Da Good Governance da Assistência Humanitária · humana) actuam como factores de exclusão social...

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Universidade de Coimbra Faculdade de Direito Da Good Governance da Assistência Humanitária Contributo para a Fundamentação Jurídica do Direito Humano à Assistência Humanitária no Âmbito Jurídico Internacional da Good Governance Márcia Mieko Morikawa Coimbra 2010

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Universidade de Coimbra Faculdade de Direito

Da Good Governance da Assistncia Humanitria Contributo para a Fundamentao Jurdica do Direito Humano Assistncia

Humanitria no mbito Jurdico Internacional da Good Governance

Mrcia Mieko Morikawa

Coimbra 2010

Da Good Governance da Assistncia Humanitria Contributo para a Fundamentao Jurdica do Direito Humano Assistncia

Humanitria no mbito Jurdico Internacional da Good Governance

Dissertao de Doutoramento em Cincias Jurdico-Polticas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Orientador: Professor Doutor Jos Joaquim Gomes Canotilho

Da Good Governance da Assistncia Humanitria Contributo para a Fundamentao Jurdica do Direito Humano Assistncia

Humanitria no mbito Jurdico Internacional da Good Governance

Ao outro infortunado em situao de necessidade de assistncia humanitria.

[O] Eu pressupe e reclama o Outro; o ego, o alter. Ningum pode sentir-se plenamente eu, pessoa, seno em frente de outros eus, outras pessoas ou personalidades. No podemos pensar o nosso eu, sem nesse mesmo pensar ir j implcita a ideia do eu alheio: o tu ou o ele. O pronome pessoal da primeira pessoa de todos os verbos no existiria sequer na gramtica com algum sentido, se no existissem os outros pronomes pessoais. Trata-se, com efeito, dum singular que no pode jamais pensar-se sem o seu plural.

L. Cabral de Moncada, Filosofia do Direito e do Estado, vol. 1., Coimbra Editora, 2. Edio, 1995, p. 39.

Como pessoas que em sentido lato vivem juntas, no podemos

escamotear a ideia de que as ocorrncias terrveis que vemos nossa volta so, no sentido mais essencial, problema nosso. So da nossa responsabilidade quer sejam ou no da responsabilidade de mais algum. Como seres humanos competentes, no podemos escapar tarefa de fazer juzo sobre os factos e sobre o que preciso fazer. Como seres reflexivos, temos a capacidade de olhar para as vidas dos outros. O nosso sentido da responsabilidade no tem de se sentir implicado apenas com o sofrimento que a nossa conduta pessoal possa ter causado (embora isso tambm possa ser muito importante), podendo ser tambm mais genericamente interpelado pelas misrias que vemos nossa volta e cujo remdio est em parte ao nosso alcance. Tal responsabilidade no , evidentemente, a nica considerao que reclama as nossas atenes, mas recusar a relevncia dessa exigncia genrica equivaleria a falhar algo fulcral na nossa existncia social. No se trata tanto de ter regras exactas sobre o modo preciso como deveramos comportar-nos como de reconhecer a importncia da nossa humanidade partilhada quando encaramos as escolhas a fazer.

Amartya Sen, O Desenvolvimento como Liberdade, Gradiva, 1999, pp. 289-290.

Para Michitoshi Otani, Em agradecimento por tudo o que em criana me proporcionou, sobretudo em termos educacionais, na falta de meus pais.

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Another Name to Life)

E debruado sobre o tempo Gaspar pensava:

Que pode crescer dentro do tempo seno a justia?.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos Exemplares, Figueirinhas, 2002, p. 152.

AGRADECIMENTOS

Costumamos dizer que a parte dos agradecimentos sempre o momento do descanso de um longo e rduo trabalho. Pass-los escrita , de facto, recordarmos as entrelinhas deste trabalho: pessoas que, alm de importantes para a consumao desta Dissertao de Doutoramento, tambm nos proporcionaram o indispensvel repouso dalma para tanto. Do apoio institucional ao auxlio amigo, os nossos agradecimentos que aqui tornamos pblicos.

Em primeiro lugar, Fundao para a Cincia e a Tecnologia (com co-financiamento do POCI 2010 e do FSE) pelo seu apoio institucional e material que possibilitou a elaborao desta Dissertao de Doutoramento.

O nosso profundo agradecimento ao Professor Doutor Yves Sandoz, membro do Comit Internacional da Cruz Vermelha e docente na Universidade de Friburgo e na Acadmie de Droit International Humanitaire et de Droits Humains Genve, de quem na Faculdade de Direito da Universidade de Genebra aprendemos as primeiras lies de Direito Internacional Humanitrio, e que via e-mail prontamente esclareceu as nossas dvidas na matria. Agradecemos o incentivo, o apoio e a sincera e humanitria amiti que sempre nos dispensou. Do mesmo modo, o nosso agradecimento ao Professor Doutor Michel Veuthey, ento Director do International Institute of Humanitarian Law em San Remo, Itlia, pela facilitao de material que nos proporcionou aquando de nossas pesquisas naquele Instituto, em 2007, e pela sua simplicidade humana, to impulsionadora da propagao do conhecimento humanitrio.

O nosso sincero agradecimento ao Dr. Isaas Hiplito, que pacientemente depurou as palavras aqui escritas, enriquecendo sem dvida o texto. Um agradecimento tambm pelas ricas discusses em torno da questo humanitria, que em muito nos ajudaram a uma reflexo crtica.

Agradecimentos especiais Dra. Dulce Lopes e ao Dr. Nuno Gonalo Ascenso Silva pela ajuda com a legislao europeia e portuguesa acerca das ONGs.

Ao Professor Doutor Jorge Manuel Coutinho de Abreu, um singelo agradecimento pelas observaes e crticas sobre a corporate governance, que em muito nos ajudaram para o aperfeioamento do texto.

Um reconhecido bem haja ao Professor Doutor Joo Carlos Loureiro, Professora Doutora Alexandra Arago e ao Dr. Lus Meneses do Vale, no apenas pela ajuda pontual em partes do texto, mas por algo ainda mais relevante: h pessoas que nos fazem (ainda) acreditar no humano e na possibilidade humana do conhecimento

acadmico! Agradecimentos amigos Doutora Anelise Becker, que nos introduziu na obra

de Martha C. Nussbaum. Agradeemos tambm os tantos cafs filosficos tomados nas pausas da escrita deste trabalho e que tantas reflexes de fundo nos proporcionaram. Agradecimentos amigos tambm Dra. Ana Lcia Soesima pela ajuda na bibliografia sobre a corporate governance.

Agradecimentos tambm aos funcionrios desta Faculdade, que nos acompanharam durante todo o percurso da elaborao deste trabalho, transformando o ambiente de trabalho em ambiente de amizade. Um bem haja principalmente s Senhoras Maria do Rosrio, Paula Matos, Olga Canas, Andreia Dias, Beleza dos Santos Leito, Dulce Melo, Elisabete Simes, Gabriela Costa, e aos Senhores Antnio Jorge Leito e Joo Cardoso.

Finalmente, agradecemos o incomensurvel apoio de uma pessoa que, do incio ao fim, foi fulcral neste nosso trabalho: nosso orientador, Professor Doutor Jos Joaquim Gomes Canotilho. Queremos agradecer, primeiramente, a sbia ideia-tema desta Dissertao de Doutoramento: s os sbios conseguem ver to longe! No esquecemos tambm todo o apoio profissional e humano durante a sua elaborao, assim como as importantes orientaes que nos facultou. Qualquer palavra que aqui seja dita ser escassa diante do quanto nos foi proporcionado em termos profissionais e humanos. A nossa profunda admirao pelo seu exemplo profissional e humano, e um muito obrigada!

Coimbra, 27 de Abril de 2010.

NOTA PRVIA

Lassistance humanitaire ne doit pas consister

en une action o quelques pays occidentaux font

leur charit et la donnent en spectacle. 1

Mossab tinha um sonho: estudar na Europa. Foi o que este jovem palestiniano

de 26 anos nos confessou, naquele longnquo ano de 1999, no meio dos escombros de sua casa bombardeada pelas foras militares israelitas numa incurso em Jenin. Do que pudemos ver, no havia ali nenhuma organizao humanitria a prestar socorros imediatos populao. Nem o facto de integrarmos a Peace Boat (ONG internacional com sede em Tquio) demoveu Israel de limitar miseravelmente a nossa presena: visto de permanncia de apenas uma semana e um controlo cerrado na fronteira (inevitavelmente a entrada na Palestina via Israel). Pior, as pessoas no podiam sair de suas casas com medo de novo ataque. A necessidade de assistncia humantria era silenciada pelo medo das pessoas. O medo de pedir ajuda.

Eram crianas, deslocadas internas, que perderam seus pais durante a guerra

civil no Sri Lanka e que se encontravam abandonadas nas ruas de Colombo. Foram acolhidas por uma organizao privada de monges budistas. 2 O orfanato Jayawardanapura Vajira Sri Re-habilitation Children Home) conta com a ajuda de algumas instituies internacionais, entre elas o Peace Boat. No sabemos o nome da menina, no conseguimos compreender as frases que dizia, mas seus gestos (agarrada em nosso brao direito em posio de splica) e expresso nos olhos no enganavam: ela queria sair dali. Qui sonhava com um lar, uma vida com brinquedos, roupa limpa, comida e afecto.

Massawa, 2000. A viso do campo de refugiados era surrealista: inmeras

pessoas aglomeradas em meio ao nada. Ao redor um horizonte seco. Seca era a vida por ali. gua? A alguns quilmetros dali. Comida? No havia. A ajuda internacional

1 Juan Antonio Carrillo Salcedo, Le droit lassistance humanitaire: la recherche dun quilibre

entre les devoirs des autorits territoriales et les obligations des donateurs des secours humanitaires, in European Commission, Law in Humanitarian Crises, Access to Victims: Right to Intervene or Right to Receive Humanitarian Assistance?, vol. II, Luxembourg: Office for Official Publication of the European Communities, 1995, p. 116.

2 Vtimas do conflito tnico no Sri Lanka, essas crianas refugiaram-se inicialmente no campo de deslocados internos de Morawewa. Sobre este conflito, leia-se Carlo Fonseka, Towards a Peaceful Sri Lanka, Research for Action, UNU, 1990.

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demorava a chegar e fazamos o que podamos. Ainda assim, as pessoas sorriam. Estariam elas a rirem-se da prpria desgraa e da navet da nossa aco?

Estas so apenas algumas das muitas memrias do tempo do desespero que se

encontram nas entrelinhas desta Dissertao de Doutoramento. Na fase de finalizao da sua escrita, fomos surpreendidos pela catstrofe do sismo no Haiti. Diante da desgraa alheia e de um humanitarismo emergencial inepto a dar respostas prontas, voltou a perseguir-nos aquela sensao de impotncia, inquietao, com revolta mistura. Desassossego.

