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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NÃO PUBLICAÇÃO (CIF)

Metanfetaedro/ Alliah -- São Paulo : Tarja Editorial, 2012. ISBN 978-85-61541-51-4 1.

CDD-869.9308ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:

1. Contos : Antologia : Literatura brasileira869.9308

EDITORES:

REVISÃO:PROJETO GRÁFICO:

ILUSTRAÇÃO DE CAPA:ILUSTRAÇÃO DE MIOLO:

DIAGRAMAÇÃO:

Copyright © 2012 by Tarja Editorial

Todos os direitos desta ediçãoestão reservados à Tarja Editorial;direitos de autoria dos contospertencem a sua autora. Nenhumaparte deste livro poderá serreproduzida sem permissão formal,por escrito da editora, exceto paracitações incorporadas em críticasou resenhas.

Gianpaolo CelliRichard DieguesCristina LasaitisRichard DieguesAaron RuttenAlliahRichard Diegues

Todas as citações e nomes incidentes nestelivro são fruto do inconsciente de suaautora, devendo ser encarados como nãointencionais. Ainda assim, caso sinta-seofendido com algo nestas páginas, bastafechar a obra. Todavia, se resolver insistir,compreenda que coincidências realmenteocorrem. Todas as opiniões expressasnessa obra pertencem a sua autora. Osanimais que eventualmente foram feridos,molestados e traumatizados durante aprodução desta obra receberam um funeraldecente; poucos animais e crianças forammolestados fora dos padrões daconvençào de Haia. A cola usada nalombada pode conter glúten. Sim,exercício provoca enfarto e TV causaretardamento mental. Vá ler!

TARJA EDITORIAL LTDA.Rua Silvio Rodini, 399/34Parada Inglesa - São PauloCEP 02241-000 / SP

[email protected]: @tarjaeditorialwww.facebook.com/tarjaeditorialwww.tarjalivros.com.brwww.tarjaeditorial.com.br

[2012] Noster Anno, Fictio Iuris

LITERATURA FANTÁSTICA MUITO ALÉM DOS GÊNEROS

1ª edição na primavera de 2012

Impresso no Brasil

Contos brasileiros: Literatura brasileira: Coletâneas - I. Alliah.

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“Je t’écris ébloui par tant d’humanité.”Marc Lévy“N

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Atenção,você está prestes a navegar por páginas estranhas.

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Não subestime o aviso. Aliás, não subestime a Alliah!Para aqueles que acreditam que a literatura contem-

porânea apenas dá voltas macarronicamente em torno dosmesmos temas, empelotados nas mesmas almôndegas degênero, que servem a um público faminto por mais domesmo ou tentam agradar a críticos de paladar muito pes-soal, e por isso mesmo não é mais capaz de surpreender,faço uma proposta: deixem seus velhos conceitos sobreficção de lado e tomem uma dose de Metanfetaedro!

Metanfetaedro tem sabor de frutas azuis, garantoque você nunca experimentou. É de uma literatura fantás-tica elevada à última potência, e também a primeiríssima

obra brasileira dentro de um gênero inédito: o new weird,ou “novo estranho”. Mas o que é isso?

Dizem os centauros que o novíssimo weird é umfilhote da ficção especulativa que mora em um cruzamen-to entre a ficção científica, a fantasia, o horror, e também opolicial, o noir, o pulp e mais tudo o que a criatividade per-mitir. Já as sereias dizem que é uma ficção surrealista, oresultado químico de uma omelete de elementos aparente-mente sem conexão entre si, mas encaixados harmoniosa-mente para compor um todo esteticamente bizarro,estranhamente excitante e – por que não? – poético, e atémesmo hiper-realista.

Esse new weird way of life é encontrado nas obras fan-tásticas mais espantosamente originais da última década,como Perdido Street Station e Rei Rato, de China Miéville, e ASituação, de Jeff VanderMeer (os dois últimos publicados pelaTarja Editorial), e visualmente arquitetados nos quadrinhos

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Promethea, de Alan Moore. Dentre essas poucas mas repre-sentativas referências da vanguarda new weird, não é preci-pitado dizer que a brasileiríssima e precoce Alliah está en-tre os grandes, posto que em seus 21 aninhos domina ogênero com uma competência que é de assombrar os de-mônios de Hyeronymus Bosch.

