Da guerra

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CARL VON CLAUSEWITZ ________________________________________________ DA GUERRA _____________________________ Tradução para o inglês MICHAEL HOWARD e PETER PARET Tradução do inglês para o português CMG (RRm) Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle Ensaios Introdutórios por PETER PARET, MICHAEL HOWARD e BERNARD BRODIE com um Comentário de BERNARD BRODIE

Transcript of Da guerra

  • 1. CARL VON CLAUSEWITZ ________________________________________________DA GUERRA _____________________________ Traduo para o ingls MICHAEL HOWARD e PETER PARETTraduo do ingls para o portugus CMG (RRm) Luiz Carlos Nascimento e Silva do ValleEnsaios Introdutrios por PETER PARET, MICHAEL HOWARD e BERNARD BRODIE com um Comentrio de BERNARD BRODIE

2. SUMRIO ___________________________________________________________________________________Ensaios IntrodutriosA Gnese de Da Guerra PETER PARET2A Influncia de Clausewitz MICHAEL HOWARD27A Importncia Duradoura de Da Guerra BERNARD BRODIE47Da Guerra Prefcio do Autor63Comentrio do Autor65Prefcio MARIE VON CLAUSEWITZ66Duas Notas do Autor70 LIVRO UM Da Natureza da Guerra1 O que Guerra?752 O Propsito e os Meios na Guerra943 Do Gnio Militar1074 Do Perigo na Guerra1255 Do Esforo Fsico na Guerra1276 A Inteligncia na Guerra1297 A Frico na Guerra1318 Observaes Finais Sobre o Livro Um134LIVRO DOIS Da Teoria da Guerra ii 3. 1 Classificaes da Arte da Guerra1372 Da Teoria da Guerra1453 Arte ou Cincia da Guerra1643 Mtodo e Rotina1674 Anlise Crtica1735 Dos Exemplos Histricos191LIVRO TRS Da Estratgia em Geral 1 Estratgia1992 Elementos da Estratgia2073 Os Fatores Morais2084 Os Principais Elementos Morais2105 As Virtudes Militares do Exrcito2116 Coragem2157 Perseverana2198 Superioridade Numrica2209 Surpresa22510 Dissimulao23011 Concentrao de Foras no Espao23212 Unificao de Foras no Tempo23313 A Reserva Estratgica23914 Economia de Fora24215 O Fator Geomtrico24316 A Interrupo do Combate na Guerra24517 As Caractersticas da Guerra Contempornea25018 Tenso e Inatividade252LIVRO QUATRO O Engajamentoiii 4. 1Introduo2562 A Natureza da Batalha nos Dias de Hoje2573 O Engajamento em Geral2594 O Engajamento em Geral - Continuao2635 A Importncia do Engajamento2706 A Durao do Engajamento2737 A Deciso do Engajamento2758 O Acordo Mtuo para Lutar2829 A Batalha: A sua Deciso28510 A Batalha - Continuao: Os Efeitos da Vitria29111 A Batalha - Continuao: A Utilizao da Batalha29712 Os Meios Estratgicos de Explorar a Vitria30313 A Retirada aps uma Batalha Perdida31314 Operaes Noturnas316LIVRO CINCO Foras Militares 1 Esboo Geral3212 O Exrcito, o Teatro de Operaes, a Campanha3223 Fora Relativa3244 A Relao Existente entre as Armas do Exrcito3275 A Formao de Batalha do Exrcito3366 A Disposio Geral do Exrcito3427 Guardas e Postos Avanados3488 O Emprego Operativo dos Corpos Avanados3569 Acampamentos36110 Marchas36411 Marchas - Continuao37112 Marchas - Concluso37513 Alojamentos37814 Manuteno e Abastecimento384 iv 5. 15 A Base de Operaes39916 As Linhas de Comunicao40417 O Terreno40818 O Domnio das Elevaes412LIVRO SEIS A Defesa 1 O Ataque e a Defesa4172 A Relao Existente na Ttica entre o Ataque e a Defesa4213 A Relao Existente na Estratgia entre o Ataque e a Defesa4244 A Convergncia do Ataque e a Divergncia da Defesa4295 As Caractersticas da Defesa Estratgica4336 O mbito dos Meios de Defesa4357 A Interao entre o Ataque e a Defesa4418 Tipos de Resistncia4439 A Batalha Defensiva45710 Fortificaes46111 Fortificaes - Continuao47112 Posies Defensivas47613 Posies Fortificadas e Acampamentos Entrincheirados 14 Posies nos Flancos482 48915 Guerra Defensiva nas Montanhas49216 Guerra Defensiva nas Montanhas - Continuao50017 Guerra Defensiva nas Montanhas - Concluso50718 A Defesa de Rios e Riachos51219 A Defesa de Rios e Riachos - Continuao52720 A. A Defesa de Pntanos529B. Terrenos Alagados53121 A Defesa de Florestas53522 A Linha de Defesa53723 A Chave para o Pas541 v 6. 24 Operaes contra um Flanco54525 A Retirada para o Interior do Pas55626 O povo em Armas56827 A Defesa de um Teatro de Operaes57528 A Defesa de um Teatro de Operaes - Continuao57929 A Defesa de um Teatro de Operaes Resistncia por Etapas59330 A Defesa de um Teatro de Operaes Quando o Propsito No For Obter uma Deciso596LIVRO SETE O Ataque 1 O Ataque em Relao Defesa6212 A Natureza do Ataque Estratgico6223 O Propsito do Ataque Estratgico6254 A Fora Decrescente do Ataque6265 O Ponto Culminante do Ataque6276 A Destruio das Foras do Inimigo6287 A Batalha Ofensiva6298 As Travessias de Rios6319 Ataque a Posies Defensivas63410 Ataque a Acampamentos Entrincheirados63511 Ataque a uma Regio Montanhosa63712 Ataque a Linhas de Defesa64013 Manobras64114 Ataque a Pntanos, reas Alagadas e Florestas64415 Ataque a um Teatro de Guerra: Procurando Obter uma Deciso64616 Ataque a um Teatro de Guerra: No Procurando Obter uma Deciso65017 Ataque a Fortificaes65418 Ataque a Comboios65919 Ataque a um Inimigo em Alojamentos66220 Diverses668 vi 7. 21 Invaso67122 O Ponto Culminante da Vitria672LIVRO OITO Planos de Guerra 1 Introduo6832 Guerra Absoluta e Guerra Real6863 A. A Interdependncia dos Elementos da Guerra B. A Dimenso do Propsito Militar e do Esforo a ser Realizado690 6934 Uma Definio mais Precisa do Propsito Militar: A Derrota do Inimigo7055 Uma Definio mais Precisa do Propsito Militar - Continuao: Propsitos Limitados7136 A. O Efeito do Propsito Poltico sobre o Propsito Militar B. A Guerra um Instrumento da Poltica715 7187 O Propsito Limitado: A Guerra Ofensiva7258 O Propsito Limitado: A Guerra Defensiva7289 O Plano de uma Guerra Destinada a Levar Destruio Total do Inimigo733UM COMENTRIO Um Guia para a Leitura de Da Guerra BERNARD BRODIE760ndice838NOTA DO EDITOR ___________________________________________________________________________________O leitor poder se perguntar porque preciso fazer uma outra traduo para o ingls de Vom Kriege, quando j existem duas. A primeira, feita pelo Coronel J. J. Graham em 1874, foi