Apesar dos grandes esforos bilaterais, das numerosas iniciativas privadas e de cooperao para a assistncia humanitria emergencial, no conseguimos ainda chegar a um quadro universal regulador desta actividade e dos agentes humanitrios, para se garantir o direito do ser humano assistncia humanitria. facto que pouca ateno jurdica tem sido dada aos tempos emergenciais. facto que grande parte da doutrina em torno da questo humanitria pouco leva em considerao a realidade emprica do terreno e no visa a criao teortica em funao da vtima no terreno pessoa de carne e osso. Assim, se a nossa construo orientada para a vtima no terreno poder indignar muitos juristas (sobretudo os clssicos), h, de facto, uma slida vontade por detrs do que aqui escrevemos: transformar a vtima no terreno em sujeito de direito, juntamente com a criao de um sistema humanitrio que lhe chegue prontamente e que lhe supra verdadeiramente as necessidades na hora emergencial, pondo fim, de uma vez por todas, a um humanitarismo meramente paliativo e de uma benevolncia sem garantia.

Esta Dissertao de Doutoramento parte, pois, do pressuposto de que as

catstrofes humanitrias (as provocadas pela natureza, ou as que so fruto da aco humana) actuam como factores de excluso social do ser humano (e de grupos).3 Mas

3 Desta forma, na esteira do pensamento de Amartya Sen (O Desenvolvimento como Liberdade,

Gradiva, 1999), a crise humanitria uma source of unfreedom e a capacitao institucional humanitria que propomos nesta Tese consiste, ela tambm, num instrumento para eliminar vrios tipos de unfreedoms que impedem o indivduo de gozar livremente seus direitos, garantias e liberdades para uma vida digna. A existncia de um aparato humanitrio operacional na proximidade da vtima , ele tambm, e como advoga Amartya Sen, constitutivo do desenvolvimento. Eliminar as possibilidades de catstrofes, assim como prever um mecanismo capaz de agir atempadamente e com eficcia para a salvaguarda do direito assistncia humanitria , do mesmo modo, eliminar elementos que provocam a excluso social da pessoa humana e que a incapacitam para o gozo de uma vida digna. Quantas vidas no Haiti, por exemplo, ficaram marcadas at ao fim por uma incapacidade fsica (amputao de membros) pela falta de uma assistncia humanitria emergencial eficaz?

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no somente isto. A inadmissibilidade do abandono (o grau zero) do ser humano nessas situaes exige a existncia de uma instituio humanitria devidamente organizada (dever de good governance humanitria) capaz de prestar, atempada e eficazmente, assistncia ao ser humano. O Estado Humanitrio tem, assim, o dever de adoptar medidas para a eliminao desses factores, dentro de uma solidariedade estatal institucionalizada. Acreditamos que o Direito (em sua funo de regulador no actual contexto de uma sociedade de informao , e em sua funo de promotor da Justia) tem aqui muito a fazer, apesar de nesta questo o pensamento corrente ser o de associar essas crises mera solidariedade, limitada por sua vez ao campo moral, religioso e social: caridade, filantropia, virtude, condenando o direito assistncia humanitria a uma mera solidariedade espontnea. Associado a este tipo de pensamento est o pressuposto de que se salvarmos uma vida, j bom. No, no bom. Ns podemos (e devemos) salvar muitas mais. Est aqui, no fundo, a diferena entre conceber o humanitarismo como meramente pertencente ao mbito das obrigaes morais ou de uma solidariedade espontnea e afirm-lo como critrio para o conceito de Justia e como dever decorrente da dignidade da pessoa humana e de nossa prpria Humanidade.

Neste cenrio dantesco das catstrofes naturais e humanas no podemos perder o

horizonte. E o horizonte o prprio valor que damos vida do ser humano nessas situaes de total desespero. que, com o humanitarismo que temos (ou que no temos), corremos o risco de estarmos a utilizar o ser humano para outros fins [humanitarismo estratgico dos desastres Pureza], e o ser humano , como j afirmava Kant, um fim em si mesmo, devendo ser o fim de uma assistncia humanitria emergencial. Se h algum que deve aqui ser enaltecido a pessoa humana, j de si to humilhada em sua situao de vtima de um desastre e que mendiga o trabalho de algumas organizaes humanitrias ou a ajuda internacional (que demora a chegar, ou que nunca chega).

A solidariedade (instrumentalizada no princpio do dever de good governance

humanitria) princpio e valor supremo de um Estado Humanitrio. O humanitarismo medida para a Justia. Acreditamos que, pelo menos nas necessidades bsicas essenciais, existem deveres humanitrios para com o outro em dtresse. Frente s crises que se anunciam com a sociedade de risco, no pode o Estado do futuro ignorar as desastrosas consequncias humanas da hora emergencial. O Estado do futuro tem de se aliar com o pujante movimento da sociedade civil. O Estado do futuro um Estado que se associa a este civilismo activo para a prossecuo de interesses comuns. Ignorar esta

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possibilidade de unio , da mesma forma, condenar o humanitarismo ineficcia, e condenar o ser humano a uma indignidade. O Estado no mais o Estado-Providncia. , sim, o Estado catalisador e instrumentalizador de foras para o bem comum e para o compromisso social. Neste sentido, trata-se de saber e demonstrar quais os limites da actuao do Estado na prestao de assistncia humanitria; est em causa tambm discutir a possibilidade da imposio jurdica de deveres humanitrios (aos diversos agentes). Todos temos, individualmente, o dever de socorrer quem perece em dtresse. Cumpre-nos, alm disso, superar o quadro meramente moral, religioso e da virtude individual para institucionalizar o humanitarismo em sociedade. Juridicamente falando, no h direitos humanos se pessoas so abandonadas s catstrofes. No h direitos humanos se, por carncia institucional, no salvamos vidas. H aqui indubitavelmente uma responsabilidade que diz respeito ao valor do ser humano em sociedade, que , em outra anlise, o valor que damos nossa prpria humanidade partilhada.

Esta Dissertao de Doutoramento , quia, um grito de revolta por tudo

quanto pudemos ver e vivenciar no terreno. E esta nossa revolta contra um humanitarismo meramente paliativo, que no trata a pessoa humana, vtima de alguma catstrofe, como digno sujeito de direito. Um humanitarismo voltado para si prprio (e no para a vtima no terreno e comunidades em estado de necessidade humanitria), um humanitarismo que se serve de um sentimentalismo exacerbado para se auto-enobrecer; um humanitarismo que, muitas vezes, e perversamente, acaba por se utilizar das vtimas para se auto-sustentar; um humanitarismo que enaltece mais quem ajuda do que a quem se ajuda.

O que aqui defendemos o princpio da good governance humanitria, que vai,

por conseguinte, exigir a conduo responsvel da assistncia humanitria de todos os agentes no nenhuma utopia. Vrios princpios constitucionais e de Direito Internacional, hoje bem sedimentados, foram no passado ideias abstractas inicialmente professadas. preciso de uma vez por todas assumir que temos responsabilidades para com o outro. preciso deixar de pensar o humanitarismo simplesmente em termos benevolentes, de caridade e de virtude humana (para enobrecer mais a figura de quem ajuda, dentro de um egosmo do ego humanitrio). preciso fugir ideia de que o humanitarismo fica reservado a uma certa espontaneidade da sociedade, accionada apenas na hora da desgraa, no precisando de ser institucionalizado estatalmente em sociedade. Previsibilidade institucional e

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operacional so fulcrais para a eficcia da assistncia humanitria emergencial. Deste modo, o Estado surge como o principal protagonista desta histria, ao invs de ficar no pano de fundo deste cenrio, assistindo as ONGs e demais organizaes humanitrias agirem, descruzando os braos apenas na hora da desgraa (questionando-se se vai ou no ajudar). O Estado quem tem o papel de institucionalizar o humanitarismo, e de catalisar e instrumentalizar as foras para uma assistncia humanitria atempada, bem coordenada e eficaz. preciso, de uma vez por todas, assistir de verdade, ajudar de verdade. H pessoas neste exacto momento em situao de necessidade de assistncia humanitria, h pessoas neste exacto momento beira da morte.

Que nossas palavras nesta Dissertao de Doutoramento no sejam mal interpretadas ao exigirmos um humanitarismo mais racional (e menos sentimentalista e emotivo) para o benefcio da vtima: elas tm por detrs um saber vivenciado. Em suas entrelinhas h a dorida e desassossegada lembrana de muitos rostos (de carne e osso) dos quais muitas desesperadas lgrimas foram derramadas. H a lembrana de vidas que no podem mais exigir o seu direito assistncia humanitria emergencial. De pouco serve ter d do ser humano. O ser humano para ser dignificado e valorizado em sua humanidade.

Que Mossab, se ainda estiver vivo, possa um dia vir estudar na Europa, qui

nesta Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra!

Coimbra, 27 de Abril de 2010

APRESENTAO

[D]onner en peut de consistance et de rigueur

thorique laction humanitaire. 1

I. Apresentao do tema: good governance da assistncia humanitria

A presente Dissertao de Doutoramento versa sobre a assistncia humanitria

emergencial e a criao de um quadro jurdico internacional para esta actividade, tendo em vista

a salvaguarda do direito assistncia humanitria. O tema no novo, como se sabe. A atitude

de socorro ao outro em necessidade to antiga quanto a prpria existncia do homem. Todavia,

a acuidade e a actualidade deste tema procedem de dois pontos principais. O primeiro deles, do

dfice de regulao jurdica da actividade de assistncia humanitria empreendida pelos diversos

agentes. facto que, se a assistncia humanitria tratada por alguns ramos de especializao do

Direito Internacional a assistncia humanitria devida em tempos de conflito armado

internacional ou no internacional, regida pelo DIH (sobretudo a IV Conveno de Genebra de

1949); a assistncia humanitria empreendida aos refugiados pelo ACNUR, de acordo com o seu

Estatuto e sob a gide da Conveno das Naes Unidas relativa ao Estatuto do Refugiado de

1951 , isto no representa um corpo jurdico universal (de implementao interna por parte dos

Estados) internacionalmente estabelecido para a proteco do direito assistncia humanitria

em tempos de paz. As diversas terminologias que circundam esta actividade interveno

humanitria, interveno de humanidade, ingerncia humanitria, ajuda humanitria,

ajuda de emergncia, aco humanitria, ajuda ao desenvolvimento , alm da difcil

delimitao da fronteira entre a tica, a moral e o Direito nesta questo, colaboram para o

vacuum normativo que se perpetua nesta actividade. Enquanto muitas organizaes humanitrias

(internacionais, governamentais, e no-governamentais) agem no terreno, a praxis humanitria

no foi acompanhada de um sistema normativo coeso. Para preencher esta lacunae, inmeras

espcies de normatividade relativa surgem neste horizonte para, seno substituir, preencher

temporariamente a ausncia de uma hard humanitarian law e de uma instituio humanitria

duradoura. O segundo ponto, se a assistncia humanitria to antiga quanto a prpria

1 Rony Brauman, Humanitaire le Dilemme, Textuel, 2me dition, 2002, p. 36.

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existncia do homem, verdade que o mundo em que vivemos modificou, e em muito, desde o

aparecimento do segundo homem nesta Terra (tendo aqui a compreenso de que o humanitarismo

praticado dentro de uma alteridade). Vivemos nos dias de hoje aquilo que Franois Ost

denomina de sociedade do medo, ou sociedade da incerteza. Os avanos tecnolgicos

alcanados trazem questionamentos sobre a actuao humana e sua influncia na natureza,

modificando as concepes tradicionais da responsabilidade civil (de uma responsabilidade para

uma responsividade, como se ver). Se outrora as catstrofes eram concebidas como incidentes,

caso fortuito, cuja preveno se bastava na figura dos seguros ou da indemnizao dos danos (ex

post), nos dias de hoje, deparamo-nos com a sociedade do risco enorme, de consequncias

devastadoras.2 Todos estes questionamentos (e medos) colocam-nos diante de uma pergunta

inadivel: Estamos preparados?

