Da arte de contar histórias: games, narrativa e interatividade...A construção destas narrativas...

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DA ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: GAMES, NARRATIVA E INTERATIVIDADE 08/2007 Emmanoel Martins Ferreira Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ GT2- Jogos Eletrônicos e Narrativas Resumo Antes vistos exclusivamente como objetos de entretenimento e de caráter lúdico, os games passaram a incorporar em seus modos de funcionamento estruturas narrativas complexas, chegando muitas vezes a serem confundidos com outras mídias que, ao longo de sua existência, prestaram-se em grande parte a contar histórias, como o cinema. Não são poucos os teóricos a referirem-se a eles como uma nova forma de “cinema interativo”. Há ainda os que vêem nos games uma forma de narrar histórias e ainda delas participar, por meio de seus ambientes virtuais. Neste caso, teríamos o jogador/usuário como co-autor destas histórias, podendo definir seus rumos e desfechos. Esta é certamente uma discussão que divide opiniões. Por um lado, um grupo de teóricos mais “puristas” defende que o game não deve ser visto além de sua essência como objeto destinado ao entretenimento, ao jogo. Por outro, um grupo defende que o dispositivo game pode ser usado com outros propósitos – como o de contar histórias – e que isso não faz com que ele se afaste de sua essência. O objetivo deste trabalho é analisar as possibilidades narrativas proporcionadas pelo dispositivo game, e como estas narrativas podem ser operadas pelos seus usuários, sobretudo por meio dos jogos online . Além disso, o trabalho retoma algumas questões teóricas referentes à interatividade mediada por computador e suas implicações e desdobramentos nos usuários deste dispositivo. Palavras-chave: games, narrativa, interatividade, virtual, lúdico

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DA ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: GAMES, NARRATIVA E 

INTERATIVIDADE

08/2007

Emmanoel Martins Ferreira

Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ

GT2­ Jogos Eletrônicos e Narrativas

Resumo

Antes vistos exclusivamente como objetos de entretenimento e de caráter lúdico, os games passaram a incorporar em seus modos de funcionamento estruturas narrativas complexas, chegando muitas vezes a serem confundidos com outras mídias que, ao longo de sua existência, prestaram­se em grande parte a contar histórias, como o cinema. Não são poucos os teóricos a referirem­se a eles como uma nova forma de “cinema interativo”. Há ainda os que vêem nos games uma forma de narrar histórias e ainda delas participar, por meio de seus ambientes virtuais. Neste caso, teríamos o jogador/usuário como co­autor destas histórias, podendo definir seus rumos e desfechos. Esta é certamente uma discussão que divide opiniões. Por um lado, um grupo de teóricos mais “puristas” defende que o game não deve ser visto além de sua essência como objeto destinado ao entretenimento, ao jogo. Por outro, um grupo defende que o dispositivo game pode ser usado com outros propósitos – como o de contar histórias – e que isso não faz com que ele se afaste de sua essência.O objetivo deste trabalho é analisar as possibilidades narrativas proporcionadas pelo dispositivo game, e como estas narrativas podem ser operadas pelos seus usuários, sobretudo por meio dos jogos online. Além disso, o trabalho retoma algumas questões teóricas referentes à interatividade mediada por computador e suas implicações e desdobramentos nos usuários deste dispositivo.

Palavras­chave: games, narrativa, interatividade, virtual, lúdico

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INTRODUÇÃO

É possível contar histórias por meio dos games1? E ainda (e ao mesmo tempo) ser um 

“ator”   nestas  histórias?  Esta  é   uma questão bastante  discutida entre  pesquisadores   e 

estudiosos dos games studies, e que tem suscitado opiniões divergentes.

As duas grandes áreas de estudos de games – a narratologia e a ludologia – vêem 

esta questão sob óticas bastante distintas. Para os teóricos do primeiro grupo, entre eles 

George  Landow e   Janet  Murray,   a  narrativa  e   seu universo diegético  exercem papel 

fundamental dentro de um game. Por outro lado, os  teóricos da ludologia, entre eles 

Markku Eskelinen e Jesper Juul, assumem que o teor narrativo dos games é   fator de 

menor importância, em detrimento às suas regras de funcionamento e modos de operação. 

