Cynthia Sampaio de Gusmão A harmônica na Antiguidade grega

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Cynthia Sampaio de Gusmão A harmônica na Antiguidade grega São Paulo 2010

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    Cynthia Sampaio de Gusmo

    A harmnica na Antiguidade grega

    So Paulo 2010

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    A harmnica na Antiguidade grega

    Dissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia sob a orientao do Prof. Dr. Pablo Rubn Mariconda.

    So Paulo 2010

    VERSO CORRIGIDA De acordo

    Prof. Dr. Pablo Rubn Mariconda So Paulo, 22 de maro de 2011

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    minha bisav Sophia Gaertner e sua filha Djanira, a muito amada Mami.

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    AGRADECIMENTOS Ao querido Professor Pablo Rubn Mariconda, por sua viso dinmica e apaixonada do conhecimento, pelas sucessivas e poderosas intervenes e pela oportunidade. minha querida Silvana Issa Afram, pelas leituras cuidadosas, pela reviso do texto, pelo carinho e pacincia. querida Professora Marlia Pini, por ter aberto a minha viso em perspectiva. Ao querido e saudoso Ricardo Rizek, por muitas coisas, dentre elas, por assumir o amor pela beleza da cosmologia pitagrica. querida Professora Annie Blis, por me proporcionar o mergulho no contraponto aristoxeniano.

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    RESUMO

    Gusmo, Cynthia Sampaio de. A harmnica na Antiguidade grega. 2010. 101f. Dissertao de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010. O presente trabalho apresenta as ideias centrais relacionadas s duas principais teorias acerca do som musical na Antiguidade grega, entre o final do sculo VI a.C. e o incio do sculo III a.C. O estudo analisa, em primeiro lugar, as circunstncias histricas e materiais que propiciaram o desenvolvimento da teoria musical grega, chamada harmnica, e a sua relao com a prtica musical do perodo em questo. A primeira teoria analisada est inserida no contexto da escola pitagrica, em que a cosmologia o referencial de uma viso de mundo que se expande conectando todas as reas do pensamento, e um dos pontos de origem a harmnica matemtica. So apresentadas a seguir as demonstraes feitas a partir do clculo das mdias proporcionais e sua relao com o princpio da coeso harmnica da oitava. No segundo captulo so estudadas as teorias acsticas da Antiguidade, que se originaram das razes pitagricas e se desenvolveram no mbito das cincias naturais, aprofundando-se com a filosofia aristotlica. No terceiro captulo, so analisados os principais pontos de confronto promovidos pela corrente aristoxeniana, que se insere no quadro epistemolgico aristotlico, e que foram levantados contra os pitagricos. Nessa nova forma de pensamento, a harmnica estudada como uma , que tem uma linguagem especializada particular e um objeto especfico, o . Ganha importncia especial o conceito de e, para coloc-lo em prtica, a idia de torna-se central. Por fim, apresentada a persistncia da concepo pitagrica nos clculos dos intervalos musicais a partir da diviso do cnone. Palavras-chaves: harmnica, pitagorismo, msica, cosmologia, , proporo, acstica, Aristxeno, , , .

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    ABSTRACT Gusmo, Cynthia Sampaio de. Harmonics in greek Antiquity. 2010. 101f. Thesis (Master Degree) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010. This work presents the central ideas related to two main theories about musical sound in greek Antiquity between the end of VI century and the beginning of III B.C. First, the historical and material contexts that lead to the development of greek musical theory, called Harmonics, are investigated, and its relationship with the musical practice of the period. The first theory analyzed comes from the pythagorean school, in which cosmology is the framework of a world view that expands connecting all areas of thought and one of its departure point is mathematical Harmonics. Afterwards, I discuss the demonstrations that are done from the calculations of proportional medias and their relations with the octave harmonic cohesion principle. In the second chapter, its exposed the acoustic theories of Antiquity which originated from the musical ratios and had developed in the branch of natural sciences, deepening by the Aristotelian Philosophy. In the third chapter, I presented the most important issues concerning the differences between the aristoxenian current, which belongs to the aristotelian epistemological framework, against the pythagoreans. In this new way of thought, Harmonics is studied as a that has a particular range of specialized terms and a specific object, the . The concept of assumes relevance and to put it into practice, the idea of becomes central. At last, the persistency of the pythagorean conception it is presented in the calculations of the musical intervals in the division of the canon. Key-words: Harmonics, pythagorism, music, cosmology, , proportion, acoustics, Aristoxenus, , , .

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    SUMRIO

    Introduo 9 Captulo I Meios tcnicos e estrutura da msica grega 15

    1. As origens musicais da harmnica 15 2. Os instrumentos musicais gregos 17 3. Aspectos da terminologia musical grega 20 4. As cordas e a estrutura musical grega 21 5. O epigneon e a pandora 25 6. Afinao e gneros musicais 28

    Captulo II As origens matemticas da harmnica 32

    1. As disciplinas matemticas 32 2. As razes numricas musicais 35 3. A coeso harmnica da natureza 37 4. A fixao das consonncias 40 5. A coma pitagrica 44 6. A cosmologia pitagrica 46 7. Os desdobramentos da harmnica: Arquitas 50 8. As mdias proporcionais 51 9. A mdia geomtrica e os incomensurveis 54

    Captulo III Teorias acsticas da Antiguidade 60

    1. O experimento de Pitgoras 60 2. Os primrdios da investigao do som 62 3. A propagao do som e sua audio 64 4. Os avanos da escola peripattica 66 5. As relaes da acstica com a harmnica 69

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    Captulo IV Aristxeno e o lugar da na harmnica

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    1. Pequena nota biogrfica 70 2. A proposta aristoxeniana 71 3. A organizao do estudo 74 4. As partes da harmnica 76 5. Os intervalos aristoxenianos 80 6. A coeso do 82 7. A 84 8. O dilogo com Aristteles 86 9. Ressonncias de Elementos de harmnica 88

    Captulo V A Diviso do cnone 91

    1. A longevidade da concepo pitagrica 91 2. A natureza do som 92 3. O rigor da cannica 94 4. Os corolrios musicais 96 5. Dividindo o cnone 97 6. O apogeu da cincia pitagrica 98

    Consideraes finais 101 Bibliografia

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    INTRODUO

    O tema do presente estudo so as abordagens tericas que recebeu o som musical na Antiguidade grega entre o final do sculo VI a.C. e o incio do sculo III a.C. A investigao ocorre no mbito da Harmnica, um dos ramos da teoria musical grega, que, no entanto, difere do que se conhece por esse termo nos dias atuais. O musiclogo Carl Dahlhaus1 fez uma classificao tripartite dos grandes campos tericos da msica ocidental: o analtico, o regulativo e o especulativo. A via analtica estuda as obras musicais como modelos para a prtica da composio e da apreciao crtica. A teoria regulativa abarca os escritos de instruo sobre as regras sintticas da msica, constituindo o assunto dos manuais dos musicgrafos que eclodiram a partir do sculo II d.C., e que foram os precursores daquilo que hoje chamado de teoria musical. O ramo especulativo aquele que considera o aspecto ontolgico da msica, sua essncia e matria-prima. Esse ltimo aspecto, sobre o qual se debrua a dissertao, teve presena marcante em mil anos de debates filosficos e cientficos da Antiguidade. Contudo, foi nos primeiros sculos que as questes cruciais foram colocadas, tendo o restante do milnio se dedicado a movimentar as mesmas peas no tabuleiro musical.

    Os escritos musicais antigos, tanto gregos quanto latinos, em sua grande maioria, so especulativos e inserem-se no quadro geral de pensamento das escolas filosficas; cada uma delas forja a teoria de acordo com seus mtodos e princpios.

    O filsofo Aristxeno de Tarento, do sculo IV a.C, um autntico representante da escola peripattica, tendo sido aluno direto de Aristteles. Sua obra Elementos de Harmnica o mais 1 Em Die Musiktheorie im 18. und 19. Jahrhundert: I, Grundzge einer Systematik, Darmstadt, 1984, p.9-13. Apud Christensen, 2007, p.11.

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    completo dos antigos tratados musicais gregos que chegaram at ns. No primeiro pargrafo, ele define o campo de investigao da Harmnica: A cincia do (mlos) multifacetada e divide-se em muitos ramos; um deles preciso tomar como base: o estudo da chamada Harmnica, primeira na ordem e com funo elementar. De fato, sendo a primeira das matrias tericas, ela abarca tudo que diz respeito ao estudo dos tons e das escalas. Sendo esta a finalidade do seu estudo, convm, pois, no consider-la para alm disso (Meibom, 1, 11-25)2. Rosetta da Rios aponta em nota a sua traduo italiana do tratado: Assim como, de fato, a qualidade dos sons o elemento especfico da msica, pois o ritmo est presente na poesia e no canto, assim, no uso tcnico de Aristxeno e de seus seguidores, passa a ser usado para significar exclusivamente a parte tonal da msica ou a melodia no sentido comum, considerada como uma sucesso de notas de alturas diferentes, em contraposio ao ritmo. De fato, mais tarde quando se quiser designar melodia no sentido antigo, ser acrescentada a palavra para indicar a melodia acabada, com a presena do ritmo (Rios, 1954, p.3, nota 2).

    Portanto, Aristxeno d palavra grega um sentido especificamente tonal3, modificando a concepo anterior que a referia a uma combinao de palavra, ritmo e melodia. Ela distinta desse composto ao qual poderamos incluir elementos de coreografia, e que Plato e Aristteles mencionaram ao atribuir efeitos da msica ao comportamento humano, falando do ponto de vista do musical. A msica grega antiga, e especialmente a defendida por Plato, era eminentemente vocal portanto, ligada a um texto potico e tambm circunstancial, ou seja, destinada a ocasies determinadas. Por isso, parece-nos desmedida a postura de 2 Neste estudo utilizamos a mesma numerao que Rios como referncia para a obra de Aristxeno. Ela advm da compilao de Marcus Meibom, Antiquae Musicae Auctores, Amsterdam, 1652. 3 O termo tonal aqui no se refere ao sistema tonal que se desenvolveu muito mais tarde no Ocidente, mas apenas ao tom entendido como o som de altura definida.

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    alguns autores modernos que defendem ter existido, na Grcia antiga, algo como uma cincia secreta do poder vibratrio das estruturas meldicas em si mesmas. Winnington-Ingram, por exemplo, analisou a questo da seguinte forma: Essa concepo de um carter inerente dos modos no est restrita Grcia; mas visvel aqui devido fama de alguns autores e interpretao moral que colocavam no carter dos modos. (...) mais pertinente expressar algum ceticismo, se os elementos musicais podem em si mesmos possuir tais caracteres to marcados. Muitos outros fatores esto em jogo (1968, p.3). De qualquer modo, necessrio atentar para que no haja justaposio de uma concepo de msica eminentemente instrumental, que s se firmou totalmente a partir do sculo XVIII, ao fenmeno do (ethos) musical da Antiguidade.

