D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

15
Intervenção Terapêutica Breve: Jogo do rabisco Marisa Bortoletto Resumo: O trabalho introduz a discussão sobre a consulta terapêutica e o jogo do rabisco (jogo do rabisco como importante instrumento ludodiagnóstico), e discorre sobre a atividade do brincar como base dos fenômenos curativos, da confiança e esperança da comunicação emocional. Apresenta o material clínico de dois meninos entre seis e sete anos. As intervenções terapêuticas breves são consideradas uma tendência nos procedimentos diagnósticos e psicoterápicos da atualidade. Como sabemos, vivemos a era da rapidez tecnológica, que é calcada nas ideias imediatistas e nas soluções mágicas das demandas psíquicas. Tal situação conduz a uma pressão, por parte dos pais e talvez, até, da própria criança, em retirá-la do mal-estar emocional em que se encontra o mais breve possível. Winnicott, na década de 1950, parece que enfrentava algo semelhante quando se dedicava aos atendimentos pediátricos e psiquiátricos. Em sua obra e em especial no livro O Brincar e a Realidade (1975), é possível encontrar inúmeros exemplos sobre o brincar como uma notável possibilidade autocurativa. A consulta diagnóstica, por meio do brincar infantil, incluía a função holding e seu caráter terapêutico. Essa contribuição do psicanalista 1

Transcript of D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

Page 1: D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

Intervenção Terapêutica Breve: Jogo do rabisco

Marisa Bortoletto

Resumo: O trabalho introduz a discussão sobre a consulta terapêutica e o jogo do rabisco (jogo do rabisco como importante instrumento ludodiagnóstico), e discorre sobre a atividade do brincar como base dos fenômenos curativos, da confiança e esperança da comunicação emocional. Apresenta o material clínico de dois meninos entre seis e sete anos.

As intervenções terapêuticas breves são consideradas uma tendência nos

procedimentos diagnósticos e psicoterápicos da atualidade. Como sabemos, vivemos a

era da rapidez tecnológica, que é calcada nas ideias imediatistas e nas soluções mágicas

das demandas psíquicas. Tal situação conduz a uma pressão, por parte dos pais e talvez,

até, da própria criança, em retirá-la do mal-estar emocional em que se encontra o mais

breve possível.

Winnicott, na década de 1950, parece que enfrentava algo semelhante quando se

dedicava aos atendimentos pediátricos e psiquiátricos. Em sua obra e em especial no

livro O Brincar e a Realidade (1975), é possível encontrar inúmeros exemplos sobre o

brincar como uma notável possibilidade autocurativa. A consulta diagnóstica, por meio

do brincar infantil, incluía a função holding e seu caráter terapêutico. Essa contribuição

do psicanalista inglês tem se mostrado útil e atual devido à pouca disponibilidade da

população para a realização das psicoterapias tradicionais, pois se torna procedimento

técnico necessário às demandas psíquicas pela brevidade das consultas. Evidentemente,

um procedimento não exclui o outro, todavia neste trabalho a ênfase estará centrada nas

intervenções breves, como o jogo do rabisco, mas que contêm em si o valor terapêutico.

Como sabemos, a consulta terapêutica, contribuição fundamental na obra de

Winnicott (1965), está baseada na ideia de que esta entrevista tem tanto objetivo

diagnóstico como terapêutico. O autor considera que o paciente sentir-se compreendido

era mais importante do que a interpretação propriamente dita. Winnicott (1975) nos

conta ter em sua sala de atendimento brinquedos a que as crianças tinham livre acesso.

Em algumas ocasiões, dividia sua atenção entre a mãe e a criança e, dessa forma,

1

Page 2: D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

construía um ambiente propício à observação e à interação por meio dos jogos e do

brincar. Inclusive, as crianças costumavam surpreender-se com a própria criatividade.

Consulta terapêutica e jogo do rabisco

Nos anos 1960, encontramos na obra de D. Winnicott as primeiras publicações

sobre o jogo do rabisco e a consulta terapêutica. A princípio, a consulta terapêutica

consistia no jogo do rabisco propriamente dito; posteriormente, em O Valor da Consulta

Terapêutica (1965), vemos que as consultas incluíam os desenhos ou não. A vasta

experiência psiquiátrica ofereceu ao autor subsídios para descrever esta vivência clínica

como um instrumento valioso na interação paciente-terapeuta.