Para eles, games devem ser entendidos exclusivamente como jogos – objetos lúdicos – e 

qualquer tentativa de “narrativizar” estes objetos seria afastá­los de sua essência. Como 

afirmam Branco e Pinheiro,

Este tipo de argumentação nos leva à desvalorização da história frente à estrutura lúdica.   A   análise   do   ludólogo   baseia­se   nas   relações   estabelecidas   pelos objetos/funções   do   jogo   e   não   pelo   que   remetem   enquanto   significação.   Ao ludólogo, não é importante que o jogo remeta a nada que lhe seja externo. O jogo já não precisa significar algo, mas ser algo. Os objetos do jogo estariam ali para cumprir   funções   específicas   dentro   do   sistema   oferecido,   e   não   precisam, necessariamente, remeter às coisas do mundo. Não importa se o pontinho azul é uma nave ou se o   inimigo é  nazista ou aliado.  O que  importa é  que o  gamer reconheça   uma   estrutura   e   saiba   como   agir   em   função   dela.   (BRANCO   & PINHEIRO, 2006, p. 3)

Minha posição, que buscarei defender ao longo destas linhas, está mais em sintonia 

com a  de Gonzalo Frasca,  pesquisador de games do  Instituto de Copenhagen, que é 

ressaltar a importância das duas linhas de estudo. Em outras palavras, além de suas regras 

de funcionamento e modos de operação, os games podem sim trazer conteúdo narrativo, e 

em muitos casos seus usuários são convidados a participar da construção de uma narrativa 

interativa.

1 Suprimi a colocação em itálico da palavra inglesa game ao longo do texto por dois motivos: por ela estar assimiladaao vocabulário acadêmico corrente e para não dar­lhe uma ênfase indevida, tendo em vista a quantidade de vezes queela aparece.

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Além disso, o teor narrativo dos games contemporâneos funciona como peça­chave 

em sua estratégia de marketing, servindo como atrativo especial para seu alcance junto ao 

público  consumidor.  Nos  últimos  tempos,   assistimos  a   um aumento  da  produção de 

trailers quando do lançamento de novos títulos, geralmente disponibilizados nos próprios 

sites dos fabricantes, e ainda em portais de informação na Internet. Esses trailers – que 

em nada devem aos das grandes produções cinematográficas – têm a intenção de contar a 

história do jogo, apresentando seu personagem principal – aquele que será controlado 

pelo usuário – colocando este último na posição de partícipe daquela narrativa. Isto é 

apenas um exemplo de como a narrativa tem assumido papel fundamental no cenário 

atual dos games.

GAMES BASEADOS EM NARRATIVAS

Os games das primeiras gerações de consoles possuíam um  tropos  narrativo bastante 

reduzido, sobretudo quando comparados aos atuais. Tomemos como exemplo Pac­Man, 

lançado no final da década de 1970. Se tivéssemos que contar a alguém a história do jogo, 

poderíamos dizer o seguinte: “um personagem deve ‘comer’ pontos espalhados por um 

labirinto, enquanto foge de fantasmas inimigos”. C’est fini. Ou ainda em Donkey Kong, 

lançado em 1981: “um herói deve escalar uma estrutura metálica e salvar sua princesa das 

garras de um gorila”. Em contrapartida, ao analisarmos um game contemporâneo, no mais 

das vezes verificamos que suas histórias e narrativas podem ser tão complexas quanto 

uma obra literária de ficção.

Como é   o   caso de  World  of  Warcraft  (também conhecido por  sua  abreviação, 

WoW), desenvolvido pela Blizzard Entertainment e lançado em 2004. Neste jogo, um 

MMORPG2,   o   usuário   é   colocado  –   através   do   seu  avatar3  –   num   mundo   virtual 

semelhante àquele apresentado em O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien. Para que se 

compreenda todas as nuances do jogo, é  importante conhecer a história do mundo de 

Azeroth – lugar onde o jogo ocorre – assim como a história das raças que habitam este 

mundo. De tempos em tempos são lançadas novas versões (patchs) do jogo, onde novos 

2 MMORPG: sigla em inglês para Massive Multiplayer Online Role Playing Game. Os MMORPGs são versões em computador dos clássicos jogos RPGs. Neste cenário, milhares de pessoas em todo o mundo têm seus computadores conectados em rede através de servidores específicos, podendo assim jogar online, participando simultaneamente das mesmas histórias.3 No ambiente dos games, o avatar é a representação gráfica do usuário no ambiente virtual do jogo.