    Aristxeno prossegue na passagem em questo: Todos os assuntos que forem estudados em um nvel mais abrangente, a partir da arte das escalas e dos tons, no pertencem mais Harmnica, mas quele conhecimento que abarca essa cincia e outras, pelo qual so estudadas todas as partes da msica. Essa a conquista () do msico. (Meibom, 2, 1-5). Ou seja, apesar de ser primeira na ordem, ela no compreende tudo, e mais, a totalidade da msica s pode ser considerada a partir de um sujeito aqui includo, o msico.

    Contudo, necessrio observar que essa totalidade de que fala Aristxeno no abarca aqueles assuntos que ocuparam a mente de seus antecessores pitagricos e que constituem igualmente objetos da harmnica, ou cannica. Para o autor, no est em questo a causa das alturas musicais e de seus intervalos, o que importa como elas se organizam em um sistema de escalas enquanto linguagem tonal. J para os pitagricos, com quem se inicia a cincia da Harmnica, a importncia estava na origem primeira dos intervalos musicais, muito antes de sua organizao em escalas ou de sua funo no . Eles estabeleceram uma expresso racional da

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    matria sonora, por meio da aritmtica, sua principal ferramenta terica, alinhada analogicamente totalidade do cosmo. Essa corrente, nascida no sculo VI a.C., ir extrapolar o domnio da msica gerando consequncias importantes para a fsica acstica. A reconstituio de sua origem feita a partir de fragmentos como os de Filolau e Arquitas e comentadores posteriores. No sculo III a.C., a obra Diviso do cnone, atribuda a Euclides, expe de maneira ampla e sistemtica a aplicao da matemtica pitagrica msica.

    Max Weber, como explica seu tradutor brasileiro Leopoldo Waizbort na introduo obra, defendeu que a autonomizao da esfera artstica engendra a legalidade prpria dessa esfera, que justamente a sua racionalizao especfica (Weber, 1995, p.39). O pensamento pitagrico se processava por analogias, considerando, portanto, domnios extrnsecos msica para a sua explicao. Desse modo, poderia parecer paradoxal o fato de ele ser o ponto de partida do processo de racionalizao da msica ocidental e da sua caminhada rumo autonomizao. A aritmtica, como instncia extra-musical, foi determinante para o primeiro distanciamento em relao matria prima tonal, o som musical, o que no ocorria quando o estava mesclado linguagem e ao ritmo, domnios no restritos msica, como j apontamos: a linguagem, mesmo potica, fortemente referencial e o ritmo pode ser encontrado nos ciclos e fluxos da natureza.

    No sculo III a.C., as duas correntes, aristoxeniana e pitagrica, sero vistas como antagnicas e essa dicotomia perpetuar-se- nas discusses musicolgicas medievais e renascentistas. Neste estudo, elas sero apresentadas com suas distines, mas tambm como integrantes do mesmo quadro geral que tem como ponto de referncia a natureza para construir os seus princpios; para descobri-los e demonstr-los cada escola integra a Harmnica ora s cincias matemticas, ora s cincias naturais ou

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    fsicas. E cada uma delas contribui a seu modo para o corpus terico da msica ocidental. O trabalho delicado, haja vista que o alinhamento de posio dos pensamentos subjacentes s duas correntes sofre sucessivas inverses, talvez porque a msica participe de maneira intensa de dois campos: o da cincia e o da arte. Isso faz dela um lugar privilegiado para observar as suas tenses.

    Na dissertao, a opo pela via de investigao da Harmnica justifica-se por ter sido a partir dela que se iniciou propriamente o processo de racionalizao do material sonoro, tal como enfatizado por Max Weber, ou seja, o fato de a msica ter sistematizado seu material e seus meios levou-a a alcanar a autonomia de sua esfera de existncia. Nesse processo, tambm importante olhar para o desenvolvimento dos meios tcnicos da msica, como, por exemplo, seus instrumentos: A racionalizao dos sons parte historicamente e, de modo regular, dos instrumentos (Weber, 1995, p.127), alm das formas musicais, da notao e ainda dos instrumentistas e virtuoses.

    A harmnica, dentre as disciplinas da msica, foi a que se dedicou s questes de afinao dos instrumentos e das estruturas das escalas. Ao dedilhar a sua lira, era importante para o instrumentista grego saber que as cordas estavam afinadas adequadamente ao modo e gnero musical e ainda ao cantor que usualmente acompanhava. Os tericos comearam a estudar e definir as mltiplas estruturas musicais gregas a partir das quais uma melodia poderia ser realizada e, ao fazer essa descrio, desenvolveram a linguagem prpria da Harmnica.

    Na dissertao, so incorporados elementos advindos da prtica musical e da construo de instrumentos, pois, de fato, o pensamento sobre a arte em geral, e a msica em especial, no est desvinculado da tcnica e da cincia de seu tempo. Desse modo, ser matizada a postura de alguns musiclogos e pesquisadores que consideram que, na Antiguidade, havia uma separao total entre a

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    teoria e a prtica musical, baseados em especial no argumento de que os escritos que chegaram at ns no oferecem nenhum trecho de msica, nem fazem qualquer referncia prtica musical4. Essa uma dificuldade de fato; porm, sero feitos esforos para atenu-la.

    Algumas questes surgem no mbito deste estudo. Por exemplo, os princpios da harmnica pertencem natureza humana, a algo independente dela ou s duas instncias? Consideramos que o som musical essencialmente humano, visto que produzido pela voz humana ou pelos instrumentos musicais. Contudo, assim que uma nota gerada, entra em ao uma cadeia de ressonncias fsicas, a chamada srie harmnica. Ela no produzida deliberadamente pelo ser humano, mas em muitos momentos parece conduzir as suas escolhas musicais. Mas o padro recorrente da srie harmnica gerada pelo som musical, ou tom, insere-se no quadro geral da natureza, que ns, como parte dela, apreendemos.

    As escalas musicais representam o primeiro grau de abstrao da msica, muito antes da verificao experimental da srie harmnica, que s ser feita no sculo XVII por Marin Mersenne. Podemos dizer que a msica produzida desde a remota Antiguidade foi guiada pela percepo desses harmnicos, depois abstrada em escalas, muito antes dessa medio. Aristxeno relacionou as propriedades do som musical percepo humana, j os pitagricos buscaram os padres intrnsecos de sua estrutura.

    4 Blis, em seu artigo Lharmonique comme science dans lantiquit grecque, defende que teria havido um divrcio total entre as reas prtica e terica na Antiguidade (1992, p.201-8). Contudo, no curso De La Pierre au son: archo-thnomusicologie de lAntiquit Classique, ministrado de 14 a 30 de agosto de 2001 no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo, atenuou sua posio, considerando que haveria uma hierarquia de valores, no uma separao absoluta. J Barker considera que existia uma interao entre as partes: sua relao [da harmnica] com a filosofia e as cincias naturais so mais distantes e suas interaes com o mundo real do fazer musical mais prximo do que frequentemente se supe (2007, p.4).

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    CAPTULO I

    MEIOS TCNICOS E ESTRUTURA DA MSICA GREGA

    1. As origens musicais da harmnica

    O tom musical um som discreto que se define pela relao intervalar que mantm com outros sons de alturas determinadas. Esses intervalos constituem o ponto de partida da Harmnica. Cada cultura encontrou seus intervalos musicais e os fez soar por meio das vozes, dos tubos de instrumentos de sopros, nas cordas, em instrumentos de percusso como litofones, xilofones e metalofones, at chegarmos atual gerao por dispositivos eletrnicos.

    A contrapartida material dos instrumentos tem um papel crucial no desenvolvimento da teoria musical, ainda que no seja possvel determinar de modo absoluto em quais situaes um procedimento tcnico faz avanar o campo artstico ou, vice-versa, se a necessidade esttica antecede a busca por um avano tcnico, ou ainda, se so acontecimentos sincrnicos.

    As distncias intervalares so a base da afinao dos instrumentos. Em alguns casos, elas foram organizadas em sistemas de escalas, modos e gneros. Os intervalos geram sensaes ao serem ouvidos, descritas como prazer ou incmodo, suavidade ou estridncia, doura ou aspereza. De acordo com essas caractersticas, na Grcia antiga, eram chamados de ou , consonncias ou dissonncias5. O quanto a qualificao dos intervalos um elemento cultural, ou no, transcende o escopo deste estudo;

    5 Os intervalos considerados consonantes eram os de oitava, quinta e quarta. Em uma escala musical ascendente com a nota d como incio, a oitava a distncia entre essa nota e o d acima, a quinta entre o d e o sol, e a quarta entre o d e o f. A nomenclatura das notas como d, r, mi, f, sol, l, si, d surge na histria da msica somente na Idade Mdia, mas utilizo aqui para simplificar os termos gregos.

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    contudo, muitos povos buscaram formas de definir com exatido os intervalos musicais.

    Entre as grandes civilizaes anteriores ao perodo arcaico grego (800 a 500 a.C.), os chineses deram muita nfase preciso dos intervalos musicais, que estabeleceram possivelmente por volta de 2.600 a.C. a partir de uma sequncia de bambus cortados em exatos intervalos de quinta, os tubos-diapases lyu. Na Mesopotmia, cerca de 3.000 a.C., os sumrios possuam uma apurada tcnica de construo de instrumentos. Ali, em um baixo-relevo das runas da cidade de Lagash, no sul do Iraque, est representado um msico tocando uma ctara aparentemente de 11 cordas. Os imprios assrio e babilnio, fundados por volta de 2000 a.C., foram fecundados pela civilizao sumria. Nas escavaes da cidade de Ur (tambm no Iraque) foram encontradas flautas, harpas, liras de 5 a 11 cordas, alades e uma harpa de cordas percutidas por baquetas6.

    Uma descoberta importante para a teoria musical foi a de trs tbuas em escrita cuneiforme contendo um mtodo de afinao de uma espcie de lira de nove cordas7. A partir delas foi possvel decifrar um sofisticado mecanismo de afinao alternando quartas e quintas consonantes com o objetivo de formar escalas que dividem a oitava em sete partes. Esse sistema mostrou-se semelhante ao grego, que talvez tenha a a sua origem, mas o mais importante que a descoberta das tbuas babilnicas apresenta a mesma predominncia de quartas e quintas que se encontra na teoria e na prtica musical do Ocidente.

    Desde a Idade do Bronze, a pennsula grega no era uma regio isolada, mas fazia parte do complexo do mar Egeu, rota entre 6 Ver, a esse respeito, Cand, 2001, vol. 1, p. 102-148. 7 As tbuas foram decifradas pela Profa. Anne Draffkorn Kilmer, do Centro de Estudos do Oriente Mdio da Universidade de Berkeley, Califrnia, que descreveu a teoria da afinao babilnica em 1971: The discovery of an ancient mesopotamian theory of music. In: Proceedings of the American Philosophical Society, no. 115, p. 131-149, apud Franklin, 2002, p. 441-442.