republicada em Londres em 1909. A segunda, pelo Professor O. J. Matthijs Jolles, surgiu em Nova York em 1943. vii 8. Mas a traduo de Graham, fora o seu estilo ultrapassado, contm um grande nmero de imprecises e de trechos obscuros e, embora a traduo de Jolles seja mais precisa, tanto a sua verso como a de Graham basearam-se em textos alemes que continham importantes alteraes em relao primeira edio publicada em 1832. O crescente interesse verificado nos ltimos anos pelos escritos tericos, polticos e histricos de Clausewitz indicou que havia chegado o momento de fazer uma traduo totalmente nova. Baseamos o nosso trabalho na primeira edio de 1832, complementada pelo texto alemo comentado, publicado pelo Professor Werner Hahlweg em 1952, exceto onde os trechos obscuros existentes na edio original - que o prprio Clausewitz nunca revisou - fez com que parecesse recomendvel que ela recebesse correes posteriores. Em todos os aspectos, menos um, seguimos a disposio original do texto. A primeira edio continha quatro notas escritas por Clausewitz sobre as suas teorias, datadas de diversos perodos entre 1816 e 1830, como introdues ao prprio Da Guerra - uma prtica adotada pela maioria das edies alems e estrangeiras posteriores. Abandonamos a disposio um tanto desorganizada na qual aquelas notas sempre surgiram e, em vez dela, as editamos na seqncia em que acreditamos que tenham sido escritas. L-las de uma maneira seqencial ajuda a revelar como Da Guerra tomou forma na mente de Clausewitz e indica como o livro poderia ser mais aperfeioado se ele tivesse vivido para termin-lo. Inclumos tambm o Prefcio de Marie von Clausewitz primeira edio das obras pstumas de Clausewitz, que acrescenta informaes sobre a gnese de Da Guerra e sobre a maneira pela qual o manuscrito foi preparado para ser publicado. Uma nota curta que ela introduziu no incio do terceiro volume das Obras de Clausewitz, antecedendo imediatamente o Livro Sete de Da Guerra, foi suprimida, uma vez que diz respeito principalmente a outros escritos histricos e tericos, e no a Da Guerra. Tentamos apresentar as idias de Clausewitz da maneira mais precisa possvel, permanecendo ao mesmo tempo o mais prximo do seu estilo e do seu vocabulrio que o emprego do idioma ingls moderno poderia permitir. Mas no hesitamos em traduzir o mesmo termo de maneiras diferentes, se o contexto parecesse exigir isto. Por exemplo, traduzimos Moral e moralische Kraft de maneira diversa, como moral e como psicolgico. O prprio Clausewitz estava longe de ser constante em sua terminologia, como poderamos esperar de um escritor que estava menos preocupado em criar um sistema ou uma doutrina formal do que em obter entendimento e clareza de expresso. Algumas vezes ele escreve Geisteskrafte, Seelenkrafte, e at mesmo Psychologie, em vez de moralische Kraft ou viii 9. moralische Grossen, e uma flexibilidade semelhante caracteriza o seu emprego de termos como meios, propsito, engajamento, batalha, etc. Como ele escreve no Livro Cinco, Captulo Sete: Uma rigorosa fidelidade aos termos resulta claramente em pouco mais do que diferenas pedantes. A tarefa de traduo foi realizada inicialmente pelo Sr. Angus Malcolm, anteriormente pertencente ao Ministrio das Relaes Exteriores, que, para profundo pesar dos seus inmeros amigos, faleceu enquanto ainda estava envolvido no projeto. Ele j havia realizado, entretanto, o trabalho preliminar, extremamente valioso, pelo que lhe somos muito gratos. Gostaramos de agradecer Sra. Elsbeth Lewin, editora de World Politics, ao Professor Bernard Brodie, da Universidade da Califrnia, em Los Angeles, por verificar o manuscrito e nos ajudar a solucionar diversas ambigidades, e aos Srs. Herbert S. Bailey Jr. e Lewis Bateman da Grfica da Universidade de Princeton, pelo cuidado que tiveram ao preparar o manuscrito para publicao. Finalmente, um prazer expressar a nossa gratido ao Professor Klaus Knorr, da Universidade de Princeton, pois sem o seu interesse e estmulo esta tarefa nunca poderia ter sido realizada. NOTA PARA A EDIO DE 1984 Corrigimos alguns erros e tentamos retirar uma poucas infelicidades cometidas na nossa traduo do texto de Clausewitz. Como no passado, entretanto, acreditamos que este trabalho exige tradutores que reunam um profundo respeito pelo autor e a determinao de procurar encontrar termos equivalentes, sempre que uma correspondncia demasiado rigorosa com o original puder levar a uma artificialidade. Nos ensaios introdutrios, foram feitas pequenas alteraes em A Gnese de Da Guerra e dois pargrafos sobre a interpretao Marxista de Clausewitz foram acrescentados a A Influncia de Clausewitz. A nica outra alterao em relao nossa edio original a incluso de um ndice, que a Sra. Rosalie West compilou de acordo com o modelo do ndice das edies alems de Da Guerra, de 1952, 1972 e 1980, do Professor Werner Hahlweg.MICHAEL HOWARD Universidade de OxfordPETER PARET Universidade de Stanfordix 10. x 11. ENSAIOS INTRODUTRIOS _______________________________________________________________________ Por Peter Paret, Michael Howard e Bernard BrodiePETER PARET 12. _______________________________________________________________________ A Gnese de Da Guerra Apesar da sua abrangncia, da sua abordagem sistemtica e do seu estilo preciso, Da Guerra no uma obra acabada. O fato de que nunca foi concluda de modo a satisfazer o seu autor em grande parte explicado pela sua maneira de pensar e de escrever. Clausewitz tinha vinte e poucos anos quando rabiscou os seus primeiros pensamentos sobre a natureza dos processos militares e sobre o lugar da guerra na vida social e poltica. Uma acentuada percepo da realidade, ctico com relao s premissas e teorias contemporneas e um fascnio igualmente no doutrinrio pelo passado, marcaram aquelas observaes e mximas e deram a elas uma dimenso de coerncia interna, mas no seria inadequado considerar os seus escritos anteriores a 1806 como sendo essencialmente idias isoladas blocos a serem utilizados numa estrutura que ainda no havia sido