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acontecimentos   são   agregados   à   história   inicial.   Estes  patchs  podem   ser  baixados 

diretamente do  site  do fabricante, ou ainda em  sites  de distribuição de arquivos pela 

Internet. Em Janeiro de 2007, foi lançado o primeiro pacote de expansão para o jogo, 

denominado World of Warcraft: The Burnning Crusade. Esta expansão prevê novas raças, 

novos lugares a serem explorados, entre outros novos elementos, propiciando um novo 

desenrolar na narrativa de WoW.

Outro game que tem explorado ostensivamente o quesito  narrativa é  Metal Gear 

Solid (MGS), que já se encontra na sua quarta edição (Playstation 3). Baseado no game 

Metal Gear, lançado primeiramente para a plataforma MSX­2, em 1987, Metal Gear Solid 

conta   a   história   de  Solid Snake,   um  soldado  aposentado que  deve   cumprir   missões 

estratégicas, infiltrando­se “invisivelmente” em territórios inimigos. Ao compararmos o 

personagem Snake dos  dias  de hoje  com o  mesmo personagem de vinte   anos  atrás, 

verificamos que este sofreu o envelhecimento natural dos seres humanos: o personagem 

atual possui cabelos grisalhos, além de viver conflitos psicológicos inexistentes naquela 

época. Além disso, a própria trama de MGS passou por diversas reviravoltas e inúmeros 

plots ao longo destes anos, estendendo­se inclusive a outros suportes narrativos, como os 

quadrinhos e ainda um programa para a rádio japonesa. Sucesso entre críticos e usuários, 

MGS  já  apareceu diversas vezes nas  listas dos melhores games de  todos os  tempos. 

Posição alcançada em grande parte devido à   sua narrativa e  espaço diegético. Como 

afirma Doug Perry, colaborador do site IGN, especializado em games, “[MGS] tornou­se 

o game que  todos  os  outros games no estilo aventura­ação, e   todos os outros games 

baseados em narrativas se espelham e imitam.”4

JOGOS ONLINE E NARRATIVAS INTERATIVAS

Além de colocar o usuário como partícipe de uma história que é intrínseca ao jogo, como 

é o caso de  Metal Gear Solid  e muitos outros games “baseados em narrativas”, alguns 

games proporcionam aos seus usuários a construção de narrativas interativas, balizadas 

em tempo real pelas suas ações em um ambiente virtual. Estas narrativas são construídas, 

sobretudo, por meio dos jogos online, em especial os MMORPGS. Neste tipo de jogo, 

avatares   interagem   com   outros   avatares   controlados   por   jogadores  online,   todos 

conectados   a   um   servidor   comum.   Distintamente   dos   jogos  offline,   onde   todas   as 4 Disponível em: http://psx.ign.com/articles/080/080401p1.html. Acessado em 2 de maio de 2007.

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possibilidades são previamente inseridas no código do jogo pelos seus desenvolvedores, 

os jogos  online  abrem espaço para situações inéditas, a partir da constante inserção de 

novos dados (ações in game) por parte de seus usuários. Ao contrário da interatividade 

trivial, presente sobretudo nos jogos  offline, temos aqui uma interatividade não­trivial, 

conforme nos explica Ascott: “a primeira é um sistema fechado com um conjunto finito 

de   elementos.  A   segunda  é   aberta   e   infinita   na   sua   capacidade  para  integrar   novas 

variáveis” (ASCOTT, 1995).

A construção destas narrativas interativas ocorre, no mais das vezes, em grupos 

privados, que se  encontram virtualmente no  ambiente do  jogo para desenvolver  suas 

tramas, tomando como base a própria história do jogo, de forma semelhante aos clássicos 

RPGs5.   Desse   modo,   várias   narrativas   paralelas  podem   se   desenvolver   num   mesmo 

ambiente virtual, inclusive num mesmo tempo e espaço. É bastante comum, nos sites da 

internet destinados a  usuários destes  jogos, a  troca de mensagens de usuários de um 

mesmo grupo, organizando os “eventos” virtuais daquele dia. Geralmente estes grupos 

são divididos em duas guildas6 de facções opostas, de modo a permitir uma competição 

entre   seus   membros.   Com  o   passar   do   tempo,   esses   grupos   vão   “escrevendo”   suas 

próprias narrativas privadas, com base em suas ações no ambiente do jogo; narrativas que 

podem ou não ter algo em comum com as narrativas de outros usuários e outros grupos. 