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    o Egito e o Oriente Prximo, a leste, e a pennsula itlica, a ocidente. O povoamento grego na costa da sia Menor e das ilhas prximas iniciou-se por volta de 1050 a.C. As tradies da Mesopotmia alcanaram as regies da Sria e da Fencia, depois a sia Menor e dali Grcia. Alm disso, entre 750 a 700 a.C, ocorreu a expanso do imprio assrio em direo a Ocidente no perodo conhecido como orientalizante. Entre os elementos culturais mesopotmicos que penetraram mais profundamente na regio egeana nesse momento esto os instrumentos musicais e suas formas de afinao.

    2. Os instrumentos musicais gregos Como j dissemos, a msica grega era basicamente vocal e,

    portanto, ligada poesia. Essa arte potico-musical era enfatizada e colorida por instrumentos de cordas, sopros e percusso.

    Um dos instrumentos mais importantes para a cultura musical grega foi o , instrumento de sopros de dois tubos que utilizava duas palhetas para produzir o som, tal como o obo ou o fagote. Os tubos dos primeiros apresentavam apenas quatro orifcios, ento, era necessrio trocar de instrumento de acordo com a escala em que a pea musical era executada. Ateneu narra, em sua obra Deipnosophistae, que foi Pronomus de Tebas o primeiro a construir adequados a vrios tipos de i e a tocar no mesmo melodias diferentes. Diz-se que ele deleitava intensamente a audincia com suas expresses faciais e o movimento de todo o corpo (631e apud Mathiesen, p. 184).

    O demorou para ser aceito como um legtimo instrumento grego, como demonstram os mitos associando-o aos cultos de Cibele e Dioniso, deuses considerados originrios da sia Menor. Aos poucos, ele foi ganhando espao e, no sculo V a.C., figurava como o instrumento da orquestra nas apresentaes teatrais, possivelmente

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    pela capacidade expressiva e tambm por sua potncia de som. As competies aulticas foram importantes tambm para o desenvolvimento da msica instrumental. O possua uma grande flexibilidade, possibilitando as sutilezas das mltiplas escalas descritas nos tratados musicais, e possvel que duplos permitissem a execuo de intervalos diferentes simultneos, produzindo uma espcie de diafonia primitiva.

    Aristxeno, em Elementos de Harmnica, ser um crtico da flexibilidade do devido ausncia de estabilidade de seus tons. A busca do tarentino na construo da cincia harmnica passar pela identificao de um conjunto de sons estveis e organizados, condio do discurso cientfico, tal como para Aristteles: A aquisio inicial do conhecimento no ocorre pelo vir a ser; pois, de acordo conosco, a razo conhece e pensa por meio do repouso e da imobilidade (Fsica, VII, 3, 247b 10-13. Apud Blis, 1986). Para Aristxeno, a harmnica no depende das propriedades de nenhum instrumento, especialmente o : ainda que se considerasse necessrio reportar a melodia a um instrumento, no de deveria escolher o , porque no h que erro e incerteza na fabricao do , no seu mecanismo e na sua natureza particular (2. 43. 12-18).

    Motivos similares levaro tambm Plato a coloc-lo na lista de instrumentos que devero ser expulsos da sua Politia. Alm da prpria caracterstica varivel do sopro que produz o som no , so documentados os movimentos de corpo e expresses faciais dos auletistas ao executarem as peas musicais, o que era acentuado pela prpria dificuldade de execuo do instrumento que, em peas mais longas, exigia um acessrio, a (phorbia), uma faixa feita de pele de animal que acomodava o instrumento duplo. Em uma escultura de Praxteles (por volta de 360 a.C.), est retratada a disputa na qual a msica de Apolo, representada pela ctara,

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    julgada superior do stiro frgio Marsyas, esculpido nu portando um . Como perdedor, na histria, Marsyas enforcado e esfolado uma demonstrao, esperamos, exagerada, de como os gregos levavam a srio a sua superioridade. Plato declara a preferncia pelo instrumento de Apolo em relao ao de Marsyas (Repblica, 399e). Antes, havia defendido que para os cidados mais til a lira e a ctara, sendo a (syrinx) instrumento de sopros com vrios tubos parecido com a zampoa dos altiplanos andinos mais adequada aos pastores nos campos (Repblica, 399d).

    Mas, embora visto com desconfiana pelo fato de ser um instrumento estrangeiro e, na verdade, por ter introduzido muita sofisticao s tradies sagradas dos gregos, o tornar-se- um dos trs instrumentos mais importantes do perodo clssico grego, junto com a lira e a ctara, participando do teatro, dos festivais, da educao e da vida cotidiana.

    Ainda que os instrumentos de sopros e percusso fossem indispensveis msica grega, a classe de cordfonos foi o seu fundamento, principalmente no que se refere cincia musical. Essa nfase nos instrumentos de cordas vai prevalecer no mundo ocidental quando o assunto for teoria e sistemas de afinao. No sculo XVII, Marin Mersenne, no Primeiro livro dos instrumentos de sua obra Harmonia universal, iniciar o estudo dos instrumentos musicais pelos instrumentos de cordas, considerando que eles so mais simples e fceis de compreender, pois as cordas representam as linhas e servem para explicar e demonstrar tudo o que pertence msica (1986, p.2). Tambm Max Weber ir observar que nas cordas h uma maior racionalizao do sistema de tons (1995, p.73). E a msica ocidental ter de esperar at o sculo XX para que os compositores concedam aos instrumentos de sopro e percusso o mesmo status daqueles de corda e teclado.

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    Na Grcia, possuam importncia especial os diversos tipos de liras como a (chlys) lira, o (brbitos) e a ctara. Nas liras, as cordas so tocadas com um plectro, diferente dos psaltrios, ou harpas, que so dedilhados. As liras possuam cordas mais ou menos iguais em comprimento, enquanto as harpas possuam cordas graduadas. As cordas, em geral feitas de tripa de carneiro, no resistiram ao tempo, mas seu nmero nos instrumentos bem documentado em fontes literrias e iconogrficas, quando possvel observar a presena de cravelhas para uma maior preciso na afinao dos instrumentos. O aperfeioamento da ctara e tambm do contribuiu consideravelmente para a expanso da msica grega, ampliando a sua capacidade de modulao () entre os modos.

    3. Aspectos da terminologia musical grega

    Em grego, a palavra refere-se a tudo que produz tenso.

    A raiz a mesma do verbo grego , que significa esticar ou tensionar. era tambm o tom musical que surgia no ato de esticar a corda de um instrumento, alterando um intervalo de quinta para quarta e marcando a diferena de tom entre ambas8.

    Os nomes das notas (9) estavam diretamente relacionados a sua posio na corda e, at mesmo, ao dedo que a tocava, pois o nome de uma nota e do dedo indicador. bom relembrar que, no caso das liras, as cordas no eram dedilhadas e sim, tangidas por um plectro; portanto, essa terminologia talvez fosse oriunda dos instrumentos de cordas dedilhadas, da classe dos psaltrios. Para West, os nomes de outras notas tambm poderiam 8 Ver, a esse respeito, West, 1981, p.119-120. 9 O termo phtngos utilizado com mltiplos significados tanto na linguagem comum como na linguagem tcnica musical com os sentidos de som, voz, fala, nota e altura musical.

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    estar relacionados a sua posio: mse () seria referente ao dedo mdio e trte (), ao terceiro dedo, anular (Cf. 1981, p.120-1). Essa concepo enfatiza a perspectiva de uma origem material para o sistema grego em tetracordes, sequncias de quatro notas, em que cada nota corresponderia a uma corda do instrumento. De qualquer modo, a forma de nomear as notas era diferente das que conhecemos hoje. Nossa nota d um tom especfico ou frequncia, em linguagem moderna. J as notas gregas referiam-se a uma posio dentro do tetracorde ou do instrumento.

    Outros termos musicais estariam associados prtica instrumental, por exemplo, a oposio entre tom alto () e baixo (). Inversamente ao que estamos acostumados hoje, o primeiro referia-se ao som mais grave e o segundo, ao mais agudo. Isso porque mais alta era a corda mais distante do instrumentista em posio de execuo da lira ou da harpa, e vice-versa.

    Essas denominaes advindas da prtica instrumental muitas vezes no eram acolhidas por tericos como Aristxeno. Como observa Blis, Aristxeno no utiliza os termos alto () e baixo (); ele diz sempre grave e agudo, talvez por sua firmeza doutrinal: repugnar-lhe-ia trazer emprestado denominaes da prtica instrumental, uma vez que se recusava a tomar por critrio de julgamento tanto o como a lira (1986, p.136).

    4. As cordas e a estrutura musical grega Franklin (2002, p.444) defende que teria havido, no incio da

    era arcaica grega, um confronto entre a poesia pica, cantada com a lira de quatro cordas, e a poesia lrica, cantada com a lira de sete cordas. Essa transio entre os dois gneros poticos significativa nos poemas homricos, elaborados provavelmente por cantores profissionais que se apresentavam nos festivais. Sua forma definitiva

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    ocorre no perodo arcaico, mas eles pertencem ainda tradio anterior, pica aristocrtica, e mantiveram a mtrica e a forma do gnero literrio. Cada poema era dedicado a um deus do panteo grego. No poema dedicado a Hermes, o poeta conta como o deus inventou a lira de sete cordas para dar de presente a Apolo, o deus da tradio pica. No hino, so descritos detalhes da construo da lira, o material utilizado (casco de tartaruga , couro de boi, cordas de tripa), assim como a forma de execuo com o plectro.

    Essa interpretao de que a lira do perodo pico teria quatro cordas contestada por estudiosas como Martha Maas e Jane McIntosh Snyder, que descreveram detalhadamente os instrumentos de cordas gregos. De acordo com as autoras, o nmero de cordas nos instrumentos do tipo lira, desde as liras minicas antes do sculo XI at a ctara, o , e a lira dos sculos V e IV provavelmente permaneceram as mesmas (1989, p. xvi). Para elas, o nmero de cordas que aparece nas iconografias est ligado ao material empregado, ao espao disponvel para a reproduo no artefato e ao grau de realismo do artista. A confuso teria sido criada pela interpretao influente do escritor alemo L. Deubner10 que viu num poema atribudo a Terpandro, poeta lrico do sculo VII a.C. originrio da ilha de Lesbos, uma referncia a uma (phomnx)11 de sete tons oposta de quatro: Colocando de lado a cano () de quatro vozes, cantaremos novos hinos em uma de sete tons () (Strabo, 618). Esse seria um clssico erro de interpretao a partir de uma nica fonte literria e que em nenhum momento diz que a possua menos que sete cordas. Alm disso, preciso atentar para o fato de que na literatura 10 A argumentao do autor est em Deubner, L., "Die viersaitige Leier", Athenische Mitteilungen 54 1929, 194200. e Deubner, L., "Terpander und die siebensaitige Leier", Philologische Wochenschrift 50 1930, 15661567. 11 A phminx uma espcie de lira. Os instrumentos tipo lira possuam cordas mais ou menos do mesmo tamanho, j os do tipo harpa, cordas de comprimentos graduados.

