou nele com tanta determinaçãoque Rory teve certeza de que ela suspeitara. — Um homem chamado Seamus Doherty quis oscampos para si, e estava disposto a fazer qualquer coisa para obtê-las.

— Doherty ? — Rory franziu a testa, vendo-se forçado a encobrir seus rastros. — Não conhecinenhum Seamus Doherty entre meus inquilinos.

— Ele partiu — disse Siobhán. — Levou a esposa e o filho para a América, e não o vimosmais.

— É de se admirar que não tenha deparado com ele por lá.As palavras de Meg soaram casuais. Ela não podia saber.— A América é um país grande — foi tudo o que disse antes de se voltar para Tom e Nora. —

Se houver alguma forma de ajudá-lo, Fly nn, ou à sua família, Nora, devem me avisar. Osreparos em Ballycashel estão em fase de conclusão, e com o plantio da primavera, quero tercerteza de que nenhum campo deixará de ser cultivado.

— Isso é, se houver dinheiro para as sementes.As palavras quase inaudíveis vieram de Siobhán, e ele se virou, estremecendo sob o efeito da

dor na perna.— Verei o que posso conseguir, sra. Desmond.Ele acenou com a cabeça e saiu, antes que o calor e a simpatia daqueles irlandeses o

colocassem em mais problemas.Com pressa, ele montou Ree e incitou o cavalo a um galope, esperando conseguir afastar os

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fantasmas que tinham sido evocados.Oh, Deus, o que ele fizera? Por que voltara para lá? Como se o presente não fosse doloroso o

suficiente, agora ele estava não só revisitando os fantasmas do passado, como os convidava asentar em sua sala e lhes oferecia algo para beber!

Ele estava disposto a fazer qualquer coisa para obtê-las.Meg sabia, pensou. Sendo o covarde que era, Seamus Doherty podia chegar perto de matar

pelas terras, mas havia outras coisas que certamente mataria para ter. Rory nunca esqueceria odia em que completara quinze anos: o escarcéu do padrasto ao saber que ele frequentaria aescola de padres, a bebedeira, a surra que havia lhe dado. E finalmente, quando Mary ousaraprotestar...

Ele balançou a cabeça e incitou Ree, tentando em vão se livrar das lembranças. Talvez asuave névoa irlandesa o convencesse de que a umidade em seu rosto era chuva, e não lágrimas...

Cavalgou até não poder mais ver o caminho se descortinar à frente, mas não voltou paraBally cashel até ter certeza de que todos os criados haviam retornado para casa, exceto os poucosque viviam nas dependências dos empregados e, claro, Hannah, que se recolhia todas as noites àssete horas. Haveria apenas Kathry n, e a filha poderia estar dormindo.

Ele odiava o velho mausoléu. Não só era grande demais e cheio de memórias, como nãohavia nenhum calor na casa que pertencera ao homem que ele detestava acima de todos.Encontrara mais aconchego e simpatia no minúsculo chalé de Siobhán Desmond do que em maisde dois anos desde que Charlotte havia morrido.

A imagem de sua mulher flutuou diante de seus olhos, e ele piscou rapidamente para apagá-la, incapaz de suportar a dor e a culpa que o consumiam. Era melhor pensar nas boas-vindas querecebera dos novos inquilinos.

E de uma inquilina em particular...O rosto amável e inocente de Siobhán parecia dançar no meio da névoa à sua frente. Ela não

podia ter mais de vinte e cinco anos, se ele se lembrava bem. Porém, o tempo a marcara comseus efeitos, acentuando as pequenas linhas em volta dos olhos, a ansiedade que nunca deixava orosto bonito quando ela olhava para a filha, a proteção feroz sobre Kathryn.

Ela se tornara uma linda mulher. Ele não podia ignorar a forma como os cabelos flutuavamsobre os ombros em uma nuvem vermelho-dourada, o balanço sensual dos quadris quando elacaminhava, a inocência e o otimismo que brilhavam naqueles olhos verdes confiantes e, aomesmo tempo, tão carentes. Havia um anseio que traía seu próprio espírito torturado, e elealmejava responder ao apelo silencioso escondido no olhar de esmeralda.

Mas não podia. Ninguém melhor do que Rory tinha consciência da verdade: tudo o que eletocava instantaneamente se corrompia.

Ree recuou de repente e se empinou sobre as patas traseiras. Rory freou-o com esforço, epercebeu que o animal havia empacado para não pisotear uma mulher carregando dois baldes deágua. Com palmadas amigáveis no pescoço do animal, tentou tranquilizá-lo, compreendendo asrazões de Ree para quase tê-lo derrubado.

— Peço perdão, senhora — desculpou-se, saltando para o chão a fim de se certificar de queela não estava ferida. — Eu não olhei para onde estava indo.

Ele parou, horrorizado ao ver o rosto familiar de Meg.— Peço mil desculpas, sra. Kilpatrick. Causei-lhe algum dano?Em vez de responder, Meg o fitou por um longo momento com olhos brilhantes que se

evidenciavam mesmo na escuridão.— Então, finalmente você voltou para casa, Rory Doherty .

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Capítulo VI

Rory fitou os olhos de que se lembrava muito bem da infância. Não encontrou nenhumacensura ou condenação nas aquosas profundezas esverdeadas. Encontrou apenas compaixão,uma compaixão tão profunda que derrubou todas as suas defesas e o deixou apenas com averdade.

— A senhora sabe.— Ah, rapaz, eu o reconheci desde a primeira vez que olhei para seu rosto. Ou talvez eu

devesse dizer que suspeitava.Um sorriso de admiração surgiu nos lábios de Rory .— O que lhe deu esta certeza?— Oh, você tem os mesmos olhos de sua mãe. Se Deus pôs a beleza na Terra, foi toda para

Mary O’Brien.— Até que ela se casou com Seamus Doherty. — Rory tentou, mas não conseguiu afastar a

amargura da voz.— Sim. Sempre me perguntei como ela pôde se casar com um homem como Seamus, mas é

claro que, dadas as circunstâncias... — Meg desviou o olhar, envergonhada.Rory teve de sorrir.— Não se preocupe, vovó Meg. — Ele deu palmadas no pescoço de Ree para dar tempo à

mulher mais velha de se recompor. — Estou ciente das circunstâncias do casamento de minhamãe. — Mais consciente do que a senhora imagina.

Fora algo em seu tom de voz que a fizera olhar fixamente para ele?— Sim, talvez esteja, rapaz.Ambos ficaram em silêncio. O que ela estava pensando?, Rory se perguntou. A mão

machucada se flexionou inconscientemente, e ele se moveu de um pé para o outro, buscandoficar mais confortável. Por fim, não suportou o suspense por mais tempo.

— O que pretende fazer, agora que sabe?— Depende de você, rapaz. O que você pretende fazer? — Ela o encarou e, em seguida,

estendeu a mão para tocar seu braço. — Por que voltou, Rory?A garganta dele se apertou.— Para acertar uma velha dívida.Ela sorriu e meneou a cabeça.— Isso é frase de jogador, Rory O’Brien. Então, você é um bom jogador?— Sou David Burke agora. Depois que minha mãe morreu, eu saí da casa de Seamus Doherty

e abandonei o nome dele. E eu lhe asseguro, vovó Meg, sou um jogador muito bom.— Foi assim que fez sua fortuna?— Em parte. Joguei nos barcos que subiam e desciam o rio Mississípi e nas mais famosas

casas de jogo em Londres.— Entendo. — Meg ficou quieta por um longo momento, olhando para a névoa do lago

Ballycashel. — E essas dívidas que veio resolver... com quem seriam?Rory sentiu a dor na perna se aprofundar, e seus lábios se apertaram com um espasmo.— Prefiro não dizer.— Não queremos nenhum problema por aqui, Rory O’Brien. Houve problemas suficientes

com os Whiteboys para durar a maior parte de nossa vida, começando com minha filha e minhaneta.

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Siobhán? O que os Whiteboys, uma organização de rebeldes dedicada a uma Irlanda livre,tinham a ver com Siobhán, ou Ashleen?

— Receio não entender. Pensei que o marido de Siobhán e os demais da família tivessemmorrido na Grande Fome.

Meg deu um suspiro longo e doloroso.— É verdade. Michael, marido de Siobhán, e o irmão mais novo dela, Sean, morreram há

cinco anos, que Deus os tenha. Foi durante a Grande Fome, é verdade, mas não morreram defome ou febre. Estavam envolvidos com os Whiteboys. Michael e meu neto foram apanhadosquando tentavam roubar um carregamento de grãos. Não poderia ser diferente, fracos comoestavam.

— Eles foram baleados por soldados britânicos?— Não havia soldados por aqui naquela ocasião. Foi o senhorio quem lidou com eles.Uma onda de náusea avassalou Rory .— Glenleigh. — A palavra saiu de seus lábios como uma maldição.— Sim, o próprio. Eles foram julgados e condenados antes que a Justiça pudesse intervir.

Ambos foram pendurados na Árvore dos Enforcados, diante das famílias. Isso apressou a morteda minha pobre Bridget, que viu o único filho balançando naquela árvore. Siobhán nunca mais foia mesma depois disso. Ela adorava o jovem Sean.

Aquele bastardo!A fúria incendiou o sangue de Rory. Claro, Glenleigh queria as terras. Provavelmente pensara

que, se sobrevivesse à fome, poderia transformá-las em pastagem e obter um bom lucro. O queele fizera pelas vidas dos inquilinos?

— O jovem Sean? — ele conseguiu murmurar através da ira, apertando os dentes.— Sim. Tinha catorze anos, ia completar quinze dali a um mês.As palavras o atingiram como golpes. Quinze anos. Quando ele tinha quinze anos, havia fugido

de Seamus para uma nova vida, enquanto, na mesma idade, a vida daquele rapaz tinha chegadoao fim.

Maldito seja, Glenleigh!A crueldade daquele homem não conhecia fronteiras.— Como vocês sobrevivem? — perguntou ele, sem ter certeza de que realmente queria saber.

— Restaram apenas a senhora, Siobhán, o bebê e...?— Eu, a mãe de Siobhán, Siobhán, a filha, e quatro irmãs dela: Maggie, Fiona, Brenna e a

pequena Maureen, que descansem em paz. — Meg fez uma pausa para enxugar as lágrimasrepentinas. — Não havia dinheiro, e muito pouca comida. Todos morreram, um por um. MinhaBridget foi primeiro, vítima da febre. Então, foram as meninas. Todas foram enterradas juntas,em uma vala comum, colocadas em caixões com fundos que se abriam e deixavam cair osmortos antes de recolherem os corpos da casa seguinte. Apenas eu, Siobhán e Ashleen fomospoupadas.

As palavras evocavam imagens tão horríveis, que Rory cerrou os punhos, ignorando a dorlancinante na mão direita.

— Como vocês sobrevivem? — repetiu, quase num sussurro.— Siobhán — Meg disse simplesmente. — Ela sustentou todas nós, mesmo quando eu só

queria deitar e morrer. Meu marido, minha filha e a maior parte da minha família tinham idoembora. Mas Siobhán me disse que precisava de mim. — Um sorriso curvou os lábios finos,fazendo-a parecer mais jovem. — Não era verdade, claro. Deus sabe, eu precisava de Siobhánmuito mais do que ela de mim. Mas minha Siobhán tem o jeito dela. Ela nos dá sua força, e empouco tempo seu otimismo me afetou.

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— De que maneira? — Rory quis saber, fascinado.— Ela me disse que Deus havia me poupado por uma razão, e que era pecado contrariar a

vontade d’Ele. Ela me lembrou de que sempre estivemos juntas, na fartura e na escassez, e queDeus não nos deixaria sobreviver se não tivesse um plano especial em mente. Ela me disse queas coisas iriam melhorar, e assim tem sido. — Meg se calou e voltou a fitá-lo. — Então, se vocêveio para empatar o placar com os Whiteboy s, Rory O’Brien, pode voltar para a América e nosdeixar viver em paz.

— Não se preocupe — Rory assegurou, com expressão sombria. — Eu prometo, não queronada com os Whiteboy s, com os britânicos ou qualquer pessoa de ambos os lados. A causa daIrlanda já não é minha.

— Nesse caso, vou manter seu segredo, sr. Burke. — Meg deu um sorriso largo. — Se mepermitir, milorde, tenho de ir para casa levar meus baldes.

Num impulso, Rory segurou a mão enrugada e levou-a aos lábios.— Sinto muito por sua dor — disse com ternura. — Sinto muito que Glenleigh tenha sido a

causa de tanto sofrimento. Eu juro que nunca contribuirei para aumentá-la.— E eu sinto muito pelo que você sofreu, meu rapaz.Surpreso, Rory procurou os olhos dela. Estavam na sombra, mas ele pôde distinguir o tom

esverdeado, como os da neta, e a sabedoria tão antiga quanto o tempo.— E o que seria o meu sofrimento? — perguntou, consciente de que falhara miseravelmente

em sua tentativa de bravata.— Ah, Rory, eu conhecia seu pai. Sabia quem era Seamus Doherty... — A pausa que se

seguiu deu a Rory o pleno significado do que ela quis dizer com a afirmação. — Seamus era umhomem mau, um homem que despejou suas frustrações e decepções sobre os mais fracos queele. Eu vi o que ele fez para sua mãe, e vi o que fez para você também. Nunca vou esqueceraquele dia na sua casa.

— Esqueça — Rory ordenou em voz baixa e áspera. — Por que eu já me esqueci.Ela o estudou, pesando a verdade da resposta, e traçou o esboço fraco da cicatriz antiga que

cortava o queixo de Rory .— Esqueceu? Acho que não. Um rapaz não esquece a dor da mulher que o deu à luz. E eu não

imagino que a América tenha sido mais gentil com Seamus do que ele foi para a família.O espectro sombrio de um cortiço sombrio de Nova York pairou na mente de Rory .— Ele passou a maior parte de seus dias no bar, assim como a maioria das noites.— E chegou em casa bêbado para bater em você e em sua mãe.O corpo inteiro de Rory se enrijeceu enquanto ele lutava contra os demônios do passado.— Não tenha pena de mim, vovó Meg. O passado ficou para trás. Deixe-o permanecer

enterrado. Vou garantir que nenhum mal aconteça à senhora e à sua família, e em troca, asenhora manterá o meu segredo.

Com a mão livre, Meg se aproximou e acariciou seu rosto em um gesto tão terno que trouxeuma névoa súbita aos olhos de Rory .

— Que Deus olhe por você, Rory O’Brien. — A voz doce tremeu. — Porque, na Irlanda, opassado nunca está morto e sepultado. Ele sempre volta para nos assombrar. Sempre.

Meg se virou, apanhou os baldes e hesitou antes de se voltar.— Sua filha é uma menina maravilhosa. Por causa dela, você deve tentar esquecer o passado.

Ela é o futuro, e eu odiaria ver aquela linda criança sofrer por causa de velhos fantasmas.Então ela se arrastou pelo caminho, deixando a alma de Rory aberta e indefesa como no dia

em que ela salvara sua vida, muitos anos antes.

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Capítulo VII

— Papai, posso pegar um pouco de pão e manteiga na cozinha?Rory olhou para a filha com surpresa. Aquela era a primeira vez que ela pedia alguma coisa

desde que haviam chegado a Ballycashel. Normalmente, a menina rondava a casa como umratinho tímido, tomando o cuidado de ficar tão longe dele quanto possível. E agora, fora até oescritório para pedir um lanche...

— Se você está com fome, vá à cozinha. Tenho certeza de que Hannah lhe dará tudo o quevocê gosta. — Ele franziu a testa e retomou a leitura do livro.

— Oh, não é para mim — ela argumentou com timidez, como se tivesse medo de umarecusa.

O coração de Rory se apertou. Como se recusasse qualquer coisa que estivesse em seu poderpara dar à filha! Mas, obviamente, ela não sabia disso.

— É para Santa Brígida — ela prosseguiu. — Siobhán me disse que é véspera do dia de SantaBrígida, e devemos deixar uma oferenda para ela.

O olhar de Rory passou da filha para o calendário sobre a mesa. Como ele podia ter esquecidoo início da primavera? No dia seguinte, os inquilinos começariam a semear os campos e a orarpara que tivessem uma colheita abundante, como acontecia na sua infância.

Sim, a comemoração de Santa Brígida... Sua mãe ornamentava a imagem da santa, e ospescadores deixavam mariscos vivos nos quatro cantos da casa para trazer boa sorte. As criançaspercorriam as casas para recolher as oferendas de pão e manteiga, ofertas que deviam sermagras agora, e havia um número suficiente de crianças no vilarejo para formar um gruporazoável.

Era um dia em que os ricos doavam aos pobres. Todavia, lorde Percival Glenleigh não possuíanatureza benevolente.

Rory se levantou de repente, sentindo-se grato por a dor na perna ferida ter abrandado.— Kathryn, vista seu manto para ir lá fora.Assustada, ela o encarou. Sentindo-se como um menino de novo, ele tocou o sino com

impaciência para chamar Hannah. Kathryn ainda estava boquiaberta quando a criada entrou.— Chamou-me, senhor?Ele sorriu, algo que não conseguia se lembrar de fazer em um longo tempo.— Sim, Hannah. Sei que é tarde, mas preciso de você para coletar todo o pão e manteiga na

despensa. É véspera de Santa Brígida, e Kathryn e eu queremos ter certeza de que temos ofertassuficientes para lambuzar de manteiga todas as crianças da Irlanda!

Ofegante com a agradável surpresa, Hannah meneou a cabeça.— Deus o abençoe, senhor! Farei isso imediatamente!Kathryn deu um gritinho de alegria e saiu correndo como um furacão para buscar o manto.Sorrindo da alegria da filha, outro pensamento ocorreu a Rory .— E enquanto estivermos fora, quero que coloque no forno toda a carne da despensa. Vamos

dar uma festa em Ballycashel que deixará Santa Brígida orgulhosa. Usaremos as mesas dorefeitório dos criados e convidaremos todos os inquilinos.

Hannah só conseguiu pestanejar, aturdida.— Deus o abençoe, senhor! — a governanta repetiu, maravilhada. Então, abandonando a

postura profissional, segurou a mão de Rory . — Bem-vindo de volta, meu rapaz.Ele retribuiu o carinho e sorriu.— É bom estar aqui, Hannah.

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Rory ficou surpreso ao descobrir a sinceridade de suas palavras. Ele tinha voltado para acertarvelhas contas, mas se pudesse fazer algum bem enquanto estivesse em Ballycashel, talvezconseguisse redimir parte da devastação que Percival Glenleigh tinha forjado. E talvez pudesseser absolvido de pelo menos alguns de seus pecados.

Algo para os filhos de BrígidaSuas roupas estão rasgadas,Seus sapatos estão furados.Algo para os filhos de Biddy...

Os meninos cantavam a rima na porta da casa de Tom Flynn, acenando com a efígie da santaenvolta em um guardanapo branco usado para recolher a oferenda escassa: uma côdea de pãocoberta com bacon.

Doeu em Rory ver aonde haviam chegado aquelas pessoas, outrora orgulhosas, por causa deum canalha como Glenleigh. Lembrou-se de Tom, que era da mesma idade que ele. Sabia o tipode homem que era. Orgulhoso, determinado a construir uma vida para si e para a noiva, oumorrer tentando.

Muitos antes dele já haviam morrido.Num impulso, ele agarrou a mão de Kathryn. Aproximando-se dos meninos, ele gritou:— Temos algo para os filhos de Brígida! Quem vai aceitar essa oferta para a santa senhora?Ele viu a surpresa no rosto de Tom, e o olhar do rapaz passeou do seu rosto para o cesto nas

mãos de Kathry n. Uma clara suspeita se refletiu nos olhos dele antes de fitar a criança com umsorriso. Ela retribuiu de uma forma que nunca fizera com o pai.

— E o que você tem a oferecer para a santa senhora, jovem srta. Burke? — Tom perguntou.— Temos pães e biscoitos. — Ela estendeu a cesta com timidez. — Nós também queremos

dar as boas-vindas a Santa Brígida, não é, papai?Por um momento, um nó na garganta impediu Rory de responder. Kathryn nunca o

considerara com a mesma confiança e afetividade como fazia com Tom. Entretanto, o que elefizera para merecer o amor da filha?

Notou que Tom o observava como se estivesse tentando adivinhar seus motivos. De imediato,vestiu a máscara de jogador, a mesma com que ganhara inúmeros jogos de cartas e parte dodinheiro que o trouxera de volta... O rosto que ele tanto precisava se quisesse manter a farsa.

— Eu venho em paz — disse a Flynn, calmamente. — Peço que aceite minha oferta com omesmo espírito.

Se Tom tinha reservas sobre ele, os meninos não tinham. Eles caíram sobre o pão comentusiasmo voraz, até que um deles gritou:

— Aí vêm os outros!Rory se virou e viu a pequena multidão de homens, mulheres e crianças a caminho da casa de

Tom, todos usando suas melhores roupas.O coração de Rory deu um salto no peito. Talvez aquele fosse o momento para sua expiação.

Talvez, finalmente, pudesse se sentir parte daquela comunidade pequena e humilde, como nuncase sentira, mesmo com Charlotte. Mesmo sabendo que era impossível, a esperança aqueceu seupeito.

Então seu olhar encontrou a mulher à frente do grupo. Os olhos pareciam carregar a Naturezaem suas profundezas misteriosas. Mais alta que o restante das mulheres, e até que alguns doshomens, ela se destacava com as saias rodadas envolvendo os tornozelos e o xale sobre osombros esvoaçando como asas escarlate. Ela era encantadora.

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Siobhán também o viu. Ele percebeu ao vê-la vacilar e apertar a mão da filha. Mas a meninase soltou e correu para se juntar aos amigos, devorando as oferendas que ele tinha trazido. Eentão, num gesto que foi direto para o coração de Rory , Ashleen se aproximou e tomou a mão deKathry n.

— Olá — saudou com um sorriso. — Eu sou Ashleen. Você deve ser Kathryn. Gostaria de vircomer conosco?

Kathry n assentiu com a cabeça e correu ao lado da nova amiga, sem sequer olhar para trás.Rory se alegrou ao ver a filha dar os primeiros passos em direção a novas amizades. Ela nuncativera um amigo, percebeu com pesar. Na América, não se fixavam num lugar por temposuficiente para que a menina fizesse amizades.

Em silêncio, ele se aproximou de Siobhán.— Obrigado — disse com formalidade. — Ashleen é exatamente a amiga que Kathry n

necessita.— Eu não esperava vê-lo aqui — ela murmurou com admiração. — Estou surpresa que um

americano saiba sobre Santa Brígida.Rory sentiu um choque de alarme, e seu olhar procurou o de Meg, que estava conversando

com os membros mais velhos do grupo. E se ela tivesse revelado seu segredo à neta?— Conheci vários irlandeses durante minhas viagens — ele explicou com falsa naturalidade.

— Eles adoravam falar sobre a terra natal.— Foi por isso que decidiu vir para cá?A pergunta tomou Rory de surpresa.— Talvez — mentiu. — Eu queria encontrar um lugar onde Kathry n e eu pudéssemos

começar de novo.— Depois que sua esposa morreu?Ele manteve o semblante cuidadosamente inexpressivo.— Sim.— Kathryn me disse que ela morreu em um incêndio.Oh, Deus, ele não queria relembrar isso. Não ali, não naquele momento. Não queria lembrar

o que nunca poderia esquecer. Desejava apagar da mente as mortes que ainda pesavam em suaconsciência.

Felizmente, foi distraído pela voz de Tom chamando-os para oferecer-lhes o delicioso pão defrutas irlandês e um copo de poitín, na maneira tradicional de comemorar a data. Rory, porém,sabia que seria mais sensato ficar longe do potente uísque de sua terra natal. Ele vira em primeiramão os danos que poderia fazer.

Ofereceu o braço a Siobhán, mas ela se afastou para ajudar Meg. Embora tentasse não sesentir magoado, a rejeição calou fundo em sua alma.

Bem, o que esperava? Ele era o proprietário. Ela era sua inquilina e governanta da filha. Nãopodia haver nada entre eles, por esses e tantos outros motivos.

Ele era amaldiçoado. Chegara a essa conclusão anos atrás, quando se tornara evidente quetudo que tocava virava ruína, e aqueles em torno dele acabavam machucados ou mortos. E comose isso não bastasse, seu pai matara o irmão e o marido de Siobhán.

Não, ele estaria mais seguro com a vida solitária que escolhera para si. Um dia Kathryn secasaria, e ele ficaria sozinho, mas, ao menos, ninguém mais se machucaria. Por enquanto,esperava apenas expiar os pecados dos pais, o natural e o adotivo, que tinham causado tanto malàquele povo.

Porém, em comparação aos seus próprios pecados, os erros de lorde Percival Glenleigh e deSeamus Doherty empalideciam.

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Inseguro, ele seguiu os inquilinos para a casa de Tom. Receou que o outro homem protestasse,mas a amiga de Siobhán, Nora, colocou a mão no braço do noivo e sussurrou-lhe algo ao ouvido.Fly nn forçou um sorriso e ofereceu-lhe uma cadeira.

— Não se preocupe, Fly nn, eu não pretendo ficar muito tempo — Rory anunciou no tom maiscordial que conseguiu. — Eu só queria que soubessem que haverá uma festa em honra à santasenhora em Bally cashel amanhã. Todos estão convidados a participar.

Um burburinho animado perpassou a pequena multidão, e vários inquilinos gritaram:— O Senhor o abençoe, milorde!Mas foi Liam Brady quem disse as palavras que o fizeram se sentir acolhido, pelo menos

naquela noite:— Fique, milorde, e junte-se a nós. Aposto que nunca ouviu falar da beleza de nossa festa na

América!Rory teve de rir.— Ah, Liam, você devia se lembrar de que há muitos irlandeses em solo americano. — Como

Johnny Burke, pensou de repente, com uma pontada de angústia. E Eamon Murphy e PatrickO’Day . E todos os outros que lutavam pela liberdade, leais a uma causa perdida.

Ele meneou a cabeça e virou-se para encontrar Siobhán Desmond olhando para ele, com umvinco de concentração na testa.

Por que ele estava ali?, Siobhán se perguntou. Ela vira como Kathry n gostava de brincar comas crianças da aldeia, e ficara aliviada quando Burke permitira que se misturasse aos filhos deseus inquilinos, inferiores na escala social. Mas o que o levara a oferecer uma festa a todos, ou alevar pão para a celebração daquela noite? Ele estava entrando no espírito do encontro como sefosse um deles, em vez de senhor e patrão.

Durante toda a noite animada por cantigas e danças, Siobhán continuou a observar Burke. Elepermaneceu sentado, sorrindo com educação, batendo com o pé no ritmo da música paraacompanhar a melodia da gaita de estanho de Paddy Devlin. Embora falasse pouco, pareciaestar se divertindo... até o momento em que a vulnerabilidade dele foi desnudada para todosverem.

— Quer dançar, senhor?Fora Eileen O’Farrell quem fizera o convite, em pé diante dele, com a mão estendida em

expectativa. Siobhán viu o rosto de Burke se tornar tenso, assim como a angústia dos olhos azuis,que pareceram cintilar na noite escura. O brilho se desfez tão rapidamente que ela pensou terimaginado, mas a flexão agitada da mão descansando sobre a perna ferida deu veracidade à dorque ele sentia.

Mas, como sempre, Rory tinha uma resposta pronta e um sorriso galante para corresponder.— Lamento que, devido a uma lesão antiga, não possa ter a honra, sra. O’Farrel. Talvez um

homem mais saudável possa ser melhor parceiro para acompanhá-la.O sorriso e o tom foram casuais, mas Siobhán percebeu a tensão na voz dele. Seu olhar recaiu

para a mão. Quase automaticamente, ele começara a massagear a perna ferida, e ela viu-senovamente se perguntando que cruel reviravolta do destino tinha marcado a perfeição daquelehomem.

Ele gosta de dançar e cantar.Siobhán não tinha ideia de onde viera o pensamento. Era algo que costumava dizer sobre Sean.

Seu jovem e travesso irmão também gostava de beber e de contar histórias sobre os heróis daIrlanda.

No entanto, de alguma forma, ela sabia que David Burke também era assim. Ele não pareciaum convencional proprietário de terras. Claro, era americano. Talvez os americanos fossem

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diferentes, especialmente os mais ricos. Aquele homem, no entanto, não parecia ser um deles.Na verdade, se não fosse pelos trajes elegantes, poderia confundi-lo com um irlandês típico...

Ela sentiu o rosto queimar. Como podia até mesmo pensar nisso? Americano ou não, DavidBurke estava quilômetros acima de sua posição na escala social.

Ademais, ela nunca poderia esquecer a morte que pesava sobre seus ombros.Paddy começou a tocar uma melodia melancólica na gaita, acompanhada pelo coro de vozes

femininas.

Esta é a última rosa do verãoDeixe-a florescer sozinha;Todas as adoráveis companheirasDesbotaram e se foram.

As notas tristes trouxeram lágrimas aos olhos de Siobhán. Olhou para Burke, embaraçada, eficou surpresa ao ver uma tristeza correspondente nos olhos dele. Era quase como se sua almativesse encontrado a dele.

Ao perceber que era observado, Burke corou. Então, ao ver as perguntas refletidas naquelepar de olhos adoráveis, sua guarda se erigiu novamente. O olhar se tornou remoto e distante, e orosto se desnudou de qualquer expressão.

— Como eu disse, havia muitos irlandeses em Nova York quando eu morava lá.— Bem, você canta como um nativo — Paddy disse com entusiasmo. — Não vai cantar mais

um pouco?— Está ficando tarde — Meg declarou com olhar preso em Burke. — Vamos deixar que ele

cante em outra ocasião, Paddy .Ao anúncio da anciã, todos começaram a sair. No entanto, Siobhán flagrou o olhar afiado da

avó fixo no senhorio, e não perdeu a expressão de gratidão no rosto de Burke.— Siobhán — Tom chamou-a, captando sua atenção. — Nora e eu gostaríamos que você

ficasse. Vovó Meg pode levar Ashleen para casa, não pode?— Claro que posso. — Meg se dirigiu para a fogueira, perto de onde Ashleen brincava com

Kathry n.— Dê-me só um minuto, sra. Kilpatrick — Burke pediu. — Kathryn parece estar tendo um

bom momento com Ashleen. Poderia levá-la para seu chalé? Posso apanhá-la quando foracompanhar a sra. Desmond até sua casa.

— Não é necessário... — Siobhán começou, mas a avó já havia recolhido as duas meninas eestava a caminho.

— Siobhán — Nora a distraiu das preocupações. — Como você sabe, Tom e eu decidimos noscasar após a colheita. O padre Conor celebrará nossa união no próximo mês. Gostaria que vocêfosse minha madrinha de casamento.

Emocionada, Siobhán abraçou a amiga e virou-se para receber um abraço de Tom.Conversaram sobre os planos do casamento e, com uma troca animada de despedidas, Siobhánsaiu correndo na escuridão enevoada, esperando que Burke tivesse ido embora.

Porém, ela não teve tal sorte. Ele estava sentado na varanda, e se levantou galantemente,oferecendo-lhe o braço direito.

Siobhán não queria aceitar. Quando estava perto dele, sentia seu mundo sair do eixo deequilíbrio. A noção de que ela, uma viúva com vinte e cinco anos de idade, ainda pudesse sesentir assim a apavorou.

— Não precisava ter esperado — disse, tentando soar casual. — A caminhada até minha casaé perfeitamente segura.

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— Nesse caso, eu seria privado de sua companhia encantadora.Ela finalmente aceitou o braço dele, sentindo os bíceps tensos ao toque, e seguiram pela trilha

da floresta enluarada para casa, onde a avó e as duas meninas os aguardavam.

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Capítulo VIII

Uma névoa suave os rodeava, envolvendo-os num casulo de uma intimidade que a fez tremer.A orbe da lua mal iluminava o caminho, lançando um brilho tênue no ébano polido da bengala deRory .

Caminharam em silêncio, um silêncio não inteiramente confortável. Siobhán estava pouco àvontade, consciente de si mesma, da proximidade de Burke, dos cachos escuros ondulando sobreos ombros largos, da mão de dedos longos segurando firmemente o cabo de prata da bengala.

— O senhor tem várias bengalas — observou, nervosa com a sensação de formigamento quea percorreu ao olhar para a mão que segurava a bengala.

Rory parou, forçando-a a parar com ele, e brandiu a bengala no ar.— Gosto de colecionar bengalas. Quando sofri a lesão na perna, um amigo me deu de

presente minha primeira bengala. E nas minhas viagens, passei a comprar todas que encontrava.— Ele pensou por um momento. — Tenho cerca de cinquenta em Ballycashel. — Entãoemendou, apressadamente: — Cinquenta e sete, para ser exato.

— Cinquenta e sete!Ele deu de ombros, constrangido.— Eu tinha mais dinheiro do que precisava.— Uma condição com a qual a maioria de nós só pode sonhar.— Isso é óbvio, pelo que vi na aldeia desde que cheguei.Siobhán olhou para ele.— Podemos não ter muito, mas ainda temos nosso orgulho.Rory enrugou a testa numa expressão que poderia ser de consternação, se não se tratasse do

senhorio de Bally cashel.— Asseguro-lhe, sra. Desmond, não pretendi insultá-la. Foi apenas uma observação. As casas

da minha propriedade estão em péssimo estado.— A culpa não é dos inquilinos! — ela retrucou, ofendida. — Nos últimos cinco anos, metade

dos aldeões morreu ou emigrou para a América. Os que ficaram estavam enfraquecidos pelafome e pela febre. Mal conseguiam levantar a cabeça, e muito menos levantar um telhado!

— Agora, os campos estão prontos para o plantio.— E serão cultivados! — Siobhán quase gritou, irritada por ele passar por cima de suas

palavras sem sequer ouvi-la. — Talvez não tão plenamente quanto gostaríamos.— Por que não? — Ele a fitou de soslaio, notando a raiva no tom de voz. — Por que não serão

tomados pela plantação de batatas, trigo e cevada, espelta, milho, aveia e centeio, como semprefoi na Irlanda?

— Porque não temos as sementes! — A voz vacilou e ela engoliu em seco, num esforço paracontrolar-se. Era inadmissível gritar com o senhorio, e Deus sabia que ela precisava do salárioque ele lhe pagava. Baixando a voz, acrescentou: — Não temos dinheiro para pagar as sementes.Isso significa que suas terras não lhe darão nenhuma renda. É melhor aceitar o fato, milorde.Talvez seja forçado a vender alguns desses seus preciosos bastões para pagar as melhorias quevem fazendo.

Antes que ela pudesse engolir as palavras, Burke atirou a bengala na relva macia sob os pés eagarrou-a pelos ombros com as duas mãos, puxando-a para perto. A respiração quente afagou aface de Siobhán, e ela inalou o hálito rescendendo levemente a uísque.

— Não se preocupe, sra. Desmond — ele rosnou, a voz vibrando de raiva. — Terão sementeseste ano. O senhor de Ballycashel as fornecerá.

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— Como? — Ela se recusou a demonstrar medo, embora soubesse que o tremor de seu corpoera evidente.

— Tenho dinheiro mais que suficiente para atender às necessidades de todos, não só para asculturas, como para reparar as casas.

— Por quê?A pergunta tomou Rory de surpresa. Abalado, ele olhou para aqueles olhos verdes, cheios de

raiva, suspeita... e algo mais. Medo? Culpa?...Siobhán ficou rígida em seus braços, e ele avaliou a pele macia, levemente salpicada de

sardas cor de canela. As maçãs salientes do rosto o fizeram lembrar uma rosa recém-desabrochada.

— Por quê? — ele repetiu, confuso.— Sim. Por quê? Por que está fazendo isso? O senhor é o proprietário. Não precisa se

preocupar se os inquilinos comem, ou se têm um teto decente sobre a cabeça. Tudo com que temde se preocupar é que paguem o aluguel, e se eles não puderem, então terá o direito de expulsá-los de suas terras e deixá-los morrer de fome!

— É só isso? — Furioso, ele a empurrou para longe e começou a andar desajeitadamentesobre o terreno desigual, ignorando a dor latejante na perna. — É isso que faz um proprietário,Siobhán? Sangrar seus inquilinos até secá-los? Foi isso que lorde Percival Glenleigh fez para você,sua família e amigos?

Rory sabia que estava pisando em terreno perigoso. Tinha plena consciência do que Glenleighfizera. Meg lhe contara toda a história, embora suspeitasse de que havia mais do que os poucosdetalhes que se dispusera a dividir com ele.

Siobhán o encarava teimosamente, recusando-se a responder, e ele teve de se conter para nãotomá-la nos braços e beijar aquele olhar de raiva e traição. Em vez disso, segurou o queixopequenino e arredondado com a mão esquerda e forçou-a a olhar para ele.

— Eu não sou como ele — disse devagar e com clareza, tentando esconder o tremor da voz.— Não posso olhar para uma criança faminta e ignorar sua fome. Você acha que minha filhaseja maltratada por mim?

— Claro que não! — A negação foi tão imediata que ele não duvidou da sinceridade. — MasKathry n é sua filha. Será que daria o mesmo tratamento a uma criança estranha?

— Sim! — Imagens de Meg intercedendo em seu favor e evitando que Seamus o golpeasse,dançaram diante de seus olhos, e ele piscou para afastá-las. — O povo de Ballycashel é meupovo agora, Siobhán.

— Seus escravos, melhor dizendo — ela corrigiu.— Eles são livres para partir quando quiserem. E se alguém vier a mim com o desejo de

emigrar, terei prazer em comprar passagem em um navio decente, e não num caixão flutuante.A expressão de Siobhán mudou lentamente da descrença à aceitação cautelosa. Os lábios

tremeram de leve, e todos os músculos do corpo se apertaram.Com a mão esquerda, Rory acariciou o contorno do queixo, entrelaçando o outro braço sobre

a cintura para absorver o calor vibrante que emanava do corpo suave.— Quem é você, David Burke? — ela perguntou, baixinho, ignorando o tratamento formal que

deveria dispensar a um superior. — Você chegou em Ballycashel como um total estranho.Comprou uma propriedade que está à beira da destruição, com dívidas que encheriam um navio,e se importa com a amizade dos inquilinos... Seu povo — ela emendou com um sorriso irônico,que foi direto ao coração golpeado e ferido. — E agora está lhes oferecendo uma habitaçãodecente e uma chance para terem um futuro. Por quê?

Rory certamente seria perdoado se pressionasse os lábios na ruga minúscula entre as

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sobrancelhas e acariciasse a pele macia, respirando o perfume fresco e limpo dos cabelos dela.— Por quê, David? — ela persistiu, mesmo quando se derretia contra ele, com as mãos se

movendo incessantemente pelas costas largas.— Eu tive de fazer isso — ele murmurou com voz rouca e respiração acelerada quando seus

lábios sondaram a pele sedosa abaixo da orelha. Puxou-a para mais perto, moldando o corpoflexível contra o dele. — Deus do meu coração, você é tão suave, tão perfeita!

— Por que você teve de fazer? Por que está aqui? Glenleigh não tinha parentes vivos, até ondese sabe.

— Sem mais perguntas — ele murmurou. — Sem mais perguntas, sem mais argumentos. Sóisso.

Os lábios roçaram sobre a pele de cetim dos ombros, e Siobhán gemeu em resposta.— Só isso — repetiu quando ela estremeceu e se apertou contra ele. — E isso. — Mordiscou o

ponto do queixo, e ela deu um suspiro assustado. — E isso — ele gemeu quando finalmentecapturou os lábios macios.

Siobhán murmurou um protesto quando a boca exigente a assaltou e a língua se insinuou porentre seus lábios. Suas unhas se cravaram nas costas musculosas, e ela fechou os olhos,permitindo o contato.

Deus, como ele desejava sentir a maciez de seda daqueles cabelos contra a pele nua! Pormuito tempo, havia sido privado do contato humano, e agora o desejo por algo tão simples comoo toque dos cabelos em sua pele quase o deixava louco.

Com um grito abafado, Siobhán se desvencilhou dos braços que a envolviam. Virou-seabruptamente e recuou alguns passos rápidos para longe dele. Tremendo, ela cruzou os braçossobre o peito e o encarou com expressão de ódio.

— Siobhán, eu...— Não! — Ela balançou a cabeça violentamente e cobriu a boca com a mão trêmula. — Não

serei a prostituta do senhorio!Prostituta do senhorio?De que diabos ela estava falando? Não estava pedindo que ela fosse... que fosse...Ou estava?— Siobhán, eu lhe asseguro, não estava sugerindo que você se tornasse minha... — Rory

estremeceu — ...minha amante.— Dê o nome que quiser — ela disparou de volta. — Não me vendi a Glenleigh por um

pedaço de pão. O que o faz pensar que eu agiria de outra forma com você?Uma névoa avermelhada brilhou através da mente de Rory .— Você quer dizer que Glenleigh...— Sim. Pouco antes de ele morrer, fui procurá-lo implorando trabalho, qualquer coisa, para

que eu pudesse comprar comida para nos manter vivos durante o inverno.— E ele... ele a machucou? — Se tivesse, Rory seguiria o desgraçado até o inferno e o

mataria mais uma vez.Mas Siobhán se afastou, deixando-o por conta da imaginação obscena.— Não foi nada de mais — ela declarou sem expressão. — O homem está morto, e não vou

falar contra ele. Agora você deve buscar sua filha, e eu tenho de pôr a minha na cama.— Siobhán...— Não! — O tom de pânico o alarmou. — Por favor — ela acrescentou num sussurro quase

inaudível.Rory decidiu não pressioná-la a contar toda a verdade. Talvez Meg soubesse de mais alguma

coisa. Mas ele teria o direito de pedir que revelasse os segredos de Siobhán? E o que faria, uma

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vez que descobrisse?Mais importante, o que Siobhán faria se descobrisse o seu segredo?, ele pensou com

amargura.

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Capítulo IX

O dia amanheceu claro e ensolarado, com apenas um véu fino de névoa pairando no ar,perfeito para o trabalho nas plantações.

Era um bom dia para estar fora, Siobhán refletiu, observando seus vizinhos separando assementes de batata, milho e outras culturas que David Burke doara na manhã após o dia de SantaBrígida.

Ela olhou com satisfação para seu próprio campo pequeno, plantado com batata, cevada emilho. Tom Flynn e Paddy Devlin a ajudaram a semear, e ela, Meg e Ashleen orecompensaram com uma boa refeição de bacon e pão que haviam sobrado da festa emBallycashel.

Burke lhes dissera que planejava retomar a tradição da festa anual e lhes prometera um ceilipara o outono. A celebração típica irlandesa era o encerramento perfeito para a colheita.

Burke. Tinha de pensar nele dessa forma. Não podia chamá-lo de David, nem mesmo em suamente. Aquele homem mexera com seus sentidos, e ela ainda ficava atordoada ao se lembrar dobeijo que haviam compartilhado, uma semana antes.

Não o via desde a reunião na casa de Tom. Ele havia declarado feriado para Kathryn até acolheita, mas permitira que a filha visitasse Ashleen, encorajando a amizade entre as duasmeninas. Todas as manhãs Hannah a levava até a casa de Siobhán, e ia buscá-la à noite. Masnunca David.

Pare de pensar nele!, repreendeu-se, impaciente, quando acenou para Tom anunciando quehavia colocado as últimas sementes na cova. Tinha de parar de pensar na maneira como oslábios haviam acariciado sua pele, na forma como os braços fortes a envolviam... na voz grave,numa intrigante mistura de sotaque irlandês e americano, quando sussurrava seu nome...

Tom endireitou as costas e acenou com a enxada para ela.— Esta é minha última cova também — avisou com um sorriso orgulhoso. — Que Deus

abençoe e faça as sementes germinar.— Amém.Siobhán reprimiu um arrepio quando pensou nos anos de fome que haviam vivido no passado

recente. Então franziu o cenho ao ver Tom cobrir os olhos com a mão e esticar o pescoço.— Alguém está vindo — ele anunciou.— Deve ser Hannah com Kathryn. Vou chamar Ashleen.— Não são elas — Tom anunciou quando ela se virava para entrar no chalé. — É um

cavaleiro.Algo em sua voz, nas linhas de tensão ao redor da boca e dos olhos, fez os sentidos de Siobhán

entrar em alerta. Ela apertou os olhos, chegando mais perto do velho amigo, enquanto seu olharperscrutava a figura que se aproximava. Um suspiro escapou de seus lábios, e ele a segurou pelobraço.

Oh, querido Deus... Oh, Deus, não! Por favor, por favor, não!Não Joe Kerrigan.— Vá para dentro — Tom ordenou em tom severo.— Não. — A firmeza da própria voz a surpreendeu.Deus Amado, o que ele estava fazendo ali, depois de todo aquele tempo? O que queria dela? O

que mais poderia tirar dela?— Siobhán...

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— Não, Tom.Ela forçou um sorriso vacilante e balançou a cabeça. Tom ainda estava segurando seu braço

com olhar de proteção feroz no rosto, despertando-lhe uma onda intensa de afeição.— Quero ficar — insistiu. — Espere e veja o que ele tem a dizer. E certifique-se de que

Ashleen e vovó Meg não saiam de casa. — Sua voz vacilou. — Não quero que Ashleen saiba ououça nada.

Ela endireitou as costas quando Joe Kerrigan se aproximou, montado em uma égua castanha.— Siobhán.— Joe. O que posso fazer por você? — Graças a Deus, sua voz soou firme, desmentindo o

medo e a onda de ódio que ela sentia por aquele homem por ter traído Michael e Sean.— Trago uma encomenda enviada pelo senhorio. — Joe enfiou a mão no alforje e retirou um

cesto de palha coberto por um guardanapo imaculadamente branco. — É comida para esta noite,para comemorar o final do plantio.

— E desde quando você é o mensageiro do senhorio? — perguntou Tom com hostilidade.Joe girou lentamente a fim de olhar para o outro homem, e Siobhán sentiu Tom enrijecer.

Lançou-lhe um olhar de advertência e ele assentiu, com um gesto discreto da cabeça.— Fly nn — Kerrigan saudou ao reconhecê-lo. — Não é nenhuma surpresa encontrá-lo aqui.

Quanto a mim, estou trabalhando para o sr. Burke agora. Eu e meu irmão somos seuscavalariços.

Cavalariços? Oh, Sagrado Coração de Jesus, o que aquilo significava?— É novidade para mim — disse Tom com um olhar inquieto para Siobhán. — Bem, você

entregou a encomenda, e não tenho nenhuma dúvida de que tem de voltar para a Casa Grande.Não queremos prendê-lo mais tempo que o necessário.

Joe se despediu de Siobhán com um aceno da cabeça antes de se afastar.Ela permaneceu imóvel, olhando sem enxergar os campos lavrados ao redor. Um bando de

pássaros voou acima dela, e as nuvens brancas caminhavam lentamente pelo céu, impulsionadaspela brisa salgada que vinha da baía de Galway . Mas ela não viu nada, não ouviu nada, não sentiunada. Todo o seu ser estava entorpecido.

Pelo Santíssimo! Frank e Joe Kerrigan estavam trabalhando para David Burke!— Siobhán? — Ela quase não sentiu o aperto firme de Tom sobre seus ombros, sacudindo-a.

— Siobhán, você está bem? Devo buscar Nora?Ela balançou a cabeça descontroladamente, com os cabelos escapando da touca e se

espalhando sobre os ombros. Soltou-se das mãos do amigo e se pôs a correr. Vagamente, ouviuTom chamando atrás dela, mas não conseguia parar. Não podia fazer nada além de fugir, seuspés descalços afundando na terra macia e úmida.

Parou precisamente no mesmo ponto onde Burke a tinha beijado.Por que ele contratara os irmãos Kerrigan? David tinha dito que queria ajudar aquele povo.

Que tivera de vir para a Irlanda. Por quê?Ele falara da numerosa população irlandesa na América, de pessoas que tinham lhe ensinado

as canções do seu país. Teriam também mencionado as injustiças e o sofrimento de seu povo sobo domínio britânico? Teriam lhe contado sobre os rebeldes que agiam com violência e crueldadeem nome da paz?

Oh, Deus! David Burke seria um deles?...Siobhán sentiu o chão sumir sob seus pés. Os Whiteboys haviam fugido para outra aldeia,

outro município, outro lugar que ela desconhecia e não fazia questão de saber. Nunca fora ligadaà política, nunca se preocupara com as organizações rebeldes, mesmo depois de conhecer e secasar com Michael. E agora eles estavam de volta em sua forma mais odiosa, pois sempre

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suspeitara de que os irmãos Kerrigan eram leais a apenas uma causa: dinheiro, e àqueles quepodia pagá-los por informações.

Burke saberia disso? Onde estaria a lealdade dele? Quem era aquele homem por quem elaestava se apaixonando?

O pensamento a trouxe de volta ao presente. Apaixonar-se por David Burke? Ela nem sequer oconhecia!

E ainda assim, em seu íntimo, sabia quem ele era. Ao longo das últimas semanas, presenciaraseu compromisso com o povo de Bally cashel. Ele próprio arregaçara as mangas e se juntara aosinquilinos mais velhos para arar e semear a terra, como fizera com Mary Daly. Ela tinha vistosua devoção pela filha, mesmo enquanto lutava, por razões que não podia imaginar, para mantera distância entre eles. Tivera um vislumbre de sua dor, também, e sentira a angústia, a raiva e asolidão que se escondiam abaixo da superfície calma, embora só pudesse supor a causa.

Ela não podia ficar. Sabia disso agora. Cedo ou tarde, a verdade emergeria, e com ela, suaparte na morte de Glenleigh, e a história de Michael e Sean. Ela não podia suportar que DavidBurke conhecesse seu passado vergonhoso.

Teria de sair de Ballycashel. Não havia outro jeito. Poderia ter um salário excelente numacidade grande, já que sabia cozinhar e limpar. Talvez pudesse fugir para Londres, ou mesmopara a América. Certamente encontraria trabalho lá, seria capaz de cuidar de si mesma, deAshleen e de vovó Meg.

O que Burke havia dito naquela noite? Que se alguém fosse até ele pedindo ajuda paraemigrar, teria prazer em comprar a passagem num navio decente, e não num caixão flutuante.

Ela poderia fazer isso? Poderia deixar a Irlanda, todos os amigos que lhe eram caros, todas asmemórias, tanto boas quanto ruins? Seria capaz de procurar o homem que amava para pedir-lheque a ajudasse a fugir para nunca mais vê-lo novamente?

O último pensamento provocou um dilúvio de lágrimas que ela já não tinha forças parareprimir.

Rory saltou da garupa de Ree e titubeou ao sentir a pontada de dor na perna.— Foi um passeio excepcional, Ree — murmurou, acariciando o pescoço do cavalo com a

mão direita nua.Apesar da dor na mão machucada, ele nunca usava luvas de equitação, desfrutando a

sensação da pelagem áspera e quente sob as palmas. O cavalo relinchou em resposta e esfregouo focinho em seu peito com uma delicadeza que o enterneceu. Rory sorriu, consciente do que ogaranhão estava procurando. Enfiando a mão no bolso, retirou uma cenoura que Ree abocanhoucom um relincho satisfeito.

Rory levara para a Irlanda o potro nascido do cruzamento de um cavalo irlandês com umpuro-sangue inglês, planejando produzir uma nova linhagem de caçador irlandês que seria maisforte e mais rápido, e ainda mais dócil do que os usados pelos ingleses.

— Ah, você é um bom garoto — murmurou, enterrando os dedos na crina sedosa. — Nóspodemos conquistar qualquer coisa juntos, você e eu. Até o passado.

Estava tão absorto com o cavalo que não a ouviu até que Ree levantasse a cabeça erelinchasse uma saudação. Rory virou-se para se deparar com Siobhán Desmond.

No entanto, ela estava muito diferente da mulher que conhecia. Em vez do habitual sorrisocaloroso que exprimia otimismo, o rosto estava pálido e abatido. As mãos tremiam enquantoagarravam o xale, e os cabelos caíam sobre os ombros numa graciosa desordem.

Mas foram os olhos dela que o assustaram. Em lugar do brilho de sempre, refletiam medo edesespero. E os lábios vermelhos exuberantes estremeceram mesmo quando ela tentou mordê-

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los para disfarçar a tensão.— Siobhán? — A mão direita desembainhada mudou-se do cavalo para segurar seus ombros

em um aperto firme. — O que houve? É Ashleen? O que há de errado?Ela não respondeu, apenas o fitou num silêncio aterrorizante. Engoliu em seco e abriu a boca

para falar, mas nenhuma palavra saiu.— Diga-me o que aconteceu — insistiu ele com suavidade. — É sua avó?Incomodado pelas lágrimas que inesperadamente lhe inundaram os olhos, ele gentilmente

tocou seu rosto.— O que é isso, mo chroi? — perguntou baixinho, seu coração quase se rompendo quando viu

a mulher corajosa mostrar as emoções que sempre mantinha sob a superfície do otimismoinerente.

A mulher que fora forte para todos: a filha, a avó, os amigos. A mulher que ele aprendera aamar, que chamava de mo chroi, “meu coração”, como a mãe sempre o chamara.

Seu toque pareceu infundir-lhe força, pois ela se empertigou, embora não se afastasse.— Você estava falando a sério? — ela exigiu.Ele franziu a testa, confuso.— Do que você está falando?— Do que você disse no bosque, sobre comprar passagem para quem desejasse emigrar.— Querido coração... — ele começou, impotente, sentindo o chão sumir sob os pés. Por que

ela estava falando de emigrar? Que diabos estava acontecendo? E por que parecia tão assustada?— Você estava falando a sério?— Claro que sim! Por que está me perguntando? Há alguém que queira deixar Ballycashel?

Alguém que não tem os meios para fazê-lo? Você só tem de me dizer quem é, Siobhán. Eu juroque não vou impedir. Ficarei feliz em comprar a passagem para onde quer que escolham:América, Inglaterra, Austrália, Canadá ou qualquer outro lugar. Quem é, Siobhán? — Quando elase recusou a responder, Rory persistiu: — São seus amigos, Nora e Tom? Será que eles queremcomeçar a vida de casados em outro lugar? Se for esse o caso, então terei prazer em...

— Não — Siobhán sussurrou, e a nota de angústia na voz foi direto ao coração dele. — Nãosão Nora e Tom.

A frustração fez a voz mais dura do que ele pretendia.— Então, quem? Droga, Siobhán, eu pensei que você confiasse em mim, pelo menos, um

pouco! Quem é?— Sou eu! — ela explodiu por fim. — Eu quero ir embora de Ballycashel, e assim que

possível!As palavras o atingiram como um golpe no estômago. Ela queria deixar Bally cashel. Ela, a

valente defensora do orgulho de seus vizinhos, apesar das dificuldades que haviam sofrido. Ela,que apoiara e vira sua família e amigos morrer ou fugir, e no entanto ficara em Bally cashel. Elaestava determinada a proporcionar uma boa vida à filha, ele sabia disso, mas acreditara quequisesse ficar na Irlanda, e não a milhares de quilômetros de distância da casa em que haviacrescido.

— Por quê? — exigiu com voz rouca. — Por que agora, Siobhán? É por causa daquele beijona floresta? Eu juro que não foi proposital. — Quando ela apenas balançou a cabeça em silêncio,o pânico bloqueou sua respiração e ele refugiou-se no único álibi em que pôde pensar. — Equanto a Kathry n? Você vai simplesmente abandoná-la?

O argumento teve o efeito esperado. Siobhán o encarou com lágrimas reluzentes escorrendopelo rosto.

— Kathry n deve ir para a escola no outono. Vou ficar até lá. Mas pretendo partir depois que a

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safra for comercializada para o inverno. Venderei todas as plantações — acrescentou ela comuma pitada de provocação. — Dessa forma, nossa passagem lhe custará menos. Quero levarvovó Meg, embora ela vá resistir a deixar a Irlanda. Ela sempre disse que queria morrer aqui.

— Por que, Siobhán? — repetiu ele com urgência. — Por que está fazendo isso?— Eu tenho de fazer! — A angústia na voz dilacerou sua própria alma. — Eu não posso ficar

aqui, não agora!— Por minha causa? — Ele se obrigou a controlar o pânico. — Eu juro, Siobhán, se é pelo que

aconteceu na floresta, prometo que nunca mais vou tocá-la. Se isso for preciso para mantê-laaqui...

— Não — ela disse com a respiração entrecortada. — Deus me ajude, isso só pioraria asituação.

Rory sabia que era errado, perigoso e imprudente. No entanto, não conseguiu resistir eestendeu a mão, moldando a palma em concha no rosto delicado. Sem hesitar, Siobhán inclinou acabeça e recebeu a carícia, sem nem mesmo perceber as cicatrizes. Uma onda de ternuraenvolveu Rory , e ele se aproximou.

Os lábios de ambos se encontraram em um beijo frenético, como se fosse a última vez. Elagemeu, um som quase inaudível de rendição, e enlaçou-o pela cintura, puxando-o para maisperto. Um grunhido áspero escapou-lhe, e ele enterrou as mãos nos cabelos em desalinho.

A suavidade dos cachos vermelho-dourados proporcionou-lhe um êxtase tão terno que elequase gemeu. Ele nunca tinha sentido nada tão sensual. E o gosto dos lábios macios era como onéctar dos deuses. Sua boca deslizou pela tez acetinada, provando o sal das lágrimas, e se afundouna curva do pescoço.

— Siobhán... — murmurou com a respiração ofegante, com os lábios pressionados à maciezda pele. — Ah, mo chroi, não me deixe. Fique. Fique comigo.

Um soluço abafado ecoou nos ouvidos de Rory , mas ela não se afastou nem lhe deu a respostaque procurava. Em vez disso, percorreu suas costas com mãos trêmulas e inquietas.

Ele procurou a boca úmida, sequioso por se inebriar em sua doçura. Queria aquela mulher.Precisava de Siobhán. Seus braços tensos se retesaram num esforço desesperado para puxá-lapara ainda mais perto. A ânsia da espera pela resposta quase o deixou louco. Aflito, tocou-a norosto, sem pensar, e ela segurou sua mão e levou-a aos lábios. A boca se moveu sobre ascicatrizes, e Siobhán o encarou sem vacilar, despertando-lhe uma profunda emoção que ele nãopôde nomear.

As cicatrizes de queimadura que deformavam a pele num desenho grotesco eram o emblemade seu passado, lembrando-o de todos os seus pecados. No entanto, agora Siobhán as beijava,curando-o, resgatando sua alma e fazendo-o renascer.

A maldição poderia ser quebrada?Mal o pensamento otimista cruzou sua mente quando Siobhán se afastou.— Não! Oh, David, não, não podemos! Eu tenho de ir! — Ela estava tremendo, lutando para

reassumir o controle das emoções, e quando falou, seu tom de voz exprimia determinação. —Vou esperar até a colheita. Assim que tiver vendido a safra, quero partir para a América comminha família.

Ela se virou e saiu correndo, tropeçando no terreno irregular. Rory ficou observando-a seafastar, sentindo que sua última chance para a redenção partia com ela.

— Siobhán!O grito flutuou no ar antes de ser levado pelo vento junto com parte de sua alma.