O psicanalista observa: “o jogo do rabisco é simplesmente um meio de se

conseguir entrar em contato com a criança” (pg. 11, 1984). E, a partir dessa integração,

o autor acredita que o pequeno paciente estabelece uma relação de confiança e de

esperança de ser amparado. O que está implícito seria a igualdade entre a dupla, onde

ambos se ocupam dos desenhos e assim a produção final traz uma comunicação

emocional. “Na minha prática psiquiátrica infantil descobri que um lugar especial tem

de ser concedido à primeira entrevista, e gradualmente desenvolvi uma técnica para

explorar por completo o material dessa entrevista” (pg. 230, 1989).

Todavia, Winnicott ressalta não ter a pretensão de que o jogo do rabisco virasse

um teste. Pelo contrário, temos de considerar, na atualidade, tal qual seu idealizador: um

jogo sem regras, e o que mais importa é o que podemos colher em termos diagnósticos e

terapêuticos. Este procedimento é realizado de forma breve, não ultrapassando três

sessões. E seu objetivo está baseado na psicoterapia, “onde ocorre uma sobreposição

parcial da área do brinquedo da criança e da área do brinquedo do adulto ou terapeuta.

O jogo do rabisco é um dos exemplos pelos quais uma interação desse tipo pode ser

facilitada” (pg. 243, 1989).

Técnica simples: utiliza papéis e lápis, os quais devem estar dispostos numa

mesa. Winnicott recomenda pedir para a criança pegar o lápis apenas, e o primeiro

rabisco é feito pelo terapeuta. Depois é pedido para que a criança continue e transforme

o rabisco em algo e assim por diante repetidamente. Vale lembrar que a experiência

2

Page 3: D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

mostra que nem sempre conseguimos ser tão produtivos como Winnicott, o qual

chegava a ter trinta desenhos no final da consulta.

Os exemplos contidos nesse trabalho são mais modestos em relação à produção,

contudo dão mostra de seu valor como comunicação psíquica. Trata-se de dois meninos

na faixa de idade entre seis e sete anos, ambos com queixas escolares. A apresentação

de algumas peculiaridades desse período da infância se torna oportuna, nesse momento.

Crianças de seis e sete anos

As crianças dessas idades, em geral, já atingiram um equilíbrio entre a própria

dependência e independência. São capazes de realizar tarefas cotidianas, já têm domínio

dos cuidados pessoais, como, por exemplo, vestir-se, tomar banho. Nessa época, a

comunicação verbal é fluente e algumas crianças delineiam, com relativa facilidade,

argumentos para conquistar o que almejam. As decisões fundamentais são tomadas

pelos pais, ainda que os pequenos queiram impor suas vontades. É o momento em que

as crianças estão sendo apresentadas ao mundo exterior, por meio da alfabetização, da

entrada no ensino fundamental e do domínio da aprendizagem.

Elas começam a sentir maior rivalidade e competição com os colegas e irmãos.

E as brigas costumam ser uma manifestação da busca por autoconfiança e respeito.

Algumas crianças, como os exemplos abaixo, encontram obstáculos emocionais

na adaptação à nova escola. E isso ocorre porque cada criança atinge a maturidade

esperada num determinado ritmo.

O que se observa, com frequência, é o aparecimento de medos e fobias por

causa da dependência dos pais; por vezes, distanciar-se significa a possibilidade de

perdas ou o temor de que algo de mal ocorrerá, em especial com a mãe. A escola

direciona a criança para interesses no mundo exterior, para outras crianças e para o

aprendizado, enquanto a criança pode, ainda, estar ligada aos pais, de tal forma a não

usufruir das conquistas do crescimento (Clínica Tavistock de Londres, 1975). Todavia,

como bem sabemos, atingir a maturidade, a cada período do desenvolvimento humano,

é tarefa que está longe de ser fácil.