projetada. A presena de algumas das suas primeiras idias em Da Guerra indica a maneira lgica e coerente com que suas idias se desenvolveram, embora na obra j amadurecida elas apaream como componentes de um processo dialtico que Clausewitz havia dominado ao longo de duas dcadas e adaptado aos seus fins. Um exemplo disto o seu conceito do papel que o gnio desempenha na guerra, que est prximo da origem de todo o seu trabalho terico. Remanescentes de um tipo um tanto diferente so a sua definio de estratgia e de ttica, que ele formulou pela primeira vez aos vinte e quatro anos de idade, ou a comparao caracteristicamente no romntica da guerra s transaes comerciais, feita naquela mesma poca. A maior parte dos seus primeiros pensamentos, entretanto, se expandiu e adquiriu novas facetas nos anos transcorridos entre a derrota infligida Prssia por Napoleo e a campanha russa. Clausewitz era um membro da associao informal de civis de mentalidade reformista e de soldados que tentavam naquele momento, com algum xito, modernizar as instituies prussianas, e as suas mltiplas atividades como oficial de Estado-Maior, administrador e professor estimularam ainda mais os seus interesses intelectuais e a sua criatividade. Diversos trechos de memorandos, palestras e ensaios escritos durante o perodo das reformas reaparecem, claramente modificados, em Da Guerra. Aps 1815, quando os seus manuscritos sobre poltica, histria, filosofia, estratgia e ttica chegavam a milhares de pginas, Clausewitz comeou a trabalhar numa coletnea de ensaios analisando diversos aspectos da guerra, que gradualmente se fundiram numa teoria abrangente que procurava definir os elementos universais e permanentes existentes na guerra, com base numa 2 13. interpretao realista do presente e do passado. Ao longo de uma dcada, ele escreveu seis das oito partes planejadas e esboou as outras duas. Em 1827, entretanto, ele havia elaborado uma nova hiptese sobre o que ele chamou de dupla natureza da guerra, cuja investigao sistemtica exigiu uma ampla reviso de todo o manuscrito. Ele morreu antes que pudesse rescrever mais do que os primeiros captulos do Livro Um.1 Da Guerra apresenta portanto os pensamentos do seu autor em diversos estgios de concluso. Vo desde a excelente seqncia inicial de proposies que se so reveladas de uma maneira lgica, at as magnficas, mas algumas vezes parciais ou contraditrias, anlises dos Livros de Dois a Seis e aos captulos no estilo de ensaios dos dois ltimos livros, que indicam com pinceladas brilhantes o que poderia ter contido uma verso definitiva. Nada pode tomar o lugar destas verses no escritas, mas devemos nos lembrar de que a deciso de Clausewitz, tomada em 1827, de rever o seu manuscrito, no significou uma rejeio das teorias anteriores - ele s pretendia ampli-las e aperfeio-las. medida em que lemos o texto atual de Da Guerra, podemos pelo menos nos aproximar da inteno de Clausewitz, mantendo claramente em mente as suas hipteses, intimamente relacionadas, da dupla natureza da guerra e do seu carter poltico. Ser proveitoso, ao fim desta exposio, voltar s suas hipteses definitivas e apresentar em linhas gerais os seus aspectos mais importantes, principalmente porque ele nunca desenvolveu plenamente as suas implicaes na teoria. O poder criativo dos mtodos e das idias de Clausewitz indica que, apesar da irregularidade da sua execuo, Da Guerra oferece uma teoria de conflitos essencialmente coerente. Qualquer pessoa que esteja disposta a penetrar em sua maneira de argumentar compreender os seus pensamentos sobre os ___________ 1Uma grande parte da literatura mais antiga sobre as diferentes fases da elaborao de Da Guerra baseia-se em fontes inadequadas e pode ser desprezada. O pequeno livro Clausewitz (Berlim, 1905), escrito por R. v. Caemmerer, ainda tem valor nos dias de hoje, bem como o sugestivo artigo escrito por H. Rosinski, Die Entwicklung von Clausewitz Werk Vom Kriege im Lichte seiner Vorrenden und Nachrichten, Historische Zeitschrift, 151 (1935), pag. 278 a 293, que foi aprimorado em aspectos importantes atravs da resposta de E. Kessel, Zur Entstehungsgeschichte von Clausewitz Werk vom Kriege, Historische Zeitschrift, 152 (1935), pag. 97 a 100. As reflexes de W. M. Schering, em sua antologia dos escritos de Clausewitz, Geist und Tat (Stuttgart, 1941), esto cheias de contradies e de erros concretos, mas como Schering conhecia bem os rascunhos no publicados de Clausewitz e parece ter sido o ltimo intelectual a trabalhar neles antes que desaparecessem no fim da Segunda Guerra Mundial, as suas interpretaes no podem ser ignoradas. Num ensaio inteligente, Clausewitz, publicado em Formuladores da Estratgia Moderna por E. M. Earle (Princeton, 1943), pag. 93 a 113, H. Rothfels escreve (pag. 108, n. 65): Clausewitz fez a reviso do Livro Oito e de pelo menos algumas partes do Livro Um (provavelmente dos Captulos de Um a Trs) e do Livro Dois (certamente do Captulo Dois). Mas ele acrescenta que Clausewitz s considerava concludo o Captulo Um do Livro Um. Creio que Rothfels superestimou consideravelmente a amplitude das revises de Clausewitz aps 1827. Ele no apresenta qualquer motivo para as suas opinies, a no ser os indcios inerentes a elas, mas o trecho do Livro Oito que ele cita como uma prova de uma reviso posterior pode ser encontrado de forma quase idntica no manuscrito de Clausewitz sobre estratgia, de 1804. A avaliao mais bem informada de toda a questo, incluindo as descobertas de um sculo de cultura, est contida no brilhante Zur Genesis der modernen Kriegslehre Wehrwissenschaftliche Rundschau, 3 (1953), n 9, pag. 405 a 423, de E. Kessel.3 14. aspectos permanentes da guerra. Mas a nossa leitura de Da Guerra s pode ser beneficiada por um conhecimento da sua gnese e do seu contexto intelectual. Que experincias polticas e militares influenciaram o seu autor? Quais foram as premissas e as teorias contra as quais ele reagiu? Quais eram, em sua opinio, os requisitos metodolgicos de uma anlise bem fundada? At mesmo um rpido exame