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Capítulo X

Meg olhou para cima, espantada, quando Siobhán irrompeu cozinha adentro, batendo a portaatrás dela.

— Onde está Ashleen? — exigiu.Meg franziu o cenho.— Ela está com a srta. Kathryn. O que houve? Uma tempestade está se aproximando? Você

parece ter visto uma banshee.— Nós vamos partir.— Partir? Criança, sente-se e descanse. Você não está dizendo uma palavra que faça sentido.

O que quer dizer, nós vamos partir? Partir para onde? — Meg colocou de lado a roupa que estavacerzindo e se levantou, segurando as mãos de Siobhán. — Por que você está tremendo? Diga àvovó Meg o que aconteceu, filha.

— Temos de deixar Ballycashel, vovó. Eu sei que a senhora quer morrer aqui na Irlanda, nacasa em que viveu quando meu avô a trouxe como esposa. Mas temos de ir embora. Assim que acolheita for finalizada, vou reservar passagem para nós três.

— Por quê? — Meg se afastou para pegar um copo d’água.Siobhán levou-o automaticamente à boca, sentindo o frio raspar a garganta, afastando a

dormência que começou a escoar de seu corpo.— Diga-me o que aconteceu.— Eles estão de volta — Siobhán murmurou, oprimida pelo nó que se formou na garganta.— Quem está de volta? — Meg a segurou pelos ombros com mãos fortes e a balançou

suavemente. — Quem está de volta, alanna?Alanna. O apelido amado concedido a ela por seu adorado pai a infundiu de carinho, e parte

do pânico de Siobhán desapareceu. Procurou os olhos lacrimejantes da avó e capturou a ternuraque jorrava para dentro dela.

— Papai costumava me chamar assim — disse.— Sim, querida. Havia algo de especial entre vocês dois que nenhum dos outros filhos

compartilhava. Costuma ser dessa forma com um pai e sua primeira filha.A angústia dilacerou Siobhán.— Eu ainda sinto falta dele, vovó.Meg acariciou seu rosto com um gesto suave.— Eu sei, minha querida. Você já perdeu muito para alguém tão jovem, e sobreviveu, não é?

Você é forte. Teve de ser. É uma guerreira, como todos os Kilpatrick.Ela estudou Siobhán atentamente antes de segurar-lhe o queixo e forçá-la a fitar seus olhos.— Agora, diga-me porque temos de deixar Ballycashel, depois de todas as nossas lutas para

ficar?— Os irmãos Kerrigan! — Siobhán explodiu, incapaz de segurar a ira e o horror por mais um

segundo. — Oh, vovó! David... digo, o sr. Burke os contratou como cavalariços. Eles estão devolta a Bally cashel, aquelas almas amaldiçoadas!

Meg se calou, com olhar vidrado.— Você tem certeza de que são eles?— Oh, tenho certeza absoluta! Joe Kerrigan esteve aqui há pouco, com alimentos enviados

pelo senhorio. Para celebrar o fim do plantio, disse ele.— Joe Kerrigan, que Deus tenha piedade de sua alma — Meg disse com amargura. — E seu

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irmão mais velho, Frank. Nunca houve um melhor par de vagabundos do que os dois preguiçosos,bons para nada, até terem a oportunidade certa de trair um dos nossos.

Um soluço explodiu na garganta de Siobhán, e Meg a envolveu em seus braços fortes. Elaagarrou-se à avó que havia sido um rochedo de força nos momentos mais difíceis de sua vida, edeixou que as lágrimas lavassem as lembranças.

Será que ela jamais esqueceria?Michael e Sean pilhando os vagões cheios de grãos prontos para exportação com as armas que

tinham roubado de Glenleigh... Frank e Joe Kerrigan, dois homens que haviam se passado poramigos, eram os únicos que conheciam o plano. No entanto, de alguma forma, Glenleigh sabiaonde encontrá-los.

O marido e o irmão caçula tinham sido arrastados de casa na frente dela e seu bebê, eenforcados na árvore da encruzilhada.

E Frank e Joe Kerrigan tinham desaparecido.Meg a embalou enquanto ela chorava, tal como fazia quando era menina e esfolava o joelho

nas pedras da baía de Galway. Ela acariciou os cabelos emaranhados de Siobhán com uma mãotrêmula.

— Eu prometi a ele.As palavras sussurradas acalmaram os soluços, e Siobhán se afastou.— O que a senhora prometeu? A quem?— Prometi a Michael cuidar de vocês. É claro que vou com você, se for sua decisão. Mas

como?— David... o sr. Burke me disse que forneceria passagem para quem desejasse emigrar.— Você contou a ele sobre os Kerrigan? — Meg perguntou abruptamente.— Claro que não. O senhorio deve saber onde procurar lealdade.— Não — Meg disse ferozmente. — Ele não tem nenhuma relação com os Whiteboys ou

com os rebeldes. Ele quer apenas levantar Ballycashel das cinzas do passado.O que a avó estava falando? Como ela poderia saber tanto sobre o senhorio, quando trocara

apenas algumas palavras respeitosas com ele?E ainda...Os olhares secretos entre sua avó e Burke... A familiaridade dele com Ballycashel... A

necessidade de ajudar seu povo... Seu povo?Quem era David Burke?— Vovó Meg...Uma onda de suspeita cresceu dentro dela, fazendo-a se sentir viva novamente.Mas a avó estava saindo para o quintal.— Vou cuidar das meninas para não se afastarem da casa.— Mas, vovó...As palavras de Siobhán se confundiram com o sal pulverizado pelo vento que soprava da baía.

Meg tinha desaparecido, deixando-a com milhares de perguntas sem resposta.Quem era David Burke? Era realmente apenas um americano errante que tinha escolhido

Bally cashel por acaso? Ou teria vindo para a Irlanda com uma missão?Que missão? Ela nunca saberia a verdade?Ele saberia o quanto o amava?Siobhán enterrou o rosto nas mãos e chorou.

Rory acendeu cada vela do estúdio numa vã tentativa de derrotar a escuridão interior e fezmenção de se sentar na poltrona diante da lareira quando ouviu uma batida discreta na porta.

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Colocou o copo vazio na mesa de carvalho com cuidado exagerado e concentrou seu olhar naporta.

— Quem é?Uma fresta da porta se abriu.— Sou eu, sr. Burke — Hannah informou, hesitante. — O senhor tem visita. O sr. Tom Flynn

veio vê-lo para tratar de um assunto urgente, diz ele. — Ela fez uma pausa, avaliando-o comolhar experiente. — Esteve bebendo, não é?

— Uma observação astuta — Rory sibilou, levantando-se instável sobre os pés. — Mas eu lheasseguro, Hannah, não estou bêbado. Minha esposa, Charlotte, uma vez me disse que é quaseimpossível embriagar-se com julep. — Ele indicou a jarra quase vazia com a mistura de hortelãmacerada com açúcar, uísque e gelo, sobre a mesa. — As melhores famílias do Sul fazem isso,até mesmo as damas.

— Pode ser — ela respondeu. — Mas não há dúvida de que exagerou esta noite. Devo pedirque Tom vá embora?

— Não! Tom é amigo de Siobhán. — Impaciente, ele balançou a cabeça para afastar onevoeiro de álcool que envolvia seu cérebro.

Será que Tom sabia de alguma coisa? Conheceria a razão pela qual Siobhán decidira deixarBally cashel repentinamente? Talvez ele pudesse convencê-la a permanecer na propriedade.

— Rory ? — Hannah o fitou com uma mistura de impaciência e compaixão.— Não me chame assim! — Ele engoliu a respiração, lutando pelo controle. — Peça para

Fly nn entrar. Diga-lhe que o receberei no escritório.Ela corou ante o tom ríspido, baixou a cabeça e se retirou, voltando minutos depois com Tom

Fly nn, pouco à vontade atrás dela.Rory estendeu a mão, lutando para parecer sóbrio.— O que posso fazer por você, Flynn? Gostaria de uma bebida?— Não, obrigado, Sua Senhoria. Eu vim para discutir uma questão importante, senhor. Algo

que talvez não seja do seu conhecimento.Interessante, Rory pensou. Fly nn batia o pé direito com impaciência, e a bota pesada e rústica

provocava eco no piso de madeira. Era óbvio que estava nervoso. Mas por quê? Seria por estar napresença do senhor de Ballycashel? Ou haveria algum outro motivo? Algo que envolvia Siobhán?

— Muito bem. Isso é tudo, Hannah. — Rory esperou até que a porta se fechassesilenciosamente atrás da governanta. — Você não se importa se eu tomar um copo de julep, nãoé, Fly nn?

— Perdão, senhor, mas parece-me que já bebeu demais.Rory fez uma pausa, com a mão paralisada na asa do jarro, e olhou fixamente para Tom com

relutante admiração. Somente uma alma corajosa para enfrentar o homem que, literalmente,tinha a vida dele nas mãos. Tom Flynn era um homem de coragem.

Fly nn sustentou o olhar com altivez, recusando-se a ceder. Havia algo em seu semblante quedeixou Rory desconfortável, e a imagem de menino magro de cabelos pretos e sorriso fácilpassou pela sua mente.

Ele sacudiu a cabeça para afastar a cena e derramou uma dose generosa no copo, erguendo-ona direção do visitante.

— Sláinte.— Milorde... sr. Burke, quero dizer...— Prefiro ser chamado de David — Rory interrompeu jovialmente, animado pelo efeito do

álcool.— Como quiser, Sua Senhoria. Preciso falar com o senhor, se puder me dar um minuto do seu

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tempo.— Claro, claro, Flynn. Você é bem-vindo na Casa Grande. — Rory deu uma risada curta,

sem humor. — É uma mudança na velha ordem das coisas, não acha?— Suponho que sim, senhor.Tom encarou-o com olhar firme e Rory se amaldiçoou em pensamento. Como diabos um

estranho na aldeia poderia saber como o antigo senhorio tratava seus inquilinos? Droga, ele nãodevia nem saber quem fora Glenleigh!

Tenso, apressou-se a encobrir seu rastro.— Então, Fly nn, o que você quer falar comigo? — Um pensamento súbito e desconcertante

lhe ocorreu. — É sobre o plantio? Há algum problema com as sementes?— Não, senhor, o cultivo está indo bem, com a ajuda de Deus.— É sobre Siobhán? — A pergunta veio espontaneamente aos lábios de Rory .Que diabos ele estava fazendo? Se não prendesse a língua com mais cuidado, destruiria tudo o

que tinha trabalhado tão duro para conseguir. Por que deveria estar interessado em Siobhán? Atéonde todos em Ballycashel sabiam, ela não era nada além da governanta de sua filha.

Flynn não podia saber que ele estava se apaixonando por Siobhán. Mas por que o fitava comtanta atenção?

— Bem, na verdade, sim, senhor. O assunto que trago está relacionado a Siobhán... a ela e aalguns dos homens que trabalham na propriedade.

O que Tom Fly nn sabia sobre seus empregados? Que diabos estava acontecendo ali?— Flynn, é melhor se explicar. Você vem me falar de uma insurreição depois de eu ter

fornecido a todos o alimento e a esperança de uma boa colheita?Aonde ele pretendia chegar? O fantasma de sua mãe estava sentado em seu ombro,

cutucando-o com memórias de um tempo que era melhor esquecer.— Não, senhor, não há nenhuma insurreição. É apenas... bem, o senhor sabe... Trata-se dos

irmãos Kerrigan, Frank e Joe. É isso.— O que há de errado com eles? E o que têm a ver com Siobhán?— Bem, senhor, não pretendo questionar seu julgamento. Claro, o senhor não teria como

saber, já que é recém-chegado na aldeia... — Tom respirou fundo e prosseguiu: — Mas algunsanos atrás, houve rumores de que eles estavam envolvidos em certos acontecimentos.

— Que tipo de acontecimentos? Diabos, homem, fale logo! O que está acontecendo emBally cashel que você acha que eu deveria saber?

— Bem, senhor, eu não sei se está ciente de que Sean Kilpatrick e Michael Desmond, queDeus os tenha, foram enforcados por traição.

— Sim, eu fui informado. — A bile subiu à garganta de Rory quando percebeu aonde Tompretendia chegar. — Você está dizendo que os Kerrigan estavam de alguma forma envolvidoscom essas mortes? — perguntou com voz perigosamente calma.

— Não tínhamos nenhuma prova. — Tom recuou, apressadamente, reagindo à ameaçasilenciosa no tom de voz do senhorio. — Mas eles eram os únicos que sabiam do plano pararoubar os grãos de lorde Glenleigh. Estávamos sem comida, e os pequeninos da aldeia morriamde febre e de fome. O plano era de Michael, herói do jovem Sean, que naturalmente seguiu seuexemplo. Partiu o coração de Siobhán ver seu irmão caçula balançando na Árvore dosEnforcados.

— Sim. — Rory sentiu-se sóbrio de repente.Aquilo explicava o pânico Siobhán, sua determinação em fugir. Ou haveria mais do que isso?

Tom era um velho amigo dela. Talvez, se pisasse com muito cuidado naquele terrenodesconhecido, pudesse descobrir alguns dos segredos que ela mantinha trancados dentro do

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coração.— Diga-me mais, Flynn — ordenou.— Mais, senhor? Sobre os Kerrigan?— Sobre o que aconteceu na noite do ataque. Você disse que foi ideia de Michael Desmond?— Sim, senhor. Michael era um bom homem — Tom apressou-se a dizer, defendendo a

memória do amigo. — Mas ele não podia suportar ver a família passando fome, enquanto acomida estava sendo enviada para a Inglaterra. Glenleigh não levantava um dedo para ajudarseus inquilinos, senhor, e quando Michael ouviu que transportaria a aveia e o milho na calada danoite, planejou atacar as carroças à meia-noite.

— Entendo. E Glenleigh descobriu, naturalmente. Alguém deve ter lhe dito, senhor, pois haviaguardas à espreita. Eles capturaram Sean e Michael, mas os Kerrigan, que estavam com eles,saíram livres.

— Desmond era seu amigo?— Sim, senhor. Nos conhecíamos desde crianças.— E você não estava envolvido no ataque?— Oh, não, senhor! Eu nunca me envolvi com os Whiteboy s. — Tom hesitou, como que se

perguntando se podia confiar no senhorio. — Eu desejo uma Irlanda livre do jugo da Grã-Bretanha, senhor, mas acredito que a liberdade pode ser alcançada através de meios pacíficos.Veja Daniel O’Connell. Nossa liberdade chegará, se não for para mim, então para meus filhos ouos seus. Sou um homem paciente, senhor. Posso esperar tanto tempo quanto necessário. Se puderenvelhecer nas paragens verdes da Irlanda, serei um homem feliz.

Rory assentiu, aceitando as palavras de Tom, pois a sinceridade era evidente em seus olhos.— E seu alerta sobre os Kerrigan... — Ele estreitou os olhos, como se pudesse ler a alma de

Tom. — Você acha que eles podem estar tramando alguma coisa?— Se não estiverem, podem estar usando a posição em Ballycashel para se comunicarem

com outros membros dos Whiteboys.— Eu suponho que seja possível — ponderou Rory .— Desculpe pela minha ousadia em vir falar com o senhor. — Tom olhou-o, inquieto. — Não

tenho nenhum desejo de trazer problemas, mas achei que deveria avisá-lo.— Eu aprecio sua atitude, Flynn. — Foi a vez de Rory hesitar. — Você está ciente de que

Siobhán me pediu para lhe conseguir passagens para a América após a colheita?— América?!— Sim. Ela pretende ir para a América com a avó e a filha. Eu não tinha ideia do motivo, na

ocasião, mas, agora que você me contou sobre os Kerrigan, começo a entender por que ela querdeixar a Irlanda.

— Sim. Quando viu Joe Kerrigan hoje, ela ficou branca como um lençol.— Você estava com ela? — Rory tentou sem sucesso encobrir a aspereza na voz. — Por quê?— Estávamos terminando o plantio das últimas sementes, senhor.— Ah, sim... claro. Diga-me, Flynn, como estão os planos para o seu casamento?— Muito bem, senhor. — Tom sorriu. — Vamos nos casar daqui a um mês.— Bom, bom. Se houver alguma coisa que você precise, é só me dizer. Eu quero que meu

povo seja feliz.— Sim, senhor. Obrigado. — Tom balançou a cabeça respeitosamente e virou-se para ir.— Ah, Flynn... Cuide de Siobhán. Fique de olho nela e em sua família, e certifique-se de que

os Kerrigan fiquem longe daquela casa. — Rory hesitou. — E se você vir ou ouvir qualquer coisasuspeita, avise-me. Será recompensado, é claro.

Tom ergueu-se com orgulho.

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— Não há necessidade, milorde. O senhor parece ser um homem de confiança, e não voupermitir que qualquer pessoa, mesmo uma de meu próprio povo, destrua o que está tentandoreconstruir.

As palavras tocaram Rory, e ele piscou para afastar a névoa repentina que subiu para osolhos. Num impulso, estendeu a mão.

— Obrigado, Flynn. Sua fé em mim significa muito.Tom hesitou por apenas uma fração de segundo antes de segurar a mão de Rory em um

aperto firme.— Para um americano, o senhor tem alma irlandesa, milorde. É quase possível acreditar que

nasceu aqui.Tocado, Rory encarou os olhos de Tom, brilhantes com conjecturas. Teria suspeitado de algo?

Um relance de memória perpassou sua mente: um menino de cabelos pretos tocando umapequena gaita, reproduzindo melodias com tanta doçura que poderia trazer lágrimas aos olhos atémesmo de um homem endurecido.

Com uma risada trêmula, Rory fez um gesto com a mão sã, adotando um sotaque exagerado.— Ah, agora, rapaz, vamos deixar o poitín falar. Acho que esse julep é tão bom quanto

qualquer bourbon de Kentucky , e muito mais fácil de encontrar aqui, na Irlanda.Em vez de responder, Tom continuou a encará-lo.— O senhor me faz lembrar alguém. Havia um menino, anos atrás...O pânico tomou conta de Rory. Tom se lembraria do dia em que encontrara o menino

ensaguentado na floresta perto do córrego e o convidara para brincar?Às pressas, ele pegou um copo.— Tome uma dose, meu amigo. A mistura de uísque e menta é boa para se tomar numa tarde

ensolarada em Louisville, Kentucky, na América. O melhor cavalo que existe vem de CountyKildare, naquela região. Cavalos de corrida. Belos animais.

Balançando a cabeça, Tom endureceu a expressão.— Havia alguma coisa sobre aquele menino. Ele era da minha idade, e tinha alma de poeta e

tristeza nos olhos. Todos na aldeia sabiam que era espancado cruelmente pelo pai.Oh, Deus. Tom sabia. Ele sabia!Tom permaneceu firme.— Ouvi dizer que a mãe do menino tentou fugir do marido. Ela foi para a casa de uma tia,

creio eu, mas o marido os encontrou, e pouco depois os levou para a América.— Uma história comum — retrucou Rory, inquieto. — Muitas famílias emigraram para os

Estados Unidos, mesmo antes da Grande Fome.O tom de voz era calmo e solene quando ele respondeu:— Mas quantos desses emigrantes retornaram?— Mesmo se eu fosse esse menino, por que na terra verde de Deus eu iria querer voltar para

um lugar que traz tantas lembranças ruins?Tom ficou em silêncio por um momento.— Há muitas razões para um homem querer confrontar seu passado, senhor. Isso não é da

minha conta. — Ele fez uma pausa, seguida de um olhar significativo. — Contanto que ninguémse machuque.

Sem esperar por uma resposta, Tom acenou em despedida e saiu.Oh, Deus! Os acontecimentos estavam correndo mais depressa do que ele poderia prever. Ele

fora para Ballycashel a fim de se vingar do pai que o abandonara aos cuidados de um monstro.Planejava destruir tudo o que Percival Glenleigh outrora defendera. Não deveria se importarcom o povo, suas alegrias e tristezas, suas personalidades únicas e, certamente, sua ideologia e

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amor pela terra.Como diabos ele devia lidar com tudo isso?

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Capítulo XI

— Vamos ter um ceili!O grito familiar enviou um arrepio de antecipação pelo corpo de Siobhán. Liam Brady tirou o

arco e o violino precioso, e Paddy Devlin explodiu numa onda de notas altas na gaita. Siobhánolhou em volta para os rostos dos amigos, radiantes de alegria. Os vizinhos, vestidos com asmelhores roupas, se reuniram para o reel, a tradicional dança escocesa executada nas ocasiõesfestivas. A antecipação da alegria era quase palpável.

Mais cedo naquele dia, Tom Flynn se casara com Nora MacGreevy , e todos estavam ansiosospara celebrar o feliz acontecimento. Fazia muito tempo que os aldeões não tinham motivos paracomemorar.

Siobhán sorriu quando o primo de Nora, Mickeen, tomou o braço da noiva e puxou-a paradançar assim que os primeiros acordes alegres do reel soaram.

Deixando-se envolver pela alegria reinante, ela acompanhou as melodias de sua infância,batendo pés e mãos ao ritmo animado com uma alegria e liberdade que ela mal se lembrava tervivido em tempos passados.

Era maravilhoso poder relaxar e se divertir. Desde que David Burke chegara a Ballycashel,ela se vira emaranhada em nós emocionais.

Mas aquele dia era de Tom e Nora. A amiga estava deslumbrante no vestido de noiva azul,com era costume na Irlanda, com a gola de renda que Siobhán tinha feito como presente decasamento. E Tom estava orgulhoso e feliz ao lado da noiva, os olhos escuros brilhando comamor e esperança. Querido Tom, a quem amava como a um irmão!

Liam produziu uma nota dissonante no violino, e a gaita de Paddy respondeu com um agudoque soou como um leitão recém-nascido. Os presentes exultaram, explodindo em aplausos.

Siobhán riu e, como se pressentisse a presença, virou-se para ver David Burke caminhando nomeio da multidão. Ele parecia claudicar menos, ela observou, tentando ignorar a súbita onda dealegria que encheu seu coração. Não o via desde o dia em que fora avisá-lo que partiria para aAmérica, depois de deparar com Joe Kerrigan na porta de sua própria casa. Evitara-o tantoquanto pudera na Casa Grande, certificando-se de que nunca ficassem sozinhos, exceto duranteos breves relatos sobre o progresso de Kathryn.

Sem conseguir reprimir um suspiro, ela o estudou. Ele estava mais atraente do que nuncanaquele traje preto como de costume, apoiando-se numa elegante bengala de ébano. Os cabelospretos esvoaçavam na brisa morna e salgada, enquanto ele se aproximava de Tom e Nora.

Burke estendeu a mão para os dois.— Que a luz de Deus brilhe sobre vocês, Tom Flynn e Nora.Nora corou e baixou os olhos.— Obrigada, milorde.Tom nem sequer hesitou, Siobhán notou, espantada. Apertou a mão de Burke com firmeza,

como se fossem velhos amigos. Quando tinham se tornado próximos? Embora nunca tivessesimpatizado com a causa dos dissidentes, Tom, como todos eles, sempre tivera reserva e umasuspeita saudável da nobreza.

— O senhor é bem-vindo para se juntar a nós, milorde. Será uma honra tê-lo dançandoconosco.

Tom acenou para Paddy e Liam. Imediatamente os dois iniciaram uma melodia melancólicaque trouxe lágrimas aos olhos de Siobhán. Então, com horror, ela viu o olhar de Burke percorrer a

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multidão e deter-se em seu rosto. Sem dizer nada, caminhou na sua direção.— Vai dançar comigo, mo bláthaigh?“Minha flor”. A adorável lisonja, proferida numa deliciosa combinação da cadência irlandesa

com o sotaque da América, fez o coração de Siobhán derreter. Aquele homem roubava suacapacidade de raciocínio e bloqueava a respiração em sua garganta.

Ela só conseguiu assentir com a cabeça e deixar-se levar, indefesa nos braços dele.Oh, a sensação daqueles braços enlaçando-a, segurando-a muito mais perto do que permitia a

decência! Vovó Meg devia estar assistindo e imaginando coisas. Sem dúvida, Eileen O’Farrell eMary Daly haviam notado também, e na certa desaprovavam sua atitude. E Ashleen devia estarse perguntando por que sua mãe, que quase nunca dançava, estava nos braços do pai de suamelhor amiga.

David inalou perto de seu ouvido, enviando-lhe um arrepio pela espinha. Ele absorveu opequeno estremecimento com o próprio corpo, murmurando:

— Você cheira maravilhosamente bem.— Nós não deveríamos estar fazendo isto — ela sussurrou de volta. — Todos estão reparando.— Eu não me importo.Ah, o timbre daquela voz!— Você se incomoda?— Eu...— Todas as noites, eu sonho em dançar com você como estamos fazendo agora — ele

confessou, hipnotizando-a com a musicalidade da voz. — Sonho com a chance de segurá-laassim. — Os braços dele a apertaram ainda mais, e ela sentiu-se derreter em resposta. — Etambém com o beijo que compartilhamos, a maciez de seus lábios, o cetim de sua pele... Amaneira como seu corpo vibra contra o meu.

Um gemido involuntário escapou dos lábios de Siobhán, mas ela não conseguiu responder.Todo o seu ser estava escravizado ao feitiço que ele tecia com a voz, olhos e mãos.

— Então, lembro-me da nossa conversa no estábulo. — A voz se tornou áspera e fria. —Penso em quando me disse que partiria para a América depois da colheita, e me torno conscientede que você quer deixar Ballycashel e me deixar.

Lágrimas correram dos olhos dela.— David...A dança mudou de repente, acompanhando a melodia alegre, e os casais se aglomeraram em

torno deles, pulando e girando no ritmo rápido do violino. Siobhán olhou para o parceiro e seucoração se confrangeu, enquanto observava a angústia que cintilava no semblante sempreimpassível. Como se adivinhasse seus pensamentos, ele se afastou, aumentando a distância.

— Está ficando tarde. — A voz soou como se viesse de muito longe. — Cumpri meu devercomo senhorio e desejei felicidades aos noivos. Agora devo voltar para a Casa Grande, aonde eupertenço.

— Não vá. — Ela queria abraçá-lo ali mesmo, embora soubesse que não tinha o direito. —Fique. Faça um brinde a Tom e Nora.

Mas ele já abria caminho entre os dançarinos, seguindo para o magnífico cavalo amarrado auma árvore próxima.

Ela não podia deixá-lo ir. Teria de cumprir a promessa que fizera a si mesma, e partiria paraa América com a avó e a filha para nunca mais vê-lo.

Aflita, Siobhán procurou Tom e Nora e inventou uma desculpa tola sobre não se sentir bem.Então correu pelo bosque na direção de Ballycashel.

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Um segundo depois de Rory saltar da sela de Ree, Joe Kerrigan apareceu ao lado dele, prontopara tomar as rédeas.

— Fez um bom passeio, milorde? — perguntou, com a deferência que sempre mostrava e queagora Rory achava cada vez mais irritante.

Ele olhou para Kerrigan em silêncio, sentindo a repulsa revolver seu estômago. Joe Kerriganera um homem de aparência comum, de tez corada e cabelos ruivos e crespos cortados rente.Mas era a expressão evasiva nos olhos pálidos que o incomodava. Joe Kerrigan parecia não sercapaz de enfrentar seu olhar. Era um bom cavalariço, embora desaparecesse de Bally cashel porlongas horas com frequência cada vez maior. Seu irmão, Frank, havia explicado tais ausênciascomo relacionadas ao trabalho, mas dada a informação que ele recebera de Tom, não estavaseguro de que a justificativa correspondesse à verdade.

Então decidiu sondar o empregado com uma estratégia sutil.— Na verdade, Kerrigan, passei pela casa de Tom Flynn. Ele e Nora MacGreevy se casaram

hoje. Acho que você sabia disso.— Sim, senhor. Eu teria ido até lá, mas meu irmão foi para Galway, e alguém tinha de ficar

aqui para cuidar do estábulo, senhor.— É esse o motivo? — Rory perguntou em tom de seda. — Estranho. Eu poderia jurar que

havia certo ressentimento entre você e Tom Flynn.Kerrigan forçou uma risada, e os olhinhos estreitos se apertaram ainda mais.— Ah, são apenas rumores maldosos, senhor. Foi uma rusga por causa de uma mulher, nada

sério. Meu irmão Frank estava interessado em Nora, mas ela não enxergava ninguém além deTom.

Aha!, Rory pensou, triunfante. Ele sentiu a onda de adrenalina que normalmenteacompanhava uma vitória na mesa de jogo. Só que dessa vez as apostas eram bem mais altas.

— É só isso? — A voz soou perigosamente calma.Ele confrontou o outro homem com o olhar, em silêncio, desafiando-o a dizer a verdade.— Sim, senhor — respondeu Kerrigan prontamente, sem esconder a inquietação. — O que

mais poderia ser?— Não sei. Você terá de me dizer.Kerrigan transferiu o peso de um pé para o outro, pouco à vontade, e Ree, percebendo a

inquietação, empinou o focinho e relinchou, agitando a cabeça.— Eu não sei o que dizer, senhor. Não há nada entre mim e Tom Flynn.— Eu ouvi dizer que você participou de uma incursão nos vagões de grão pertencentes a lorde

Glenleigh, alguns anos atrás.Kerrigan ficou tenso ao ouvir as palavras acusadoras, Rory observou. Bom. Estava com

medo, e um homem assustado cometia erros.— Eu também ouvi sobre dois outros homens envolvidos que foram capturados pelos guardas

de Glenleigh e enforcados aqui em Ballycashel, na frente das próprias famílias.— Bem, senhor, isso é verdade. — O olhar de Kerrigan deslizou para longe de Rory. —

Michael Desmond e Sean Kilpatrick.— Havia guardas com Glenleigh?— Sim, senhor. — A voz de Kerrigan soou quase inaudível.— Eu não posso ouvi-lo, Kerrigan!Aquela era sua própria voz? Por um momento, Rory soou como Glenleigh. O pensamento

tanto o chocou como fascinou.— Sim, senhor — ele elevou a voz. — Havia guardas. Dois.— Estranho, não? Pois, segundo minhas pesquisas sobre o assunto, Glenleigh nunca havia

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contratado guardas antes. — Rory olhou fixamente para Kerrigan, penetrando na alma do outrohomem. — Só há uma razão plausível para tamanha coincidência: Michael Desmond e SeanKilpatrick foram traídos.

O rosto de Kerrigan ficou pálido. Ele baixou a cabeça, escondendo os olhos. Quando falou, suavoz era pouco mais que um guincho. Sim, como um rato, Rory pensou com desprezo.

— Traídos, senhor? Por quem?O autocontrole de Rory desabou. Quase sem perceber, ele agarrou Kerrigan pelo colarinho e

puxou-o para tão perto que podia sentir o cheiro de terror na respiração do outro homem.— Por um par de bastardos traiçoeiros como você e seu irmão! Diga-me, Kerrigan... — A

voz dele destilava raiva e ódio. — Quanto você recebeu para delatar seus amigos? Quanto valeu avida de um homem casado com uma esposa e um bebê? Quantas moedas de prata vocêsganharam pela vida de um menino que nunca teve a chance de se tornar um homem?

— S-senhor, eu não tenho nenhuma ideia do que está falando...— Não minta para mim, maldito!— Eu não estou mentindo...— Você admite que participou do ataque... — Rory afirmou, exercendo tamanha pressão

sobre a bengala que a mão começou a tremer. A outra mão se flexionou inquieta no pescoço deKerrigan. — Você estava lá, junto com seu irmão, além de Kilpatrick e Desmond. No entanto,não foram capturados. Na verdade, pelo que me foi dito, Michael Desmond e Sean Kilpatrickforam para casa para dizer adeus à família, e foi lá que os homens do senhorio os encontraram.

Enquanto Rory atirava acusações contra ele, o rosto de Kerrigan lentamente passou do pavorde um rato encurralado para a ferocidade de um leão espicaçado.

— Quem lhe contou tais mentiras, milorde? Não havia ninguém além de nós quatro no ataque!— Tenho minhas fontes, Kerrigan — Rory afirmou com determinação. — Assim como

Glenleigh tinha.Ele se calou por um momento para deixar as palavras exercer efeito.Os olhos de Kerrigan se arregalaram. Por um momento, ele apenas olhou para Rory com

evidente aversão. Então rosnou:— Foi aquela prostituta, Siobhán Desmond, não foi? Claro, ela não perdeu tempo para

encontrar outro protetor, agora que Michael se foi.As mãos de Rory se apertaram na camisa de Kerrigan.— Cale essa boca imunda! — vociferou, e na ira a voz assumiu a antiga cadência irlandesa.

— Não admito que fale da sra. Desmond dessa forma! E não direi de onde recebo minhasinformações.

Ele respirou fundo, estremecendo ao travar uma luta interna pelo controle que até aquelemomento ele sempre encontrara tão facilmente.

Calma, ordenou a si mesmo.Com um movimento abrupto, empurrou Kerrigan para longe. Engolindo em seco, assumiu a

postura de senhor da casa, em seu tom mais arrogante.— Basta dizer, Kerrigan, que não desejo ter traidores como meus empregados. Você e seu

irmão estão demitidos. Se ainda estiverem na minha propriedade dentro de uma hora, vou chutá-los para fora eu mesmo.

Kerrigan o encarou por um longo momento, com o rosto desprovido de expressão. Então, paraespanto de Rory , os lábios se retorceram num sorriso insolente.

— Muito bem, milorde — respondeu com descaso. — Eu e meu irmão nos afastaremos, se éesse o seu desejo. Mas é melhor manter seus olhos e ouvidos abertos, milorde. Claro, o senhornão é melhor do que Glenleigh, seu antecessor, e ninguém sabe o que pode acontecer a alguém

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que os Whiteboys odeiam tanto.— Está me ameaçando, Kerrigan?— Não é nenhuma ameaça, senhor. Apenas uma advertência. Os Whiteboys cuidam dos seus

— Kerrigan declarou antes de sair do estábulo com passadas rápidas.Rory o observou, abalado. A ofensa a Siobhán o enfurecera, e a ameaça, advertência, ou o

que quer que fosse que Kerrigan proferira, fizera sua ira queimar. Ele inalou repetidas vezes,tentando controlar a raiva, mas não conseguiu parar de tremer com o frio que se apoderou de seucorpo e sua alma.

O senhor não é melhor do que Glenleigh, seu antecessor...A ideia de que fosse parecido com aquele bastardo frio e cruel o horrorizou. Glenleigh podia

ser seu pai natural, mas certamente Rory não era como ele. Estava fazendo o que podia para serum bom senhorio para o povo de Ballycashel. Cedera sementes para o cultivo; ajudara elemesmo a lançá-las na terra; dera-lhes emprego e um pouco de segurança; planejara para quecada casa fosse reparada antes de o inverno chegar.

No entanto, o sangue de Glenleigh ainda contaminava suas veias.Com um gemido áspero, estendeu a mão e entrelaçou os dedos na crina de Ree. O cavalo

relinchou em resposta, esticando o focinho para roçar seu peito, e Rory absorveu o único calorque se permitia receber de outra criatura viva.

— David...Rory virou-se e viu Siobhán. Há quanto tempo estaria ali? No mesmo instante, soube que havia

sido tempo suficiente para ouvir a conversa. Os olhos dela estavam arregalados, reluzindo comoduas esmeraldas translúcidas, refletindo a mais pura compaixão. Os lábios estremeceram quandoela estendeu a mão num convite.

Cegamente, Rory aceitou o consolo que ela oferecia.

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Capítulo XII

Siobhán se deixou ser abraçada por um momento, quase sufocada pelo ímpeto da urgência deRory , antes de recuar e estudar o rosto bonito.

As linhas ao redor dos olhos e a boca comprimida numa linha fina denunciavam a raiva queele sentia. Mas de alguma forma, sabia que não era dirigida a ela, e sim à injustiça da qual foravítima.

— O que ele lhe disse? — perguntou delicadamente, os dedos movendo-se para acariciar orosto. — O que contou sobre meu irmão e meu marido?

— Será que isso importa?— É importante para mim. Por favor, David, diga-me. Foram os irmãos Kerrigan que lhe

contaram sobre a morte do meu marido e do meu irmão?— Não. E eu não acreditaria em qualquer coisa que aqueles bastardos dissessem, de qualquer

maneira.— Então, quem foi? — Siobhán exigiu, o coração batendo com tanta força que os ouvidos

chegavam a zumbir. — Você tem de me contar!— Vovó Meg revelou parte da história — ele admitiu finalmente. — Tom me contou o resto.— Vovó Meg! — Siobhán repetiu, espantada. — Por que diabos minha avó lhe contaria? Ela

mal conhece você!O olhar de Rory sustentou o dela por um longo momento antes que ele parecesse chegar a

uma decisão. Respirando fundo, ele clareou a garganta e admitiu:— Sua avó me conhece melhor do que você pensa, Siobhán. Ela sabe quem eu sou, e sabia

quem era meu pai também. Ela tinha consciência do bastardo que ele era — acrescentou, numfio de voz.

Vovó Meg sabia quem ele era? E sabia quem era o pai dele? As palavras zumbiam no cérebrode Siobhán como um enxame de abelhas. Ela balançou a cabeça, confusa, incapaz decompreender o significado daquelas afirmações.

— David...— Rory .— O... o quê?— Rory. Esse é meu verdadeiro nome. Rory O’Brien, uma vez conhecido como Rory

Doherty . Rory David Doherty , para ser exato.— Doherty?Por que o nome lhe era tão familiar?— Sim. Meu pai, Seamus Doherty, casou-se com minha mãe quando ela ficou grávida de

mim. — Ele fez uma pausa, e seu olhar deslizou para longe dela por um momento. Em seguida,ele sacudiu a cabeça e continuou em tom linear, desprovido de emoção. — Seamus era... Ele nãoera um bom pai. Quando o antigo senhorio de Ballycashel, lorde Percival Glenleigh, o expulsoude suas terras por falta de pagamento do aluguel, minha mãe viu a oportunidade de fugir e melevar para longe dele. Mas Seamus nos encontrou e nos levou para a América.

As lembranças voltaram para Siobhán. Lembrou-se das histórias que ouvira sobre o meninoque era espancado simplesmente por ler poesia e tentar aprender a escrever.

Tentar aprender a escrever...?Não era possível. Não podia ser a mesma pessoa! Ela se lembrava vagamente da noite em

que acordara no escuro com o suave murmúrio de vozes de seus pais. Seu pai comentava comsua mãe sobre um menino, Rory, que estava desesperado para aprender a escrever, mas cujo

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pai se recusava a pagar alguns xelins para enviá-lo à escola.Doherty é um bastardo. Não vou cobrar os honorários, e emprestarei meus livros em segredo a

Rory, pois não quero que o garoto seja punido.Na época, Siobhán não compreendera por que uma criança interessada em aprender a ler

merecia punição. Ela sentira pena do menino que tinha de usar livros emprestados de seu pai.Agora, as peças se encaixavam como num estranho quebra-cabeça.

— Você conhecia meu pai... Conhecia minha família inteira, não é? Foi por isso que meofereceu o cargo de governanta de Kathryn?

— Não, embora eu sempre serei grato por aquilo que seu pai fez para me ajudar quando euera pequeno. Ele era um bom homem.

— E vovó Meg?— Ela me reconheceu quando voltei para Ballycashel. Disse que eu tinha os olhos de minha

mãe. — Rory sorriu com saudade. — Uma vez ela me salvou, sabia...? Arriscou-se a enfrentarSeamus ao impedir que ele despejasse sua fúria sobre mim.

— Como? Quando?As lágrimas inundaram os olhos de Siobhán ao ouvir a história. Seu coração se apertou ao

pensar no menino inocente sendo forçado a suportar uma vida de espancamentos pelos simplesfato de ser inteligente. Havia uma pequena cicatriz no queixo, não mais que uma sombra, mas dealguma forma, ela sabia que aquela marca fora deixada por Seamus Doherty . Levou a mão paraacariciá-la, e ele capturou seus dedos na boca.

Cada terminação nervosa do corpo de Siobhán se tensionou em resposta ao toque. Cada célularespondeu ao anseio vivo naqueles olhos.

— Siobhán — Rory sussurrou, mordiscando os dedos e quase fazendo os ossos dela derreter.— Minha doce Siobhán, não me deixe. Você ouviu quando despedi os irmãos Kerrigan. Não hámais razão para ir embora. Fique. Fique aqui comigo. Eu vou protegê-la.

Estar em Bally cashel, ficar com ele para sempre... Siobhán respirou fundo, sentindo-setentada. Aproximou-se, e os braços fortes a enlaçaram, puxando-a para tão perto que ela malpodia respirar. Mas isso não importava. Tudo o que via era ele, e sentia apenas as mãos semovendo em pequenos círculos sensuais em suas costas. Ouvia somente a voz murmurandopalavras ternas em seu ouvido e, em vez do ar, inalava exclusivamente o aroma de floresta enévoa que exalava da pele bronzeada.

— David... — Ela mordeu os lábios e se corrigiu: — Rory .— Ah, meu amor! — ele murmurou, extasiado ao ouvir seu nome nos lábios dela, seu nome

verdadeiro. Era como voltar para casa, encontrar o lugar a que realmente pertencia. — Fique.Não me deixe. Nunca me deixe.

Rory encheu os pulmões, revivendo o impacto emocional que sentira desde que tinha vistoSiobhán pela primeira vez naquela noite, junto ao túmulo do marido.

— Siobhán, eu preciso de você.Ela o empurrou, fitando-o com expressão de pânico.— David... Rory, você não pode! — Balançou a cabeça. — Como pode precisar de mim?

Você mal me conhece!— O que mais há para conhecer? — ele retrucou. — Eu sei que você é forte, sensível,

inteligente, determinada. Foi você quem manteve a família unida depois que Sean e Michaelmorreram. Deus sabe que você deve ter desejado morrer também, mas permaneceu forte porsua família. E quando perdeu o restante dos seus, um por um, manteve-se firme por Meg e porAshleen. Estava determinada a mantê-las vivas. Foi por isso que procurou Glenleigh, e só Deussabe o que ele fez com você.

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— Sim — ela admitiu em voz baixa, atingindo Rory como um punhal no coração que elejulgava morto e enterrado havia muito tempo. Ele viu as lágrimas marejar os belos olhos verdes.— Mas eu tinha de procurá-lo. Elas são minha família, tudo o que me resta no mundo.

Rory fechou os olhos, subjugado por uma onda de ternura, e embalou-a gentilmente.— Você não está sozinha, Siobhán. Estou aqui agora, e juro que vou cuidar de você. Fique em

Bally cashel comigo, com Kathry n, Ashleen e vovó Meg.— Por quê? — ela perguntou baixinho. — Por quê, Rory ?Ele abriu a boca para dizer as palavras. A última vez que as pronunciara fora no ouvido da

mãe, enquanto ela morria. De alguma forma, parecia certo repeti-las para Siobhán, ali, naquelelugar onde tudo tinha começado.

— Porque eu te amo, Siobhán Desmond. Eu te amo e não posso suportar a ideia de perdervocê.

Siobhán agarrou-se ferozmente a ele, com a cabeça aninhada na curva do ombro.— Oh, mo gra — ela disse com a voz rouca pelas lágrimas não derramadas. — Meu amor!

Oh, Rory , eu também te amo... A ideia de deixar Ballycashel estava me matando!— Então, fique.— Para quê? Para me tornar sua amante? Eu não me submeti a ser a prostituta de Glenleigh,

um homem que eu odiava mais do que ninguém no mundo. Como posso ficar com você? Comoposso amá-lo se nem sequer o conheço? Se não sei tudo sobre você?

A lógica das perguntas o abalou. Era óbvio que se recusaria a viver com ele, um homemmanchado de muitas maneiras que nunca seria digno de um prêmio como Siobhán Desmond. Elenão podia lhe dar um futuro. Todos que haviam estado em seu círculo mais próximo tinham sidocontaminados pela sua maldição. Mas poderia dar-lhe algo.

Lenta e dolorosamente, ele se afastou e estendeu a mão direita com a palma para cima,expondo as cicatrizes que revelavam sua alma. Tentou, sem sucesso, suprimir a amargura davoz.

— Aqui está. Agora, você já viu a minha vergonha.Siobhán tocou a palma deformada com dedos tão gentis que enviaram uma onda de

eletricidade pelo corpo de Rory .— Como?Rory sentiu todos os músculos se tensionar. Virou-se, incapaz de suportar a certeza de que a

ternura naquele rosto daria lugar ao desprezo.— Houve um incêndio em nossa casa. Eu estava no andar de baixo com... — ele hesitou,

escolhendo as palavras cuidadosamente — com Jamie, um amigo. Nós tínhamos bebido umpouco e conversávamos quando Jamie sentiu cheiro de fumaça. Quando percebi o que estavaacontecendo, corri primeiro para o quarto de Kathryn. Ela era apenas um bebê, minha menina.Como eu poderia deixá-la?

Rory sentiu vagamente a mão suave acariciar seu ombro.— É claro que não podia.— Jamie foi acordar Charlotte. Eu nunca imaginei que ela não conseguiria escapar. Deixei

Kathry n com uma vizinha e voltei. — Ele engoliu em seco para desfazer o nó na garganta efechou os olhos contra a dor da lembrança. — Encontrei o corpo de Jamie na cozinha. Feri a mãoao tentar retirá-lo das chamas. Mas a morte dele não foi consequência do incêndio. Ele havia sidobaleado sem ter chance de se defender. Essa prova me deu a certeza de que o incêndio não tinhasido acidental.

Siobhán deu um suspiro chocado.— Quem? Quem faria uma coisa tão terrível?

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— Os Whiteboys.A menção do nome evocou desprezo no rosto de Siobhán, mas Rory respirou aliviado por

saber que não era o alvo desse sentimento.— Eles são muito ativos nos Estados Unidos, você sabe. Aproximaram-se de nós, Jamie e eu,

uma vez que eles conheciam... — Ele vacilou, hesitante em revelar a única verdade que poderiamatar toda a afeição que Siobhán lhe dedicava. — Eles sabiam que éramos imigrantesirlandeses. Nós dois nos recusamos a nos envolver, embora mais tarde, quando o mesmo homemque havia se aproximado de nós foi preso, ele apontou o dedo para Jamie e para mim comoinformantes. Dois dias depois disso, houve o incêndio... — A dor da lembrança o fez estremecercom um calafrio que não foi provocado pela brisa que soprava da baía de Galway. — A mortedele foi por minha culpa.

— Não! A culpa não foi sua! — Os belos olhos de Siobhán se inflamaram com indignação. Aboca se apertou quando ela aproximou-se para cercá-lo com os braços. — Não foi culpa deninguém, Rory, exceto dos assassinos. Você está me dizendo... — a voz dela embargou pelaemoção — ...que se culpou todos estes anos pelo que aconteceu?

Ele não respondeu. Não podia responder. De quem era a culpa, então, senão dele próprio? Suavida tinha sido arruinada antes de ele nascer, pensou friamente. Desde o dia em que foraconcebido, quando seu pai violentara sua mãe, até o dia em que Charlotte morrera, ele carregavauma espécie de maldição que contaminava todos ao seu redor.

Com um gemido áspero, deslizou os braços em volta da cintura de Siobhán e a estreitou contrao peito, querendo perder-se em seu calor, afogar-se em sua suavidade. Ela acariciou-lhe ascostas com um gesto tranquilizador que foi um bálsamo para sua alma torturada.

Com um murmúrio profundo, Rory procurou a boca macia oferecida a ele como uma fontede salvação. Siobhán lhe ofertava toda a pureza e bondade, e talvez sua luz pudesse derrotar aescuridão que vivia dentro dele.

Ela respondia com o dom que sempre tivera em seu coração aberto. A suavidade o acalmou,a doçura o despertou e a paixão o inflamou.

Inalando freneticamente, Rory se afastou para fitá-la. Aqueles olhos eram suaves e verdescomo a própria Irlanda, e lhe deram a resposta que procurava. Lentamente, com os dedostrêmulos pela necessidade, ele estendeu a mão para alcançar os botões na gola alta do vestido.

Siobhán emitiu um som rouco que vibrou contra os dedos dele, mas não se afastou. Os olharesde ambos permaneceram fixos um no outro, numa comunhão íntima, e Rory soube que aquelamulher estava lhe oferecendo a própria alma.

Em meio à paixão, ele ouviu os gritos apenas vagamente. Todos deviam estar se divertindo nafesta do casamento de Tom e Nora, pensou, mas ele nunca se arrependeria de ter saído. Nãoquando Siobhán se aninhava macia e quente no círculo de seus braços.

Não foi até o cheiro invadir suas narinas que ele percebeu algo de errado. Seus dedoscongelaram no último botão do corpete.

Fumaça. Oh, Deus! Não o doce aroma da lenha que subia das chaminés das casas, mas afumaça acre da queima de palha. Que diabos estava acontecendo?

Rory se recompôs às pressas e saiu correndo para encontrar Paddy Devlin. O rapaz estavaofegante, com o rosto sujo e manchado, o casaco rasgado e os cabelos ruivos no mais completodesalinho. Instantaneamente tenso, experimentou a sensação de irrealidade que pairou sobre elecomo se o passado voltasse para assombrá-lo numa vingança.

De novo, não! Pelo Santíssimo, de novo, não!— Sua Senhoria, graças a Deus o encontrei! — Paddy exclamou com evidente alívio. — Há

um incêndio, senhor! Alguém ateou fogo nos campos de Eileen O’Farrell.

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Capítulo XIII

Rory congelou quando viu o clarão vermelho-alaranjado brilhando contra a noite. Ondas delembranças o invadiram, e ele obrigou-se a não fugir.

O calor escaldante. As chamas avermelhadas. Sufocantes nuvens de fumaça negra. Gritos. Ochoro de uma criança aterrorizada.

O choro de uma criança aterrorizada.Olhando em volta freneticamente, ele tentou concentrar o olhar em Paddy Devlin, agarrando

a camisa do menino como se quisesse buscar amparo.— Onde está minha filha? Onde está Kathryn?O rosto de Paddy ficou pálido.— Eu... eu não sei, senhor. Eu a vi com as outras crianças, mas isso foi há algum tempo.

Claro, ela deve estar...— Onde ela está?! — ele rugiu, desesperado.— Rory !Siobhán pôs a mão no braço dele e, como sempre, transmitiu uma onda de calor que nada

tinha a ver com o fogo. Às cegas, ele se virou para encará-la.— Kathryn está bem. Vovó Meg a levou com Ashleen para nossa casa quando vim encontrá-

lo. Ela está bem, Rory .— Todo mundo está bem, senhor! — Paddy assegurou. — Os homens estão retirando água

dos poços para apagar o fogo. Não é necessário se alarmar, é apenas um pequeno incêndio.— Quero saber como aconteceu — Rory exigiu em tom surpreendentemente calmo, apesar

da raiva. — Todos estavam na celebração do casamento de Tom e Nora, não é?— Sim, senhor. Acho que alguns já estavam indo para casa.— Conveniente.A mente de Rory trabalhou febrilmente, calculando o tempo que teria levado para que o

campo estivesse em chamas. Um acidente? Ele não acreditava nisso. Era mais provável quefosse um aviso.

É melhor manter seus olhos e ouvidos abertos, milorde... Ninguém sabe o que pode acontecer aalguém que os Whiteboys odeiam tanto...

Joe Kerrigan!Haveria tempo para posterior investigação. Por enquanto, ele tinha de encontrar Eileen,

confortá-la da melhor maneira possível e oferecer-lhe...Oferecer-lhe o quê? O que tinha a oferecer?, ele se perguntou, cinicamente. Se o fogo tivesse

sido proposital, e tinha toda a probabilidade de ser, ele acabara por destruir uma mulher idosa, damesma forma que Charlotte e Jamie tinham sido destruídos.

Será que todos em Ballycashel sofreriam a maldição que o acompanhava?— Senhor? — Paddy olhou de Rory para Siobhán. — Senhor, Eileen não tem nenhum bem. O

marido está morto, e o filho e a filha morreram na viagem para a América.— Eu vou cuidar dela, Devlin — disse Rory , bruscamente.Sem mais outra palavra, ele percorreu a curta distância até casa de Eileen O’Farrell.A anciã estava sentada em uma pedra do lado de fora da casa. Com o rosto enterrado nas

mãos, ela balançava para a frente e para trás, murmurando um lamento em voz baixa.Ignorando os curiosos, Rory se sentou ao lado dela, deslizando o braço protetor sobre os ombrostrêmulos.

— Não se preocupe com nada, sra. O’Farrell — ele falou baixinho e com calma, apesar do

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odor acre de flores de batata queimadas. — Ballycashel tem lavouras suficientes para alimentarvárias famílias.

Eileen endireitou-se, e o orgulho se evidenciou em cada linha do corpo frágil.— Senhor, está sendo mais do que generoso, mas os O’Farrell nunca aceitaram a caridade de

ninguém.— E o proprietário cuida dos seus — Rory declarou, com uma onda de admiração enchendo-

o ante a coragem daquela mulher. — Talvez não tenha sido assim no passado, mas é um novotempo agora. Eu ficaria honrado se aceitasse minha oferta de ajuda. — Especialmente se o fogofor um recado para mim, completou em pensamento.

Eileen o fitou por um longo momento, parecendo uma criança quando enxugou as lágrimascom o punho. Então, levantou a mão trêmula para tocar-lhe o rosto, num toque que provocouuma confusão de culpa e ternura.

— Deus o abençoe, senhor — ela disse com voz áspera. — O senhor é um bom homem.A garganta de Rory se fechou. Levantou-se desajeitadamente, sentindo a dor na perna

esquerda mais aguda do que nas últimas semanas.— Vá até a Casa Grande amanhã — disse, forçando-se a manter o tom de voz normal.Então, virou-se bruscamente e afastou-se tão rápido quanto a perna dolorida lhe permitiu,

tentando desesperadamente ignorar as expressões boquiabertas do povo.Siobhán teve de correr para acompanhar as passadas rápidas, mesmo com a coxeadura que

ela e todos os outros quase tinham esquecido ao longo dos últimos meses.Mas naquela noite, ela percebera que ele se apoiava na bengala, com os dedos firmemente

agarrados à base. Naquela noite, ela notara a flexão inquieta da mão direita machucada.Ela o seguiu pela trilha que levava à praia com a imagem vívida da expressão de Rory quando

olhou para a plantação de Eileen O’Farrell consumida pelo fogo. Na verdade, era apenas umpequeno incêndio, mas capaz de evocar memórias aterrorizantes para ele.

Acompanhou-o em silêncio até o pequeno córrego e parou, observando-o, sentindo que nãoera o momento certo para abordá-lo. Com os ombros rígidos, ele se abaixou para pegar umapedra e arremessou-a violentamente na água. Antes que o eco abafado desaparecesse, jogououtra, e mais outra. A noite de luar brilhante se refletiu nas ondulações crescentes se expandindoaté a margem, reproduzindo a mesma agitação raivosa de Rory .

Seus pés descalços não fizeram o menor ruído ao pisar na relva macia, mas ele percebeu aproximidade e se virou, deixando cair a bengala, com os punhos cerrados.

O coração de Siobhán se confrangeu quando ela viu a expressão devastada no rosto bonito. Oslábios dele se comprimiam numa linha fina, e os olhos azuis fitavam o vazio. Instintivamente,tocou-lhe o rosto. Rory tomou-lhe a mão e beijou-a com ternura ardente antes de soltá-la.

— Foi minha culpa — disse simplesmente, voltando a olhar para a água.— Rory ...— Não — ele a interrompeu num murmúrio. Então, o grito explodiu numa torrente de

angústia: — Não!— Rory, meu querido, não foi sua culpa. Não agora, e tampouco quando sua mulher e seu

amigo morreram. A culpa é dos monstros que provocaram o incêndio.Rory virou-se para ela.— Ah, Siobhán. Minha Siobhán, linda e otimista... Por que provocaram o incêndio?— Você está pensando em Joe Kerrigan, não é? — O rosto do homenzinho, feio e retorcido

pelo ódio, flutuou diante dos olhos dela. — Joe poderia ter tido tempo para recolher seuspertences, atear fogo no campo de Eileen e desaparecer? Na certa, Frank também estáenvolvido. Joe nunca sairia sem o irmão. Os dois são como um cão e sua sombra desde que eram

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crianças.Como Michael e Tom, ela pensou friamente. Até que Michael crescera e se afastara do amigo,

ansioso para corrigir os erros que via na sua amada Irlanda.Rory deu uma risada sem humor. Ao se pronunciar, a postura era a do cavalheiro do Sul, frio

e educado, mascarando o ódio.— Um cão e sua sombra...— Rory , você realmente acredita Joe Kerrigan ateou o fogo?— Você o conhece melhor do que eu, Siobhán. O que acha?Ela refletiu antes de responder, numa tentativa de separar seu próprio ódio pelos irmãos

Kerrigan do que tinha acontecido naquela noite. Mas antes que pudesse formular uma resposta,Rory a segurou pelo queixo e procurou seu olhar.

— Alguém conseguiu provar que os Kerrigan estavam envolvidos na morte de seu marido ede seu irmão? — ele perguntou com gravidade.

Relutante, ela balançou a cabeça, escondendo a desolação.— Duvido de que algum dia possamos saber o que aconteceu naquela noite — murmurou,

dando voz aos pensamentos. — Mas eles eram os únicos que conheciam os planos do ataque, e osúnicos que foram poupados.

— As evidências eram circunstanciais. Nada pôde ser provado.— Como de costume — disse Siobhán com amargura. — Michael, que Deus o tenha, sempre

foi rebelde, até mesmo quando menino. E ele contaminou Sean com sua indignação, até o meuirmãozinho ficar determinado a libertar o país por si mesmo. Michael sempre foi o herói de Sean,mesmo antes de nos casarmos. Ele o via como um irmão mais velho.

— Foi por isso que se casou com ele?A pergunta a pegou de surpresa. Fora por isso que se casara com Michael? Ele havia sido um

bom marido, trabalhador e dedicado, não só a ela, mas à família. E Sean sentia falta de umareferência masculina, sufocado pelo excesso de proteção que recebia de todas as mulheres que orodeavam.

E ainda assim, ela tinha amado Michael com paixão e com todo o coração. Ele era umhomem bonito, com cabelos castanho-avermelhados e provocantes olhos azuis, e tão gentilquanto qualquer mulher poderia querer. Ela sempre soubera que ele a amava também, mas paraMichael, parecia haver algo faltando. Ele era um homem inquieto, sempre falando da Irlanda, deDaniel O’Connell, da liberdade irlandesa... dos Whiteboys.

Sim, ela amava Michael, repetiu para si mesma. Contudo, nunca fora o bastante para omarido. Mesmo sem nunca ter dito uma só palavra, ela sabia, e tal noção a revoltava às vezes. Eentão, quando ele incluiu Sean em seus planos, os dois foram mortos.

— Não — ela disse, a agonia rasgando seu peito. — Não! Eu amava Michael. Mas ele só tinhaum objetivo: ver a Irlanda livre da Inglaterra para ser uma nação independente. Não foi culpadele. Ele me amava, mas a Irlanda era sua principal amante, com a qual eu nunca poderiacompetir. Ele me amava!

As palavras se dissolveram em soluços angustiados, e Siobhán escondeu o rosto entre as mãos,caindo de joelhos sobre os seixos da margem.