O Metanfetadro é uma droga metafórica mas deefeitos permanentes. A viagem por estas páginas estranhassubvertem os conceitos de realidade. Há cenários que re-bentam os horizontes da imaginação, como os mundos deMorgana Memphis e a Cidade Sonhando os Seus Metais.Há ficções como Moleque e Tupac Amaru III, que comsuas imagens oníricas enfiam a unha em feridas bastantereais: mazelas históricas, políticas, sociais. Há o tema univer-sal do amor impossível transfigurado nas linhas deContemplafantasiação, e o luto pela perda de alguém queri-do no Jardim de Nenúfares Suspensos. Cada história germi-nada em um universo próprio da mais fértil engenhosidade;são frutos da melhor safra da literatura fantástica nacional.

Por isso digo: deixe por terra os seus velhos concei-

tos. Tranque o senso comum no quintal, arrume uma al-mofada com o melhor coeficiente de maciez que puderencontrar, limpe bem as lentes dos óculos (se é que vocêusa um), e prepare-se para se perder – ou se encontrar –nos lisérgicos mundos de Alliah.

A você, leitor, as frutas azuis.

Cristina Lasaitis

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dedico essa obra para os ninguéns

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Moleque

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Mogul ajudava Iara a lavar os cabelos esverdeados.Acomodados embaixo de uma passarela, esfregavam-secom querosene. O cheiro de combustível empesteava o ar,sobrepondo-se ao cheiro de esgoto. A sereia transfiguradaem humana praguejava em línguas esquecidas. Seus olhosde um verde apagado estavam avermelhados e ardiam comoponta de cigarro. O rangido das tábuas e do ferro mal pre-gado da passarela marcava a sinfonia quebrada da cidadejunto com o trânsito. Os carros mal andavam, quaseabalroados uns aos outros. Gigantescas carcaças de metalvelho e fedorento buzinando ininterruptamente.

Devido a uma obra interminável na estrada, apenasuma pista estava livre, criando uma convergência. O veícu-lo responsável pela paralisação estava parado bem na bocado funil, esperando sabe-se lá o quê. Mogul, de pele pretacomo carvão e olhinhos amarelos amassados por algumadoença que lhe pesava as pálpebras, deixou a mulher ter-minando de lavar o cabelo e enfiou-se no meio daquelaescultura urbana de engarrafamento. Subiu em dois conesfluorescentes e começou a fazer malabarismo com cabe-ças de rato. Os minúsculos crânios com pedaços de pele e

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pelo agarrados giravam no ar, rodopiando quase imper-ceptíveis, voltavam às mãos habilidosas do menino e eramjogados novamente naquele ciclo. Cinza apodrecido so-bre cinza nevoento. Mas os vidros engordurados dos ve-ículos permaneceram fechados e indiferentes.

Aborrecido, o menino chutou os cones para o meioda rua e voltou a passos pesados para debaixo da passarela.Iara, comovida, pegou as cabeças de rato e andou até ocarro mais próximo, aquele que estava parado causando oengarrafamento. Bateu no vidro. Não obteve resposta. Ba-teu novamente. Nada. Mais uma vez. Ouviu o motor en-gasgando e um acelerador suspirando impotente. Impaci-ente, socou a janela. O vidro espatifou, voando sobre obanco vazio do carona. A mulher debruçou-se, olhandopara um motorista paralisado de susto que tentava balbuci-ar alguma coisa. O suor escorria pingando de sua testa gor-da e o terno amarfanhado parecia ser de alguém bem maismagro que ele. Enfiando-se para dentro do carro, Iara pu-xou aquela massa abobalhada pela gola e meteu as cabeçasde rato na boca do infeliz. Ele cuspia, engasgava, debatia-se e chorava. Ela insistiu até ter certeza que todas as seiscabecinhas haviam descido pela garganta do homem, queagora tinha espasmos e tentava vomitar. Iara afastou-se docarro e foi sentar-se ao lado de Mogul. Seu corpo nu deum verde-água ainda estava sujo por pontilhados de esgo-to. Num relance poderia ser confundido com uma man-cha de mofo crescendo no concreto.

O homem atacado saiu do carro aos tropeções, en-fiando o dedo na goela, forçando um vômito que não vi-nha. Sua agonia fez com que andasse até as imediações da

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obra ali perto. Curvado e olhando para o chão enquantoengolia quase o braço inteiro, não ouviu os gritos de alertae teve a cabeça atingida por uma viga que se desprendeudo guindaste. O crânio amassou e afundou. O corpo caiuestrebuchando e rolou até uma vala. Seu carro largado napista estremeceu e lamentou choroso. Perdera seu vínculoorgânico e morreria junto com o dono. Desfez-se em se-gundos. Pereceu derretendo no asfalto. O trânsito foi libe-rado e os veículos avançaram velozes.