Esta Dissertao de Doutoramento pretende, portanto, preencher esta (dupla) lacunae

normativa atravs da criao de um (nico) quadro jurdico internacional para a assistncia

humanitria emergencial. uma Dissertao que, dentro da reflexo do presente, dialoga com o

passado e constri uma ponte para o futuro (um futuro-prximo-previsvel) e, portanto, no s

busca colmatar o vcuo normativo deixado pela comunidade jurdica internacional (do Direito

clssico) no tocante ao direito assistncia humanitria em relao ao sistema internacional de

proteco dos direitos humanos, como busca alicerar a actividade de assistncia humanitria

num quadro jurdico de um futuro-prximo.

E o futuro-prximo , sem dvidas, um Direito Internacional que se abre para novos

actores da arena internacional ( um Direito que se abre para uma sociedade tcnica, que se

2 Cfr. Philippe Sgur, La catastrophe et le risque naturels. Essai de dfinition juridique, in Revue du Droit Public et de la Science Politique en France et a ltranger, vol. 6, Novembre-Dcembre, 1997, pp. 1693-1716; Nicolas de Sadeleer, Les Principes du Pollueur-Payeur, de Prvention et de Prcaution. Essai sur la Gense et la Porte Juridique de Quelques Principes du Droit de lEnvironnement, Bruxelles: Bruylant, 1999, pp. 136-226; Joo Carlos Loureiro, Da sociedade tcnica de massas sociedade de risco: preveno, precauo e tecnocincia, in Studia Iuridica 61, Separata de Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogrio Soares, 1, Coimbra Editora, pp. 797-891; Michael N. Schmitt, (ed.), Terrorism and International Law. Challenges and Responses, International Institute of Humanitarian Law e George C. Marshall European Center for Security Studies, 2003; Michael N. Schmitt, Wired warfare: Computer network attack and jus in bello, in RICR, vol. 84, n. 846, juin 2002, pp. 365-399; Davis Brown, A proposal for an international convention to regulate the use of information systems in armed conflict, in Harvard International Law Journal, Volume 47, Number 1, Winter 2006, pp. 179-221; James J. Busutill, A taste of Armageddon: The law of armed conflict as applied to cyberwar, in Guy S. Goodwill-Gill e Stefan Talmon, The Reality of International Law. Essays in Honour of Ian Bownlie, Oxford: Claredon Press, 1999, pp. 37-56; por exemplo.

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compreende em sociedade de grupos3) e para novas fontes do Direito ( um Direito que se

(re)modela para novas tcnicas de criao normativa oriunda da sociedade de grupos4). E no

se de menosprezar a abundante doutrina do Direito Global (Global Law) neste sentido.

Num cenrio dantesco das actuais crises humanitrias que se alastram por tortuosos

terrenos marcados pelo sofrimento humano,5 a assistncia humanitria emergencial tem de estar

inserida no quadro da proteco dos direitos humanos, numa sustentabilidade para a paz. E a

sustentabilidade da prpria actividade de assistncia humanitria emergencial no pode ser

pensada fora deste quadro multilevel da good governance, da o ttulo desta Dissertao: Da

Good Governance da Assistncia Humanitria. O humanitarismo hoje tem de ser (re)pensado

dentro dos questionamentos de uma sociedade do ps, dentro de uma ps-teoria do Direito

Internacional Pblico.

II. O tempo terico

Desta maneira, o campo jurdico-teortico do desenvolvimento desta Dissertao de

Doutoramento situa-se ex ante e no ex post uma situao de catstrofe (situao esta que

coloca o ser humano em estado de necessidade de assistncia humanitria). Destarte, pode-se

dizer que uma Dissertao centrada no Direito da Paz, e no no Direito da Guerra (ius in

bello/ius ad bellum/ius post bellum). Neste sistema, as normas jurdicas fazem parte de uma

3 Demonstrando-se a actualidade da obra de Rogrio Ehrhardt Soares, Direito Pblico e Sociedade Tcnica,

Edies Tenacitas (2. Edio), 2008, com tpicos e pontos ainda centrais na teoria juspublicstica. 4 Cfr. Franois Ost e Michel van Kerchove, De la Pyramide au Rseau? Pour une Thorie Dialectique du Droit,

Bruxelles: Publications des Facults Universitaires Saint-Louis, 2002; J. H. H. Weiler e Julia Motoc, Governao sem governo: o desafio normativo do direito internacional, in Fundao Calouste Gulbenkian (org.), Cidadania e Novos Poderes numa Sociedade Global, (Conferncia Internacional Cidadania e Novos Poderes numa Sociedade Global), Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 2000, pp. 19-38; Laurence Boisson de Chazournes e Rostane Mehdi (dir.), Une Socit Internationale en Mutation: Quels Acteurs pour une Nouvelle Gouvernance?, Bruylant, 2005; Gunther Teubner (ed.), Global Law without a State, Dartmouth, 1997; Guy Hermet; Ali Kazancigil e Jean-Franois PrudHomme (dir.), La Gouvernance. Un Concept et ses Applications, Paris : Karthala, 2005; Zygmunt Bauman, Modernidad Liquida, Fondo de Cultura Econmica de Argentina, 2002 (traduo do original Liquid Modernity por Mirta Rosenberg em colaborao com Jaime Arrambide Aquirru); David Held e Anthony McGrew, Governing Globalization. Power, Authority and Global Governance, Polity Press, 2005; entre outros.

5 Vejam-se, por exemplo, o Relatrio UNICEF 2010 (http://www.unicef.org/har2010/files/UNICEF_Humanitarian_Action_Report_2010-Full_Report_WEB_EN.pdf); o World Disasters Report 2009 (http://www.ifrc.org/Docs/pubs/disasters/wdr2009/WDR2009-full.pdf); o ECHO Annual Report 2008 (http://ec.europa.eu/echo/files/media/publications/annual_report/annual_report_2008.pdf); o OCHA in 2010 (http://ochaonline.un.org/ocha2010/index.html); e o UNHCR Global Report 2008 (http://www.unhcr.org/gr08/index.html#/home).

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http://www.unicef.org/har2010/files/UNICEF_Humanitarian_Action_Report_2010-Full_Report_WEB_EN.pdfhttp://www.ifrc.org/Docs/pubs/disasters/wdr2009/WDR2009-full.pdfhttp://ec.europa.eu/echo/files/media/publications/annual_report/annual_report_2008.pdfhttp://ochaonline.un.org/ocha2010/index.htmlhttp://www.unhcr.org/gr08/index.html#/home

estrutura humanitria criada ex-ante. O desenvolvimento aqui no abarca, pois, nem o Direito

Internacional Humanitrio (ius in bello) nem a Interveno Humanitria (ius ad bellum) e nem a

Justia Transicional de reconstruo para a paz (ius post bellum). Eis o grande problema jurdico-

teortico, inclusive, de cristalizar a aco humanitria destas figuras afins.

O pensamento jurdico para a criao de um quadro para a good governance humanitria

vem antes da necessidade de apelarmos a meios de ultima ratio para a (re)construo da paz

(como , por exemplo, a interveno humanitria). A inegvel necessidade de prestarmos mais

esforos doutrinrios para a proteco do direito assistncia humanitria em tempos de paz faz

com que debrucemo-nos na sustentao deste direito como direito humano (e no

simplesmente humanitrio) inserindo-o, pois, no sistema internacional de proteco dos direitos

humanos. Importa, portanto, centralizar a assistncia humanitria neste sistema para evitar que

as decises do Direito para a proteco do direito assistncia humanitria pendam mais para

solues de ltimo recurso e do Direito da Guerra.

Adoptamos, portanto, uma posio de preveno e precauo diante do risco da

ocorrncia de uma situao de necessidade de assistncia humanitria posio esta que

antecipa o futuro , seja ela provocada pela natureza ou pela aco humana. H em nossa

construo uma antecipao jurdica da certeza do sofrimento humano. A certeza do sofrimento

humano permite-nos, todavia, prever um quadro em que se antecipe que sobre o sofrimento

humano reinar a garantia da felicidade humana.

III. Delimitao jurdico-teortica

2.1. Do objecto

O objecto de estudo desta Dissertao de Doutoramento , pois, a assistncia

humanitria (o socorrismo puro) delimitada ao tempo emergencial. O nosso prisma o do

terreno, em proximidade com a vtima e tem o intuito de, com o enquadramento jurdico desta

actividade no sistema internacional de proteco dos direitos humanos, dar nascena a uma

especialidade para o Direito Internacional: o Direito Internacional da Assistncia Humanitria.