Imediatamente, Rory postou-se ao lado dela, com as mãos grandes e fortes sobre seusombros. Puxou-a para si, acolhendo em seu peito as lágrimas amargas por tudo que poderia tersido. Sacudiu-a de leve, tentando reconfortá-la, enquanto sussurrava palavras suaves em gaélico.

— Amor do meu coração. — Com a voz rouca de emoção, Rory pousou beijos suaves noscabelos sedosos. — Perdoe-me, meu tesouro. Não quis fazer você chorar. É claro que Michael aamava. Como não amar esse fogo, esse otimismo, essa devoção à família, esse coração

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inocente?— Maldito seja, Michael Desmond! — gritou ela, batendo com os punhos cerrados contra os

ombros de Rory como se ele pudesse absorver toda a dor reprimida. — Maldito seja porenvolver meu irmão em seus planos sem esperança! Maldito seja por matá-lo! E maldito sejapor morrer! Como pôde me deixar?

Ela gritou as palavras como queria fazer desde que vira o corpo de seu amado balançando naÁrvore dos Enforcados, na encruzilhada. Toda a tristeza e angústia se derramaram numa torrentede lágrimas que a curaram. Rory a aninhou, com a mão afagando os cabelos emaranhados, semexigir nada. Ele lhe deu força e coragem, e Siobhán chorou desesperadamente pelos cinco anosde lágrimas reprimidas que encharcaram o linho fino da camisa dele. E as lágrimas lavaramtoda a dor, todos os arrependimentos e toda a raiva que ela abrigava no coração por tanto tempo.

Quando se acalmou, Rory afastou-se e fitou-a com expressão grave.— Conte-me sobre eles — pediu, calmamente.Talvez as feridas ainda estivessem muito abertas para falar de Michael, Rory pensou. Mas

observou-a secar os olhos com as costas da mão e ouviu enquanto falava do irmão que adorava.— Sean era o bebê da família — ela começou. — Eu era a mais velha, e tinha quatro irmãs,

Maggie, Brenna, Maureen e Fiona. Então, Sean nasceu. Ele era o xodozinho dos meus pais. Eleseram loucos por ele.

Quatro irmãs! Meg lhe dissera que as meninas tinham morrido uma a uma, de febre. A visãodo desespero da família malfadada flutuou diante de seus olhos, e uma onda de raiva desoladorao inundou ante a noção de que seu pai fora o responsável por aquele sofrimento.

A voz de Siobhán ressoou num sussurro áspero.— Ele era um rapaz bonito, com cachos dourados e olhos verdes brilhantes, com um sorriso

pronto para todos.— Ele se parecia com você, então.Ela balançou a cabeça em negativa, e então pareceu reconsiderar.— Talvez houvesse uma semelhança. Mas ele era muito mais alegre e expansivo que eu. Sean

passou pela vida como se nada o preocupasse.Rory assentiu em silêncio, com um misto de raiva e compaixão.— Quando olho para minha Ashleen, é como olhar para um espelho mágico e ver Sean nessa

idade. Ela é a imagem do tio, que Deus o tenha. Quando cresceu, ele gostava de dançar e cantar.Costumava tocar o antigo violino de nosso pai e sabia todas as canções daqui até Dublin. — Elasorriu com saudade. — As moças da aldeia competiam para dançar com ele. Sean sempreescolhia uma diferente de cada vez, de modo a não deixar nenhuma com ciúme.

— Ele era um perfeito cavalheiro. — Rory sorriu, alojando a tristeza em seu peito.— Era, sim. Lembro-me de Tom provocá-lo sobre isso. Tom, Nora, Michael e eu crescemos

juntos. E assim como eu via Tom como um irmão mais velho, Sean se ligou a Michael damesma maneira. — Ela fez uma pausa, e os olhos verdes se tornaram distantes. — Mas Seantinha um lado obscuro. Havia raiva escondida abaixo da superfície do sorriso fácil. Ele seenervava com facilidade. Quando Glenleigh continuou a aumentar as rendas e a expulsar osnossos vizinhos que não podiam pagar, vi a ira do meu irmão crescer. Michael o encorajou.

— Glenleigh era um bastardo.— Sim, ele era. E quando a fome chegou e começou a matar os mais fracos, ele se recusou a

levantar um dedo para ajudar. Os inquilinos estavam morrendo de febre, e tudo que Glenleighpensava era em transformar a terra em pastagem. Sean viu nossos amigos e vizinhos morrendoou sendo levados para a estrada para nunca mais serem vistos. E eu vi a raiva crescente nos olhosdele.

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Ela estremeceu, e Rory deslizou um braço protetor sobre seus ombros.— Então ouvi Michael dizer que Glenleigh enviaria grãos para o porto na calada da noite, pois

tinha medo que o povo atacasse as carroças. — Ela riu com desprezo. — Nem meia dúzia de nóstinha forças para encenar um ataque à meia-noite!

— O que aconteceu na noite do ataque? — Rory perguntou, baixinho, conhecendo a história,mas de alguma forma, necessitando ouvir a versão de Siobhán.

— Joe e Frank Kerrigan foram procurar Michael. Eles ficaram sabendo da carga porintermédio dos Whiteboys e conheciam a rota exata que as carroças tomariam. Michael tinhavisto os próprios pais morrer de febre e não pôde suportar ver a família passar fome. Ele... Eledisse que seria uma chance de se vingar de Glenleigh, e o alimento seria uma dádiva de Deus.Sean quis ir com ele, apesar de nossa mãe proibi-lo.

Eu sou o homem da família agora, Siobhán. A voz vibrante de Sean ecoou em sua cabeça, e elaviu novamente os olhos verdes cintilando de raiva. Não prometi a papai que cuidaria de vocês? Eutenho de ir.

Lutando para controlar as lágrimas, ela continuou:— Eu nunca soube o que aconteceu. Tudo o que sei é que Michael e Sean vieram nos ver

antes de se esconderem para esperar que Frank e Joe Kerrigan dessem o sinal do ataque. Oshomens de Glenleigh os capturaram e os levaram antes que pudessem escapar. Mais tarde Tomme disse que os irmãos Kerrigan estavam escondidos na estrada à frente deles, e quando ascoisas começaram a ir mal, ambos fugiram.

— Covardes! — Rory esbravejou, indignado.— Na manhã seguinte, todos aqueles que não haviam sucumbido à febre ou à fome os viram

ser enforcados. Não houve julgamento, é claro. O próprio Glenleigh os julgou e condenou. — Aslágrimas voltaram a cair, e Rory secou-as, sentindo-se impotente ao lado dela. — Paddy tocouuma canção tão linda enquanto eram sepultados para o descanso eterno que deixou um sorrisonos lábios dos que estavam presentes.

— E você foi deixada sozinha.A mente de Rory trabalhou furiosamente. Então, fora assim que Michael e Desmond Sean

Kilpatrick haviam sido traídos. Não fora um plano brilhante, mas havia funcionado. Os Kerrigantinham conhecimento do plano para a pilhagem da carga, haviam conspirado para roubar osgrãos e informado a alguém, provavelmente um contato de longa data, todo o plano. Os guardasforam deixados de sobreaviso e ficaram à espreita dos saqueadores. Michael e Sean tinhamcaído como patos.

E o incêndio daquela noite? Certamente, os Kerrigan estavam irritados com Rory e atearamfogo ao campo. Mas como provar? Ele verificaria no dia seguinte pela manhã, mas mesmo queencontrasse evidências, duvidava de que houvesse alguma coisa que vinculasse o incêndio aosirmãos.

O ódio subiu-lhe à garganta, deixando um gosto amargo na boca. Com ele, veio o desejo dematar os irmãos Kerrigan. Ele sentira essa necessidade apenas algumas vezes na vida, e arealizara apenas uma vez. Mas agora, vendo a tristeza de Siobhán enquanto lutava para enterraras lembranças, queimou dentro dele a urgência de buscar Frank e Joe Kerrigan e enviá-los para oinferno, aonde eles pertenciam. E gostaria de fazer isso bem devagar, aos poucos.

Consternado, Rory olhou para Siobhán, que fitava as águas do riacho como se para haurirforças de sua beleza atemporal. À luz suave da lua, o perfil dela parecia a personificação dapureza inocente. Ele não tinha o direito de tocá-la com as mãos manchadas de sangue. Se elasoubesse quem era seu verdadeiro pai, com certeza se afastaria dele para sempre. No entanto,ele se sentia impotente para resistir à atração que o levara àquela mulher como a maré se

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conduzia para a praia.Incapaz de se conter, passou os braços em volta da cintura fina e puxou-a para si. Siobhán

suspirou, e seus braços o enlaçaram pelo pescoço. Com um gemido, Rory enterrou o rosto noscachos suaves e apenas segurou-a, inalando sua doçura.

— Eu não sei o que fiz para merecer você, querida, mas, por Deus, nunca me deixe. Sei quenão sou digno de você, não com todo o ódio, sangue e vingança que têm permeado minha vida.Se você soubesse as coisas que fiz...

— Então me diga. — A voz suave exprimia compaixão. — Rory, eu acabei de abrir meucoração para você e contei-lhe sobre a pior tragédia da minha vida. Quero que partilhe suaprópria tragédia comigo.

O estômago de Rory se contraiu, e ele começou a tremer, com a testa banhada de suor frio.Ternamente, Siobhán acariciou o rosto lívido.

Ela poderia ser a salvação?Rory se virou, concentrando-se em deixar o ar entrar nos pulmões. Inalar. Exalar. Para

dentro. Para fora.Inclinando-se, pegou uma pedra e atirou-a violentamente para dentro da água, açoitado pela

fúria profundamente enraizada e ao mesmo tempo sempre perto da superfície. A explosão deraiva passou, e ele voltou a assumir a fachada fria de jogador antes de se virar para encará-la.

— Eu matei meu pai.

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Capítulo XIV

Rory fechou os olhos.Eu matei meu pai.As palavras pareceram ficar suspensas no ar entre eles. A confissão era como assinar sua

própria condenação, mas Rory não se importava. Tudo o que importava era finalmente poderfalar do único ato de violência que tinha arruinado sua vida para sempre.

Sim, podia falar, mas não podia olhar para a mulher que amava por medo de ver repulsa edesprezo nos olhos dela. Siobhán vira a morte de perto e valorizava a vida, tanto a dela quanto ados outros. Jamais o aceitaria depois de saber de seu crime, e ele não suportaria perdê-la.

Os dedos cálidos pousaram sobre seu antebraço em uma carícia íntima, cheia de conforto ecarinho. Rory abriu os olhos para ver o rosto sereno cingido pela compaixão.

— Conte-me como foi — ela pediu.O corpo de Rory começou a tremer, reagindo quando as lembranças, que ele supunha

estarem enterradas, desabaram sobre seus ombros numa onda nauseante. Cegamente, ele seaproximou, buscando coragem e conforto.

— Saímos da Irlanda quando eu tinha dez anos — ele começou, concentrando-se naproximidade, num esforço para manter as emoções sob controle. — Nos alojamos numa favelaminúscula na cidade de Nova York. Não era um bom lugar para criar filhos. — Sorriu comamargura do eufemismo ao se referir ao local onde a família se instalara. — A sujeira e adoença levavam crianças todos os dias, vítimas da cólera ou da febre. Eu me lembro de que,numa única semana, quatro bebês morreram.

— E pensar que alguns dizem que as ruas da América são pavimentadas com ouro...— Talvez para alguns — Rory concordou, as mãos se movendo com gentileza nas costas de

Siobhán. — Mas não para um bêbado que se importava mais com um copo de cerveja do quecom a família. Enquanto Seamus Doherty passava os dias no bar, eu saía para encontrarqualquer trabalho que pagasse o suficiente para comer. — A amargura abafou sua voz quandoele acrescentou: — Ele se recusava a me deixar ir para a escola, mesmo que não custasse nada.

Siobhán se afastou para encará-lo, com os olhos arregalados de espanto.— Ele o manteve fora da escola? Você aprendeu a ler sozinho?— E a escrever — Rory acrescentou. — Seu pai me ajudou, é claro. Era por isso que Seamus

o odiava. Nem sequer sabia escrever o próprio nome, e não admitia que eu soubesse mais do queele. Mas eu o venci em seu próprio jogo — confidenciou com um sorriso de triunfo.

Siobhán afastou uma mecha de cabelos caída sobre o rosto viril e endereçou-lhe um sorriso.— Como?— Havia um irlandês que vivia nas proximidades, um senhor maravilhoso, chamado Crowley .

Ele tinha sido professor na Irlanda, e sabia tudo sobre História, Música e poesia irlandesas. E nãoera só isso. Sabia também sobre o mundo, embora fosse autodidata. Quando Seamus saía parabeber à noite, eu fugia para ver o sr. Crowley . Ele me ensinava em segredo, e eu pagava levandorecados e fazendo biscates.

— Você era um rapaz muito engenhoso.Rory detectou a admiração no tom de voz dela e animou-se para contar o restante da história.— Eu tinha de ser — afirmou simplesmente. — Se Seamus descobrisse, teria matado a mim e

ao sr. Crowley .Ela arquejou.— Certamente, ele não faria tal coisa!

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— Difícil de acreditar, não?Siobhán estremeceu e se aconchegou no peito dele.— Então, quando eu tinha quinze anos, Crowley me disse que eu sabia o suficiente para me

candidatar à faculdade, e que talvez pudesse conseguir uma bolsa de estudos. Assim, teria o cursoe os livros financiados pela escola, e continuaria a trabalhar para pagar o quarto em quemorávamos. Ele me convenceu a escrever para a Universidade de Harvard, uma das melhoresdos Estados Unidos, e enviou uma carta de recomendação.

— E você foi aceito?— Sim. Lembro-me do dia em que a carta chegou...A carta que havia mudado a sua vida e, ao mesmo tempo, a destruído. Rory sentia-se

atravessado por uma lança invisível, só de pensar.— Era um lindo dia de primavera, o sol brilhava, os pássaros cantavam, e o perfume das

flores era quase suficiente para disfarçar o cheiro repugnante do cortiço. Cheguei em casa dotrabalho e encontrei Seamus de pé em cima da minha mãe, com o punho cerrado e um papelamassado na outra mão.

— A carta — murmurou Siobhán, antevendo o desfecho óbvio.— Sim, a carta notificando que eu tinha sido aceito em Harvard, por recomendação do sr.

Gerald Crowley. Seamus jogou-a no meu rosto e disse que não permitiria que eu desperdiçassequatro anos da minha vida estudando. Peguei a carta e a devorei com os olhos, mal ousandoacreditar que eu realmente tinha sido aceito. Então... — Ele engoliu em seco. — Então atirei-a devolta e gritei que iria estudar, sim, que iria fazer algo útil da minha vida, pois não queria acabarcomo um bêbado inútil como ele. Provoquei-o dizendo que ele era um irlandês idiota eanalfabeto que nem mesmo sabia escrever o próprio nome. Eu queria me vingar por todas asvezes que ele havia zombado do meu gosto para estudar e aprender. Então, ele me bateu.

A respiração de Rory se tornou ofegante como se ele sentisse mais uma vez o punho de ferrodo homem que o desprezava apenas por estar vivo. As mãos de Siobhán se moveram empequenos círculos reconfortantes em suas costas, mas, perdido nas lembranças, ele mal sentiu aleve e doce pressão.

— Ele ameaçou me bater até que eu lhe dissesse quem era o sr. Gerald Crowley. Foi quandominha mãe tentou intervir. Ela lhe contou que eu tinha aulas com o sr. Crowley à noite. Seamusexigiu saber o que ela oferecia ao sr. Crowley como pagamento. Acusou-a de dormir com ele, equando ela negou, começou a bater nela furiosamente.

Rory engoliu em seco, os olhos brilhando de raiva.— Eu tentei dizer que pagava pelas aulas com trabalho, mas ele não acreditou. Passou a bater

na minha mãe até que ela caiu e bateu a cabeça contra a grade de ferro. — Ele respirou,instável. — Ela morreu no mesmo instante.

— Oh, Rory ...!Ele mal ouviu a exclamação abafada, tampouco viu as mãos delicadas apertando as dobras do

vestido.— Corri para ela e tentei reanimá-la, mas era tarde. Eu não conseguia acreditar. Claro,

Seamus já tinha batido nela antes, mas nunca sonhei que iria tão longe a ponto de... de... — Umtremor o percorreu, e ele fitou os olhos verdes, acesos de amor e compaixão, tentando perder-senas profundidades de esmeralda para esquecer a imagem da mãe, bela e exausta, deitada numapoça de sangue. — Foi minha culpa.

— Como, sua culpa? Meu amor, não diga isso!— Foi minha culpa — ele repetiu, obstinadamente. — Seamus estava mais furioso que nunca,

e não por causa do sr. Crowley. Ele sabia que minha mãe jamais seria infiel. Se eu não o tivesse

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provocado...— Não! Oh, Rory , não, você não deve assumir esse ônus também!— Por que não? Você não vê? Seamus era um homem orgulhoso e não admitia que o filho

soubesse mais que ele.— Isso não é desculpa! Rory, seu pai era mau. Você não é responsável pelas ações dele.

Seamus bateu em você, negou-lhe o direito de uma educação... Por Deus, ele matou sua mãe!— Eu deveria tê-la protegido, do jeito que ela sempre tentou me proteger.— Você era uma criança! Como poderia?— Era tarde demais. Mas no final, percebi o que tinha de fazer.Ele sentiu os músculos de Siobhán se tensionar e, de repente, sentiu medo. Afastou-se e

respirou fundo antes de se virar para fitá-la. O olhar de compaixão quase o fez se dobrar dejoelhos.

— Diga-me — ela pediu.Ele soltou um suspiro trêmulo, com as mãos cerradas em punhos enquanto descrevia em tom

estrangulado a morte que corrompera sua juventude.— Quando percebi que ela estava morta, virei-me para Seamus. Aquele momento pareceu

durar para sempre, e eu vi o triunfo nos olhos dele... Triunfo por finalmente conseguir me tirar aúnica pessoa que eu amava, e a única que me amava.

Lágrimas deslizaram pelo rosto de Rory, mas ele não fez nenhum movimento para enxugá-las. Nem sequer as notou, perdido na agonia do passado.

— Eu a levantei em meus braços... Ela era magrinha, leve, pesava pouco mais que umacriança e, com meus olhos ainda fixos nos dele, levei-a para o quarto que ela tinha sido forçada acompartilhar com aquele bastardo durante quinze anos. Coloquei-a na cama e enrolei um rosárioem seus dedos. Ajeitei os cabelos negros como asas de corvo, mesclados de branco, e... eempapados de sangue. Eu a beijei, num adeus silencioso. E então... matei Seamus Doherty .

O tom de voz dele era tão selvagem que o primeiro impulso de Siobhán foi de sair correndo.Mas com a compaixão e o amor que ele viria a reconhecer, permaneceu perto de Rory ecolocou os braços ao redor de sua cintura, puxando-o para que apoiasse a cabeça em seusombros.

— Ele estava esperando por mim, claro. Sabia que eu viria e estava pronto para me recebercom uma faca na mão. — Rory acariciou lentamente a cicatriz no queixo, estremecendo aorelembrar a sensação aguda da lâmina de Seamus Doherty . — Antes que eu soubesse o que tinhaacontecido, minha camisa estava coberta de sangue. Quando ele tentou me esfaquearnovamente, agarrei-lhe o pulso e o torci. Admito que tive prazer em ver o rosto feio passar dotriunfo ao terror absoluto quando ele percebeu que eu era mais alto e mais forte.

Rory fez uma pausa, sentindo a mesma surpresa que sentira quinze anos antes.— É inacreditável, mas Seamus não havia percebido até aquele momento.— O que aconteceu, então?Rory agradeceu por ela ter falado. Sua respiração saía em suspiros entrecortados, e a nuca

estava recoberta de suor frio. Por um momento, ele se sentira transportado de volta ao cortiçomalcheiroso. As palavras de Siobhán o trouxeram ao presente, e ele inalou o ar fresco, o saltrazido pela brisa que soprava da baía de Galway , a sensação dos pedregulhos sob os pés.

— Torci o pulso de Seamus até que a faca caiu. Nós dois voamos para apanhá-la, mas eu fuimais rápido. Brandi a lâmina no rosto dele, ameaçando usá-la para procurar seu coraçãoinexistente. Ele estava com medo, eu podia ver nos olhos arregalados, cheirar em sua respiração.Ele tinha medo de mim. Isso me deu uma deliciosa sensação de poder.

— Isso me dá medo... — Siobhán murmurou com a respiração presa na garganta.

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Por Deus, ela não podia abandoná-lo agora! Ferozmente, Rory se agarrou a ela, desesperadopelo calor que era oferecido tão desinteressadamente.

— Ele agarrou a faca e me desarmou — prosseguiu atabalhoadamente, antes que perdesse acoragem. — Seamus caiu sobre a lâmina, que se cravou no peito, bem onde estaria o coração, seele tivesse um. Ele desabou em cima de mim, e era mais pesado do que eu imaginava. Eu oempurrei para longe e dei um passo atrás. Minhas mãos estavam quentes e pegajosas, e eu olheipara baixo. Ainda estava segurando a faca gotejando o sangue dele. Quando o fitei, vi uma bolhade sangue jorrando da boca. Eu o vi morrer.

— Sagrado Coração de Jesus!Os braços de Rory se apertaram convulsivamente ao redor de Siobhán, em busca de conforto,

compreensão, absolvição...— Foi mais rápido do que eu gostaria. Ele me bateu e matou minha mãe. Mas eu queria fazê-

lo sofrer como ela sofrera todos aqueles anos. Não era justo! — ele explodiu de repente, a raivae a dor se confundindo num grito angustiante. — Não era justo! Maldito seja, Seamus Doherty !Que tenha ido para o inferno!

Com o grito angustiado, o corpo trêmulo tombou sobre Siobhán. Ela cambaleou sob o peso edeslizou para o chão, passando os braços em volta do pescoço de Rory e trazendo a cabeça delepara seu peito, enquanto ele lançava o dilúvio de angústia que havia suprimido durante toda a vidaadulta.

Rory não saberia dizer mais tarde por quanto tempo ficaram lá. Os braços protetores estavamapertados em volta dele enquanto o embalavam gentilmente, como a uma criança. Dessa vez,não foi o desejo que queimou entre eles, mas um conforto elementar que ia muito além dapaixão. Era quase como se tivesse sido pré-determinado que estivessem ali naquela noite de luar,confiando os mais profundos e dolorosos segredos um para o outro.

Mas não o pior. Rory franziu a testa e desvencilhou-se do abraço. Siobhán ainda não tinhaideia de que ele era o filho bastardo de Glenleigh. Ela não tinha ideia de como recebera oferimento na perna. Será que ainda estaria ali se soubesse? Ou reagiria com horror e repulsa?

Rapidamente, ele se levantou, evitando fitá-la.— É melhor levá-la para casa — disse bruscamente. — Vovó Meg vai se preocupar.Siobhán se surpreendeu com o tom de voz subitamente frio. Ficou em silêncio durante o

trajeto para casa, pronunciando-se somente quando se aproximaram do chalé.— Vovó Meg confia em você, Rory . E eu também.A declaração o atingiu como um punhal no coração, tão doloroso quanto a lâmina da faca que

tinha deixado cicatrizes físicas e emocionais. Naquele momento, Rory decidiu que tinha determinar o relacionamento com Siobhán o mais depressa possível. Não podia suportar a ideia demagoá-la.

E agora, havia a nova ameaça representada pelos irmãos Kerrigan. Se percebessem queSiobhán se tornara importante para ele, Rory não tinha dúvida de que iriam atrás dela.

Era assim que aqueles traidores agiam.Abruptamente, agarrou o braço dela e a fez interromper os passos.— Tomei uma decisão — disse ele. — A partir de setembro, você vai deixar de ser necessária

como preceptora. Vou enviar Kathry n para uma escola em Londres.Ele mal pôde suportar o desapontamento nos olhos cristalinos. Maldição, ela não percebia que

estava agindo para seu próprio bem? Siobhán conhecia os irmãos Kerrigan ainda melhor do queele. Além disso, todos que ele amava, de alguma forma, acabavam machucados... ou mortos.

— Esse foi nosso acordo inicial — lembrou ele, lutando para manter a voz neutra. — Eu lhedisse que você ficaria enquanto Kathry n estivesse aqui. Em setembro, ela estará em Londres, e

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você estará livre para ir embora de Ballycashel. — Quando ela permaneceu em silêncio, Roryperguntou: — É o que você queria, não é?

Deus, como ele se odiou naquele momento! Quando ela finalmente o fitou, seus olhos eramcomo um mar tempestuoso, mas não havia ódio brilhando nas profundidades cor de esmeralda.Quando falou, a voz era mais fria que o inverno de Nova York.

— Sim, milorde — assentiu com sotaque carregado. Intencionalmente, ele suspeitou. — Claroque é o que eu sempre quis.

Com isso, Siobhán girou nos calcanhares e marchou para a frente, de cabeça erguida, oorgulho irlandês envolvendo-a como um manto de rainha.

Nenhum deles viu Ashleen atrás de um teixo, os olhos verdes largos como pires, cheios deapreensão depois de saber que sua melhor amiga estava de partida para Londres.

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Capítulo XV

Os cachos vermelhos brilhantes de Ashleen contrastavam vivamente com as ondas de ébanode Kathryn quando as duas meninas caíram exaustas sobre a pilha de feno cheiroso. Ambasestavam recobertas de palha da brincadeira alegre daquela tarde.

Ashleen estudou a menina mais velha com uma ponta de inveja e certa tristeza. No poucotempo que se conheciam, haviam se tornado amigas inseparáveis. Kathryn não era apenasbonita, era também boazinha, simpática e gentil, muito diferente do que seria de se esperar dafilha do proprietário. Agora, sua melhor amiga iria para Londres, e quem sabia quando poderiamse ver novamente?

Ashleen suspirou. Como fora tola ao pensar que seria capaz de manter Kathryn com ela!Nunca fora capaz de manter ninguém, exceto sua mãe e vovó Meg.

— O que houve, Ashleen? — Kathryn perguntou.— Nada. Só que eu vou sentir sua falta quando você for embora.— Eu não vou a lugar nenhum, sua tola! — Kathryn riu. — De onde você tirou essa ideia?— Eu ouvi seu pai falar para minha mãe.— Sobre o quê? Será que ele vai viajar? Não se preocupe, meu pai viaja o tempo todo, mas

nunca me leva com ele.— Não é ele. É você. Ele disse à minha mãe que você vai para a escola em Londres.Kathryn ficou imóvel, com os olhos arregalados.— Quando você ouviu isso? — exigiu com urgência.— Faz alguns dias... Ah, foi na noite do incêndio na plantação de Eileen O’Farrell, depois do

casamento de Tom e Nora. Eu estava no bosque quando seu pai trouxe minha mãe para casa. Euo ouvi dizer que pretende enviá-la para a escola em setembro, e que minha mãe não seria maissua preceptora. Kathry n?...

Mas a amiga havia pulado do monte de feno e fugido do estábulo. Confusa e assustada,Ashleen observou-a montar no pônei e cavalgar para longe, como se o demônio em pessoa aestivesse perseguindo.

Era tarde da noite quando Rory começou a suspeitar de que algo estava terrivelmente errado.Nas semanas desde que contara a Siobhán sobre os planos para Kathryn, ela conseguira evitá-

lo por completo. Entrava e saía pela porta dos criados e enviava por escrito os relatórios diáriossobre os progressos da filha, em vez de se juntar a ele para a habitual reunião no final da tarde.Se cruzasse com ele na casa, cumprimentava-o com um aceno de cabeça, mas se recusava afalar, a menos que fosse convocada. Era uma funcionária exemplar, uma preceptora perfeita, esempre que a via, ele ansiava por puxá-la para seus braços, disposto a ignorar os fantasmas dopassado.

Sentado na biblioteca, ele folheava um volume de poemas de Thomas Moore que trouxera deBaltimore, incapaz de se concentrar na leitura. Inquietando-se na poltrona, olhou em volta, comose sentisse falta de alguma coisa.

Algo que havia esquecido? Algum lugar em que tinha de estar? Algo que tinha de fazer?Mentalmente, ele percorreu a lista de tarefas que planejara para o dia. Não conseguia pensar emnada que tivesse deixado de fazer.

Que diabos estava acontecendo?Levantando-se, ele caminhou até a janela. Era tarde, provavelmente perto de meia-noite, e a

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lua cheia pairava baixa no céu, com milhares de estrelas lançando um brilho rosado que fazia anoite reluzir como o dia.

Brilho rosado? Santo Deus, de novo não!Perscrutando a noite, ele tentou identificar a direção das chamas. De onde estava, podia ver a

maioria das casas dos inquilinos. Avistou o ponto em que o clarão se expandia, mais brilhante, esentiu a respiração parar na garganta.

Querido Deus, seria o chalé de Siobhán?Gritando por Hannah, Rory correu para o corredor e quase colidiu com ela.— Milorde, eu estava à sua procura. — O rosto da governanta estava contrito de preocupação,

e as mãos se torciam nas dobras do avental. — O senhor viu o que está acontecendo?— O quê? — Desorientado, ele olhou para Hannah. Sua mente preocupada não registrou o

sentido das palavras. — Do que você está falando, Hannah?Ela olhou para fora e deixou escapar um suspiro abafado.Rory segurou-a pelo braço num aperto feroz.— Hannah — evocou com urgência, apontando para o brilho que crescia cada vez mais

brilhante. — O que é isso?— Sagrado Coração de Jesus, é o chalé de Flynn!Fly nn? Tom e Nora...Rory sentiu uma onda inicial de alívio, imediatamente seguida pela raiva. Outro incêndio,

poucas semanas após o anterior. Primeiro, nos campos de um inquilino, e agora, a casa dohomem que tinha aconselhado Rory a despedir os Kerrigan. Os melhores amigos de Siobhán.

Girando nos calcanhares, ele correu para a porta, gritando por cima do ombro:— Soe o alarme, Hannah! Temos de nos certificar de que Tom e Nora estão seguros.Correndo para os estábulos, Rory foi para a baia de Ree, o cavalo mais veloz que possuía. O

garanhão fora amigo quando ele não tinha nada e mais ninguém, e agora voava na direção dacasa de Fly nn enquanto Rory rezava para não encontrar uma cena de devastação.

Por favor, Deus, deixe-os a salvo. Não permita que ninguém mais seja vítima da minhamaldição. E não deixe Siobhán perder alguém que ela ama.

Ele chegou à casa de Tom e Nora em questão de minutos e saltou de Ree com um tropeção.Olhando ao redor, notou que o fogo queimava a palha do telhado. A garganta e os olhos arderamquando ele inalou o cheiro de fumaça e... uísque?

O fogo tinha sido deliberado? E onde diabos estavam Frank e Joe Kerrigan?Mas as suspeitas e especulações podiam esperar. O que importava naquele momento era

salvar seus amigos.Sem uma palavra, ignorando os olhares de surpresa no rosto dos inquilinos, ele caminhou até

Tom, à frente da linha dos homens que passavam baldes de água a partir do poço nos fundos dochalé.

— Deixe-me ajudar — Rory disse calmamente.Tom não hesitou. Acenou em afirmativa e entregou um balde a Rory. Enquanto os homens

continuavam a passar os recipientes de mão em mão, controlando o incêndio, ele olhou para ocírculo de mulheres por perto.

— Estão todos seguros?O homem ao lado dele, Mickeen MacGreevy , primo de Nora, assentiu.— Por sorte, Nora e Tom não estavam em casa, ou poderiam estar como um ganso assado no

Natal!Aquela era uma descrição apropriada, Rory pensou, ironicamente, passando o balde para a

frente. A mão direita doía ferozmente, mas ele se recusou a mostrar fraqueza diante dos

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inquilinos. Ignorando a dor, voltou-se para Tom.— Você tem alguma ideia de como o fogo começou?— Nenhuma, senhor. Como disse Mickeen, não estávamos lá dentro.As chamas diminuíram sob o ataque da água, restando apenas brasas ardentes. Cansado, Tom

apagou as últimas brasas, e então, numa rara demonstração de raiva, jogou o balde no chão.Olhou com frieza para o chalé devastado.

— Meu pai nasceu aqui. — A voz estava calma, mas a dor gritante se refletia nos olhosescuros. — Meus filhos nasceriam aqui, e a seu tempo, meus netos.

Rory pousou a mão no ombro dele. Estava sujo e despenteado, mas se sentia mais parte daaldeia do que nunca.

— Você vai reconstruí-lo.— Como? — Tom virou-se para ele, a indignação e a angústia sangrando nos olhos. — Com o

que vamos reconstruir, milorde? É fácil falar assim para o senhor, que tem sua Casa Grandeluxuosa e o estábulo cheio de belos cavalos. Mas não é tão fácil para nós, pessoas comuns.

— Tom!Do pequeno grupo de mulheres veio a voz agonizante de Nora.Rory virou-se para vê-la se aproximar com a mão trêmula estendida na direção do marido.

Siobhán rapidamente puxou-a para trás, deslizando um braço em torno da cintura da amiga. Norase virou e escondeu o rosto no ombro de Siobhán.

Ah, Siobhán... Sempre ajudando aqueles a quem amava, apoiando-os, emprestando forçaquando sua própria esperança fraquejava.

Rory endireitou os ombros e enfrentou Tom.— Ballycashel cuida do seu povo. Seu chalé faz parte da propriedade, assim como sua

lavoura. — Ele fez um gesto, abrangendo os arredores. — Quando alguém prospera, todos nósprosperamos. Quando alguém está com problemas, todos temos de ajudar. — Fez uma pausa,olhando em volta para os inquilinos, esperando que as palavras fossem assimiladas. Depois de ummomento, ele perguntou: — Você tem um lugar para passar a noite?

Siobhán deu um passo à frente.— Tom e Nora podem ficar conosco. Há espaço de sobra — acrescentou com firmeza

quando Tom abriu a boca para protestar.— Está bem, então. — Rory varreu as pessoas com o olhar. — Todos devem voltar para casa.

Não há mais nada a ser feito esta noite.À medida que a multidão se dispersava, ele se aproximou de Tom, prendendo-o com um

olhar. O outro homem acenou com a cabeça e foi até Siobhán e esposa. Rory notou que Siobhánestava inquieta, observando-o como um falcão. Com um nó na garganta, ele viu Tom acariciar orosto da esposa.

— Estarei com você num minuto, Noreen. Vá com Siobhán. Tudo ficará bem, meu amor.Nora assentiu, fitando o semblante confiante do marido.Será que um dia Siobhán o olharia com aquela mesma expressão? Poderiam construir uma

base de confiança entre eles? Ainda estaria disposta a tentar quando descobrisse quem elerealmente era?

Tom se voltou, fitando-o com curiosidade. Levou um momento para Rory se dar conta, equando o fez, balançou a cabeça como que para se desvencilhar dos pensamentos inoportunos, eambos se afastaram da casa em ruínas.

— Eu gostaria de pedir desculpas por minhas palavras, senhor — Tom começou, mas Roryacenou com um gesto firme.

— Esqueça, Flynn. Eu tenho coisas mais importantes para discutir com você. Senti cheiro de

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poitín quando cheguei. Você sabe me dizer por quê?O rosto de Tom endureceu, e os olhos assumiram um brilho feroz.— Está sugerindo que o incêndio foi deliberado?— Acho que, se vasculharmos as cinzas, encontraremos jarros de poitín vazios. Onde você e

Nora estavam esta noite?Na escuridão, Rory viu o rosto alvo de Tom enrubescer, e imaginou o que os dois tinham

andado fazendo. Foi quase um alívio encontrar um momento de leveza naquela noite, a maisescura desde que ele voltara para Ballycashel.

— Nós... bem, nós fomos dar uma caminhada — foi tudo o que Tom disse, mas foi osuficiente.

De qualquer forma, o relacionamento de Tom e Nora não era a coisa mais importantenaquele momento. Encontrar o bastardo que ateara fogo no telhado era o que importava.

Tom o fitou, desconfiado.— O senhor realmente acredita que o fogo foi proposital, não é? Quem em Bally cashel teria

intenção de nos prejudicar? Não tenho inimigos, e com certeza, Nora é amada por todos, desde ovilarejo até Galway !

— O fogo não foi um ataque contra você e Nora — Rory explicou com a raiva fervendodentro dele. — Foi um aviso para mim.

Tom franziu a testa, evidentemente confuso.— Sinto muito, senhor, mas eu não entendo. Obviamente, suspeita de alguém, mas se estão

atrás do senhor, por que ateariam fogo à minha casa?— Por vários motivos, na verdade. Por um lado, você e Nora são próximos de Siobhán como

irmãos. E foi você quem recomendou que eu me livrasse dos irmãos Kerrigan.Rory fez uma pausa, esperando que as palavras fizessem efeito.Ele não teve de esperar muito tempo. A mão de Tom se fechou e os olhos refletiram o brilho

do ódio.— Bastardos! O senhor acha que os Kerrigan fizeram isso?!— Eu os demiti na noite do seu casamento — explicou Rory. — Poucas horas depois, as

culturas de Eileen O’Farrell pegaram fogo. É de conhecimento comum que minha mulhermorreu em um incêndio. Não é difícil acreditar que Frank e Joe Kerrigan escolheriam tal métodopara se vingar e, ao mesmo tempo, me lembrar do meu passado.

— Bastardos!Irado, Tom voltou para o chalé, chutando de lado cinzas encharcadas e fragmentos

carbonizados de palha até encontrar um frasco de barro vazio. Moveu-o cuidadosamente com opé e olhou para Rory .

— Há um jarro, assim como o senhor disse.Rory tentou pegá-lo, mas soltou-o quando a mão queimou sob o calor do barro fumegante. O

jarro caiu, quebrando-se em vários pedaços. Ele olhou para os fragmentos, sentindo que suaprópria vida se quebrava junto com aquele pequeno pedaço de evidência.

— Você tem ideia de quem era o dono dessa vasilha? — Ele evitou o olhar de Tom, pordemais astuto.

— Poderia ser de qualquer um. Há muitos homens que fabricam poitín no quintal de casa,mesmo sendo ilegal.

O jarro era tão comum a ponto de ser anônimo, assim como o assassino que tinha atirado emsua perna e o deixara para morrer no cais de Nova York.

Claro, Rory sabia quem enviara aquele homem, tanto como sabia no fundo da alma quemtinha incendiado o chalé de Tom e Nora.

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Mas, como poderia provar? E como poderia manter seus inquilinos seguros até queconseguisse evidências suficientes para incriminar os irmãos Kerrigan?

Um suspiro angustiante o sacudiu, e ele olhou para cima para encontrar Tom encarando-ocom expressão intrigada. Estudou o rosto do outro homem por um momento. Não havia nenhumaanimosidade nos olhos escuros, e de alguma forma, Rory sabia que a fúria estampada ali não eradirigida a ele. Em vez disso, havia algo quase como confiança no semblante franco e honesto deum homem que provara ser leal, não só a Rory , mas aos vizinhos também.

O tipo de homem que ele tinha orgulho de chamar de amigo.Mas seria ele digno dessa confiança? O passado nunca morreria? Ele voltara para ser a

salvação de Bally cashel, ou seria a ruína de todos eles?Incapaz de suportar os pensamentos, chutou de lado os restos do jarro.— Não há mais nada a ser feito hoje à noite. Quem ateou o fogo teve o cuidado de não deixar

nenhuma sombra de evidência. Vá para a casa de Siobhán, e amanhã conversaremos sobre areconstrução do telhado.

— Sim, senhor — Tom assentiu.Juntos, Rory e Tom caminharam para a casa de Siobhán. Doeu em Rory ver o abraço

apertado que Nora deu no marido, assim como feriu sentir o olhar frio de Siobhán sobre ele.Ocorreu-lhe que ela também poderia estar em perigo, e atravessou a pequena cozinha paratomar-lhe o braço.

— Precisamos conversar.— Agora não. — Ela se afastou para longe como se o toque dele a queimasse. — Eu tenho de

ver Nora.— Ela está com Tom. Por favor, Siobhán. — Ele viu o queixo dela se empinar, desafiador, e o

brilho da ira nos olhos avermelhados pelo pranto. — É importante.Siobhán olhou fixamente para ele, como se estivesse tentando mergulhar em sua alma. Então,

com um aceno quase imperceptível de cabeça, apanhou o manto escarlate do gancho perto daporta e seguiu-o para a noite escura.

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Capítulo XVI

Ela não queria fazer isso.Não queria sair sozinha com Rory na escuridão da noite, iluminada apenas pelas estrelas que

coalhavam o céu. Por força do hábito, passou a mão pelo braço dele e acompanhou as passadaslentas. Ela mal notou que mancava. Era tão parte dele que parecia não interferir em suasatividades normais. Nem mesmo a mão machucada o impedira de lutar contra o fogo, como se amodesta cabana de Tom fosse a própria Ballycashel.

Siobhán estremeceu involuntariamente com o pensamento indesejado rastreando em suamente como uma aranha venenosa.

— Está com frio? — Rory perguntou, contendo o ímpeto de passar o braço sobre os ombrosdela numa tentativa de aquecê-la. Ela balançou a cabeça. — Medo?

Assustado e com raiva, ela o encarou.— Por que eu deveria ter medo de você? Mesmo sendo dono e senhor de Ballycashel, em

todos os meses que está aqui, nunca tentou me prejudicar. — Pelo menos não fisicamente, elacompletou em pensamento, desolada.

Por outro lado, ele era capaz de devastar emocionalmente qualquer mulher.— E eu nunca tentarei — ele proclamou com solenidade. — Estava me referindo ao que

aconteceu esta noite.— Foi uma tragédia, mas certamente não passou de um acidente. Talvez alguma brasa da

lareira tenha explodido e acendido alguma palha caída no chão, ou...— Não foi acidente, Siobhán.A certeza tranquila na voz de Rory a alarmou e ela olhou para o rosto belo e majestoso ao

luar. Era fácil acreditar que ele era descendente de Brian Boru, o maior rei da Irlanda. O azul dosolhos brilhava com vitalidade, no entanto evidenciava a raiva latente abaixo da superfíciehabitualmente calma.

— Quando cheguei no chalé, senti cheiro de poitín, e Tom e eu encontramos um jarro vazioem meio às cinzas. Não tenho dúvida de que havia mais, mas achei melhor tirar Tom dali e levá-lo para cuidar de Nora.

— O que você está dizendo? — Ela arquejou, o horror invadindo sua alma. — Está tentandodizer que alguém tentou prejudicar Tom e Nora de propósito? Mas por quê? Quem faria umacoisa tão terrível?

— Eu não acredito que Tom e Nora fossem as vítimas — Rory declarou com gravidade. —Afinal, em uma pequena aldeia como esta, é fácil verificar quando alguém está em casa ou não.Quem iniciou o incêndio deve ter esperado até que eles saíssem para encharcar o telhado compoitín, atear fogo e fugir.

A raiva cresceu dentro dela. Como alguém ousaria fazer uma coisa dessas? Tom Flynn eraum dos homens que mais trabalhavam em Ballycashel. Um homem íntegro, respeitável, sempredisposto a ajudar. E agora, alguém tivera a crueldade deliberada de destruir seu legado.

Eu não acredito que Tom e Nora fossem as vítimas.As palavras ecoaram em sua mente, enviando arrepios de alarme através dela.— Você sabe quem fez isso, Rory? — perguntou em voz baixa, lutando para esconder o

tremor.— Acho que foram Frank e Joe Kerrigan.Os irmãos Kerrigan novamente!

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Congelada até a medula, Siobhán esfregou as mãos nos braços numa tentativa fútil de seaquecer. Parecia que seu destino estava eternamente ligado aos irmãos que tinham destruído avida de tantas pessoas, anos atrás. Será que o passado nunca a deixaria em paz?

— Foi por minha causa?A voz não era mais que um sussurro doloroso, mas Rory ouviu. Abruptamente, virou-se a

tomou nos braços. Siobhán sentiu-se quente e segura.— Não, meu amor, não foi por você. Foi por minha causa. Eu demiti os Kerrigan sob

recomendação de Tom. Na noite em que ele e Nora se casaram, Eileen O’Farrell perdeu a safranum incêndio. Agora o chalé de Tom e Nora queimou em chamas. Não é nenhum segredo naaldeia como Charlotte morreu. Não seria óbvio que Frank e Joe Kerrigan pensassem nisso parame punir?

Siobhán percebeu a dor escondida sob as palavras e olhou para o rosto contraído pela angústia.Estendeu a mão para acariciar as linhas ao redor da boca e dos olhos, afastado a fuligem e atranspiração que haviam se acumulado enquanto ele lutava para debelar o fogo.

— Não foi sua culpa, Rory ! Frank e Joe Kerrigan estavam causando problemas emBally cashel muito antes de você chegar. Veja o que aconteceu com Michael e Sean!

— É diferente desta vez — Rory insistiu. — Eles são covardes, Siobhán. Não virão atrás demim diretamente. Em vez disso, atacarão por meio do meu povo. Quem será o próximo? O velhoLiam Brady quando voltar para casa tarde da noite, depois de se divertir no pub? Paddy Devlin,indo cortejar as moças em Clifden? Você?

Uma insuportável sensação de cansaço tomou conta de Siobhán.— Eles já traíram meu marido e meu irmão. O que mais poderiam fazer para me atingir?— Afastá-la de mim — foi a resposta imediata.A intensidade das palavras enviou uma corrente de eletricidade que a fez derreter. O que

aquela declaração significava? Ela nunca pertencera a Rory. Será que a valorizava a tal ponto?Ou ela teria a mesma importância que qualquer um de seus inquilinos?

— Eu não posso perdê-la, Siobhán. Não agora, quando acabei de encontrá-la. Fui um malditoidiota por pensar que, se a mandasse para longe, você estaria segura. Você nunca estará seguracomigo, ninguém jamais esteve, mas eu não posso suportar a ideia de deixá-la ir!

— Eu não quero pense nisso — ela murmurou com veemência. — Eu te amo, Rory O’Brien,e o amor vale qualquer risco no mundo. — Erguendo-se na ponta dos pés, ela pressionou os lábioscontra os dele, num beijo que expressava perdão, cura e paixão.

Ele quebrou o contato e a fitou com uma indagação nos olhos. Com grande ternura, tocou aface rosada, enviando arrepios pela espinha de Siobhán. Porém, os olhos se encheram detormento.

— Eu não sei se posso fazer isso, Siobhán.— Fazer o quê, meu amor?— Isso! Tudo isso! — Ele fez um gesto abrangendo as casas pequenas de palha, os campos, e

em seguida, o casarão em que morava. — Não sei se posso ser o senhor de Ballycashel. Nãoposso manter as colheitas seguras, não posso manter os inquilinos seguros. Não sei se posso sertudo para todos!

Siobhán tocou o rosto afogueado com ternura.— Você não tem de ser tudo — disse em voz baixa. — Não tem de ser nada além do que você

é, Rory O’Brien, um homem bom, responsável e solidário. Você trouxe Ballycashel de volta àvida. É o melhor senhorio que este vilarejo já conheceu, e somos afortunados por isso.

— Sou eu quem tem sorte — rebateu ele, as mãos se movendo em círculos suaves sobre ascostas dela. — Ao vir para Ballycashel, eu finalmente voltei para casa.

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Ela a puxou para perto, tão perto que podia sentir-lhe os batimentos do coração se confundindocom os seus próprios.

— Então venha — Siobhán sussurrou contra os lábios sequiosos. — Venha para casa, meuamor.

Rory a fitou por um momento intenso, e ela pôde sentir a consciência pulsando entre eles.Então, como se tivesse encontrado o que buscava nos olhos dela, tirou a capa que flutuava sobreele como uma nuvem de tempestade e a jogou para o chão. Ajoelhou-se sobre a peça e estendeua mão para ela.

— Venha para casa comigo, Siobhán.Ela se aproximou e segurou-lhe a mão com tanta ternura que chegava a doer. Acariciou

desde a face áspera pela barba até o queixo, levantando o rosto para ler a expressão nos olhosdele. As íris azul-escuras refletiam paixão incontida. Mesmo assim, ele ficou imóvel, permitindo-lhe assumir a liderança.

Siobhán sorriu e se ajoelhou ao lado dele.— Eu estou em casa quando estou em seus braços, Rory. Faça amor comigo. Por favor, faça

amor comigo agora.— Você não tem de implorar, meu tesouro mais precioso. Eu vou fazer amor com você até

que nenhum de nós possa respirar, até que nenhum de nós se lembre do próprio nome. Fareiamor com você até que as estrelas caiam do céu, até que as ondas parem de beijar a praia.Quero me afogar em você, na sua vitalidade, no seu espírito, na sua energia, em tudo que você é.

Ele a segurou pelos ombros e fez com que se deitasse a seu lado, arrumando os cabelos aoredor do rosto adorável com carícias suaves nos fios sedosos. Então, as mãos se deslocaram parao colo e começaram, lenta e cuidadosamente, a abrir os botões da blusa.

— Eu quero que tudo seja perfeito para você. Tem havido muitas nuvens em nossas vidas,Siobhán. Esta é uma noite para a perfeição. Você é a perfeição.

Oh, como ela poderia dizer-lhe que aquilo era a perfeição? Estar com ele ali, junto das águasda baía de Galway, deitada no cascalho e na areia, com o corpo amado pesando sobre o seu, osdedos calejados ligeiramente abrasivos em sua pele... Ele cheirava a fumaça, cavalos etranspiração, numa combinação sensual que a fazia ansiar por estar mais perto.

Quando Rory terminou de abrir os botões, fez com que ela se sentasse e tirou o vestido.Lentamente, acariciou os seios fartos, e ela gemeu com doçura.

Siobhán sentia-se flutuar quando as mãos a acariciaram com uma sensualidade que ela tinhaapenas sonhado. Seu corpo inteiro estava em chamas, com um desejo ardente que ela apenasvagamente compreendia. Tudo que sabia era que, se ele parasse agora, seria capaz de morrer.

Um gemido estrangulado escapou de sua garganta quando Rory enterrou o rosto entre seusseios, e a barba crescida roçando sua pele a inflamou ainda mais. Rory se afastou para fitá-la porum momento antes de voltar a lhe dar prazer com beijos voluptuosos, passando a mordiscar olóbulo da orelha, enviando ondas de formigamento a cada terminação nervosa.

— Você é linda — murmurou acima dos gemidos de prazer que ela emitia. — Você é maisbela do que qualquer coisa nesta terra de Deus.

O quadril de Rory se pressionou contra o dela, e ele gemeu ao sentir os lábios roçando seupescoço antes de sugarem de leve.

— Siobhán... oh, Siobhán... esperei por isso minha vida inteira... diga que será minha amada.— Rory — ela gemeu, incapaz de pensar de forma coerente enquanto os lábios dele

deslizavam por seu corpo mais uma vez, provocando todos os sentidos. — Oh, Rory, por favor,por favor...

Siobhán se contorceu sob o corpo vigoroso, com as mãos agarradas nos cabelos fartos, os

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dedos emaranhados nos fios sedosos, ansiando por proximidade.Sentiu a rigidez da ereção pronta para ela e se regozijou com a sensação de poder. Tateando o

peito largo, desabotoou a calça e viu sua mão ser moldada pela dele, conduzindo-a para omembro pujante.

O toque macio despertou um rosnado gutural em Rory. Com um movimento rápido, ele selevantou e se desvencilhou das roupas. Ao virar-se para Siobhán, nu, teve uma agradávelsurpresa.

Ela o estudava com admiração, um brilho nos olhos e um sorriso curvando os lábios aindarubros pelo beijo. Rory sentiu um sorriso involuntário de resposta curvar os próprios lábios.

— O que foi? — perguntou, incapaz de disfarçar a arrogância no tom de voz.— Você é lindo — Siobhán murmurou, empurrando de lado as roupas antes de pressionar o

corpo nu ao dele.Ele gemeu contra os cabelos perfumados.— E você é magnífica — murmurou num sussurro débil um segundo antes de pressionar os

lábios contra os dela.O beijo pareceu durar para sempre. As línguas se encontraram e se confundiram, as mãos se

tocaram e exploraram, os corpos se moldaram como duas peças contíguas de um quebra-cabeça.

Quando finalmente Rory ergueu a cabeça, estava a ponto de explodir. Pousou beijos levessobre as pálpebras fechadas, o nariz, a curva suave do rosto, o pescoço. Siobhán riu, sem fôlego,e provocou-o enquanto explorava o corpo dele com as mãos.

— Rory — murmurou, a voz rouca de paixão. — Oh, meu amor, não pare... Não pare nunca!Os dedos eram delicados como asas de uma borboleta, mas o mero toque cauterizou a pele.

Ela passou as mãos sobre os ombros e braços de Rory, massageando os bíceps antes de levar amão dele aos lábios. Beijou-lhe cada um dos dedos, e então a palma da mão, onde as cicatrizeseram mais pronunciadas.

E todo o tempo, ela o contemplava com expressão de amor tão profundo e terno que ele sesentia estranhamente fraco e forte ao mesmo tempo.

— Siobhán...Com um gemido áspero, Rory a ergueu nos braços e deitou-a sobre a capa, cobrindo o corpo

flexível com o seu. Não queria esperar, precisava desesperadamente estar dentro dela. Masprometera-lhe a perfeição, e queria que ela estivesse tão pronta quanto ele estava. Acariciou-a,insinuando os dedos pela feminilidade cálida até encontrar o ponto mais sensível. Com vagar,tocou-o com o polegar, e ela prendeu a respiração, arqueando o corpo, entregando-se a ele.

— Rory ! Oh, Rory ...— Incrível... — Ele suspirou. — Sim, incrível. Ah, Siobhán...— Rory ...O nome era um apelo nos lábios quando ela o segurou pelos ombros com tenacidade. As

unhas se cravaram em sua pele, mas a dor se confundiu com o prazer ao ouvir a voz roucapedindo-lhe para seguir adiante.

— Oh, Rory , por favor, por favor! Eu preciso de você!Ele acariciou-a, arrancando gemidos lânguidos. Siobhán se contorceu sob ele, abraçando-o,

puxando-o para mais perto, e embora tivesse de usar um esforço hercúleo, Rory conseguiuresistir.

— Oh, Rory , por favor... agora!A voz dela, sem fôlego e apaixonada, o fez querer mergulhar na umidade cálida, mas ele

resistiu mais uma vez.

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— Em breve, meu coração — disse calmamente. — Muito em breve.— Rory !Com um movimento rápido, Rory posicionou-se sobre ela e mergulhou fundo, incapaz de

suprimir o pequeno gemido de prazer que se misturou com os dela.Inalando profundamente, forçou-se a se mover com mais vagar. Havia jurado nunca

machucá-la, e não machucaria. Mesmo que tivesse de morrer por isso.Mas Siobhán tinha outras intenções. Assim que sentiu o membro rígido penetrá-la, impulsionou

o corpo para cima, puxando-o para tão perto que ele sentiu os batimentos acelerados do coraçãodela... ou seria do seu próprio?

Envolvido pelo calor úmido, ele se deteve, em parte para permitir que Siobhán se adaptasse àsensação de um homem novo, mas mais para que ele pudesse desfrutar a sensação de seracolhido dentro dela. Ela, porém, se movimentou, impelindo a pélvis contra a dele, e Rory sentiua onda de ascensão do desejo novamente.

Com uma paixão de que não sabia ser capaz, penetrou-a uma e outra vez, exultando em gritosfebris. E ela o recebeu com o mesmo ardor, cruzando as pernas em torno de seu quadril ecravando as unhas em suas costas.

Rory sentiu o clímax de Siobhán e fechou os olhos quando os músculos internos pulsaram,contraindo-se ao redor de seu membro. Logo em seguida chegou à própria liberação com umrosnado gutural, caindo sobre ela como se quisesse absorver sua essência: a bondade, a pureza, acoragem. Mesmo que tentasse, ele poderia ser digno daquela mulher?

A respiração de ambos voltou ao normal aos poucos, e Rory beijou os cabelos caídos sobreseu rosto.

— Eu me sinto como um homem que passou toda a vida no mar — murmurou, aindaofegante — e finalmente encontrou um porto seguro. Você é meu abrigo, Siobhán.

Ela sorriu com languidez, segura e satisfeita na esteira da paixão.— E você é minha salvação, Rory . Finalmente, posso deixar o passado para trás e começar de

novo, sem culpa ou autorrecriminação. É o futuro que importa, não é? E, apesar dos nossosproblemas agora, o futuro parece brilhante para Ballycashel. Você é um homem tão bom, Rory,um homem com quem todos nós podemos contar, gentil, atencioso... Está na hora de perceberque não é nada parecido com seu pai. Kathryn o adora, os inquilinos o amam. Até a velha MaryDaly , que sempre vê o mal em todo mundo, não diz uma única palavra contra você.

Mas ele estava vivendo uma mentira.Rory tentou relaxar os músculos cansados, mas o pensamento simplesmente não ia embora.Toda a sua existência em Ballycashel era uma mentira. Seus inquilinos e cada um que

supostamente o amava só conheciam a mentira que era David Burke, o americano rico que vieraa Ballycashel por capricho. Apenas uns poucos deles sabiam que ele era Rory Doherty, eninguém conhecia a identidade de seu verdadeiro pai.

A admiração mudaria rapidamente para desprezo e ódio, uma vez que descobrissem averdade. Certamente Siobhán sentiria nada menos que repulsa se soubesse que seu pai foraresponsável pela morte do amado marido e adorado irmão.

Ela apoiou os braços sobre os ombros dele, sorrindo com ternura.— E agora, no que está pensando, meu senhor?A carinhosa provocação na voz dela fez algo estalar dentro de Rory. Afastando-se, ele

começou a recolher as roupas. Quando ambos estavam completamente vestidos, sentados apoucos centímetros de distância e separados por um oceano emocional, ele finalmente encontrouas palavras que havia procurado por tanto tempo.

— Estou pensando na mentira que eu sou.

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Capítulo XVII

A testa de Siobhán se franziu, e Rory reprimiu o desejo de beijar as rugas minúsculas e demergulhar os dedos nas ondas luxuriantes dos cabelos sedosos.

Mas não deveria haver distrações, disse para si mesmo com firmeza. Se tivesse de destruí-la,tentaria deixar o coração dela o menos ferido possível.

Se conseguisse...Finalmente ela falou, as mãos correndo sobre seus ombros, a voz suave como uma carícia.— Se é ao seu nome verdadeiro que você está se referindo, Rory, eu não acho que seja uma

completa mentira. David é seu nome do meio, afinal, e Burke é o sobrenome de solteira de suamãe.

— Não me referi ao meu nome. — O tom de voz severo a fez estremecer. — Estou falandosobre meu... — Ele hesitou, e as palavras amargaram a língua — ...sobre meu pai.

— Quanto menos se falar em Seamus Doherty, melhor — disse ela, prontamente, com a vozcheia de desprezo. — Ele era um homem mau. É melhor esquecê-lo.

O nó na garganta de Rory ameaçou sufocá-lo. Como diabos poderia fazer isso com ela? Comopoderia destruir a inocência que brilhava naqueles olhos verdes?

No entanto, tinha de dizer a verdade! Não podia permitir que a mentira se perpetuasse entreeles.