— As buzinas estavam me irritando – disse Iaradepois de sorrir e puxar um cigarro do bolso de Mogul.

Marmelo ainda se lembrava dos gritos da irmã.Esganiçados, preenchiam o ar como navalhas degolandocada centímetro da culpa que sufocava aqueles que a ha-viam vendido aos traficantes. Agachado num canto, omenino abraçava os joelhos ossudos com mãos erodidasde calos e arrebentadas de pó, tão frágeis como gravetossecos. Seus olhos úmidos distinguiam sombras agigantadasque queimavam as paredes num contraste entre a luzamarelada das tochas e os contornos obtusos dos merca-dores. Levariam a menina embora, e a mutilariam pormeses seguidos com uma brutalidade tão rapace que empouco tempo ela arranjaria um jeito de se suicidar dandocom a cabeça na parede, num desespero eviscerado emossos partidos e lágrimas catarrentas.

Mas eles precisavam do dinheiro. Seus pais não per-deriam a oportunidade de garantir um naco de pão duro efatias de carne salgada em troca da violação de sua filha.Afinal, crianças são fáceis de fabricar, poderiam fazer mais

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uma quando a fome apertasse novamente. Ou talvez apressão daqueles canos de ferro amassando suas nucas ecavando sulcos enferrujados em sua pele fosse apenasum incentivo a mais. Amedrontado, Marmelo pensou quetambém seria vendido, mas os traficantes apenas o mira-ram com desprezo e cuspiram em seus olhos, não semantes fazê-lo chupar seus membros enrijecidos, por purocapricho e zombaria. O gosto do esperma misturou-seao gosto de seu próprio sangue assim que as laterais desua boca foram rasgadas. Sua irmã desmaiara com umacoronhada na cabeça. Seus pais estavam ocupados de-mais contando o dinheiro. E o tempo pareceu estancarnaquele fim de tarde calorento, estagnado entre a savanalá fora e o casebre emporcalhado, pintando em sua me-mória o rapto e o assassinato de uma inocência há tantoperdida, em seus míseros oito anos de idade.

Mogul não era dali. Nem Iara. Ele viera traficadoda África. Ela fora parar na lagoa Rodrigo de Freitas poracidente. Encontraram-se pela Avenida Brasil algum tem-po depois e estabeleceram uma amizade. Faziam malaba-rismos nos sinais com frutas ou cabeças de animais mor-tos. Roubavam comida, bebida, dinheiro e um pouco depaciência. Cheiravam cola e fumaça. Tentavam confor-mar-se no equilibrismo de suas existências ignoradas.

O menino ocupava-se de raspar a erva daninhaque crescia nos trechos de um muro. O grafite descasca-do que forrava o tijolo movimentava-se vagaroso, compreguiça de se mexer debaixo daquele mormaço. Dois

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alienígenas segurando crânios de búfalo, olhando-se numespelho que refletia humanos sem cabeça. Mogul só con-seguia entender aquilo quando estava chapado.

— Tu acha que essa erva dá algum barato? – per-guntou a Iara.

— Deve dar mais barato se você lamber minhapele – respondeu a sereia. – As coisas grudam no meucorpo e são absorvidas, metabolizadas, dissolvidas naminha corrente sanguínea. Se é que eu posso chamar desangue essa linfa contaminada.

— Coisas, que coisas?— Garrafas plásticas, embalagens de biscoito,

latinhas de refrigerante, pneus queimados, sofás rasga-dos, molas quebradas, espumas químicas, carne de peixecom chumbo, psicotrópicos vencidos, produtos duvido-sos, câncer em bisnagas, qualquer porra menos água purae simples.

Mogul riu e aproximou-se de Iara, afastando-lheos cabelos e lambendo seu pescoço.

— Argh! Tem gosto de merda! – disse o moleque,cuspindo e limpando a boca com as costas da mão.

— E esgotos. Esqueci de mencionar os esgotos –suspirou a sereia. – E pensar que nesse ramo não pode-mos mudar de profissão... Que puta mãe-d’água eu sou,sem uma porra de um pingo-d’água sobrando.