destas questes lanar uma luz sobre a evoluo das idias de Clausewitz e sobre as formas que elas assumiram nas diversas fases de Da Guerra.2Clausewitz, o filho de um Tenente da reserva que exercia uma funo secundria no servio de fazenda prussiano, deparou-se pela primeira vez com a guerra em 1793, como um soldado de doze anos de idade. No ano anterior, a Assemblia Legislativa francesa havia declarado guerra ustria, com quem a Prssia tinha concludo recentemente uma aliana defensiva. A ao francesa foi causada menos por consideraes relativas aos interesses nacionais do que pela poltica interna, mas iniciou um conflito de 23 anos entre a Frana revolucionria, e posteriormente imperial, e o resto da Europa. Com exceo da invaso inicial do Duque de Brunswick, que se deteve em Valmy, os prussianos saram-se razoavelmente bem numa guerra em que nunca envolveram mais do que uma parte dos seus recursos militares. Eles derrotaram repetidamente os franceses na Alscia e no Saar e fizeram milhares de prisioneiros. Em 1795, quando terminou a luta, controlavam a linha do Reno. Mas estas realizaes no trouxeram qualquer retorno poltico. Como se poderia esperar, a guerra, com as suas aes vigorosas, derramamento de sangue e um resultado nada grandioso, causou uma forte impresso no jovem Clausewitz. Ele mesmo escreveu sobre o impacto causado por ela em suas emoes e no seu esprito. Nos anos seguintes, enquanto servia numa guarnio provinciana, extraiu algumas concluses experimentais daquelas experincias anteriores, trs das quais em especial teriam uma influncia duradoura: No existe um padro de excelncia nico na guerra. A retrica e as polticas da Repblica Francesa, que proclamavam a chegada de uma nova era, de modo algum subjugaram os exrcitos do ancien rgime. Os mercenrios e os camponeses compulsoriamente alistados, comandados por oficiais cuja eficcia ainda se apoiava tanto na presuno aristocrtica como no conhecimento profissional, ________________ 2 Qualquer interpretao da gnese do pensamento de Clausewitz sobre a guerra no deve basear-se apenas nos seus trabalhos sobre a teoria e a histria militares, mas tambm em seus extensos escritos sobre assuntos tais como educao, poltica, teoria da arte, e na sua correspondncia. Anlises especialmente valiosas de aspectos da sua ampla evoluo intelectual esto contidas em Carl von Clausewitz: Politik und Krieg (Berlim, 1920), de H. Rothfel, e na introduo de E. Kessel Strategie aus dem Jahr 1804, de Clausewitz (Hamburgo, 1937). As fontes importantes e secundrias so analisadas em detalhes em meu livro Clausewitz e o Estado (Nova York, 1976), no qual se baseia uma grande parte do que se segue.4 15. revelaram-se adversrios altura da leve en masse. Por outro lado, a rigorosa disciplina prussiana no conseguiu eliminar os exrcitos revolucionrios. medida em que a Repblica adquiria estabilidade e experincia, tinha muito que ensinar ao seus oponentes, cuja capacidade de aprender e de reagir eficazmente permanecia em dvida. Estes acontecimentos e as suas primeiras leituras de histria deram a entender a Clausewitz que nenhum sistema estava to certo a ponto de excluir todos os outros. As instituies militares e a maneira pela qual empregavam a violncia dependiam das condies econmicas, sociais e polticas dos seus respectivos Estados. Alm disto, as estruturas polticas, como as guerras, no podiam ser medidas atravs de um nico padro. Os Estados eram moldados pelo seu passado especfico e pelas circunstncias atuais. Formas muito diferentes tinham validade e todas estavam sujeitas a alteraes constantes. Associada a esta viso individualizadora e anti-nacionalista da histria e das instituies sociais e militares havia uma segunda concluso, que colocava o jovem oficial em oposio opinio dominante na Prssia e, na realidade, na Europa. Ele achava que era um erro acreditar que fosse possvel conhecer perfeitamente a guerra atravs da observao deste ou daquele conjunto de regras. A diversidade e as constantes alteraes sofridas pela guerra nunca poderiam ser totalmente percebidas por um sistema. Qualquer simplificao dogmtica - que a vitria dependia do controle de pontos chave, por exemplo, ou do rompimento das linhas de comunicao do oponente - s adulteravam a realidade. Possivelmente Clausewitz j suspeitava da convico, mantida pela maioria dos tericos militares daquela poca, de que o campo de ao do acaso na guerra poderia e deveria ser reduzido a um mnimo atravs do emprego da doutrina operacional e ttica correta. Para algum que desejava veementemente compreender a guerra de uma maneira sistemtica e objetivamente comprovvel, era especialmente difcil aceitar o poder do acaso, mas quando ele tinha vinte e poucos anos, o seu realismo e a lgica das suas opinies sobre as mudanas histricas o levaram ao ponto de considerar o acaso no apenas como inevitvel, mas at mesmo como um elemento incontestvel na guerra. Finalmente, as campanhas de 1793 e 1794 colocaram Clausewitz no caminho de reconhecer a guerra como um fenmeno poltico. As guerras, como todos sabem, eram travadas para que fosse atingido um propsito que era poltico, ou que pelo menos tinha sempre consequncias polticas. As implicaes que vinham a seguir no eram to rapidamente evidentes. Se a guerra destinava-se a atingir um propsito poltico, tudo que entrava na guerra - os preparativos sociais e econmicos, o planejamento estratgico, a conduo das operaes, o emprego da violncia em todos os nveis deveria ser determinado por aquele propsito, ou, pelo menos, estar de acordo com ele. Embora os 5 16. soldados tivessem que adquirir qualificaes especiais e atuar sob alguns aspectos num mundo parte, seria uma negao da realidade permitir que realizassem o seu trabalho sangrento sem serem perturbados, at que um armistcio trouxesse o seu empregador poltico de volta equao. Assim como a guerra e as suas instituies refletem o seu ambiente social, todo aspecto do combate deve ser banhado pela sua motivao poltica, seja ela intensa ou moderada. A relao adequada entre a poltica e