— Seamus Doherty não era meu verdadeiro pai — disse por fim, com voz quase inaudível.Suas mãos se flexionaram involuntariamente e ele sentiu a perna ferida latejar.— Não? — Siobhán se sentou, olhando para ele com expressão perplexa. — Sua mãe se casou

com um homem e permitiu que ele espancasse uma criança de quem ele nem sequer era pai?— Não foi culpa dela! — Rory se afastou de repente, incapaz de suportar, tanto aquela

proximidade quanto a acusação implícita da mãe. Levantando-se, percorreu círculos inquietosem torno de Siobhán. — Ela não teve escolha.

Siobhán também se levantou e foi até ele, pousando a mão sobre seu braço.— Diga-me, então — insistiu em voz baixa, e a confiança nos belos olhos foi como uma faca

em seu coração.Como dizer a ela? Arrastando o ar para os pulmões, ele se concentrou na plantação verdejante

e nas flores róseas que brilhavam à pálida luz do luar, qualquer coisa para evitar os olhos deSiobhán. Assim, não veria o amor por ele murchar e morrer.

— Havia uma garota — começou, hesitante. — Uma jovem que foi trabalhar como copeiranuma Casa Grande na Irlanda. Era linda, com cabelos pretos e olhos azuis. Era também inocentee pura. Quando o proprietário a chamou ao seu escritório, ela tinha esperança de melhorar deposição. — Ele deu uma risada curta e amarga ao pensar na ingenuidade da mãe. — Ela pensouque o patrão a promoveria. Em vez disso, ele a jogou no chão e a violentou.

— Virgem Maria!Siobhán prendeu a respiração, mas Rory a ignorou. Se parasse agora, perderia a coragem de

contar o restante da história.— Algum tempo depois, os pais da moça notaram o espessamento da cintura e a colocaram

para fora de casa. Ela não tinha para onde ir, e pediu ajuda ao proprietário. — Rory curvou olábio superior com desdém. — Ele prometeu cuidar dela, e a pobre tola não sabia que issosignificava forçá-la a se casar com um palhaço bêbado que vivia num casebre minúsculo.

Rory fez uma pausa, a respiração jorrando dolorosamente através de seus pulmões, e forçou-se a olhar para ela. Lágrimas marejavam os belos olhos, e os lábios tremiam nos cantos.

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— Essa menina era sua mãe?Um aceno sutil confirmou.— E... e o senhorio? O que aconteceu com ele? Como vocês acabaram em Ballycashel?As palavras gentis, cheias de compaixão, apertaram o coração de Rory como garras de ferro.

Suas mãos ansiavam por tocá-la, mas ele não se atreveu. Não quando estava prestes a quebrar opróprio coração valente.

— O senhorio viveu uma vida longa e saudável — Rory declarou por entre os dentes cerrados.— Ele colocou a jovem e a família dela para fora. Obrigou-os a fugir para a América quandonão puderam mais pagar o aluguel. Enquanto isso, enriqueceu à custa do trabalho de seusinquilinos, expulsando-os à vontade, indiferente a se iriam viver ou morrer. E quando a carestiachegou, ele não moveu um dedo para ajudá-los. — A voz vacilou, e ele cerrou o punho em tornodo cabo da bengala, o corpo todo tremendo.

— Rory ...— Deixe-me terminar. — Ele tinha de terminar! Obrigando-se a manter o controle, respirou

fundo o ar salgado. — Finalmente, a época da colheita chegou. O senhorio tinha colhido umaabundante safra de trigo. Alguns dos moradores locais ficaram sabendo que ele transportaria osgrãos para o cais na calada da noite e planejaram emboscar os vagões. Mas foram traídos, emais tarde, enforcados na frente de suas famílias.

Ele olhou para o rosto de Siobhán, odiando a apreensão que viu ali, e ainda mais o fato de queera o responsável por isso. Cedendo à tentação de tocá-la, colocou as mãos trêmulas sobre osombros dela.

— Siobhán, meu verdadeiro pai era lorde Percival Glenleigh.Por um momento, ela ficou imóvel, olhando para ele como se não pudesse acreditar no que

ouvira. Seu rosto se tornou lívido, com as sardas cor de canela se destacando em relevo, e osolhos se escureceram, atormentados. Lentamente, ela balançou a cabeça, negando a verdadeescrita nos olhos de Rory .

Os pecados dos “pais”...— Não — ela sussurrou em tom estrangulado. — Não, não pode ser verdade. Não é possível.

Você não é filho de um monstro, Rory. Não é. Você não poderia ser o homem que é se tivesse osangue dele correndo nas veias. Você não é filho dele. Você não é!

Lágrimas escorriam pelo rosto de Siobhán enquanto ela lutava para assimilar a notíciadevastadora. Rory, filho de lorde Percival Glenleigh? Não podia ser! Rory era bom, amável,carinhoso... Glenleigh tinha sido um monstro. Rory fornecera sementes para todos, dera agarantia de que as plantações fossem cultivadas na época certa, e até trabalhara nos campos paraajudar a arar a terra. Glenleigh disseminara a fome e a crueldade. Rory era um amante gentil;Glenleigh fora um estuprador.

Glenleigh tinha matado Michael e Sean.Rory tentou colocar os braços ao redor dela e puxá-la para perto, mas uma onda de revolta a

fez lutar com toda a força. O toque, tão bem-vindo minutos atrás, tornara-se repulsivo. Elaestendeu a mão e o esbofeteou no rosto, deixando a marca dos dedos na pele.

— Não me toque! Seu bastardo! Você mentiu para mim todo esse tempo! Quando eu lhecontei sobre Michael e Sean, você ouviu com ar de compaixão, sem mencionar que era filhodaquele crápula! Como pôde?! — ela exigiu, sentindo as garras da agonia rasgando seu coração.— Foi seu pai quem matou meu marido e meu irmão! Seu pai roubou o pai da minha Ashleen...

A lembrança do amor que haviam acabado de compartilhar a golpeou com uma onda detontura, e ela titubeou sobre os pés. O amor terno e apaixonado de repente pareceu sórdido edegradante. Ela riu descontroladamente, ouvindo a nota de histeria na voz, mas incapaz de se

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conter, mesmo com as lágrimas transbordando. Desesperada, enterrou o rosto nas mãostrêmulas.

Mas só por um momento. Uma onda de fúria explodiu em suas veias, e ela o encarou.— Você nunca vai me tocar de novo! — disse em tom feroz, ignorando o espanto agonizante

no rosto de Rory. — Não fui prostituta para seu pai, Rory O’Brien, e não serei prostituta paravocê. — Ela se virou para ir embora, e quando a mão firme agarrou seu braço, debateu-sedescontroladamente numa vã tentativa de se livrar. — A maldição de Deus recaiu sobre você.Deixe-me ir!

— Ainda não — ele respondeu. — Há ainda a questão dos irmãos Kerrigan. Ninguém emBally cashel estará seguro até que eles sejam apanhados.

Siobhán mordeu o lábio, sabendo que ele dizia a verdade.— Então, todos nós temos de ter cuidado, não é? Esse é mais um pouco do legado de lorde

Glenleigh.Rory se encolheu, e um músculo saltou em seu maxilar, enquanto as mãos se flexionavam

sem descanso.Ao ver os olhos cheios de raiva e de algo próximo da dor, Siobhán quase se arrependeu das

palavras que usara. Estendeu a mão para tocá-lo, mas recuou no último segundo. Então, virou-see saiu correndo.

Como poderia amar o filho do senhorio?, pensou freneticamente, enquanto corria na direçãoda casa. Glenleigh havia sido responsável pela morte de inúmeros aldeões. Mas Rory eradiferente, uma voz incansável ecoava em sua cabeça. Ele não era o monstro que tinha governadoBally cashel com punho de ferro e coração insensível. Rory era um bom senhorio, disposto atrabalhar lado a lado com os inquilinos para o bem do vilarejo. Era gentil e amável com ascrianças da aldeia, e adorava a filha dela. Era paciente e gentil com os idosos, e nunca hesitaraem ajudar numa emergência.

Como naquela noite, pensou, inquieta ao se lembrar do perigo que corria enquanto os irmãosKerrigan permaneciam livres.

Como ela poderia suportar perdê-lo?Precisando desesperadamente falar com alguém, Siobhán abriu a porta e entrou no chalé.

Seguiu para o leito da avó, acordada em seu catre de palha. Ajoelhou-se ao lado dela, e Megsorriu com compaixão.

— Ah, filha... — murmurou, puxando-a para seus braços.Siobhán se deitou ao lado dela e encostou a cabeça cansada sobre o ombro da avó. Meg alisou

os cabelos com as mãos nodosas, mas suaves e ternas.— Então, você finalmente veio conversar com sua velha avó.Havia tanto amor e compreensão na voz gentil que o coração de Siobhán se despedaçou. As

lágrimas vieram novamente, e Meg aninhou-a como a um bebê, cantando baixinho em gaélico,até que ela se acalmou.

— Agora, então — Meg murmurou com suavidade. — Conte-me tudo sobre ele. É mais doque apenas o fogo da paixão, não é?

Siobhán assentiu, passando as costas da mão no rosto.— Ele disse que me ama, mas mentiu para mim. Está mentindo desde que chegou aqui!Os olhos afiados de Meg a estudaram com a sabedoria lapidada pelos anos.— Então, você sabe que ele é Rory Doherty . — Era uma afirmação, não uma pergunta.— Pior do que isso... — Siobhán começou, então parou abruptamente. — A senhora sabia?Meg sorriu.— Você esqueceu, alanna, de que eu vivi toda a vida nesta aldeia, e me lembro de tudo o que

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aconteceu aqui desde o tempo em que me casei com seu avô. Minha visão não falhou em todosesses anos. Reconheci aquele menino pobre na primeira vez que o vi como adulto. Ele é aimagem da mãe, e nada parecido com o pai.

Nada parecido com o pai.Uma onda de riso histérico subiu pela garganta de Siobhán, e ela se forçou a engolir.— É mais que isso, vovó. Não é apenas o fato de que ele na verdade é Rory Doherty. O pai

verdadeiro dele era... era lorde Glenleigh... ele... Glenleigh... violentou a mãe de Rory, e quandoela ficou grávida, obrigou-a a se casar com Doherty . O pai de Rory era Percival Glenleigh.

— Sim — Meg assentiu com naturalidade. — Eu já suspeitava.— O... o quê?— Eu já suspeitava — ela repetiu, calmamente. — Ah, Siobhán, você esqueceu de que eu

trabalhava na Casa Grande? Glenleigh era um bastardo maldito. Não havia uma criada queficasse a salvo dos avanços dele, e Mary Burke O’Brien era dona de grande beleza.

O que a avó estava dizendo? Tinha aquele monstro realmente tentado...? Ela estremeceu antea lembrança de seu próprio confronto com o senhorio e forçou-se a se concentrar no que a avódizia.

— Não foi culpa de Mary. A família a pôs para fora, e se ela não tivesse casado comDoherty , não teria para onde ir, a não ser o reformatório. Eu teria feito o mesmo no lugar dela.

— Talvez — Siobhán admitiu. — Mas isso não muda o fato de o pai de Rory ser o senhorio, enunca houve um homem mais maléfico do que Percival Glenleigh!

— E que culpa tem o rapaz?Assustada, Siobhán encarou a avó. Seria culpa de Rory que seu pai natural fosse um monstro?

Claro que não. Ele não escolhera o pai que lhe daria a vida.— Mas Glenleigh matou Michael e Sean, e despejou nosso povo faminto e doente de suas

terras. Como posso esquecer isso?E como posso esquecer que eu matei Glenleigh...?— Como você pode culpar Rory ? — Havia sabedoria no rosto enrugado de Meg, pouco visível

sob a luz fraca do fogo. — Filha, você tem de decidir se o ódio por Glenleigh é mais forte do queseu amor pelo filho dele. Afinal, o que é mais importante? Amor ou ódio?

— Não sei, vovó. Estou tão confusa! — Siobhán travou uma batalha perdida com as lágrimassem fim.

— Eu sei. Claro, o amor é a coisa mais confusa do mundo, não é? Mas também é a maisgratificante. Basta olhar para os dois. — Meg fez um gesto na direção de Tom e Nora, a algunsmetros de distância.

Nora se aninhava no peito do marido, com a cabeça repousada no ombro, segura pelo braçofirme em torno dela.

— Eles parecem felizes, apesar de tudo.— Durma comigo esta noite, minha neta. O sol vai aparecer amanhã, e tudo pode ser

diferente para você.Siobhán tentou sem sucesso abafar um bocejo. Tinha sido um dia e uma noite longos. Ela se

deitou ao lado da avó e fechou os olhos, ouvindo-a cantarolar enquanto acariciava seus cabelos.Em questão de segundos, adormeceu.

Meg, porém, permaneceu desperta. Os pensamentos inquietos perseguiam um ao outroatravés de sua mente.

— Sagrado Coração de Jesus — sussurrou na escuridão, percorrendo os dedos pelas contas dorosário. — Onde tudo isso vai terminar?

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Capítulo XVIII

Na manhã seguinte, Rory acordou com dor de cabeça. Levou um momento para se lembrardo que tinha acontecido na noite anterior. No entanto, o cheiro de fumaça distante que entrouatravés da janela aberta de seu quarto fez com que tudo viesse à tona em uma onda dememórias.

O fogo. A devastação do chalé de Tom e Nora. Os irmãos Kerrigan. A paixão que ele tinhacompartilhado com Siobhán. O horror dela quando soubera de sua verdadeira paternidade.

Rory fora para Ballycashel e secara a garrafa antiga de bourbon do Kentucky. Mas não tinhaajudado. Nada poderia apagar o olhar de traição e repulsa no rosto de Siobhán e o ódio nosbrilhantes olhos verdes quando ela ficara sabendo que ele era filho de Percival Glenleigh.

Os pecados de seus pais.Ele seria condenado a pagar pelos pecados de lorde Percival Glenleigh? Ele não fora capaz de

proteger a mãe do bastardo com quem se casara, para seu eterno pesar, e viveria com asconsequências. Porém, estava tentando expiar os danos que Glenleigh infligira a Ballycashel,fornecendo as sementes para o plantio e promovendo os reparos nas casas. Inferno, ele mesmoajudara a plantar as batatas! Isso não contava para nada?

Obviamente, não tanto quanto Siobhán esperava. Ou pelo menos, não o suficiente parasuplantar a aversão pela sua verdadeira paternidade.

O vento soprou mais forte, assobiando ao redor da antiga casa como uma banshee, e ele sentiuum calafrio rastejar pelas costas. Sua mãe falara muitas vezes sobre a banshee, a fadamensageira da morte. Ela gostava de contar a Rory histórias da Irlanda, e ele escutava,enfeitiçado, prometendo lembrar-se de todas quando crescesse.

Impaciente, ele sacudiu a cabeça, tentando se desvencilhar do humor sombrio. Obviamente,estar de volta à Irlanda despertara seu lado supersticioso. Não podia se dar o luxo de entrar nafantasia agora. Tinha de se concentrar em Ballycashel, sua casa agora, e na ameaça que aindapairava sobre todos: Frank e Joe Kerrigan.

Quais eram as chances de os irmãos serem apanhados? Rory bem sabia que havia muitoslugares para se esconderem, e homens que ficariam felizes em abrigá-los num buraco até quefossem esquecidos. Em Nova York, havia muitas casas seguras onde um homem fiel ao ideal deuma Irlanda livre poderia se esconder. Ele próprio conhecia várias. Certamente, existia muitasmais no seu país, berço do movimento rebelde.

Então, onde isso deixava Rory e seu povo? Será que os irmãos Kerrigan os deixaria em paz,satisfeitos com a vingança? Ou será que continuariam seu reinado de terror, queimando casas depessoas inocentes, destruindo suas plantações e até matando aqueles que não eram responsáveispor seu infortúnio?

A decisão de Rory se firmou ao pensar naqueles que os Kerrigan responsabilizariam pelademissão, Tom Fly nn e Siobhán Desmond. Tom, por ter contado a Rory a verdadeira história datraição de Sean Kilpatrick e Desmond Michael, e Siobhán, porque Rory estava apaixonado porela.

Não! Aquilo teria de ter fim. Talvez ele não tivesse sido capaz de proteger a mãe, mas eramais do que capaz de proteger as pessoas que viriam a depender dele para sua subsistência. Seupovo. Percival Glenleigh estava condenado ao fogo do inferno. Rory era agora o senhor deBallycashel, e asseguraria que ninguém viesse a sofrer por sua causa. Ele era um jogador bom osuficiente para fazer uma aposta segura.

Page 93: Cynthia Owens - Visionvox...Estremecendo de repulsa, ela gemeu baixinho quando a língua úmida penetrou sua boca. Então, tão subitamente quanto avançaram, as mãos de lorde Percival

— Hannah! — chamou, impaciente.Como que por magia, a tia-avó se materializou na porta do quarto.— Sim, senhor?— Encontre Paddy Devlin. Diga-lhe para verificar cada casa de Ballycashel. Quero todos os

meus inquilinos adultos aqui hoje à noite, em plena escuridão, tanto mulheres como homens.Diga-lhes para nomear um homem como sentinela, alguém com olhos afiados para mantervigilância, e uma mulher para cuidar das crianças.

— Sim, senhor. Acho que Paddy está no chalé de Flynn com o restante dos homens, tentandover o que pode ser recuperado.

— Ótimo. Vá até lá.Depois que Hannah saiu, Rory lavou o rosto com água fria e se vestiu às pressas. Então,

correu para os estábulos.Suas maiores esperanças se concentravam em seus amados cavalos. Ree e Maeve

produziriam uma nova linhagem de Caçadores que seria melhor do que qualquer uma antesdeles. Através do cruzamento da égua nativa irlandesa com um puro-sangue, ele esperavaproduzir um animal com coragem, capacidade de salto e temperamento fácil que qualquer umpudesse montar.

Ree reconheceu sua presença e relinchou uma saudação. Ele acariciou o focinho aveludado elhe deu uma cenoura. Maeve esticou o pescoço para compartilhar a guloseima, e Rory não pôdedeixar de rir.

— Sim, minha rainha irlandesa... você é uma namorada ciumenta.Mas o riso morreu quando ele se moveu para a baia de Maeve e seu pé esbarrou em alguma

coisa que rolou desajeitadamente a poucos metros de distância. Ele virou-se abruptamente, seusolhos penetrantes estudando o objeto estranho semiescondido na palha do chão.

Um jarro de pedra marrom, idêntico ao que ele e Tom tinham encontrado no chalé na noiteanterior. Depois de oferecer a cenoura à égua, ele apanhou o jarro, apertando com raiva a asa.

Rory respirou fundo, num esforço de controlar a ira avassaladora. O fato de ser parecido como encontrado na casa de Tom não significava nada, refletiu.

Como Tom dissera, poitín não era incomum entre os inquilinos. Qualquer um poderia ter umjarro escondido em casa, enquanto as autoridades não descobrissem.

Mas nenhum dos empregados tinha o hábito de beber no trabalho. Certamente, ele nunca tinhavisto nenhuma evidência disso. Todos em Ballycashel sabiam que ele inspecionava regularmenteos estábulos, insistindo que fossem mantidos limpos e livres de perigos para evitar qualquerprejuízo para seus preciosos cavalos.

Então, por que alguém fora tão descuidado a ponto de deixar um jarro de cerâmica ao lado dabaia de sua égua de cria, onde ele certamente encontraria?

A resposta era óbvia. O jarro era um claro anúncio de que os incêndios que afligiam seu povonão eram meros acidentes. Além disso, alguém queria anunciar que ele era o alvo principal.

A pergunta era: quem?O instinto dizia a Rory que eram os irmãos Kerrigan. Quem mais nutria rancor por ele? Na

verdade, havia pessoas na América que provavelmente não se importariam de vê-lo arruinado,mas não atravessariam o mar para prejudicá-lo. Não, tinha de ser Frank e Joe Kerrigan.

Mas como poderia provar?A noite caiu, trazendo a neblina e o frio. Rory olhou para fora da janela e se perguntou se

alguém viria. Era óbvio que viriam, lembrou-se amargamente. Ele era o senhorio, afinal.De repente, seus olhos se arregalaram, e ele piscou várias vezes, mal ousando acreditar no

que via: uma procissão de inquilinos, muitos carregando tochas, fazendo o caminho até a porta da

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frente de sua casa. O ruído das aldravas de bronze ecoou dentro de sua cabeça.Um momento depois, Hannah surgiu à porta com uma mistura de esperança e ansiedade no

rosto.— Eles estão aqui, Rory. — A voz dela tremia de emoção. — Cada um de seus inquilinos,

salvo algumas mães que ficaram com seus bebês.Uma onda de afeto afastou o frio dos últimos dias. Rory sabia o quão importante aquela

reunião era para ele e para todos em Bally cashel. Compreendia também o perigo que todosenfrentavam, e admirou a coragem de seu povo.

Num impulso, aproximou-se e abraçou a tia-avó.— Obrigado, Hannah — murmurou com voz rouca de emoção.Onde estava sua lendária frieza?, ele se perguntou? Porém, sabia a resposta. Aquele lugar e

aquelas pessoas o tinham feito abrir o coração e sentir novamente. E ele estava grato por isso.— Vou ter com eles — anunciou, endireitando os ombros e selecionando uma bengala do

suporte perto da porta.Apanhou a elegante peça com uma bússola de bronze no topo. Talvez a bússola pudesse guiá-

lo para tomar as decisões certas para seu povo, refletiu, agarrando a bengala com mais força doque o necessário, enquanto descia a longa escada até o vestíbulo.

Hannah conduzira os inquilinos à sala de estar, e quando Rory entrou, os moradores ficaramem silêncio. Ele também permaneceu mudo por um momento ao estudar os rostos voltados paraele. Aquelas eram fisionomias que haviam se tornado familiares ao longo dos últimos meses.Paddy Devlin, um garoto tentando fazer o trabalho de um homem ao cuidar da mãe e de cincoirmãs; Liam Brady, que tocava violino com alegria e adorava beber com seus contemporâneosna mesa do pub; Eileen O’Farrell e Mary Daly , que gostavam de fofocas, mas se transformavamem leoas se ouvissem alguma coisa desagradável sobre alguém de quem gostavam; MickeenMacGreevy, primo de Nora, e sua esposa, Annie, e vários outros inquilinos que ele conhecia tãobem; e Tom e Nora. Tom estava com um braço protetor em torno dos ombros de Nora, e o olharpreocupado passeava de um vizinho para outro até pousar em Rory .

E Siobhán. A visão dela em seu manto verde desgastado, mais bela e mais intocável do queele já vira, fez seu coração saltar no peito com um misto de amor e angústia. Às pressas, desviouo olhar e clareou a garganta.

As perguntas que leu nos rostos silenciosos o apavoraram.O escopo de suas responsabilidades o sufocou momentaneamente. Como poderia manter

todos seguros? Ele era apenas um homem. Quantas pessoas estariam em conluio com os irmãosKerrigan? Rory estava ciente da aceitação dos Whiteboy s pelo povo carente.

Instintivamente, forçou-se a não esfregar a dor que agulhou sua perna. Não mostrariafraqueza diante de seu povo.

Então, seu olhar encontrou o de Eileen O’Farrell. Ele viu a mesma combinação de esperançae medo que vira no rosto de Hannah antes. A mesma expressão se espelhava no rosto de MaryDaly e Paddy Devlin. Mas foi a esperança que lhe deu coragem.

Aquelas pessoas acreditavam nele.Finalmente, Mickeen falou com voz incerta:— É sobre o incêndio no chalé de Tom, milorde? O senhor sabe o que aconteceu?Rory hesitou, olhando para Tom. Embora quisesse que os inquilinos soubessem de sua

descoberta, esperou pela aprovação de Fly nn. Quando o viu oferecer um aceno curto da cabeça,Rory respirou com mais facilidade. Seria muito mais simples com Tom a seu lado.

— Sim, Mickeen, eu sei como o fogo começou — declarou com voz firme. — O incêndio foiproposital. Alguém encharcou o telhado e o jardim com poitín e ateou fogo quando o chalé

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estava vazio. — Ele ignorou os murmúrios chocados. — Tenho minhas suspeitas sobre quem fezisso, mas não tenho como provar. É por isso que pedi a todos que viessem para cá.

Os murmúrios deram lugar a olhares inquietos, e Rory balançou a cabeça.— Não acredito que algum de vocês tenha tido alguma coisa a ver com isso, nem creio que

algum de vocês tenha visto o que aconteceu. Essas pessoas agiram na calada da noite, naescuridão e em absoluto sigilo. Mas quero que todos tenham cuidado, apesar de nenhum de vocêsser o verdadeiro alvo.

— Então, quem é?Por um momento, Rory não conseguiu encontrar a voz. Voltou-se para o rosto irado de

Dermot O’Shea. Um dos mais jovens inquilinos de Bally cashel, ele era também um dos menosbem-sucedidos, possivelmente por ser um dos mais preguiçosos.

— E por que estão ateando fogo em nossas casas e em nossas plantações?— Para enviar uma mensagem dirigida a mim. É covarde, sem dúvida, mas é assim que

essas pessoas trabalham. Eu quero que todos tomem mais cuidado, especialmente à noite. Nãopretendo transformar Ballycashel em um quartel, mas vou organizar turnos de vigília. Paddy,você e seu primo, Kevin, se revezarão na patrulha da aldeia durante a noite. Naturalmente, serãopagos pelo trabalho.

— Deus o abençoe, milorde — Paddy murmurou com gratidão, e Kevin, um ano mais novoque seu primo, ecoou o sentimento.

Kevin vivia com Paddy e sua família desde a morte dos pais durante a Grande Fome, e Rorysabia que o acréscimo de poucos xelins seria uma dádiva para todos eles.

— Quando espera pegar os culpados? — quis saber Liam Brady, arqueando as espessassobrancelhas brancas sobre os olhos. — Parece-me que todos nós estaremos em perigo até queisso aconteça.

— Infelizmente, é verdade. Não posso dizer exatamente quando, mas farei tudo que possopara garantir que sejam pegos e punidos o mais rápido possível.

— O senhor tem algum plano? — perguntou Dermot, com os olhos brilhando ansiosamente.O instinto de Rory o fez hesitar antes de responder. Por alguma razão, a ansiedade de O’Shea

enviou sinos de alarme em sua consciência, da mesma forma que ele sentira na noite em queCharlotte e Jamie haviam morrido.

— Qualquer plano deve ser mantido em absoluto segredo — ele respondeu com cautela.— Nós estamos com o senhor, milorde! — Mickeen gritou com veemência.— Sim — concordou Liam. — O senhor tem feito tudo o que pode por Ballycashel, e quando

a aldeia próspera, todos nós prosperamos. É justo estarmos do seu lado em tempos denecessidade.

As vozes dos inquilinos cresceram num uníssono de concordância, e Rory sentiu um aperto nagarganta. Em vez de condená-lo, aquelas pessoas não estavam apenas encorajando-o, masprometendo seu apoio. O que mais ele poderia pedir?

Bem, talvez só mais uma coisa.Seu olhar procurou Siobhán. Ela o fitava com os olhos marejados e expressão de saudade.

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Capítulo XIX

Rory rumou para o extremo norte de Ballycashel, onde a luxuriante grama verde dava lugarao impiedoso pântano úmido coberto de samambaias, o lugar que tinha assombrado seus dias eatormentado seus sonhos por vinte longos anos.

Suas mãos tremiam quando saltou de Ree e amarrou as rédeas ao redor de uma árvore.Perguntou-se por que levara tanto tempo para finalmente voltar. Chegara em Ballycashel emjaneiro, pelo amor de Deus! O mês de maio já estava no fim.

Ele ofereceu a Ree um afago, sorrindo ao ver o garanhão relinchar de satisfação. Então deupalmadinhas carinhosas no pescoço do cavalo, permitindo-lhe esfregar o focinho em seu ombro,enquanto absorvia o calor do animal.

Rory inalou profunda e dolorosamente, sabendo que não poderia adiar o momento por maistempo. Endireitando os ombros, virou-se para olhar a casa em ruínas que abrigara sua infânciadentro das paredes caiadas de branco com uma lareira de pedra fria.

As lembranças o atingiram como um golpe. A palha estava repleta de ninhos de avesabandonados, e o muro baixo fora quase todo recoberto pelas ervas daninhas. A porta balançavaperigosamente na única dobradiça restante. No entanto, os fantasmas de Mary e DohertySeamus pareciam reais. Ele quase podia ver a mãe revolvendo as brasas na lareira, enquantoSeamus tragava o poitín de uma jarra de pedra e observava cada movimento dela com os olhospequenos apertados.

Onde está meu chá, mulher? Você está preguiçosa. Só pensa em gastar o dia tentando ensinarseu filho inútil a ler. Eu juro, se descobrir que tem conversado com o bastardo do Kilpatrick sobrecolocá-lo na escola novamente...

Rory estremeceu quando a voz áspera e pastosa de Seamus Doherty reverberou em suacabeça. Com a mão trêmula, abriu cautelosamente a porta e engoliu o terror que subiu para agarganta.

Um único catre jazia no chão, lar de ratos e outras criaturas pequenas agora, Rory imaginou.Ao se aventurar para o interior do chalé, um súbito grito irado quase o fez pular. O farfalhar deasas sobre sua cabeça disparou seu coração, e ele se esquivou do corvo que voou para fora.

Um corvo. Estaria predizendo a tristeza? Ele teve de rir. Certamente, depois de tudo quesuportara naquele chalé, um corvo furioso não poderia assustá-lo. No entanto, ao olhar para alareira fria e triste, seu estado de espírito esmoreceu quando, mais uma vez, as lembranças oassaltaram...

Seu coração estava inflamado de orgulho quando ele correu para o chalé.— Veja, mamãe! — gritou, animado. — Veja o que o sr. Kilpatrick me deu! Um livro sobre os

heróis da Irlanda! Olhe!Mas sua mãe não respondeu, e o coração de Rory afundou ao ver a tristeza nos olhos azuis. O

medo, frio e tangível, permeava a sala. Com a boca seca, ele se virou para ver o pai sentado napoltrona de costume.

— Você foi ter com Kilpatrick novamente, rapaz? — A voz de Seamus Doherty soou como umrosnado baixo. — Negligenciou suas tarefas para ir falar com ele?

— N-não, pai, fiz todas as tarefas. Eu... eu só...— Você está mentindo! Por acaso já começou a plantar as batatas? Alimentou os porcos?

Limpou o chiqueiro?— Eu... eu...— Bem, eu acho que não. Será que terei de amarrá-lo com uma corrente? Você gosta de

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sonhar, não é?— Seamus, deixe-o em paz. Ele é apenas uma criança.Rory se encolheu quando a mão pesada do pai atingiu o rosto pálido de sua mãe. As mãos

pequenas se apertaram ao ouvir o grito de dor e humilhação. Ele começou a tremer, e toda a suaraiva e impotência transbordaram num grito desafiador.

— Não bata na minha mãe!O pai se voltou para ele. Os olhos azuis ameaçadores pareciam ter o poder de atravessar as

paredes de pedra. Um sorriso malévolo torcia os lábios grossos. Rory encolheu-se, sentindo-sepequeno, assustado e sozinho.

— Oh? — A voz de Seamus soou calma, controlada, quase cordial. Ele andou mais algunspassos para perto de Rory, aumentando seu terror. — Eu já bati em você alguma vez, rapaz? —perguntou delicadamente, e o rosto afogueado era a única indicação da raiva crescente. — Claro,isso pode ser remediado.

A mão roliça segurou o braço de Rory em um punho de ferro, empurrando-o para a frente. —Venha aqui!

— Não, pai, não! — Rory gritou. — Por favor, não me bata... Desculpe! Desculpe! Vou fazerminhas tarefas, eu prometo. Por favor, não me bata!

As súplicas pareciam atravessar os anos e ecoar na casa abandonada, ressoando na cabeça deRory. Ele tremeu violentamente, com o suor frio escorrendo pelo pescoço e a respiração alojadana garganta.

Oh, Deus, as memórias nunca iriam embora?Com um grito angustiado, Rory sentiu suas pernas começar a ceder. Virou-se, varrendo os

restos de uma velha cadeira e jogando-os contra a parede coberta de musgo para destruir oúltimo de seus laços com Seamus Doherty .

Ele não era mais aquele menino pequeno e assustado, percebeu atordoado. Era um homemagora, e protegeria o que era seu.

— Deixe-me em paz!Ele mal sentiu os braços reconfortantes deslizar em volta da cintura, e apenas vagamente

sentiu o cheiro limpo e fresco do sabão que ela usava.— Siobhán — gemeu, com os olhos fixando os dela enquanto se virava, procurando

desesperadamente por consolo. — Oh, Deus, Siobhán, ajude-me!— Shh... — ela sussurrou, acariciando os cabelos úmidos. — Não diga nada, meu amor. Eu

estou aqui agora.— Não me deixe.— Nunca. — Ela balançou a cabeça, gentilmente. — Nunca, meu querido.— Como você sabia que eu estava aqui?Ela sorriu, e uma riqueza de compaixão iluminou seu rosto.— Eu o vi passar quando estava na casa de Donavan. Nan Donavan acabou de ter um bebê,

um lindo menininho de cabelos ruivos.Nan Donavan. Rory sorriu com a notícia dada na cadência suave da voz de Siobhán.Ele tentou envolver a mente nas atividades cotidianas de Ballycashel. Qualquer coisa em vez

de pensar sobre aquele lugar e as memórias que lhe mostravam suas garras afiadas.Lembrou-se de Nan, a bela jovem, e seu marido, Peader, orgulhoso e feliz toda vez que

olhava para o ventre roliço da esposa grávida.— Continue falando — pediu, com o corpo rígido em seu abraço. — Não pare agora. Conte-

me sobre Peader, Nan e o bebê. Conte-me sobre Ashleen e Meg, ou Tom e Nora. Diga-mequalquer coisa, Siobhán. Basta fazer com que os fantasmas vão embora. Querido Deus, faça-os ir

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embora!Os braços suaves se apertaram em volta dele e Rory acariciou a nuca delicada. Fechou os

olhos enquanto ela falava do bebê, fazendo-o sorrir com comentários sobre amigos e familiares.Concentrou-se na voz suave, um bálsamo para seu espírito torturado.

Deus, como precisava daquele bálsamo!Finalmente, Rory parou de tremer. Em silêncio, fitou os enormes olhos verdes, absorvendo a

paz que transmitiam.Siobhán tomou-lhe o rosto entre as mãos calejadas pelo trabalho e o encarou com seriedade.— Por que você veio aqui, Rory ?— Nem eu mesmo sei. — Ele deu uma risada trêmula. — Acho que tinha de colocar alguns

velhos fantasmas para descansar. Não esperava que pulassem sobre mim.Os olhos dela se arregalaram.— Esta era a sua casa?— Sim. Morei aqui com minha mãe e Seamus Doherty por mais de dez anos de miséria e

abuso. — Ele estremeceu involuntariamente quando olhou para os restos de uma mesa demadeira. — Era ali que minha mãe me ensinava a ler em segredo. Seamus voltou para casainesperadamente um dia e me flagrou com o caderno. Ele me bateu com tanta violência que eucaí da cadeira. — Ele engoliu em seco, dolorosamente.

— Sagrado Coração de Jesus! Doherty era um monstro!— Sim. — Rory estremeceu novamente, mas dessa vez de prazer, quando as mãos se

moveram em suas costas. O toque reconfortante o fez despertar. Sentiu-a responder, e as mãosdelicadas tremiam quando ele as levou de encontro aos lábios.

A boca úmida se rendeu ao beijo desesperado. Ele desejava apagar aquele lugar e se perderna suavidade daqueles lábios.

Siobhán correspondeu com a mesma intensidade, entrelaçando os braços atrás das costaslargas para puxá-lo de encontro ao corpo.

— Siobhán... — ele gemeu. — Fique comigo. Não me deixe. Nunca me deixe.— Ah, meu amor — ela sussurrou em voz rouca e sedutora. — Eu tentei ficar longe. Mas...Ele não esperou pela conclusão. Em vez disso, levantou-a do chão com um movimento ágil e

levou-a até o leito de palha a um canto do chalé. Deitou-se ao lado dela, sabendo que seu coraçãoestava em seus olhos quando pediu permissão sem palavras para amá-la.

Em silêncio, com dedos trêmulos, Siobhán abriu os botões da blusa para, a seguir, tomar amão dele e pousá-la sobre os seios.

Rory gemeu em voz alta ao sentir a suavidade da pele acetinada. Acariciou o mamilo túrgidoaté que ela gritou e se contorceu debaixo dele.

— Siobhán? Você vai me ajudar? Vai me ajudar a banir os fantasmas?— Oh, Rory, sim. Eu não sei o que é certo ou errado. Não me importo mais. Só sei que amo

você, e quero que me ame agora...Rory não precisou de um segundo convite.Com um gemido rouco, selou os lábios dela com os seus, insinuando a língua pela boca

entreaberta. Sentiu os dedos deslizar por seus ombros e estremeceu com a suavidade,maravilhado com o contraste entre a ternura de Siobhán e a crueldade de suas lembranças.

Não pense, obrigou-se, desesperado para apagar o passado. Queria apenas sentir. Sentir asuavidade, a alegria absoluta com a qual Siobhán se entregava. Sentir seu amor.

Ele levantou a cabeça e fitou-a nos olhos, com a súbita necessidade de dizer as palavras:— Eu te amo, Siobhán. Você é tudo que é bom e puro em minha vida.Ela emitiu um som suave e, sem palavras, acariciou gentilmente o rosto, os ombros, os

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cabelos macios do peito largo. As mãos se moveram mais para baixo, e ele ficou ainda maisexcitado quando Siobhán puxou com impaciência o fecho da calça. Com um gemido gutural,cobriu as mãos dela com as suas.

— Siobhán... Eu preciso ter você, meu amor. Não posso esperar, não desta vez. Sinto muito,meu tesouro. Eu queria amá-la como você merece.

— Shh...Os dedos dela encontraram a masculinidade pujante e a rodearam. Ele soltou um gemido e

pressionou a mão delicada.— Deus misericordioso! Siobhán...— Shh...Quanto mais ele conseguiria aguentar? Cedendo à urgência do desejo, posicionou-se sobre ela.— Siobhán... meu amor... meu tesouro.E depois, não havia mais Seamus nem Mary, não havia mais violência e medo, não havia

mais memórias. Havia apenas Rory e Siobhán.Havia apenas amor. Os dois chegaram ao clímax ao mesmo tempo, e os gritos febris se

confundiram. O suor dos corpos se misturou e, juntos, eles consolidaram o amor.Quando a respiração voltou ao normal, Siobhán sorriu e alisou a mecha despenteada na testa

de Rory . Ele segurou sua mão e beijou ternamente cada um dos dedos.— Hum — ela murmurou. — Foi lindo.— Muito rápido — ele rebateu. — Eu queria que durasse mais.— Eu não queria esperar — Siobhán confessou. — Sinto que esperei uma vida inteira para

estar nos seus braços novamente.Rory traçou uma linha de beijos pelo pescoço esguio, absorvendo o estremecimento de prazer

de seu próprio corpo.— E agora? Aonde vamos a partir daqui, Siobhán? Você disse que não seria a amante do

senhorio, mas se recusa a considerar qualquer tipo de relação entre nós. O que quer de mimagora?

O olhar se afastou do dele, mas dessa vez, Rory se recusou a deixar que Siobhán o evitasse.Segurando o queixo arredondado com firmeza, obrigou-a a fitá-lo.

— O que você quer de mim, Siobhán? — repetiu com urgência.— Eu... — Ela balançou a cabeça, confusa, e seus olhos se encheram de lágrimas. — Seria

tão mais fácil se você não fosse filho de Glenleigh! — exclamou, impotente.Rory deu uma risada curta e frustrada.— Acredite, se houvesse qualquer outra pessoa que eu pudesse reivindicar como pai, eu o

faria. Pense nisso, meu pai natural, um monstro que sangrou seus inquilinos, deixando-os morrerde fome sem levantar um dedo para ajudá-los, além de... — ele hesitou, sem desejar evocarlembranças de Sean e Michael — ...ter feito coisas muito piores. E Seamus Doherty ? Outromonstro, um homem que me bateu e matou minha mãe. Com exemplos como esses, não é deadmirar que eu seja um pai tão miserável para Kathry n.

— Ah, mas você não é! Não sabe o quanto Kathry n o adora? Ela está desesperada para teremmais proximidade. Sua filha anseia por passar mais tempo com você e espera apenas que lhe dêuma chance. — Ela hesitou, e as mãos alisaram com nervosismo a barra da saia. — Sim,Glenleigh era um monstro, mas não merecia morrer da maneira como morreu.

Rory franziu o cenho.— Pelo que ouvi na aldeia, ele morreu sozinho em Bally cashel, vítima de insuficiência

cardíaca. — Seus lábios se contorceram. — Irônico, já que aquele monstro não tinha coração.Rory a fitou, tentando ler sua expressão. Por que ela parecia tão transtornada?

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— Ele teve um ataque do coração... — a voz era tão baixa que ele teve de se esforçar paraouvi-la — ...mas não estava sozinho.

Um sentimento lento e pungente retorceu o estômago de Rory . Que diabos ela estava dizendo?Siobhán se levantou e pôs-se a andar em círculos inquietos ao redor do interior da cabana, sem

parar por tempo suficiente para que ele a tocasse ou captasse seu olhar. Parando à porta, elacomeçou a falar:

— Era outono, e o clima estava mais frio que o normal. Em novembro, não havia dinheirosobrando com a venda da safra escassa, e quase não havia comida para nós três. Eu... fui aBally cashel sem contar a vovó Meg. Não podia. Sabia que ela ficaria furiosa se eu lhe dissesseque planejava pedir trabalho para Glenleigh. Mas eu tinha de encontrar alimento para Ashleen.

Siobhán se virou, e seus olhos pareceram ainda mais verdes em contraste com o rosto pálido.Para Rory , ela parecia uma rainha guerreira, e nunca estivera mais bonita.

— Ele não me reconheceu, é claro, mesmo os Kilpatrick tendo sido seus inquilinos porgerações. Eu me ofereci para cozinhar ou limpar a casa. — Um calafrio a percorreu, e Roryansiou por puxá-la para seus braços e aquecê-la do frio interior. — Ele... ele apenas olhou paramim por muito tempo e perguntou se eu era limpa.

Rory proferiu uma imprecação por entre os dentes.— Então... ele tentou me beijar. Eu lutei. Meu Deus, como eu lutei! Sabia o que aquele

monstro tentaria fazer, mas estava tão fraca e desnutrida que receei não ser capaz de detê-lo. Derepente, Glenleigh parou. Ele... agarrou o colarinho da camisa e caiu.

Agitando violentamente a cabeça, ela cobriu o rosto com as mãos.— Eu sabia que ele estava morrendo. Vi nos seus olhos. Ele sabia, também. Estendeu a mão

para mim e implorou por água. Eu não conseguia me mover. Fiquei lá, pensando nos pequeninosmorrendo de fome e febre, em Sean e Michael. — Um soluço irrompeu de sua garganta. — Eu omatei, Rory . Eu matei Glenleigh. Eu matei seu pai.

— Basta!Rory se levantou de um pulo, envolvendo-a nos braços e puxando-a para perto. Com ternura

infinita, acariciou seus cabelos, ansiando por absorver sua dor e culpa.— Não diga mais nada, querida — sussurrou contra os cabelos macios. — Você não matou

Glenleigh. Provavelmente, nada poderia tê-lo salvado. E depois do que ele fez com sua família ecom todos de Bally cashel, você não tinha a obrigação de tentar ajudá-lo. Deus sabe que elenunca fez nada para ajudá-la.

As lágrimas inundaram os olhos de Siobhán, molhando a camisa de Rory .— Mas ele era seu pai.— Ele não era meu pai — Rory afirmou duramente. — Um pai é alguém que ama e cuida.

Sean Kilpatrick era mais pai para mim do que Glenleigh sempre foi. E o sr. Crowley, meu patrãoem Nova York, foi mais pai do que Seamus Doherty sequer tentou ser.

Ela o fitou com surpresa, com os olhos brilhantes de lágrimas.— Então, você não me odeia? Você... não acha que sou uma assassina?— Siobhán, minha querida Siobhán, meu tesouro! — Ele a segurou perto, tão perto que sentiu

o coração pulsar como se fosse no seu próprio peito. Gentilmente, beijou as lágrimas, provando aumidade salgada. — Eu te amo. Acho que amei você desde a primeira noite que nosencontramos no cemitério. Eu te amo como preceptora de Kathryn, te amo como mãe deAshleen. Eu te amo como a guerreira de orgulho feroz disposta a defender sua família, como amulher apaixonada contorcendo-se em meus braços. Eu te amei quando era David Burke e vocêera a sra. Desmond. Eu te amo agora, e vou te amar para sempre.

As palavras dissiparam a culpa de Siobhán. A morte de Glenleigh não fora sua culpa,

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percebeu. Por tudo que sabia, o coração do senhorio poderia ter parado a qualquer momento. Osimples fato de não tê-lo socorrido não significava que causara sua morte. Era provável quetivesse morrido antes que ela pudesse buscar ajuda.

Sorrindo, levantou a mão para acariciar o rosto áspero.— Eu também te amo. David Burke ou Rory O’Brien, você é uma e a mesma pessoa. O

mesmo homem maravilhoso que ama a poesia e os livros, os cavalos e as crianças. Sim, ascrianças — acrescentou com firmeza ao ver a dúvida nos olhos dele. — Você acha que eu nãovejo o amor em seus olhos quando olha para Kathryn? Quando a abraça? Não tenha medo. —Ela acariciou o braço musculoso com a mão suave. — Não tenha medo. Você não é nem umpouco parecido com qualquer um de seus pais.

Ela contemplou o rosto amado e viu a combinação dolorosa de tormento e dúvida.— Como pode ter tanta certeza? — questionou ele com a voz estrangulada.— Porque eu sei quem você é. Vi como sorriu para os meninos devorando a comida que

levou para a celebração de Santa Brígida. Você nunca recusou carinho a uma criança. Eutestemunhei sua gentileza com minha Ashleen e vejo o anseio em seus olhos quando olha paraKathryn. Você quer estar perto dela, mas tem medo.

— Ela passou por tanto sofrimento. — Ele gemeu com um soluço. — Perdeu a mãe quandoainda nem podia se cuidar sozinha.

— Mas ela ainda tem você — disse Siobhán ferozmente, com a necessidade de fazê-loentender. — E você tem um amor infinito para dar, Rory , se apenas se permitir.

— Tenho medo — ele admitiu.Siobhán sabia o quanto aquela admissão lhe custava, ele que tivera de ser forte para todos

durante tanto tempo. Viu o aperto firme dos lábios, a rigidez dos ombros, e ansiou por tranquilizá-lo. Com infinita ternura, acariciou as costas rígidas, e uma onda de amor subiu penosamenteatravés dela.

— E se...— Não! — ela o interrompeu, antecipando o que ele estava por dizer. — Você nunca poderia

prejudicar sua própria filha. Tente — pediu baixinho. — Para o seu bem e o de Kathryn, tente seaproximar dela. Leve-a para passear, conte-lhe histórias sobre suas aventuras na América. Bastaestar com ela.

A riqueza das emoções se estampou no rosto bonito e cansado, e Siobhán sorriu.— Eu vou tentar, Siobhán. Quero me aproximar de Kathryn, mas sempre tive medo da

maldição de meus pais.— Não existe nenhuma maldição. O passado ficou para trás. Há apenas você e Kathry n

agora.Ele segurou-lhe a mão e levou-a aos lábios.— Oh, não. — O olhar dele exprimia censura. — Há mais. Há você e Ashleen também. Se o

passado realmente acabou, talvez nós quatro possamos ter um futuro juntos. Siobhán, há algumachance para nós?

Ela hesitou apenas um momento antes de se erguer na ponta dos pés e entrelaçar os braçosatrás da nuca de Rory . Lágrimas escorriam pelo seu rosto quando disse, vacilante:

— Eu não sei aonde isso nos levará, Rory O’Brien, mas acredito num futuro para nós. Eu seidisso.

E quando os braços musculosos a rodearam, Siobhán rezou para que sua intuição estivessecerta.

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Capítulo XX

O sol brilhava sobre as flores rosadas da plantação de batatas quando a charrete puxada pelopônei parou ao lado da casa dos Kilpatrick. Rory saltou para o chão e apanhou Ashleen. Acriança correu para dentro com uma onda de alegria, e ele se virou para Siobhán com um sorrisomalicioso.

— Milady — murmurou com grandiosidade, estendendo a mão de forma cortês.Siobhán corou como uma adolescente, esquecendo-se que era uma viúva de idade madura.

Apenas Rory a fazia se sentir assim, com o cavalheirismo exagerado que havia aprendido naAmérica. Ele lhe contara que as boas maneiras naquele continente eram ainda mais importantesdo que no beau monde de Londres.

E contou-lhe muito mais sobre os jogos no barco, onde ganhara e perdera fortunas em umlance único de dados, sobre o ritmo calmo da vida em uma plantação de arroz na Carolina do Sul,num forte contraste com a agitação de uma grande cidade como Nova York.

Porém, nunca mencionara a esposa nem a infância com Seamus e Mary Doherty .E ela nunca falara sobre Michael e sua vida juntos, ou como fora ver a família morrer

durante a Grande Fome.Siobhán relaxou a mão em seu aperto quente, e ele a levou aos lábios, segurando-a por um

longo momento. Ela se permitiu relaxar, desfrutando o calor e força. Sentiu os lábios de Roryroçar em seus cabelos e desejou se entregar à paixão que se inflamara entre eles.

Mas as meninas os observavam da varanda, e ela se afastou com relutância, enviando-lhe umolhar de advertência. Rory assentiu em compreensão, mas manteve a mão presa à dele.

— Você vai para Ballycashel esta noite?Ah, como ela gostaria de ir! Desejava sentir os braços dele ao seu redor, os lábios dele nos

seus... Ansiava pela libertação apaixonada que apenas Rory podia lhe dar.— Se eu puder — murmurou. — Depois que Ashleen e vovó estiverem dormindo.Rory a manteve cativa na sedução dos olhos azuis.— Tenha cuidado.— Eu terei.Embora quase convencida de que a sede de vingança dos Kerrigan estava saciada, a

preocupação de Rory a comoveu. Apesar de não ter havido incidentes envolvendo os irmãosKerrigan nos últimos meses, ele ainda estava sendo cauteloso.

Fora assim por muito tempo, Siobhán pensou ao observá-lo se distanciar, passeando o olharpelos verdejantes campos de batata, milho e cevada. Fazia anos que ela era a única a cuidar detodos. Todos dependiam de sua força, de seu otimismo e de sua determinação.

Agora, finalmente, havia alguém em quem ela podia se apoiar.— As batatas serão abundantes este ano.Ela teve um sobressalto com a voz de Meg. Um sorriso travesso brincava nos lábios da avó, e

os olhos azuis refletiam o brilho suave do amor.— Ashleen?— Ela está lá dentro, lendo um livro que Kathryn lhe deu. Deus a abençoou com uma filha

inteligente.— Como seu tio Sean.— Sim, e como a mãe. — Meg a fitou por tanto tempo que ela começou a se sentir

desconfortável. — Vocês sempre foi uma moça sensível, Siobhán — disse por fim. — Eu nuncame preocupava com você da mesma forma que com suas irmãs, que Deus as tenha.

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— Eu tinha de ser a sensata — Siobhán disse, secamente. — Era a mais velha. Mamãe e papaidependiam de mim.

Meg deslizou um braço ao redor da cintura de Siobhán e levou-a até uma imensa rocha plana.Ali, gerações dos Kilpatrick tinham se sentado e compartilhado seus segredos mais íntimos. Foraa pedra onde Michael pedira sua mão em casamento a seu pai, onde sua mãe lhe explicara sobreos deveres de uma esposa para com o marido. E era a rocha de onde ela tinha visto o marido e oirmão morrer.

— Sim, você teve de ser sensível — Meg concordou, considerando-a, pensativa. — E aindaassim, eu sempre suspeitei que por trás de tudo havia uma mulher que poderia amarprofundamente e com paixão, que poderia perder a cabeça se tivesse oportunidade. — Ela fezuma pausa, como se procurasse as palavras certas. — Você nunca encontrou essa chance comMichael, filha. Ele sempre teve os olhos postos em um sonho distante, um sonho que não deixouespaço para os prazeres mais comuns de uma esposa e sua família.

Era estranho que a avó soubesse disso, quando Siobhán só recentemente chegara à mesmaconclusão. Tinha sido Rory quem a ajudara a enxergar.

— Você descobriu o amor agora, não é, querida?Siobhán sentiu o rosto enrubescer.— A senhora sabe?— Ah, querida, seu coração brilha em seus olhos sempre que Rory O’Brien está por perto, e é

óbvio que ele sente o mesmo por você.— Ele... ele diz que me ama.— E você corresponde a esse amor?— Eu... sim. Deus sabe que nunca pensei que me sentiria assim novamente, depois de estar

viúva por tantos anos. Mas é diferente com Rory . Ele foi ferido, é verdade, mas agora, tudo o quequer é tornar Bally cashel rentável novamente. Ora, ele usou o próprio dinheiro para comprarsementes para todos nós e para reparar as casas! Ele é um bom homem, vovó, e é o único quenão percebe isso.

— Como você disse, ele foi ferido. Esse é o tipo de dor que não vai embora da noite para odia.

— Rory está melhor agora. Está se abrindo até para Kathryn. — Siobhán sorriu com carinho.— Ela adora o pai.

Meg balançou a cabeça.— É o primeiro passo. — Ela fez uma pausa antes de acrescentar: — Mas ele está se abrindo

para você, filha?Siobhán corou ao pensar na paixão que compartilhara com Rory. Seria isso que a avó se

referia?, perguntou-se, estudando o olhar travesso nos olhos sábios.— Sim, ele se abriu para mim — afirmou. — Ele me disse tantas coisas, vovó! Claro, nunca

falou sobre a mãe de Kathryn, mas me descreveu o monstro que foi Seamus Doherty, e acreditoque isso tenha sido ainda mais difícil do que falar sobre o incêndio que matou Charlotte.

Os olhos de Meg se afiaram.— Então, foi num incêndio... — Ela fez uma pausa significativa. — E os irmãos Kerrigan

estavam familiarizados com esse fato?Os olhares de avó e neta se encontraram numa compreensão mútua e silenciosa.— Não é nenhum segredo em Ballycashel.— Rory acha que Frank e Joe Kerrigan são responsáveis pelos incêndios, não é?Siobhán assentiu.— Ele está tomado precauções extras, apesar de fazer algum tempo agora. Talvez os

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Kerrigan tenham ido embora para sempre.— Ou então estão escondidos, esperando o momento certo de agir. — Meg se levantou e

afagou o rosto de Siobhán. — Cuidarei de Ashleen esta noite, filha. Assim que ela estiver segurana cama, você pode ir para Bally cashel ver seu Rory .

Os olhos de Siobhán se arregalaram, e Meg sorriu, compreensiva.— Não se esqueça de que, há muito tempo, eu fui jovem e conheci o amor. — Ela colocou a

mão no ombro da neta. — Lembre-se de ter cuidado — acrescentou, seu olhar amorosodesmentindo o tom severo. — Você é a neta que sempre esteve mais próxima do meu coração.Eu não poderia suportar se alguma coisa lhe acontecesse.

Siobhán abraçou a avó.— Obrigada, vovó Meg — sussurrou, ignorando o discreto arrepio que correu por sua espinha.Nada iria acontecer naquela noite, ela prometeu silenciosamente. Nada...

A névoa de verão subia em espiral ao redor da cruz de madeira que marcava o local dedescanso eterno de Michael Desmond. Siobhán ajoelhou-se e fez o sinal da cruz antes dedepositar o ramalhete de flores sobre o túmulo do marido.

— Oh, Michael... — A voz soou embargada pela ternura. — Acabou, meu amor. Eu possoseguir com minha vida. Agora eu posso perdoá-lo pelo que aconteceu com você e Sean. Efinalmente posso me perdoar. Agora sei que nenhum de nós foi culpado pela morte de Sean. Eleteria participado do plano, não importa quem o levasse. Foi uma atitude selvagem eirresponsável, mas vocês morreram tentando salvar a todos nós. E eu lhe agradeço por isso.

As lágrimas se derramaram sem controle, e ela esfregou os olhos.— Rory é um bom homem. Ele ama Ashleen como se fosse sua própria filha. Sei que você

gostaria que ela tivesse alguém que a protegesse. E ele me ama também. Eu sei que você querque eu seja feliz, Michael. Você sempre quis o melhor para todos nós. Bem, Rory é o melhor.Ele está assustado e cansado da batalha, mas emergiu vitorioso sobre o próprio passado, e juntos,poderemos construir um futuro bom para todos.

Delicadamente, ela estendeu a mão e tocou a cruz, correndo os dedos sobre a madeira áspera.— Adeus, meu doce Michael. Que Deus o mantenha seguro até nos encontrarmos novamente.Com um sorriso triste, ela se levantou e disse um adeus final e silencioso para o marido que

havia amado com seu coração jovem. Então virou-se para Bally cashel e para seu futuro.Mergulhada em reflexões, Siobhán não viu os dois pares de olhos malévolos que a seguiram a

partir do cemitério e por todo o caminho até a colina para a Casa Grande.

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Capítulo XXI

Rory esperou por Siobhán nas proximidades da floresta, com Ree amarrado a uma árvore,andando em pequenos círculos apertados. Quando ouviu as passadas suaves, prendeu arespiração em expectativa até que ela surgiu.

Uma onda de alívio o percorreu ao vê-la, bela e altiva, de pé diante dele. Caminhandorapidamente, tomou-a num abraço sufocante.

— Graças a Deus você está aqui.Ela riu, um riso sem fôlego que foi direto ao coração de Rory e o aqueceu em lugares

secretos.— É uma saudação muito bonita, de fato, senhor. — Ela se esticou na ponta dos pés para

beijá-lo.Rory respondeu com uma paixão que deixou ambos sem fôlego e a afastou ligeiramente.— Estou feliz que você esteja segura.Ela ficou séria, embora a ternura se evidenciasse em seus olhos.— É claro que estou segura, Rory. A floresta não representa perigo. O pior que eu poderia

encontrar seria um texugo voltando para a toca.Rory acariciou o rosto delicado com a mão direita, sem esconder as cicatrizes que já não o

envergonhavam mais. Toda a pretensão de disfarçar a excitação se perdeu na intimidade novaque compartilhavam.

— O bosque é perigoso, Siobhán. Se você não vai me deixar acompanhá-la, prometa que serácuidadosa.

— Você sabe que eu sou, meu coração — ela assegurou, deslizando as mãos pelas costaslargas. — Está se preocupando demais. Frank e Joe não fizeram nenhum movimento nas últimassemanas. Provavelmente se esconderam em algum outro lugar. Pode ser até que tenham fugidodo país. Eu me lembro de ter ouvido que tinham primos na América. Acho que finalmenteestamos livres dos irmãos Kerrigan.

Os braços fortes se apertaram ao redor dela. Deus, como desejava que Siobhán estivessecerta! Daria qualquer coisa para acreditar que seu povo finalmente havia se livrado do espectrodos Kerrigan.