— Olha! O Maestro!Mogul apontava para a sombra que se aproximava.

Era o líder do espetáculo itinerante de performancessinestésicas que rodava o país nos últimos anos, um arle-quim com chapéu de malandro, avançando pelas ruas

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brandindo um chicote que serpenteava vivo. A figura deroupas extravagantes desfilava um sorriso predador eolhos mordazes. Anunciava as atrações de seus espetácu-los com uma projeção vocal que ecoava nos paredõesenvidraçados dos arranha-céus e assentava nos capôs doscarros. Atrás de si, uma profusão de maravilhas.

Chegara o circo. Veio pintando as ruas, saltando ascalçadas, agitando os viadutos. Os homens de perna de paurealmente tinham perna de pau. Eram longuíssimas eenvernizadas. Costuravam por entre os carros e prédios. Vezou outra se acidentavam, pisando em falso numa tampa debueiro mal colocada (isso quando o bueiro ainda tinha tam-pa). As bailarinas rodopiavam leves e etéreas pela multidão.Seus corpos flutuantes viravam fitas coloridas, que brilha-vam esforçadas sob a luz filtrada de um sol laranja. Os raioschegavam fracos de luz e vermelhos de fogo. Esturricavamcabeças desprotegidas e assavam gatos vira-latas que se ren-diam tostados pelas esquinas. Os palhaços perambulavamdespreocupados, jorrando tinta de seus dedos e lábios bor-rados. As pessoas que passavam por essas criaturas assusta-doramente felizes tinham seus rostos e roupas pintados emespirais abstratas e padrões geométricos. A purpurina que seacumulava no meio-fio fazia brilhar o embolorado de lixo elama que entupia os ralos. Mogul abaixava-se para observarde perto as cores metalizadas que sobressaíam do preto. Lem-brava petróleo. Era o maior show da Terra.

— Meu irmão mais novo ia querer assistir aos es-petáculos... – murmurou Mogul, embevecido momenta-neamente pela espiral de criaturas coloridas passando di-ante de seus olhos arregalados.

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— E cadê ele? – indagou Iara, rodeada por um gru-po de bailarinas que dançavam e a puxavam para participar.

— Em casa – respondeu o menino.A sereia desvencilhou-se das mãos delicadas das

dançarinas. Aqueles corpos magrelos e esguios, de facesbrancas como porcelana e feições de boneca a lembra-vam sua irmã bastarda que se desgarrara e fugira. Sanguede divindade indígena norte-americana com carne deelemental amazonense. Sumida, provavelmente perderaos dotes xamânicos. Ou se vendera em busca de diversãohumanizada.

— Do outro lado do oceano – completou Mogul.Seus dedos esverdeados agora cheiravam a algo-

dão-doce. Deu vontade de comê-los.— Minha irmã também – Iara falou.

Acordara atordoado com as lembrançasensandecidas que lhe perfuravam o crânio. Uma cumbucade barro cheia de água turva e um fuzil melecado de suoreram suas mais agradáveis companhias. Gritos expandi-am-se lá fora, alternando dialetos tribais e xingamentos emuma cornucópia de línguas colonizadoras. A cabana de lonaverde-musgo protegia-o tão eficientemente quanto um úte-ro a poucos centímetros de ser retalhado por uma peixei-ra. Mas aprendera a ser tão parasita quanto um feto, e ocu-pava-se de sugar com vigor e indiferença toda e qualqueroportunidade de conseguir mais alguns nacos de mastigação,assassínio e orgasmo. Era tudo que lhe restara e tudo que omantinha, após estourar a cabeça dos pais com uma rocha,

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aos nove anos. Golpeara ambos com tanta truculência ecegueira que, muito depois de reduzir suas cabeças e cére-bros a uma pasta rosada com croutons de cálcio, continuoudesferindo pedradas na esteira de palha abaixo de seus cor-pos sem sequer perceber que já os havia ultrapassado. Ber-rara o nome de sua irmã a cada pancada.