Os jogos online têm se tornado cada vez mais populares e mais jogados por pessoas 

em todo o mundo. Pesquisas recentes mostram que  World of Warcraft é, atualmente, o 

MMORPG mais jogado do planeta, com mais de 8 milhões de usuários globais. Só na 

China, o número de usuários atinge a faixa de 3,5 milhões. Na América do Norte, segunda 

localidade em quantidade de usuários, este número já supera os 2 milhões, seguida pela 

Europa com 1,5 milhão de usuários7. Interessante notar que, ao contrário do que muitos 

podem imaginar,  o numero de usuários “adultos” aumenta de forma substancial. Nos 

Estados Unidos, 32% dos jogadores são maiores de 35 anos (Cf. WILLIAMS, 2006, p. 

5 RPG: sigla em inglês para Role Playing Game. Os RPGs são jogos onde os jogadores, assumindo papéis de personagens de ficção, participam de uma narrativa interativa baseada em regras e objetivos. Esta narrativa é geralmente conduzida por um “mestre” ou narrador. Grande parte das histórias dos RPGs são ambientadas em universos fantásticos.6 No contexto dos games, guildas são grupos de jogadores que se unem em um objetivo comum.7 Dados disponíveis em: http://www.gamespot.com/news/6164082.html. Acessado em: 2 de maio de 2007.

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69). Outro dado importante é que 75% de todos os usuários de internet são usuários de 

jogos e metade destes jogam online (Cf. WALSH et al, 2006).

Jogos  offline  também podem oferecer possibilidades de construção de narrativas. 

Para  isso,   eles   contam com algumas  ferramentas   que   facilitarão  a   “escrita”   de  uma 

história por parte do jogador. Uma destas ferramentas é o replay. É bastante comum, na 

maioria  dos games,  que o usuário possua uma certa  quantidade de “vidas”, ou seja, 

tentativas para o avanço daquele personagem no rumo da história, sem que ele tenha que 

recomeçá­la do zero. Em grande parte dos games contemporâneos, esta característica é 

operada de forma diferenciada: geralmente o usuário possui uma única vida, e este pode 

“salvar” o status do jogo de temos em tempos. Assim, no caso de o personagem morrer, 

ele não precisará reiniciar o jogo desde o início, mas a partir do último ponto salvo.

O  replay  se faz bastante útil sobretudo nos games que comportam uma estrutura 

narrativa longa, como é o caso de Medal of Honour Allied Assault (2002). Este jogo, que 

narra a jornada de um soldado americano na segunda guerra mundial, conta com vários 

capítulos,  representados por  fases pelas quais o   jogador deve se aventurar.  Caso esta 

funcionalidade não estivesse presente, ao morrer o jogador deveria retornar à primeira 

fase do jogo, e isto certamente o desestimularia a seguir em frente.

Além disso, com esta funcionalidade todos os instantes perdem, de certa forma, seu 

peso, pois o usuário sabe que cedo ou tarde este poderá “representar” novamente aquela 

mesma “cena”. Fazendo uma alusão ao cinema, aquela poderá ou não ser a “cena” que 

entrará na montagem final de sua história. A decisão entre uma decisão e outra deixa de 

ser única, para abrir­se diante de si um vasto rol de possibilidades, pois se a decisão de 

tomar determinado caminho não funcionar, o protagonista poderá, futuramente, voltar ao 

mesmo ponto de decisão e escolher outra alternativa. Como nos diz Murray, “uma história 

com replay permite ao usuário experimentar todas as possibilidades de um momento, sem 

privilegiar nenhuma delas como uma escolha única” (MURRAY, 2006, p. 7).