3

Page 4: D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

Fabio, seis anos

A mãe do pequeno Fabio chega à sessão preocupada com o comportamento

agressivo do filho na escola. A criança, quando contrariada pelos colegas, reagia com

xingamentos, batendo e brigando. A professora procurava acalmá-lo, mas nem sempre

alcançava êxito. Além disso, a escola considerava Fabio um tanto aquém das outras

crianças em termos pedagógicos. Tudo indicava que ele estava começando a despertar

para o que seria próprio para sua idade, todavia, como ainda em processo de

amadurecimento, considerava a escola uma grande brincadeira. Comunicativo e

extrovertido, logo estabelecia amizade com os demais, porém nem sempre conseguia

encontrar o limite de suas brincadeiras que, por vezes, tornavam-se exageradas.

Na família, logo aprendeu a chamar a atenção pelos comportamentos negativos,

como se essa fosse a única forma de obter afeto. Fabio, como filho caçula de quatro

irmãos, foi poupado de algumas atividades, como por exemplo: não precisava falar, pois

sempre havia alguém para traduzir o que queria; sendo assim, o pequeno menino não

aprendeu a se defender através da compreensão dos conteúdos, e sim pela descarga

motora.

Fabio, no jogo do rabisco fez apenas dois desenhos:

1. Rodamoinho

2. Carros caindo num precipício

Logo mostrou a angústia que sentia frente ao não-entendimento daquilo que era

pedido. Respondia rápido às perguntas, mas era possível observar a tendência a fugir da

situação. A hipótese diagnóstica levantada na ocasião foi a de que ele não tinha ideia de

sua posição na família. O rodamoinho poderia representar o quanto estava perdido, e o

sentimento de medo diante das circunstâncias estava camuflado pela agressividade.

Provavelmente, a escola poderia estar sendo sentida como um lugar onde estaria

desprotegido e sem o apoio dos pais e irmãos. Os carros caindo representariam o

desamparo da criança, e a alfabetização exigida pela escola simbolizava uma aquisição

mais fóbica do que lúdica.

A criança tinha a possibilidade de comparecer apenas a poucas sessões, pois logo

voltaria das férias e, pela distância da clínica até sua casa, não daria continuidade ao

atendimento. Frente à angústia desperta com o jogo do rabisco, foi proposto o “jogo do

4

Page 5: D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

Fabio”, onde montamos, como nos jogos de tabuleiro, um caminho que contasse a

história do menino, desde o nascimento até o momento presente. A solicitação teve

franca aceitação da criança, o que permitiu que a história de Fabio fosse contada como

uma brincadeira saudável.

Este jogo trouxe a rápida ideia de sua localização na família. Evidentemente, ele não

estava conformado de ser o quarto filho e com fato de isso significar ele ser o menor.

Todavia, o jogo funcionou como a possibilidade dessa expressão emocional, o que o

deixou mais calmo e alegre. Seus pais comentaram que Fabio é, entre os quatro filhos, o

mais extrovertido e engraçado. Uma criança diferente dos próprios pais quando

pequenos, o que exigiu deles uma nova forma de lidar com o caçula da casa. A partir

dessas sessões, a volta às aulas teve uma nova motivação para o pequeno menino.

Marcelo, 7 anos

Marcelo mudou de escola após o ingresso na primeira série (segundo ano). Na

pré-escola era conhecido de todos que lá trabalhavam, e costumava encantar e “mandar”

nas professoras. Ao chegar à nova escola, apresenta excessiva necessidade de

autoafirmação ao comentar sobre seus videogames, cachorros, brinquedos importados,

etc., além de agitação na sala de aula.

A mãe nos conta a respeito do temperamento forte e da dificuldade do menino

em aceitar o que não o agrada. Questionador, seus argumentos surpreendem os adultos,

bem como suas falas “espirituosas”. Em outros momentos, Marcelo é carinhoso e

afetivo.

No jogo do rabisco realizou cinco desenhos:

1. Monte de letras

2. Monte de figuras geométricas

3. Homem de quinze anos

4. Prédio e as antenas

5. Jogo de videogame

Seguem abaixo as figuras ilustrativas:

5

Page 6: D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

Figura 1:

O rabisco inicial foi transformado “num monte de letras”, o que parecia combinar com aquele menino falante e cheio de argumentos.