a guerra ocupou Clausewitz durante toda a sua vida, mas at mesmo os seus primeiros manuscritos e cartas revelam a sua percepo da interao existente entre elas. A facilidade com que este vnculo - sempre reconhecido em tese - pode ser esquecido em determinados casos, e a insistncia de Clausewitz de que ele nunca deveria ser ignorado, so ilustradas pela sua educada rejeio, j a caminho do fim da sua vida, de um problema estratgico apresentado pelo Chefe do Estado-Maior Geral Prussiano, no qual todos os detalhes militares dos lados opostos eram apresentados detalhadamente, mas no era feita qualquer meno ao seu propsito poltico. A um amigo que lhe havia enviado o problema para que apresentasse os seus comentrios, Clausewitz respondeu que no era possvel esboar um plano de operaes sensato sem indicar a situao poltica dos Estados envolvidos e a relao existente entre um o outro: A guerra no um fenmeno independente, mas a continuao da poltica atravs de meios diferentes. Consequentemente, as principais linhas de todo plano estratgico de vulto so em grande parte polticas em sua natureza, e o seu carter poltico aumenta medida em que o plano se aplica a toda a campanha e a todo o Estado. Um plano de guerra decorre diretamente da situao poltica dos dois Estados em guerra, bem como das suas relaes com terceiras naes. Um plano de campanha tem origem no plano de guerra e frequentemente - se s houver um teatro de operaes - pode at mesmo ser idntico a ele. Mas o elemento poltico penetra at mesmo nos componentes isolados de uma campanha. Raramente deixar de influenciar os principais episdios da guerra, como uma batalha, etc. De acordo com este ponto de vista, no poder ser feita uma avaliao puramente militar de uma importante questo estratgica, nem poder existir um esquema puramente militar para resolv-la.3 Na segunda metade da dcada de 1790, o jovem Clausewitz s havia dado os primeiros passos da sua jornada intelectual que iria lev-lo a esta concluso, mas, como dei a entender anteriormente, desde o incio ele viajou atravs de uma estrada em linha reta, com poucas tangentes ou interrupes. Os cinco anos em que passou desempenhando uma funo subalterna na pequena cidade de Neuruppin tm sido __________________6 17. 3 C. v. Clausewitz para C. v. Roeder, 22 de Dezembro de 1827, em Zwei Briefe des Generals von Clausewitz, edio especial do Militarwissenschafliche Rundschau, 2 (Maro de 1937), pag. 6. Existe uma edio em ingls.normalmente menosprezados, sendo considerados um perodo de estagnao, mas parece que os bigrafos tm interpretado de uma maneira muito literal o comentrio caracteristicamente crtico e autocrtico sobre aquele perodo, que ele fez anos depois. Na realidade, a sua situao no deixava de apresentar algumas vantagens. Longe de estar servindo numa unidade provinciana no ilustre, ele pertencia a um regimento que tinha um membro da famlia real, o Prncipe Ferdinando, como Coronel honorrio e patrono. Perto da cidade estava a residncia de um outro Hohenzolern, o Prncipe Henry, o irmo mais talentoso de Frederico o Grande, cuja biblioteca, pera e teatro estavam abertos aos oficiais. O mais importante era que o regimento era conhecido em todo o Exrcito pelas suas polticas educacionais inovadoras, financiadas em grande parte pelos prprios oficiais. Na sua volta da Frana, o regimento havia organizado uma escola primria e profissional para os filhos dos soldados, e uma escola mais avanada para os seus Cadetes e Tenentes, que admitia tambm os filhos da pequena nobreza local. provvel, embora no seja certo, que como outros Tenentes, Clausewitz dava aulas nesta ltima instituio, e no pode haver dvida de que o seu envolvimento num programa educacional srio aprofundou o interesse que j sentia pela educao. Aos quinze anos de idade tinha ficado cativado pela idia de que a aquisio de conhecimento podia levar perfeio humana. Em pouco tempo, a meta de melhorar a sociedade reforou a de auto-aperfeioamento, e ao seu desejo de aprender juntou-se a preocupao com a metodologia da educao. As maneiras pelas quais idias abstratas poderiam refletir precisamente a realidade e transmitir essa realidade, a maneira pela qual os homens poderiam ser ensinados a compreender a verdade e o propsito mais elevado da educao que, sustentava ele, no consistia na transmisso de conhecimentos tcnicos, mas no desenvolvimento de uma capacidade independente de julgar - tudo isto passou a constituir as principais reflexes de Clausewitz em seu trabalho terico. Em 1801, Clausewitz foi admitido na Nova Escola de Guerra que Scharnhorst, recentemente transferido das suas funes em Hanver, havia organizado em Berlim. Clausewitz formou-se como o primeiro da turma em 1803 e foi designado assistente de um jovem prncipe, filho do seu comandante anterior, o Prncipe Ferdinando, uma designao que permitiu que ele permanecesse na capital, em estreito contato com o seu mestre Scharnhorst. O impacto que Scharnhorst exerceu sobre a vida de Clausewitz e sobre a evoluo das suas idias no pode ser suficientemente ressaltado. Scharnhorst era um soldado excepcionalmente vigoroso e ousado, bem como um intelectual e um poltico talentoso uma combinao harmoniosa de qualidades aparentemente opostas, que o seu discpulo nunca 7 18. igualaria. Este no o lugar para analisar as suas opinies sobre estratgia, sobre o recrutamento e sobre a organizao do Comando e do Estado-Maior, que constituam uma harmonizao pragmtica do antigo e do novo. O importante para os nossos fins a independncia intelectual com que ele tratava as questes militares fundamentais da sua poca, bem como a sua simpatia pelos propsitos da educao humanista, e a sua convico de que o estudo da histria deveria estar no centro de qualquer estudo avanado de guerra. As opinies experimentais de Clausewitz no campo da teoria militar e da educao foram comprovadas e orientadas ainda mais por Scharnhorst, que aprofundou tambm a percepo de Clausewitz das foras sociais que determinavam o estilo militar e as energias dos Estados. Scharnhorst, filho