CYBERDRAMA E LITERATURA ERGÓDICA

Cyberdrama, termo cunhado por Janet Murray, refere­se à construção de uma narrativa 

interativa em um ambiente virtual,  sobretudo por meio dos games.  Na concepção de 

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Murray, as narrativas sempre fizeram parte dos games, desde os mais antigos, com suas 

histórias   quase   que   inexistentes,   até   os   atuais,   com   suas   narrativas   complexas   e 

elaboradas. Em suas palavras, “games são sempre histórias, mesmo jogos abstratos como 

damas ou Tetris, que falam sobre ganhar e perder, colocando o jogador na figura de um 

herói numa batalha contra o computador ou contra outro oponente” (MURRAY, 2006, p. 

2).   Com   o   avanço   dos   mundos   virtuais,   estas   narrativas   tornaram­se   muito   mais 

complexas, exigindo do usuário uma participação de outra ordem, fazendo dele um co­

autor de determinada história. E neste caso, são as ações do usuário dentro no jogo que 

resultarão na escrita de uma narrativa.

Espen  Aarseth   utiliza   o   termo  literatura   ergódica  para   descrever   este   tipo   de 

narrativa, que ele define como “textos abertos e dinâmicos onde o leitor deve realizar 

ações específicas para gerar uma seqüência literária, que pode variar para cada leitura” 

(Apud MURRAY, 2006, p. 4). O termo  ergódico  provém das palavras gregas  ergon  e 

hodos  (“trabalho” e “caminho”, respectivamente), e se refere a modos de leitura onde o 

leitor   deve   realizar   um   esforço  extranoemático,   ou   seja,   algo   além   do   simples 

acompanhamento visual ou passagem de páginas da leitura tradicional. Nas palavras do 

autor, “Na literatura ergódica, para que o leitor atravesse o texto, é necessário um esforço 

não­trivial” (AARSETH, 1997, p. 1).

Outro termo cunhado por Aarseth é cybertexto, que ele define como o texto presente 

em um objeto de literatura ergódica. Não é objetivo de Aarseth – e muito menos o meu – 

afirmar que a literatura tradicional despreza qualquer esforço realizado por parte do leitor 

durante seu contato com o texto; o próprio autor deixa isto bem claro ao longo de seu 

discurso. No entanto, ao leitor de cybertextos é demandado um esforço não­trivial: este 

passar de intérprete a interventor. Ainda em suas palavras,

O leitor de cybertextos é um jogador, um apostador; o cybertexto é um mundo­jogo  ou  um  jogo­mundo;  é   possível   explorar,   se  perder,   e  descobrir   caminhos secretos nesses textos, não metaforicamente, mas através de estruturas topológicas da maquinaria textual. (1997, p. 4)

Por outro lado, referindo­se ao leitor tradicional, ele nos diz que “o prazer do leitor 

é o prazer do  voyeur. Seguro, mas impotente.” (1997, p. 4) Desta forma, temos que a 

interatividade está na base do cybertexto: este requer uma participação efetiva do leitor na 

construção de suas narrativas. Participação esta não exclusivamente mental/interior: de 

outro  modo,  baseado  em possibilidades de   escolha  e  na  troca  de   informações  entre 

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leitor/sistema. Esta é, justamente, a base da interatividade dos games, sobretudo daqueles 

que se propõem à construção de narrativas interativas. Interessante a relação que o próprio 

Aarseth faz entre o leitor ergódico e o jogador: ambos possuem um mundo a ser explorado 

em seus limites, ambos possuem uma visão topológica deste mundo e ambos realizam um 

percurso não­linear na construção de suas histórias. 

NARRATIVA E MUNDOS VIRTUAIS

A exploração espacial está na base narrativa de diversos games, como Myst  e  World of 

Warcraft:   se   o   jogador   ficasse   parado,   a   narrativa   ficaria   igualmente   estacada.   A 

construção de uma narrativa por parte do usuário, com base na história proposta pelo 

jogo,   dependerá  de   suas   descobertas   e   das   ações  por   ele   tomadas,  e   tudo  isto   está 

subordinado à sua movimentação pelo espaço virtual do game. Como no caso de Myst V – 

End Of Ages (2005): logo na primeira “cena” do jogo, o usuário está diante de uma sala 

com diversas portas fechadas, e nada lhe é dito ou sugerido a respeito do que ele deve 

fazer  (para  avançar  na narrativa).  Ele  deverá,   por  si   só,   explorar  ao máximo aquele 

ambiente, interagir com os objetos ali dispostos para encontrar uma solução para a sua 

situação. A movimentação, neste caso, serve a dois propósitos: ao avanço da narrativa e 

ao caráter lúdico e imersivo do jogo. Como nos diz Lev Manovich, “A movimentação pelo 

espaço permite que o jogador progrida em sua narrativa, mas também possui valor em si 

mesma. É  uma forma do jogador explorar o ambiente.” (MANOVICH, 2001, p. 247). 