Marmelo foi despertado do estupor com um chu-te nas costelas. Uma bota preta lhe pressionou o rosto,enquanto seus ouvidos lambiam as ordens que lhe eramditadas. Saiu apressado e juntou-se aos outros meninos láfora, com o fuzil desajeitadamente seguro nas mãos. Apaisagem estendia-se desértica, com uma vegetaçãoesparsa em tons de sépia. Ao longe, arbustos erguiam-setímidos. As cabanas, os veículos blindados e as centenasde militares que se agrupavam naquele fim de mundo afri-cano preparavam-se para mais uma batalha. Alguém deuma determinada tribo insultara alguém de outra tribo,que revidara com ofensas religiosas, atingindo líderesinconformados e deflagrando um estouro de libertina-gem política e autoritarismo movido por pura vaidade.No fim das contas, a matança era apenas uma diversãopara uma elite sádica espectadora e um meio de movi-mentar o comércio de armas e o tráfico de crianças. E láestava ele, guerreando ao lado dos mesmos homens quecompraram sua irmã havia pouco mais de dois anos. Mastudo tinha um preço. Até mesmo a memória.

Marcharam disciplinados após uma bateria de exer-cícios. As ordens eram simples e diretas. Invadiriam ovilarejo, incendiariam cada casa e matariam cada homem,mulher e criança com quem esbarrassem pelo caminho.

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Saqueariam alimentos, roupas e metais. Poderiam estu-prar um ou outro para amenizar a tensão e divertir-se umpouco, e abandonariam o local o quanto antes. Mensa-gem dada, missão frustrada. Pois eles não contaram coma resistência surpresa que os emboscou numa chuva deflechadas e tiros cuspidos por armamentos de fabricaçãoisraelense e alemã, comprados através de uma rede queconectava sul-africanos, norte-americanos e egípcios. Amunição globalizada explodiu na carne subdesenvolvidade uma lavadeira, atravessou seus músculos cansados e en-trou no estômago do bebê que ela carregava nos braços.

O garoto, assustado com o contra-ataque, escon-dia-se em meio aos barracos e atirava como um louconos vultos apavorados que corriam entre tropeções. Masnão demorou até que alguém o estrangulasse com braçosque ardiam sob um sol infernal lhes escaldando a cabeça.Jurou que podia sentir a traqueia torrando como um pe-daço de bacon. Desvencilhou-se com cotoveladas antesque apagasse, virou-se e enfiou o cano do fuzil no olhodo infeliz que o agarrara, deixando o corpo tombar nochão com um baque surdo, ostentando a arma entranha-da na cabeça como um troféu macabro, borbulhandosangue e gordura.

Acovardado, Marmelo fugiu do pandemônio e es-condeu-se com certa dificuldade entre árvores baixas es-pinhentas e ossadas de elefante além dos limites do vilarejo.Infelizmente o marfim já havia sido cortado fora e cole-tado para abastecer o tráfico, mas achou que carregar umpedaço de costela gigante poderia ser útil de alguma ma-neira. Adormeceu exausto, ainda ouvindo o crepitar do

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fogo que subira pelos casebres e pintara a paisagem comcinzas enegrecidas bordadas por fagulhas. Os gritos ex-tinguiram-se logo após os tiros, um silêncio emolduradonum entrelace de cadáveres pretos, tão esqueléticos quantoo espectro de terror que emanava de suas expressões pa-ralisadas. Pneus cantando na gramínea denunciaram a fugados militares. Ninguém o vira. Apagou.

— O que aconteceu com teu irmão? – perguntouIara enquanto andavam acompanhando uma trupe deacrobatas que usavam a geografia acidentada da cidadecomo palco.

— Não sei. A última vez que eu vi o moleque eleera uma lombriga de gente, pequenininho e magrelo, pa-recendo um pedaço de pão desses compridos que vendena padaria.

— Uma bisnaga?— Não. Lombriga.O Maestro aproximou-se da dupla a passos

acarpetados. Olhando de perto era possível distinguir orosto debaixo daquele chapéu. As camadas grossas demaquiagem sobrepunham-se infinitas, absorvendo-seumas às outras, renovando-se continuamente. Pareciamnascer diretamente dos ossos, brotar das entranhas comofluidos orgânicos. O arlequim adiantou-se, pondo-se nafrente da dupla e passou a acompanhar Mogul e Iara compassos para trás. Seu chicote enrolava-se em seu corpo,fundia-se à roupa de losangos vermelhos e pretos e re-nascia nalgum canto, sibilando e sumindo novamente.

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— Ora, ora, ora, quem eu vejo por aqui... Iara, arainha das águas! – exclamou, estendendo uma das mãospara cumprimentá-la.