de um campons livre que havia ascendido graduao de SargentoAjudante de Esquadro tinha tido uma carreira difcil no Exrcito de Hanver, onde havia sido repetidamente preterido em favor de colegas nobres e bem relacionados. A experincia no o transformou num democrata, nem - tendo obtido xito profissional, inclusive um ttulo de nobreza sucumbiu fcil aceitao dos privilgios. O que importava para ele no era a estrutura especfica da sociedade, nem a forma assumida pelas suas instituies, mas o esprito que lhes dava vida. Para dar um exemplo especfico, na escola para crianas do regimento em Neuruppin, Clausewitz havia testemunhado um pouco da preocupao humanitria e paternalista com os pobres, que era uma caracterstica marcante do recente Iluminismo na Prssia. Scharnhorst ensinou-lhe que aquilo no era adequado, nem para o indivduo nem para o Estado. Se a Revoluo Francesa havia provado alguma coisa, foi que os Estados que desejassem preservar a sua independncia deveriam tornar-se mais eficientes em controlar as energias das suas populaes. Em todas as sociedades existiram as elites, e elas se justificavam, contanto que fortalecessem a comunidade, permanecessem abertas aos talentos e recompensassem o mrito. Mas nada poderia justificar a continuao dos privilgios que protegiam a mediocridade enquanto privavam o Estado da capacidade e do entusiasmo do homem comum. Foi esta atitude que alguns anos mais tarde viria a determinar a direo do movimento reformador prussiano talvez menos nas questes civis do que no lado militar, sob a liderana de Scharnhorst e dos seus colegas mais ntimos. Na gnese das idias de Clausewitz, a viso essencialmente no ideolgica das medidas sociais e polticas, que ele havia aprendido em parte com Scharnhorst e que j expressara em 1804 e em 1805, claramente se equipara sua abordagem no doutrinria da guerra. Os polticos e os soldados devem repelir a tradio, a convenincia e qualquer influncia que interfira na consecuo do propsito principal. Semelhantemente, o terico, querendo compreender a natureza do Estado e da8 19. guerra, nunca deve permitir que os seus pensamentos se afastem muito do elemento mais importante de cada um deles - o poder na poltica e a violncia na guerra. A tarefa mais importante com que se defrontavam os soldados prussianos nos primeiros anos do Sculo XIX era adequar-se intelectual e institucionalmente nova maneira francesa de travar guerras. Em uma dcada, os recursos que a Frana mobilizou para a guerra haviam chegado a nveis sem precedentes. O nmero de soldados que estava agora disponvel para os seus Generais tornava possvel a realizao de campanhas que envolviam riscos maiores, deu origem mais frequentemente a batalhas, permitiu que se espalhassem por uma parte maior do territrio e que se procurasse atingir propsitos polticos de uma magnitude maior do que teria sido possvel para os exrcitos do ancien rgime. Esta nova tcnica foi empregada por Napoleo com um brilhantismo que chocou tanto quanto a sua crueldade. Para a maioria dos alemes, era bastante difcil compreender o seu sistema, que reunia os dons de um indivduo excepcional e as realizaes sociais, administrativas e psicolgicas da Revoluo, que eram necessariamente estranhas para eles. Para os tericos de qualquer nacionalidade era ainda mais difcil reconhecer a estratgia e a ttica de Napoleo como sendo um fenmeno histrico, inevitavelmente sujeito a mudanas, e no um fenmeno definitivo na guerra, um padro de excelncia permanente para as guerras passadas, presentes e futuras. A literatura militar europia comentava, com uma considervel percepo, os elementos isolados deste sistema, mas, como Clausewitz percebera anteriormente, fracassava em suas tentativas de realizar uma anlise abrangente. O melhor trabalho realizado nesta rea foi feito pelo terico prussiano Heirich von Bulow e pelo Oficial de Estado-Maior suo francs Antoine Jomini, em cujos escritos Clausewitz aperfeioou os seus conhecimentos tericos nos anos que antecederam e que vieram logo aps a derrocada prussiana de 1806. Bulow havia percebido o valor de evolues tticas recentes, como a emboscada com grande nmero de soldados, a rapidez de movimentos e o tiro de pontaria. Ao mesmo tempo, ele desprezou a eficcia do combate na nova era, considerou-o um recurso de desespero e, em vez disto, defendeu um sistema estratgico de pontos de dominao e de ngulos de aproximao, cujos padres geomtricos combinavam de uma maneira fantstica com os seus cantos em louvor do combatente natural e livre de grilhes. Em seu primeiro trabalho publicado, um longo ensaio sobre Bulow, Clausewitz reconheceu a utilidade de uma parte da sua terminologia, do mesmo modo que iria encontrar mritos em alguns dos conceitos de Jomini, mas salientou que o seu mtodo de anlise era equivocado e que as suas concluses no eram realistas. Em sua nsia de racionalizar a guerra, de 9 20. transform-la numa cincia e torn-la previsvel, Bulow atribuiu papis preponderantes s caractersticas geogrficas e s medidas adequadas com relao ao sistema de abastecimento, enquanto ignorava significativamente os efeitos fsicos e psicolgicos que poderiam resultar de movimentos inesperados do oponente, da violncia e do fortuito.A estratgia, objetava Clausewitz, nocompreende apenas as foras que so suscetveis anlise matemtica. No, o reino da arte militar estende-se at onde, atravs da psicologia, a nossa inteligncia descobre um recurso que pode ser til ao soldado.4 Jomini aproximou-se da realidade contempornea, mas errou, pensava Clausewitz, ao considerar uma parte da guerra - grandes exrcitos procurando obter uma vitria decisiva - como sendo toda a guerra. A sua afirmativa de que havia extrado os princpios gerais da guerra a partir das operaes de Frederico, Clausewitz repudiava como sendo absurda. Ele escreveu em 1808 que os princpios de Jomini perderiam a sua validade absoluta se pudesse ser demonstrado que as geraes anteriores possuam boas razes para ignor-los. Csar ou Eugnio de Savia, agindo de acordo com as realidades sociais, tecnolgicas