6

Page 7: D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

Figura 2:

Ao dar continuidade ao triângulo desenhado, faz “um monte de figuras geométricas”. Reforça a idéia de defesa por meio do pensamento racional.

7

Page 8: D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

Figura 3:

A partir da cabeça humana a criança completa o desenho dizendo: “um homem de quinze anos”. Desenha de forma rápida e logo passa para o próximo desenho.

8

Page 9: D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

Figura 4:

Desenha em seguida o prédio com uma antena parabólica e outra antena receptora ou transmissora de sinais. Tem um pequeno rosto sorrindo na janela do prédio. Nesse momento, começa a aparecer sua necessidade de ser compreendido em seus afetos.

9

Page 10: D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

Figura 5:

Esta última figura ele desenha espontaneamente, e explica que se trata de um videogame, onde as “carinhas” são pinguins a serem alimentados.

O jogo do rabisco possibilitou a compreensão de que Marcelo apresenta forte identificação com o masculino na posição de provedor e protetor. Aparentemente, a ausência real da figura masculina poderia justificar a ansiedade exacerbada.

Nesse momento final, fala dos pinguins como se de fato fossem seus filhos. E aparece um menino amoroso, menos defendido e um tanto necessitado de ajuda terapêutica.

Considerações finais

Jogos, brincadeiras, enfim o brincar é uma experiência universal. Uma expressão de saúde mental e crescimento. A psicanálise, segundo Winnicott (1975), é uma forma de brincar altamente especializada. Cabe ao psicoterapeuta dirigir seus esforços no sentido de recuperar o brincar no paciente enfermo.

O que observamos no jogo do rabisco é a viva manifestação de conteúdos conscientes e inconscientes da criança; revela também qualidades e habilidades, por vezes não percebidas pelos pais. Por meio dos desenhos, o pequeno paciente se

10

Page 11: D0E05034-BB69-46B1-AD72... ·

aproxima do terapeuta e isso pode colocar em movimento o processo de desenvolvimento.

Sabemos que essa técnica requer o devido cuidado ao ser inserida, pois nem sempre terá o sucesso esperado. A volta ao ambiente suficientemente bom, a confiança na compreensão dos pais proporciona um prognóstico favorável. Todavia, os conflitos familiares não facilitam a continuidade do que ocorreu na consulta terapêutica. Entretanto, o jogo do rabisco oferece a alguns pacientes a oportunidade de se aproximarem das faltas e falhas ambientais. Desta forma, são colocados em marcha os fenômenos curativos, e assim pode-se restaurar o brincar infantil e o viver criativo.

Trata-se de uma intervenção terapêutica breve, cujos efeitos auxiliam no diagnóstico e no início das terapias. Vale lembrar: o jogo do rabisco, aparentemente fácil de ser aplicado, é sem dúvida uma técnica calcada na capacidade de manejo clínico do terapeuta. Winnicott (1984) compara a aplicação do jogo com o violoncelista, que primeiro necessita estudar muito a técnica para que um dia possa tocar a música com confiança e empatia.

Referências

Abram, J. A Linguagem de Winnicott. RJ: Revinter, 2000.

Bortoletto, M. Convênios Psicológicos e Psicoterapia Psicanalítica. SP: Escuta, 2009.

Dare, C. colaboradores. Clínica Tavistock de Londres. Orientação Psicológica para os Pais: seu filho de sete anos. RJ: Imago, 1975.

Winnicott (1964, 1968). “O jogo do rabisco”. In: Winnicott, C. et al. (Org.). Explorações Psicanalíticas, D. W. Winnnicott. Porto Alegre: Artmed, 1994, cap. 40.

__________ (1965) “O valor da consulta terapêutica”. In: Winnicott, C. et al. (Org.) Explorações Psicanalíticas, D. W. Winnnicott. Porto Alegre: Artmed, 1994, cap. 41.

__________ O Brincar e a Realidade. RJ: Imago, 1989.

__________ Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil. RJ: Imago, 1984.

__________ Da Pediatria à Psicanálise. Obras escolhidas. RJ: Francisco Alves, 2000.

11