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    grega um tpos recorrente o do primeiro inventor, (protos euretes). Concluindo, a lira de sete cordas pode ter existido desde a Guerra de Tria at o tempo de Alexandre, o Grande.

    De qualquer forma, os tetracordes foram o ncleo da msica grega e certo que Terpandro acompanhava-se de um instrumento de sete cordas.12 A lira de sete cordas possibilitou ao msico ampliar a execuo musical at uma oitava entrelaando dois tetracordes. O texto aristotlico Problemas Musicais registra que foi Terpandro quem afinou a lira de sete cordas, de modo que ela abrangesse uma oitava, que, por isso, chamava-se (diapason), pois passava por todas as cordas, e no (diokto), pelas oito cordas (XIX, 32, 920a 14-18). Os nomes dados s consonncias para a oitava, (diapnte), a quinta e (diatessron), a quarta eram uma abreviao de , a consonncia produzida passando por todas as cordas; , a consonncia produzida por cinco cordas, e , por quatro cordas. O que fica evidente nessa terminologia que os instrumentos de cordas eram afinados a partir dessas consonncias e, mais do que isso, elas eram a prpria referncia para a afinao.

    O nmero de cordas ultrapassava a simples busca por um efeito sonoro, relacionando-se com a estrutura de todo o sistema. Os heptacordes teriam evoludo para octocordes. De acordo com os Problemas aristotlicos, a prova de que antes a escala era heptacorde a denominao da nota , mdia. Como poderia haver uma nota mdia em oito cordas se o nmero oito no tem meio? A denominao , portanto, viria de uma escala heptacorde (XIX,

    12 Plutarco (cerca 50-120d.C.), em sua obra De musica, narra que Terpandro ficou conhecido por ter feito uma inovao na lira homrica, aumentando o nmero de cordas de quatro para sete. Apud Mathiesen, 1999, p. 243.

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    25, 919b 20-22).13 Essa afirmao enfatiza uma concepo aritmtica do sistema e parece anular a hiptese de West de que a denominao referir-se-ia ao dedo mdio que tangia a corda. Blis considera que a concluso aristotlica, no entanto, uma prova de que os tericos estavam afastados da prtica musical e que, ao buscarem construir seus sistemas, ficavam confusos com a terminologia advinda da prtica (Blis, 1986, p.136-137).

    Para Winningtom-Ingram, mais importante que determinar a origem do termo perceber que ela funcionava como um centro tonal da melodia. Ele considera plausvel a hiptese de que o tetracorde primitivo tenha se desenvolvido para um heptacorde, por meio do encaixe de dois tetracordes: se no tetracorde sozinho a nota superior da quarta atraa a ateno sobre si, dentro do heptacorde, a , verdadeiramente assim chamada por estar na juno dos tetracordes, era o foco da melodia. Mais tarde, a consonncia da oitava foi percebida e o heptacorde tornou-se um octocorde. A tendncia meldica descendente (tal como podemos postular para a msica primitiva) fez com que o tetracorde superior fosse alcanado a partir do limite superior [ou seja, saltando para a oitava e descendo] o que levou a criar um tom disjunto entre os tetracordes (1968, p.26).

    Em algum momento, portanto, dois tetracordes foram separados por um tom inteiro, possivelmente com a insero de mais uma corda musical na lira. O importante que essa corda, ou esse tom, foi inserido entre os tetracordes, e no em uma das extremidades da escala musical. E essa alterao teve consequncias profundas na teoria musical grega. A oitava passou a ser percebida e considerada o ponto de partida da teoria musical, dividida em dois intervalos desiguais: uma quarta e uma quinta. O sofisticado sistema 13 Nicmaco de Gerasa, no Manual de harmnica, cap. V, narra que Pitgoras teria colocado uma oitava corda na lira criando a escala de oito notas.

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    de modos gregos (i) organizou-se a partir das posies desses intervalos.

    Podemos ver a escala octocorde, de oito notas, como a reunio de dois tetracordes como um tom no meio ou, como prefere Del Grande, um tetracorde mais um pentacorde (1960, p.406). As notas extremas eram ento (nte), a nota mais aguda, e (hyptes), a mais grave, formando um intervalo de oitava. A era a corda que ficava mais prxima do instrumentista na posio de tocar a lira, a ctara ou a harpa. era a mais distante. As escalas eram organizadas de modo descendente e, portanto, a partir da , ficavam (parante, ao lado da ), (a terceira), a nota inserida ao lado e acima da , (paramse), em seguida, , (lchanos), (parypates) e .

    5. O e a

    No perodo clssico, as liras estiveram na base da educao musical grega, levando os cidados a um alto nvel de exigncia crtica em relao a seus executantes. O tipo de lira preferido pelos profissionais era a ctara, com sua ampla caixa de ressonncia. Ela era utilizada pelos citaredos, combinao das palavras ctara e aedo, cantores.

    Os psaltrios, ou harpas, possuam grande nmero de cordas e eram tocados por virtuoses que provavelmente comearam a desenvolver uma msica instrumental, tal como os auletistas. De acordo com Mathiesen (1999, p.270), alguns tipos de harpas parecem ter sido exclusivos das mulheres e possvel que esses instrumentos estivessem tambm associados aos cientistas musicais que surgiram no sculo VI a.C. O possua 40 cordas e era tocado com o instrumento na posio da harpa atual, em p. O nome

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    adveio de seu construtor, Epgono de Sycion, mencionado por Aristxeno (Meibom,3,20-24) como um msico-torico que, junto com Lasos de Hermone, achava que o som musical possua largura.

    Mathiesen aponta o fato de que o autor grego Atheneu, na sua obra Deipnosophsitae, comenta que a escola de Epgono era conhecida por sua msica complexa, dramtica e expressiva e que o estilo foi adotado por citaristas que, entre outras coisas, passaram a esticar mais as cordas para alcanar uma intensidade maior de som.

    Na mesma passagem, Mathiesen observa que o termo utilizado por Atheneu para descrever esse fato, (psilokitharistike), lembra a objeo de Plato (psil kithrisis) na sua discusso sobre a mmesis na obra Leis. Ali, Plato rejeita a msica puramente instrumental, considerando que o texto essencial para a mmesis: e eles usam msica solo de ctara e , que difcil de entender sem um texto para compreender a inteno do ritmo e da melodia e com qual dos modelos eles se parecem. Mas preciso perceber que a coisa tambm cheia de grosseria. Pelo fato de serem excessivamente amantes da velocidade, das mincias e dos sons bestiais, eles praticam o e a ctara sem dana ou cano. Qualquer pessoa que utilize um dos dois instrumentos solo dado a feitios e a anti-msica ( ) (Plato, Leis, 669d-670a. Apud Mathiesen, 1999, p.270).

    Outro instrumento de cordas que surgiu na msica grega vindo do Oriente foi a , da classe dos alades. Surpreendentemente, apesar de haver indcios da presena desse tipo de instrumento no lado oriental do Mediterrneo, sua representao nas figuras e relevos gregos que chegaram at ns, s ocorre no perodo das campanhas persas de Alexandre, em torno de 330 a.C. Parece que o instrumento, chamado tambm de skindpsos (), foi trazido nesse momento. Segundo Mathiesen, existe ainda uma referncia de Plux, em seu livro Onomsticon, de que a

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    pandora havia sido inventada pelos assrios e que possua trs cordas. Para o autor de Apollos Lyre, o brao da pandora era trasteado, as cordas eram trs e o instrumento possua algumas vantagens sobre as liras: Um instrumento com brao trasteado poderia facilmente produzir com grande preciso muito mais tons em trs cordas do que qualquer instrumento multicordas. Alm disso, por possuir apenas trs cordas, era mais fcil afinar e sua afinao como um todo seria mais estvel (1999, p.285).

    Esse tipo de instrumento certamente era mais propcio descoberta dos princpios matemticos na msica, pois a afinao seria feita por diviso da corda, algo impossvel na lira. No entanto, o instrumento teve papel inexpressivo na cultura musical grega. Seria por sua pequena intensidade sonora comparando-se s cordas que vibravam mais livremente e grande caixa de ressonncia da ctara? possvel que os gregos, aficionados das grandes apresentaes ao ar livre, no achassem o instrumento adequado a suas competies e festivais. Outra hiptese a dificuldade de mudana de todo um sistema que, como vimos, apoiava-se nos instrumentos de cordas do tipo lira e harpa.

    Curiosamente, a classe das liras no se desenvolver na histria da msica ocidental, ficando restrita msica dos povos africanos e asiticos. J os instrumentos do tipo psaltrio, como a harpa, e os do tipo alade tero uma longa trajetria no Ocidente. O alade passou por inmeras reformas no mundo rabe e, mais tarde, brilhou no perodo renascentista europeu, tendo sido importante para os avanos da cincia musical. Vincenzo Galilei era alaudista e discutiu questes de afinao a partir de seu instrumento. Marin Mersenne, no Segundo livro dos instrumentos da sua obra Harmonia Universal, dedicado mais amplamente a questes de afinao, inicia o trabalho pelo estudo detalhado do alade.

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    6. Afinao e gneros musicais A prtica de afinao dos instrumentos de sete, oito ou mais

    cordas gregos provavelmente assemelhava-se ao mecanismo babilnico mencionado anteriormente, partindo das consonncias de quartas e quintas. Os msicos conhecem a praticidade desse tipo de sistema, registrada por Aristxeno: nossa percepo mais confivel no que diz respeito aos intervalos de tamanhos consonantes que dos no consonantes e a afinao dos intervalos no consonantes ser mais precisa quando for alcanado atravs de uma consonncia (Meibom, 55, 4-7). Esse processo de afinao era chamada de (h lpsis di symphnious), ou seja, a pegada da afinao pela consonncia. Aristxeno mostra como se obtm os intervalos consonantes e dissonantes di symphonia ( ), ou seja, por meio das consonncias (Meibom, 55, 14-19).

    Max Weber associa essa escolha das consonncias de oitava, quinta e quarta por um grande nmero de culturas com a facilidade de fixao pela memria: O que distinguia, para o desenvolvimento da tonalidade primitiva, os intervalos harmonicamente mais puros oitava, quinta, quarta das outras distncias era, em geral, a circunstncia de que eles uma vez reconhecidos salientaram-se de modo acentuado, por sua maior clareza, do conjunto das distncias sonoras vizinhas; salientaram-se para a memria musical (Weber, 1995, p. 85).

    No sistema musical grego, os intervalos consonantes iro tornar-se fixos, e os dissonantes mutveis de acordo com o gnero. A classificao dos gneros musicais era definida pela distribuio dos intervalos nos tetracordes que, por sua vez, formavam as escalas ou os modos. Esses modos podiam organizar-se em a partir de transposies.