— Se ainda existissem águas que merecessem al-gum reinado... – resmungou a sereia, mal olhando para oMaestro e ignorando o cumprimento.

— Ouviu falar que o Boto agora é nosso sócio?Por que não se junta à nossa família? – indagou o arle-quim com um sorriso de canto de boca.

— Eu quero! – respondeu o moleque, pulando deexcitação e com aqueles olhos nojentos brilhando de umamaneira torta.

— Não falei com você, menino, desinfeta daqui! –disse rispidamente. – Estou tratando de negócios comuma divindade, não com um ninguém.

Mogul ficou puto ao mesmo tempo em que queriachorar. Levava esse tipo de porrada na cara todos os dias,com os olhares acusadores das pessoas e os xingamentosgratuitos. Talvez merecesse um palavrão ou outro quandoroubava. Mas aquele insulto partindo de quem mais admira-va nos últimos tempos foi como uma bigorna nas costelas(se soubesse exatamente o que era uma bigorna). Mogul viroue seguiu outro caminho, procurando algo em que descontar.

Iara apenas suspirara entediada. O Maestro tentoupuxá-la pela mão, mas tudo que conseguiu foi atravessarum pedaço suspenso de água suja. A pele esverdeada tre-meluzia como uma película de limo envelhecido.

— Você não vai durar muito tempo aqui fora –sentenciou o arlequim antes de afastar-se e seguir o cami-nho dos acrobatas.

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“Como se precisassem de mim”, pensou a sereia, fe-chando a expressão num tom melancólico. Via as sombrasdos corpos magníficos dos acrobatas interagindo com os prédi-os e ruas e sentia a cidade respirando em preto e branco.

Foi atrás de Mogul. Encontrou-o socando outromenino de rua. Os dentes do garoto agredido estavamensanguentados (os que ainda restavam inteiros na boca).Três estavam cuspidos no chão. Baba e lágrimas escorriampor suas bochechas e queixo. Mogul ainda segurava-o pelacamisa encardida quando Iara o tocou no ombro, chaman-do-o. Os dedos gelatinosos e frios arrepiaram-lhe a espinha.

— Vou embora.— Por quê?— Porque não posso ficar nem morrer. Água é

instabilidade e movimento, mesmo quando se torna lo-dosa e poluída.

— Tu vai fazer uma puta falta.— Vê se te cuida pra não acabar que nem teu ir-

mão.Iara estava partindo. Ficaria sozinho novamente.Sentiu o peso do mundo amassando o saco.— Ele deve tá melhor que eu... Espero que esteja

melhor que eu... Pra onde tu tá indo?— Pra baía de Guanabara.— Aquele entulho?— Tem uns cantos interessantes nos destroços da

antiga ponte. Eu posso fingir que são rochas margeadaspor límpidas ondas azuladas e cantar para os náufragos...– disse a sereia enquanto escorria pelas ruas e descia pe-los esgotos.

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— Depois eu que sou o maluco – murmurouMogul para si mesmo, despedindo-se de Iara logo depoiscom um aceno de mão.

Roubou uns trocados amassados que estavam nosbolsos do garoto que desmaiara meio zonzo ali perto, esaiu deixando o corpo arfante para trás.

Marmelo sonhava. A terra quebrava-se e abria-senum abismo de enxofre. Labaredas engolfavam suas per-nas e arrastavam-no, enquanto suas unhas podres que-bravam-se ao afundar no solo seco e infectavam a carneviva de seus dedos arrebentados. Acordou gritando depavor, mas apenas os abutres que lhe rodeavam a cabeçaouviram suas lamúrias de agonia. Seu corpo desnutridoexalava o cheiro da morte, a poucos instantes de perecere cozinhar sob o sol, servindo de alimento aos carnicei-ros que o espreitavam. Tão famintos que podia sentir ababa escorrendo de seus bicos. Na sede insuportável quecontraía sua garganta, seria capaz de esmagar a cabeçadaqueles pássaros e beber de sua saliva num banqueteempenado que lhe martelou a cabeça com tambores tribaise cânticos vudu.

Assaltado pela loucura, arrastou-se a esmo pela savanatentando lembrar a trilha de volta para o acampamento, afas-tando-se cada vez mais do vilarejo destruído. Não sabia maisdistinguir as direções que galgava, podia estar andando emcírculos havia dias. O horizonte escorreu por seu olhar e asnuvens esparsas giravam num caleidoscópio sanguinolentoque o assombrava com os fantasmas daqueles que havia

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matado. Suas bochechas ainda estavam marcadas pela bota,e seus movimentos ainda estavam marcados pela coerção.