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2.2. Do(s) conceito(s)

Para tal efeito, e conscientes da variedade terminolgica que circunscreve a actividade de

assistncia humanitria6, adoptaremos a definio de assistncia humanitria do Institute of

International Law, apresentada na sesso de Bruges de 2 de Setembro de 2003 (Bruges session),

que deu origem aos Princpios de Bruges. 7 Sempre que nos referirmos actividade de

assistncia humanitria, aco humanitria, actividade humanitria, queremos significar:

[A]ll acts, activities and the human and material resources for the provision of goods and services of an exclusively humanitarian character, indispensable for the survival and the fulfillment of the essential needs of the victims of disasters. [Resolution I, n. 1] 8

O tempo que circunscreve a actividade de assistncia humanitria nesta Dissertao o

tempo emergencial, i.e., a situao de necessidade de assistncia humanitria provocada por

um desastre, em que a palavra de ordem : a sobrevivncia do ser humano. Tambm para o

termo desastre adoptaremos a definio do mesmo citado documento:

Disaster means calamitous events which endanger life, health, physical integrity, or the right not to be subjected to cruel, inhuman

6 Para um breve estudo de delimitao terminolgica de figuras afins actividade humanitria, leiam-se

Consuelo Ramn Chornet, Violencia necesaria?: La Intervencin Humanitaria en Derecho Internacional, Madrid: Editorial Trotta, 1995, pp. 53-84; Ruth Abril Stoffels, La Asistencia Humanitaria en los Conflitos Armados: Configuracin Jurdica, Principios Rectores y Mecanismos de Garanta, Cruz Roja Espaola, Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, pp. 35-55; Jos de Azeredo Lopes, Entre Solido e Intervencionismo Direito de Autodeterminao dos Povos e Reaces de Estados Teceiros, Gabinete de Estudos Internacionais, Porto: Publicaes Universidade Catlica, 2003, pp. 891-1031; Maria de Assuno do Vale Pereira, A Interveno Humanitria no Direito Internacional Contemporneo, Coimbra Editora, 2009, pp. 23-95; Hctor Gros Espiell, Les fondements juridiques du droit lassistance humanitaire, in UNESCO, Colloque International sur le Droit lAssistance Humanitaireop. cit., pp. 13-21; Mario Bettati, Un droit dingrence?, in RGDIP, Tome 95, n. 3, 1991, pp. 645-646; entre outros.

7 Institute of International Law, Bruges session 2003: Humanitarian Assistance, Resolution. 8 O documento delimita ainda outros termos bens e servios que aqui explicitamos:

a) Goods includes foodstuffs, drinking water, medical supplies and equipment, means of shelter, clothing, bedding, vehicles, and all other goods indispensable for the survival and the fulfillment of the essential needs of the victims of disasters; this term never includes weapons, ammunition or any other military material.

b) Services means the means of transport, tracing services, medical services, religious, spiritual and psychological assistance, reconstruction, de-mining, decontamination, voluntary return of refugees and internally displaced persons, and all other services indispensable for the survival and the fulfillment of the essential needs of the victims of disasters.

17

or degrading treatment, or other fundamental human rights, or the essential needs of the population, whether of natural origin (such as earthquakes, volcanic eruptions, windstorms, torrential rains, floods, landslides, droughts, fires, famine, epidemics), or man-made disasters of technological origin (such as chemical disasters or nuclear explosions),or caused by armed conflicts or violence (such as international or internal armed conflicts, internal disturbances or violence, terrorist activities). [Resolution I, n. 2]

IV. Plano de exposio

Desta forma, o trabalho desenvolver-se- da seguinte maneira:

1. Cientes da variedade terminolgica que circunda a questo humanitria, numa fase inicial,

utilizando-nos da metodologia histrica, faremos um itinerrio pelo desenvolvimento do

humanitarismo com o intuito de, em primeiro lugar, contribuir para delimitar os contornos

jurdicos da assistncia humanitria emergencial e, em segundo, demonstrar a existnca de um

humanitarismo acfalo acusador de quatro pendncias: a) a falta de regulao estatal e jurdica

nesta actividade, b) a cultura do longnquo que a caracteriza, c) a misconception existente entre

a assistncia humanitria emergencial e a ajuda ao desenvolvimento, e d) a falta de

potencializao da sociedade civil (dentro de uma unio com o Estado) para esta actividade.

Pretendemos com este itinerrio, delimitar o campo terico do desenvolvimento de nosso tema

quanto aos seguintes aspectos:

a) Cingir-no-emos perspectiva jurdica (apurando o termo assistncia humanitria de

concepes sentimentalistas e moralistas);

b) Cingir-no-emos ao tempo emergencial (afastando-nos do tempo da ajuda ao

desenvolvimento);

c) Iniciaremos um dilogo com a ps-modernidade da good governance para a construo

de um ps-humanitarismo.

2. Realizado este itinerrio dentro da ideia de desconstruo (no sendo esta, todavia, uma

desconstruo que rompe com o passado, mas uma desconstruo para uma reconstruo

diacrnica, entendendo o fenmeno jurdico como fenmeno evolutivo em sociedade, tambm

ela, em constante evoluo), na Parte II, buscaremos o status quo normativo do direito

18

assistncia humanitria emergencial (Captulo 3) para constatar a realidade jurdica existente.

Diante do vacuum normativo existente para a actividade de assistncia humanitria emergencial,

analisaremos a evidente correlao entre ordem humanista e ordem humanitarista (Captulo

4) para sustentar a potencialidade jurdica existente no direito assistncia humanitria para a

promoo dos direitos humanos e para uma paz sustentvel, capacitando o indivduo para uma

vida mais digna. Desta interdependncia entre as duas ordens, demonstraremos que a ordem

humanista ganhou desenvolvimento terico e uma praxis para a paz mais slidos do que a

ordem humanitarista, constatando-se um imbalance. A ordem humanitarista lanada pelo

pensamento jurdico aos tempos da excepo (o prisioneiro do tempo emergencial), facto este

que desencadeia um sistema em caos, de solues pragmticas ad hoc ou de ultima ratio. Este

desequilbrio provoca fissuras na Justia Internacional que devem ser colmatadas. Passaremos,

assim, no Captulo 5, por um breve itinerrio pelas diversas fundamentaes jurdicas existentes

dos direitos humanos analisando-se a sua adequao eficincia do direito assistncia

humanitria , para, em seguida, sustentar uma nova fundamentao do direito assistncia

humanitria como direito da aco direito este operacional par excellence. Esta

fundamentao tem em vista, como j afirmmos, o prisma do terreno e a situao de

vulnerabilidade da vtima de um desastre. Desde j, passaremos a trilhar o caminho rumo good

governance, caminho este que passa necessariamente pela segunda velocidade da Justia

Internacional na promoo dos direitos humanos. Esta segunda velocidade da Justia

Internacional composta por instituies (organizaes humanitrias) responsveis pela

actividade humanitria. Dentro de uma compreenso do Global Law mas em dilogo com o

Direito Clssico, que, alis, subsiste , estas organizaes fazem parte de uma estrutura de

justia operacional para a proteco dos direitos humanos e para a promoo de valores j

sedimentados pela cultura jurdica internacionalista (ocidental): a paz, o desenvolvimento

sustentvel, a dignidade humana, etc.

3. O desenvolvimento da Parte III permitir constatar que o quadro da good governance

humanitria s possvel atravs desta nova fundamentao jurdica do direito assistncia

humanitria como direito da aco. O papel das organizaes humanitrias fulcral para um

direito que operacional par excellence. Desta forma, mergulharemos no rduo trabalho de

desvendar o mistrio da good governance (Captulo 6), conceito excessivamente marcado por

19

uma polissemia que dificulta a sua compreenso. O itinerrio pelo desenvolvimento do conceito

da good governance permitir, entretanto, notar que este caminho encontra-se, desde j, marcado

por um novo sentido jurdico, de uma nova sociedade mundial, para uma nova ide de Droit.

Este sentido (sagesse) leva-nos, sem hesitao, a defender a good governance como princpio

jurdico de uma nova realidade mundial. Esta nova ide de Droit compreende um sistema com

sentidos (do controlo, da responsiveness, da eficcia, da eficincia, da transparncia, do rule of

law) coligados dentro de uma lgica que dada por um conceito supremo9: o princpio da good

governance. No Captulo 7 estruturaremos a ligao entre direito assistncia humanitria e o

princpio da good governance, o que nos encaminhar ao dever da conduo responsvel desta

actividade por todos os agentes humanitrios, para a salvaguarda do direito humano assistncia

humanitria. Demonstrado o potencial da capacidade institucional10 para a proteco do direito

assistncia humanitria, passaremos, no Captulo 8, a desenhar o quadro da Good Governance

Humanitria. Este quadro representa uma reflexo do presente, selando um compromisso do

passado com o futuro para alicerar a actividade de assistncia humanitria emergencial num

quadro jurdico universal realista: nem o Direito e nem o Estado podem mais negar a fora da

sociedade civil 11 . Desta unio (poltica, social e jurdica) depende o futuro do Direito

Internacional. Um Direito que se erigiu no passado como mecanismo de regulao entre Estados

(Westflia) tem, nos dias de hoje (da sociedade do ps), um compromisso crucial de fortalecer

o Estado na sociedade, e a sociedade no Estado. 12 O Estado no se ope sociedade civil, nem

esta quele; antes, se complementam. O quadro da good governance humanitria, apesar de sua

estrutura estar na arena internacional (no Direito dos Tratados e no sistema internacional de

proteco dos direitos humanos) direito humano que , ser elaborado tendo a preocupao

da sua implementao na ordem interna, passando por sistemas regionais. Esta elaborao em

rede importantssima para a sustentabilidade e eficcia da actividade de assistncia

9 mile Durkheim, Lorigine de lide de droit, in Revue Philosophique, vol. 35, 1893, pp. 290-296

(disponvel em http://classiques.uqac.ca/classiques/Durkheim_emile/textes_1/textes_1_11/origine_idee_de_droit.pdf); Antnio Augusto Canado Trindade, A Humanizao do Direito Internacional, (A Formao do Direito Internacional Contemporneo: Reavaliao Crtica da Teoria Clssica de suas Fontes), Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 86.

10 Martha C. Nussbaum, Las Fronteras de la Justicia. Consideraciones sobre la Exclusin, Paids, 2007; Amartya Sen, O Desenvolvimento como Liberdade, Gradiva, 1999; Avishai Margalit, La Societ Decente, Guerini e Associati, 1998 (traduo do original em ingls The Decent Society, Harvard University Press, 1996 por Andrea Villani), por exemplo.

11 O quarto poder em Rogrio Ehrhardt Soares, op. cit. 12 Rogrio Ehrhardt Soares, op. cit., pp. 116 e 141, respectivamente.

20

http://classiques.uqac.ca/classiques/Durkheim_emile/textes_1/textes_1_11/origine_idee_de_droit.pdf

21

humanitria. A nfase da proteco, organizao, coordenao do direito assistncia humantria

no Estado (na proximidade da vtima) inverte o papel da assistncia humanitria regional e

internacional (conforme o princpio da subsidiariedade), e permite aumentar o controlo e a

responsabilizao dos agentes nesta actividade, alm de proporcionar um (re)fortalecimento e

(re)valorizao das organizaes humanitrias existentes (sobretudo ONGs) quanto ao seu papel

neste quadro. Da cultura do longnquo (uma assistncia humanitria que organizada longe da

vtima) passaremos a uma assistncia humanitria internacional (sobretudo a ajuda humanitria)

que tem como objectivo fortalecer, capacitar e sustentar este quadro interno, num

cosmopolitismo da proximidade.13 Eis a importncia institucional para a capacitao de uma

ordem capaz de tornar plenamente efectivos os direitos e as liberdades do ser humano.