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    No gnero diatnico, o tetracorde era dividido em dois tons e um semitom. Os outros dois gneros, cromtico e enarmnico, apresentavam distncias de tom e meio e meio-tom (cromtico) e de dois tons e quarto de tom (enarmnico). Aristxeno vai considerar o gnero diatnico o mais natural: o diatnico deve ser considerado o primeiro e mais antigo, pois a natureza do homem o conduziu a ele primeiro, depois ao cromtico e, por ltimo, ao enarmnico, que o ltimo com o qual a nossa percepo acostuma-se e depois de muito esforo (Meibom, 19, 14-17).

    Em outro trecho da obra, no entanto, o autor discorre sobre os antigos modos de composio (Meibom,23,7-9) exemplificando-os com a estrutura do gnero enarmnico, ao qual chama de o mais belo (Meibom, 23, 4)14. Podemos atribuir a pequena confuso ao fato de no existir ainda uma concepo de abordagem rigorosa da histria da msica, a qual Aristxeno tambm inaugurava. De qualquer modo, sua preocupao, ao definir a cincia do , era estabelecer pontos fixos e, para tal, o gnero diatnico era exemplar. O enarmnico, que compreendia quartos de tom, apresentava dificuldades e no ir subsistir no Ocidente. A afinao proposta pelos pitagricos tambm estava centrada no gnero diatnico, mais homogneo e simtrico. Essa nfase correspondia tanto simbologia matemtica quanto aos interesses de transposio das melodias, que era facilitada pela maior igualdade das distncias intervalares.

    No sculo IV a.C., as escalas abrangiam quinze ou onze tons. O , chamado mais tarde de grande sistema perfeito, apresentava quinze notas dispostas em quatro tetracordes encaixados dois a dois. O , pequeno sistema perfeito, era constitudo de onze notas dispostas em trs tetracordes conjuntos. 14 Ver, a esse respeito, Rosetta da Rios (1954, p.34, nota 2). Del Grande cita o Fragmento W.85 de Aristxeno, no qual ele reconheceria tambm a anterioridade do gnero enarmnico (1960, p. 402) .

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    Quando iniciamos o estudo da msica grega da Antiguidade, chama a ateno a inexistncia de uma transmisso direta, que ocorreu em outras civilizaes de cultura musical muito antiga e altamente sofisticada, como a da ndia, por exemplo. A msica grega e os instrumentos musicais de poca tiveram de ser reconstitudos por meio de estudos empreendidos por especialistas em refazer os parcos papiros, decifrar a escrita musical em muros ou em fragmentos esparsos. E isso s teve incio no sculo XIX.

    Com o desenvolvimento da escrita alfabtica, no sculo V a.C., os antiqussimos poemas homricos foram cristalizados no aspecto visual da letra. Os jovens estudantes de msica seguiam aprendendo de memria, sem fazer uso da escrita. Os profissionais contratavam os melgrafos que se encarregavam da escrita musical. A escrita musical facilitava o intercmbio nessa poca em que era grande a curiosidade, por exemplo, em saber qual a ltima ria de Eurpides; por outro lado, fez ruir o processo de transmisso oral, e a msica praticada na Grcia ficou restrita a frgeis suportes sujeitos s intempries do tempo. Os fragmentos de escrita musical grega que sobreviveram esto basicamente relacionados ao teatro e poesia. A msica instrumental, por ser mais complexa e mais virtuosstica, quase no foi preservada.

    Assim, a msica grega praticamente desapareceu no contato com a fora do Cristianismo, que, no entanto, manteve a tradio dos modos sistematizados apesar das conhecidas e talvez deliberadas alteraes nas denominaes dos modos. Os padres da Igreja talvez tivessem em alta considerao as recomendaes de Plato e Aristteles sobre o poder da msica e inverteram os modos pagos, esperando, assim, inverter os mundos.

    Mas se a msica grega permanece enevoada pelo tempo, o mesmo no aconteceu com a cincia musical grega, que influenciou radical e silenciosamente a msica ocidental como um todo. O incio

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    ocorre com Pitgoras, cujos experimentos lanaram os fundamentos de toda a especulao fsico-matemtica da msica do Ocidente, muito embora a reduo da msica matemtica tenha colocado problemas para serem resolvidos pela teoria musical subsequente.

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    CAPTULO II

    AS ORIGENS MATEMTICAS DA HARMNICA

    1. As disciplinas matemticas No sculo VI a.C., ocorre a primeira explicao matemtica dos

    tons musicais, mais especificamente das consonncias, . A descoberta, que se deu no mbito da escola pitagrica, marca o incio da harmnica, mas os estudos so dificultados tanto pela falta de documentos quanto pelo excesso de lendas e anedotas sobre Pitgoras (c. 580/78 497/6 a.C.). O legado da escola pitagrica reconstitudo a partir de alguns poucos fragmentos do sculo V a.C., textos dos sculos IV e III a.C. e comentadores posteriores.

    As especulaes sobre a natureza empreendidas pelos primeiros pitagricos eram puramente matemticas. Por exemplo, nos sistemas astronmicos que desenvolveram, tudo se movia em um espao geomtrico perfeito: os corpos celestes eram descritos como esferas que se moviam em crculos, figuras e movimentos matematicamente perfeitos. Como observa Thomas Heath, a astronomia pitagrica pura matemtica, geometria combinada com aritmtica e harmonia (...). As matemticas pitagricas, portanto, so uma cincia nica, e a sua cincia toda matemtica (1981, p.165).

    Esse corpo de disciplinas estava entrelaado pela concepo de nmero, formando um grupo denominado na Antiguidade de cincias irms. Uma das referncias mais antigas a esse conjunto est no fragmento da obra Harmonia de Arquitas de Tarento (c. de 400 a 365 a.C.): De fato, sobre a velocidade dos astros, sua ascenso e declnio, transmitiram-nos (os matemticos) claros conhecimentos;

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    tambm sobre geometria, cincia dos corpos celestes e no menos sobre msica. Pois essas cincias parecem ser afins; pois se ocupam de coisas afins: as duas formas primeiras do ser (DK 47, B 1).

    O termo grego (mthema) significava em sua origem estudo, conhecimento. Para os pitagricos, o conhecimento estava diretamente relacionado cincia dos nmeros. A msica era considerada uma das matemticas por se ocupar das razes e das propores numricas. esse sentido original que est presente na obra de Plato, onde aparece pela primeira vez o termo harmnica, no neutro plural grego (Cf. Barker, 2007, p. 6, nota 1). No dilogo Fedro, Scrates explica que saber se uma corda mais grave ou mais aguda faz parte da necessria, ou seja, do aprendizado necessrio ao estudo da msica. Mas para que algum seja verdadeiramente msico, deve conhecer (268e)15.

    No perodo clssico, as disciplinas matemticas estaro integradas educao bsica. No dilogo platnico Teeteto, Scrates questiona o jovem Teeteto sobre as disciplinas que aprende com seu professor Teodoro. Teeteto afirma que estuda as quatro disciplinas matemticas geometria, astronomia, msica (s) e aritmtica () e ainda tcnicas () como o ofcio de sapateiro e outros (145a-d). Em Leis, a ideia de tra mathmata ( ) surge mais definida (817e, apud Heath, 1981, p. 19). Seria o grupo da aritmtica, geometria e astronomia. No Epinoms acrescentada a msica (990c-991a).

    No livro Timeu, Plato descreve como a alma do mundo tece o mundo corpreo sem som nem rudo ( ) (Timeu, 37b). A narrativa terrificante descreve essa msica terica, irm da astronomia terica, tal como apresentadas por Scrates no Livro VII da Repblica: tal como os olhos fixam-se na astronomia, 15 No trecho do Fedro em questo, o msico diria ao no msico: Conheces o estudo bsico da harmonia, mas no a harmnica (allou t harmonik).

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    assim os ouvidos fixam-se no movimento harmnico, essas duas cincias so irms, tal como dizem os pitagricos, e ns concordamos (530d).

    Plato defendia que deveramos nos concentrar no nas estrelas e seus movimentos, mas no cu abstrato da matemtica, ou seja, no s na beleza do cu, mas na beleza da teoria que os astros imitam. A astronomia estuda o movimento dos corpos, j o movimento harmonioso ocorre a partir das leis da harmonia. Contudo, esse movimento harmnico no uma referncia aos movimentos dos tons no tempo, nem ao ritmo, mas a uma ideia imanente do som musical, em que cada tom possui uma velocidade de movimento determinada.

    Na filosofia aristotlica haver uma primeira ruptura com essa concepo de cincia exclusivamente ligada s matemticas. No segundo captulo do Livro II da Fsica, Aristteles faz a distino entre as disciplinas fsicas e matemticas: os objetos matemticos podem ser estudados de maneira abstrata, mas no os corpos naturais ou fsicos, que devem ser investigados pela fsica.

    Aristteles observa, no entanto, que existem cincias que trabalham com objetos naturais, de maneira matemtica, como acontece com o som musical: isso aparece nas mais fsicas dentre as matemticas: a ptica, a harmnica e a astronomia, pois, de certo modo, elas se comportam de maneira inversa geometria; pois a geometria estuda a linha fsica, mas ela no fsica ao contrrio, a ptica estuda a linha matemtica, no enquanto matemtica, mas enquanto fsica (Fsica, II, 2, 194a 7). conhecida a posio de Aristteles no que diz respeito contestao do pitagorismo. Mas suas objees referem-se metafsica e astronomia; no que tange s razes pitagricas, ele estava de acordo que elas fossem os princpios dos intervalos musicais e das consonncias. Isso fica evidente em algumas das questes presentes na obra aristotlica

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    Problemas, Livro XIX, dedicado msica, em que muitos problemas so resolvidos de maneira matemtica.

    No final do sculo IV d.C., o autor romano Bocio, em sua obra Instituies musica incluir a msica no grupo de cincias do quadrivium, aquelas que lidam com o nmero, estabelecendo uma oposio com o que chamou de trivium, que representava as cincias da linguagem: lgica, gramtica e retrica16. A msica foi dividida em trs partes musica mundana: a harmonia das esferas, dos elementos e das estaes; musica humana: harmonia da alma; e musica in instrumentis constituta, que era a msica produzida pela voz e pelos instrumentos musicais. Essa diviso criava uma hierarquia de valores e aprofundou a diviso entre a especulao terica da msica e sua prtica. Em um eco da filosofia platnica, para Bocio, apenas aquele que conhecia os princpios da musica mundana poderia ser chamado musicus.

    Essa busca pela verdadeira cincia produzir efeitos colaterais negativos flagrantes na prtica musical pois to logo o que simples e ideal interage com a multiplicidade, instauram-se os conflitos. O encaixe harmnico entre os dois mundos no est dado. Um exemplo disso ocorrer no sculo XVI, quando um problema tcnico de afinao levar contestao de todo o pensamento subjacente teoria musical pitagrica.