Mas, no fundo de sua alma, ele ainda estava com medo.O resfolegar do cavalo atrás deles os assustou, e ambos riram.— Acho que Ree está nos dizendo que é hora de levá-lo para casa.Antes de terminar a frase, Rory tomou-a nos braços. Siobhán deu um grito de surpresa quando

foi colocada sobre a sela. A seguir, ele montou atrás dela.— Rory ...— Shh... — ele murmurou, os lábios muito perto de seu ouvido. — Apenas relaxe e aproveite

o passeio.— Mas eu nunca...— Shh! — disse ele novamente, com as mãos vagueando na plenitude exuberante dos seios.

Ree sacudiu a cabeça, relinchando. — Vamos para casa.Para casa. Sim, nos últimos meses, Ballycashel havia se tornado seu lar. Ele já não odiava o

lugar, embora planejasse redecorá-lo extensivamente logo que tivesse o dinheiro. Primeiro, amanutenção da Casa Grande e do estábulo, e em seguida, a reparação das casas dos inquilinos ea compra de sementes para o plantio haviam tomado todo o seu tempo. Além disso, ele sabiapouco sobre a escolha de tecidos e mobiliário.

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Mas ele apostava que Siobhán sabia muito.Apesar dos fantasmas ocasionais que insistiam em assombrar sua memória, ele estava feliz...

quase feliz. Tinha Ballycashel, seus cavalos, e seu povo começava a prosperar. E ele tinha afilha. Siobhán estava certa. Com um pouco de esforço, conseguira romper as barreiras que oseparavam de Kathry n.

Tudo o que estava faltando era uma mulher. Tudo o que estava faltando era Siobhán.Antes que pudesse explorar o pensamento, Ree parou no estábulo. Rory desmontou e estendeu

os braços para Siobhán. Quando a ajudou a descer, abraçou-a e enterrou o rosto em seus cachosmacios por apenas um momento, inalando seu perfume, inebriando-se de sua energia. Poderiapassar o resto da vida com aquela mulher. Queria passar o resto da vida com Siobhán.

Entrelaçando os dedos aos dela, levou-a para o interior do estábulo. O novo cavalariço, GerryKelly, já havia se recolhido, e Rory escovou o cavalo, ele próprio. Gostava de fazer isso, eespecialmente, gostava do olhar de admiração de Siobhán enquanto realizava a tarefa.

Ela vagueou pelos corredores das baias, dando palmadinhas carinhosas em Maeve e StarDancer. Então, perto da porta do escritório, fez uma pausa reverente. Ao entrar, pegou o par dedados sobre um canto da escrivaninha. Silenciosamente, Rory parou atrás dela, deslizando osbraços ao redor da sua cintura.

— Meus dados da sorte — ele explicou. — Com eles, ganhei dinheiro suficiente no jogo decraps para comprar Ballycashel. — Suas mãos subiram para acariciar os seios de Siobhánatravés do algodão fino do vestido. — Sorte dupla, como acontece com poucos.

— Você tem a estrela da sorte, sr. O’Brien — ela murmurou com um sorriso na voz. —Conte-me sobre esse jogo.

— Você quer aprender a jogar? — ele perguntou, surpreso.Siobhán se virou e entrelaçou as mãos atrás do pescoço dele, apertando-se contra o corpo

vigoroso. Excitado, ele permitiu que suas mãos corressem à deriva até a curva macia dasnádegas arredondadas, friccionando o quadril contra o dela.

— Quero saber tudo sobre você — ela pediu, vacilante.Rory a soltou abruptamente, consciente de que, se continuasse a segurá-la, não seria capaz de

conter o ímpeto de jogá-la em uma pilha de feno e fazer amor com ela até que ambos ficassemesgotados. Em vez disso, cobriu a mão que segurava os dados com a sua própria.

— Você é linda!Ela riu, um som rouco e feminino, e se desvencilhou da mão que a prendia, abrindo a palma.— Os dados, sr. O’Brien. Você ia me contar sobre eles, lembra-se?Ele riu com surpresa e prazer. Aquela faceta de Siobhán íntima e provocante era nova para

ele, e o fez amá-la ainda mais. Queria saber tudo sobre aquela mulher.Refreando os pensamentos, ele estendeu a mão para os dados. Siobhán deixou-os cair na

palma da mão, tomando o cuidado de não tocá-lo, mas o brilho provocante nos olhos verdesdeixou-a absolutamente adorável.

Rory pegou um dos dados, tentando se concentrar nas regras do jogo, e não na mulher que ofitava com sedutora inocência. Sentou-se atrás da mesa e clareou a garganta.

— O craps é jogado com dois dados — ele começou. — Já joguei craps de rua e craps debanca.

— É difícil aprender?— Não, o básico é fácil. Um menino de Nova York me ensinou em meia hora. Existem várias

modalidades diferentes, é claro.— Claro. — Siobhán se aproximou por trás dele e pôs as mãos em seus ombros.

Delicadamente, massageou os músculos tensos, e ele relaxou ao toque. — Conte-me mais.

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O cheiro dela, doce e fresco, era inebriante. Obrigando-se a manter o raciocínio claro, eleprosseguiu:

— A ideia é rolar um dos dados, e uma vez que a pontuação seja obtida, o jogador tem deconseguir o mesmo número no segundo dado. Caso contrário, o ponto é perdido, e o processorecomeça. — As mãos de Siobhán deslizaram mais para baixo, e ele arquejou.

— Vá em frente — ela incitou, com o hálito quente sussurrando em sua nuca.Deus, ela tinha mãos maravilhosamente hábeis!— O dado só poderá ser lançado de novo depois do pagamento da aposta.— E o pagamento é de valor alto? — ela perguntou com voz rouca, enquanto suas mãos o

acariciavam.— Depende da aposta. — Rory tentou e não conseguiu capturar as mãos errantes. — Mas o

craps oferece algumas das melhores chances de jogo.— E você é um bom jogador? — Siobhán mordiscou o lóbulo da orelha dele.— Eu vim para cá, não foi?— Sim, você veio. — O tom de voz mudou, tornando-se suave e macio. — Poderíamos dizer

que você aproveitou todas as chances?— Isso depende de você. — Ele se virou para fitá-la. — Você gostaria de ser enterrada com

meu povo, Siobhán? — enunciou a antiga e tradicional proposta irlandesa. — Case-se comigo.Ela recuou, quase tropeçando, e Rory segurou-a pela mão. Os olhos dela estavam arregalados

e a boca se abriu em surpresa.— Casar com você? — repetiu com voz estridente.— Casamento é uma perspectiva tão desagradável assim? — Aquela definitivamente não era

a reação que Rory esperava. Ele tentou forçar um sorriso despreocupado, mas falhoumiseravelmente. — Ou é só comigo?

— Você...? Oh, Rory, não! — Ela o envolveu com os braços ao redor do pescoço. — É quevocê é o lorde de Ballycashel, e eu...

— E você é a mulher que eu amo — ele completou. — Será que qualquer outra coisaimporta?

— Mas você é o senhorio! — ela reiterou. — E eu sou a preceptora da sua filha. O que aspessoas vão pensar?

— Que estou loucamente apaixonado pela mulher mais bonita de Ballycashel.Siobhán sorriu e tocou de leve o rosto másculo, mas seus olhos ainda estavam nublados por

uma sombra.— Uma moça da aldeia se casar com o lorde?— Não seria a primeira vez, Siobhán — retrucou ele, impaciente. — E eu não sou lorde de

nada! Sou o filho bastardo de Percival Glenleigh.— Pare com isso! — ela gritou, sentindo uma ponta de medo. Será que ainda não aceitava a

verdade de sua paternidade? — Nunca mais diga isso. Você acha que me importa que sua pobremãe não tenha se casado com Glenleigh? Tudo o que importa é que você seja quem é, RoryO’Brien, um homem bom, atencioso e honrado.

— Obrigado, meu amor. — Incapaz de resistir, ele se levantou e puxou-a para si, o alíviomisturando-se ao amor. — Mas eu não sou dono e senhor de coisa alguma. Eu tremo cada vezque alguém se dirige a mim como “milorde”. Não sou nada mais do que um emigrante irlandêsque teve sorte e voltou para sua terra natal. Se as coisas tivessem sido diferentes, eu não serianada além de um camponês que só poderia admirá-la de longe.

Se as coisas tivessem sido diferentes... O que teria acontecido se Rory nunca tivesse deixadoBally cashel?, Siobhán refletiu. Teria se apaixonado por ele em vez de Michael? Seu pai estava

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disposto a ensiná-lo em segredo, o que significava que gostava de Rory quando era mais jovem.Teria aprovado seu casamento com o homem que ele se tornara?

A resposta veio de imediato: sim. Sean Kilpatrick gostaria que sua filha fosse feliz.— Siobhán, eu juro fazer o possível para ser um bom pai para Ashleen — Rory prometeu. —

Agora sei que sou capaz, e que não sou como Seamus Doherty ou Glenleigh Percival. Imaginoum menino com cabelos escuros como os meus brincando no córrego com Kathry n e Ashleen, emeu coração chega a doer de tanto amor.

— Sim, Rory — ela murmurou por fim, emoldurando o rosto dele entre as mãos.Seus olhos se encheram de lágrimas, e uma única gota brilhante deslizou pela face. Rory

secou-a com o polegar, quase com medo de ter esperança.— Eu vou me casar com você. — Ela viu o sorriso ansioso brincando nos lábios sensuais. — E

teremos uma vida longa e feliz juntos.Quando Rory a puxou para si e a abraçou com força, Siobhán proferiu uma prece silenciosa

para que os quatro fossem felizes juntos.Mas os fantasmas do passado ainda pairavam sobre eles, e lá no fundo, ela sabia que não

poderia haver felicidade enquanto os irmãos Kerrigan os assombrassem.

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Capítulo XXII

— O senhor morava mesmo aqui, papai? — Kathryn franziu o nariz quando olhou para a casaem ruínas. — Parece mal-assombrada.

Rory teve de rir.— Kathryn, minha menina querida, metade das casas na Irlanda são assombradas. Há poucos

lugares neste país que não tenham pelo menos alguns fantasmas. — Ele ficou sóbrio de repente,apertando os olhos contra o sol de verão. — Mas esta casa não é assombrada por nada, a não serpor recordações antigas.

— Recordações ruins, papai?Ele olhou atentamente para a filha. Ela era uma criança perspicaz.— Sim, Kathry n. São más recordações.— O senhor foi infeliz em Ballycashel, papai? Foi por isso que sua família se mudou para a

América? Há muita gente que partiu durante a Grande Fome. A sra. Desmond me contou. Massua família foi para a América muito antes de ficar sem comida. Por quê?

Porque meu padrasto era um bastardo, Rory respondeu para si antes de vestir a habitualmáscara de frieza. Antes de responder, saltou da garupa de Ree e ajudou Kathryn a desmontar dopônei. Enquanto caminhavam, contou à filha sobre o passado.

— Meu pai não era um homem bom, Kathryn. Ele costumava bater na minha mãe e emmim. Estava convencido de que as ruas dos Estados Unidos eram pavimentadas com ouro, e foipor isso que nos levou para lá.

— As ruas eram pavimentadas com ouro para o senhor — ela ressaltou com um sorrisoastuto.

— Sim, mas eu tive de trabalhar para conquistar minha fortuna. Seamus, meu pai, não queriatrabalhar. Ele passava a maior parte do tempo nos bares, esperando que eu levasse o dinheiropara casa.

— Mesmo o senhor sendo só um menino?— Mesmo assim.Graças a Siobhán, o passado já não tinha o poder de magoá-lo, mas Rory ainda sentia uma

onda de prazer no olhar indignado do rosto da filha.— Não era justo! O senhor deveria ter estudado, como eu faço!Rory sorriu.— Ah, eu não podia. Meu... pai não sabia ler e escrever, e não queria que o filho soubesse

mais do que ele.Felizmente Kathryn não notou a pequena hesitação ao se referir a Seamus. Ela ficou pensativa

enquanto acariciava o focinho de Star Dancer.— Seu pai era o meu avô, não era?Seamus Doherty, avô de Kathryn? O pensamento era obsceno, ainda que não tanto quanto a

ideia de Percival Glenleigh ser o avô de sua filha. Silenciosamente, Rory acenou com a cabeça,imaginando o que estava acontecendo por trás daqueles olhos azuis que pareciam ler sua alma.

— Estou contente que ele esteja morto — disse Kathryn com uma decisão repentina. Entãoolhou com ansiedade para o pai, temendo uma repreensão.

Seria daquela forma que ele olhava para Seamus Doherty? O pensamento atingiu Rory comoum golpe. Não havia medo real em Kathryn, apenas um leve desconforto, como se elaprecisasse explicar seus pensamentos. Ele ajoelhou-se para que os olhos de ambos ficassem nomesmo nível, esquecido da umidade que penetrou no tecido da calça.

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— Por quê? — perguntou, delicadamente.— Porque ele o machucava — respondeu ela com sinceridade. Estendendo a mão pequenina,

acariciou-o no rosto. — E ele machucou sua mãe. O senhor está certo, papai. Ele não era bom.Não gostava do senhor. A sra. Desmond disse que tenho sorte de ter um pai como o senhor.

Ah, Siobhán... O amor...— Ela disse?— Sim. E disse que o senhor trouxe Ballycashel de volta à vida após a Grande Fome, e que

deu sementes aos inquilinos para cultivar os campos e reparou as casas mesmo sem recebernada em troca. Ela disse que o senhor lhes deu esperança e que o proprietário anterior não teriafeito isso. E ela me disse o quanto o senhor me ama, embora eu já soubesse.

A garganta de Rory se apertou.— Você sabia, querida?Kathry n meneou a cabeça com veemência.— Oh, sim. Eu sei que o senhor é ocupado, mas sempre encontrou tempo para mim. Sentava-

se comigo todas as noites no barco para a Irlanda, mesmo achando que eu estava dormindo. Eunão estava — acrescentou ela com um brilho travesso nos olhos. — Eu fingia estar dormindopara ouvi-lo cantar para mim.

Rory teve de piscar para afastar as lágrimas.— Eu amo você, Kathryn — disse com voz rouca. — Mas eu tinha medo de ser como meu

pai. Foi por isso que, às vezes, pareci distante. Eu estava com medo de machucar você.— O senhor nunca poderia me machucar, papai! — A ideia parecia absurda para Kathryn, e

seus olhos se arregalaram com indignação. — O senhor nunca poderia machucar ninguém. Ficofeliz por ter vindo para a Irlanda — acrescentou de repente.

— É mesmo? — Foi a vez de Rory ser surpreendido. — Por quê?— O senhor está feliz aqui. Não foi feliz em Baltimore depois que mamãe morreu. Então,

quando fomos para Nova York esperar a passagem do navio, eu sabia que o senhor estava commedo de voltar, embora não soubesse por quê. Agora, sei que o senhor estava com medo daslembranças que deixou para trás.

— Sim — Rory afirmou com convicção. — Eu estava. Mas agora eu as enfrentei e ascoloquei para fora.

— E se não tivéssemos vindo, nunca teríamos conhecido a sra. Desmond.Rory prendeu a respiração. Kathryn adorava Siobhán desde o primeiro momento em que se

conheceram, mas teria percebido a extensão do relacionamento com ele?— Você é muito afeiçoada a sra. Desmond, não é? — sondou.Kathry n assentiu vigorosamente com a cabeça.— E a Ashleen também. Eu sempre quis ter uma irmã, e ela é como se fosse minha irmã. —

Ela fez uma pausa reflexiva. — Eu gosto de pensar que a sra. Desmond é como uma mãe paramim. O senhor sempre me disse que minha mãe era bonita, bondosa e amorosa, e a sra.Desmond é assim.

— Sim, ela é. — Linda. Gentil. Amorosa. Siobhán era tudo isso e muito mais. Rory tomouuma decisão em frações de segundo. — Kathryn, o que você acharia se eu lhe dissesse que gostomuito da sra. Desmond também? Que gosto tanto, na verdade, que a pedi em casamento?

O rosto de Kathry n se iluminou como a noite de Quatro de Julho na América, iluminada porfogos de artifício.

— Oh, papai! E o que ela disse? Ela disse que sim, não é? Eu não consigo imaginar quealguém não queira se casar com o senhor!

O tom orgulhoso e possessivo aqueceu o peito de Rory . Ele se sentiu lisonjeado e infinitamente

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grato. Como deixara de ser um completo estranho para a filha, tornando-se um pai amado emtão pouco tempo?

Ele sabia a resposta. Siobhán. Ela lhe mostrara o homem que se escondia sob a carapaçaexterior. Ela desvendara seu coração e alma. Ela lhe mostrara o amor.

— Obrigado, filha. E ela disse que sim, mas ainda é segredo. Não contamos a ninguém, nemmesmo a Ashleen ou vovó Meg.

Os olhos de Kathry n se arregalaram.— Quer dizer que eu sou a primeira pessoa a saber?Rory assentiu, e ela se jogou nos braços do pai.— Oh, obrigada, papai! Eu estou tão contente por ter me escolhido para ser a primeira a

saber! Prometo que não vou contar a ninguém, nem mesmo a Hannah ou Ashleen, mesmo sendominha melhor amiga. A sra. Desmond vai contar a ela em breve, não é? — acrescentou. —Porque acho que não consigo guardar segredo por muito tempo. Eu iria explodir!

Rory deixou escapar uma risada trêmula quando a abraçou.— Vamos contar em breve — prometeu. — Talvez amanhã mesmo. Agora venha. — Ele

estendeu a mão. — Vamos cavalgar pelos campos e ver como estão se desenvolvendo a cevada,o milho e as batatas.

— Sim, papai. — Kathry n estendeu a mão e hesitou. — Papai?— Sim, meu amor?— Isso significa que posso ficar aqui?— Ficar aqui? — Ele franziu a testa. — Você achou que a casa era assombrada. Por que quer

ficar aqui?Ela balançou a cabeça vigorosamente, com os olhos baixos.— Não aqui. Quero dizer em Bally cashel.Se podia ficar em Bally cashel? Onde mais ela ficaria?— Kathryn? — Ele a segurou pelo queixo, forçando-a a encará-lo. — É claro que você vai

ficar aqui. Vamos viver em Bally cashel com Ashleen e a mãe dela. — Um pensamento lheocorreu. — Você quer voltar para Baltimore?

— Não! Oh, não, papai, eu amo a Irlanda! Gosto de estar perto do mar, e as pessoas sãofelizes e amigáveis. Eu adoro ouvir Paddy Devlin tocar gaita, e o violino de Liam Brady émágico.

O lábio inferior de Kathry n tremeu, enviando fissuras através do coração de Rory. Umasuspeita terrível invadiu sua mente.

— Kathryn? Para onde você acha que eu a mandaria?Ela piscou, mas as lágrimas encheram os olhos e se derramaram pelo rosto.— Ashleen ouviu o senhor e a sra. Desmond conversando... — Ela soluçou. — Ela me contou

que o senhor ia me mandar para uma escola em Londres. Oh, papai, por favor, não! Por favor,não me mande embora! Eu vou ser uma boa menina, prometo! Não vou incomodá-lo quandoestiver ocupado com os cavalos ou com a propriedade. O senhor nem vai perceber que estou lá.

— Kathryn! — O coração de Rory pareceu estourar. Ele nem sequer tentou disfarçar aslágrimas quando segurou a filha pelos ombros e apertou-a contra si. — Minha menina querida —murmurou contra os cabelos macios. — Eu te amo. Você é uma bênção para mim, e jamaispoderia ser um incômodo. Mandá-la embora seria como expulsar a luz do sol ou impedir a maréde chegar à praia.

— Mas o senhor disse a sra. Desmond...— Eu sei o que eu disse. E fui um idiota por fazer isso. — A raiva varreu-o pela própria

estupidez impensada. — Quando eu disse que a mandaria para Londres, acreditava que, se você

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estivesse longe, estaria protegida.— Protegida de quê?Rory riu sem humor.— Boa pergunta, meu amor. De mim, principalmente. Mas a sra. Desmond me convenceu de

que o amor é o que realmente importa, que vale a pena qualquer risco no mundo.— Então, o senhor não vai me mandar embora?Ele balançou a cabeça com firmeza.— Não, Kathryn, não vou mandá-la embora. Claro que, se quiser, poderá voltar para

Baltimore. Mas apenas para uma visita. Você ainda tem primos lá.— Eu sei. Mas eu pertenço a este lugar agora. Quero passar o resto da minha vida em

Bally cashel. — Ela hesitou, e então deixou escapar: — Eu amo o senhor, papai.Rory abraçou-a com força, sentindo a garganta se oprimir.— Eu também amo você, minha doce Kathry n. Amo tanto que chega a doer.— Então, vamos inspecionar as plantações?Kathryn estendeu a mão para que o pai a ajudasse a montar no pônei. Star Dancer relinchou e

empinou quando ela sacudiu as rédeas, animada com a perspectiva de cavalgar. Ree tambémparecia estar num estado de espírito excepcionalmente bom, pois dançou em um pequeno círculoquando Rory montou.

O sol brilhava sobre o milho e o trigo dourados, e realçava o rosa-pálido das flores de batata.A grama úmida de orvalho brilhava como esmeraldas, e as águas da baía Galway nunca tinhamparecido tão azuis. O ar trazia o cheiro da chuva prometida, mas por enquanto, o sol aquecia omundo com seu fulgor.

Era um bom dia para estar vivo. Que fosse sempre assim!

Siobhán esperou até Ashleen sair para brincar antes de se virar para a avó, sentada perto dofogo enquanto fazia crochê.

— Vovó Meg, eu tenho algo a lhe dizer.Meg levantou o rosto e fitou-a com seus olhos afiados.— É uma notícia boa ou ruim? Eu não tenho coração para más notícias.— Eu acho que é uma boa notícia. — A voz de Siobhán soou tímida. — Rory me pediu em

casamento.— O Senhor seja louvado! — Um sorriso alegrou o rosto desgastado. — E você aceitou? Mas

é claro que sim. Claro, é fácil ver que você roubou o coração do rapaz.— Sim, eu aceitei, vovó. Estou tão feliz! Ele já contou a Kathryn, e ela ficou contente. Sei que

Ashleen também ficará. Ela e Kathry n são como irmãs.— Como você e Nora MacGreevy , quando eram meninas.— Sim. Oh, diga que está feliz por mim, vovó Meg!— Claro que estou! Estou nas nuvens, minha filha. Por acaso você achou que eu não

aprovaria?— A senhora amava Michael. Apesar das falhas dele, apesar do envolvimento com os

Whiteboy s, a senhora o amou como se fosse seu próprio neto.— Sim, eu o amava, Siobhán. Ele era seu marido, e amava você e Ashleen. Mas ele não a fez

feliz, talvez por não ter condições. Nunca saberemos. Mas Rory tem. Eu vejo o amor nos olhosdele quando ele olha para você. E eu vejo o amor e o cuidado que ele dedica a Ballycashel. Édisso que você precisa, filha, de um homem que coloque a família em primeiro lugar. E Rory éesse homem.

Siobhán abraçou a mulher pequenina, cujo coração era maior do que toda a Irlanda.

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— Eu fiz as pazes com Michael — disse ela. — E Rory começou a fazer as pazes com ospróprios fantasmas, tanto do pai quanto de Seamus Doherty .

— Então, não há nada além de felicidade esperando por vocês.Um sutil arrepio na espinha incomodou Siobhán, e ela rezou para que os fantasmas não

estragassem sua alegria.

— Casar? Oh, Siobhán, isso é maravilhoso! E com o sr. Burke? — Nora deu um sorrisomalicioso. — Você não é a primeira a se casar com um senhorio. Oh, minha amiga, desejo-lhetoda a felicidade!

Siobhán retribuiu o abraço da amiga, aliviada. Ela odiaria se Nora a tratasse de formadiferente por estar casada com o mestre de Bally cashel.

Tom abraçou-a, e os olhos escuros cintilaram.— Isso significa que teremos de começar a tratá-la por “milady”?Siobhán e Nora riram.— Não a provoque, Tom. Será simplesmente sra. Burke, não é verdade, Siobhán?Siobhán hesitou antes de dizer:— Será sra. O’Brien.— O’Brien? — Nora repetiu. — Não entendi.Siobhán respirou fundo.— O homem que vocês conhecem como David Burke nasceu Rory David Doherty. Quando a

mãe morreu, ele assumiu o sobrenome dela de solteira e usou-o quando veio para Bally cashel afim de que ninguém o relacionasse com o passado.

— Doherty... — Nora disse, lentamente. — Você está dizendo que o sr. Burke é filho deSeamus Doherty?

— Eu sabia! Eu o reconheci! — Tom exclamou triunfante. — Nós nos encontramos no campocerta vez, depois de uma das surras de Seamus. Eu me lembro de ter perguntado se ele queria irpara minha casa até a fúria de Seamus passar. — Ele fez uma careta. — Ele me disse que issonunca iria acontecer. Muitas vezes me perguntei o que tinha acontecido com aquele menino.

— Ele foi para a América e prosperou — disse Nora. — Siobhán, há quanto tempo você sabe?— Há muito tempo — admitiu Siobhán. — No começo, Rory não queria que ninguém

soubesse quem ele realmente era. Mas agora está pronto para enfrentar o passado. Mas espere-ocontar por si mesmo — acrescentou, sabendo que seria melhor se a notícia viesse de Rory .

— Claro. — A compaixão iluminou os olhos de Nora ao pensar no menino que tinha sidotorturado por um monstro sádico como Doherty. — Oh, Siobhán, estou tão feliz por vocês dois!Quando será o casamento?

— Após a colheita.— Que Deus nos abençoe! — os amigos entoaram em coro, pois apesar de tudo o que Rory

fizera por eles, todos estavam conscientes da catástrofe que ainda poderia ocorrer se a colheitanão fosse boa.

Ou se os Kerrigan voltassem.Não, Siobhán disse a si mesma com veemência. Tinha de parar de se preocupar com

problemas financeiros. Frank e Joe Kerrigan estavam longe de Bally cashel. Eles nunca maispoderiam machucá-la, ou a alguém que ela amasse.

A última pessoa a saber foi Ashleen, e Siobhán e Rory conversaram com ela juntos.Ashleen era uma das únicas que conhecia a verdadeira identidade de Rory. Ela adorou a

notícia e bateu palmas com entusiasmo.— O senhor será meu pai, como é de Kathryn? — Ashleen perguntou. — E ela será minha

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irmã?— Sim, querida, Rory será seu novo pai — Siobhán confirmou. — E Kathryn será sua irmã.

Aliás, ela já é quase uma irmã, não é?— Sim, mamãe. Eu sempre quis ter uma irmã, e um pai também, como a maioria das outras

crianças. — O olhar duvidoso saltou entre Siobhán e Rory. — Isso significa que eu tenho deesquecer o meu pai de verdade?

Foi Rory quem respondeu, e as palavras foram direto ao coração de Siobhán. Ele pegou amão de Ashleen e deu-lhe um sorriso tranquilizador.

— Não, Ashleen — disse com gentileza. — Nunca se esqueça de seu verdadeiro pai. MichaelDesmond era um homem bom, e ele morreu com honra. Amou você e sua mãe, e morreutentando encontrar comida para vocês durante a Grande Fome. Isso é algo para se recordar comorgulho. Seu pai a amou tanto que morreu tentando salvá-la.

Os olhos de Ashleen estavam arregalados de espanto quando fitaram Rory. Siobhán sentiu ocoração se apertar no peito, e as lágrimas subiram aos olhos. Rory tinha encontrado exatamenteas palavras certas para tranquilizar Ashleen e ajudá-la a entender que poderia continuar a selembrar do pai.

Oh, como adorava aquele homem!— Tudo bem, então — Ashleen disse por fim. Em seguida, uma pequena ruga se formou em

sua testa. — Todos nós viveremos aqui com vovó Meg?— Não, querida — respondeu Siobhán. — Vamos morar com Kathryn na Casa Grande.— E Star Dancer? — O entusiasmo tomou conta de Ashleen. — Kathryn disse que eu poderia

aprender a andar de pônei um dia.— Claro que poderá, Ashleen. — Rory assegurou com uma risada. — Você conhece Gerry

Kelly , não é? Vou mandá-lo para Galway , e ele vai trazer um pônei só para você. O que acha?— É verdade? Oh, isso seria maravilhoso!Timidamente, ela deslizou os braços pelo pescoço de Rory. As lágrimas de Siobhán

transbordaram ao ver Rory abraçar a menina com uma expressão da mais pura alegria no rosto.— Posso ir até a Casa Grande contar a Kathryn? — Ashleen se afastou com o rosto afogueado

pela excitação.As sobrancelhas de Rory se arquearam.— Não.A voz aguda fez Ashleen recuar, assustada. Siobhán olhou para o rosto consternado de Rory e

seu coração se partiu por ele. Sabia que ainda estava preocupado com a segurança das meninas.Naquele momento, era o legado do abuso que ele sofrera nas mãos de Seamus Doherty que oassustava.

Rory a fitou com um apelo mudo, e Siobhán se moveu para o lado dele e colocou a mão emseu ombro, apertando levemente.

— Vá procurar vovó Meg, querida — disse à filha com voz calma. — Ela vai levá-la paracima.

Quando Ashleen saiu, Rory se virou cegamente para Siobhán e puxou-a para seus braços.— Sinto muito, Siobhán. Eu não queria assustá-la.— Você não assustou! — ela o tranquilizou, segurando-o pelos ombros. — Você nunca

poderia assustar Ashleen. Ela o ama como a um pai.— Eu vi nos olhos dela. — Inundado pela culpa, ele enterrou o rosto nos cabelos fartos, lutando

contra as lembranças. — Talvez eu seja mais parecido com Seamus Doherty do que pensava.— Pare com isso! — Ela o empurrou e o encarou. — Você não é como aquele monstro. — A

voz se manteve calma, mas intensa. — Você nunca levantaria a mão para Kathryn, para mim ou

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para Ashleen.— Como você sabe? — A desolação tomou conta de Rory .Santo Deus, nunca estaria livre do legado de Seamus Doherty?— Eu conheço você, Rory O’Brien. Sim, você tem temperamento forte, mas nunca o

despejaria em alguém, a não ser que essa pessoa realmente merecesse. E você nunca faria mala ninguém menor ou mais fraco que você. Não está em sua índole, Rory. Você é um homembom, gentil, amoroso. Acredite, meu querido — acrescentou ela, com as mãos acariciando ascostas tensas —, porque eu sei que é verdade. Ele se agarrou a ela, absorvendo o calor e o amor,deixando-os infiltrar-se em sua alma até ser preenchido com a noção de que ela o amava, que apraga em sua vida finalmente acabara.

— Eu te amo, Siobhán Desmond — ele murmurou, com os lábios se movendo ao longo dacurva suave do pescoço.

— E eu te amo, Rory O’Brien. Nunca, jamais duvide disso. E nunca duvide de sua dignidade,pois você é o homem mais digno que eu conheço.

— Com você em meus braços, eu quase acredito.Ela o abraçou, e Rory se deleitou com a sensação acolhedora. Embora, no fundo, soubesse

que ainda haveria momentos de dúvida, ele sabia que o amor Siobhán o faria vencer.

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Capítulo XXIII

— Vamos ter um ceili!O grito alegre de Paddy Devlin fez eco à algazarra dos moradores de Ballycashel ao

comemorarem a primeira colheita abundante desde a Grande Fome. As mulheres se abraçaram,e as meninas rodopiavam em círculos alegres.

Siobhán proferiu uma oração em silêncio, observando Tom arrancar as batatas graúdas daterra. Mas não pôde reprimir um suspiro ao olhar para o chalé de Tom e Nora, aindaparcialmente reconstruído. Ela sabia que Tom se irritava com a demora. Ele precisava serindependente, como fora desde a morte do pai, vítima da febre quatro anos antes. E ela sabia queNora desejava estar a sós com o marido. Afinal, eram recém-casados.

Recém-casados. Siobhán corou com o pensamento. Ela e Rory tinham decidido contar averdade a todos na comemoração da safra, prevista para a noite de sábado, quando a colheitafosse concluída. Ou pelo menos, toda a verdade que os inquilinos precisavam saber: que DavidBurke era Rory David Doherty, agora Rory O’Brien, e que ele e Siobhán se casariam em breve.Não precisavam saber todos os detalhes, apesar das fofocas locais que, Siobhán não tinha dúvida,completariam as lacunas da história.

— Você está preocupado? — ela lhe perguntara na noite anterior, aconchegada aos braçosdele numa das muitas salas vazias de Ballycashel.

— Um pouco — ele admitira, laconicamente, no estilo americano, tão diferente dasociabilidade irlandesa. — Será que me perdoarão por eu tê-los enganado? Será que pensarãoque tirei partido da situação?

Ela acariciara delicadamente o peito nu, enrolando os dedos nos pelos escuros.— Eles vão amá-lo como o fazem agora — dissera com suavidade, pressionando os lábios

apaixonado no ombro largo. — Eles saberão que você fez o que tinha de fazer. Você trouxe estaaldeia de volta à vida, Rory O’Brien. Você nos deu o dinheiro e as sementes, você mesmo nosajudou a plantar, e agora a colheita é a melhor dos últimos anos.

— Graças a Deus — ele murmurara, fechando os olhos.— E quanto a tirar proveito... Acredito que fui eu que o seduzi.Rory abafara a risada nos cabelos macios, antes de beijá-la com paixão.A voz de Nora a trouxe de volta ao presente.— Siobhán? Foi a colheita que colocou esse sorriso no seu rosto, ou está pensando no nosso

belo senhorio?O rosto de Siobhán se aqueceu, e ela viu o sorriso curvando os lábios da amiga.— Será uma grande colheita — disse, apressadamente.A expressão de Nora não deixou dúvidas de que a amiga a conhecia muito bem para saber o

que preenchia sua mente.— Sim, graças a Deus. Nossas despensas estarão cheias hoje à noite.— E amanhã vamos celebrar. — Siobhán sorriu com satisfação. — Rory verá que ele é o

melhor senhorio de todos os tempos.— Ah, é fácil ver que você está apaixonada. — Tom aproximou-se e abraçou as duas

mulheres. — Vocês já comunicaram ao padre Conor sobre o casamento?Siobhán balançou a cabeça.— Ainda não. Queríamos contar a todos primeiro. — Ela hesitou. — Rory não admite, mas

ele está preocupado sobre como receberão a notícia.Tom sorriu, um braço ainda sobre os ombros da esposa, e fez um gesto na direção dos rostos

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aliviados e gratos ao redor.— Eu diria que, depois dessa colheita, vão querer canonizá-lo, seja ele David Burke, Rory

O’Brien ou o próprio diabo.— Tom! — Nora admoestou, trocando um olhar divertido com Siobhán.— É verdade — ele retrucou, sem arrependimento. Os olhos escuros se tornaram sérios. —

Rory trouxe esta aldeia de volta à vida, e devemos agradecer a Deus por ele.— É o que eu faço todas as manhãs e todas as noites — afirmou Siobhán com veemência.— Ele ajudou a todos nós — acrescentou Nora. — Se não fosse ele, nossa casa estaria longe

de ter sido reerguida. Claro, ainda falta o telhado, mas Tom vai terminar assim que a colheitafindar.

Mas Siobhán viu o ligeiro aperto no rosto de Tom, e soube que não era suficiente para ele. Eela disse o mesmo a Rory naquela noite, sentada com Kathryn, Ashleen e Meg no chalé parasaborearem as primeiras batatas da colheita, acompanhadas de manteiga, sal e salpicadas decebolinha selvagem.

— Bem, você não pode culpar o homem por querer estar a sós com a esposa — Rorycomentou com um olhar íntimo que fez o rosto de Siobhán inflamar.

Ela lançou-lhe um olhar de advertência, mas ele apenas sorriu, imperturbável.— Não há nada que possamos fazer por eles, mamãe? — perguntou Ashleen. — Tom e Nora

sempre foram bons para nós, e eles são nossos melhores amigos, não são? A senhora sempre dizque Tom tem sido como um irmão.

— Eu sei o que poderíamos fazer! — Kathryn, que agora fazia parte de uma verdadeirafamília irlandesa, insistia em ser chamada de Katie. Ela olhou com expectativa para o pai. —Lembra-se, papai, do barn raising quando os vizinhos se reuniram para erguer o celeiro do vovô?

— O que é barn raising? — quis saber Ashleen.— Sim, Rory, rapaz, diga-nos o que é — Meg pediu, curiosa, com os olhos azuis fixos em

Rory .Ao observá-la, ocorreu a Siobhán que a avó gostava do menino que ela tinha uma vez

resgatado, e do homem que ele havia se tornado.Uma sensação cálida de felicidade a inundou, e ela rezou para que nada mudasse quando se

casasse com Rory. Sabia que a avó insistiria em ficar no chalé, onde os Kilpatrick tinham vividopor gerações. Mas, tanto ali como na Casa Grande, ela, Ashleen e a avó seriam uma família quereceberia de braços abertos tanto Rory e sua filha como qualquer outra criança com que Deus osabençoasse.

Emergindo do devaneio, Siobhán focou-se no que Rory estava dizendo. Os olhos azuisbrilhavam com entusiasmo, e um sorriso animado curvava os lábios sensuais.

— Barn raising é uma antiga tradição americana. Toda a comunidade se reúne na casa dealguém para construir o celeiro. É uma oportunidade de socializar, unida ao trabalho, e o celeirofica pronto no final do dia. Então o dono da casa oferece uma festa de celebração.

— Poderíamos fazer isso com o telhado da casa de Tom e Nora?Siobhán olhou para Rory, sentindo o amor explodir em seu peito. Apenas seu amado Rory

pensaria em algo assim no meio da safra. Esperava que ele entendesse o quanto significavaajudar Tom e Nora, que haviam estado do seu lado nos momentos melhores e piores da vida.

— Se todos trabalharmos juntos, tenho certeza de que podemos — Rory assegurou. —Conversarei com alguns dos homens. Mas não digam nenhuma palavra para Tom ou Nora —advertiu, agitando um dedo no ar. — Tem de ser uma surpresa. Vou anunciar nosso plano noinício das celebrações.

Siobhán não se conteve e atirou os braços em torno do pescoço de Rory , e a gratidão provocou

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lágrimas em seus olhos.— Você é o homem mais maravilhoso que existe!Ele a contemplou com o coração em seus olhos, como se estivessem sozinhos.— Vale a pena qualquer sacrifício para vê-la feliz, meu tesouro — murmurou de volta,

apertando a mão delicada.Foi um gesto pequeno, mas a pressão dos dedos e o olhar cálido foi o suficiente para enviar

arrepios pela espinha de Siobhán, e deixá-la ainda mais ansiosa para estar sozinha com ele.— Tom Flynn tem sido um bom amigo para esta família — Meg comentou, como se não

tivesse notado o magnetismo entre a neta e Rory. — Especialmente para Siobhán. Nora foi comouma irmã para ela desde que eram crianças. Meu coração se alegra em saber que podemosajudar essas duas boas almas.

— Sinto-me honrado em chamar Tom Fly nn de amigo — Rory declarou em tom solene. — Esou grato por tudo o que ele e Nora fizeram por Siobhán. — Ele abriu um sorriso deslumbrante, eo coração de Siobhán se aqueceu. — O que acha de levantarmos o telhado amanhã?

As meninas gritaram de alegria, e Meg meneou a cabeça, mas era para Siobhán que Roryolhava pedindo confirmação. Os olhos dela estavam novamente cheios de lágrimas de felicidade,e ela assentiu em silêncio, sem se atrever a falar em nome da alegria que mais uma vez inundouseu coração... Uma alegria que ela jamais esperara sentir novamente.

Mais tarde, deitados em um dos quartos de hóspedes de Bally cashel, com o fogo crepitandoacolhedoramente na lareira, Siobhán aconchegou-se ao lado de Rory. Uma corrente de alegria opercorreu quando pensou no quarto principal que Hannah estava ajudando Siobhán a decorar.Acariciou os cabelos da futura esposa, deleitando-se com a sensação macia sob a mão.

— Eu amo seus cabelos — murmurou, pressionando um beijo suave na têmpora. — Foi umadas primeiras coisas que observei em você. Eles brilham em torno de seus ombros como umfarol acolhedor, cheio de sol e fogo.

Ela sorriu, satisfeita.— Ah, é fácil ver que você está na Irlanda há muito tempo — comentou. — Está falando

como um poeta, sr. O’Brien.— A verdade é sempre a mesma — ele respondeu com um sotaque exagerado. — Sua beleza

me faz lembrar Maeve.— A égua ou a rainha guerreira? — Os olhos de Siobhán brilharam com malícia.— Ah, a grande rainha, com certeza!Ele a puxou para si e fez cócegas debaixo do queixo, fazendo-a gritar. Rindo, ela deu

palmadas na mão dele, mas Rory segurou os dedos finos e apertou com força.O riso morreu, deixando a consciência da paixão crepitante. Rory procurou os lábios dela,

envolvendo um dos seios fartos com a mão esquerda. A mão direita deslizou mais abaixo, até queencontrou a essência do desejo. Ela gritou, arqueando-se contra o corpo sólido.

— Você é linda — ele murmurou com voz rouca. — Mais bela do que qualquer coisa que eujá vi.

— E você já viu tanta beleza assim? — O tom era brincalhão, mas a voz soou instável,enquanto ela se contorcia embaixo dele.

— Eu já vi lugares que você não acreditaria que existem se não os vir com os próprios olhos.As majestosas montanhas Rochosas, as águas azul-esverdeadas do oceano Pacífico, o lento elamacento rio Mississípi, as varandas de ferro rendilhado em Nova Orleans. — Rory gemeuquando ela flexionou o quadril contra o dele. — Mas nenhum desses locais se compara à belezapura e simples que encontro em você, Siobhán Desmond. Minha vida e meu amor. Meu futuro.Minha para sempre.

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Ela ficou tensa em seus braços, e nuvens de dúvida embaçaram as profundezas verdes de seusolhos. Por quê?, Rory se perguntou.

— Siobhán?— Não é nada, meu coração — ela tentou tranquilizá-lo, mas a voz trêmula e incerta a

denunciou. — Foi apenas uma sensação estranha que eu tive, como se um fantasma caminhassesobre o meu túmulo.

Ele a puxou para mais perto, desejando que o amor afastasse todos os fantasmas do passado.— Não há mais fantasmas, minha querida, e não há mais sepulturas. Nunca mais. De agora

em diante, não haverá nada além de amor, riso e bons momentos. — Ele a beijou, comsuavidade a princípio, e depois com uma paixão crescente. — Principalmente amor.

Siobhán respondeu com ardor, como sempre fazia e provavelmente sempre faria, mas umfrio quase imperceptível permaneceu em seu coração.

Tentou se convencer de que não era nada. Devia ser apenas a excitação com a colheita e aproximidade do casamento.

Mas, no fundo, ela ainda estava com medo.

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Capítulo XXIV

O sol mal tinha nascido e uma névoa suave ainda pairava sobre a relva verde quando Roryouviu o burburinho do lado de fora.

Inclinando-se para fora da janela, ele observou a progressão do seu povo com algo próximo àadmiração. Liam Brady e Paddy Devlin caminhavam juntos, assobiando e ensaiando passos dedança. Mary Daly e Eileen O’Farrell carregavam cestos cobertos pendurados nos braços,decerto cheios de pães frescos. Uma carroça puxada por um burro trazia sacos de batatas e umaenorme panela de ferro de três pernas para fervê-las. E os outros também estavam lá, levandotodo alimento ou bebida de que dispunham, além de mirtilos selvagens que cresciam na floresta.Mickeen MacGreevy e a família andavam ao lado de Tom e Nora.

E, finalmente, Siobhán. Ela estava gloriosa em sua melhor saia verde e casaco combinando,com os longos cabelos vermelho-dourados presos por uma fita verde, andando com os passoslargos e confiantes de uma rainha. Ashleen e Meg estavam ao lado dela.

O mês de julho findara, e a colheita rendera bons lucros. Todos os moradores de Ballycashelestavam ansiosos para comemorar.

De repente, Rory viu-se impaciente para se juntar a eles. Apressou-se a se vestir e foi aoquarto de Kathryn. Ela já estava vestida, e fizera a higiene matinal com animada antecipação.

— É a celebração da colheita, papai. Podemos festejar o ceili com os inquilinos?Ele abraçou a filha, agradecendo a Deus por aquela linda criança.— Sim, querida. Todos em Ballycashel devem participar da celebração da colheita. E você,

está pronta?— Sim, papai. E o senhor?— Quase. Temos de cuidar de alguns detalhes primeiro. Hannah deve ter deixado uma cesta

de alimentos para nós, e precisamos ter certeza de que há manteiga.— Manteiga? Por quê, papai? — Os olhos azuis de Kathryn brilharam, e um sorriso ansioso

curvou seus lábios.Rory sorriu misteriosamente.— Tudo a seu tempo, minha querida. Agora, tenho de ir ao estábulo encontrar rédeas velhas.Rory estava ansioso como um menino naquela manhã. Na verdade, não conseguia se lembrar

da última vez que se sentira tão contente. Certamente, nunca. Seria apenas pela alegria dacelebração, ou havia algo mais?

Siobhán, foi a resposta óbvia. Rory mal podia esperar para vê-la. Ela era linda o tempo todo,mas nunca mais do que quando estava feliz.

Naquela manhã, Rory O’Brien, filho bastardo de um conde e apostador de jogos de azar, teriasua festa com o povo. Juntaria-se a eles na música, e talvez até dançasse, se a perna colaborasse.Ele seria um dos moradores de Ballycashel, nem proprietário nem inquilino, apenas mais umirlandês celebrando a colheita abundante. Naquela manhã, ele sentia que poderia conseguirqualquer coisa. Até mesmo a felicidade que lhe fugira por tanto tempo.

Siobhán sorriu com indulgência, observando Ashleen, Katie e outras meninas tecendocorrentes de margaridas e enrolando-as em volta do pescoço e dos pulsos. Ignoravam os meninosfazendo algazarra em torno delas, mas Siobhán viu um deles roubar um olhar de uma dasmeninas mais velhas, e todas se dissolveram em risos.

Os rapazes e homens mais velhos organizaram-se para jogar hurling, que, na América, Rory

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conhecera como hóquei. As jovens assistiam, encorajando seus jogadores favoritos. Logo seriahora de empilhar a lenha para acender a fogueira, mas por enquanto, todos participavam dadiversão.

Siobhán se juntou a Nora e Annie MacGreevy no pequeno bosque à beira do lago, eencheram uma cesta com framboesas silvestres enquanto conversavam. Siobhán mal conseguiuesconder o orgulho quando Annie passou a tecer louvores sobre o novo senhorio.

— Ele é muito diferente de Glenleigh, e não se enganem — Annie disse, enfaticamente. —Quando foi que Glenleigh ofereceu ajuda no plantio e na colheita? Eu não sei se é porque ele é daAmérica, mas este David Burke é um homem bom, embora mantenha aquela máscara de frieza.

Apenas Siobhán sabia o que se escondia sob a frieza habitual de Rory. Ao sentir os olhos deNora sobre si, encolheu os ombros com um sorriso.

— Ele é uma verdadeira dádiva de Deus para todos nós — Nora acrescentou. — O bom Deussabe onde Tom e eu estaríamos se não fosse por ele. E o que fez por Eileen depois que aplantação dela foi queimada? — Ela se calou, como se não quisesse falar da nuvem que aindapairava sobre a aldeia.

— Ele é um bom homem — Siobhán concordou. — Quando penso como todos nós estávamosno ano passado e como estamos neste momento, a diferença é como da noite para o dia.

— Sim, especialmente para você.A provocação permaneceu nos olhos de Nora. Rindo, Siobhán jogou um galho seco na amiga.

Nora gritou e jogou de volta um punhado de grama.— Ei, meninas! — Annie exclamou, mas havia um sorriso no rosto dela e um punhado de

ervas daninhas em ambas as mãos.Elas riram como crianças, com os cabelos e vestidos salpicados de grama e gravetos, quando

uma risada masculina as sobressaltou.— Ah, elas estão mortas com o trabalho duro, não estão, milorde? — perguntou Mickeen

MacGreevy com um sorriso atrevido para a esposa normalmente recatada.— Aparentemente, sim — concordou o senhorio.Ele endereçou um sorriso às mulheres, mas enviou uma piscadela em direção a Siobhán que

fez o rosto dela queimar.Ela se apressou a limpar resíduos de vegetação agarrados aos cabelos e à roupa.— Viemos apanhar framboesas silvestres, milorde — Nora disse com afetação.— Hum... framboesas, é? — Tom repetiu, cético.— E também nos divertir — acrescentou Nora com malícia. — Você não proibiria sua esposa

de ter um pouco de diversão, não é, Tom Flynn?— Estava se divertindo também, sra. Desmond? — perguntou Rory em tom formal, mas

Siobhán, que o conhecia tão bem, reconheceu a provocação escondida.— Sim, milorde.O que Rory fez em seguida, porém, surpreendeu até mesmo Siobhán. Ele cobriu a distância

entre eles em dois passos largos e rápidos, tomou-a nos braços e capturou a boca macia com umbeijo que a deixou sem fôlego. Quando finalmente se afastou, ela viu o brilho perverso em seusolhos e o sorriso diabólico nos lábios.

— Acho que este é um momento tão bom quanto qualquer outro para deixar as pessoas ànossa volta saber do nosso segredo, não acha, meu amor?

— Eu acho que sim — Tom se manifestou com um sorriso largo no rosto.— E que segredo seria esse? — Mickeen perguntou com cautela.Siobhán teve de sorrir. Mickeen parecia dividido entre encorajar Rory e desafiá-lo para um

duelo. Sabia que Mickeen, como todos os homens da aldeia, era superprotetores com ela, em

Page 122: Cynthia Owens - Visionvox...Estremecendo de repulsa, ela gemeu baixinho quando a língua úmida penetrou sua boca. Então, tão subitamente quanto avançaram, as mãos de lorde Percival

parte pela amizade com Nora, mas também pelo que sofrera quando Michael e Sean tinhammorrido.

— Não tenha medo, Mickeen — Rory assegurou ao homem mais velho, com o olhar fixo norosto dela, aquecendo-a por dentro e por fora. — Minhas intenções com Siobhán sãoabsolutamente honrosas. Pedi-lhe para ser minha noiva, e ela aceitou. Vamos nos casar assimque possível.

— Bem! — Annie e Mickeen trocaram olhares. — É uma grande surpresa.— Certamente — o marido concordou.— Ah, mas é apenas a primeira das muitas surpresas que planejei para o dia. — Rory deslizou

o braço em torno da cintura de Siobhán.Ela o fitou, perguntando-se se haveria algo além do que sabia. Os profundos olhos azuis

estavam brilhantes de excitação, o rosto afogueado. Ele parecia jovem, despreocupado e tãoincrivelmente belo, que ela teve de se conter para não se jogar nos braços fortes.

Naquele momento, todos os medos desapareceram. O sol brilhava no céu, o ar estava quente,a colheita fora abundante e todos estavam felizes e saudáveis.

Era o início do futuro que Rory havia lhe prometido. Um futuro cheio de felicidade, saúde eamor. Um futuro tão brilhante e tão cheio de esperança que ela mal se atrevia a acreditar na boasorte.

E, ainda assim, ela acreditou.— Estão todos aqui? — perguntou, olhando ao redor. — Nós nos distraímos com os frutos.Rory assentiu.— Os homens estão se preparando para acender a fogueira. É melhor as senhoras voltarem

para começar a lavar as batatas — acrescentou, sorrindo.Aquela era a parte favorita de Siobhán na celebração da colheita, quando a enorme panela de

ferro de três pernas se enchia com água e batatas novas, e a antecipação da festa se tornava maiselevada.

O trabalho foi acompanhado de risos e celebração enquanto as mulheres enchiam o caldeirãoe os homens cuidavam do fogo. Quando as batatas estavam cozidas, as mulheres as cobriam commanteiga recém-batida, que também acompanhava fatias grossas de pão.

Para surpresa e deleite geral, o senhorio ofereceu bacon cozido e carne de carneiro, surgidosda cozinha de Bally cashel enquanto todos estavam ocupados preparando a celebração.

— Faça um discurso, milorde! — pediu Liam Brady, colocando de lado o antigo violino queanimava a festa.

— Sim. Diga algumas palavras em homenagem à grande colheita com que fomosabençoados! — acrescentou Mickeen.

Rory olhou para onde Siobhán estava sentada, ao lado de Tom, Nora, Annie e Mickeen, e viuseu sorriso encorajador. Piscou para ela antes de se levantar para atender ao pedido.

Rory esperou até que o burburinho silenciasse, forçando-se a se manter ereto. Porém, quandoolhou para os rostos cheios de expectativas, o terror se apoderou dele. Tentou assumir aexpressão imperturbável que adotava para jogar cartas, mas falhou miseravelmente.

O que diria a eles?A culpa o oprimiu. Aquelas pessoas dependiam dele, tinham-lhe oferecido confiança e

fidelidade, e o que ele dera em troca?Mentiras.— Meus amigos — começou, com a garganta oprimida. Engoliu uma, duas vezes, e tentou de

novo. — Eu tenho orgulho de chamar todos vocês não só de meus inquilinos, mas também demeus amigos. Vim para a Irlanda como um estranho, e vocês me acolheram com o coração

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aberto.Fez uma pausa, e seu olhar recaiu sobre Eileen O’Farrell, Mary Daly e Meg. Ela deu-lhe um

sorriso e um aceno de cabeça, e o rosto de Eileen espelhava adoração.Até a expressão de dor usual de Mary parecia mais leve, suavizada pela boa comida e boa

companhia.— Mas há outra coisa — ele continuou com dificuldade. — Algo que eu não lhes contei. —

Ele respirou fundo, estremecendo, tentando impedir o súbito tremor de seus membros. — Eu vimpara Bally cashel sob falsos pretextos. Na verdade, enganei todos vocês desde o primeiromomento em que pus os pés na Irlanda.

Rory tentou bloquear os ouvidos para os suspiros chocados e os murmúrios assustados dosinquilinos. Olhou para Siobhán, viu o rosto dela se encher de compaixão e os olhos se iluminar deencorajamento. Sabia o que ele estava sentindo, e tirou forças daquela presença.

As palavras saíram com pressa.— Eu não sou David Burke, e embora use o nome Rory O’Brien, eu nasci Rory David

Doherty , em uma casa pequena nas terras de Ballycashel.Ele fechou os olhos, sentindo-se exausto, ouvindo o redemoinho de vozes em torno de si.— Doherty ? — disse alguém. — Seamus Doherty ?— Eu ouvi que ele tinha um filho — outra voz sobressaiu.— Ele não se casou com Mary O’Brien? — perguntou um terceiro.— Sim, e levou a família para a América.— E agora, ele voltou?Rory tentou respirar, mas sua garganta estava bloqueada. Manteve os olhos fechados,

imaginando o que veria quando os abrisse.Repulsa? Condenação?Ele sentiu uma mão forte e resistente em seu ombro, e abriu os olhos para ver Tom Flynn de

pé a seu lado, com uma expressão intensa nos olhos escuros enquanto se dirigia aos vizinhos.— David Burke ou Rory O’Brien, este homem foi a salvação do vilarejo — declarou Tom. —

Ele pode ter nos enganado sobre sua verdadeira identidade, mas vejam o que fez por nós comsuas ações. Ele reparou nossas casas, nos deu sementes e até nos ajudou a plantar e a colher.

Rory abriu a boca para expressar agradecimento, mas antes que dissesse uma palavra, EileenO’Farrell se aproximou e parou do seu lado. Parecia uma menina, com os olhos brilhantes e umsorriso largo no rosto abatido.

— O senhor salvou minha vida! — ela gritou. — Pois, se não fosse por ele, eu não teria umacolheita este ano. — Ela lançou um olhar de soslaio para um rapaz engajado em uma conversaintensa com uma ruiva bonita, uma das irmãs de Paddy Devlin, Rory deduziu.

Quando outras vozes começaram a cantar-lhe louvores, Rory sentiu as lágrimas brotando nosolhos. Aquelas pessoas, mais uma vez por unanimidade, lhe ofereciam apoio. Sua gratidãoaumentou, dando-lhe a coragem de dizer a única coisa que poderia fazer com que fosse um delesou separá-lo para sempre daquela comunidade.

Ele levantou uma mão, em silêncio, pedindo calma.— Há mais uma coisa que tenho a dizer. — Ele procurou e encontrou Siobhán com o olhar.

Estendeu a mão direita, e ela respondeu com um sorriso brilhante e foi ter com ele. — Eu pediuma das filhas de Bally cashel para ser minha noiva. Siobhán Desmond e eu vamos nos casar.

Siobhán parecia explodir de orgulho ao lado dele, e Rory a enlaçou pela cintura.— O que acham? — perguntou aos presentes. — Vocês nos darão sua bênção?Um coro de alegria explodiu no ar, e Rory virou-se para Siobhán. Ela acariciou seu rosto com

gentileza antes de pousar os lábios doces nos dele.

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Quando interrompeu o beijo, Rory viu Tom Flynn ainda de pé a seu lado, com a mãoestendida.

— Parabéns, Rory — disse ele, calmamente, abolindo a formalidade de vez. — Que aelevação da estrada vá ao seu encontro, que o vento esteja sempre às suas costas, que o sol brilhequente em seu rosto e a chuva caia suavemente sobre seus campos. E que Deus o segure napalma da mão.

— Que a manhã lhe traga alegria e a noite lhe traga a paz! — outra voz se fez ouvir.— Que seus problemas cresçam pouco e suas bênçãos aumentem muito.— Vamos ter um ceili!Quando Liam Brady deu o grito tradicional, Rory retirou as rédeas velhas e jogou-as na

corrente do rio. A alegria tomou conta de todos, e Kathryn o imitou, jogando uma colherada demanteiga na água.

— Isso deve nos proteger dos duendes e garantir a abundância de leite para o próximo ano! —Rory gritou com entusiasmo. — Paddy , rapaz, toque uma melodia alegre!

— Sim, milorde!Paddy trocou um sorriso com Liam e levou a gaita aos lábios. Liam posicionou o violino e

acompanhou o amigo, numa combinação perfeita de alegria e descontração.— Obrigado, meu rapaz! — Rory gritou por cima da música. — E enquanto estamos reunidos,

por que não nos unimos a Tom e Nora Flynn para construir um telhado novo? Eles já estão longede casa há muito tempo.

— O quê? — Tom olhou para ele, espantado, e Rory sentiu uma onda de satisfação.Nora deu um soluço emocionado, cobrindo a boca com a mão, os olhos arregalados de

alegria.— Na América, há uma tradição antiga chamada barn raising, onde toda a comunidade se

reúne para construir um celeiro. Bem, nós só precisamos de palha. Podemos fazer isso? — A vozde Rory subiu acima dos murmúrios de surpresa e prazer.