Inebriado pela atmosfera seca que lhe arranhavaas narinas e arrebentava as veias, o garoto apalpou as rou-pas à procura de qualquer coisa que pudesse comer. Roe-ria o osso de elefante se não tivesse largado a costela pelocaminho devido ao peso.

Descobriu um punhado de munição nos bolsos,como pequenas jujubas de metal. Incandescentes, quei-maram-lhe a palma, e caíram em meio à poeira. O meni-no abaixou-se para pegá-las de volta, mas em vez de repô-las nos bolsos encardidos, enfiou-as na boca. Os dentesdesgastados e a gengiva apodrecida doeram e sangraramao contato com a bala de metal. O gosto do ferro pas-seou por sua língua com o amargo e o azedo beijando-senum lamaçal de fumaça. Quebrou alguns dentes, e engo-liu os pedaços junto com três balas inteiras. Esfomeado,devorou toda a munição, chupando-as e trincando-ascomo açúcar mascavo. O sangue e a baba escorriam deseu beiço ressecado, molhando seu queixo proeminente.A cabeça oval muito grande em comparação com o cor-po miúdo e sugado pendia com ferocidade sobre aquelalambança. E logo estava lambendo seus dedos infectados,mastigando-os junto com as últimas lascas de metal quese empoleiravam nos tocos de dentina que se expunhamnum amarelo-gema.

O ensopado de pólvora e canibalismo urgia em seuestômago. Deixou-se cair no chão, estrebuchando, enquantosuas pupilas perdiam-se no topo da cabeça e sua consciên-cia espatifava-se num redemoinho de ácido. Sua visão

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semicerrou-se num recorte de colagens afetivas. Unifor-mes camuflados, armamentos de quase a sua altura, umaboca feminina gritando de dor e mãos colossais apertan-do-lhe o ombro, transferindo a dor física para o seu lobofrontal, onde tomaria suas decisões de acordo com aquiloque ameaçava os ossos.

O moleque caminhou desiludido. Já sentia falta dapresença confortante da mãe-d’água, o único tipo de mãeque tivera por perto. Arrastava os pés cheios de calos eferidas pelas ruas abarrotadas do centro. Gente apressa-da movendo-se como grandes correntes humanas. Paco-tes de preocupação e urgência contida. Esbarravam nelecomo se fosse invisível. Se alguém se demorasse umtiquinho que fosse para mirar seu rosto, atravessaria a ruacom medo de ser assaltado. Sua cor o precedia.

Passou pela Cinelândia, parando entre um passo eoutro para ver uma apresentação de malabares e pirofagia.O fogo cuspido quase incendiava o ar em volta, com todaaquela névoa cinza-alaranjada de poluição. Mas o encan-to lhe era descolorido agora. Prosseguiu a caminhada.

Chegou à Lapa.Os arcos abrigavam bolsões orgânicos de podridão.

Medida de segurança. Grandes sacos de tecido vivo quecobriam os espaços e vãos debaixo dos arcos, onde antesse abrigavam bêbados e mendigos, estropiados e prostitu-tas, vadios e ninguéns. Era o buraco de sujeira faltante de-pois que os moradores de rua haviam sido gentilmentedizimados. Higienização, diziam. Segurança, argumentavam.

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Filha da putisse, Mogul pensava. O menino gostava deficar olhando os bolsões. Pareciam os estômagos de umaplanta carnívora gigante. Meio avermelhados, meioesverdeados. Inchavam e ondulavam. Bolhas de ar cresci-am lá dentro, estouravam deixando escorrer uma gosmaamarelada pelas paredes do tecido. Mastigava e digeria lixo.Ou pessoas, se alguém chegasse perto demais.