4. Na Parte IV, apresentaremos, por fim, uma lista concentrada das teses elaboradas neste

trabalho.

Finalmente, cumpre ainda notar que a construo aqui elaborada da good governance

humanitria anuncia, desde j, as caractersticas daquilo que acreditamos que ser num futuro-

prximo, se j no , o Novo Direito Internacional Pblico. Quantum mutatus ab illo!

13 A expresso de Joo Carlos Loureiro. A caracterstica de um cosmopolitismo centrado no indivduo

evidenciada por Pasquale Ferrara, La fraternit nella teoria politica internazionale. Elementi per una ricostruzione, in Antonio M. Baggio (ed.), Il Principio Dimenticato. La Fraternit nella Riflessione Politologica Contemporanea, Citt Nuova, 2007, p. 297: Lapproccio cosmopolitico pone laccento sulla continuit dello spazio politico e sulla necessit di un referimento concreto ai diritti individuali. Perci, la teoria cosmopolitica pu essere qualificata al contempo come universalista e individualista. La tesi centrali della teoria cosmopolitica che lordine politico non importa se locale, nazionale o mondiale deve essere giustificato in relazione agli effetti sui diritti e sulle aspettative degli individui, con riferimento al loro benessere generale, previamente e indipendentemente dal loro impegno in un contesto di relazioni sociali.

ABSTRACT

A look back into history of human suffering (caused by wars, forcible displacement of

persons, gross violations of human rights, natural disasters, complex emergencies, etc.) confirms

the undeniable necessity of humanitarian action in society. The recent manmade disasters causing

unbearable situations to human condition show us that humanitarian action is more than a

necessity and should be put as a priority in the agenda of the governments. Developments on the

studies of Risikogesellschaft theory are also alerting that we will face difficult situations in the

future. Confirming it is the increase researches and studies claiming for a new juridical status for

the protection of the environmentally displaced persons or ecological refugees, for example.

Although the catastrophic situation of human suffering seems like a far away nightmare from our

safe life, this is a matter of our responsibility.

This essay is about the good governance of humanitarian action. Since the evolution of

generous narratives (political, religious and philosophical discourses) describing the genesis and

contents of humanitarian action (impulse) few has been done to institutionalize the

humanitarianism in society. To build the capacity of local resources to answer to the

humanitarian crises is the purpose of this work. The building of a humanitarian institution in the

internal juridical order of the States able to act close to the victim of a disaster (man-made or

natural) and based on a multilevel pact between State, international humanitarian organizations,

NGOs and donators. We argue that in order to answer properly to the right to humanitarian

assistance the duty of good governance will be crucial. This duty requires States to establish an

operational system in their internal order to answer timely and with efficiency to the right of

humanitarian assistance. This system will be supported by the regional and international system

based on the principle of subsidiarity. The rationality underlining the juridical thought on the

construction of the framework of the humanitarian governance is a rationality built on a culture

of peace. Saying it in another way, it is not more than the thought of Henry Dunant applied to the

time of peace: the predictability of happiness over human suffering.

23

PARTE I

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar

dos Tempos Para uma Pr-Compreenso da Questo

Humanitria e Levantamento da(s) Problemtica(s)

Plus que tout autre ordre juridique, le droit

international porte la marque de lhistoire dont il est le

produit. On ne peut saisir vritablement le sens et la porte

dune rgle si lon mconnat le contexte dans lequel elle a

pris naissance et celui dans lequel elle produit ses effets. De

mme, on ne peut comprendre une institution si lon ne

cherche pas pntrer ses origines et lencadrement

historique dans lequel sinscrit son volution.1

1 Franois Bugnion, Le Comit International de la Croix-Rouge et la Protection des Victimes de la

Guerre, CICR, 2000, p. 03.

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

CAPTULO I Itinerrio por um Humanitarismo Acfalo: O Dfice

da Regulao Jurdica da Actividade Humanitria e a Problemtica de

uma Instituio

Lhumanitaire commence rassembler un

rituel idologique, auquel on ne demande pas de

se confronter la complexit du rel mais de sy

substituer et dapaiser nos mes. 1

1. Uma palavra e seus dilemas

A atitude humanitria ditada pelo imperativo moral de socorro ao outro em

desventura - to antiga quanto a prpria existncia do homem.2 Agap crist, filia

grega, humanitas dos esticos, fraternidade dos revolucionrios3, a assistncia ao outro

necessitado (ou a demonstrao de inteno nesse sentido) e os actos de barbrie

1 Alain Destexhe, LHumanitaire Impossible ou Deux Sicles dAmbigut, Paris: Armand Colin, 1993,

p. 140. 2 Claudio Zanghi, Fondements thiques et moraux du droit lassistance humanitaire, in UNESCO,

Colloque International sur le Droit lAssistance Humanitaireop. cit., pp.03-10 3 Cfr. Javier de Lucas, La polmica sobre los deberes de solidariedad, in Revista del Centro de

Estudios Constitucionales, n. 19, septiembre-diciembre 1994, pp.09-88.

29

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

caminham juntos com a humanidade e fazem parte do antagonismo da natureza humana,

da contradio prpria da essncia humana. Sem adentrarmo-nos na questo da natureza

humana4, certo que do mesmo modo que sempre existiu a violncia (armada ou em

outras formas), os actos de socorro ao outro tambm so uma constante na histria da

Humanidade, um duelo entre a desumanizao e a humanizao do prprio homem.5

O dicionrio define humanitarismo como a doutrina que visa desenvolver no

homem o amor pelos seus semelhantes e eliminar as injustias reinantes, a fim de se

alcanar a felicidade humana/ filantropia/ amor humanidade. J humanismo

definido como a doutrina centrada nos interesses e nos valores humanos ou, ainda,

teoria que defende a dignidade do ser humano como valor absoluto.6 Piedade e

compaixo aos religiosos, caridade para os bons samaritanos, altrusmo para os de bom

corao, virtude para os moralistas: a actividade humanitria encontra-se, desde o seu

incio, imbuda do sentimento de comiserao para com o outro em infortnio.

4 Sobre o assunto leiam-se F. Fornari, Psicanalisi della Guerra, Milano : Feltrinelli, 1970; Pierre

Hassner, La Violence et la Paix, Paris: ditions Esprit, 1995; Jules Sageret, Philosophie de la Guerre et la Paix, Paris: Librairie Flix Alcan, 1919; Jasna Bastic, The War Still in my Mind. A Book Project on PTSD Post-Traumatic Stress Disorder in former Yugoslavia (livro ainda no publicado, gentilmente cedido pela autora); Giorgio Del Vecchio, Direito e Paz (Ensaios), Coleco Scientia Iuridica, Editorial Scientia & Ars, Braga: Livraria Cruz, 1968; Gustav Radbruch, A guerra, in Filosofia do Direito, 6. Edio, Coleco STVDIVM, Coimbra: Armnio Amado Editor, 1979, pp. 383-391. (Traduo de L. Cabral de Moncada); Idem, Sulla giustizia della guerra, in Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, Anno XXVI, Serie III, 1949, pp. 73-74; Jean Pictet, Dveloppement et Principes du Droit International Humanitaire, Institut Henry-Dunant, Pedone, 1983; Unesco, Les Dimensions Internationales du Droit Humanitaire, Pedone e Institut Henry-Dunant, 1986, pp. 21-86; Frank Przetacznik, Erroneous views of philosophers considering war as a natural state or as inevitable, in Revue de Droit International de Sciences Diplomatiques et Politiques, 74e Anne, n. 1, Janvier-mars 1996, pp. 33-79, entre outros.

5 Cfr. Jean Pictet, Dveloppement et Principesop. cit., pp. 114-19; Yves Beigbeder, The Role and Status of International Humanitarian Volunteers and Organizations. The Right and Duty to Humanitarian Assistance, Martinus Nijhoff Publishers, 1991, pp. 08-10.

6 Dicionrio Priberam da Lngua Portuguesa (on-line): http://www.priberam.pt/dlpo/dlpo.aspx. Note que o humanitarismo em Direito encontra-se associado a um ramo especfico: o Direito Internacional Humanitrio e se desenvolve nas actividades de socorro empreendidas durante um conflito armado. Vide as Quatro Convenes de Genebra de 1949, corpo jurdico base do ius in bello (Droit de Genve).

30

http://www.priberam.pt/dlpo/dlpo.aspx

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

Do ponto de vista da teoria jurdica, o Direito Internacional Humanitrio (DIH),

sem definir precisamente a palavra humanitarismo, associa-o, lato sensu, ao conjunto

de princpios e regras jurdicas que devem ser observados com o objectivo de se

diminuir o sofrimento humano durante um conflito armado (internacional ou

no-internacional, consoante a sua classificao pela doutrina). Strictu sensu, para o

DIH, poder-se-ia delimitar ainda mais o sentido da palavra humanitarismo: o

conjunto de regras que rege a assistncia humanitria ao ser humano em tempos de

conflito armado.7 Uma noo, portanto, mais especfica e que circunscreve aos tempos

de guerra o campo de aco desta actividade.

O humanitarismo, em sentido amplo, ser palavra aqui empregue, como

dissemos na Introduo deste trabalho, para a actividade de assistncia (material,

humana, espiritual e econmica) levada a cabo quando, da eventual ocorrncia de algum

desastre (provocado pela natureza ou pela aco humana), seres humanos encontram-se

7 Para a doutrina mais relevante do DIH: Marco Sassli e Antoine A. Bouvier, Un Droit dans la

Guerre?, Vol. I-II, CICR, 2003; Vronique Harouel-Bureloup, Trait de Droit Humanitaire, PUF, 2005; Eric David, Principes de Droit des Conflits Arms, Bruxelles:Bruylant, 1994; Pietro Verri, Dictionnaire du Droit International des Conflits Arms, CICR, 1988; Pierre Boissier, Henry Dunant, Instituto Henry-Dunant, Ginebra, 1974; Simone Delorenzi, Contending with the Impasse in International Humanitarian Action. ICRC Policy Since the End of the Cold War, ICRC, 1999; Hans-Peter Gasser, Le Droit International Humanitaire - Introduction, Haupt: Institut Henry-Dunant, 2003; Jean-Marie Janckaerts e Louise Doswald-Beck, Customary International Humanitarian Law, ICRC, Cambridge University Press, 2005; Olivier Paye, Sauve Qui Veut? Le Droit International Face aux Crises Humanitaires, Collection de Droit International 31, Bruxelles: ditions Bruylant, 1996; Michel Deyra, Direito Internacional Humanitrio, Lisboa: Procuradoria Geral da Repblica, Gabinete de Documentao e Direito Comparado, 2001 (trad. Catarina de Albuquerque, Raquel Tavares); Michel Blanger, Droit International Humanitaire, Gualino diteur, 2002; Dieter Fleck (ed.), The Handbook of Humanitarian Law in Armed Conflicts, Oxford University Press, 1995; N. Ronzitti, Diritto Internazionale dei Conflitti Armati, Torino: Giappichelli, 1998; entre outros. Vide tambm as Quatro Convenes de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais: Conveno I de Genebra para Melhorar a Situao dos Feridos e Doentes das Foras Armadas em Campanha; Conveno II de Genebra para Melhorar a Situao dos Feridos, Doentes e Nufragos das Foras Armadas no Mar; Conveno III de Genebra relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra; Conveno IV de Genebra relativa Proteco das Pessoas Civis em Tempo de Guerra; Protocolo I Adicional s Convenes de Genebra de 12 de Agosto de 1949 relativo Proteco das Vtimas dos Conflitos Armados Internacionais; Protocolo II Adicional s Convenes de Genebra de 12 de Agosto de 1949 relativo Proteco das Vtimas dos Conflitos Armados No Internacionais.