Ainda em suas palavras, 

Em   contraste   ao   romance   moderno,   os   games   orientados   pela   ação   não possuem muitos diálogos, mas olhar e agir são de fato as atividades­chave realizadas pelo jogador. (...) Desta forma, ação narrativa e exploração estão intimamente ligadas. (MANOVICH, 2001, p. 247).

Um problema encontrado em boa parte dos games baseados em mundos virtuais são 

as “zonas mortas”, isto é, espaços virtuais que apesar de constarem como existentes no 

mundo proposto pelo jogo, não são passíveis de serem explorados. Em muitos desses 

games, quando o usuário tenta explorar determinado lugar, seu personagem é bloqueado 

por uma “barreira  invisível”. Esta  indiferença do sistema a algumas ações do usuário 

ocorre   devido   à   limitação  do   banco  de   dados  do   jogo,   que   não  comporta   todas   as 

possibilidades exploratórias. Isto resulta numa quebra do agenciamento  jogador­sistema, 

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ou   seja,  o   ambiente não   responde de  maneira  condizente  aos   comandos do  jogador, 

podendo causar um hiato na construção da narrativa.

Por   outro   lado,   jogos   como  World   of   Warcraft  proporcionam   possibilidades 

exploratórias em sua totalidade. De fato, o mundo de Azeroth, onde ocorre a história do 

jogo, pode ser percorrido em toda a sua extensão. Assim, o jogador poderá interagir com 

os elementos presentes neste mundo, de maneira que não haja lacunas entre suas ações e 

as respostas do sistema. Como assinala Noah Wardrip­Fruin e Pat Harrigan, “geralmente 

isto significa que as ações dos participantes tem um impacto apropriado e compreensível 

no mundo que o computador os apresenta” (WARDRIP­FRUIN&HARRIGAN, 2006, p. 

1). Isto resulta, de certo, em um aumento significativo do banco de dados do jogo, para 

conter  todas as suas imagens e possibilidades de interação com seus objetos virtuais. 

Todavia,   é   este   apuro   no   desenvolvimento   de   um  jogo  que   proporcionará   um  fluxo 

contínuo em sua narrativa, evitando a quebra do agenciamento.

Gostaria de aqui mencionar um relato de um usuário deste jogo, o americano Mark 

Wallace,   em   seu  site  na   internet,   no   qual   descreve   esta   sensação  de   credibilidade 

proporcionada pelo mundo de  World of  Warcraft.  Referindo­se às suas possibilidades 

exploratórias, ele diz:

Teldrassil – a Árvore do Mundo, para vocês humanos – é o local onde nós da raça 

dos Elfos Noturnos começamos nossas vidas em World of Warcraft. É uma terra 

quase redonda, com talvez duas ou três milhas de diâmetro, aninhada sobre os 

galhos de uma poderosa e enorme árvore, que cresce por centenas (ou milhares?) 

de metros, com o Mar Velado abaixo. Na cidade dos Elfos Noturnos de Darnassus 

existe um portal que transporta o jogador para a vila de Rut’Theran, nas margens 

da grande árvore, mas eu percebi que as montanhas que circundam esta região 

mergulham em lugares onde enormes galhos cinza­roxo crescem do tronco, e eu 

gostaria de ver se existia alguma rota mais direta para o nível do mar.

(...)

Então eu pulo. Eu me afasto da margem do galho e eu estou flutuando, flutuando, 

caindo por três,  quatro, cinco, seis segundos – até  que eu caio sobre um outro 

galho grosso e dos meus auto­falantes eu escuto um som “Ugh!” proveniente do 

meu   personagem,   e   perco   muitos   pontos   de   energia,   até   que   eu   morro   neste 

processo.