— Sim, milorde, é claro que podemos! — gritou Mickeen MacGreevy .— Que o céu o proteja, senhorio! Nos orgulhamos de nosso lorde! — exclamou Mary

Crowley .Nora ficou ao lado do marido, com a mão presa firmemente à dele. Timidamente, ela jogou

os braços em volta de Rory e o abraçou.— Deus o abençoe, Rory O’Brien.— Você é a melhor amiga de Siobhán — Rory disse, simplesmente. — E você e Tom são

como uma família para ela. Estou satisfeito de poder ajudar, e ficarei orgulhoso e honrado sevocê e Tom me dedicarem sua amizade.

A música de Paddy mudou abruptamente para uma melodia pungente que traria lágrimas aosolhos até do mais insensível dos homens.

E Rory não era um deles. Enquanto ouvia a combinação de alegria e tristeza tão singular àmúsica irlandesa, sua garganta se apertou. Seus olhos encontraram os de Siobhán, cercada porsimpatizantes.

Ela nunca lhe parecera tão adorável. O sol poente se refletia em seus cabelos, brilhando comoo ouro mais precioso. O rosto se iluminara com a felicidade, e ela riu de alguma observação deMary e bateu o pé no ritmo da música.

Rory tomou uma decisão repentina. Jogando de lado a bengala, caminhou corajosamentepara sua amada e, sentindo-se como um rei, inclinou-se sobre a mão dela.

— Minha senhora — disse em tom galante. — Posso ter a honra de uma dança?— Sou eu quem fica honrada, gentil senhor. — Siobhán fez uma reverência e colocou a mão

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sobre a dele.Quando dançava com Siobhán, Rory percebeu que não havia dor ou rigidez na perna ferida.

Ao contrário, sentia-se forte e corajoso, como se pudesse conquistar qualquer coisa.Ela o fitou por um longo momento e disse por fim:— Você foi muito corajoso hoje, Rory .— Não se trata de coragem. — Ele hesitou. — Eu não poderia viver com a mentira por muito

mais tempo, de qualquer maneira.— Você abriu seu coração — ela insistiu em voz baixa. — Eu sei como foi difícil. Você é um

homem maravilhoso, meu amor. Quando vai aceitar isso?— Provavelmente nunca — ele admitiu com um sorriso irônico.— Talvez, se eu continuar dizendo, você consiga acreditar. — Ela levantou a mão para

acariciar o rosto dele. — Eu te amo, Rory O’Brien.Os braços fortes apertaram-se em volta de sua cintura, e ele murmurou com a garganta

apertada:— Você pode me dizer isso que sempre que quiser, também.— Eu te amo com minha mente, meu coração e minha alma — ela concluiu com um suspiro.A música continuou até o anoitecer. Siobhán dançou com todos os presentes, e até mesmo

Rory conseguiu acompanhar as melodias mais calmas com Meg e Eileen O’Farrell. Tentoualguns passos de uma valsa com Hannah, e os dois riram da falta de habilidade dele.

Finalmente, quando as primeiras estrelas começaram a cintilar no céu, chegou o momento deacender a fogueira. Rory jogou a tocha acesa no topo da pilha, e uma grande alegria explodiuentre os inquilinos.

Ele segurou Siobhán perto de si, com o rosto enterrado nos cabelos perfumados, enquanto ospresentes entoavam as bênçãos tradicionais. Sentia-se emocionado demais para falar naquelemomento. Viera de tão longe para finalmente encontrar amigos, um lar, uma família. Poderiaconfiar que não seriam todos arrebatados?

Enquanto a fogueira ardia, iluminando o céu da noite, um homem atarracado, de cabelosvermelhos, acendeu um cachimbo de barro e analisou a cena à distância, sentado no toco de umcarvalho caído. Então olhou para o companheiro, um homem alto e loiro.

— Ele é mesmo Rory Doherty, não é? — Joe Kerrigan murmurou, especulativamente. —Bem, o que você acha disso?

— O que você vai fazer com ele? — perguntou o segundo homem.— Exatamente o que planejamos. Será ainda mais adequado agora — acrescentou Kerrigan

com um sorriso feio.Com isso, ele jogou as cinzas do cachimbo, olhando com alegria cruel, enquanto a brasa se

apagava na relva.

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Capítulo XXV

— Mamãe, a senhora está linda! Você não acha, Katie?— Oh, sim, sra. Desmond! Está maravilhosa. Apenas... — Kathryn hesitou, olhando incerta

para a futura madrasta.Siobhán virou-se para ela, pensando em como as duas meninas pareciam irmãs em seus

vestidos cor-de-rosa.— O que está incomodando você, querida?— É só... bem, o vestido... — Kathryn se apressou a acrescentar: — É lindo, mas nos Estados

Unidos, quando uma moça se casa, ela sempre se veste de branco.— Ah. — Siobhán sorriu, compreensiva. — É um costume encantador, de fato. Mas aqui na

Irlanda, é considerado boa sorte usar azul para se casar.— A senhora se casou com um vestido azul com o meu pai? — perguntou Ashleen em tom

preocupado.— Sim. Eu me lembro como se fosse ontem. Sua vovó Meg estava lá, e todas as minhas

irmãs. E tio Sean.De súbito, a garganta de Siobhán se fechou e os olhos se encheram de lágrimas. Às pressas,

ela virou a cabeça para ajeitar a bainha do vestido.— Mamãe? — Ashleen tocou-lhe no ombro. — Mamãe, qual é o problema? Por que a

senhora ficou triste?Siobhán piscou rapidamente e virou-se para as duas meninas, forçando um sorriso.— Eu não estou triste, filha. Só estava pensando no dia em que me casei com seu pai. Meu

próprio pai já tinha falecido, e seu tio Sean me acompanhou até a igreja. — Ela acariciou o rostoda filha. — Você se parece tanto com ele!

— Isso a deixa triste? — perguntou Kathryn.— Um pouco — admitiu Siobhán. — Sinto falta de Sean cada vez que vejo o sorriso de

Ashleen, ou a vejo piscar os olhos da mesma forma que ele fazia. Mas um pouco do meu irmãovive nela, e agradeço ao bom Deus por isso. — Ela sacudiu a cabeça e forçou um sorriso. — Masnão é momento para pensamentos tristes. Hoje é um dia para ser feliz, pois todos nós teremosuma vida maravilhosa juntos!

— Por favor, Deus — ecoaram duas vozes, e elas se viraram para ver Meg e Nora entrar nochalé.

Meg desempenharia o papel de mãe da noiva com prazer, e Nora, sua melhor amiga, o dedama de honra.

— Você está uma visão e tanto, minha querida.Meg ajeitou a saia cheia do vestido de seda azul-safira. Rory insistira em encomendar o tecido

na melhor loja de Londres e, juntas, Siobhán, Nora e Meg o haviam costurado.Nora afofou as mangas até os cotovelos, ornamentadas com finas rendas, e examinou

criticamente as ferraduras de boa sorte que ela mesma havia bordado.— Falta apenas uma coisa — disse ela, apanhando o cesto com margaridas e murta recém-

colhidas para tecer uma coroa de flores.Meg fez um pequeno ramalhete das mesmas flores, pronto para ser transportado para a

igreja.Siobhán abraçou-as e puxou as duas meninas, e todas riram com uma alegria que permeou o

ar. Então, olhou para Nora.— Tom está pronto?

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Nora assentiu. Dessa vez, Tom desempenharia o papel de pai da noiva, e Siobhán nãoconseguia pensar em alguém mais indicado para entregá-la ao homem que ela adorava.

— Está esperando por você lá fora — Nora confirmou com um sorriso. — Disse que queriaficar longe de todo o alarido feminino.

Elas riram, e Meg pegou a coroa de flores.— Coloque na cabeça, moça. Está na hora. Há uma multidão esperando para levá-la à igreja.Segundo a tradição, a noiva caminhava até a igreja ao lado da mãe e do pai. Siobhán sorriu,

cheia de orgulho por estar ao lado da avó, de Tom, de sua própria filha e da filha que seriarecebida em seu coração.

— Vejo-a na igreja, querida. Boa sorte — Nora desejou, despedindo-se com um abraço e umbeijo.

Um momento depois, Siobhán saiu do chalé para encontrar Tom à sua espera. Seus olhos seiluminaram com carinho quando a viu.

— Ah, querida, você é a imagem da beleza! — Ele inclinou-se para abraçá-la. — Você teráum bom marido em Rory O’Brien, Siobhán. E estou honrado de entregar essa bela noiva.

— Você sempre foi como um irmão para mim, Tom — disse Siobhán com um sorriso terno.— Você e Nora sempre foram meus melhores amigos. Não sei o que eu teria feito sem vocênesses últimos anos. — Ela fez uma pausa, hesitante. — Nada vai mudar, não é, Tom? Entre nós,quero dizer. Eu amo Rory mais do que tudo no mundo, mas eu não poderia suportar ficar sem asua amizade.

— Nada vai mudar, minha amiga. Nossos filhos serão amigos dos seus filhos, e eles crescerãojuntos. E quem sabe? Talvez a minha filha se case com o filho do senhorio.

Siobhán riu com os olhos marejados de lágrimas de felicidade.— Ou seu filho se case com a nossa.Tom riu junto com ela.— Está pronta?Oh, sim, estava pronta desde a primeira vez que vira o desconhecido alto e enigmático no

cemitério. Ela respirou fundo e assentiu. Segurando o braço de Tom, iniciou a longa caminhadaem direção ao futuro.

— Deixe-me olhar para você. — Hannah parou diante de Rory com os olhos brilhando deorgulho maternal. — Ah, que belo homem você se tornou! Siobhán é uma mulher de sorte por secasar com um homem fino como você, Rory O’Brien.

Rory sorriu e olhou para o espelho com a garganta subitamente seca.— Sou eu quem tem sorte, Hannah. — Seus olhos encontraram os dela no espelho.— Sim, você tem — ela admitiu, acariciando o braço dele. — Siobhán o ama. Ela adora

Katie. Mas o mais importante, ela o ensinou a amar e a se perdoar.Era verdade, Rory compreendeu pela primeira vez. Ele havia se perdoado, não só pela morte

da mãe e de Charlotte, mas por todos os pecados que tomara para sua alma a partir do momentoem que soubera que seu verdadeiro pai era o homem mais odiado do vilarejo. Pela primeira vezdesde que era menino, estava livre para viver a própria vida, para se dedicar a seus cavalos e aseus inquilinos, mas, sobretudo, para amar a família.

E tudo por Siobhán.Sim, ela lhe ensinara a amar. Rory sorriu quando pensou nas maneiras de ensinar Siobhán a

amar. Começaria naquela noite, logo que o casamento fosse celebrado.— Tire essa expressão do rosto, Rory O’Brien, ou o padre Conor saberá que você está tendo

pensamentos pecaminosos antes do casamento. — O brilho nos olhos de Hannah contrariava a

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severidade no tom de voz.Rory se virou e envolveu-a em um abraço que levantou a pequena mulher do chão e

provocou uma risada.— Eu não gostaria de escandalizar o bom padre, Hannah — disse em tom respeitoso, embora

o sorriso fosse impenitente. — Portanto vou me casar e banir todos os pensamentos pecaminosospara o quarto, aonde eles pertencem.

Eles se reuniram na porta da pequena capela que Siobhán conhecia desde que era criança.Porém, tudo parecia diferente. O céu ostentava um azul muito mais profundo do que o habitual,contrastando com o branco das nuvens. A brisa que soprava da baía de Galway carregava amaresia de forma mais acentuada do que nunca, e o vento de outono que começava a esfriartrazia consigo o cheiro da relva. Os gritos das gaivotas e maçaricos eram musicais e acolhedores.

E ela nunca deparara com uma visão mais bonita do que Rory O’Brien esperando-a para secasarem.

Ele tirou-lhe o fôlego, alto e elegante no traje azul-escuro. As pontas dos cabelos negros caíamsuavemente sobre os ombros. Usava luvas de couro preto e bengala de ébano que brilhava aosraios de sol que se infiltravam pelos vitrais. Era o homem mais bonito que ela já vira, Siobhánpensou, estremecendo quando ele segurou sua mão e entrelaçou os dedos aos dela com umsorriso.

— Você está linda.A voz rouca, cheia de promessas, provocou-lhe uma onda de arrepios, e ela sorriu de volta,

transmitindo cada gota de amor que sentia por ele.— E você... — disse com voz embargada. — Você está magnífico, Rory O’Brien.Ele estendeu o braço com um gesto tímido.— Então, vamos entrar e nos casar?Ela deslizou os dedos sobre os bíceps rígidos.— É tudo o que eu quero, meu amor.No primeiro casamento, Siobhán era tão jovem e inexperiente que mal notara a família e os

amigos que se reuniram para desejar felicidades a ela e a Michael. Prestara pouca atenção aosvotos matrimoniais, pensando apenas que logo seria uma mulher casada.

Dessa vez, tudo estava em seu foco. Tudo era diferente. Havia Tom e Nora, casados e felizes,finalmente. Oito anos atrás, eles eram apenas amigos, enquanto Tom a admirava de longe.Quando Danny Reilly morrera, havia sido Tom quem ajudara a curar Nora.

Havia Eileen O’Farrell e Mary Daly, sentadas com Meg e Brady Liam. Todos tinham perdidofilhos, filhas e netos, e mesmo assim, Siobhán ouviu o suspiro extasiado de Mary quando amulher mais velha viu seu vestido de casamento. Eileen silenciou-a com palavras sussurradas,sem dúvida, referindo-se ao pecado da inveja, Siobhán pensou com um sorriso disfarçado.

E então, como se fornecessem um vínculo do passado com o presente, havia Ashleen e Katie.Katie estava linda, Siobhán pensou com orgulho. Mas o olhar mais longo permaneceu emAshleen, trajando o melhor vestido que já possuíra. Siobhán lembrou-se do prazer nos olhosarregalados da filha ao abrir a caixa que Rory encomendara de Londres. Sua filha nuncaesqueceria aquele dia.

E nem Siobhán. Embora a igreja se enchesse de amigos, ela se ressentiu da falta dos que nãoestavam presentes. No entanto, se lembraria para sempre do sorriso acolhedor e dos murmúriosde bênçãos daqueles que a rodeavam no dia de seu casamento.

Ela olhou para Rory, repentinamente tímido. Quando viu a expressão no rosto dele, não soubese devia rir ou chorar. O olhar de alegria e surpresa, como se tivesse percebido subitamente apresença daquelas pessoas, longe de desprezá-las, traduzia a mais pura felicidade.

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Quando chegaram ao altar, onde o padre Conor os esperava, ela sussurrou:— Eles o amam e respeitam. Aceite-os, meu amor.Ele tentou esboçar um sorriso, mas vacilou. Siobhán sabia que os sentimentos dele estavam

perto da superfície. Adorava ser a única a quebrar as defesas e encontrar o homem que havia ládentro. Jamais fora permitido a alguém a visão das emoções daquele homem.

A cerimônia foi simples, como ambos queriam, e as palavras atemporais proferidas nosotaque suave do padre Conor ficariam gravadas para sempre na alma de Siobhán.

— Na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença... até que a morte ossepare.

No momento de colocar a aliança, a voz de Rory ecoou em sua cabeça, profunda e amorosa.— Siobhán, receba esta aliança como sinal do meu amor e fidelidade, em nome do Pai, do

Filho e do Espírito Santo.Foi então que ela olhou para seu dedo, onde o anel simples de Michael descansava até aquela

mesma manhã. Em seu lugar, Rory colocara uma delicada joia de prata, um anel de Claddagh, aaliança de casamento tradicional irlandesa com o desenho de duas mãos se unindo para apoiarum único coração, encimado por uma coroa simbolizando amor, amizade e lealdade.

— Que o amor e a amizade reinem entre nós — Siobhán murmurou, tocando o anel comreverência.

— Foi de minha mãe — explicou Rory. — Ele pertencia à minha avó. Foi a única coisa queSeamus não vendeu, provavelmente por não saber que ela ainda o guardava.

— Então vou valorizá-lo muito mais — Siobhán prometeu.— Pode beijar a noiva, sr. O’Brien — o padre autorizou com os olhos brilhantes.Com infinita delicadeza, Rory emoldurou o rosto de Siobhán em suas mãos, fitando-a como se

pudesse ver sua própria alma. Com gentileza, pousou os lábios nas pálpebras, nas faces e na pontado nariz. Finalmente, cobriu-lhe os lábios com um beijo pleno de ternura.

— Eu te amo, Siobhán O’Brien — sussurrou, usando o novo nome pela primeira vez. — Eujuro que passarei o resto da minha vida provando isso.

— E eu te amo, Rory O’Brien — ela respondeu, tentando em vão manter a voz sem tremer.— Para todo o sempre.

Com um suspiro triunfante, ele a tomou nos braços e girou, até que ambos ficassem semfôlego. Apenas vagamente, ouviram os aplausos dos espectadores quando correram para fora,recebendo o sol brilhante do outono.

Nenhum dos dois notou o par de olhos azuis que assistia por trás de um antigo teixo no terrenoda igreja.

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Capítulo XXVI

A carruagem os levou de volta para Ballycashel tarde naquela noite, depois de umacelebração que incluiu toda a aldeia.

Rory parou os cavalos na entrada principal, saltou para o chão e sorriu para Siobhán.— Bem-vinda ao lar, sra. O’Brien.Ela foi amparada pelos braços fortes, e Rory sustentou-a como se carregasse um travesseiro

de plumas. Porém, não a libertou imediatamente. Manteve-a nos braços, fitando os olhosbrilhantes por tanto tempo que a deixou apreensiva.

— O que foi, Rory , meu amor? — ela perguntou em voz baixa, acariciando a face adorada.— Lar — disse ele, simplesmente. — Agora, Ballycashel é um verdadeiro lar... graças a

você.— E seremos felizes aqui — garantiu ela, alisando as linhas finas ao redor da boca e dos olhos

do marido. — Eu te amo, Rory .Com olhar faminto, ele acariciou as costas macias, e as mãos se moveram com languidez

para a curva das nádegas.— Eu adoro você, Siobhán O’Brien. Por você, fui capaz de me perdoar. Você me permitiu

deixar o passado descansar em paz e me ensinou a amar. Agora eu sei que amar não significaperder.

Os braços dele deslizaram em torno do pescoço de Siobhán e ela o puxou para mais perto,pressionando o corpo contra o dele enquanto ondas fluidas de felicidade a percorriam.

— E você curou meu coração ferido e mostrou-me como confiar novamente.— Podemos encarar o futuro agora — continuou ele, os dedos tateando as curvas suaves. —

Juntos, com a certeza de que nada poderá nos machucar de novo, se Deus quiser. — Ele sorriu.— Você me transformou em um irlandês, Siobhán O’Brien.

— Você sempre foi um irlandês, Rory O’Brien — ela respondeu, sorrindo também. —Apenas precisou de tempo para se encontrar.

— E não quero perder esse novo homem — ele confessou, fervorosamente. — O velho RoryO’Brien, o jogador, o esbanjador, está morto.

— Agora você é pai, marido e proprietário de terras. Um membro bem-amado e respeitadoda comunidade. Um homem que os mais jovens podem ter como exemplo e com quem os maisvelhos podem contar em tempos de necessidade.

Ele sorriu.— Necessidade. É uma palavra interessante. Eu necessito de você, Siobhán. Eu preciso de

você agora, na nossa cama. Preciso estar dentro de você, sentir seu calor ao meu redor,agarrando-se a mim. Quero capturar seus gritos de prazer com a minha boca. Quero fazer amorcom você até que nenhum de nós possa respirar.

As palavras evocaram imagens que a fizeram derreter por dentro.— Eu quero o mesmo — disse ela, vacilante. — Leve-me para o quarto, Rory. Prove-me que

estamos verdadeiramente casados. Mostre-me que ninguém nunca vai nos separar novamente.Que, se Deus quiser, ficaremos juntos para sempre.

— Então, deixe-me levá-la para além dos limites, minha querida.Siobhán já havia visto o quarto principal antes. Os escuros painéis de carvalho com cortinas

vermelhas no dossel e nas janelas escureciam o aposento, emprestando-lhe um aspecto lúgubre.Ela havia prometido a Rory que traria luz para o ambiente o mais rapidamente possível. Agora,via que não seria mais necessário.

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Em algum momento entre o dia em que aceitara se casar com Rory e aquele momento, eletransformara o ambiente sombrio em um jardim encantado de luz.

Os painéis escuros e sombrios tinham sido substituídos por papel de parede de fundo verde-claro, estampado de botões de rosa amarelos e ramos de hera. As cortinas do dossel, de umdelicado rosa-salmão, combinavam com a colcha estampada com ramalhetes de rosasamarelas. Vasos de cristal sobre as mesas de cabeceira exalavam o perfume doce das rosas deoutono. As janelas abertas revelavam o céu noturno cheio de estrelas ao redor da esfera de pratabrilhante.

A cama também era nova, com um colchão fofo e macio onde ela se afundou com umsuspiro satisfeito.

— Oh, Rory, como você encontrou tempo para fazer tudo isso? É o quarto mais bonito que jávi! — exclamou alegremente, sentindo-se no paraíso.

— Eu tenho uma visão mais bela em mente — Rory murmurou com voz rouca. — A visão devocê nua sobre os lençóis.

Siobhán estendeu os braços num convite sem palavras, ao qual ele foi incapaz de resistir.Rapidamente tirou o paletó, desabotoou o colarinho da camisa e caminhou até a cama.

Ajoelhado, cobriu a boca macia com a sua, enterrando as mãos nos gloriosos cachos ruivos.Siobhán respondeu com uma paixão vertiginosa, permitindo que a língua ávida penetrasse em

sua intimidade. Suas mãos deslizaram sob a camisa, as unhas marcando levemente as costaslargas, e Rory estremeceu com um gemido de prazer.

Ele se afastou para contemplá-la. Nunca se cansaria de admirar sua esposa. Tinha vistomuitas beldades, tanto na alta sociedade de Nova York como no mundo da elite de Baltimore. Noentanto, nenhuma daquelas mulheres jamais se compararia à sua Siobhán.

Ela era adorável. Desejava perder-se naqueles olhos verdes, quentes, profundos e misteriosos.O fogo definia a luz de cobre dos cabelos reluzentes, contrastando com a pele alva e acetinada.Ansiava por provar os lábios rubros como morangos maduros, sabendo que seriam infinitamentemais deliciosos que a fruta de verão. E o corpo era um templo para ser adorado eternamente.

Mas não era apenas beleza que incendiava seu coração. Siobhán possuía sinceridade,otimismo e protegia ferozmente aqueles que amava... incluindo a ele próprio.

A simples noção de que ela o amava enviou uma onda de desejo por suas veias.— Siobhán — murmurou contra a boca úmida. — Tenho de possuí-la. Quero estar dentro de

você. Agora.A resposta foi um gemido de prazer que o excitou ainda mais.— Oh, Rory ... sim, por favor. Faça amor comigo agora.Ele não precisou de um segundo convite. No entanto, demorou-se em despi-la, removendo as

peças de roupa com torturante vagar para beijar cada parte do corpo que descobria. Roçou apele fresca com os lábios antes de aquecê-la com paixão e acariciar cada centímetro do corpodelicado.

Siobhán mergulhou os dedos nos cabelos do marido enquanto ele mordiscava seu pescoço e olóbulo da orelha. Ele enterrou o rosto no vale dos seios, aspirando o perfume feminino, e elaarquejou, contorcendo-se sob o corpo másculo.

— Rory ... oh, Rory , por favor!Ele levantou a cabeça e fitou os olhos nublados de paixão.— Em breve, minha querida — prometeu. — Deixe-me tomar o meu tempo, Siobhán. Quero

amá-la lenta e docemente. Quero fazer este momento durar para sempre.Ela esboçou um sorriso.— Não sei se vou sobreviver...

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— Então, que a morte seja doce.Rory precisava tê-la naquele momento. Posicionou-se sobre ela, e quando foi recebido com

paixão, penetrou-a e enterrou-se na doçura cálida com um grito incoerente. Incapaz de protelar oclímax por mais tempo, gritou o nome da esposa ao explodir dentro dela, espalhando sua sementeantes de cair, exausto, sobre ela.

Abraçando-a, inalou golfadas de ar enquanto Siobhán desenhava círculos preguiçosos com osdedos sobre sua pele umedecida. Ele roçou o nariz nos cachos macios das têmporas e sorriu comlanguidez.

— É como se eu conhecesse o seu corpo desde sempre... como se voltasse para casa, e minhacasa fosse um lugar que nunca sequer imaginei.

— Foi maravilhoso, meu amor — ela murmurou, sonhadora. — Eu rezo para que seja sempreassim.

Como se uma sombra tivesse entrado na sala, Rory sentiu um calafrio repentino no fundo docoração. Girando o corpo, deitou-se ao lado dela e se agarrou aos cabelos perfumados, nãoquerendo considerar qualquer outra possibilidade.

— Será — prometeu, tentando em vão ignorar os fantasmas que atormentavam suaconsciência. — Estaremos sempre juntos, Siobhán. Diga, meu tesouro — implorou, tomado porum súbito tremor. — Diga que você nunca vai me deixar.

Como se estivesse lendo sua mente, ela se aninhou contra o peito largo, acalmando-o com asmãos e os lábios.

— Nunca vou deixar você, Rory . Eu sempre vou amá-lo. Sempre estarei aqui com você.Como Rory queria acreditar! Ele a fitou, sonolenta após o ato de amor, e puxou as cobertas

sobre os ombros delicados.— Durma — ordenou em voz baixa. — Foi um longo dia.Ela assentiu, mas os olhos se abriram por completo com um sorriso terno.— Eu te amo, Rory .Ele pressionou um beijo na ponta do nariz benfeito no momento exato em que ela adormeceu.

Afastou-se do corpo relaxado, confiante, envolvido em seu abraço, tentando não acordá-la.Deitado, observou-a dormir à luz do fogo que morria na lareira e tentou relaxar, dizendo a si

mesmo que se preocupava desnecessariamente.Não ouvira mais nenhuma palavra sobre os irmãos Kerrigan. Havia várias pessoas em quem

confiava cuidando do paradeiro deles, e ninguém tinha visto ou ouvido nada sobre Frank ou JoeKerrigan desde o dia em que haviam deixado Ballycashel. Não houvera incêndios criminososdesde que o chalé de Tom e Nora fora queimado. Não havia nenhuma razão para acreditar queocorreriam mais ataques.

Por que, então, se sentia aterrorizado? Por que estava tão apreensivo pela segurança de suafamília?

Siobhán se mexeu no sono, murmurando palavras incompreensíveis antes de se aninhar emseu peito. O instinto de proteção o dominou, e ele pressionou um leve beijo no rosto adormecido.

— Eu vou protegê-la — prometeu, sabendo que ela não podia ouvi-lo. — Com o meu amor ea minha vida, eu juro que ninguém irá machucá-la novamente.

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Capítulo XXVII

— Oh, Nora, é uma notícia maravilhosa! — Siobhán abraçou a amiga. — Tom já sabe?— Ainda não — Nora admitiu com timidez. — Eu acabei de descobrir. Eileen me disse esta

manhã.— Bem, e ninguém melhor do que ela para saber, não é? — Eileen O’Farrell era a parteira de

Ballycashel havia anos. — Para quando é?— Início da primavera. Você não acha que é uma época linda para se ter um filho?Siobhán sorriu, lembrando-se da própria excitação quando soubera que estava esperando

Ashleen.— Qualquer época é maravilhosa para se ter um filho, Noreen. Eu sei que você e Tom serão

os melhores pais que esta criança poderia ter.— Espero que sim. Oh, Siobhán, mal posso acreditar! Estou assustada, feliz e animada ao

mesmo tempo.— E provavelmente, cansada também — acrescentou Siobhán, avaliando a amiga com olhar

experiente. De fato, Nora parecia cansada, com círculos escuros sob os olhos. No entanto, umbrilho de esperança iluminava o rosto pálido.

— Sim, e como! — Nora riu com tristeza. — Encontro-me com sono no meio da tarde, emeus seios estão inchados. Mas pelo menos, não tenho enjoos.

— Então, você está com sorte. Quando fiquei grávida de Ashleen, nada parava no meuestômago de manhã durante os primeiros três meses! É curioso... senti o mesmo esta manhã. —Siobhán refletiu ao perceber o que estava dizendo.

Ela sentira náuseas quando se levantara, recusando o passeio com Rory, Katie e Ashleen quehavia se tornado hábito desde o casamento. E na noite anterior, estremecera de dor quando Roryesbanjava atenção apaixonada sobre seus seios. Ela adormecera nos braços do marido, o quenunca havia acontecido antes. E seu ciclo havia cessado desde a primeira noite em que se deitaracom ele.

Estava esperando um filho!Um bebê... Um pedacinho de gente. Uma menininha, talvez, que seria parecida com a irmã

mais velha e o tio. Ou um menino robusto, com os cabelos negros do pai e os mesmos olhos azuise alma de poeta.

Uma criança. Um filho de Rory .Ela apertou as mãos no rosto afogueado e olhou para Nora, mal ousando acreditar na

evidência. A amiga sorriu, compreendendo o significado daquele olhar, e estendeu as mãos.— Siobhán, você também? Lembro-me de como ficou na gravidez de Ashleen. Seus olhos

estão com o mesmo brilho.Os lábios de Siobhán tremeram, e uma excitação insuportável brotou dentro dela.— Oh, Nora, é verdade, não é? Ambas estamos esperando bebê!— Por favor, Deus, que nossos filhos cresçam juntos! Você pode imaginar nossa alegria se

ambas forem meninas?Perdida em pensamentos, Siobhán não respondeu. Rory ficaria feliz com o bebê, ela sabia,

mas ele também teria dúvidas? Oh, não sobre o bebê, apenas sobre a capacidade de ser um bompai.

Naquele mês que se sucedera ao casamento, ela vira o relacionamento dele com Katie eAshleen desabrochar. Ele ensinara Ashleen a montar com extrema paciência. Katie o adorava.Estavam mais próximos que nunca. Porém, ela ainda via um muro invisível entre o marido e

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aqueles a quem ele amava.Será que aquele bebê os aproximaria, tornando-os um todo? Ou serviria para afastá-los?— Siobhán? — A voz preocupada de Nora penetrou sua consciência. — O que foi, querida?

Você não está feliz com o bebê?— Oh, é claro que estou! Só não sei como Rory vai reagir.— Ele ficará feliz, assim como Tom.Siobhán hesitou.— Rory não é como Tom, Nora — disse com cautela, acrescentando com um sorriso irônico:

— Tudo seria mais fácil se eles fossem iguais. — Fez uma pausa, tentando coordenar ospensamentos. — Tom é um homem simples, honesto e sincero. Cresceu com a mãe e os irmãosque Deus lhe deu, e não quer nada além de constituir família e morrer aqui em Ballycashel. MasRory ... não é assim.

— Ele teve uma vida difícil — comentou Nora com simpatia em seus olhos castanhos.— Sim. O pai, Seamus Doherty, o espancava por nada. Quando viviam na América, ele

trabalhava enquanto Seamus passava todo o tempo nos bares. Não permitia que Roryfrequentasse a escola porque não queria que o filho soubesse mais do que ele.

— Oh, céus! O homem era um monstro!— Rory é um bom pai para Katie, e ela o adora. Mas às vezes, ele se preocupa.— Em ser pai?— Em ser como Seamus.Nora arquejou.— Mas ele nunca encostou a mão em uma criança inocente!— Jamais! — concordou Siobhán. — Ele nunca faria mal a ninguém menor ou mais fraco

que ele. Você e eu sabemos disso.— Mas Rory não?Siobhán balançou a cabeça em negativa.— Não. Ele diz que há uma escuridão nele, e sim, às vezes eu sinto a raiva latente sob a

superfície, embora nunca dirigida a qualquer outra pessoa. Ele clama contra a injustiça, eprotege com todo o seu ser aqueles a quem ama.

Sua garganta se fechou, e ela lutou contra as lágrimas, alcançando instintivamente a mão deNora para receber o conforto oferecido pela amiga.

— Siobhán, não se aborreça agora. Ele ficará feliz quando souber do bebê, tenho certeza.— Tenho tentado provar que ele é bom pai e marido, Nora, mas é tão difícil! Rory

simplesmente não acredita na bondade que há dentro dele, e nada que eu faça ou diga oconvence.

Nora passou o braço em volta dos ombros dela, puxando-a para perto.— Não chore, querida. Você e Rory estão casados há poucas semanas. Com o tempo, você

vai convencê-lo de que ele é digno do seu amor e o de seus filhos.— Rezo para que esse dia chegue.— Agora, vá para casa — aconselhou Nora. — Vá contar a boa nova ao seu marido, e trate

de se alegrar.

Siobhán fez uma pausa na porta do estábulo. Se Rory não estava ali, não tinha ideia de ondemais poderia procurar. Percorrera a casa toda, os jardins, todos os anexos, e não encontraranenhum sinal dele.

Ao ouvir vozes, ela hesitou antes de entrar. Rory não estava sozinho. Gerry Kelly, ocavalariço, devia estar com ele. Bem, ao menos o encontrara. Ela percorreu o corredor das baias

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e parou defronte ao escritório. Endireitando os ombros, abriu a porta.— Rory ?Ele se virou e sorriu.— Olá, meu coração — cumprimentou-a em tom gentil e acolhedor. Acenou para Gerry , que

puxou a aba do boné de pano e saiu.— Eu pensei que nunca o encontraria! — ela desabafou.— Estava procurando por mim? — Rory franziu a testa, intrigado. — Há algo errado?A compaixão rasgou-lhe o coração. Nunca haveria um momento em que Rory relaxaria a

guarda e confiasse na felicidade que poderia ser deles?Aproximando-se, ela o enlaçou pelo pescoço e pressionou um beijo suave na face.— Nada está errado, meu amor. Na verdade, é exatamente o oposto. — Ela respirou fundo,

armando-se de coragem. — Estou esperando um bebê, Rory . Nós vamos ter um filho.— Um filho! — Ele enrijeceu, e o coração de Siobhán se apertou.O que aquela reação poderia significar? Raiva? Medo?Abruptamente, Rory se afastou. Siobhán começou a tremer. Os ombros largos se tornaram

rígidos, e mão esquerda massageou a perna ferida.— Tem certeza?Ela assentiu com a cabeça, tentando ler a expressão velada nos olhos azul-escuros.— Tenho os mesmos sintomas de quando fiquei grávida de Ashleen.— Um bebê... — ele repetiu, como se não conseguisse acreditar.— Sim, um bebê. Um irmãozinho ou irmãzinha para Katie e Ashleen. Um menino, talvez, que

vai adorar cavalos e poesia, assim como você. Ou uma menina encantadora que o adore comoas meninas mais velhas. — As palavras vieram mais rápido, e ela tentou se acalmar. — Oh,Rory, por favor, diga que está feliz. Eu sei que você ama as meninas. Você não pode encontrarespaço em seu coração para amar outra criança, uma criança gerada a partir do nosso amor?

Fora a coisa errada a dizer. Ela percebeu no instante em que viu a angústia crua que deflagrouo rosto bonito antes de ser substituída pelo desafio de jogador, a expressão que ela odiava acimade todas.

Os olhos se tornaram frios e distantes, e um sorriso sardônico entortou a boca.— Você não se lembra, meu amor? — ele perguntou em tom cortante. — Eu pensei que

podia, mas não posso amar. Não é de se admirar, com a minha história de vida.O gelo na voz dele lançou uma onda de arrepios pela espinha de Siobhán.— Não acredito nisso. E nem você, Rory .— Eu sou assim — ele rebateu, abrandando o tom. — Pense. Meu pai natural era um monstro,

você sabe disso melhor do que ninguém. Percival Glenleigh era um bastardo insensível quesangrou seus inquilinos, deixando-os morrer de fome diante dos próprios olhos, e...

Quando ele hesitou, Siobhán se confortou com o fato de ele não ser tão cruel a ponto delembrá-la de Michael e Sean.

— Rory ...— E o homem que me criou? — Ele interrompeu com uma risada áspera. — Seamus

Doherty era um valentão que me batia e matou minha mãe. Eu certamente nunca aprendi sobreo amor com ele. Talvez seja incapaz de amar, porque não sou digno de amor.

— Pare com isso!Ela desejava sacudi-lo e fazê-lo ver que era tão diferente dos dois homens que tinham

dominado sua vida como uma erva daninha e uma rosa. Mas, como?— Você tentou me salvar, Siobhán — ele continuou como se não tivesse escutado. — Você

fez o melhor. Mas eu sou amaldiçoado desde o dia em que nasci. Inferno, eu sou uma praga

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desde o momento em que fui concebido!— Não!Mais uma vez ele ignorou o grito agonizante.— Talvez você devesse ir embora. Pegue Ashleen e volte para a casa de Meg. Leve Katie

também. Ela a ama como filha. Você pode ir para a América como tinha planejado. Katie aindatem família em Baltimore. Ela ficará melhor sem mim.

As palavras a atingiram como uma bofetada.— Não posso acreditar que esteja me dizendo isso! Você sabe o quanto Katie o adora. Ela

precisa de um pai, assim como a criança em meu ventre. Não quero vê-lo sentindo pena de simesmo, Rory O’Brien. E não vou deixá-lo.

Ele deu um sorriso terno e tão dolorosamente triste que a assustou.— Você provavelmente estaria em melhor situação, minha querida. Olhe para toda a dor que

lhe causei. Só vou fazer com que sofra mais se você ficar.— Estou disposta a arriscar — disse ela em voz baixa. — Não se lembra do que eu lhe disse?

O amor vale qualquer risco no mundo. Eu te amo, Rory O’Brien. Nada vai mudar isso.A mão dele se firmou na bengala de ébano.— Eu também te amo. — A voz era rouca e triste. — Mas às vezes, o amor não é suficiente.Ele sufocou o protesto de Siobhán com um beijo apaixonado. Porém, depois de apenas um

momento, empurrou-a para trás.O beijo de Judas não poderia ter sido mais doce.Siobhán cobriu a boca com as mãos trêmulas, como se para manter o beijo ali, e assistiu,

impotente, quando Rory se virou desajeitadamente e desapareceu na névoa da noite.

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Capítulo XXVIII

Rory se afastou de Ballycashel por três dias, os mais longos de sua vida. Quando fugiu dapropriedade após o confronto com Siobhán, ele não sabia para onde ir. Impulsivamente, pulou abordo da primeira traineira a caminho de Galway e se instalou num pub onde conhecia oproprietário. Passou os três dias sentado à mesa pequena num canto do bar esfumaçado, bebendouísque e resmungando baixinho.

Um bebê!Um filho que adoraria cavalos e poesia como ele. Um filho. Um garoto que se pareceria com

ele, que seria como ele. Um menino que ele poderia ensinar a ler e a escrever, a amar as antigaslendas da Irlanda, que montaria com desenvoltura e cavalgaria pela propriedade com ele, que setornaria amigo dos filhos dos inquilinos.

Ou uma filha que o adoraria.Uma filha. Uma menina bonita que seria parecida com a mãe, cujos olhos verdes brilhariam

com vida e amor.E essa criança necessitaria do pai.Pai. Será que a criança que viria o chamaria de “papai”? Ou será que o veria com medo e

ansiedade, mantendo-se longe dele para não ser espancado simplesmente por estar vivo?Rory gemeu e balançou a cabeça, esfregando os olhos ardentes. Ele não era Seamus Doherty .

Não era sequer remotamente parecido com ele.Ou era?Você não é como aquele monstro !, a voz de Siobhán ecoou em sua mente tão claramente que

ele teve de se forçar a não se virar para vê-la através da fumaça. Você é um homem bom, gentil,um homem amoroso. Nunca, jamais duvide disso.

No entanto, como poderia não ter dúvidas? Ele crescera sem conhecer outra coisa além deviolência e crueldade. Como podia ter certeza de que, se o filho o desafiasse ou a filha fosseatrevida, ele não lançaria sua raiva e destruiria o espírito delicado da criança?

Eu conheço você, Rory O’Brien, o fantasma de Siobhán disse a ele. Sim, você temtemperamento forte, mas nunca o despejaria em alguém, a não ser que essa pessoa realmentemerecesse. E você nunca faria mal a ninguém menor ou mais fraco que você. Não está em suaíndole, Rory.

— Mas, e se eu fizer...?— Perdão, senhor?Rory ergueu o rosto, sem perceber que tinha falado em voz alta, e balançou a cabeça,

envergonhado.— Não foi nada.O outro homem fez uma pausa para estudar Rory por um momento antes de falar novamente.— Eu o conheço, senhor? Parece-me familiar.Rory o examinou, e a penugem em sua nuca se eriçou.— Não creio. Talvez tenha me visto de passagem no último inverno. Meu nome é O’Brien —

acrescentou com cautela, já que tinha usado Burke em todas as outras ocasiões na cidade. —Moro perto da costa, a cerca de doze quilômetros daqui.

Os olhos do estranho se afiaram.— Há uma Casa Grande por ali, não é? Ballycashel, se não me engano.Todos os sentidos de Rory entraram em alerta.— E como sabe disso?

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— Eu tenho um primo lá, Dermot O’Shea. Talvez o conheça.Dermot O’Shea!Cuidado, Rory advertiu a si mesmo. Poderia ser apenas coincidência.— Eu conheço esse homem. Ele tem terras de pequeno porte.O estranho assentiu e ficou parado, como se esperasse ser convidado a sentar. Rory, no

entanto, permaneceu em silêncio.— Prazer em conhecê-lo, senhor — disse finalmente, e acenou com a cabeça antes de se

afastar.Os sinos de alarme soaram no cérebro de Rory. Dermot O’Shea. O fato de ter parentes na

cidade de Galway não significava nada, raciocinou. Ainda assim, não conseguiu afastar asensação de desconforto que o percorreu à menção do nome.

Aquele homem poderia tê-lo seguido de Ballycashel? Ele era primo de O’Shea, mas apesar deRory nunca ter confiado no inquilino preguiçoso, não havia nada que o ligasse aos irmãosKerrigan.

Mas e se O’Shea revelasse seu plano para capturar o incendiário?Poderia ser apenas a ansiedade de um homem tentando salvar a própria pele... Ou poderia

indicar um alerta de seus instintos. Ele tinha sentido o mesmo mal-estar pouco antes de Charlottee Jamie morrerem. Sentira-se assim antes de ser baleado no cais em Nova York, anos atrás.

Com um suspiro, Rory rejeitou os sentimentos, dizendo a si mesmo que era mera superstição.Porém, com tudo o que estava em jogo agora, ele poderia se dar o luxo de continuar ignorandoos sinais de alerta?

Se havia a mais ínfima possibilidade de Siobhán, Katie e Ashleen estarem em perigo, aresposta era não.

Ele tinha de ir para casa. Tinha de ter certeza que sua família estava a salvo.— Garçom, traga-me a conta — pediu, enfiando a mão no bolso para retirar um punhado de

moedas.— Está de saída, senhor? — perguntou o dono da espelunca.— Sim — Rory declarou, com o mais autêntico sotaque irlandês. — Estou indo para casa.

Siobhán permaneceu imóvel na cama, olhando sem ver para o vaso de rosas do outono queHannah substituía a cada manhã. Descobrira que, quanto mais devagar se levantasse, menos sesentiria enjoada.

Sabia que era tarde. Ela ouvira as meninas sair para o passeio matinal havia tempo, e a casafervilhava com a atividade dos criados. Porém, parecia haver um acordo tácito para nãoperturbá-la até que ela saísse do quarto.

Fazia três dias. Três dias longos e vazios, sem o sorriso de Rory, três dias sem o senso dehumor irônico. Três intermináveis noites solitárias sem o amor apaixonado do marido, seus dedosacariciando-a com paixão, seus braços fortes a aquecendo enquanto ela adormecia.

Três dias. Onde ele estava? Estaria sozinho em algum lugar, meditando sobre que tipo de paiseria para o filho que estava por nascer? Por que não lhe enviara nenhuma mensagem? Ele deviasaber que ela e as meninas estavam preocupadas.

E não fora a única a sentir a falta de Rory. Katie e Ashleen tinham perguntado por ele, e elalhes dissera que ele tinha ido para Galway averiguar um novo plantel. As meninas aceitaram aexplicação, mas perguntaram por que não tinha ido com ele.

— Porque eu queria ficar aqui com vocês — ela respondera, sentindo-se péssima por mentir.Gostaria de ter ido com o marido, mas é claro, não mencionou que Rory não a convidara.

Os criados eram mais difíceis de enganar, particularmente Gerry Kelly, o cavalariço-chefe

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que sabia tudo que havia para saber sobre cada cavalo em Bally cashel. Para ele, disse apenasque Rory tinha negócios na cidade de Galway e voltaria logo.

Mas, e se não voltasse? A lembrança dos frios olhos azuis ainda enviava calafrios ao seucoração. Será que estava sendo sincero ao pedir que ela fosse embora? Será que realmente nãoqueria aquela criança? Será que realmente acreditava que era incapaz de amar?

A ideia era tão absurda que uma pálida imitação de sorriso curvou os lábios de Siobhán.Ninguém sabia melhor do que ela as profundezas do amor de que aquele homem era capaz.

Ao ouvir uma batida na porta, ela se sentou devagar.— Entre.Esperava que não fosse alguém com uma pergunta sobre o paradeiro de Rory, à qual não

saberia responder.Foi Hannah quem abriu a porta, com um sorriso simpático vincando o rosto alinhado.— Como se sente, milady?Siobhán olhou fixamente para a mulher mais velha, e teve a certeza de que ela já sabia sobre

sua gravidez.— Você sabe, não é?— Que você está esperando um filho? Eu suspeitava. Então, é verdade?Siobhán acenou com a cabeça, com os olhos cheios de lágrimas.— Sim, Hannah, é verdade. Eu disse a Rory há três dias, e não o vi desde então.O sorriso de Hannah desapareceu, e o rosto assumiu um ar consternado.— Ele está assustado com a ideia de uma nova criança, não é?A afeição na voz da mulher mais velha fez brotar lágrimas nos olhos de Siobhán.

Rapidamente, Hannah se aproximou da cama e a abraçou.— Bem, moça, não fique chorando — ela murmurou. — Tem de pensar na criança que está

esperando. Nosso rapaz vai chegar a um acordo com ele mesmo em breve, e então estará devolta com uma braçada de presentes para você e para o bebê.

— Eu não quero uma braçada de presentes — Siobhán soluçou. — Eu só quero Rory. E queroque ele ame essa criança tanto quanto eu.

— Ele vai amar, querida. Ele vai amar. Rory só precisa de tempo — Hannah aconselhou,sabiamente. — Ele precisa de tempo para aceitar o bebê e a ideia de que pode amar umacriança sem feri-la. E vai conseguir. Nosso Rory é um rapaz sensível.

— Espero que você esteja certa. Mas aconteça o que acontecer, eu nunca vou deixar de amá-lo, Hannah. Vou esperá-lo para sempre, se for preciso.

— Eu sei disso, querida. — Hannah deu uma palmada carinhosa no ombro dela e se endireitouabruptamente. — Mãe de Deus, estou ficando caduca! Vim lhe dizer que Tom Fly nn está aqui.Ele disse que tem uma mensagem de Rory .

— Tom? Com uma mensagem de Rory? Mas por que ele contatou Tom? Tem certeza de queé para mim? — As perguntas saíram num só fôlego, e ela saltou da cama com a emoçãocorrendo nas veias. — Diga-lhe que vou descer num minuto, por favor, Hannah — pediu,vestindo-se às pressas.

Hannah assentiu e examinou o rosto corado de Siobhán, agradecendo a Deus secretamentepor ela estar voltando à vida.

— Tom!Siobhán entrou como um furacão na biblioteca. Tom levantou-se e estendeu as mãos para ela.

Ansiosa, apertou os dedos dele nos seus e o conduziu para a poltrona ao lado da lareira.— Você tem notícias de Rory?

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— Sim. Ele enviou uma mensagem dizendo que está em Galway .Galway ! Assim como ela suspeitava.— O que mais ele disse?Tom considerou gravemente o rosto franco e sombrio.— Pediu-me para ficar de olho em você e certificar-me de que tudo estava bem em

Bally cashel.— Isso é tudo? — O desapontamento esmagou seu coração. — Ele não disse mais nada?Tom balançou a cabeça.— Sinto muito.Siobhán lutou para não demonstrar angústia, mas como sempre, Tom parecia adivinhar seus

sentimentos.— Não fique assim — ele pediu com ternura. — Você tem de pensar no bebê.Ela o fitou com os olhos marejados.— Nora lhe contou?— Sim. E presumo que Rory não tenha ficado feliz ao ouvir a notícia.Ela mordeu o lábio quando Tom se sentou a seu lado.— Oh, Tom, eu não sei como Rory está se sentindo. Você conhece a história dele, assim

como eu. Ele se julga incapaz de amar um filho como deveria por ter sido criado sem amor. Elese acha indigno de amor.

Tom passou o braço em torno dela, e Siobhán descansou a cabeça no ombro dele, como tinhao hábito de fazer quando era criança e buscava consolo no amigo.

— Ah, Siobhán, quem pode dizer qual de nós é digno de amor? Olhe para Nora e para mim.Levei anos para fazê-la me notar, e agora estamos casados e esperando um filho. Ter lutado peloamor dela significa que eu sou mais digno de amor do que Rory? Ele é um homem bom. Dê-lhetempo para perceber isso.

— Eu lhe dei tempo! — ela protestou. — Tentei assegurá-lo de que ele não é nada parecidocom o pai. Dei-lhe todo o meu amor. O que mais posso lhe dar?

— Tempo — aconselhou Tom com sabedoria. — É tudo o que podemos lhe oferecer. Ele vaivoltar. Rory a ama mais do que a própria vida.

— Bem, é melhor que seja logo — disse ela com um sorriso sem humor. — Ou eu mesmairei buscá-lo em Galway !

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Capítulo XXIX

— Ele chegou! Papai voltou!— Mamãe, tio Rory chegou!— Graças a Deus — Siobhán murmurou com o coração disparado.Ela correu escada abaixo, mal contendo a excitação. Juntou-se a Katie, Ashleen e Hannah no

hall de entrada e olhou pelas imensas portas de carvalho escancaradas a tempo de ver Rorydesmontar de Ree.

Ele parecia mais bonito que nunca, com os cabelos negros despenteados pelo vento e o mantopreto flutuando como asas em torno dos ombros largos. Os olhos azuis se afiaram quando olhouem torno da propriedade. Porém, os círculos escuros sob os olhos e as linhas profundas em tornoda boca denunciavam cansaço. Ele saltou da garupa do garanhão com agilidade e, como que pormagia, Gerry Kelly apareceu para levar o cavalo até o estábulo.

Finalmente, ele se voltou para a casa e a família.Siobhán limitou-se a observá-lo à distância, ao contrário de Ashleen e Katie, que correram

para cumprimentá-lo, e Hannah, seguindo em ritmo mais lento.Rory abraçou cada uma delas, e no momento em que o olhar da esposa o atraiu, ele se

afastou.O coração de Siobhán se destroçou no peito. Rory não tinha voltado para ela.Descendo os degraus da varanda com pernas trêmulas, ela se moveu lentamente na direção

do marido, estudando-o com atenção num esforço de ler seus pensamentos e avaliar seu estadode espírito. Parando apenas a uma curta distância, apertou as mãos nos bolsos da saia e seesforçou para manter a calma.

— Então, você voltou.Rory assentiu com a cabeça, evitando o contato visual.— Nunca pretendi ir embora.— Poderia ter me avisado — disse ela, com mais ênfase do que pretendia.— Tom não lhe entregou minha mensagem?— Que mensagem? — A raiva cresceu dentro dela. Desejou esmurrá-lo por ser tão teimoso.

— Achei que a mensagem era para Tom, e não para mim.— Pedi-lhe para comunicar onde eu estava. — A voz permaneceu calma e a expressão fria e

rigidamente controlada, mas Siobhán notou que ele se inclinava com na bengala com mais pesoque o habitual.

Talvez não fosse tão indiferente como pretendia demonstrar, ela pensou com esperança.— Oh, ele me disse onde você estava — ela assegurou em tom gélido. — Eu já imaginava

que tivesse ido para Galway . O que eu queria saber era quando, e se voltaria.— Eu disse que não pretendia desaparecer para sempre.Ah! Finalmente, uma leve oscilação na voz! Os lábios sensuais se comprimiram numa linha

fina, e Siobhán viu o esforço que custou a ele para manter a calma estudada.— Achou que eu tinha abandonado você?— O que eu deveria pensar, depois de ouvi-lo dizer que eu ficaria melhor sem um monstro

como você? Talvez esteja certo. Afinal, um homem que é incapaz de amar não é capaz de criarum filho.

Siobhán sabia que estava sendo dura, mas sua intenção era tentar desesperadamente provocaruma reação, fazer com que ele se sentisse vivo, pois apenas permitindo-se sentir ele poderia sepermitir amar.

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— Talvez você realmente seja como seu pai — continuou, examinando o rosto dele paradiscernir a resposta. — Ou eu deveria dizer seus pais, tanto Percival Glenleigh como SeamusDoherty ? Um cruel e insensível, o outro brutal e sádico. Talvez você tenha razão. Talvez eu devapensar em proteger as crianças de você.

As palavras provocaram uma reação imediata. O coração de Siobhán se estilhaçou no peitoquando o rosto de Rory empalideceu e os olhos se enevoaram com uma tempestade de tormento.Um músculo se tensionou no queixo, e a mão que segurava a bengala estremeceu.

— Você acha que eu prejudicaria meu próprio filho?A voz dele era baixa e perigosa, mas havia agonia em suas profundezas. Ela piscou, lutando

com bravura para reprimir as lágrimas. Não podia fraquejar. Tinha de romper as barreirasdaquele homem teimoso.

— Por que não devo pensar assim? — exigiu, aliviada por sua voz não demonstrar a tensãoque sentia. — Desde que o conheci, você tentou me convencer de que é um monstro. Durantemeses, tentou me convencer de que é indigno de amor e incapaz de qualquer sentimentoprofundo. Bem, talvez tenha finalmente conseguido.

Rory emitiu um som agonizante e profundo que atingiu seu coração golpeado, mas ela seforçou a não se jogar nos braços dele e assegurar-lhe que o amava.

— Se você não quer estar comigo e com seus filhos, Rory O’Brien, então, que assim seja. Masnão me peça para ir embora. Não vou abandonar Ballycashel agora, não quando a aldeia acabade voltar à vida. Se alguém tiver de sair, será você.

Com a garganta perto de estourar, ela se virou e correu para dentro de casa, sabendo que setivesse de olhar para aquele rosto devastado um segundo mais, as lágrimas transbordariam.

— Siobhán! — ouviu-o gritar, mas não podia voltar atrás. Não agora.A decisão teria de ser de Rory .

Rory observou a esposa fugir, sentindo o mundo inteiro desabar sobre ele.Ah, Deus, como suportar a dor de perdê-la?Sacudido por um violento tremor, ele estendeu a mão para alguma coisa, qualquer coisa, a

fim de se firmar. Não encontrou nada a não ser o vazio. Um súbito frio o arrepiou, porém, eleestava consciente de que a sensação não fora provocada pela proximidade do outono, e sim peloinverno que transformava seu coração num bloco de gelo.

— Rory ? — Uma voz firme e calma soou atrás dele. — Rory? Você está bem, homem?Rory se virou cegamente para ver Tom Flynn olhando para ele com apreensão. No entanto,

não conseguiu falar. Era impossível encontrar as palavras certas para garantir ao amigo queestava bem.

Além disso, Tom sabia da verdade.— Você voltou — disse Tom com alívio evidente. — Siobhán sentiu sua falta.Rory olhou fixamente para o amigo.— Eu vi como ela se sentiu — conseguiu balbuciar com um esgar de ironia. — Ela não se

mostrou nem um pouco feliz em me ver.— Ela está zangada? — Tom deu um sorriso irônico. — Bem, o que esperava? Você

desapareceu sem sequer uma palavra sobre aonde estava indo ou quando voltaria.— De alguma forma, ela adivinhou.— Sim. — Tom acenou com a cabeça. — Deus a abençoe, ela sempre foi inteligente como o

pai. Mas suponho que você também sabia disso, não é?Rory assentiu.— Ela não me quer de volta — desabafou, sentindo a dor comprimir seu coração. Vendo os

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olhos de Tom se estreitar em descrença, continuou: — Ela não confia em mim. Disse-me quetinha de proteger as crianças do mal que eu poderia lhes fazer.

— Ela disse isso?— Talvez não com essas palavras — Rory admitiu. — Ela disse que eu finalmente a convenci

de que sou como Seamus Doherty, um monstro incapaz de amar. — A garganta se fechou e elepiscou rapidamente, virando o rosto para que Tom não visse a angústia. — Que eu sou tão indignode amor como aquele bastardo era.

— As palavras são dela ou suas? — Tom perguntou com gentileza, pousando a mão no ombrode Rory .

— Que diferença faz? — ele rosnou.— Uma grande diferença — Tom respondeu, imperturbável pelo tom áspero. — Conheço

Siobhán. Sei como é obstinada e leal, mas sei também como o coração dela está. Foi esmagadoquando você não incluiu uma palavra para ela em sua mensagem, mas eu vi o amor brilhandonos olhos dela quando disse seu nome.

— Talvez ela se sentisse assim na época, mas não agora. No momento, ela não sente nadaalém de desprezo por mim.

Tom balançou a cabeça.— Ah, ela fez um bom trabalho.— Que diabos isso quer dizer?— Acho que ela está tentando fazê-lo pensar, milorde. Ela está tentando fazer com que decida

se quer ficar no passado e continuar acreditando que é como seu pai, ou se quer ser o homemque ela o considera, como senhorio, marido e pai.

Rory ouviu a verdade nas palavras de Tom e sentiu uma relutante admiração pela esposa.Não podia negar, ela era muito inteligente, e o fizera se enxergar com uma clareza ofuscante.

Ele voltou a pensar no dia em que Katie nascera e na sensação de alegria e admiração quesentira ao segurar a filha pela primeira vez. Lembrou-se de como cantava para ela todas asnoites para fazê-la adormecer e da confiança incondicional com que a filha pulava para seusbraços, inundando-o de felicidade e amor.

Ele pensou no povo de Ballycashel, na lealdade e amizade que lhe tinham oferecido. Mesmodepois que souberam do seu erro, mostraram-se dispostos a ignorar suas mentiras, e por quê?Não apenas porque ele era o senhorio e, portanto, dono do destino do povoado. Fora também peloque oferecera, a semente que doara, a ajuda com o plantio e a colheita, os reparos às casas. Elefez o que Seamus Doherty ou Percival Glenleigh jamais teriam feito. Ele, Rory O’Brien, era oresponsável por ganhar a afeição de seu povo.

E Siobhán? Amava-o, apesar de tudo. Ele se tornara um homem melhor por causa dela, poisfora quem o ensinara a confiar. Siobhán o encorajara a construir uma relação mais próximacom Katie.

Siobhán o fizera ver que ele era capaz de amar.E, Rory percebeu, ele queria amor. Queria amar seus amigos, filhos e, especialmente, sua

mulher. Queria construir uma vida boa para todos, queria ver seus filhos crescer e se casar.Queria passar o resto da vida com Siobhán a seu lado.

E ela estava certa. Sim, poderia viver no passado, permitindo que os fantasmas de SeamusDoherty e Glenleigh Percival o assombrassem para sempre... ou abraçar o futuro.