Mogul comprou um acarajé ali perto e sentou nogramado. O camarão parecia ter gosto de qualquer coisamenos camarão. Seus olhos fechavam-se cada vez mais,aquela maldita massa cancerosa escorrendo pus e pesan-do sobre seu globo ocular estava começando a irritar.Terminou de comer e foi sentar-se de frente para um dosbolsões. Escolheu o que estava digerindo um cachorro.Seu nariz a apenas poucos centímetros do tecidotranslúcido. Pequenas espículas perfuravam o corpo doanimal, pareciam sugar seus músculos, ou desfragmentá-los com algum ácido. Escorria uma pasta rosada dos bu-racos deixados em seu cadáver. Ossos triturados e enzimasborbulhando. O moleque jurou ter enxergado uma latade cerveja saindo da garganta aberta do cachorro. Ten-tou enxergar melhor. Curvou o corpo para frente,semicerrou os olhos, perdeu a noção. A maçaroca doen-tia em suas pálpebras projetava-se. Tocou o tecido dobolsão e foi sugada. O menino gritou de dor pelo poucotempo que teve para reagir antes que seu corpo fossetragado para dentro daquela carnificina urbanizada.

Mergulhou num líquido viscoso. Boiando, era reco-nhecido pelos sensores do bolsão que o apalpavam e belisca-vam. Arreganharam sua boca, rasgaram suas roupas e puxa-

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ram seu cabelo. Fedia a erva. Começou a ser amassado pormovimentos de sucção e contração dos músculos da parede.

Parecia que seu corpo esquelético era amassadonum pilão gigante. Foi preparado e temperado. Caiu numavesícula, foi transportado até em cima, num rombo naestrutura, e entrou em combustão. O bondinho parouno meio do caminho para não ser incendiado também.Os passageiros, a maioria um bando de turistasapalermados, espichou as cabeças e as câmeras fotográfi-cas para fora, tentando registrar um naco daquele eventoincomum. A fumaça perfumada exalando inebriante en-torpecia os mais próximos.

As expressões curiosas eram estúpidas.A cidade o fumava em grandes baforadas.E o Rio de Janeiro continua lindo.

Sentiu algo gelatinoso e frio tocando seu corpoem choque. Marmelo abriu os olhos com preguiça. Alíngua pastosa posta para fora como um tumor inchadorecolheu-se vagarosa. Um gigantesco tentáculo azul ro-deava-lhe. Um tentáculo de polvo, ou criatura semelhan-te. Vasculhou as imediações. Os tentáculos surgiam donada e perdiam-se no nada. Então percebeu a sombradelicada de uma mulher parada logo atrás de si. De pelebranca como porcelana, feições de boneca e maquiagemcircense, a jovem trajava um espartilho simples e umasaia vazada e armada que atingia a altura dos joelhos, abertano formato de um sino. Um pequeno guarda-chuva bran-co e vermelho, seguro em suas mãos de dedos finos e

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quase translúcidos, protegia-lhe a cabeça. O menino, bo-quiaberto, tentou levantar apoiando-se nos tentáculos, masestava sem forças.

A mulher tocou-lhe o peito ossudo, abrindo-o comsutileza e expondo uma miríade de diamantes incrustadosna superfície porosa do esterno e das costelas do menino.Apavorado e embevecido, ele olhava para a bela figura en-quanto ela minerava seu corpo e guardava os diamantes nodecote. Os tentáculos apertaram suas pernas, a jovem afas-tou-se assim que terminou o trabalho e ambos sumiramno horizonte alaranjado e salpicado de miragens quebra-das. O garoto estava com um sorriso de palhaço pintadono rosto, acompanhando as cicatrizes que lhe esgarçavamos lábios. Intoxicado pela curiosidade, recolheu-se comoum feto, abraçou os joelhos e tentou dormir lembrando-se do lindo rosto daquela mulher. Suas costelas defloradasgerminavam como uma mutilação plástica. Mas seu cora-ção de menino estava em polvorosa. Pedaços de seu corpoalimentariam a vaidade carnívora de uma joia moldada pormãos tão agrilhoadas quanto as suas, transportadas por umamescla de identidades roubadas e depositada nos dedos deuma ocidental qualquer desejosa de camuflar suas infelici-dades com hipocrisias consumistas. Afinal, as rotulaçõesque o totalitarizavam eram da mesma síntese econômicaque colava os preços sangrados nos diamantes de uma vi-trine.

Adormeceu internacionalizado.O resto é silêncio.

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Umacidade

sonhandoseus

metais

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Esta é uma amostra da obraMetanfetaedro, gerada pela TarjaEditorial para fins de divulgação. Aobra final é composta por 8 contostotalizando um livro com 232 páginas.

As imagens aqui contidas estão embaixa resolução para diminuição doarquivo final, porém na versão impres-sa elas encontram-se no tamanho final.

Esse arquivo pode ser distribuido des-de que seja incorporada sua fonte.

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