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(...)

Eu morro mais duas vezes (...) mas no final meu cadáver está deitado na base da 

árvore, onde o tronco se transforma em terreno verde­marrom e eu posso visualizar 

o mar. Eu devo retornar mais uma vez ao cemitério, mas finalmente eu consegui, 

eu   alcancei   a   costa   na   base   da   Árvore   do   Mundo,   sem   utilizar   o   portal   de 

Darnassus (...)

De fato, eu poderia provavelmente nadar de Rut’Theran até Auberdine, mas iria 

demorar bastante. A questão é que o jogo me permite fazer isso, se assim eu quiser 

– o que não acontece em todos os mundos virtuais e menos ainda na maioria dos 

jogos em primeira pessoa (...)

Poucos personagens, eu tenho certeza, pularam pelas margens de Teldrassil. Não 

há   razão para   isso,  nenhuma  tarefa   requer   isso,  não  há  nada  a  ganhar.  Mas  a 

Blizzard Entertainment, a empresa que criou World of Warcraft, o tornou possível, 

apenas caso alguém como eu quisesse ocasionalmente fazê­lo; alguém para quem a 

experiência de um MMOG é mais que apenas matar bichos e subir de nível, mas 

também inclui bisbilhotar o ambiente, deixar o caminho das tarefas e inimigos e 

explorar as fronteiras do mundo do jogo e o que é possível dentro dele.

Ademais é isto, entre outras coisas, que faz World of Warcraft mais que apenas um 

jogo,   e   faz  de   Azeroth   algo   próximo   de   um  mundo   virtual.  Mais   e   mais,   as 

definições de “caminho” que são encontradas em jogos de primeira pessoa, nos 

quais   um   personagem   se   move   através   de   uma   série   linear   de   desafios 

progressivamente mais difíceis (que são repletos de diversão, não me interpretem 

mal) estão ruindo, nos ambientes multi­usuários online. Em jogos como Second 

Life, estas definições ruíram de uma só vez. E ao passo que estas definições caem 

em declínio, as possibilidades se expandem comensuravelmente. Pode parecer, à 

primeira vista, que algo como World of Warcraft é apenas um jogo, mas já existe 

algo mais nele que apenas isso. E ao passo que mais jogos se tornam online, como 

está previsto para ocorrer nos próximos anos, a idéia de “jogo” nestes contextos 

pode ruir completamente.8

Poucos ainda são os jogos que fornecem esta complexidade exploratória, mas a cada 

dia mais e mais games deste tipo são desenvolvidos, sobretudo devido ao aumento na 

capacidade de processamento dos consoles atuais, como o Playstation 3 ou o XBox 360, e 

ainda dos computadores pessoais.

8 Mark Wallace. Walkerings. Disponível em http://www.walkering.com/walkerings/2005/06/over_the_edge_o.html. Acessado em agosto de 2006.

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Um outro game que se utiliza da exploração de seu ambiente virtual como leitmotiv 

é Shadow of the Colossus (2005), produzido para a plataforma Playstation 2. Neste jogo, o 

usuário  passa a  maior   parte  do   tempo   errando por   vastas  planícies  desabitadas;  seu 

percurso só  é   interrompido esporadicamente, quando alguns dos monstros do mundo 

virtual o interpelam. Neste caso, é sua tarefa destruir estes monstros para então continuar 

seu percurso, no  intuito de obter uma chave que permitirá   ao personagem trazer  sua 

amada de volta à vida. Interessante notar que no próprio site do jogo é enfatizado seu 

caráter exploratório: “Ao lado de seu fiel cavalo, explore as vastas terras e destrua cada 

Colosso.”9 Em paralelo a um fio narrativo explícito, que é determinado pela história que 

serviu de base para a confecção do jogo, o que se tem aqui é um grande “parêntese” que 

permite   ao   usuário   descobrir   elementos   narrativos   escondidos,   que   servirão   como 

ingredientes para a confecção da sua própria história.  Ainda nas palavras de Arlindo 

Machado, “Mais do que chegar a um fim ou ganhar o jogo, o prazer destes trabalhos está 

na investigação infinita das suas possibilidades de desdobramento.” (MACHADO, 1997, 

p. 150).