e polticas das suas pocas, no foram inferiores a Napoleo porque no lutaram de uma maneira que a Revoluo Francesa havia tornado possvel. E assim como o passado s pode ser compreendido em seus prprios termos, os homens tambm devem ser interpretados como indivduos, no como abstraes. Jomini havia imposto de maneira no realista um padro de comportamento racional a homens com personalidades diferentes, como Frederico e Napoleo e, alm disto, ignorou as diferenas existentes em suas experincias, s quais cada um naturalmente reagiu sua maneira.5 Se o presente no proporcionou o padro ideal em relao ao qual as guerras do passado pudessem ser avaliadas, Clausewitz afirmava com igual insistncia que a guerra Napolenica no poderia estabelecer os padres para o futuro.6 O que significava isto para a teoria? Para Clausewitz, a resposta era bvia: A teoria de qualquer atividade, mesmo se tiver em vista um desempenho eficaz em vez de uma compreenso abrangente, deve revelar os elementos essenciais e permanentes daquela atividade e distingu-los das suas caractersticas temporrias. A violncia e o impacto poltico eram duas das caractersticas permanentes da guerra. Outra era a livre atividade da inteligncia, da perspiccia e das emoes humanas. Estas eram as foras que dominavam o caos da guerra, no aqueles dispositivos esquemticos, como a base de operaes de Bulow, ou as operaes de Jomini nas linhas interiores. No havia nada de novo em ressaltar a importncia dos fatores psicolgicos na guerra. Mas at 10 21. ____________ [C. v. Clausewitz], Bemerkungen uber die reine und angewandte Strategie des Herrn von Bulow, Neue Bellona, 9 (1805), n 3, pag. 276. 5 Em seu acrscimo ao seu ensaio Dos Princpios Tericos da Estratgia, um acrscimo posterior ao seu manuscrito sobre a estratgia de 1804, publicado em Strategie aus dem Jahr 1804, pag. 71 a 73. 6 Veja por exemplo o seu ensaio Da Situao da Teoria Militar, escrito quando tinha vinte e poucos anos de idade, que comea com a declarao de que, ao contrrio do que acreditam alguns escritores, a arte da guerra ainda no atingiu a perfeio: Qualquer disciplina cientfica - a menos que como a lgica seja completa em si mesma - deve sempre ser capaz de se aperfeioar, de sofrer acrscimos constantes. De qualquer maneira, no fcil de modo algum estabelecer limites ao intelecto humano. Geist unt Tat, pag. 52. 4mesmo aqueles escritores que atribuam uma predominncia s emoes tinham pouco de concreto a dizer sobre elas. As consideraes relativas coragem, ao medo e ao moral s aparecem na margem das obras de Maurice de Saxe ou de Henry Lloyd. O jovem Clausewitz, ao contrrio, colocou o fator psicolgico no centro das suas reflexes tericas. Mas como a psicologia ainda era uma disciplina rudimentar, que lhe oferecia apenas algumas das ferramentas necessrias para a interpretao e a classificao das idias, ele fez isto de uma maneira que os leitores modernos podem achar confusa: incluiu uma grande parte das suas interpretaes das caractersticas emocionais e morais sob o conceito de gnio. essencial compreender que Clausewitz considerava gnio no apenas a originalidade e a criatividade elevadas ao seu maior grau, mas tambm, como escreveu em Da Guerra, os dons da mente e do temperamento em geral. Os gnios serviam como o seu recurso analtico predileto de conceituar as diversas aptides e sentimentos que afetavam o comportamento dos homens mais comuns, bem como daqueles excepcionais. Mesmo nos seus primeiros escritos, Clausewitz no teve dificuldade para revelar a inadequabilidade dos sistemas normativos quando defrontados com os recursos infinitos da mente e do esprito. Em seu ensaio sobre Bulow, escreveu que no deveria haver qualquer conflito entre o bom senso e uma teoria bem fundada, desde que aquela teoria se baseasse no bom senso e no gnio, ou que desse expresso a eles.7 Ele se manteria fiel a este pensamento. Ele surge repetidamente em Da Guerra, no apenas no captulo Do Gnio Militar, mas tambm em outros lugares, como por exemplo no captulo Da Teoria da Guerra, onde est caracteristicamente associado a um ataque sarcstico capitulao daqueles criadores de sistemas, como Bulow e Jomini, ante s riquezas do esprito: Qualquer coisa que no possa ser alcanada atravs da escassa sabedoria destes pontos de vista parciais considerada como estando alm do controle cientfico: reside na esfera do gnio, que se eleva acima de todas as regras. Pobre do soldado que tem o dever de rastejar ao longo destes fragmentos de regras, que no so suficientemente boas para o gnio, que o gnio pode ignorar, ou rir delas. No. O que o gnio faz a melhor regra, e a teoria no pode fazer mais do que mostrar como e porque deve ser assim. Pobre da teoria que se choca com a razo!8 A teoria e as doutrinas delas decorrentes esto 11 22. portanto subordinadas ao grande talento criativo e s proposies universais da razo e dos sentimentos que ela expressa. O prprio Clausewitz ainda estava longe de formular uma teoria que explicasse porque e como a ____________________ 7 8[C. v. Clausewitz], Bemerkungen, Neue Bellona, 9 (1805), n 3, pag. 276 e 277. Da Teoria de Guerra, Livro Dois, Captulo 2, Da Guerra.ao do gnio deveria ser a melhor regra. Ele precisava desenvolver outros mtodos analticos antes que pudesse avanar consideravelmente, e devemos acrescentar que ele nunca superou totalmente as dificuldades inerentes ao duplo papel que atribuiu ao conceito de gnio. Os problemas da teoria, entretanto, no so idnticos aos da compreenso histrica. Aqui, a ateno dada s emoes de indivduos e de grupos se associava sem grande esforo crena na particularidade de pocas passadas. A histria de Gustavo Adolfo na Guerra dos Trinta Anos, escrita por Clausewitz em torno de 1805, constitui o seu esforo inicial no sentido de integrar numa escala maior estes dois princpios interpretativos.9 Foi uma tentativa extraordinariamente bem sucedida, e apenas o primeiro dos inmeros estudos histricos que ele viria a escrever ao longo da sua vida. Na realidade, se formos considerar a