    2. As razes numricas musicais Pitgoras nasceu na ilha de Samos, um dos povoamentos

    gregos na costa da sia Menor. A partir dessa posio geogrfica privilegiada, h relatos de que ele teria visitado o Egito, a Mesopotmia e mesmo a ndia, at transferir-se, por volta dos seus 16 O quadrivium reunia a aritmtica, que trabalha com o nmero em si mesmo; a geometria, com as magnitudes imveis; a astronomia, com as magnitudes mveis, e a msica, com as razes e propores.

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    50 anos, para o ocidente grego (Cf. Jmblico, 2003, p. 29-36.). Tanto a matemtica egpcia quanto a babilnica utilizava como constitutiva da ideia de nmero o conceito de fraes como representao das divises de um todo. Contudo, na Grcia, uma frao era vista como uma razo, ou seja, uma relao entre nmeros inteiros. Como explica Boyer, um tal ponto de vista, que focaliza a ateno sobre a conexo entre pares de nmeros, tende a por em relevo os aspectos tericos do conceito de nmero e a reduzir a nfase no papel do nmero como instrumento de clculo ou de aproximao de medidas (1999, p.36).

    O ponto de partida da Harmnica ocorre justamente quando as consonncias so descritas como relaes entre nmeros ou razes numricas: 2:1, a oitava; 3:2, a quinta e 4:3, a quarta17. A teoria atraente por sua beleza e simplicidade, pois desvela com os quatro primeiros nmeros o fato das consonncias serem agradveis ao ouvido.

    Com a traduo do som musical, mais precisamente, dos intervalos musicais, em razes numricas, Pitgoras ou os pitagricos descobriram as mais antigas leis quantitativas da acstica e, talvez, da fsica matemtica: a proporcionalidade inversa entre a altura e o comprimento de uma corda vibrante. Teria a descoberta partido de uma observao emprica? E se a resposta for afirmativa, em que tipo de aparato cientfico ou instrumento musical foi feita a observao? Ou teria partido de uma hiptese absolutamente terica? De qualquer maneira, as razes numricas realizaram uma sntese que, para os pitagricos, confirmava a existncia de uma analogia entre a harmonia e toda a natureza por meio de um princpio de unidade e coeso: o nmero.

    17 A atribuio desse feito a Pitgoras dada no s por seus seguidores, mas tambm por representantes de outras escolas. Ver Delatte (1974, p. 258).

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    O discurso pitagrico tinha tambm carter sagrado. Um aspecto que costuma ser relacionado descoberta das razes das consonncias de origem simblica. Os nmeros 1, 2, 3 e 4 formavam a , uma das partes essenciais da aritmologia pitagrica. A era considerada o princpio organizador do cosmo. Vrias analogias eram estabelecidas a partir dela. Na natureza, as coisas estariam dispostas em conjuntos de quatro. Era possvel desenhar o primeiro slido com quatro pontos no plano. A soma dos quatro primeiros nmeros resulta no nmero dez, considerado perfeito por vrios motivos, por exemplo, por reunir as quatro dimenses: um: o ponto; dois: a reta; trs, o tringulo e quatro, o primeiro poliedro, o tetraedro. difcil saber exatamente como esse simbolismo mstico impulsionou a descoberta das razes das consonncias mas a talvez possa ser considerada a chave da descoberta das leis acsticas dos intervalos musicais. A coincidncia das razes dos quatro primeiros nmeros com a harmonia consonante confirmava a aritmologia pitagrica, que determinou, dessa forma, o caminho da cincia musical do Ocidente.

    3. A coeso harmnica da natureza

    A primeira fonte escrita que chegou at ns dessa proto-cincia pitagrica so os fragmentos do livro Sobre a natureza, de Filolau de Crotona, que viveu aproximadamente de 470 a 385 a.C., na cidade de Crotona, sul da Itlia, onde floresceu a escola pitagrica e na qual, de acordo com a tradio, viveu o prprio Pitgoras. Segundo Digenes Larcio, Filolau foi identificado por Aristxeno que tinha conexes fortes com os pitagricos, pois seu pai pertenceu escola como sendo da ltima gerao de pitagricos (D.L. VIII 46, apud Huffmann, 2005, p.2.). Nos fragmentos de Filolau, encontramos

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    tambm temas comuns filosofia pr-socrtica, como o conceito de harmonia.

    Na filosofia de Empdocles de Agrigento (c. 490-435 a.C.), um princpio de coeso dos elementos e tem seu oposto em (nekos) princpio de separao e destruio. Para Herclito de feso (c. 540-470 a.C.), o elemento contrrio parte da estrutura harmnica: no compreendem como o divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tenses contrrias como a do arco e da lira (DK 22 B 51). A palavra grega (palntonos), traduzida aqui pela expresso de tenses contrrias, enfatiza a noo de simetria de tenses, presente no termo que, at hoje, traz subjacente essa concepo de equilbrio de foras.

    A raiz grega da palavra harmonia, >har, define um campo semntico relacionado s aes de ajustar, articular, encaixar. O substantivo (harms), portanto, pode ser traduzido por articulao, juno, encaixe e pertence tambm esfera da viso e do tato como palavra tcnica utilizada por carpinteiros e construtores. Para alguns autores essa seria sua primeira acepo, s depois passando a integrar o campo da acstica (Spitzer, 2009, p. 160, nota 8). Entre os vrios empregos na msica grega, um sistema de afinao, no qual o msico encaixa auditivamente um padro de notas no momento em que afina o instrumento.

    No primeiro fragmento da obra Sobre a natureza, de Filolau, encontra-se uma definio de natureza baseada na harmonia: a natureza () no foi harmonizada () a partir de coisas ilimitadas e limitadas, tanto o em seu todo, quanto tudo que h nele (DK 44 - B-1). um tpos da filosofia pr-socrtica o questionamento acerca dos princpios da natureza, alm de conceb-la como ordem; a sua constituio se d a partir de elementos como gua, fogo, ar, ou de pares como quente/frio, denso/rarefeito. Tambm o par limitado/ilimitado aparece, como em

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    um fragmento de Anaxmenes em que o ar a origem da natureza, e ilimitado (DK 13 A 5). Filolau, no entanto, no aceita relacionar o ilimitado com qualquer elemento ou identific-lo com o princpio do . A chave est no conceito de harmonia.

    No fragmento seguinte, Filolau explicita o papel da harmonia no encaixe entre ilimitado e limitado: Visto que esses dois princpios (limitado e ilimitado) no so iguais, nem de iguais famlias, j seria impossvel criar-se um com eles, se no se acrescentasse a harmonia, de qualquer maneira que ela tenha vindo a ser. As coisas iguais e de iguais famlias em nada precisam, pois, de harmonia; mas as desiguais (como os dois princpios) no de famlias iguais e no igualmente dispostas, so necessariamente fechadas em tal harmonia que se destina a conter-se em uma ordem (DK 44 B 6).

    O tratado de Filolau foi bastante respeitado em seu tempo e foi lido, ao que parece com muito cuidado, por Plato. No dilogo Filebo, Plato adapta a cosmologia de Filolau a seus propsitos, desenvolvendo a ideia dos dois princpios limitado e ilimitado no mbito da alma humana. Scrates, Filebo e Protarcus discutem qual o maior bem: o prazer () ou a inteligncia (). Em defesa da segunda, Scrates argumenta que o prazer, e seu oposto, a dor, por possurem graus de intensidade, pertencem classe do ilimitado. J a sabedoria, que traz implcita a ideia de nmero e medida, ao limitado. E, em uma ressonncia pitagrica, Scrates d um exemplo de limitado e ilimitado na msica. O som uma coisa s, e ilimitado, pois admite gradaes: possvel perceber se um som grave, agudo ou intermedirio. No entanto, isso no torna ningum msico; apenas quando tiveres alcanado o nmero e a qualidade dos intervalos da voz com relao ao tom agudo e grave, e os limites dos intervalos e todas as combinaes () derivadas deles, as harmonias, e ainda os efeitos correspondentes nos movimentos do corpo (...) medidos pelo nmero, chamados de ritmos e medidas (...)

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    ters te tornado msico (Filebo, 17 b-e). Ou seja, quando o som (de)limitado pelo nmero, torna-se tom musical. Argumento semelhante encontramos no Fedro, como apontamos no incio deste captulo (p.32).

    4. A fixao das consonncias A harmonia fechada em uma ordem descrita no segundo

    pargrafo do fragmento acima referido, tal como disposto na edio Diels-Kranz,18 e a sua traduo apresenta algumas peculiaridades importantes. Em geral, o incio costuma ser traduzido assim: A harmonia abrange uma quarta e uma quinta; a quinta maior que a quarta por um tom (DK 44 B 6). Poderamos fazer uma traduo mais literal do texto: O tamanho () da harmonia quarta e quinta, mas ainda assim estaramos longe do seu significado preciso. A harmonia, aqui, refere-se oitava. Filolau utiliza o termo harmonia (), em vez de diapasn (), o que enfatiza a coerncia e unidade do sistema. Alm disso, no aparecem os termos para a quinta e para a quarta. A formada por syllaba () e dioksion (). Syllaba na linguagem corrente musical antiga equivalia ao intervalo de quarta, substantivo do verbo (syllambano), pegar junto, reunir19. Esse termo refere-se a algo bem concreto: as cordas abaixo dos dedos do msico em uma posio inicial na lira ou na ctara, e abrangendo uma quarta. O mesmo para , que significa: atravs das cordas mais agudas e seriam as cordas restantes, mais

    18 Existem dvidas filolgicas a respeito da reunio dos dois pargrafos. 19 Em portugus a slaba, em geral, a reunio de uma consoante e uma vocal. Eram comuns, no perodo clssico grego, as analogias entre a linguagem verbal e a musical; no Filebo, o personagem Protarcus diz que compreendeu melhor o argumento socrtico, que se havia utilizado da msica para desenvolv-lo, quando isso feito tomando por base o alfabeto.

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    agudas, tangidas a partir da , formando um intervalo de quinta.

    Andrew Barker fez um estudo detalhado desse pargrafo do fragmento e suas concluses so oportunas para o desenvolvimento das questes suscitadas no decorrer deste trabalho. De acordo com Barker, essas expresses no texto de Filolau parecem vir da linguagem dos msicos, em vez dos filsofos e cientistas, e harmonia habita ambas as esferas. Ou seja, a linguagem nesse trecho no envolveria clculos matemticos, fazendo uma referncia direta aos componentes da afinao que se apiam em posies especficas, e no a tamanhos de intervalos que independem das suas posies das cordas no instrumento (2007, p.275-8).

    A afirmao adequada no que diz respeito primeira orao do fragmento de Filolau, contudo, na segunda: a quinta maior que a quarta por um tom, o termo grego utilizado para tom no , mas epgdoos (). Em grego (gdoos) significa oitavo e epgdoos o que contm um inteiro mais um oitavo, ou seja, a razo 9:8. A razo do tom tambm foi apresentada pelos pitagricos, apesar de fugir do esquema dos quatro primeiros nmeros inteiros e por isso o intervalo no era elencado entre as consonncias. A meno a essa localizao do epgdoon retorna adiante no fragmento com um significado ligeiramente diferente.