Nas diversas modalidades narrativas  seculares, como a  literatura,  o   teatro ou o 

cinema narrativo clássico, o leitor/espectador se encontrava, no mais das vezes, em uma 

posição “passiva”, não podendo interferir no curso da história que era contada. Certo é 

que sempre houve espaço para a imaginação e para diversas interpretações a respeito de 

determinada narrativa. Todavia e no mais das vezes, em nenhuma destas modalidades a 

participação ativa do espectador era obrigatória para o desenrolar da narrativa. Como nos 

diz Erick Felinto, referindo­se ao cinema,

no espaço espectatorial da sala de cinema tradicional, essa suposta interatividade reduz­se a níveis bastante mais modestos. Não se pode intervir na configuração material da obra. As decisões se restringem à construção mental da narrativa, que, sem dúvida, é  potencializada por experiências como as de  Timecode, mas cujos limites são bastante mais claramente definidos. (FELINTO, 2006, p. 425)

Os games, tendo por base de funcionamento a tecnologia numérica, o banco de 

dados, os sistemas permutacionais, além de servirem de fonte de entretenimento e espaço 

lúdico, vêm trazer novas possibilidades narrativas,   trazendo o usuário para dentro da 

história como participador ativo. Para que esta participação seja de fato efetiva e não 

apenas uma ilusão, faz­se necessário que mais games que se baseiam na interatividade 

9 Disponível em http://www.us.playstation.com/PS2/Games/SCUS­97472. Acessado em 22 de agosto de 2006.

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não­trivial, como os jogos em rede,  sejam desenvolvidos, pois neles se encontram as 

maiores possibilidades narrativas interativas. Poderíamos inclusive referir­nos a eles como 

uma   nova   forma   de   cinema   interativo,   posição   levantada   por   alguns   teóricos   das 

tecnologias comunicacionais, como Jean­Louis Boissier (BOISSIER, 2004). Todavia, os 

games, se utilizando das técnicas cinematográficas, e não apenas delas, mas também das 

literárias, das artes visuais, para destacar algumas, revelam um potencial narrativo ainda 

não totalmente explorado, indicando uma direção a ser buscada para que se consolide 

como um objeto de new media, com suas características e dinâmicas próprias.

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Referências 

AARSETH, Espen. Cybertext: Perspectives on Ergodic Literature. Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1997.

BOISSIER, Jean­Louis. La relation comme forme: l’intéractivité en art. Genebra, Musée d’Art Moderne et Contemporain, 2004.

BRANCO, Marsal  Alves  &  PINHEIRO,   Cristiano  Max Pereira.   “Uma  tipologia   dos games” in Anais do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom 2006). Brasília, 2006.

FELINTO, Erick. “Cinema e tecnologias digitais” in MASCARELLO, Fernando. (org.) História do cinema mundial. Campinas, Papirus, 2006.

MACHADO, Arlindo. “Hipermídia: o labirinto como metáfora” in DOMINGUES, Diana (org.). A Arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo, Ed. da Unesp, 1997.

MANOVICH, Lev.  The Language of New Media. Cambridge/Massachussetts, The MIT Press, 2001.

MURRAY, Janet. “From Game­Story to Cyberdrama” in WARDRIP­FRUIN, Noah & HARRIGAN, Pat. First Person. New Media as Story, Performance, and Game. Cambridge/Massachussetts, The MIT Press, 2006.

WALSH, David & GENTILE, Douglas & WALSH, Erin & BENNETT, Nat. MediaWise Video Game Report Card. National Institute on Media and the Family, 2006.

WARDRIP­FRUIN,   Noah   &   HARRIGAN,   Pat.  First   Person.  New   Media   as   Story,  Performance, and Game. Cambridge/Massachussetts, The MIT Press, 2006.

WILLIAMS,   Dmitri.   “Virtual   Cultivation:   Online   Worlds,   Offline   Perceptions”   in Journal of Communication 56, 2006.

Publicações eletrônicas:

ASCOTT, Roy. “The A­Z of Interactive Arts” in  Leonardo Electronic Almanac 3, N. 9. Setembro de 1995.  Disponível   em:  http://leoalmanac.org/journal/Vol_3/lea_v3_n09.txt. Acessado em: 2 de maio de 2007.

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