31

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

em estado de necessidade de assistncia. O tempo jurdico-teortico que ser, neste

trabalho, delimitado ao tempo emergencial.8

1.1. Pragmatismo do corao9: a abordagem sentimentalista

notrio que o humanitarismo carrega em si o peso de seu prprio sentido:

humanitarismo contradio. Palavra intimamente ligada aos ditames da moral (e ao

sentimentalismo que lhe inerente10), o humanitarismo tem sido, por este motivo,

longamente ignorado pela Poltica e pelo Direito.11 A arte dos de bom corao fica

8 Desvinculamo-nos, portanto, e desde j, da utilizao do humanitarismo referenciado apenas pelo

Direito Internacional Humanitrio. Como elementos que podem caracterizar uma situao de necessidade de assistncia humanitria, vide Rohan J. Hardcastle e Adrian T. L.Chua, Assistance humanitaire: pour un droit laccs aux victimes des catastrophes naturelles, in RICR, 80me Anne, n. 832, dcembre 1998, pp. 635-636: On entend par catastrophes naturelles les pidmies, famines, tramblement de terre, inondations, tornades, typhoons, cyclones, avalanches, ouragans, eruptions volcaniques, scheresses, et incendies. Laide apporte dans ces situations consiste habituellement en vivres, vtements, mdicaments, abris et quipement pour les hpitaux, que claramente se limita aos desastres naturais; International Institute of Humanitarian Law, The Evolution of the Right to Assistance, XVII Round Table on Current Problems of Humanitarian Law, San Remo, Italy, 2-4 September 1992, p. 01, que alarga o rol de eventos caracterizadores da necessidade de assistncia humanitria para os provocados pela aco humana: The right to humanitarian assistance could be conceived, in the first place, as a right of victims to receive assistance indispensable for their survival and to satisfy essential needs for human beings in emergency situations. The victims referred to in this context are persons who individually or as part of larger groups and populations, are victims of/or affected by emergencies: natural or man-made disasters, such as famine, storms, earthquakes, floods, armed conflict situations, civil strife short of war and generalized violence. Such emergencies are frequently the cause of mass exodus and appearance of large numbers of refugees, displaced persons, movements of population, etc.

9 A expresso [pragmatisme du coeur] de Rony Brauman, Humanitaire le Dilemmeop. cit., p. 71. 10 Il mobilise des motions plutt que des rflexions politiques, como afirma Pierre de Senarclens,

LHumanitaire en Catastrophe, Presses de Science Politiques, 1999, p. 64. 11 Como opina Wolf-Dieter Eberwein, Le paradoxe humanitaire? Normes et pratiques, in Cultures

& Conflicts (Sociologie Politique de lInternational), n. 60, 2005, p. 21: Par le recours la morale, les Etats vitent de sengager pour le respect du droit. Esta reflexo sobre o paradoxo do humanitarismo, preso ao sentimentalismo que lhe inerente, impedindo abordagens jurdicas mais concretas, tem relao com as reflexes de Jos Fernando de Castro Farias, A Origem do Direito de Solidariedade, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 194, sobre a solidariedade, outro conceito repleto de paradoxos: Ao mesmo tempo que a solidariedade , como diz Duguit, a lei objetiva da sociedade, ela vista como uma espcie de mito da nossa contemporaneidade, tornando-se uma idia-fora, no sentido que Alfred Fouill emprega a expresso. Isso significa que ela tambm um fenmeno inerente ao domnio da representao e do simblico, e, como tal, traduz-se essencialmente em ao e reao recprocas onde, para um espectador, o elemento especfico da solidariedade pode ser acessoriamente considerado como sinal ou representao dos outros. Assim, a solidariedade surgiu como uma idia-fora de nossa contemporaneidade, como um mito, como um conjunto ligado a imagens motoras, uma representao

32

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

reservada esfera privada (organizaes religiosas, filantrpicas, ONGs, etc), como se

assunto pblico no fosse. Consequentemente, as crises humanitrias (a expresso ,

inclusivamente, recente - do sculo XX) so concebidas como fenmenos do acaso,

desprovidos de qualquer nexo de causalidade com a aco poltica humana, reservada a

uma espontaneidade solidria em grande parte da esfera privada. A comprov-lo est

o facto de que, ao utilizar-se a expresso crise humanitria, retira-se-lhe a causalidade

entre a aco poltica e as incidncias no Direito. Michael Schloms, por exemplo, afirma

que a abordagem sentimentalista (approche affective) do humanitarismo corresponde

a uma reaco mais emocional do que o resultado de uma estratgia (poltica e jurdica)

deliberada. Dentro desta viso, lacte de fournir de laide est peru comme en acte de piti et

de charit plutt quune rponse un droit lassistance humanitaire.12 A crise humanitria

o momento da solidariedade espontnea, e no o momento do accionar de um

mecanismo previamente elaborado de assistncia humanitria. Esta propositada no

causalidade ser objecto da nossa contestao no primeiro passo deste trabalho.

1.2. A mediatizao do humanitarismo

O humanitarismo padece, no apenas do divrcio entre Poltica e Direito, mas

tambm de uma massificao visual nos media.13 Uma naturalisation de linjustice,

coletiva mobilizadora, segundo a frmula de G.. Sorel. A solidariedade faz apelo ao movimento. Ela incita os indivduos e os grupos ao, e aparece em definitivo como um elemento estimulador das energias de uma excepcional potncia nas relaes sociais. Mas, se a solidariedade uma idia-fora de nossa contemporaneidade, foroso constatar um grande paradoxo do homem contemporneo, pois este despreza, em larga escala, as tentativas de imaginar uma democracia social e pluralista, cuja fora motora baseia-se na liberdade, na solidariedade e num pluralismo da vida social. A solidariedade tornou-se um paradigma perdido. (...)Hoje, a palavra solidariedade torna-se uma espcie de fantasma na memria do homem contemporneo, servindo para dar boa conscincia a uns e amenizar a m conscincia de outros.

12 Michael Schloms, Le dilemme inevitable de laction humanitaire, in Cultures & Conflicts (Sociologie Politique de lInternational), n. 60, 2005, p. 98.

13 Cfr. Steven Livinsgston, Suffering in silence: media coverage of war and famine in Sudan, in

33

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

mencionada por Rony Brauman14 que entendemos no sentido de banalizao do

sofrimento humano, maneira de Hannah Arendt que corre o risco de aprisionar o

humanitarismo a um papel sempre marginal em sociedade, e cujo ciclo vicioso pode ser

perigoso numa sociedade de risco15, se no lhe for dada a devida ateno.

A este respeito, o imprio do efmero em uma sociedade de informao

notado por Franois Ost, mencionando o socilogo Lipovetsky: sociedades do tempo real,

destinadas volatilidade do tempo e variabilidade das modas.16 Os avanos tecnolgicos

alcanados condicionam uma sociedade do gosto pelo novo, pelo instantneo,

criando aquilo que Ost denomina de estado de urgncia permante: sem modelo

preestabelecido, vivemos de prticas experimentais, vivemos o efmero.17

Esse modus vivendi da sociedade de informao faz-se reflectir tambm nas

crises humanitrias elas prprias estados emergenciais que aparecem e desaparecem

Robert I. Rotberg e Thomas G. Weiss, From Massacres to Genocide. The Media, Public Policy, and Humanitarian Crises, The Brookings Institutions Washington D. C. e The World Peace Foundation, 1996, pp. 68-89; Michael Ignatieff, Les rcits qui nous hantent. La television et laide humanitaire, in Jonathan Moore (dir.), Des Choix Difficiles. Les Dilemmes Moraux de lHumanitaire, Gallimard, 1999, pp. 369-388; Virgil Hawkins, The price of inaction: Intervention and the media, in Journal of Humanitarian Assistance, http://www.jha.ac/articles/a066.htm (Document Posted: 15 May 2001) (acesso em 02/02/10 s 14:37hs); Mario Villarroel Lander, Statement [Impact of the Humanitarian Assistance and of the Mass Media on the Evolution of Conflict Situations], International Institut of Humanitarian Law, 22e Table Ronde sur les Problmes Actuels du Droit Humanitaire, 1997, pp. 01-04; Koert Lindjer, Assistance and the media, in Frits Kalshoven, Assisting the Victims of Armed Conflict and Other Disasters, (Papers delivered at the International Conference on Humanitarian Assistance in Armed Conflict, The Hague, 22-24 June 1998), Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 1989, pp. 83-87; entre outros.

14 Rony Brauman, Humanitaire le Dilemmeop. cit., p. 11: Cette naturalisation de linjustice est inscrite dans une certaine conception, disons conservatrice, de lhumanitaire. Celle qui, par exemple, saccommode du dmantlement des services sociaux publics, confie au march la tche dgaliser les chances de tous et accepte le rle de voiture-balai charge de dbarasser les rues de la presence encombrante des exclus, des superflus, de ceux qui nont pas su resister la tourmente.

15 Vide o Captulo 8 desta Tese, 8.2. 16 Franois Ost, O Tempo do Direito, Instituto Piaget, 1999 (traduo do origial em francs Le Temps

du Droit por Maria Fernanda Oliveira), p. 350. 17 Ibidem, p. 350.

34

http://www.jha.ac/articles/a066.htm

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

dentro de um show meditico da sociedade de informao. Elas passam, neste domnio,

a fazer parte deste nosso efmero mundo das urgncias 18 : de crise em crise,

limitamo-nos a ligar a televiso, a sentir a dor daquele minuto instantneo da

durabilidade da notcia. Desligamos a televiso e assim desligamos a crise humanitria:

retornamos ao efmero num papel de pur spectateur.19

Na aco humanitria, a urgncia coloca toda a expectativa no presente.