    Para compreender a escala de Filolau, preciso saber que, nesse sistema, as consonncias so nitidamente distintas dos outros sons do tetracorde, com exceo do tom inteiro. De acordo com Clenides, terico provavelmente do sculo II d.C., os intervalos sinfnicos so (a quarta), (a quinta), (a oitava) e os assemelhados (os compostos: quinta ou quarta mais uma oitava e oitava dupla). Os intervalos diafnicos so todos aqueles menores que e aqueles que ficam entre os intervalos sinfnicos (Apud Grande, 1960, p.403). Esses ltimos,

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    para os pitagricos, pertenceriam classe do (aperon), do ilimitado (ou indefinido). As quatro notas do tetracorde dividiam-se em fixas e mveis. As consonncias eram formadas pelas fixas (ou fixadas por elas). Como comentou Paul Tannery: ele (Pitgoras) se satisfez em determinar os sons fixos (do sistema musical grego); e deixou de lado, na classe do indefinido (), a mltipla variedade dos sons mveis (1912, p. 80).

    Assim, Filolau inicia a construo da escala pelas consonncias (notas fixas): Da subindo at a , temos uma quarta, da at a , uma quinta, da descendo at a , uma quarta, da at , uma quinta. (DK, 44 B 6). Aqui, o mais importante no o nome das notas e a sua posio, mas o fato de Filolau descrever os sons fixos consonantes da escala. A nfase est na demonstrao de que os intervalos consonantes podem ser formados com qualquer combinao de notas, ou seja, os intervalos so elementos autnomos. A escala pode ser ascendente ou descendente, no importa, o modelo coeso, harmnico, pois as quartas e quintas entrelaam (fecham) a oitava. E suporta inverses, basta os intervalos () manterem o seu tamanho ().

    Como mostrou Winnington-Ingram, nem todas as escalas antigas abrangiam uma oitava, existiram muitas formaes de escalas. Para ele, o sentimento da oitava no um desenvolvimento primitivo da conscincia (1968, p. 23). Se for assim, s a partir de um determinado momento a oitava comeou a ser percebida como uma consonncia importante e, mais do que isso, como um intervalo musical. E o mesmo deve ter ocorrido com os intervalos de quarta e quinta. O fato que s aps terem sido percebidos como tais poderia ocorrer o salto fundamental: a sua traduo em razes numricas.

    Mas, no momento em que Filolau escreve, j havia essa conscincia, portanto, o texto no exporia nada de novo. Porque

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    perfeitamente possvel saber de maneira emprica que a oitava a reunio da quarta e da quinta e que a quinta maior que a quarta. O autor parece falar em uma linguagem intermediria, preparando o discurso para introduzir as razes numricas, que talvez ainda fossem uma novidade. O j era percebido como beleza ordenada, essa ideia estava colocada. O assunto agora era da maior importncia: as razes musicais confirmariam a lei da harmonia como raiz fundante da natureza. De acordo com a concepo pitagrica, tudo que existe poderia ser expresso por um nmero, mas a msica revelava que as coisas eram, elas mesmas, invisvel e intimamente, nmeros. O nmero seria de fato o elo entre todas as coisas, revelador dos princpios de analogia e semelhana.

    E partindo desse ponto, acessvel a qualquer cidado grego com sua respectiva educao musical, Filolau avana firme no terreno matemtico: Entre a (mse) e a (trte), um tom. A quarta (4:3, eptrite:um inteiro mais um tero); a quinta (3:2,hemilia:um inteiro mais meio) e a oitava dupla (2:1) (DK 44, B 6). Como no incio, o termo grego utilizado para tom no (a diferena de tenso da corda entre os intervalos de quarta e quinta), mas epgdoos, que refere-se razo 9:8.

    importante fazer um parntese para ressaltar a observao de Szab de que Filolau ao dizer que a diferena entre 3:2 e 4:3 igual a 9:8, est fazendo aluso a operaes efetuadas no cnone, pois matematicamente no a subtrao que resulta 9:8, mas a diviso de 4:3 e 3:2 (2000, p.114-5)20. De acordo com o autor romeno, no cnone seria possvel examinar o intervalo como uma 20 Cnone o instrumento que teria sido criado pelos pitagricos para as demonstraes visuais das razes numricas. Diferente de Szab, autores como Flora Levin consideram que o cnone seria uma inveno posterior visto que nem Plato nem Aristteles falam dele. Consideramos aqui a hiptese de Szab, pois, dados nossos insuficientes conhecimentos de matemtica, pareceu-nos a nica explicao para as inverses entre subtrao e diviso e adio e multiplicao, que ocorrem tambm no Manual de harmnica de Nicmaco de Gerasa. Para uma explicao detalhada, ver Szab, 2000, p. 114-5.

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    diferena, o mesmo acontecendo com a inverso entre adio e multiplicao: da mesma maneira, devido referncia a uma operao efetuada no cnone que se explicam as expresses da msica terica que exprimem a multiplicao de duas razes como uma adio (2000, p.132-3).

    parte a correo das sutilezas dos clculos matemticos, a construo diferente da frase que repete a razo do tom parece enfatizar agora a simetria do sistema, em que necessrio ter um ponto de equilbrio, justamente o tom inserido entre a mse e a trte. O epgdoos agora no est sendo definido pela diferena entre a quinta e a quarta, mas o ncleo da escala e ele que a define.

    Esses so os primrdios da teoria musical, tal como praticada nos crculos pitagricos. Antes da sistematizao pitagrica no h nenhuma evidncia de uma base terica para a afinao das escalas. Agora, o princpio passava a ser matemtico, pois, citando novamente Szab: a empiria no apreende que a diferena entre a quinta e a quarta 9:8 e que se deve atribuir quarta uma razo 4:3 e, quinta, a razo 3:2 (2000, p.133). Aos poucos no ser mais necessrio tocar, medir, ouvir, mas apenas calcular.

    5. A kmma pitagrica

    Filolau formula ento o tamanho da oitava e da quarta: assim a abrange cinco tons e duas desei , e a quarta, dois tons e uma desis. Desis () significa a ao de passar, em latim, transitus. A desis, na msica grega, antiga era o intervalo mnimo de uma escala; no caso da escala diatnica pitagrica, que a referncia de Filolau, muito prximo do meio-tom. S que no havia o meio-tom exato porque o tom no podia ser dividido ao meio, pois resultaria num nmero irracional. Isso era inconcebvel para os pitagricos, que consideravam a ausncia de um nmero racional comprometedora da

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    inteligibilidade de algo. Para contornar esse problema, sero feitos clculos complicados, buscando acomodar a dificuldade e assim completar a escala musical.

    Desse modo, o tom deveria ser dividido em duas desei (expressa pela simptica razo de 256:243) e mais uma kmma (:531441:524288!). Como podemos ver, relacionar alturas apenas a nmeros racionais acaba por introduzir alguns problemas, fazendo despontar a fragilidade do sistema. Por exemplo, se tocarmos 12 intervalos de quintas na razo 3:2, em srie, a ltima nota dever ser (3:2)12; j ao tocarmos sete oitavas (que corresponderiam ao intervalo das 12 quintas) a ltima nota seria (2:1)7. As duas notas so quase a mesma, entre elas h uma diferena minscula, que produz um intervalo dissonante, a coma pitagrica.

    Essa dificuldade s ser solucionada mais tarde com a diviso da escala em meios-tons, o temperamento igual, baseado nos nmeros irracionais. Mas como observa Abdounour: o experimento de Pitgoras contribui com a ideia de temperamento na medida em que propicia a construo de uma escala que no se fecha resultando na coma pitagrica. As diversas tentativas de distribuir tal diferena culminam com a repartio logaritmicamente equivalente, correspondente ao temperamento igual (1999, p. 201).

    O que importa agora considerar o significado como um todo desse sistema inicial. A msica comeava a descolar-se da sua origem em tetracordes e essa nova estrutura matemtica se tornar a base da msica ocidental dos prximos dois mil anos, at ser substituda pelo sistema temperado moderno, que, no entanto, manter nas relaes sistmicas da harmonia aspectos da estrutura matemtica. A gama diatnica, to apreciada pelos pitagricos por sua simetria, ir tornar-se, gradativamente e com variaes de afinao, a escala de referncia da msica ocidental.

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    O destaque aos intervalos de quintas um prenncio do ciclo da quintas do sistema tonal, quando a quarta ser tratada como dissonncia, ou semi-dissonncia. Alm disso, importante o fato de a oitava ser encaixada pelas quartas e quintas tanto de cima para baixo quanto de maneira inversa. Essa concepo da organizao escalar como modelo matemtico ressoar no sculo XVIII na teoria da inverso dos acordes de Jean-Philippe Rameau (1682-1764).

    6. A cosmologia pitagrica O livro de Filolau o testemunho do nascimento da cincia

    harmnica que, buscando padres numricos simples de articulao entre o visvel e o invisvel (por exemplo, corda/som), reduzia a multiplicidade unidade, dando inteligibilidade natureza: sem ele (o nmero) todas as coisas so ilimitadas, obscuras e imperceptveis (DK44, B11). Em vez de buscar uma substncia primordial, como outros pensadores da poca, os pitagricos encontraram um princpio imaterial com forte potencial de organizao hierrquica. Nas palavras de Aristteles: como vissem nos nmeros as modificaes e as propores da harmonia e, enfim, como todas as outras coisas lhes parecessem, na natureza inteira, formadas semelhana dos nmeros, e os nmeros as realidades primordiais do universo, pensaram eles que os elementos dos nmeros fossem tambm os elementos de todos os seres, e que o cu inteiro fosse harmonia e nmero21.

    Diz Filolau: tudo que possvel de ser conhecido tem um nmero, ou seja, a inteligibilidade das coisas dada pelo nmero. E ainda: pode-se ver a natureza do nmero e sua potncia em atividade, no s nas (coisas) sobrenaturais e divinas, mas ainda em 21 Metafsica, I, Cap. V. Trad. de Vinzenzo Cocco. Coleo Os Pensadores. So Paulo, Abril, Cultural, 1979, p. 21.

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    todos os atos e palavras humanos, em qualquer parte, em todas as produes tcnicas e na msica (DK44, B11). As especulaes musicais estavam inseridas no contexto de uma cosmologia, que era na verdade uma filosofia que, por sua vez, fazia a conexo entre as diversas reas do conhecimento, da astronomia medicina.

    A teoria astronmica pitagrica tem o seu lugar na histria da astronomia como um todo. Os pitagricos teriam sido os primeiros a sustentar a ideia de que a Terra e o universo tinham a forma esfrica (Cf. Heath, 1981).22 difcil verificar como eles teriam chegado a essa concluso, talvez pela observao dos eclipses. Contudo, considerando o carter essencialmente matemtico de sua filosofia da natureza, possvel que a suposio fosse puramente matemtica, como diz Heath, ou esttico-matemtica; ou seja, Pitgoras atribuiu a forma esfrica Terra (assim como ao universo) pela simples razo de que a esfera a mais bela das figuras slidas (1981, p.162-3).