Para o inferno com o passado! Doherty e Glenleigh estavam mortos. O futuro era tudo o queimportava, e naquele exato momento, seu futuro parecia brilhante e promissor. Um futuro queincluía Siobhán, Ashleen, Katie e o bebê e, se Deus quisesse, outros filhos. E netos.

O futuro estava ao seu alcance. Tudo o que tinha a fazer era estender a mão e agarrá-lo.

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Ele se virou para Tom com um sorriso irônico nos lábios.— Acho que tenho de conversar com minha esposa — disse, secamente.— Bem, você pode começar dizendo que ela estava certa — foi a resposta em tom divertido.

— Isso sempre as deixa de bom humor.Rory riu, um riso que parecia lavar todas as sombras do passado e iluminar um caminho

ensolarado para o futuro.Mas não todas as sombras, ele se lembrou, repentinamente sério.— Será que nada de suspeito aconteceu enquanto eu estive fora? — quis saber, enviando a

Tom um olhar penetrante.— Nada. Tudo está tranquilo. Não houve nenhum sinal de Frank ou Joe Kerrigan, e ninguém

ouviu falar deles.— Ótimo. Fico feliz em saber. Mas não quero relaxar a guarda, especialmente agora.— Por causa de Siobhán e do bebê?— Isso, e outras coisas.Rory contou a Tom sobre o homem que ele havia conhecido no pub de Galway, descrevendo

a conversa.— Provavelmente não significa nada — acrescentou, incapaz de disfarçar a ansiedade. —

Mas ele sabia de Ballycashel, e é parente de um homem em quem não confio. Não posso darchance ao azar, Tom, agora que encontrei minha casa e minha família. Eu serei amaldiçoado seperder novamente o que é meu.

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Capítulo XXX

Ele tinha de encontrá-la. Havia procurado no quarto principal, no berçário, nos aposentos deKatie, de Ashleen, na cozinha e na biblioteca, sem nenhum sinal de Siobhán. Correndo para oestábulo, Rory verificou que todos os cavalos estavam lá, e Gerry Kelly lhe disse que não tinhavisto a senhora naquela manhã.

Onde diabos ela estava? Como podia uma mulher desaparecer assim?Hannah. Talvez Hannah pudesse ajudá-lo. As duas haviam se tornado próximas desde o

casamento. Hannah ajudara Siobhán a implementar algumas das mudanças na decoração daCasa Grande. Era comum encontrá-las na biblioteca, tarde da noite, discutindo tecidos, cores emobiliário.

Ele correu para o quarto da tia-avó e bateu com impaciência.— Hannah? Você está aí? — gritou com urgência. — Preciso falar com você.Um momento depois, a porta se abriu e Hannah olhou para fora com expressão gélida.— O que houve? — perguntou em tom formal.Mas Rory não tinha tempo para se preocupar com os sentimentos feridos de Hannah. Tinha de

encontrar a esposa.— Você viu Siobhán?— Não, desde que você partiu o coração dela em mil pedaços hoje de manhã.Ele suspirou, engolindo a onda de culpa, raiva e impaciência.— Hannah...— A forma como tem tratado sua esposa é vergonhosa, Rory O’Brien — ela o interrompeu

com irritação. — Ela o amava com todo o coração e alma. E quando compartilhou a alegrenotícia de que está grávida, o que você fez? Fugiu para Galway sem sequer avisar! Deixou-a aquisem saber quais são seus sentimentos por ela e pela criança. Nunca pensei que pudesse ser tãoegoísta.

A boca de Rory se apertou com teimosia, ainda que ele não pudesse enfrentar o olhar decensura da tia.

— Eu tive minhas razões.— Oh, sim, é claro que teve! Mas foram razões importantes o suficiente para magoar a

mulher que o ama mais do que a própria vida?Rory disfarçou a dor relutante quando Hannah o fitou com gravidade. Tentou refutar, mas não

havia como negar que a tia era sua aliada desde que ele voltara para Ballycashel. Fora a únicacom quem mantivera contato durante os longos anos de exílio. Ficara feliz, à sua maneira, de vê-la quando retornara.

Agora, quando percebeu que estava perto de perder o respeito dela, arrependia-seamargamente de suas ações.

— Você está certa, Hannah — admitiu em voz baixa. — Nada é mais importante para mimdo que minha mulher e meus filhos. — Tentou um sorriso, que falhou miseravelmente. — Achoque precisei de tempo para perceber.

— Graças a Deus você finalmente recuperou o juízo, rapaz. Claro, eu sabia que era apenasuma questão de tempo.

— Ah, você sabia, é?— Sim. No fundo, você é um rapaz sensível. Tinha apenas de perceber o verdadeiro valor do

que possui.— Eu sempre soube, Hannah. O problema é que eu tinha dúvidas se seria capaz de mantê-lo.

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— E por que não seria capaz? — Hannah exigiu, resoluta. — Você é um dos mais dignoshomens de Bally cashel, senão de toda a Irlanda. Quem mais poderia despencar da América etrazer uma aldeia de volta à vida e, para completar, ganhar a mão de uma moça de bem comoSiobhán? Quem mais poderia conquistar os moradores deste povoado, traumatizados com acrueldade de Percival Glenleigh?

— Qualquer proprietário pode exigir respeito, Hannah.— Mas você não exigiu o respeito deles, Rory. Você o conquistou. Ganhou a confiança e a

admiração dos aldeões por ser um bom senhorio, por ajudá-los, por sujar as mãos no plantio dasbatatas, por ser um amigo para todos. Isso o fez digno de respeito. Tenho orgulho de ser sua tia,Rory O’Brien. Sempre disse que seria um bom homem, e estou feliz por ver que eu estava certa.

As palavras acenderam uma pequena chama de orgulho no coração de Rory. Ele estendeu asmãos para segurá-la em um abraço que a ergueu do chão e provocou uma risada de prazer.

— Coloque-me no chão, seu maluco! — Ela riu incontrolavelmente.— Está bem, tia Hannah. — Ele obedeceu, alargando o sorriso ao colocá-la no chão. Então

voltou a ficar sério e a fitou com ternura. — Devo tudo a você. Durante anos, você foi o únicocontato que tive com minha casa, e quando voltei, tornou-se minha amiga e aliada no segredoque impus. Você foi minha mãe, tanto quanto minha própria mãe. E eu a amo por isso.

— Pare com isso! Não quero chorar! — Hannah enxugou os olhos com a ponta do avental. —Eu nunca tive filhos, mas estou tão orgulhosa de você como se fosse meu próprio filho. — Elaassoou o nariz, ruidosamente. — Agora, que história é essa de estar procurando sua mulher?

Por alguns minutos, Rory tinha esquecido do pânico de ser incapaz de encontrar Siobhán.Agora, a ansiedade voltava com força total.

— Eu não consigo encontrá-la em lugar nenhum da casa, nem lá fora. Tenho a sensação deque algo terrível possa ter acontecido.

— Você acha que tem alguma relação com os irmãos Kerrigan? — ela perguntou comalarme súbito.

Rory balançou a cabeça em negativa, tanto para tranquilizar Hannah como a si próprio.— Na verdade, não. Mas até que eu tenha a prova absoluta de que esses dois bastardos estão

longe de Ballycashel, não vou relaxar. — Ele engoliu em seco, sentindo o terror antigo retornar.— Tenho de encontrá-la, Hannah.

— Então, vamos. — Ela deu palmadas carinhosas nos ombros do sobrinho. — Encontre Tom eNora Fly nn, e as chances serão grandes de encontrar Siobhán. Ou talvez ela esteja visitando Megou um de seus amigos. Não se preocupe, rapaz. Nada vai acontecer com a moça.

Rory só podia rezar para que ela estivesse certa. Pois, se algo acontecesse com Siobhán oucom o bebê, seria culpa sua. E para tal pecado, não haveria absolvição.

Siobhán reprimiu um arrepio ao ver os tentáculos retorcidos do teixo lançar uma sombramalévola sobre a velha casa em ruínas. Uma súbita rajada de vento trouxe a chuva,encharcando-a da cabeça aos pés. Com um grito assustado, ela se apressou a galgar os degrausda varanda.

— Acalme-se! — ordenou a si mesma em voz alta, esperando que o som da própria voz atranquilizasse.

Mas quando o vento continuou a fustigar a baía de Galway, ela estremeceu e forçou-se aentrar.

O chalé de Seamus Doherty não tinha mudado desde a última vez em que estivera lá, excetopor ter se deteriorado ainda mais até o ponto de quase ruína. Ela podia sentir a presença do malno interior sombrio.

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Claro, era apenas fantasia, disse para si mesma. Afinal, Seamus Doherty estava morto.Todavia, Seamus não estava morto, não na mente e nas memórias do homem que ela amava.

Olhando ao redor da casa devastada, Siobhán soube que não houvera felicidade ali.O que Rory teria sentido ao voltar?Seu olhar recaiu sobre os restos do que devia ter sido uma vez a única cadeira confortável na

casa. Lembrava-se vagamente de Seamus Doherty. Era pouco mais que um bebê quando elepartira. Podia imaginar o homem corpulento, de cabelos avermelhados, caído naquela cadeira,talvez tragando o poitín de que tanto gostava, limpando a boca com as costas da mão, observandoa esposa e o filho, apenas esperando para explodir.

Ela não se lembrava da mãe de Rory. Vovó Meg lhe dissera que Mary Doherty raramentesaía de casa, sem dúvida por medo da ira do marido. No entanto, Siobhán imaginou uma mulherpequenina, movimentando-se apressada, ajeitando nervosamente os cabelos negros, os profundosolhos azuis percorrendo o ambiente para verificar se nenhum dos móveis esparsos estava fora dolugar para que o marido não encontrasse desculpa para a violência.

Ela olhou na direção de onde deveria ter ficado a mesa onde a família fazia as refeições, como coração apertado no peito. Agora, em vez de um menino de cabelos negros copiando poesiassobre o tampo lustroso, encontrava-se uma pilha de madeira recoberta de excrementos demorcegos e ratos.

O coração de Siobhán se confrangeu. Os olhos se inundaram de lágrimas quando ela pensouno que aquele rapaz tinha sofrido.

— Oh, Rory ! — sussurrou em voz alta. — Oh, meu amor! Como deve ter sido penoso viveraqui com aquele monstro! Como você suportou?

Ela olhou fixamente para o encosto da cadeira, sabendo que, se esperava ter uma vida comRory , tinha de quebrar o feitiço das memórias de uma vez por todas.

— Não mais! — gritou aos fantasmas que pareciam assombrar todos os cantos da casa emruínas. — Não mais. O passado está morto e desaparecido. Você pode ter espancado eaterrorizado Rory quando ele era criança, mas não mais. Nunca mais meu marido terá medo.Ele cresceu e se tornou um homem bom e compassivo, apesar do mal que você lhe causou. Elevirá a amar sua esposa e filhos com o tempo, pois serei capaz de convencê-lo disso. Basta,Seamus Doherty ! Rory estará livre de você, e com a ajuda de Deus e do meu amor, ele serálivre de novo.

— Ah, que declaração comovente!Siobhán pulou com um sobressalto. Virou-se, esperando ver Seamus Doherty elevando-se

sobre ela com o punho erguido ameaçadoramente, pronto para atacá-la por se atrever a desafiarseu fantasma.

Em vez disso, viu-se olhando para o rosto sarcástico de Frank Kerrigan.

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Capítulo XXXI

Os joelhos de Siobhán fraquejaram, e ela sentiu a garganta secar.— Boa noite, Siobhán — Frank saudou com ironia. — É bom vê-la de novo.— Frank Kerrigan!Ele percorreu um pequeno círculo em volta dela, chegando tão perto que a forçou a se

encolher.— Ah... então, você se lembra de mim.— Eu nunca poderia esquecê-lo, Frank — assegurou ela. — Nem de seu irmão.— Estou satisfeito por ter deixado impressão tão duradoura sobre você, querida. — Depois de

outro círculo apertado, ele parou abruptamente e estendeu a mão para tocar um cacho doscabelos sedosos que tinha escapado de sob a capa. — Você sempre foi uma beleza, Siobhán.

Ela se afastou, enviando-lhe olhar furioso. Frank era apenas alguns centímetros mais alto, e osolhos de ambos se encontraram no mesmo nível.

— Por que está aqui, Frank?Ele sorriu de um modo desagradável.— Você quer dizer aqui em Ballycashel, aqui na Irlanda, ou aqui nesta patética ruína de casa?— Todos os três. — Ela acenou com a mão inquieta, buscando se acalmar. Onde estaria Joe?

E, oh, Deus, para onde fora Rory ...? — Eu pensei que você tivesse sido banido da aldeia.Siobhán percebeu seu erro quando uma carranca entortou a boca de Frank, e os olhos claros

brilharam perigosamente.— Sim, e foi o bastardo do seu marido que fez isso. — Os olhos se arregalaram, e ele sorriu

maliciosamente. — Você achou que eu não sabia do seu casamento com o senhorio? Ou que estafoi a casa em que ele cresceu? Ou que ele é Rory David Doherty, e não David Burke, como sefaz passar?

Santa Mãe de Deus, Frank e Joe tinham estado em Ballycashel aquele tempo todo,espionando-os?

— Como?A boca se apertou numa linha obstinada.— Eu tenho minhas fontes.— Não em Bally cashel, certamente! — Siobhán afirmou. — Lá não existe um só inquilino

que não seja cem por cento fiel a Rory O’Brien.— Você tem certeza? — A ameaça súbita no tom de voz provocou um calafrio na espinha de

Siobhán. — Há membros leais dos Whiteboys que ficariam felizes em ver a classe dominantedestruída. — Ele deu uma risada sem humor, que a aterrorizou. — Certamente, agora você sabede tudo, não? Pergunto-me o que Michael Desmond e seu irmão, Sean, pensariam se soubessemque você se casaria com o proprietário.

— Ele é um senhorio irlandês! — Siobhán gritou. — Se você sabe tanto sobre Rory,certamente sabe disso! Ora, ele deixou a Irlanda sem um vintém, como qualquer emigrantepobre.

— Ah, sim, mas agora que ele está de volta, não quer compartilhar um pouco dessa riquezacom o próprio povo.

— Isso não é verdade, e você sabe disso! Foi Rory que pagou pelas sementes que plantamosneste verão, e foi ele quem consertou as casas.

— No entanto, ele ignorou os irmãos que imploravam por trabalho. Claro, ele devia saber queo dinheiro daria a eles os meios para comprar armas para os Whiteboys. Parece que o senhorio

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atual sempre desprezou as verdadeiras necessidades do povo.Ela suspirou com um súbito cansaço.— Sempre a luta, não é, Frank? — comentou com tristeza. — Você e Joe não podiam ver que

a violência só levaria a mais violência.Siobhán engoliu em seco, as memórias e a raiva fervilhando dentro dela. Estaria prestes a

descobrir a verdade sobre a morte do marido e do irmão? Teria a confirmação dos irmãosKerrigan de que ambos estavam envolvidos em traição?

Porém, Frank era mais esperto que o irmão mais novo. Ele não seria levado tão facilmente arevelar a verdade. Ele sorriu, e a fisionomia assumiu uma expressão desagradável.

— Ah, Siobhán... está tentando obter informações?— Por que eu estaria fazendo isso agora? Não é segredo que você e Joe estão envolvidos com

os Whiteboys.— Exatamente. E assim foi com Michael e Sean.Ela sabia do envolvimento, mas havia algo que desconhecia.— Michael prestou o juramento?Frank balançou a cabeça em negativa, numa admissão silenciosa.— Não. Nem Sean, por mais que tentássemos convencê-los. Michael disse que nunca se

perdoaria se o fizesse.Uma onda de alívio tomou conta dela. Então, Michael se importava o suficiente para resistir a

tomar esse passo, final e irrevogável.Oh, obrigada, Deus.Mas...— Foi por isso que o traiu? — perguntou em voz baixa.As palavras o pegaram tão de surpresa que ele respondeu com toda a honestidade:— Claro que não. Era o dinheiro que queríamos. Não havia mais nada para nós aqui.

Bally cashel estava acabada. Queríamos ir para a América, para Nova York, onde temosparentes. Glenleigh nos ofereceu passagem e dinheiro se o mantivéssemos informado. E foi oque fez quando contamos quem atacaria o carro de grãos e quando.

Dinheiro! A repulsa a sufocou. Ela o fitou através de uma névoa de raiva.— Então você traiu dois homens decentes por dinheiro? Onde estava sua lealdade naquela

noite, Frank Kerrigan? Certamente não com os Whiteboys. Claro, você e Joe sempre foram fiéissomente a si mesmos.

Frank riu e voltou a circulá-la com expressão zombeteira.— Você sempre se achou muito importante e poderosa, Siobhán Kilpatrick... ou devo chamá-

la de milady? Afinal, agora é a dona da mansão, não é? Mas quem poderá dizer até quando? — Otom se tornou ameaçador.

Oh, Deus, o que Frank faria? Joe estaria por perto, pronto para causar danos em Ballycashel?Rory!Ela precisava manter a calma, ou nunca conseguiria avisá-lo. Respirando fundo, tentou afastar

o tremor gélido que se apoderou dela.— O que você fez?— Eu? Não fiz nada, milady !— Então, o que Joe fez?— Ah, bem... meu irmão tem temperamento exaltado. Ele não gostou de ser demitido,

especialmente por causa de uma prostituta como você.— Eu não tive nada a ver com isso.Ignorando-a, Frank parou ao lado dela.

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— Vou mantê-la aqui até que Joe faça Rory O’Brien pagar pelo constrangimento que noscausou.

Oh, querido Deus! Joe estava envolvido! Siobhán tentou recuperar o fôlego, mas o hálitonauseante de poitín era tão forte que ela quase engasgou.

Poitín!E se eles tivessem incendiado Bally cashel?Não. Ela não ouvira nada na aldeia que indicasse qualquer tipo de emergência na Casa

Grande. Nada havia acontecido ainda.Não podia ter acontecido!A súbita visão da bela casa georgiana devorada pelas chamas fez seus joelhos fraquejar. Mas

o mais importante, onde estavam Ashleen e Katie? Era tarde, mas não a ponto de já terem idopara a cama. Talvez estivessem visitando vovó Meg, como costumavam fazer. E os criados? EHannah? Embora nunca tivesse externado seu sentimento, Siobhán sabia o quanto Rory amava atia-avó.

E onde estava Rory?— Posso ver sua mente trabalhando. — A voz de Frank invadiu a turbulência de seus

pensamentos. — Você sempre foi muito inteligente. Mas não precisa se preocupar. A CasaGrande está segura. Claro, é apenas uma casa, afinal. Não há nada lá que interesse a mim ou aomeu irmão.

Siobhán respirou aliviada, até que Frank completou:— Mas o estábulo...Ela prendeu a respiração, receando o que ele diria.— Era no estábulo que Joe e eu trabalhávamos. Pedimos ao nosso primo Dermot O’Shea para

providenciar algumas armas e escondê-las nas pilhas de feno. Estariam a salvo lá, se não fosse obastardo do seu marido.

O estábulo! Os cavalos eram a alegria e o orgulho de Rory ! Ree, o magnífico garanhão, cujacompreensão era quase humana. Os pôneis, Star Dancer, de Katie, e Sean, a quem Ashleen derao nome em homenagem ao tio que nunca conhecera. E Maeve, a elegante potranca irlandesaque geraria o primeiro de uma nova linhagem de caçadores.

Ela tinha de fazer alguma coisa. Mas o quê? Seria impossível sobrepujar a força física deFrank. Embora apenas um pouco mais alto que ela, ele era forte e vigoroso.

E ela tinha de pensar em seu bebê.Instintivamente, Siobhán colocou uma mão protetora sobre a minúscula vida que era a

esperança para o futuro. Nada deveria acontecer a ele.Engolindo o pânico, enfrentou Frank corajosamente.— Você ainda não me disse por que está aqui. Não creio que esteja abrigado nestas ruínas

desde que deixou Ballycashel.— Eu a segui.As palavras sérias e frias provocaram-lhe uma onda de calafrios. Rory estava certo em ser

cauteloso.Frank agarrou-a pelo braço e riu quando ela fez uma careta de repulsa e o repeliu.— Você ainda se acha superior a nós, não é? Não tenha medo. Vou mantê-la aqui apenas até

que tudo esteja feito. Em seguida, Joe e eu sumiremos de Bally cashel para sempre.— Eu não creio.Ao som da voz, Frank e Siobhán se viraram para ver Tom Fly nn à porta. Rápido como um

gato, ele voou sobre Frank e derrubou-o com um único golpe. Ao ser arremessado para trás, elebateu a cabeça na lareira de pedra e caiu, imóvel. Siobhán assistiu, com as mãos cobrindo a

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boca.Tom olhou para o homem inerte com um sorriso de satisfação.— Isso é pelo que você fez para a minha família, bastardo! — Então, virou-se para Siobhán e

segurou-a pelos braços, percebendo que estava a ponto de desmoronar. — Você está bem?— Tom — ela gemeu num sussurro débil. — Oh, Tom, graças a Deus você está aqui!— Temos de nos apressar. Está tudo bem. Segui Frank Kerrigan até aqui. Não precisamos nos

preocupar com ele, pois dormirá por tempo suficiente para Rory cuidar dele.Rory!— Oh, Tom, temos de encontrá-lo! Temos de encontrar Rory ! Joe foi para o estábulo! Ele vai

incendiar o barracão!A expressão de Tom se endureceu como granito.— Você tem certeza?Ela meneou a cabeça freneticamente.— Foi o que Frank disse. Tom, por favor, você precisa detê-lo!Tom agarrou-lhe os ombros com firmeza.— Vá para a casa de vovó Meg — ordenou. — Fique lá. Eu vou encontrar Rory .— Obrigada — ela sussurrou. — E... Tom?A meio caminho para a porta, ele se virou com impaciência.— O que foi, moça?— Diga a ele que eu o amo.

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Capítulo XXXII

Onde diabos ela estava?Rory passou os dedos pelos cabelos num gesto nervoso. Seu corpo estava coberto de suor frio,

e as pernas tremiam quando ele marchou com dificuldade para Ballycashel. Era tarde,provavelmente perto de meia-noite, e ainda não havia sinal de Siobhán.

Droga! Onde diabos ela poderia estar?Hannah apareceu na porta, e o rosto enrugado evidenciava preocupação. Rory soube que não

adiantaria perguntar se ela tinha ouvido falar da esposa.— Nenhum sinal dela?— Maldição! — Ele respirou fundo. — Onde estão as meninas?— Dormindo como dois anjos — Hannah respondeu, para alívio de Rory. — Elas acham que

Siobhán foi visitar Nan Donavan.— Você verificou os chalés da propriedade?— É claro que sim. Olhamos na floresta e no rio, também. É como se ela tivesse

simplesmente desaparecido.Uma dor quase física atravessou o corpo de Rory. Ele não podia negar que merecia o que

estava acontecendo, mas não esperava que fosse tão doloroso.Siobhán não merecia. Ela era a encarnação da bondade. Ela o trouxera de volta à vida quando

estava morto por dentro. Mostrara-lhe como voltar a confiar. Havia lhe ensinado a amar.Quando Charlotte havia morrido, deixara um vazio em sua alma, não apenas pela tristeza da

perda, mas pela noção de que a morte dela estaria para sempre em sua consciência. Conseguiracontinuar vivendo unicamente por Kathryn. Mas Siobhán era...

Não. Ele não podia pensar dessa forma. Nada de mal havia acontecido. Ela não o deixara. Naverdade, prometera permanecer em Ballycashel. Talvez precisasse de tempo e de distância parapensar sobre o tolo com quem se casara.

Ele se afastou de Hannah, tentando evitar que ela visse as lágrimas que brotavam em seusolhos.

— Vou para o estábulo — disse por sobre o ombro, caminhando para a porta.Rory respirou fundo. Precisava estar perto de seus amados cavalos. Sentia-se seguro com os

animais. Com eles, seria capaz de pensar com mais clareza.O silêncio o saudou quando ele entrou no barracão. As portas se abriram com um rangido, e

ele olhou ao redor. Tudo estava no devido lugar, como de costume. Star Dancer enfiou o focinhono vão da grade e relinchou em saudação quando Rory passou pela baia. Nada parecia fora docomum.

No entanto, instintivamente, ele sabia que algo estava errado.Apreensivo, parou diante da baia de Ree. O cavalo bufou carinhosamente, esfregando o

focinho gelado em sua mão em busca de uma maçã ou uma cenoura. Rory enterrou o rosto nacrina do cavalo, deixando as lágrimas transbordar.

— Não tenho nada para você esta noite, garoto — balbuciou com a voz estrangulada pelaemoção. — Mas eu seria eternamente grato se você pudesse me dizer onde está minha esposa.

O cavalo relinchou como se tentasse lhe dizer alguma coisa, e Rory deu uma risada trêmula.— Bem, eu tentei, não é, garoto? Eu tentei ser bom marido e pai. Mas no final, falhei

novamente. Eu falhei, assim como fiz com Charlotte e Jamie. Assim como fiz com minha mãe.— Ele engoliu com dificuldade, enxugando o rosto na manga da camisa, e voltou a apoiar acabeça no pescoço de Ree. — Maldita seja, Siobhán! — sussurrou. — Maldita seja. Não se

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atreva a me deixar. Você me deu sua palavra. Não me deixe antes que eu tenha chance deprovar o quanto te amo...

O resfolegar agitado de Maeve o alertou. Antes que pudesse se virar, passos abafados soaramatrás dele, e suas narinas foram invadidas pelo cheiro vagamente familiar de tabaco decachimbo. Girando nos calcanhares, ele deparou com o rosto corado de olhos azul-pálidosrefletindo o brilho frio do ódio.

— Boa noite, milorde. — Um sorriso sardônico curvou os lábios finos de Joe Kerrigan. — Éum glorioso prazer vê-lo novamente.

Siobhán andava de um lado para o outro com passadas inquietas na pequena casa da avó.— Sente-se, menina — Meg a repreendeu. — Não há nada a ganhar com essa agitação.— Ela está certa, Siobhán — Nora concordou, observando a amiga com preocupação. —

Rory ficará bem. Ambos ficarão — acrescentou com voz trêmula. — A qualquer minuto, ele eTom entrarão por aquela porta.

Siobhán ficou paralisada no meio da cozinha, com as mãos escondidas nos bolsos da saia.— Não posso esperar tanto tempo — declarou. — Vou atrás deles.— Não vou permitir que saia! — Meg se colocou à frente da neta para bloquear o caminho.

— Siobhán Kilpatrick, fique aqui até que seu marido venha buscá-la. Você tem de pensar nacriança em seu ventre, lembra-se?

Siobhán ficou em silêncio um momento, olhando com seriedade para a mulher que a amara,aconselhara e ficara do seu lado nos piores momentos de sua vida.

— Estou pensando no meu filho, vovó Meg. A senhora sempre me disse que os Kilpatrickeram reis e rainhas da Irlanda, grandes guerreiros que lutaram violentas batalhas para protegersuas famílias. Bem, é isso que estou fazendo agora. Estou protegendo minha família. Katie eAshleen estão lá — apelou. — E se Joe Kerrigan não foi para o estábulo? E se... — A ideia erainsuportável, enviando calafrios por sua espinha. — Eu tenho de ir.

Sem esperar resposta, ela apanhou a capa e correu para fora.

Rory.O caminho para Ballycashel sempre fora tão longo?O farfalhar de asas, seguido do pio triunfante de uma coruja, a fez se encolher. A seguir, ela

quase tropeçou num texugo que fazia o caminho de volta à toca na vegetação rasteira. Ela riucom nervosismo, relembrando a noite em que dissera a Rory como a floresta era segura.

Rory. Meu querido, me perdoe. Por favor, não me odeie pelo que eu disse.Ela tinha de dizer as palavras. Tinha de atingi-lo, apenas para fazê-lo enxergar a verdade. Mas

ele poderia perdoá-la por ter de dizê-las?Finalmente, o estábulo de Ballycashel surgiu em seu campo de visão. Ela respirou com alívio.

Tudo estava quieto, e apenas uma luz tênue tremulava no escritório de Rory .Frank teria mentido? E se quisesse apenas assustá-la?Uma mão agarrou seu braço, enquanto a outra cobriu-lhe a boca. Ela tentou gritar, lutando

desesperadamente para libertar-se.— Depressa, moça! — Oh, graças a Deus, era a voz de Tom, num assobio baixo em seu

ouvido.— Tom! — Ela se lembrou de respirar e cedeu contra ele. — Onde está Rory?— Lá dentro. Joe Kerrigan está com ele. — Tom dirigiu-lhe um olhar irritado. — Que diabos

você está fazendo aqui? Pensei ter lhe dito para ficar com sua avó.— Eu tinha de vir, Tom. Precisava ter certeza de que meu marido estava bem.

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Tom balançou a cabeça com exasperação.— Você sempre foi muito teimosa, não é?Apesar da gravidade da situação, ela teve de sorrir. Tom lhe dissera que desde a infância ela

saía com ele e seus irmãos para pescar, subir em árvores e fazer as mesmas travessuras que osmeninos.

— Acho que não mudei muito.— Não, você não mudou nem um pouco! — Ele lhe lançou um olhar significativo. — Vou

entrar pela porta dos fundos. Quero que você fique aqui. — Quando ela fez menção de protestar,Tom sacudiu a cabeça firmemente, segurando uma das mãos. — Não discuta, Siobhán. Pode serarriscado. Joe é um homem perigoso. Prometa-me que ficará aqui.

Ela assentiu com relutância, vendo sentido nas palavras.— Ao menos deixe-me ir até a porta com você.Tom hesitou, como se perguntando se devia proibi-la ou não. Então acenou brevemente com a

cabeça e pegou a mão dela. Movendo-se furtivamente, levou-a até a porta próxima ao escritóriode Rory. Sinalizando para que ela ficasse em silêncio, deixou-a sozinha para se esgueirar paradentro sem ser notado.

A porta não se fechou completamente, e num impulso, Siobhán estendeu a mão para segurá-la e mantê-la entreaberta. Não podia suportar ficar ali e esperar.

Não quando a vida de Rory estava em perigo.Tom olhou para ela, pressionando um dedo sobre os lábios em sinal de advertência.

Silenciosamente, ela acenou com a cabeça.— É um glorioso prazer vê-lo novamente.Era a voz de Joe Kerrigan!— Que diabos você está fazendo aqui, Kerrigan?Rory soou quase coloquial, mas ela detectou o tom subjacente de ameaça e estremeceu,

cruzando os braços.O que Rory faria agora?— Tenho uma mensagem para você, milorde. — Havia um triunfo presunçoso naquela

declaração. — De um homem chamado Carmody . Tim Carmody . O nome lhe é familiar?Tim Carmody ? O nome não tinha nenhum significado para Siobhán. No entanto, ela viu Rory

ficar absolutamente rígido, a mão apertando com firmeza a bengala. O peito arfava enquanto elelutava para manter a calma.

— Ah, posso ver que sim...Por que a satisfação na voz de Joe? Quem era o misterioso Tim Carmody, e como estava

relacionado com Rory?— Conheço esse homem. — A resposta de Rory era quase inaudível, e Siobhán se inclinou

para a frente. — Ele morava em Nova York há dez anos.— Sim.— O que tem ele?— Como eu disse, trago uma mensagem dele. — Uma pausa longa decorreu durante a qual

Joe considerou Rory com um sorriso de satisfação no rosto. — Ele espera que você tenha serecuperado do ferimento a bala que recebeu nas docas de Nova York.

Ferimento a bala? Siobhán recuou contra a porta. Do que Joe estava falando?Obviamente Rory sabia, pois ficou pálido. O que estava acontecendo?Quando Rory falou novamente, usou um tom de voz que ela nunca ouvira antes. Raiva,

desprezo e angústia crua misturavam-se às palavras.— Tim Carmody . Eu sempre suspeitei dele, mas nunca acreditei.

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— Você é um homem inteligente — Joe murmurou com sarcasmo.— Obviamente, não inteligente o bastante.— Será que o bastante para ter imaginado quem iniciou o incêndio que matou sua adorável

esposa?Rory recuou, e os olhos claros refletiram a mais pura dor. Porém, a voz permaneceu calma.— Foi ele?— É claro que foi ele. Eu lhe disse, os Whiteboys cuidavam uns dos outros. Carmody seguiu

você e sua esposa todo o caminho até Baltimore, esperando pela chance de terminar o trabalhoque tinha começado.

— Por quê? — Rory exigiu. — Por que ele se importava? Só porque eu me recusei atransportar armas para ele?

— Porque o traiu! — Joe gritou com raiva. — Traiu a todos nós quando nos deixou. Você eraum de nós, e se recusou a ajudar quando os Whiteboys mais necessitavam!

Siobhán abafou um suspiro de puro horror. Mal viu Tom olhar por cima do ombro para elacom os olhos cheios de simpatia. Ele balançou a cabeça, avisando-a para permanecer emsilêncio.

Seu marido estivera envolvido com os Whiteboys?!A voz de Rory soou baixa e perigosa, com sotaque sulista mais pronunciado e o olhar frio fixo

no homem mais baixo.— Não traí ninguém. Tim e eu nos conhecemos em Nova York e nos tornamos amigos. Ele

veio até mim uma noite, pedindo minha ajuda para transportar armas para a Irlanda. Eleconhecia a família de Charlotte e tinha conhecimento da indústria de transporte em Nova York.Eu lhe disse que não queria participar de qualquer violência.

Ele fez uma pausa, e Siobhán quase podia sentir as ondas de dor crescendo dentro dele.— Dois dias depois, fui baleado na perna e deixado para morrer no cais.Oh, Deus!— Você era um membro dos Whiteboy s — Joe insistiu.— Eu me interessei pela causa, como qualquer jovem expulso do lar irlandês — Rory

admitiu, torcendo a faca ainda mais em seu coração. — Mas eu nunca fiz o juramento. Nuncaconcordei em fazer qualquer coisa ilegal. — Um suspiro doloroso escapou de seus lábios. —Enfrentei violência suficiente para durar uma vida inteira. Não tinha necessidade de ir à procurade mais.

Instintivamente, Siobhán soube que Rory dizia a verdade. O alívio tomou conta dela, emborapudesse imaginar o jovem revoltado que ele fora. Seu coração se partiu ao pensar no meninocom a vida dilacerada pela morte de mãe e pela culpa que sentia por matar o pai. Não admiravaque a causa irlandesa o atraísse. Servia como a saída perfeita para a raiva e tristeza.

Oh, meu amor...Rory olhou fixamente para Joe.— Bem, você entregou sua mensagem. Agora, trate de sumir daqui. Não quero vê-lo nas

terras de Ballycashel nunca mais.— Não tão rápido, milorde. Ainda há mais.— Ah, sim? — O homem frio e arrogante despertou em Rory . — E o que é?— Isto.Movendo-se como um relâmpago, Joe apanhou uma pá nas proximidades. Antes que Siobhán

pudesse gritar em aviso, ele girou-a e atingiu seu marido num golpe esmagador na perna ferida.Rory caiu com um grunhido de agonia. Siobhán cobriu a boca com as mãos, o corpo todo

tremendo. Tom permaneceu rígido ao lado dela, com as mãos cerradas em punhos, obviamente

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esperando o que Joe faria em seguida.O agressor observou com desdém Rory se contorcendo no chão e sorriu presunçosamente.— Então, você nunca mais quer me ver nas terras de Ballycashel novamente, não é? Bem, o

sentimento é mútuo, milorde.Com precisão deliberada, Joe riscou um fósforo e levou-o para o cachimbo de barro no canto

da boca. Porém, em vez de acendê-lo, esticou o braço para trás e atirou-o a poucos metros dedistância, numa pilha de feno encharcada de uísque.

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Capítulo XXXIII

A palha explodiu em chamas instantaneamente. Atordoado pela dor lancinante na perna, Rorypercebeu que o estábulo fora encharcado com álcool.

— Adeus, milorde — Joe murmurou. — Deixarei Ballycashel agora, e rogo que milmaldições recaíam sobre vocês!

Ele se virou para ir embora, mas antes que pudesse dar um passo, alguém voou para fora deuma baia vazia e o atacou. Joe caiu com um grunhido de surpresa, e Tom Flynn desferiu-lhe umgolpe contundente no queixo, deixando-o inconsciente.

— Siobhán, vá ver Rory !Siobhán? Antes que Rory pudesse entender completamente as palavras de Tom, a esposa se

ajoelhou a seu lado, embalando sua cabeça no colo, com lágrimas escorrendo pelo rosto.— Rory? Meu amor, você está bem?— Siobhán? — Atordoado, ele a focalizou pensando que nunca vira um rosto mais bonito na

vida. — Eu não achei que você viria.Ela piscou para afastar as lágrimas.— Eu não prometi que nunca o deixaria, homem insensato? — Vacilante, ela alisou o cabelo

desgrenhado com dedos tão suaves como asas de um anjo.— Eu não poderia culpá-la se você decidisse romper a promessa.— Nunca! — ela jurou, com uma chuva de lágrimas e beijos no rosto dele. — Nunca vou

deixar você, Rory O’Brien. Eu te amo.A fumaça se tornou mais espessa, queimando os olhos e ardendo a garganta. O terror explodiu

no cérebro de Rory, e ele olhou ao redor, freneticamente, esforçando-se para se sentar quandopercebeu o que estava acontecendo. Joe tinha trabalhado ali, e sabia que a madeira apodrecendona parte antiga do estábulo se queimaria mais rápido.

— Fogo! — tentou gritar e engasgou com a própria aflição. — Siobhán, saia daqui! Agora!Vou buscar os cavalos.

— Não! Você está ferido! — Ela o agarrou pelos ombros, tentando segurá-lo, mas o pânicoemprestou a Rory uma força adicional.

Debatendo-se para fora de alcance, ele tentou se levantar, apenas para cair de volta e seencolher agonizante, com a perna machucada latejando. O passado e o presente colidiram emum momento único e insuportável.

Oh, Deus, estava acontecendo novamente!As chamas se alastraram com terrível velocidade, tingindo o céu de vermelho, amarelo e

azul. Ele ouviu os relinchos agoniados dos cavalos, e eles ecoaram os gritos de Charlotte. Ele viuTom, de pé sobre Joe Kerrigan, e de repente Tom era Jamie, gritando com ele para salvarKathryn, enquanto ele procurava por Charlotte.

Com um gemido desesperado, percebeu mais uma vez que não seria capaz de salvá-los. Maisuma vez, falharia com aqueles a quem mais amava.

— Ele está bem?Rory reconheceu a voz de Tom e abriu os olhos para vê-lo inclinado sobre ele. Avistou

Siobhán através das névoas da dor nublando a visão e maldisse a perna ferida.Então ouviu um relincho aterrorizado, e o som de pânico fez a penugem em sua nuca se

eriçar.— Maeve! — ele gemeu, debatendo-se contra a própria dor. — Ajude-me. Tenho de chegar

até ela. Temos de tirá-la do estábulo!

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— Fique quieto! — Tom pressionou as mãos nos ombros dele, imobilizando-o, e Rory seencolheu com raiva.

— Maldito seja, Fly nn! Solte-me. Tenho de pegar os cavalos!— Você não pode nem andar, homem!— Ah, você não entende. Por Deus, ela está prenhe do primeiro da minha nova linhagem de

caçadores. Não posso perdê-la.— Rory ... — Siobhán implorou. — Vamos ajudá-lo em primeiro lugar.— Não! — Com esforço sobre-humano, ele conseguiu se pôr de pé, agarrando

desesperadamente a mão de Tom. Cambaleando, virou-se para a baia da égua. — Estou indo,minha querida! — gritou, controlando o pânico na voz para acalmá-la. — Não se preocupe,minha rainha irlandesa, nós vamos tirá-la daqui em um minuto.

Ele deu um passo, depois outro, e a perna se estrangulou sob o corpo. Teria caído se Tom nãoo amparasse num aperto firme.

— Você não vai a lugar algum, milorde — Tom disse, severamente. — Siobhán, leve-o parafora.

— Não! Droga, Fly nn, não ouse me dar ordens! Estes são os meus cavalos! Não vou deixá-losmorrer!

— Eu cuido dos cavalos! — Tom declarou em voz firme. — Você não percebe que nãoconseguirá andar sem ajuda? Só vai assustá-los mais.

Siobhán deslizou um braço de apoio sobre a cintura de Rory .— Venha comigo, meu amor. Tom vai salvar os cavalos — prometeu com convicção. —

Venha. Apoie-se em mim.— Maldição! — Ele lutou por um momento, empurrando-a para trás.Porém, mais uma vez, Rory subestimou a tenacidade dela. Sacudindo-o, ela disse com

firmeza:— Pare com isso, Rory O’Brien! Está agindo como uma criança! Tom vai cuidar dos cavalos.Com um último olhar desesperado para trás, Rory viu Tom levando Maeve com calma para

fora da baia. Ele deu um suspiro de alívio e seguiu em frente, apoiando-se no braço de Siobhán.Uma vez lá fora, ele desabou no chão, golpeando o ar fresco para dentro dos pulmões. Ao se

virar para os estábulos, o pior dos pesadelos se descortinou diante de seus olhos. Toda aconstrução estava em chamas.

Um frio abissal se apoderou dele. A respiração saía em arquejos curtos, e ele começou atremer incontrolavelmente. Com um grito angustiado, estendeu a mão, cegamente, desesperadopor algo, qualquer coisa que pudesse ampará-lo. Em um instante, Siobhán estava a seu lado. Comternura, envolveu os ombros largos com um manto e o abraçou, embalando-o tão docementecomo se tentasse protegê-lo das memórias que recaíam sobre ele com o peso de séculos.

— Tudo vai ficar bem, meu querido — murmurou com serenidade. — Tom está retirando oscavalos. Veja! Lá estão Gerry Kelly . Olhe... Star Dancer e Sean...

— Onde está Ree? — Rory lutou para se libertar, mas ela o impediu.— Silêncio, meu amor. Ree está seguro. Tom vai tirá-lo.Vá ver Kathryn. Vou buscar Charlotte.Deus misericordioso! Jamie... Tom... E onde estava Joe Kerrigan?A premonição súbita e aterrorizante mortificou Rory. Ele olhou para os estábulos, onde

furiosas chamas avermelhadas crepitavam com violência, enquanto devoravam o velhobarracão. Como se viesse de muito longe, ouviu a voz de Gerry dando instruções na missãodesesperada de combater o fogo.

Droga! Ele devia ter terminado a renovação do estábulo! A madeira na parte mais antiga

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estava podre, e certamente queimaria mais rápido.Onde estava Tom?!Ele ouviu Ree relinchar quando o cavalo saiu das chamas. O garanhão levantou as patas

dianteiras, golpeando o ar com os cascos. Tom deu-lhe uma palmada vigorosa nas ancas que oenviou a galope em direção aos companheiros, levados para um local seguro. Um suspiro dealívio rasgou a garganta de Rory . Todos estavam a salvo.

Obrigado, Deus.Tom acenou na direção dele com o rosto enegrecido pela fuligem, a camisa rasgada e com

um hematoma que se formou a partir de um coice no ombro de um dos cavalos aterrorizados.Porém, saíra ileso. Ele passou a mão sobre o rosto cansado.

— Os cavalos estão a salvo! — exclamou com um sorriso de triunfo. — Vou voltar pararetirar Kerrigan.

Joe Kerrigan! A memória retornou. Tom deixara Kerrigan inconsciente. Ele ainda devia estardeitado na manjedoura. Merecia morrer pelo que fizera, Rory pensou. Afinal, provocara oincêndio como vingança contra ele. Tom não devia arriscar a vida pelos seus pecados.

Ele se levantou abruptamente, ignorando a agonia que dilacerava cruelmente a perna.— Não volte para lá! — gritou para Tom. — Eu vou buscar Kerrigan.— Não, Rory ! — Siobhán agarrou-lhe o braço em um aperto desesperado. — Você não pode

voltar lá agora! Está ferido. Deixe Tom cuidar de Joe.Ele se virou, furioso.— Você não percebe que esse fogo é por minha culpa? Não vou deixar Tom arriscar a vida

pelos meus pecados!Siobhán o encarou, tão irritada quanto ele, com os olhos verdes emitindo faíscas.— Você não percebe que não pode assumir a culpa por tudo de ruim que acontece em

Bally cashel?! Que o fogo não é culpa sua, e sim, de Joe Kerrigan?— Santo Deus, o telhado está ruindo!O grito veio de um dos homens que combatia o fogo. Um rugido ensurdecedor sacudiu o ar

quando o teto estremeceu. Um segundo depois, lentamente, foi sugado pelas chamas, desabandosobre o que restava da construção de madeira.

— Não!Rory correu desajeitadamente para os estábulos.Não! Não! Não!A palavra fazia eco aos passos claudicantes. De novo, não... Querido Deus, de novo, não!— Tom! — ele gritou, freneticamente. — Tom! Jamie!Braços firmes o agarraram, puxando-o para trás.— Não vá, milorde! Tom vai conseguir. Ele é um rapaz forte.Mas Jamie também era um rapaz forte. A imagem do rosto de Jamie, os olhos fechados para

sempre na morte, os cachos loiro-avermelhados sem vida, transformou a alma de Rory numdeserto. Com um grito de agonia, ele caiu no chão, cobrindo o rosto com as mãos trêmulas.

Ele sentiu as mãos protetoras sobre os ombros. Siobhán. Porém, não podia fitá-la. Seu olharpermanecia fixo no estábulo devastado, enquanto proferia orações suplicando perdão.

Maldito seja, Tom!A raiva e o medo fervilharam em suas entranhas.Tom tem de sair de lá. Agora. Se não fizer isso, Nora nunca me perdoará. Eu nunca me

perdoarei.A espera foi interminável. Finalmente, incapaz de suportar, Rory se pôs de pé e lançou um

olhar feroz sobre os inquilinos que formavam um semicírculo inquieto em torno dele.

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— Eu vou entrar — anunciou, ignorando o grito angustiado de Siobhán. — Qualquer um quetente me impedir será expulso de Bally cashel!

Ele tinha de encontrar Tom. E talvez, na busca do amigo, pudesse finalmente encontrar a paz.Silenciosamente, a pequena multidão abriu caminho para deixá-lo mergulhar no passado.

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Capítulo XXXIV

O colapso do telhado trouxe um benefício, Rory pensou ao escolher o caminho lenta edolorosamente através do estábulo em ruínas: havia sufocado as chamas. Tudo o que restava dofogo não passava de brasas fumegantes reluzindo num brilho ímpar de vermelho.

Ele tremia, com a perna latejando insuportavelmente. Olhou em volta, sem ver nenhum sinalde Tom ou de Joe Kerrigan. Se ousasse chamá-los, o eco traria o risco de trazer todo o lugarabaixo sobre sua própria cabeça.

Cautelosamente, ele escolheu o caminho ao longo dos escombros, procurando algum sinal doshomens. Que roupa Tom estava usando? Droga, não conseguia se lembrar.

— Tom? — chamou, baixinho. — Tom, está me ouvindo?Nada.Droga, onde estava Tom? Se ele não fosse tão grato ao outro homem por ter salvado os

cavalos, ficaria furioso com ele.O silêncio assustador o lembrou da noite em que ele e Jamie estavam na cozinha, discutindo a

causa irlandesa e confrontando Tim Carmody. Naquela noite, sua casa tinha sido engolida pelaschamas. Naquela noite, Charlotte e Jamie tinham morrido.

Passando a mão pelo rosto cansado, ele tentou dispersar as memórias, mas estas continuarama assombrá-lo como vespas furiosas. A conversa fluía entre ele e Jamie. A facilidadeproporcionada pela amizade e pelo uísque de excelente qualidade prolongara a conversa até altashoras da madrugada. Charlotte tinha ido se deitar com um sorriso e uma advertência para quenão ficassem na mesa da cozinha até de manhã. Em seguida, o cheiro da fumaça, o horror doamanhecer que o assombraria para sempre.

Ele ouvira os gritos aterrorizados de Kathryn, a voz infantil cheia de confusão e medo. Elatinha apenas oito anos. Em seguida ouvira Charlotte implorando para que salvasse Kathryn. Eleficara dividido entre a esposa e a filha.

Você cuida de Kathryn. Vou pegar Charlotte.Ele derrubara a cadeira na pressa de resgatar a filha, sem ouvir o tiro que selara a destruição

de Jamie e Charlotte.O pânico o oprimiu, e ele o forçou goela abaixo, movendo-se com cuidado meticuloso.— Tom! — chamou, um pouco mais alto dessa vez. — Tom, onde você está?Teria ouvido uma resposta abafada? O coração de Rory saltou no peito.— Tom?— Aqui...Sim, era a voz de Tom! Um nó de gratidão obstruiu a garganta de Rory e fez seus olhos arder.— Continue falando! Eu vou encontrá-lo.— Na baia de Ree — foi a resposta abafada.Obrigado, Deus!— Você se machucou?— Não muito. — Aquilo fora um grunhido de dor? — Minha perna está presa sob uma viga.

Eu achei que o mundo inteiro tivesse desabado sobre a minha cabeça.— E Kerrigan?A resposta foi precedida de um longo silêncio:— Kerrigan está morto.Rory afastou as toras de madeira em ruínas e, finalmente, avistou Tom. O rosto estava lívido

pela dor, e os cabelos encharcados de suor. Ajoelhando-se ao lado dele, Rory avaliou a situação.

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— Se eu mover esta viga, você consegue deslizar a perna para fora?— Eu acho que sim.Ignorando a dor na perna, Rory ergueu a madeira apenas o suficiente para que Tom se

esquivasse. Ele rolou para o lado e respirou fundo, descansando por um momento antes de tentar,com a ajuda de Rory , a se erguer.

Uma vez de pé, Rory sorriu com alívio.— Nós formamos uma grande dupla, não é?— Sim, senhor. — Tom sorriu de volta, mas dessa vez, o sorriso foi sombreado pela dor. —

Você viu Kerrigan?Rory se ajoelhou ao lado do corpo inerte, sentindo o pulso que não estava lá.— Ele está morto. Que vá em paz!— Ele não fará falta — Tom murmurou com voz estrangulada.— Você consegue andar? Temos de sair daqui antes que o restante do lugar caia sobre nós.— E Siobhán estará esperando para estrangular a nós dois — Tom acrescentou com ironia. A

perna machucada cedeu sob ele, e Rory o segurou pelo braço.— Apoie-se em mim — aconselhou com um sorriso travesso curvando os cantos da boca. —

Não seja teimoso como eu.— Nunca, milorde — Tom respondeu, obediente.O tom de voz era leve, mas havia uma nota de angústia subjacente nas palavras. Rory

suspeitava do porquê, mas naquele momento não tinha tempo para examinar os sentimentos deTom. Precisava sair com ele de lá antes que o estábulo desmoronasse. Juntos, apoiando-sefortemente um ao outro, os dois homens saíram para os braços de Siobhán.

— Glória a Deus, vocês estão bem! — gritou ela, antes de os dois desabarem a seus pés.Ela tocou o rosto de Rory apenas uma vez, como para assegurar-se de que estava tudo bem.

Então virou-se para Tom.— Você está ferido! O que aconteceu? Onde está Joe?Dessa vez, Rory observou Tom de perto e captou a angústia nua que perpassou o rosto

encoberto de fuligem. Rory conhecia aquele tipo de dor. O que Tom estava sentindo agora eraum eco do que ele próprio sentira anos atrás, na noite em que Seamus Doherty morrera.

— Ele está morto — respondeu Rory, enviando um olhar significativo ao amigo. — Masgraças a Deus, Tom está aqui, e todos os cavalos foram salvos. Vou chamar um médico paracuidar da sua perna, Tom. Vamos levá-lo até a Casa Grande. Enquanto isso, pedirei que alguémtraga Nora. Acho que ela deveria estar aqui com você.

— Não! — A voz de Tom soou firme, apesar da fumaça que ele tinha inalado. — Não —repetiu mais calmo, e Rory percebeu que a morte de Joe Kerrigan o afetara profundamente. —Ela... eu não quero que ela me veja assim. Poderia ficar perturbada, e isso seria ruim para obebê.

— Tom Fly nn, de todas as noções, essa é a mais ridícula! — Siobhán censurou.Rory balançou a cabeça em advertência. Levantando-se, tomou-lhe o braço e levou-a a

poucos passos de distância.— Envie Paddy para chamar Nora — aconselhou, calmamente. — E peça a ele que traga um

médico. Apenas certifique-se de que ela saiba que está tudo bem.— Eu vou buscar Nora.— Não. Se você for, Tom descobrirá. Não quero que ele saiba.— Por quê?A respiração de Rory estremeceu em um suspiro.— Siobhán, Tom matou um homem esta noite. Ambos sabemos que foi um acidente —

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acrescentou, apressadamente —, mas matar alguém, mesmo alguém que mereça, tem umefeito devastador, especialmente num homem como Tom.

O silêncio caiu sobre eles. As passadas dos homens certificando-se de que o fogo estavaextinto e que os cavalos estavam bem ecoavam ao longe. Porém, Siobhán via apenas Rory .

Ela viu o amor no rosto dele, apesar de como a tratara desde que soubera do bebê. Mas ela viumais que isso. Viu o peso da morte do pai sobre seus ombros. Viu a culpa por não ter sido capazde proteger aqueles a quem adorava. Viu a luz do futuro brilhar naqueles olhos.

Uma onda de alívio surgiu através dela, e desejou abraçá-lo e prometer que nunca o deixaria,assegurar-lhe de que ele era o melhor pai e marido em todo o mundo. Queria dizer-lhe mais umavez o quanto o adorava, e como o amor a ajudara a curar o coração ferido. No entanto, não dissenada.

Rory estendeu a mão e apertou seus ombros.— Eu sei — ele disse, calmamente, com uma promessa nos olhos. — Mas primeiro, quero

estar com Tom. — Fitou-a por um longo momento antes de continuar: — Quero impedir que elesinta a mesma culpa que eu senti por tantos anos. Devo isso a ele e a mim mesmo, especialmentepela lealdade que demonstrou.

O coração de Siobhán se encheu de orgulho.— Eu te amo, Rory O’Brien — declarou com a voz embargada pela emoção.— Eu também te amo, Siobhán O’Brien. Mais do que a minha própria vida.— Vá ficar com Tom — ela pediu em voz baixa. — Faça o que puder para aliviar a dor dele.

Depois volte para casa e para mim.— Esse é o melhor convite da minha vida!Com infinita ternura, Rory deslizou o dedo pela curva do queixo e a fitou nos olhos por um

longo momento antes de beijá-la carinhosamente, primeiro na testa, em seguida em ambas asfaces, e finalmente, com paixão insaciável, na boca. Então, ele voltou para perto de Tom.

Siobhán o observou se afastar com passadas instáveis, sem a bengala sempre presente, e seucoração ficou repleto de amor e orgulho. O passado teria finalmente sido superado? Toda a dor,culpa e tristeza estariam apagadas? Ela e Rory poderiam enfrentar o futuro sem os fantasmas dopassado?

Ela encontrou Paddy no grupo de homens designados para cuidar dos cavalos.— Vá encontrar Nora. Ela está com vovó Meg. Mas certifique-se de avisá-la que Tom está

bem. Diga-lhe... — Ela hesitou. — Apenas diga que Tom precisa dela. E envie alguém paratrazer um médico. — Com um suspiro, acrescentou: — E alguém precisa ir para a antiga casa deDoherty . Frank Kerrigan está lá. Você sabe como lidar com ele.

Paddy assentiu e virou-se para cumprir as ordens. Então olhou sobre o ombro para encará-la.— Estou contente com a volta do senhorio.Siobhán sorriu, o primeiro sorriso verdadeiro depois do que pareciam séculos.— Eu também, Paddy . Agora vá. Encontre Nora e traga-a para cá.Ela se virou para onde Rory e Tom conversavam. Observou por um momento os dois homens

a quem amava. Tom, que fora como um irmão mais velho, em quem ela depositara todas asesperanças e medos infantis, que estivera no túmulo de Michael com ela e a deixara chorar emseu ombro. Um homem forte e firme que tinha muito trabalho a fazer pela família, e que estariasempre pronto para ajudar os amigos.

E Rory, o homem que ela adorava, que havia quebrado a barreiras que ela própria construírae conseguira curar seu coração machucado. A bondade inata daquele homem a fizera resgatar afé na humanidade e aliviara seu espírito ferido. Seu amor a fizera renascer. Com Rory, elaatingira uma profundidade de paixão que nunca sonhara existir. Ela o amava. Amava-o de corpo,

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mente, coração e alma.Rory estendeu a mão para Tom. A mão direita, ela percebeu, e sabia exatamente o que o

gesto lhe custava. Ela chegou mais perto, o coração pulsando com ternura.— Eu tinha quinze anos quando meu pai morreu por minha própria mão. Poderia dizer que foi

um acidente. Ele caiu sobre uma faca que tinha usado em mim. Talvez pudesse chamar delegítima defesa, mas não havia dúvida de que eu queria vê-lo morto. Ele me espancou, assimcomo minha mãe, por muitos anos. — Ela o viu engolir em seco. — Ele matou minha mãe. Euqueria vê-lo morto. Mas foi um acidente. Assim como a morte de Joe Kerrigan foi um acidente.

— É verdade. Mas seja como for, eu o matei.— Você fez isso para me salvar — Rory apontou. — Para me proteger, e a minha família e

os cavalos. Não há vergonha nisso, Tom. Não faça o que eu fiz. — Sua voz embargou, e ele tevede parar para clarear a garganta. — Não deixe que a culpa o destrua. Passei anos me culpandopor coisas que estavam além do meu controle. Eu me culpava pela morte da minha mãe e deCharlotte. Eu me culpava por ser quem eu era. — Ergueu a cabeça, capturando o olhar deSiobhán. — Não foi até voltar para Ballycashel a fim de enfrentar meus fantasmas que percebimeu erro. A morte de minha mãe não foi culpa de ninguém além de Seamus Doherty. Charlottemorreu porque um homem movido pelo rancor queimou nossa casa. Não se debruce sobre opassado, Tom. Você tem uma esposa que o ama e um filho a caminho. Abrace-os. Abrace ofuturo.

— Tom!A voz de Nora ecoou no ar da noite. Rory ergueu-se quando ela se lançou nos braços do

marido com lágrimas nos olhos.— Você está bem, querido?Tom enviou um olhar significativo ao amigo.— Sim — disse, fechando os braços convulsivamente sobre ela. — Eu estou bem, Noreen.Rory balançou a cabeça, fazendo o caminho penosamente para onde Siobhán permanecia

com as mãos cobrindo os lábios trêmulos. Ela correu para ele e foi acolhida num abraço,enterrando o rosto nos cabelos fartos. Afastando-se, cobriu o rosto de seu amado com beijosardentes de paixão.

— Vamos para casa, meu amor — murmurou em seu ouvido.Ele levantou a cabeça para vislumbrar o verde glorioso daqueles olhos. Nunca seria capaz de

expressar a gratidão pelo amor que era oferecido com calor e honestidade genuínos.— Sim, meu tesouro — disse em voz baixa. — Vamos para casa. Nossa família está

esperando.

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Capítulo XXXV

Hannah os esperava à porta, e estendeu os braços para ambos assim que puseram os pés nasoleira.