Assim, do ponto de vista de uma viso sentimentalista, a assistncia humanitria

legitima-se em si mesma na aco , seja ela eficiente ou no, justificando,

inclusive, a ausncia de uma pr-reflexo e de um projecto humanitrio em

sociedade.20 Embora o resultado querido tenha sido no sentido de ser a aco

satisfatria, o facto de no o atingir justifica-se no prprio agir: do que nada, ao menos

tentmos. Como regista Franois Ost, a aco humanitria internacional, que muitas vezes

faz o papel de substituta de uma poltica estrangeira e de ajuda ao desenvolvimento defeituoso,

tambm ela marcada pelo sinal da urgncia e do curto prazo: como se, incapazes de firmar uma

solidariedade internacional durvel, nos condenssemos a reagir a ritmo das nossas emoes quando

as imagens de fome ou de genocdio, que nos inundam hora do telejornal da noite, so demasiado

18 Os dicionrios provam-no: urgncia aquilo que no admite demora, que no pode esperar

um termo que s aparece a partir do sculo XVIII e que s se generaliza a partir do sculo XX. O contexto em que surge mdico: fala-se do servio das urgncias do hospital, onde se impe uma interveno imediata. A urgncia remete, pois, em princpio, para um estado de coisas excepcional: a gravidade de uma situao ordena que se aja de imediato, se for preciso margem ou at em violao dos procedimentos comuns. H perigo na demora e, como se diz nesses casos, necessidade (urgncia) faz lei. Franois Ost, ibidem, p. 352.

19 Luc Boltanski, La Souffrance Distance, Mtaili, 1993, pp. 48-52 e 58-69. Neste sentido veja-se tambm a reflexo de Adam Smith, The Theory of Moral Sentiments, Cambridge University Press, 2002, p. 16: [t]he tribute of our fellow-feeling seems doubly due to them now, when they are in danger of being forgot by every body; and, by the vain honours which we pay to their memory, we endeavour, for our own misery, artificially to keep alive our melancholy remembrance of their misfortune.

20 Cfr. Franois Ost, ibidem, pp. 352-353.

35

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

insuportveis.21

1.3. Tempo emergencial como tempo instantneo: a disjuno do

pensamento jurdico

Nesta linha de pensamento, o tempo emergencial concebido como um

tempo instantneo, desligado do nosso tempo corrente de vida (e do pensamento

jurdico). Basta observar a pouca ateno doutrinria e metodolgica actividade de

assitncia humanitria, enclausurada apenas no Direito Internacional Humanitrio ou

nos tempos de excepo tempos de ultima ratio. Este corte no raciocnio jurdico

(tempo emergencial=tempo instantneo) fez com que a actividade de assistncia

humanitria fosse concebida sem se fazer o liame com os direitos humanos (tempos de

paz), com o respeito dos direitos fundamentais (tempos de paz), com o desenvolvimento

sustentvel (tempos de paz), e com a noo de segurana da pessoa humana (repetimos:

tempo de paz), sendo associada sempre filantropia, caridade, bondade do corao e

a uma solidariedade espontnea, e no ao Direito.22 O tempo emergencial de uma

catstrofe permanece, assim, preso a uma teia de um iderio demonstrativo das

virtudes humanas caridade, filantropia, solidariedade individualizada, d do prximo

sem conseguir livrar-se deste enredo (a conundrum in a conundrum). Uma disjuno

do pensamento jurdico (tempos de desastres tempos de paz) que representa a

desconsiderao do primeiro.

21 Franois Ost, ibidem, p. 354. 22 Esta disjuno de tempos no raciocnio do pensamento jurdico da assistncia humanitria ser

melhor desenvolvida e evidenciada no Captulo 4 deste trabalho.

36

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

1.4. Humanitarismosem direito

Basta vermos as respostas humanitrias que so dadas s crises humanitrias

para compreendermos a carncia normativa na actividade humanitria, sobretudo em

tempos de paz (apenas os tempos de guerra o DIH regulam a actividade de

assistncia humanitria). Esta carncia normativa inicia-se logo pelo seu prprio

conceito: humanitarismo pode siginificar muitas coisas, e assim utilizado na

linguagem trivial. Como afirmado, padece este termo do sentimentalismo que lhe

prprio, sendo difcil a sua delimitao jurdica inclusive. Este facto permite que muitas

organizaes (ditas humanitrias) se legitimem com base apenas em

auto-rotularem-se humanitrias. H, de facto, uma bondade homologada no

humanitarismo. Alm disso, como observa Michael Schloms, a maioria das

organizaes humanitrias age segundo seu prprio quadro tico e seu estatuto

constitutivo. A prpria organizao elabora seus princpios de aco e seus objectivos. O

problema no est na autonomia de aco dada para essas organizaes dentro do

direito liberdade de associao que lhes cabe. A questo est na posio de

vulverabilidade da vtima no terreno, a espera da aco destas organizaes, sem ter ela

a garantia de proteco. Schloms denomina esta uma abordagem introvertida

(approche introvertie) em que a aco humanitria encontra-se inteiramente sob a

determinao da prpria organizao (em seus objectivos, quando agir, quando se

retirar).23

Este um dos principais problemas a ser resolvido no humanitarismo: como

23 Op. cit., pp. 100-101.

37

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

emancip-lo deste panorama meramente sentimentalista para verdadeiramente

institucionaliz-lo em sociedade? Dentro deste quadro, como legitimar as organizaes

humanitrias? Como controlar a qualidade, a eficcia, da sua aco? Como transformar

a actividade humanitria numa resposta a um direito: o direito assistncia

humanitria? Como criar mecanismos de controlo a esta actividade para se garantir o

direito assistncia humanitria?

1.5. O fundamento da assistncia humanitria

Afirma Pierre de Sernaclens que a caridade laide accorde aux individus en

situation de dtresse constitui o fundamento da aco humanitria.24 No sendo, pois,

exclusiva de uma civilizao determinada nem de uma religio especfica25, a caridade ,

na concepo de Senarclens, constitutiva de um vnculo social (lien social) e

expressa-se em comportamentos de qualquer homem comum, tais como a proteco

parental, a piedade e a compaixo para com o prximo. No entender deste autor, este

vnculo social constitui a solidariedade elementar (solidarit lmentaire) entre os

homens para uma sociedade organizada.26

24 Pierre de Senarclens, op cit., p. 29. 25 Como afirmado, o humanitarismo, em seu sentido mais amplo, actividade universal de toda a

humanidade, sendo vrios os exemplos desta prtica por todos os povos. Para o humanitarismo e desenvolvimento do pensamento humanitrio em seu sentido estrito (ou seja, relacionado com o desenvolvimento da limitao da violncia e do sofrimento humano em tempos de guerra) em outras culturas, leiam-se Manor Kumar Sinha, Hinduism and International Humanitarian Law, in RICR, vol. 87, n. 858, June 2005, pp. 285-294; Adamou Ndam Njoya, La conception africaine, in Unesco, Les Dimensions Internationales...op. cit., pp. 21-30; Sumio Adachi, La conception asiatique, in ibidem, pp. 31-38; Gza Herczech, La conception des tats socialistes, in ibidem, pp. 39-46; Hamed Sultan, La conception islamique, in ibidem, pp. 47-60; Jos Mara Ruda, La conception latino-amricaine, in ibidem, pp. 61-80.

26 Pierre de Senarclens, op cit., p. 29. Vemos uma forte influncia do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, Discours sur lOrigine de lIngalit parmi les Hommes, 1754, p. 32 (verso eletrnica da Bibliothque Paul-mile-Boulet-Universit du Qubec Chicoutimi, http://classiques.uqac.ca/classiques/Rousseau_jj/discours_origine_inegalite/discours_inegalit

38

http://classiques.uqac.ca/classiques/Rousseau_jj/discours_origine_inegalite/discours_inegalite.pdf

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1.5.1. A caridade: virtude divina

De acordo com Joo Carlos Loureiro, a caridade virtude teologal segundo o

sentido etimolgico de tradio crist. Nesta acepo, a caridade uma proposta integral do

agir que deve pautar todas as nossas aces e que resulta do amor de Deus em ns que nos move a

amarmos os outros.27 Desta forma, a caridade torna-se o princpio estruturante do agir

humano dentro de uma relao no somente horizontal (entre os homens), mas tambm

vertical do amor trinitrio. Se a caridade virtude teologal, se o agir do homem

estruturado segundo a relao de amor Deus e ao prximo como a ns mesmos, ao

nvel da sociedade, a caridade se exterioriza no domnio da aco scio-caritativa

(diaconia).28

1.5.2. A solidariedade: virtude terrena

Ainda conforme ensinamentos de Loureiro, a solidariedade palavra que no seu

desenvolver histrico veio fazer a subsituio secular do termo caridade. Ela difundiu-se

historicamente afirmando um valor superior ao cristianismo: a humanidade. 29

en gnral?

e.pdf (acesso em 27/02/10 s 11:30hs) em Pierre de Senarclens: Mandeville a bien senti qu'avec toute leur morale les hommes n'eussent jamais t que des monstres, si la nature ne leur et donn la piti l'appui de la raison : mais il n'a pas vu que de cette seule qualit dcoulent toutes les vertus sociales qu'il veut disputer aux hommes. En effet, qu'est-ce que la gnrosit, la clmence, l'humanit, sinon la piti applique aux faibles, aux coupables, ou l'espce humaine

27 Joo Carlos Loureiro, O poltico e o social em Deus Caritas Est: Entre a justia e a caridade, in Estudos (Revista do Centro Acadmico de Democracia Crist), Nova Srie n. 7, 2006, p. 91.