    O pitagorismo desenvolveu uma cosmologia no-geocntrica e, na Renascena, Coprnico fez referncia aos pitagricos ao defender o heliocentrismo. Filolau, em seu livro, diz que a Terra e os sete planetas, o que inclua a Lua e o Sol, giravam em torno de um fogo central. Haveria ainda uma contraterra, colinear Terra, perfazendo o nmero dez (Filolau, DK44, B17). Para Aristteles, a incluso dessa contraterra destinava-se a perfazer o nmero 10, ou seja, por um motivo matemtico, esttico e simblico, o seria mais perfeito assim.

    Nessa teoria cosmognica de Filolau o um e comeou a vir a ser a partir do centro, e do centro para cima, nos mesmos intervalos () que os de baixo (Filolau, DK44, B17). Os corpos celestes so esferas e movem-se em crculos, um espao ideal, em que suas distncias so intervalos, , como 22 Contudo, de acordo com Boyer (1999, p. 38), existem contestaes acerca dessa tradio, que atribui o conceito de terra esfrica aos pitagricos.

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    vimos, termo tambm utilizado para os intervalos musicais. Tal como a escala musical, a teoria astronmica perfeitamente simtrica.

    Para Heath, a astronomia pitagrica pura matemtica, combinada com aritmtica e harmonia. A descoberta capital de Pitgoras da dependncia dos intervalos musicais das propores numricas levou seus sucessores doutrina da harmonia das esferas (1981, p. 165).

    As teorias acsticas que relacionavam a velocidade com a caracterstica do som estendiam-se ao movimento dos planetas: os mais velozes produziriam sons mais agudos que os mais lentos. E as distncias entre eles corresponderiam s razes numricas musicais. Apesar de combatida por Aristteles23, detalhes dessa cosmologia so descritos por seu comentador Alexandre de Afrodsias, do sculo III d.C., conhecido como o ltimo comentador peripattico, esse som que eles (os planetas) produzem durante seu movimento profundo no caso dos mais lentos e alto no caso dos mais rpidos; esses sons ento, dependendo da razo das distncias, soam de modo que seu efeito combinado harmonioso (Apud Hunt, 1978, p.12).

    Esse mito relatado na Repblica de Plato como o mito de Er, o soldado armnio que narra uma cosmologia fantstica que ficou conhecida como o mito da harmonia das esferas (614b-617d). No Timeu (35b-36c), a escala musical pitagrica descrita como um princpio cosmognico e relaciona-se escala de Filolau no que diz respeito presena dos intervalos () entre os planetas. No trecho da criao da alma do mundo, o amalgamador () cria o universo corpreo visvel e tangvel conjugando-o por um elo, o melhor deles: a proporo natural ( ). Em seguida, criada a alma do mundo, o que acontece por phila (), que pode ser traduzida por amor. Essa criao acontece com o entrelaamento de nmeros duplos e triplos, quadrados e cbicos caracterizando uma 23 Posio esta explicitada, por exemplo, em De Caelo, Livro II, 9, 16-32.

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    criao musical, harmnica. Depois, o amalgamador preenche os intervalos () aplicando as mdias proporcionais: as mdias harmnicas geram intervalos de quartas e aritmticas, os intervalos de quintas. Por fim, completa os intervalos de 4:3 com os intervalos de 9:8 deixando uma parte de cada um deles. O tom ser dividido em dois intervalos desiguais, duas disei de tamanhos diferentes, chamados lemma () (243:256), a razo que est em Filolau, e apotom () (2187:2048) (Timeu, 31b-36b). A escala avana de maneira ortodoxa por quatro oitavas, muito alm do acessvel voz humana e os nmeros surpreendentemente correspondem posio dos primeiros harmnicos, sons constitutivos das notas que s sero comprovados experimentalmente no sculo XVII.

    A cosmologia pitagrica est presente tambm na medicina da poca. bem provvel que Filolau conhecesse a obra do mdico, tambm de Crotona, Alcmon (c. 560-500 a.C.), que teria sido contemporneo do prprio Pitgoras. Foi ele quem elaborou a teoria da desarmonia como causa das enfermidades e pode ter sido um pioneiro da embriologia (Huffman, 2005). Barker chama a ateno para uma passagem no tratado mdico hipocrtico De victu, em que o autor discute o desenvolvimento do feto humano: quando movimenta-se para um lugar diferente, alcana-se a correta contendo as trs consonncias: syllaba (), dioksian () e diapasn (), ele vive e cresce utilizando os mesmos nutrientes que antes. Mas se ele no alcanar a e os elementos graves no foram consonantes com os agudos, na primeira consonncia, na segunda, ou naquela que passa por tudo diapasn, ou seja, a oitava, se uma delas estiver faltando, toda a afinao () intil (Apud Barker, 2000, p.280). surpreendente a semelhana do texto mdico com a escala de Filolau, o que reafirma o carter organicista da cosmologia pr-socrtica e pitagrica. Como observou Max Weber: o fenmeno da mensurabilidade dos intervalos

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    justos [leia-se consonantes] foi, uma vez reconhecido, de extraordinria impresso sobre a imaginao, como demonstra a imensa mstica dos nmeros ligada a isto (1995, p. 85).

    7. Os desdobramentos da harmnica: Arquitas Arquitas de Tarento viveu na primeira metade do sculo IV a.C

    e foi contemporneo de Plato. Alm de matemtico e filsofo, Arquitas foi tambm um aclamado lder poltico e, segundo contam, prestava ateno especial s crianas, pois teria sido o inventor de um pequeno chocalho para acalm-las. No ano de 361 a.C., Arquitas foi o responsvel pelo envio de um navio para resgatar Plato das mos do tirano de Siracusa, Dionsio II. Segundo alguns estudiosos, a Stima carta de Plato, em que ele narra a experincia em Siracusa, seria endereada ao prprio Arquitas (338a-339d). Apesar disso, os dois tinham desentendimentos em questes matemticas, filosficas e polticas.

    Arquitas esteve envolvido em vrios ramos da atividade cientfica, todos eles interligados pelas propriedades do nmero. Ele radicalizou o pensamento analgico pitagrico, estendendo-o s tknai como a mecnica. Dedicou-se intensamente msica, avanando nas questes de afinao da lira e sofisticando os clculos das razes numricas e das mdias proporcionais. De certa forma, ele aproximou a harmnica do fenmeno da experincia musical. Ao mesmo tempo em que avanou no campo da fsica acstica, Arquitas introduziu mais rigor ao clculo das razes numricas musicais e props novas afinaes da escala, calculadas por meio das chamadas mdias proporcionais.

    Na harmnica pitagrica no possvel dividir os intervalos bsicos na metade. Portanto, a oitava no pode ser dividida em duas partes iguais, deve ser dividida em uma quarta e uma quinta. Em

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    linguagem tonal moderna, podemos exemplificar isso dizendo que a oitava no poderia ser dividida por seu trtono (alis, a grande dissonncia, responsvel pelo desenvolvimento da tonalidade), assim como o tom. Por outro lado, possvel dividir a dupla oitava na metade. Baseando-se nessas duas propriedades, Arquitas produziu uma rigorosa prova para as razes epimricas ou superparticulares (2:1, 4:3, 3:2 e 9:8), razes do tipo n+1:n>1, dizendo que elas no poderiam ser divididas em duas partes iguais. Essa afirmao ser apresentada ligeiramente modificada no incio do sculo III a.C. na famosa e problemtica Proposio 3 da obra Diviso do cnone, que abordaremos adiante.

    8. As mdias proporcionais

    O sistema cosmolgico pitagrico de encaixes articulados harmonicamente tinha sua expresso matemtica nas mdias proporcionais que, no mbito da teoria das propores, promoviam a unio entre as disciplinas matemticas (Szab, 1977, p.107).

    A teoria das propores relao entre duas razes desempenhou papel crucial na epistemologia pitagrica e, de acordo com Heath, foi desenvolvida muito cedo na sua escola com referncia teoria da msica e aritmtica (1981, p. 85). Dizem que foi entre os babilnios que Pitgoras teria conhecido as mdias aritmtica, geomtrica e subcontrria, a qual Arquitas mais tarde renomearia para harmnica, e ainda, a proporo urea.

    Uma mdia proporcional uma relao matemtica constante que cria uma analogia entre dois termos, atravs de um terceiro. Os pitagricos generalizaram o conceito de mdia proporcional e chegaram ao nmero de dez mdias proporcionais. Coincidentemente ou no, duas delas, quando aplicadas ao comprimento de uma corda, geram duas das consonncias perfeitas: a quarta e a quinta. A razo

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    4:3, o intervalo de quarta, obtida pela mdia harmnica da diviso da oitava (2:1). O intervalo de quinta (3:2) a sua mdia aritmtica.

    Como esclarece Barker: quando a oitava dividida no modo familiar de duas quartas separadas por um tom, a estrutura demarcada em quatro notas, das quais a segunda est para a primeira na razo 4:3. A terceira nota est para a segunda na razo 9:8. E a ltima nota est para a terceira na razo 4:3. Portanto, a razo da terceira nota para a primeira e da ltima para a segunda de 3:2 e a razo da ltima para a primeira, 2:1. Os menores nmeros inteiros que captam esse arranjo so 6, 8, 9 e 12 (2000, p. 302). A mdia aritmtica dos quatro nmeros 9 (9:6=12:9) e a mdia harmnica, 8 (12:8 = um tero de 12 e 8:6 = um tero de 6).

    Luigi Borzacchini (2007, p.278) defende que a logstica de Arquitas, que ele proclamava como sendo o ncleo das matemticas, no era uma arte prtica do clculo, como querem alguns, mas a cincia das relaes entre os nmeros, no sentido dado por Tannery: uma caracterstica da tradio pitagrica que ela apreende os nmeros em si no mundo visvel, mas suas razes no mundo audvel (2002, p. 70).

    O segundo fragmento de Arquitas relaciona trs mdias, como pertencentes msica: a msica tem trs mdias, uma a aritmtica, a segunda a geomtrica e a terceira a contraposta que chamamos de harmnica (DK 47 B 2). E segue formulando cada uma delas. As mdias aritmtica e harmnica esto relacionadas diviso da oitava respectivamente nos intervalos de quinta e quarta24.

    Convm lembrar que as afinaes utilizadas na msica grega no tempo de Arquitas e Plato eram bastante sofisticadas e as razes numricas de Filolau no davam conta da msica real praticada. Alm de formalizar a questo das mdias proporcionais, Arquitas introduziu 24 A mdia aritmtica expressa pela frmula b=a+c/ 2, a mdia harmnica b=2ac/a+c e a mdia geomtrica b2=a.b

  • Cynthia S. de Gusmo

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    essas mesmas mdias entre as quartas e as quintas, o que, por analogia, deveria produzir consonncias menores.

    O pro