— Ah, queridos! — murmurou com emoção. — Como estou feliz em vê-los a salvo efinalmente em casa. Eu ouvi o alarme e vi o fogo daqui, mas não podia deixar as crianças.

— Os estábulos sofreram perda total. — A voz de Rory denunciou seu cansaço. — E JoeKerrigan está morto. Frank vai procurar as autoridades competentes.

— Que Deus guie a alma daquele traste imprestável — Hannah murmurou antes de se virarpara Siobhán. — Como você está? E o bebê?

— Nós estamos bem, graças a Deus. — Ela deu um olhar significativo para Hannah. — Nóstrês estamos bem.

— Graças a Deus — Hannah ecoou, mas seu olhar permaneceu em Rory .Ele balançou a cabeça, deslizando o braço em torno da cintura da esposa.— Todos ficaremos bem, tia, depois de um bom sono.— Querem alguma coisa? Uma bebida, talvez, ou um copo de leite morno para Siobhán?Ela sorriu agradecida, agarrando-se ao braço de Rory quando o alívio e a exaustão a

venceram.— Traga leite quente, Hannah. Vou levar minha mulher para a cama.— Sim, senhor.Siobhán não perdeu o brilho persistente nos olhos da anciã enquanto observava Rory conduzi-

la até o quarto, o braço sobre sua cintura tão suave como se fosse feita de cristal.Ele abriu a porta com o ombro e ajudou-a a se deitar sobre a colcha, fitando-a com

preocupação.— Você está exausta. Não é de admirar, depois do que passou esta noite. O... o bebê está

bem?Ela sorriu, e a ternura encheu seu coração a ponto de transbordar.— Nosso bebê está muito bem — garantiu. — E hoje você passou por muito mais coisas do

que eu. — Ela estremeceu, piscando os olhos inundados de lágrimas. — Quando vi Joe atacá-locom aquela pá, quis matá-lo com minhas próprias mãos. Oh, Rory , fiquei apavorada!

A voz dela falhou, e Rory a estreitou em seus braços, segurando-a contra si, acariciando oscabelos sedosos.

— Eu estou bem quando sei que você está bem. — Rory engoliu em seco, e ela sentiu oarrepio que o percorreu. — E o bebê.

— Nosso bebê. — Ela sorriu.— Sim. Nosso filho.Ele procurou a boca úmida. Os lábios se encontraram em um beijo carinhoso que falava de

amor, perdão e promessas. Separaram-se, rindo, quando Hannah entrou com uma bandeja decomida e um jarro de leite. Ela a colocou às pressas sobre a mesa e saiu com o rosto queimandode constrangimento.

— Vou ouvir um sermão de Hannah amanhã por esgotar a minha esposa. — Rory afastouternamente um cacho de cabelos do rosto dela. — Quero que vista a camisola e se deite agora.Você e nosso filho precisam dormir.

— Hum... — Siobhán suspirou quando o marido começou a despi-la, uma peça de cada vez,beijando cada parte que desnudava.

Mesmo nua, ela não teve nenhuma vergonha. Deixou que a olhasse, e sorriu ante os olhos

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azuis, escuros de emoção quando procuravam avidamente por sinais da criança que elacarregava.

Seu filho.Aproximando-se, ela tomou a mão calejada e pousou-a sobre o ventre. Rory a fitou com

espanto, passeando o olhar da mão para o rosto suave.— Queremos um menino ou uma menina? — ela perguntou com a voz ligeiramente trêmula.Ele engoliu em seco, e quando a encarou mais uma vez, percebeu lágrimas nos olhos cor de

esmeralda.— Uma criança — ele respondeu, comovido. — Uma criança a quem amaremos. Uma

criança que crescerá cercada de amor. Uma menina, talvez, com a coragem da mãe,verdadeira, otimista e leal com aqueles a quem ama.

— Ou um menino — ela rebateu, cobrindo a mão com a dela própria. — Um menino com apaixão do pai por cavalos, o amor pela poesia e proteção que dedica aos outros.

— Menino ou menina — ele murmurou, acariciando o ventre que abrigava seu filho. — Eleou ela nunca conhecerá o medo ou a insegurança.

— Somente o amor e a ternura — ela concordou em voz baixa. — E muita felicidade!— Eu te amo, Siobhán O’Brien. — Deitando-se ao lado da esposa, Rory passou os braços ao

redor dela, enterrando o rosto no vale dos seios. — E eu tenho sido um tolo condenado. Vocêpode me perdoar?

Ao sentir os dedos suaves deslizar pelas costas, Rory prendeu a respiração, alimentando aesperança.

— Não há nada a perdoar. Eu sei como você tem medo. O que importa é ter feito as pazescom os fantasmas que assombraram o passado durante tanto tempo. Você não vê, Rory, que issoé o mais importante? Você abriu seu coração. E não apenas para mim, Katie e Ashleen, maspara a criança que vamos ter. Se pôde fazer isso, então, certamente colocou o passado para trás.

— Sim — ele murmurou, beijando o rosto delicado. — Eu enfrentei todos os meus fantasmas.Nunca vou temê-los novamente.

— Não tema nunca mais. Não há mais fantasmas nem escuridão. Haverá somente sol, alegriae amor. — Quando ele franziu a testa, Siobhán tocou o sulco entre as sobrancelhas com os dedosdelicados. — O que foi, meu amor? Há algo que ainda o incomoda?

Como um soco no estômago, Rory sabia que o momento havia chegado. Era hora de explicaro último segredo que restava entre eles, do qual não se orgulhava nem um pouco. Mas comopoderia explicar o medo de que ser abandonado por Siobhán se ela descobrisse seu envolvimentocom os Whiteboy s? O marido e o irmão haviam morrido por causa deles.

Inalando fundo, ele decidiu encarar a verdade de frente.— Você não disse uma única palavra sobre as acusações de Joe Kerrigan... — Ele fez uma

pausa e prosseguiu com dificuldade. — Sobre o meu envolvimento com os Whiteboys naAmérica.

Rory percebeu a tensão no corpo suave. Seus braços permaneceram enlaçando-a quando elatentou mudar de posição, e tentou puxá-la para mais perto, sufocado pelo medo.

Siobhán sentou-se, considerando-o solenemente enquanto afastava uma mecha de cabelospara trás da orelha.

— Eu ouvi o que Joe Kerrigan disse — ela admitiu, baixinho.— E?...— Ouvi também o que você disse.A voz fluiu sobre ele com carinho. A mão acariciou o maxilar, vindo a descansar sob o queixo

para forçá-lo a erguer o rosto. Ele viu o olhar de ternura na profundidade do brilho cor de

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esmeralda, e o sorriso gentil curvando os lábios rosados. — Você se recusou a transportar asarmas pelos Whiteboys. Não aceitou fazer parte de qualquer ato de violência.

— Vivi cercado de violência toda a minha vida. Kathryn era uma criança de oito anos deidade. Eu não queria me envolver em nada que pudesse causar-lhe dano.

— E foi por isso que guardou esse segredo de mim?Surpreso com a calma com que ela reagia, Rory assentiu com um gesto da cabeça.— Eu não poderia lhe contar que estava envolvido com os Whiteboys depois do que você

passou com Michael e Sean.— Oh, Rory... — Ela cobriu de beijos a testa e o rosto dele, até chegar aos lábios. — Meu

querido... Você estava tentando me proteger, mesmo se prejudicando. Achou que faria diferençapara mim que tivesse sido convidado para se juntar aos Whiteboys?

— Bem... sim — ele gaguejou, inseguro.Como não importaria a Siobhán saber que ele estava envolvido com a mesma organização

que lhe custara a vida do irmão e do marido?— Frank e Joe Kerrigan faziam parte dos Whiteboys?— Sim. E traíram Michael e Sean por dinheiro. Mas esta noite, Frank me disse que Michael

nunca fez o juramento. Ele não conseguiu dar o passo final.Um sorriso trêmulo pairou sobre os lábios dela, e o coração de Rory se encheu com uma

alegria que se refletiu nos olhos.— Ele me amou o suficiente para não se entregar completamente. Ele salvou um pequeno

pedaço de si por mim e Ashleen.Consciente do quanto a revelação significava para ela, Rory se alegrou por sua amada esposa.— Mas eu estava envolvido.— Você não estava envolvido — Siobhán o interrompeu. — Você conhecia um homem que

estava envolvido.— Conhecia mais de um — ele admitiu.— Bem, talvez conhecesse vários. Mas não era um deles. Você nunca foi um deles, e por quê?

Porque quis proteger a família. Porque você era o mesmo homem maravilhoso e gentil que éhoje. Não se envergonhe disso, Rory — ela falou com ternura.

— Pensei que você me odiaria — confessou com voz rouca. — Da mesma forma que odeia asimples menção dos Whiteboy s.

— Eu te amo, Rory O’Brien — ela jurou, e a voz terna lavou os últimos traços de culpa. —Você declarou paz a todos os fantasmas. Faça as pazes com o último. — Ela estendeu a mão paratocá-lo. — Enfrente o futuro comigo e com nossos filhos.

Ele apertou os dedos dela com força, sentindo o amor fluir através deles diretamente para ocoração. Por fim, todos os vestígios de culpa e medo desapareceram. Ela estava certa. Era ofuturo que importava, e agora o futuro parecia promissor.

Rory acalentou-a nos braços, contando todas as bênçãos que lhe tinham sido dadas desde seuregresso à Irlanda. Fora no inverno, menos de um ano antes, percebeu com espanto.

Ele tinha Ballycashel, a bela propriedade que trouxera de volta à vida, o lugar que passara aser seu lar. Tinha seus cavalos, a promessa de um estábulo cheio de caçadores que atingiriam osmelhores preços no mercado. Tinha os inquilinos, que também haviam se tornado amigos.

E ele tinha a família. Sua tia-avó Hannah, seu campeão e seus amigos. A adorável Katie, comquem forjara um vínculo novo e estreito, e Ashleen, tão cara como se fosse a própria filha. Eagora, havia a promessa de uma nova criança, um filho ou uma filha a quem ele jurou dedicartodo o seu amor e carinho.

E lá estava sua esposa, a quem amava mais do que a própria vida. Siobhán, cuja inabalável fé

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e amor constante tinham feito romper barreiras através da raiva, autopunição e medo. Siobhán,que lhe ensinara a confiar e a acreditar em si mesmo. Siobhán, que lhe ensinara a amar.

Rory baixou a cabeça, ansioso por compartilhar os pensamentos com ela. No entanto, em vezde falar, ele deu um sorriso, com o coração tão cheio de amor que poderia explodir. Os olhosdela estavam fechados no sono, com os cílios descansando sobre as faces rosadas e os lábioscarnudos entreabertos. Deitada de lado, aninhava-se confiante a ele. Rory não queria nada maisdo que ficar ali, segurando-a assim para sempre.

Ele acariciou a pele de marfim.— Durma, meu tesouro — sussurrou com os olhos ardendo. — Durma e deixe nosso filho

arredondar seu ventre.Aconchegando-se contra o corpo cálido, ele descansou a cabeça sobre a dela, sentindo a

familiar dor afiada da alegria engolir todo o seu ser.Sim. Finalmente, ele voltara para casa.

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Capítulo XXXVI

Eles não deviam ter se movido durante toda a noite, Siobhán pensou ainda sonolenta ao abriros olhos para a manhã brilhante de outono. Virando-se, contemplou os cabelos de Roryespalhados no travesseiro a seu lado, e uma onda de alívio a invadiu.

Ele estava bem, percebeu com gratidão. O peito musculoso arfava com a respiração regulardurante o sono tranquilo.

Estendendo a mão, deslizou os dedos suavemente sobre o rosto barbado, tomando cuidadopara não acordá-lo. Rory precisava daquele sono, depois de tudo que passara na noite anterior,não só física, mas emocionalmente. Um sorriso secreto, alegre e terno curvou seus lábios aopensar nas palavras sussurradas em seu ouvido. Ambos haviam lançado os fantasmas do passadopara o descanso final. Agora poderiam olhar para a frente e encarar um futuro cheio defelicidade, amor e filhos.

Ela admirou o rosto amado enquanto dormia, sequiosa por tê-lo a seu lado após dias e noitessolitários em que Rory estivera longe. Como era lindo, assim, adormecido! A boca sensual securvava num leve sorriso, como se doces sonhos o acalantassem. Ternamente, ela afastou amecha de cabelo caída sobre a testa. As pálpebras estremeceram por um breve instante antes dese erguerem. Ele sorriu, transmitindo tanto amor e contentamento que lágrimas brotaram dosolhos de Siobhán.

— Bom dia, meu tesouro.— Bom dia, meu amor. — Debruçando-se, ela pousou um beijo naquele sorriso.Rory enlaçou a mão por trás de sua nuca e a puxou, prolongando o abraço até que ambos

ficaram sem fôlego.— Dormiu bem?Rory assentiu e, libertando-a, espreguiçou-se com um sorriso iluminando o rosto enquanto a

fitava com olhos brilhantes.— Tive o melhor sono da minha vida. Apesar dos acontecimentos de ontem à noite e da dor

na perna, acho que nunca dormi tão bem. — Tomando a mão pequenina, ele levou-a aos lábios.— E foi por sua causa. Obrigado, mo bláthaigh.

Ela sorriu ante o carinho tolo, murmurado numa combinação sensual de sotaque sulista eirlandês que tocou seu coração. Deitou-se contra o travesseiro e olhou-o com amor.

— Estou feliz por você estar de volta.Uma sombra fugaz atravessou o rosto iluminado.— Eu nunca deveria ter saído. Sinto muito.— Shh... — Siobhán cobriu os lábios dele com os dedos e substituiu-os por um beijo de amor.

— Não. É um novo dia agora, e uma nova vida para todos nós. Para você, para mim, Katie,Ashleen e o bebê que vamos ter. Não há mais fantasmas. Não vamos mais olhar para trás. Háapenas o futuro agora, e a esperança de sermos felizes. Eu sei disso.

O olhar azul cristalino refletiu um brilho de esperança quando ele, gentilmente, a puxou paraseus braços, segurando-a com firmeza.

— Com você em meus braços, finalmente sou capaz de acreditar no futuro.Siobhán suspirou e se aconchegou a ele.— Eu te amo, Rory . Você me fez renascer.— E você me ensinou a amar, me deu esperança e resgatou minha própria autoestima. — De

repente, ele sorriu. — Você é como uma princesa dos contos de fadas de Katie, que quebra amaldição secular sobre o príncipe.

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— Não de um príncipe, mas de um grande rei. Você adotou o sobrenome de sua mãe, mas éfácil acreditar que seja descendente de Brian Boru, o maior rei de toda a alta Irlanda.

— Não de toda a Irlanda, meu amor. Ballycashel é o único reino que eu preciso. Ballycashel,você e nossa família.

— Você tem a mim — ela assegurou, sentindo a alegria transbordar no coração. — Você tema todos nós. Para sempre.

— Então, tenho tudo o que poderia querer.Rory cobriu a boca de Siobhán com a sua em um beijo inebriante, enquanto as mãos

percorriam o corpo delicado numa exploração sensual. Ela respondeu apaixonadamente,acariciando a penugem da nuca enquanto arrepios percorriam seu corpo. Então fez uma pausa,com olhar de incerteza.

— O que foi? — ele perguntou, estranhando a reação.— Sua perna...— Está tudo bem...Rory terminou a frase com um beijo que traduzia mais do que paixão. Amor, esperança e

perdão... a promessa de futuro. Mais do que isso, a realização final de que o passado ficara paratrás, de que os eventos que tinham arruinado sua vida já não podiam machucá-lo ou a alguémque ele amava. O futuro era promissor.

Vagamente, Rory tomou consciência dos sons através da janela aberta. O tamborilar demartelos, o zumbido de serras e o burburinho animado de pessoas de boa índole.

O que estava acontecendo lá fora?— Que os santos nos protejam! — Obviamente, Siobhán também ouvia. — O que pode estar

acontecendo? Eles estão reconstruindo a arca de Noé num dia tão lindo como este?Erguendo-se da cama, Rory foi até a janela e olhou para fora, inalando drasticamente à

medida que seu olhar incrédulo recaiu na cena abaixo.— Venha ver! — ele conseguiu balbuciar com uma voz que soou estrangulada até para os

próprios ouvidos.— O que houve?Siobhán jogou apressadamente um manto sobre os ombros e correu descalça até a janela.

Olhou por cima do ombro de Rory e prendeu a respiração.— Oh, Rory !— Vamos! Desça! — o chamado de Liam Brady, com um sorriso enorme no rosto, chegou

até eles. — E traga sua esposa consigo!Rory acenou em reconhecimento e se afastou da janela.— Vamos descer e ver o que está acontecendo?Ela assentiu e o fitou com falsa censura:— Mas primeiro, você deve vestir alguma coisa, sr. O’Brien. Não quero que choque metade

das mulheres de Bally cashel.— Só a metade?Ela riu e deslizou os braços pelo torso nu.— A outra metade estará verde de inveja! — disse, pressionando o corpo contra o dele.Rory roçou o quadril contra o ventre liso, desejando-a desesperadamente.— Hum, melhor parar — murmurou carinhosamente, afastando-se quando a paixão quase o

venceu. — Vamos descer — repetiu, tentando reprimir a excitação quase insuportável.Aquele era, de fato, o início de uma nova vida. E Siobhán parecia compartilhar de sua

antecipação, pois os lindos olhos verdes estavam brilhantes de entusiasmo. Ela assentiu com acabeça e apressou-se a se vestir, seguindo-o pela longa escada.

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Os inquilinos se reuniam no pátio e se calaram quando Siobhán e Rory emergiram para a luzdo sol, com a pesada porta de carvalho se fechando atrás deles. Liam Brady e Paddy Devlinadiantaram-se à frente do grupo, assumindo o papel de porta-voz, Rory supôs.

— Que história é essa? O que está acontecendo aqui?Rory tentou soar natural, mantendo as costas eretas numa atitude de senhor da casa. No

entanto, um sorriso curvou os cantos de sua boca, e o prazer se evidenciou no tom de voz. Elesabia que seu povo o ouviria. E estava contente em revê-los!

Estavam todos lá, até as mulheres e crianças, todos com um sorriso radiante, brandindomartelos, ferramentas, sacos de pregos, serras. Algumas das mulheres traziam cestos penduradosnos braços, outras carregavam jarras que podiam conter leite, ele pensou, esperançosamente.

Mas do que se tratava aquilo tudo?— Nós declaramos feriado hoje, senhor. — Um sorriso largo se espalhou no rosto de Liam.— Esta é uma grande ocasião, de fato, senhor — Paddy Devlin informou. — Bally cashel está

livre da maldição do passado, graças ao senhor. Tivemos a mais grandiosa colheita em anos, eisso nos deu esperança para o futuro. O senhor nos deu essa esperança. Bem, agora, é nossa vezde retribuir o favor.

— Vamos erguer o estábulo! — Kevin, o jovem primo de Paddy, gritou acima do burburinho.— Este será nosso barn raising irlandês.

As palavras o acertaram como um soco no estômago. Emocionado, Rory mal sentiu a mão deSiobhán apertando seu braço, mesmo com as unhas cravadas na pele. Aquelas pessoas, o seupovo, iam reconstruir o galpão?

— Por quê? — exigiu com voz rouca, falhando miseravelmente em disfarçar o tremor da voz.— Por tudo que fez por nós.Tom e Nora se aproximaram e apertaram as mãos de Rory com força. Nora parecia

radiante, e para alívio de Rory , Tom não estava seriamente ferido.— Porque, sem você, nossa casa ainda estaria sem palha — acrescentou Nora. — E eu não

teria meu Tom aqui hoje se não tivesse entrado no estábulo para tirá-lo.A garganta de Rory se apertou. Ele tateou às cegas para a mão de Siobhán.— Eu só tive de trazê-lo para fora porque ele entrou para salvar os meus cavalos — lembrou a

Nora.— Não fiz mais do que qualquer outro homem teria feito — Tom garantiu.— E quanto à minha plantação? — interveio Eileen O’Farrell, movendo-se para a frente da

multidão com um jarro sob o xale. — Ora, foi destruída por completo, e o senhor me deu oalimento da sua horta, e não pediu um único centavo em troca.

— O povo de Ballycashel deve cuidar uns dos outros — disse Rory, constrangido com oselogios.

— Nunca antes tivemos um proprietário que tivesse essa postura — acrescentou MariaCrowley, com um raro sorriso no semblante austero. — Em outros tempos, teríamos sidodespejados há muito.

— E o meu emprego nos jardins? Sem o salário, teria de ter deixado a aldeia.— Eu precisava de um jardineiro. — Rory olhou, desamparado, para Siobhán, comovido com

a gratidão. Ela apenas enviou-lhe um sorriso radiante, cheio de amor e orgulho, com lágrimasnos olhos.

— Aceite-o, meu amor. — Ela apertou os dedos duros. — Eles o amam.— Que Deus abençoe o nosso senhorio!— E agora, vai nos deixar erguer uma construção estável?— Vai nos permitir retribuir ao senhor o bem que nos proporcionou?

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Rory olhou para os amigos e vizinhos em pé diante dele, com a garganta obstruída pelaemoção. Os olhos piscaram, embaçados pela névoa irlandesa enquanto ele lutava por palavras.

— Meus queridos amigos... — Embora instável, a voz soou forte. — O que posso dizer? Volteipara a Irlanda como um estranho total, e vocês me acolheram em seus corações e lares. Vocêsme aceitaram mesmo quando descobriram que vim sob falsos pretextos. Ficaram a meu ladomesmo quando suas próprias casas estavam ameaçadas. Eu diria que sou o único abençoado porter tão bons amigos. Abençoado por ter uma família tão maravilhosa. — Virou-se para Siobhán,sabendo que o coração ardia em seus olhos. — Feliz por ter encontrado uma nova vida e o amor,depois de tanto tempo.

As lágrimas de Siobhán transbordaram, e a multidão rugiu em aprovação quando eleacariciou delicadamente uma gota do rosto adorado. Em seguida inclinou a cabeça para pousarum beijo carinhoso nos lábios macios.

Quando se afastou, ele sorriu.— Estão vendo agora quem é abençoado?— Não podemos negar, senhor! — gritou Mickeen MacGreevy .Alegria, pura e simples, transbordou do peito de Rory, e ele abraçou a mulher a seu lado,

permitindo que as próprias lágrimas fluíssem sem controle.— Então — ele chamou os inquilinos com a voz trêmula. — Vamos construir um estábulo!A alegria explodiu, e os moradores se puseram em ação. Trabalharam durante todo o dia,

parando apenas para participar da deliciosa refeição que as mulheres e as meninas tinhampreparado. No final do dia, o estábulo estava reconstruído, e Ree e os outros cavalos foramlevados com segurança para as baias novas.

Era tarde, e o céu estava forrado de estrelas cintilantes, quando Rory e Siobhán acenarampara Tom e Nora, os últimos a sair. Siobhán abraçou-os, e Nora pressionou um beijo tímido norosto de Rory . Ele arrancou um grito alegre dela quando a agarrou pela cintura e a abraçou.

— Que Deus a acompanhe, Nora Flynn — repetiu a bênção secular.— E que fique contigo, Rory O’Brien. Foi um longo caminho para trazê-lo de volta para casa.— Ela está certa — disse Siobhán com os braços sobre os ombros dele ao subirem a escada

para o quarto. — Foi uma longa jornada, mas você finalmente voltou para casa. ParaBally cashel e para mim.

— Você é a minha casa — ele afirmou, beijando-a ternamente. — Você e nossos filhos. E eununca vou deixá-la novamente.

— Você trouxe Ballycashel de volta à vida — Siobhán disse, simplesmente. — Você metrouxe de volta à vida, Rory . Eu te amo, e serei eternamente grata por tê-lo encontrado.

— Nós encontramos um ao outro — ele emendou, brincando com os cachos macios doscabelos sedosos.

Siobhán o envolveu pelo pescoço, moldando-se contra ele, exultando ao sentir o corpo viril seacender para a vida em suas mãos.

— Venha para a cama, meu marido — ordenou com voz rouca. — Venha para casa... Venhapara mim.

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Epílogo

Um gemido estridente cortou o ar.Enrustido na biblioteca recém-decorada, Rory ouviu o som que o cortou como uma faca. Pôs-

se de pé e deu um passo em direção à saída, dobrando-se quando a perna esquerda cedeu sobele.

Naquele mesmo momento, alguém bateu à porta.— Entre! — gritou, recompondo-se.A porta se abriu e Meg entrou, com os olhos sábios cheios de lágrimas.— Acabou, Rory .A antecipação correu pelo corpo dele, e de repente ele começou a tremer.— Como está Siobhán? O bebê?... Diga-me!Um sorriso iluminou o rosto cansado e alegre de Meg, fazendo-a parecer uma menina

novamente.— Você tem um filho, Rory O’Brien. Um garoto com fiapos de cabelos pretos e os olhos mais

azuis que eu já vi.Com um grito de alegria, Rory abraçou Meg e girou pelo aposento. Ela riu com prazer, e suas

lágrimas se misturaram.— E Siobhán? Ela está bem? Posso vê-la?— Minha neta está bem. Ela é tão forte como sempre foi desde menina. Afinal, é uma

Kilpatrick, não é? Poderá ver os dois em um minuto — Meg prometeu. — Hannah os estápreparando para receber as visitas.

Passos apressados soaram do lado de fora, e Katie e Ashleen irromperam dentro do quarto,sem fôlego, com os rostos jovens iluminados pelo entusiasmo.

— Nós ouvimos um grito, papai! — exclamou Katie.— É o nosso irmão, tio Rory? — quis saber Ashleen.A garganta de Rory estava obstruída pela emoção. Sem dizer nada, assentiu com a cabeça,

estendendo os braços para as duas meninas, que correram para ele.— Vocês têm um irmão, meninas — declarou, e a voz foi abafada pelas exclamações de

euforia.— É um menino! É um menino! — Os olhos verdes de Ashleen brilharam da mesma maneira

que os da mãe.— Eu não disse? — Katie empinou o queixo, vitoriosa. — Eileen O’Farrell avisou que seria um

menino!— É o bebê mais bonito que já vi — Meg comentou com um sorriso orgulhoso.Rory desviou a atenção da algazarra das meninas quando Hannah entrou. Todos os seus

sentidos entraram em alerta.— Posso vê-los agora? — perguntou à tia com ansiedade crescente.Ela assentiu com um sorriso fascinado.— Claro. É um menino saudável, Rory. Ele me faz lembrar você quando veio ao mundo. —

Hannah ergueu a mão e ajeitou os cabelos. — Que todas as bênçãos caiam sobre você e suafamília, Rory O’Brien.

Sufocado pela alegria, Rory a abraçou em silêncio. Então, subiu dois degraus de cada vez ecorreu para o quarto principal. Parou na porta para admirar a cena diante de seus olhos.

Siobhán se recostara contra as almofadas, embalando o bebê de cabelos pretos com uma docecanção em gaélico. Uma brisa suave soprava pela janela aberta. Um vagido satisfeito veio do

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minúsculo corpinho aninhado nos braços da mãe, e o coração de Rory palpitou no peito.— Siobhán.A voz era quase inaudível, mas ela ouviu e ergueu os olhos, que brilhavam de amor.— Venha conhecer seu filho.Meu filho...Movendo-se como um sonâmbulo, Rory se aproximou da cama. Manteve o olhar preso em

Siobhán, quase com medo de olhar para a criança que ela segurava tão gentilmente nos braços.Assim que ele parou ao lado do leito, o bebê acordou de repente, abrindo os olhos e emitindo umgrito exigente, com os bracinhos estendidos como num convite.

Siobhán riu, carinhosamente.— Este é seu filho, Rory O’Brien.— Meu filho — ele ecoou.Seus braços tremiam quando seguraram o bebê. Os olhos redondos, profundamente azuis,

pareciam estudá-lo e lhe dar aprovação tácita.— Ele é lindo — foi tudo o que Rory conseguiu balbuciar.Duas faces pequenas apareceram pela fresta da porta.— Podemos vê-lo, Siobhán? — Katie perguntou, baixinho.— Prometemos não fazer nenhum ruído, mamãe — Ashleen sussurrou. — Queremos ver

nosso irmãozinho.Siobhán assentiu com um sorriso. Rory se sentou na cadeira ao lado da cama, e as meninas,

Hannah e Meg se reuniram para admirar a criança que fizera a família completa.— Como vão chamá-lo? — perguntou Hannah.Rory olhou do bebê para Siobhán.— Estive pensando nisso... — Ele acariciou com delicadeza os cabelinhos ralos. — O que acha

de chamá-lo Sean?Siobhán ficou imóvel. Lágrimas brotaram de seus olhos, e seu coração se encheu de alegria

quando viu sua vida fechar um círculo completo.Sean. Querido, doce, alegre, amado Sean! Seu bebê teria o nome do tio, o irmão que ela

adorava, e do avô, Sean Kilpatrick, o amado pai que lhe ensinara tanta coisa, o pai amoroso que achamava de Alanna, que acariciava seus cabelos com mãos calejadas e cheias de amor.

E agora, a memória de seus familiares amados viveria naquele pequeno bebê de cabelospretos, um menino que viria a ser forte e saudável, que brincaria na relva com as irmãs maisvelhas. Um rapaz que aprenderia a amar a poesia e as histórias mágicas da Irlanda.

— Sean, então — ela disse, baixinho, olhando para o bebê que agora dormia nos braços do pai.Ele sustentou seu olhar e sorriu, e o coração de Siobhán se derreteu com ternura. Oh, comoamava aquele homem! — Sean David O’Brien.

— Como vovô e tio Sean? — Ashleen perguntou, estendendo um dedo tímido para tocar opunho cerrado do bebê.

— Sim, amor da minha vida, como seu avô e seu tio. Você gostou?Ashleen acenou com a cabeça, vigorosamente.— Hum-hum.— E David como meu pai, não é? — perguntou Katie.— Isso mesmo, minha querida. Este rapazinho levará o nome das três das pessoas que amo

mais do que a própria vida.— Será uma honra para ele levar esses nomes. E ele estará sempre cercado de amor. —

Rory riu quando Sean David O’Brien acordou com um grito poderoso. — Acho que nosso Seanestá com fome, meu tesouro.

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Entregando o bebê de volta para a mãe, Rory sorriu ao ver Siobhán oferecer o seio à criança,que começou a sugar com avidez.

Eles permaneceram assim, encapsulados em carinho e amor, até que batidas à portaromperam o silêncio.

— Quem pode ser? — Hannah se virou, curiosa.— Alguém que quer molhar a cabeça do bebê — Meg antecipou com um sorriso, referindo-

se ao costume de o pai pagar bebidas aos amigos após o nascimento de uma criança.— Vou ver quem é — avisou Hannah, mas antes que pudesse terminar a frase, a porta se

abriu e bateu contra a parede oposta no hall.— Siobhán! — A voz de Tom se elevou acima das escadas. — Rory ! Você está aí?— Vou pedir a Tom Flynn para baixar a voz, para não perturbar o rapazinho — Meg declarou

com gravidade.Porém, Siobhán a encarou com um sorriso.— Rory, traga-o para cá. Tom é a pessoa mais próxima de um irmão mais velho que eu

tenho, e deve ser algo importante para ele estar tão exaltado.Rory deu um sorriso indulgente à esposa.— Qualquer coisa para a mãe do meu filho.Em um minuto, ele voltou com um Tom radiante.— Nora teve o bebê! — Tom gritou. — Uma menina!— A esposa adequada para o senhor da casa — declarou Siobhán. — Tom, venha conhecer

Sean David O’Brien.Tom olhou para os rostos sorridentes que o rodeavam. Siobhán não pôde deixar de rir. Era

óbvio que, em sua excitação com a chegada da filha, ele não havia refletido sobre o que todosfaziam, reunidos no quarto. Timidamente, Tom se aproximou da cama e olhou para o bebê comadmiração.

— Ah, é um belo garoto, Siobhán. Que ele sempre caminhe na luz do sol, e que os anjospousem as asas ao lado de sua porta.

As lágrimas inundaram os olhos de Siobhán ao ouvir as palavras da antiga bênção irlandesa.Estendendo o braço, pegou a mão de Rory e segurou-a com firmeza. Olhou para os amigos efamiliares reunidos ao redor, grata pela segunda chance que a vida lhe dera.

— Os anjos devem ter sorrido no dia em que vieram a Ballycashel — Rory murmurousomente para ela ouvir. — Pois foi em Ballycashel que conheci você.

— E eles estão cantando agora?— Escute, meu tesouro. Não consegue ouvi-los? Estão cantando seu coro mais alegre pelo

dom precioso que nos foi dado. — Rory beijou a esposa com ternura. — Fé, esperança e amor.Você me deu tudo isso.

— E você... — ela murmurou de volta — ...você me ensinou a amar novamente.— E nenhum de nós jamais se esquecerá disso. Nossos filhos crescerão cercados de amor,

paz e felicidade.Siobhán acariciou o rosto amado no mesmo instante em que um raio de sol brilhante perfurou

as nuvens cinzentas, como um símbolo do amanhecer da esperança.

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A Nova Cultural tem muito mais emoções para você!

PAIXÃO SOMBRIASara Reinke

Selo: BiancaAugustus Noble é um homem que convive com muitos segredos. Sua vida inteira foi

construída com meias-verdades, traições e mentiras. Medidas desesperadas para manter amulher que ele ama, Eleanor Trevilian, em seu poder. Patriarca de seu clã, Augustus lutoudurante séculos para criar um império de riqueza e prestígio para sua amada. Agora, porém, tudoo que ele lutou está em perigo, e Augustus não pode deixar que um inimigo de longa datadescubra uma verdade que poderá pôr os membros de seu clã em risco...

Por direito de primogenitura, Eleanor Trevilian já teria garantida uma vida longa, além de seucasamento com o líder do clã lhe proporcionar também riqueza, luxo e conforto. Contudo, umadoença que secretamente devasta os membros de seu clã há gerações agora a aflige também.Seu prognóstico é sinistro, sua vida pode perder todo o sentido...

Ao longo de quase duzentos anos, Eleanor amou Augustus Noble, uma paixão que desafiavaaté as mais sagradas leis da Confraria dos Brethren. Por esse amor, ele a forçou a partir... Paraprotegê-la, ele partiu seu coração. Agora, Eleanor precisa regressar à fazenda no Kentucky queum dia foi seu lar, e ao núcleo da família, para salvar não só os seus entes queridos, comotambém Augustus. Porque, se ela não fizer isso, se por alguma eventualidade ela falhar, tudo oque ela e Augustus conheceram será destruído, inclusive o amor que compartilham...

PARAÍSO PROIBIDOKimberly Killion

Selo: Clássicos Históricos EspecialForçado a fugir da Escócia em sua juventude e a abrir mão de um futuro como chefe de seu

clã, Reid MacGregor prospera no Caribe depois de encontrar ouro. Mas ele ainda tem dois outrostesouros a reivindicar: a biblioteca perdida de uma antiga sacerdotisa maia e a jovem que eledeixou para trás...

Em seu esconderijo nas matas de Glenstrae, Mary -Robena Wallace vigia as fronteiras com osmembros de seu clã, desesperada para salvá-los da crueldade do rei James. Renomada por suahabilidade como escavadora, ela concorda em unir forças ao homem que a abandonou e viajarcom ele para o Caribe, em busca de ouro. Mas os frutos de um paraíso exótico e o beijo proibidode um traiçoeiro sedutor ameaçam desviá-la de seu objetivo...

A HISTÓRIA DE JANEJoan W olf

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Selo: JuliaLady Jane Fitzmaurice tinha tudo o que a sociedade aprovava e valorizava: uma beleza

impecável, uma criação perfeita e uma respeitável fortuna. Mas sua personalidade forte efirmeza de opinião, por outro lado, provocavam críticas e comentários. Onde já se vira umadama bem-nascida passar mais tempo em cima da sela de um cavalo do que em sua saleta,bordando? Como podia ela preferir a companhia de David Chance, o charmoso treinador decavalos, à de Julian Wrexham, o nobre mais atraente da Inglaterra? Lady Jane já deixava asociedade em polvorosa, mas um escândalo inédito estava prestes a explodir, no momento emque ela transgrediria todas as convenções e se prepararia para dar um passo perigoso, quepoderia arruinar seu bom nome e deixar seu coração partido para sempre...

ARDIL DE UM CORAÇÃOPatricia Rice

Selo: Clássicos HistóricosDois enigmas deixavam Arianne Richards perplexa. Por que o atraente e rico lorde Galen

Locke estava tão interessado no misterioso retrato que ela havia encontrado? E por que essecavalheiro nobre, lindo e irresistível demonstrava tanto interesse por ela quando estavacomprometido com sua prima, a carismática e cativante lady Melanie? Uma das perguntasatiçava a mente de Arianne... A outra inquietava seu coração... E ambas ofereceriam respostastão surpreendentes quanto os fantasmas do passado e os segredos do amor...

O CONDE CIGANOMary Jo Putney

Selo: Best SellerEle era conhecido por “Conde Demônio”, e diziam que era capaz de tudo. Filho de um

embusteiro e de uma cigana, Nicholas Davies transformou-se em um notório libertino, até queuma traição devastadora o deixou sozinho e amargurado em meio à paisagem rural do País deGales. Só mesmo o desespero levaria uma tímida e reservada professora a pedir ao CondeDemônio que a ajudasse a salvar seu vilarejo... Sem disposição para se envolver nos problemasalheios, Nicholas pediu um preço alto por sua ajuda: somente se Clara concordasse em vivercom ele durante três meses, deixando que todos pensassem o pior dela, ele interviria na questãoque tanto a afligia. Furiosa, porém sem escolha, Clara aceitou o desafio ultrajante, e os doisforam arrastados para um mundo inebriante de perigo e desejo. Como aliados, Clara e Nicholaslutavam para salvar a comunidade dela... Como adversários, exploravam um terreno perigoso depoder e sensualidade... E como amantes, entregaram-se a uma paixão que ameaçava abalar osalicerces de suas vidas...

DESTINO INSÓLITOKathryn Kramer

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Selo: Clássicos Históricos Especial

Escócia, 1565Casada contra a sua vontade com um brutamontes das Terras Altas, a linda e graciosa Ky ly nn

Gowrie sentiu-se reviver quando conheceu o atraente Roarke MadKinnon...Roarke irrompeu de repente na corte da rainha Mary da Escócia, para reivindicar suas terras,

mas seus modos gentis e sua ternura conquistaram o coração de Ky ly nn, que ansiava porentregar-se àquela paixão proibida...

Quando, porém, a rainha da Inglaterra tramou um ardil para a rainha da Escócia, a quemKy ly nn venerava, o destino fez de Roarke seu inimigo. Seria o amor deles forte o suficiente parasobrepujar as agruras e as traições de uma guerra implacável?...

O FEITIÇO DE BELTANEPat Rice

Selo: BiancaInglaterra, 1750

Ninian Malcolm Siddons vive sozinha numa cabana desde que perdeu a avó. Consideradacomo bruxa pela maioria dos moradores do vilarejo, Ninian não pode contar com ninguém, etem de se conformar em ficar apenas observando, enquanto as moças e rapazes de sua idadesaem e se divertem na noite de Beltane. Não que ela não seja uma jovem encantadora eatraente... Muitos rapazes adorariam namorá-la, não fosse o receio de serem vistos emcompanhia de uma bruxa...

Drogo Ives é um dos poucos que não resistem aos encantos de Ninian. Aproximados por umfeitiço, nenhum dos dois consegue se afastar do outro. Entretanto, não é somente lenda,superstição e perigo que Drogo e Ninian terão de enfrentar... Eles terão de superar também adificuldade de Drogo de confiar em alguém, e a maldição da família Malcolm. E à medida que operigo se acerca cada vez mais, Drogo e Ninian precisam decidir se são capazes de confiar umno outro o suficiente para sobreviver ao caos e ser felizes juntos...

A FARSA DA CONDESSAJoan W olf

Selo: Clássicos Históricos

Inglaterra, Século XIXAmiga leitora,Quero deixar bem claro que não foi minha a ideia de criar uma armadilha para o melhor

partido da Inglaterra, o conde de Greystone, se casar comigo. Meu tio, lorde Charlwood, é queestava por trás dessa pequena tramoia. Se meu pai não tivesse sido morto e me deixado aoscuidados de Charlwood, nada disso teria acontecido...

De repente, eu era lady Greystone, uma condessa e uma senhora casada. Aprender a ser

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condessa não foi tão difícil. Aprender a ser casada teria sido bem mais fácil se eu não corresse orisco de me apaixonar perdidamente pela única pessoa que estava além do meu alcance... meumarido!

Bem, se eu não podia conquistar o amor de Adrian, pelo menos eu estava determinada a mevingar, pelo meu pai. Eu jurei desmascarar o assassino dele, e não me importava de correr perigopara alcançar meu objetivo. Portanto, se você, caríssima leitora, está curiosa para saber como eume saí dessa, leia esta história...

Com todo o meu carinho, Kate, Condessa de Greystone

ANJO DIABÓLICOLori Brighton

Selo: Bianca

Quando Ashley Hunter herda a hospedaria onde seu pai desapareceu anos atrás, ela vê achance de finalmente descobrir a verdade sobre o misterioso desaparecimento. Mas logo depoisde tomar posse da decrépita construção, ela percebe que herdou não só respostas para antigasperguntas, como também espíritos, demônios e aé anjos caídos! E então entra em cena CristianLucius, um homem bonito, charmoso e atraente, insistindo que quer apenas alugar um quarto nahospedaria. Ashley acredita nele, até que, um por um, seus fantasmas começam a desaparecer...

Como anjo caído, destinado a uma vida de servidão, Cristian está incumbido de proteger aTerra de espíritos indesejáveis. Mas ele não pode realizar essa tarefa sozinho. Ele precisa daajuda justamente da mulher que o deixa tão frustrado quanto intrigado. Cristian está decidido aignorar a intensa atração que sente por Ashley e concentrar-se em sua missão. Se eles nãocooperarem um com o outro, não terão a menor possibilidade de derrotar o demônio queameaça suas vidas. O problema é conquistar a confiança de Ashley... Uma façanha nada fácil,considerando-se que o homem responsável pelo desaparecimento do pai dela é ninguém menosdo que ele próprio...

AMOR E OBSESSÃOBrynn Chapman

Selo: Clássicos Históricos

Determinada a esquecer um passado de amarguras e a começar uma nova vida, ConstanzaSmythe deixa sua terra natal, a Inglaterra, e aceita um emprego de professora na América, masacaba sendo alvo das atenções de dois homens.

Ao conhecê-la, Edward Teache, o infame pirata conhecido como Barba Negra, se dispõe afazer qualquer coisa, seja dentro ou fora da lei, para torná-la sua noiva.

Porém, as mãos do destino, põe em seu caminho, Lucian Blackwell, um fazendeiro daCarolina do Norte, que se apaixona por Constanza e está determinado a protegê-la das garras domais terrível pirata de todos os tempos...

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O PRELÚDIO DE CAMELOTCynthia Breeding

(1º livro da série Camelot)

Selo: Clássicos Históricos Especial

Bretanha, 480

Um menino nascido para ser reiUther Pendragon, o rei de Kernow, deseja Ygraine, mulher de um de seus vassalos. Com a

ajuda do mago Myrddin, ele consegue tê-la e, com ela, concebe Arthur.Arthur cresce sem saber quem é seu pai. Seu mentor é Myrddin, e a única coisa que ele sabe

é que deve lutar para salvar a Bretanha dos saxões...

Uma menina destinada a ser rainhaO melhor amigo de Arthur é Bedwyr, irmão mais velho de Gwen, uma menina independente

e corajosa, que vive em Cameliard e está determinada a livrar o vilarejo do jugo de um homem,seja ele quem for.

Arthur e Gwen só se viram quando crianças, mas na adolescência ela tem sonhos frequentescom um guerreiro valente e bonito, alguém que ela não conhece, mas que lhe desperta fantasiasromânticas e sensuais...

Um príncipe com sangue de feiticeiroA força de Lancelot nas batalhas se equipara à de Arthur, assim como suas habilidades na

cama... uma competição que um dia irá determinar o destino de Camelot...

A CAVERNAAmber Dawn Bell

Selo: Bianca

Você acredita em vampiros?

Eu, com certeza, não acreditava. Pelo menos até descobrir, no dia do meu aniversário dedezesseis anos, que eu era tudo menos humana. E a cereja do bolo – se é que se pode considerarassim – é que eu sou a primeira Vânător a existir depois de mais de quinhentos anos! Issosignifica que minha missão é ser caçadora do mal. Isso mesmo, eu sou uma Buffy da vida real...

Para piorar as coisas, estou me apaixonando por Ryan, o novo garoto da classe. Nuncaimaginei que fosse cair de amores desse jeito por alguém, que fosse ser uma adolescente bobocaque fica aparvalhada, na frente de um rapaz. Que raiva... E para completar,ainda tem umaentidade que fica me perseguindo, querendo usar meu sangue raro para realizar seus feitosmalignos, uma colega de classe insuportável que inferniza a minha vida, e um treinador deginástica que quer porque quer que eu chegue às Olimpíadas...

Pois é, e tudo começou com uma excursão da classe a uma caverna, nesta história que é tudomenos monótona, tudo menos normal, tudo menos previsível, da vida de minha pessoa,

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Cheyenne Wilde...

NOIVA POR ENCOMENDAMichèle Ann Young, Kimberly Ivey e Billey W arren Chai

Selo: Julia

A NOIVA DE JAKE - Michèle Ann Young – Texas, 1867Depois de perder suas parcas economias num assalto em Nova York, Tess Dalton agarra a

primeira oportunidade que aparece e decide ir para o Texas como noiva por encomenda. Quemsabe o destino finalmente resolveu lhe dar uma chance de ser feliz?...

A NOIVA DE GRAY - Kimberly Ivey - Texas, 1885Viúva e com um filho pequeno, Evangeline Payne foge para o Texas com a esperança de

encontrar proteção nos braços do homem com quem se casou por procuração, apenas paradescobrir que é o único homem que ela amou na vida…

A NOIVA DE JOSH - Billie Warren Chai - Texas, 1872Depois de trabalhar como uma escrava para o pai e os irmãos, Annabelle Yeager chega no

Texas para descobrir não só que seu noivo foi assassinado, como também que ele era oproprietário do bar e bordel chamado Chance Saloon… Em pouco tempo, a cidade se voltacontra Annabelle, e alguém tenta matá-la. O xerife Josh Morrow jura mantê-la a salvo, mas aque custo para ele próprio?...

UM LORDE INESQUECÍVELMolly Zenk

Selo: Julia

Inglaterra, 1814

Mariah Woodhouse não consegue acreditar na própria sorte quando descobre que o atraente ecarismático lorde Byron está morando numa casa de campo justamente em Southwell,Nottinghamshire, pertinho da estalagem de seus pais. Para se tornar mais desejável para ofamoso poeta, Mariah convence seu amigo de infância, Walter Wey lons, a se fazer passar porseu noivo. O plano funciona, e logo Mariah se vê obrigada a escolher entre dois cavalheiros muitodiferentes: um lorde charmoso e libertino, e o tímido bibliotecário que é apaixonado por ela desdeque eram crianças...

O SENHOR DE MORLAIXKatherine Deauxville

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Selo: Best Seller

País de Gales, Idade Média

Ela precisava dar um herdeiro ao marido...

Emmeline não sabia nada a respeito do homem que aceitara sua oferta, nem mesmo seunome. Por dinheiro, ele lhe daria o que ela precisava. No entanto, em vez de pagar o homem e seafastar sem pensar mais no que acontecera, ela viveu uma noite de paixão que a assombrariapara sempre. Emmeline teve o bebê que tanto queria... mas a vida lhe cobraria um preço bemmais alto dez anos depois...

Niall FitzJulien é o novo lorde do Castelo Morlaix. Para seu espanto, a mulher que está à suafrente para homenageá-lo segura a mão de seu filho... seu filho de dez anos de idade!

Ele se recorda daquela noite, uma década antes, quando acordou na manhã seguinte a umanoite de paixão, apenas para descobrir que a mulher havia se esgueirado de sua cama... e levadoconsigo o seu coração. Agora ele compreende quão cruelmente foi usado, e como foi privado daconvivência com o filho. Porém não mais. Agora, Emmeline será sua vassala, e irá servi-lo detodas as maneiras que ele determinar...

QUANDO O AMOR ACONTECEJo Ann Ferguson

Selo: Julia

Aos vinte e seis anos, Charity Stuart já é considerada solteirona na sociedade inglesa. Mas elaacredita que sua irmã mais nova possa conquistar o coração de um pretendente da aristocracia.Principalmente quando a tia de ambas as convida para uma temporada em Londres.

Numa parada durante a viagem, no entanto, Charity conhece Oliver Blackburn, um homemperigosamente bonito e charmoso que ela acaba por reencontrar em Londres.

O que poderia o diabolicamente belo Oliver Blackburn querer com uma ruiva, de línguaafiada, a ainda por cima solteirona? Logo a sociedade inteira está em polvorosa... e o coração deCharity perde um compasso a cada vez que o nobre notório se aproxima. No entanto, em umacidade cheia de intrigas, segredos e perigos, seria o romance de Charity com Blackburn a suaruína... ou era uma vez um grande amor?..

CORAÇÃO REBELDEJannine Corti-Petska

Selo: Clássicos Históricos

Ela viajou para longe para se casar com o homem que amava... E acabou encontrando ohomem dos seus sonhos...

A rica herdeira Courtney Danning abre mão de sua privilegiada posição social para seguir a

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voz do coração e viajar de Nova York para o Novo México, a fim de se casar com o homem queama, apesar dos protestos de seu pai. Quase no mesmo instante em que põe os olhos em seunoivo, Courtney compreende que cometeu um erro, porém orgulhosa demais para voltar paracasa e admitir que o pai estava certo.

Do momento em que é contratado pelo pai de Courtney para segui-la à distância até que elacomplete um ano de casamento com o rapaz inescrupuloso que insiste amar, Beau Hamiltontenta negar a atração que sente pela jovem. Contudo o que poderia ter sido uma tarefa simplesacaba se complicando ainda mais quando, na noite do casamento, o marido de Courtney aparecemorto.

Ciente de que Courtney corre sério perigo, Beau é forçado a escolher entre mandá-la de voltapara a segurança da casa do pai e perdê-la para sempre, ou expor os segredos de seu passado...seu pior pesadelo... e lutar pelo amor daquela mulher, mesmo que isso lhe custe a própria vida...

FILHA das TREVASJanet W oods

Selo: Bianca

Londres, 1750

Quatro anos após ser ardilosamente forçado a se casar com Willow Givanchy, uma meninade catorze anos, suspeita de ser bruxa e filha indesejada de seu maior inimigo, Gerard Ly ttonretorna para casa para encontrar inesperadas mudanças em sua esposa e sua família.

Impetuosa e independente como sempre, Willow conquistou a admiração e o afeto da famíliaLy tton. No entanto, embora seja nobre de nascimento, ela não tem como desmentir a terrívelreputação de sua mãe e a vergonhosa desonra de seu pai.

Tendo se transformado de menina inexperiente numa linda mulher, Willow se descobreirremediavelmente apaixonada pelo marido... Mas será o amor de Willow e Gerard forte osuficiente para superar os obstáculos impostos por suas origens e que ameaçam separá-los?...Sem falar no estranho reaparecimento da mãe de Willow, dando início a uma série demisteriosos eventos...

DE PERNAS PRO ARDonna Fasano

Selo: Julia

As voltas que o amor dá...

Quando se divorciou do marido, Lauren tinha um único objetivo em mente: escapar de umavez por todas daquela inconstância emocional e dos altos e baixos do relacionamento. Porém,mal sabia ela que sua vida se transformaria num circo de três picadeiros...

Para economizar as despesas de aluguel, Lauren sugere ao pai que vá morar com ela; alémdisso, ela descobre que Greg, seu dileto ex-marido, usa o seu chuveiro quando ela não está em

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casa; e sua espevitada assistente insiste em empurrá-la para o temível mundo dos encontros enamoros!

E como se sua vida de atarefada advogada já não estivesse suficientemente caótica, Laurenainda tem de lidar com seus clientes, um verdadeiro elenco de personagens estranhos que nãoconseguem se manter do lado certo da lei...

O que resta a uma mulher fazer, em semelhante situação? Permitir que sua vida gire emcírculos para sempre... ou estender de uma vez por todas a mão para o verdadeiro amor...?

LAÇOS DE SANGUESara Reinke

Selo: Bianca

Um vampiro com uma missão

Tristan Morin tem um importante objetivo: não se apaixonar por Karen Pierce. Do contrário,ele apenas provaria que os humanos e a Confraria dos Brethren estão destinados a se unir, física eemocionalmente, algo que ele, como um legítimo Brethren, se recusa a admitir. Mas seria bemmais fácil se Karen não fosse tão linda... E se não houvesse nela algo que o atrai de uma maneiraquase impossível de resistir...

Karen sempre sentiu uma atração inexplicável por Tristan. Mais do que apenas beleza echarme, ele tem alguma coisa que a faz se sentir bem ao lado dele, como se ali fosse o seu lugar.No entanto, uma inesperada decisão por parte de Tristan a deixa confusa e com o coraçãopartido, ao mesmo tempo que um inimigo maligno e cruel coloca à prova aquele amor recém-descoberto...

A LENDA DE CAMELOTCynthia Breeding

Selo: Clássicos Históricos Especial

Q uando um deus deseja uma mulher mortal, que homem será capaz de afastá-la do seudestino?...

Acompanhado por Gwen, o rei Arthur se refaz dos ferimentos após a Batalha de Camlann, nailha de Avalon. Mas Avalon está cercada pela Terra das Fadas, um plano em constantemovimento e mutação. Quando o mago Myrddin tenta ajudá-los a fazer a travessia, Cernunnos, odeus da Caça Selvagem, captura Gwen, com a intenção de mantê-la como sua consorte.

Enfurecido por Gwen ter sido raptada, Lancelot jura a si mesmo que irá trazê-la de volta.Uma visão do Santo Graal possibilita que ele encontre o portal para a Terra das Fadas, porémMorgan le Fey , a rainha das fadas, tem outros planos para ele...

DA MAGIA À SEDUÇÃO

Page 185: Cynthia Owens - Visionvox...Estremecendo de repulsa, ela gemeu baixinho quando a língua úmida penetrou sua boca. Então, tão subitamente quanto avançaram, as mãos de lorde Percival

Mary Chase Comstock

Selo: Bianca

Hippoly ta afirmava que simplesmente buscava “a sabedoria oculta do universo” a fim de usá-la para fazer o bem. Para todas as outras pessoas, no entanto, ela era uma bruxa. Ela era tambémuma jovem viúva, condessa de Trevalyen e senhora da misteriosa e encantada Rookeshaven,determinada a continuar se dedicando aos seus estudos de magia... Até que o amor surgiu derepente para complicar a sua vida.

Julian St. Ives foi a Rookeshaven para aprender com Hippoly ta a arte da cura. A atração entreos dois foi imediata e irresistível. Mas quando uma intriga de família e um insidioso perigocomeçaram a rondá-los e ameaçá-los, só restava a Julian e Hippoly ta provar que o amor deambos não era fruto de feitiçaria, e sim de outro tipo de encantamento...

CASAMENTO EM JOGOCait London

Selo: Clássicos Históricos

Montana, 1881

Aposta arriscada...

Cairo Brown é proprietária de um elegante salão de bilhar e está a caminho de realizar seugrande sonho de ir morar em Nova York. Mas sua sorte muda no dia em que um forasteiro entraem seu salão e a desafia a vencê-lo...

Solomon Wolfe precisa de uma esposa para ajudá-lo a criar a sobrinha órfã, uma menina deseis anos, rabugenta e sem modos. Quando ele aposta com Cairo uma aliança velha e um ranchocaindo aos pedaços contra tudo o que ela possui, inicia-se entre os dois uma série de confrontos,permeados de tensão e sensualidade, contra um pano de fundo de intriga, ciúme, ódio e vingançamortal...

SEGREDOS DE FAMÍLIAMary Jo Putney

Selo: Best Seller

Kate Corsi sempre sonhou em trabalhar na empresa de demolições da família, um desejo queseu retrógrado pai lhe negou até o último dia de vida. De acordo com o testamento do pai, Kateherdará uma fortuna, enquanto seu ex-marido, Patrick Donovan, ficará com o negócio dafamília... com uma condição: que os dois concordem em morar sob o mesmo teto durante umano.

Forçados a aceitar o acordo, Kate e Donovan precisam descobrir a verdade sobre a morte dopai dela e confrontar o passado que quase destruiu a ambos. E à medida que eles enfrentam seus

Page 186: Cynthia Owens - Visionvox...Estremecendo de repulsa, ela gemeu baixinho quando a língua úmida penetrou sua boca. Então, tão subitamente quanto avançaram, as mãos de lorde Percival

sonhos despedaçados, segredos, mágoas e ressentimentos, eles se descobrem resvalandoperigosamente em direção àquele ponto abrasivo, em que o desejo e a paixão podem seincendiar e, mais uma vez, pôr em risco seus corações...

POR AMORShirl Henke

Selo: Clássicos Históricos Especial

Espanha, 1491

Magdalena: Dona de uma determinação que se equipara à sua beleza, ela deixa para trás acorte real para enfrentar uma viagem através do oceano até o fim do mundo em busca dohomem por quem é apaixonada desde criança, o belo espanhol Aaron Torres. Ele é seuprometido por lei, e Magdalena tem no dedo o anel do pai dele, para provar isso. Quando ela oencontrar, querendo ele ou não, ela o reivindicará como seu noivo!

Aaron: Marechal da frota de Cristóvão Colombo, ele enfrentou marinheiros amotinados esobreviveu a uma perseguição religiosa que devastou sua família. Agora, nas Índias, comoemissário do governador da Colônia, vivendo entre os índios Taino, ele enfrenta uma batalhaainda mais difícil, contra os cavalheiros “civilizados” que querem escravizar um povo pacífico edestruir sua exótica cultura.

O Novo Mundo: Aaron, no entanto, está prestes a se envolver na maior de todas as batalhas desua vida, uma em que sua espada não será de serventia alguma...

O Paraíso: Reunidos outra vez, apesar das barreiras religiosas e dos mares bravios, Aaron eMagdalena descobrem um paraíso luxurioso, repleto de perigo... e desejo!

PORTAL DO AMORJean Adams

Selo: Clássicos Históricos Especial

Encarregada pelo avô de levar de volta ao Egito um precioso colar, Alexandra Kelly éarrebatada por um portal do tempo numa jornada fantástica, embora aterradora, para um lugarde majestade e esplendor: a terra dos faraós!

A morte será o destino de lorde Khafra se ele levar adiante sua perigosa missão, mas achegada de Alexandra talvez possa salvá-lo...

Juntos, Khafra e Alexandra encontram o amor e enfrentam dificuldades e perigos terríveis,porém o sexy condutor das carruagens do rei é capaz de fazer qualquer mulher acreditar que osdeuses estão sorrindo para ela...

No entanto, na próxima lua cheia, Alexandra terá de retornar ao século XXI, quando Khafrajá estará morto há três mil anos...