28 Cfr. Joo Carlos Loureiro, ibidem, pp. 93-94. 29 Neste tocante a importante obra de. Pierre Leroux, De lHumanit, de son Principe et de son Avenir,

o se Trouve Expose la Vraie Dfinition de la Religion et o lon Explique le Sens, la Suite et lEnchanement du Mosasme et du Christianisme (disponvel em http://www.ecole-alsacienne.org/CDI/pdf/1400-0107/14090_LERO.pdf), pp. 198-199: Le christianisme est la plus grande religion du pass; mais il y a quelque chose de plus grand que le

39

http://classiques.uqac.ca/classiques/Rousseau_jj/discours_origine_inegalite/discours_inegalite.pdfhttp://www.ecole-alsacienne.org/CDI/pdf/1400-0107/14090_LERO.pdf

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

Diferentemente da caridade, a solidariedade tem na sua origem etimolgica a figura da

obligation in solidum do Direito Romano, palavra que designava uma responsabilidade

solidria dos devedores de uma soma, em que cada um era responsvel pelo todo.30

Segundo outro autor, Jos Fernando de Castro Farias, pode-se buscar no

estoicismo e inclusive, e ao contrrio do afirmado por Loureiro, no prprio cristianismo

a origem da ideia de um esforo de todos para uma obra comum.31 Entretanto, facto

que apenas na modernidade a palavra solidariedade se constituiu como elemento a ser

institucionalizado em sociedade. Inspirada pelas declaraes de direitos do sculo XVIII

e XIX, ela ganha os contornos da fraternidade revolucionria, vindo inclusive a ser

reconhecida na declarao francesa de 1793 como dvida sagrada do Estado e dos

cidados.32 O ideal de fraternidade trouxe, assim, preocupaes referentes questo

t lin

a cidadania, in Boletim da Fac oimbra Editora, 1999, p. 147.

francesa de 1793) consagrava do mesmo modo, blicos.

christianisme: cest lhumanit. (...) La charit, comme ils lont conue et enseigne, na jamais pu arriver fonder une science vritable de la vie, parce quelle narrivait pas relier le moi au non-moi, et quelle subalternisait legosme saint et ncessaire soit lamour des autres hommes, soit plutt encore, comme je le montrerait tout lheure, lamour divin. Aussi nest-ce pas tort que legosme ou le moi sest philosophiquement relev plus tard, por combattre cette charit qui lavait subalternis sans lclairer et le satisfaire. Le monde a abandonn peu peu cette doctrine si belle de la charit; et dix-huit sicle aprs que Jsus avait dit: aimez Dieu de tout votre coeur, et votre prochain comme vous-mme, il sest trouv de philosophe pour dire; aimez-vous vous-mme, et pour fonder la morale sur lgosme e

trt. 30 Joo Carlos Loureiro, ibidem, p. 95. Vide, do mesmo modo, Jos Fernando de Castro Farias, op. cit.,

p.188 e Jos Casalta Nabais, Algumas consideraes sobre a solidariedade e uldade de Direito, vol. LXXV (Separata), C31 Cfr. Fernando de Castro Farias, ibidem. 32 A redaco do art. 21 da Dclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen de 1793 a seguinte:

Article 21. Les secours publics sont une dette sacre. La socit doit la subsistance aux citoyens malheureux, soit en leur procurant du travail, soit en assurant les moyens d'exister ceux qui sont hors d'tat de travailler. Em Portugal, tambm a Carta Constitucional de 29 de Abril de 1826 para o Reino de Portugal, Algarves e seus Domnios, seguindo o exemplo francs, consagrava no art.145, 29, a garantia dos socorros pblicos. Vide, do mesmo modo, a Constituio de 1822 que em seu Ttulo VI (Do Governo Administrativo Econmico), Captulo IV, trata dos estabelecimentos de instruo pblica e de caridade. Da leitura dos artigos 237-240, nota-se, contudo, que se trata da garantia de alguns direitos sociais (educao, sade) pelas Cortes e Governo, do que a constitucionalizao do socorro pblico. No Brasil, a Constituio Poltica do Imprio do Brazil de 1824 (na qual, alis, foi se abeberar a Carta Constitucional portuguesa de 1826, mas ambas influenciadas pela declarao

em seu art. 179, XXI, a garantia dos socorros p

40

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

social, engendrando as polticas pblicas de assistncia social no contexto francs.33

erfeita desta concepo da solidariedade

de fins do sculo XIX e incio do sculo XX.36

Segundo Jos Fernando de Castro, apenas no final do sculo XIX que a

palavra solidariedade se desvinculou, finalmente, de suas razes no estoicismo e na

caridade crist para passar a ser concebida como poltica concreta de construo da

sociedade como um todo.34 Pode-se afirmar, por conseguinte, que no campo jurdico, a

ideia da solidariedade como norma de direito objectivo, redefiniu o papel do Estado e

do Direito perante a sociedade. 35 Surgiu, portanto, e conforme Castro Farias, a

sociedade seguradora como expresso mais p

A teoria jurdica da solidariedade passou, assim, a estar directamente relacionada

com a teoria da justia social (Estado social). De facto, conforme Castro Farias, o direito

de solidariedade se constitui a partir de uma concepo de justia social, na qual o direito referido

sociedade, ao social. 37 Superando a noo da justia clssica e moderna38, a teoria da

justia social nega a abordagem unicamente individualista do direito (moderno) para

33 Cfr. Fernando de Castro Farias, op. cit., p. 190. 34 Segundo o autor, o aparecimento do discurso solidarista est profundamente relacionado com a

crise do Estado Liberal, a partir da segunda metade do sculo XIX. Farias identifica cinco tipos de solidarismo que se desenvolveram: o solidarismo federativo de Proudhon, o solidarismo revolucionrio, o solidarismo social-democrata, o solidarismo reformista e o solidarismo sociolgico de Durkheim. Para mais desenvolvimentos, pp. 196-220.

35 Jos Fernando de Castro Farias, op. cit., pp. 190-191. 36 Ibidem, p. 192. 37 Jos Fernando de Castro Farias, op. cit., p. 58. 38 Vide idem, op. cit., pp. 41-57. De uma maneira muito resumida, no pensamento jurdico clssico,

fruto de uma concepo de natureza csmica da teoria do Direito (um homem inserido no corpo social natural), a ideia de justia associada ao ideal moral da virtude humana; no direito moderno, com base na natureza humana da teoria do Direito (um homem isolado, num espao geomtrico separado das coisas, expulso da natureza como sujeito pensante), a ideia de justia concerne unicamente relao exterior de uma pessoa com outra (individualismo jurdico). Como conclui Castro Farias, a teoria do direito moderno opera com oposies. Ao lado do divrcio entre a ordem natural e a ordem positiva, separa-se tambm completamente a justia e a moral. [p. 55]

41

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

propor uma possvel conciliao do colectivo com o individual, dentro de uma

xperincia jurdica imanente.39

1.6. Da caridade exigncia de justia

xo. O

quadro exige, portanto, que avancemos para alm da caridade e da solidariedade.

e

Senarclens advoga que, apesar da caridade ser o fundamento da aco

humanitria, ela, por si s, no serve como resoluo dos problemas humanitrios.40 De

facto, se a caridade pode servir como fonte motivadora para o agir humanitrio, ela se

circuscreve esfera privada da abordagem sentimentalista do humanitarismo que, numa

escala mundial das crises humanitrias, no pode afrontar com rigor a problemtica. Um

mundo cada vez mais complexo, amecaado por riscos enormes [Ost], no pode

servir-se dessa ingnua boa vontade dos coraes humanos ainda que, como se ver,

esta seja dimenso positiva e a ser valorizada para a institucionalizao do

humantiarismo em sociedade para resolver os problemas humanitrios globais. Ainda

que este sentimentalismo tenha sido originariamente o guio da actividade

humanitria foi ele, inclusive, que impulsionou o acto de bravura de Henry Dunant,

em 1859, junto da Chiesa Maggiore de Castiglione, aquando da Batalha de Solferino41

, na actualidade o humanitarismo depara-se com um cenrio muito mais comple

39 A perspectiva do discurso da justia social de procurar um equilbrio das contradies situando-as dentro de um espao social imanente, onde h uma espcie de balanceamento que permite conceber as solues dos conflitos sem fazer desaparecer as contradies. (...) O sistema social se nutre ento dessa dinmica aberta e conflituosa baseada em equilbrios de mediaes mveis, onde as solues propostas sero sempre provisrias e adaptadas s novas exigncias de equilbrio da crescente complexidade social. Cfr. Jos Fernando de Castro Farias, op. cit., p. 64.

40 Idem, ibidem, pp. 30 e ss. 41 Henry Dunant, Un Souvenir de Solfrino, Comit International de la Croix-Rouge (original de

1862).

42

O Instituto Jurdico da Assistncia Humanitria no Dealbar dos Tempos

1.6.1. O legado de Henry Dunant

de guerra.43 O objectivo de Dunant era evitar atropelos, incapacidade, m-organizao e

inegvel que, j em 1859, at mesmo Henry Dunant se apercebeu de que a

mera boa vontade dos coraes humanos no era suficiente para uma adequada e

eficaz assistncia humanitria. 42 Era necessrio um sistema jurdico, com normas

direccionadas a esta actividade, um sistema de coordenao para uma assistncia eficaz

e que permitisse que a assistncia humanitria chegasse aos feridos em campo de

batalha (direito assistncia humanitria e direito de acesso), e era indispensvel uma

vontade poltica (compromisso dos Estados) para a criao de tal sistema. Dunant deu o

passo inicial: a criao, j em tempos de paz, de organizaes de socorro para os tempos

42 Henry Dunant, um jovem suo, chega a Solferino no dia 24 de Junho de 1859 com o intuito de

receber ajuda de Napoleo III para investimentos na Arglia. Nesse preciso dia ocorre a batalha entre os exrcitos austraco e francs. Dunant presencia os horrores desta batalha e organiza juntamente com a populao local os primeiros socorros aos feridos abandonados em campo de batalha. Da sua indignao, quando retorna a Genebra, escreve o seu Souvernir de Solfrino, cujas propostas so lanadas na Conferncia Internacional de Genebra, em 1863, com a participao de representantes governamentais, culminando na Conveno de Genebra para a Proteco das Vtimas da Guerra de 1864. A idia central de Dunant era a criao de um tratado internacional vinculativo, de carcter universal, que desse fora de lei s suas propostas para se garantir a proteco dos feridos de guerra atravs de um corpo de socorro j criado em tempos de paz e pronto a agir na eventualidade da guerra. Posteriormente, a Conveno de 1864 foi revisada em 1906, 1929, 1949 e 1977, fazendo nascer o corpo jurdico do ius in bello: as Quatro Convenes de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais (I e II) de 1977. Em seu livro Un Souvenir de Solfrino, Dunant acusa o estado miservel de abandono dos feridos e a falta de organizao profissional de um servio sanitrio: Il faut donc, tant bien que mal, organiser un service volontaire, mais cest bien difficile au milieu dun pareil dsordre, qui se complique dune espce de panique, laquelle vient semparer des habitants de Castiglione et a pour rsultat dsastreaux daugmenter prodigieusement la confusion et daggraver, par lmotion quelle leur donna, le misrable tat des blesss. (....) Abstraction faite du point de vue militaire et glorieux, cette bataille de Sofrino tait donc, aux yeux de toute personne neutre et impartiale, un dsastre pour ainsi dire europen. [p. 52 e p. 103]. Ao contrrio da improvisao em Catiglione e da boa vontade da populao local, Dunant pede: Il fallait l, non pas sulement des femmes faibles et ignorantes, mais ct delles, et avec elles, il aurait fallu des hommes de coeur et dexprience, capables, fermes, organiss davance, et en nombre suffisant pour agir aussitt avec ordre et ensemble; alors on et vit la plupart de ces accidents et de ces fivres venant misrablement compliquer des blessures, qui, peu graves au premier moment, devenaient trs pro

, des permissions et de facilits pour conduire leur oeuvre bonne fin. Henry

mptement mortelles.[p. 120] 43 Des Socits de ce genre, une fois constitues, et avec une existence permanente, demeureraient

naturellement inactives en temps de paix, mais elles se trouveraient tout organise