quantidade, Clausewitz foi mais um historiador do que um terico. O fato de que ele foi tambm inovador nesta matria tende a ser esquecido - possivelmente porque os seus escritos histricos mais originais no foram publicados durante dcadas, e porque a cultura histrica alem logo desenvolveu e expandiu o filo com o qual ele estava entre os primeiros a trabalhar, enquanto que como terico ele continuou sem ter verdadeiros sucessores. Para um homem da sua poca, ele adotou uma abordagem do passado extraordinariamente direta. Ele no escondeu um interesse irnico pelas paixes e limitaes dos seus personagens, principalmente quando escrevia sobre acontecimentos recentes, mas raramente demonstrou qualquer preconceito ideolgico ou patritico. Ele tentou o melhor que pde descobrir como e porque as coisas aconteceram daquela maneira. O seu anseio de ser objetivo foi intensificadopela sua crena, com base numa predileo pessoal e pelos ensinamentos deScharnhorst, de que a teoria militar dependia de diversas maneiras da histria. As suas concluses amadurecidas sobre a relao adequada entre elas foram melhor analisadas quando ele veio a escrever Da Guerra. A derrota da Prssia em 1806 confirmou a opinio de Clausewitz de que a guerra no poderia ser analisada isoladamente, como sendo um ato essencialmente militar. Era bvio para ele que a poltica da 12 23. dcada anterior havia decidido em grande parte a questo antes de comearem os combates, enquanto que as condies sociais h muito existentes na monarquia prussiana haviam criado instituies e atitudes militares que revelaram-se inteis contra um oponente que era numericamente superior e que estava em harmonia com as novas formas de combater. Para Clausewitz pessoalmente a campanha foi uma vez mais uma guerra do infante. Ele serviu num batalho de granadeiros at que a sua unidade foi ___________ 9 O estudo Gustavus Adolphus Feldzuge von 1630-1632, com algumas centenas de pginas, foi publicado em 1837 no volume 9 das obras compiladas de Clausewitz, Hinterlassene Werke des Generals Carl von Clausewitz, 10 vols. (Berlim, 1832 a 1837).obrigada a se render. Aps um perodo de priso na Frana e uma permanncia temporria na Sua, ele voltou Prssia na primavera de 1808. Nos quatro anos seguintes serviu como assistente do seu antigo professor Scharnhorst, que o empregou numa variedade de tarefas relacionadas com a modernizao do Exrcito: reorganizando e reequipando as tropas, elaborando novas instrues tticas e operativas, disseminando a nova doutrina como instrutor na Escola de Guerra e tutor militar do prncipe herdeiro. Finalmente, Clausewitz desempenhou um papel mais importante do que poder-se-ia esperar de um oficial moderno, na evoluo do pensamento poltico e estratgico do grupo que trabalhava nas reformas. A experincia que adquiriu foi extraordinariamente ampla e fortaleceu ainda mais o tom pragmtico que transmitiu em seus escritos tericos, bem como histricos. Casou-se durante aqueles anos. Sua esposa, uma mulher inteligente e sofisticada, compartilhava dos seus interesses literrios e filosficos e apoiou totalmente a sua crescente independncia poltica e profissional. Somente a falta de filhos prejudicou um casamento que, no fosse por isto, teria sido excepcionalmente feliz. Ele criou tambm uma amizade duradoura com o segundo lder dos reformadores militares, Gneisenau, um relacionamento que viria a moldar significativamente a sua carreira subsequente. Aps a Prssia ter sido obrigada a fornecer um destacamento para o exrcito que Napoleo estava formando para a invaso da Rssia, pediu demisso do Exrcito e, na primavera de 1812, aceitou a designao para uma funo de Estado-Maior no Exrcito Russo. A riqueza, bem como o volume, dos seus escritos durante estes anos muito movimentados impressionante. Apresentar em linhas gerais apenas as principais hipteses que Clausewitz apresentou, em reas aparentemente to diferentes quanto a grande estratgia e o carter nacional, tomaria mais espao do que possvel utilizar aqui, mas at mesmo uma breve introduo no deve ignorar as concluses a que ele chegou sobre a natureza e o papel da teoria militar, uma vez que elas viriam a determinar a abordagem a ser adotada em Da Guerra. Algo deve ser dito tambm sobre o mtodo 13 24. analtico que ele estava criando. Finalmente, podemos ter pelo menos uma indicao dos seus diversos avanos no campo da teoria, analisando uma conceituao que representa aquele perodo - o conceito de frico, com o qual ele complementou as suas idias anteriores e tornou-as produtivas na investigao cientfica. Em 1808, Clausewitz fez uma firme distino entre as funes utilitrias, pedaggicas e cognitivas da teoria. A primeira - melhorar a eficcia do soldado - era o principal, muitas vezes o nico, propsito dos tericos militares contemporneos. Clausewitz compartilhava do seu desejo de definir e de dar uma resposta s questes prticas da guerra moderna, e mais do que nunca nos anos em que esteve apaixonadamente envolvido em reconstruir o Exrcito Prussiano para o segundo confronto com Napoleo. Mas, tanto no terreno da lgica quanto no do realismo, tornou-se ctico com relao ao vnculo direto existente entre a teoria e o desempenho, que os tericos consideravam certo. O seu estudo da filosofia Kantiana, antes de 1806, deu-lhe pelo menos algumas das ferramentas intelectuais de que necessitava para esclarecer as suas dvidas - sendo que as coisas mais importantes que absorveu daquele estudo foram a viso da teoria defendida pelos escritores do antigo Iluminismo sobre esttica, e o seu conceito de meios e de propsito, que veio a desempenhar um papel penetrante em Da Guerra. Um ensaio, Arte e Teoria da Arte ilustra a sua utilizao da esttica para explorar a violenta arte de derrotar o seu inimigo. A arte, escreveu ele, uma aptido desenvolvida. Para que se expresse deve ter um propsito, como toda aplicao das foras existentes, e para aproximar-se deste propsito preciso ter meios. . . . Harmonizar propsito e meios criar. Arte a capacidade de criar. A teoria da arte ensina esta harmonizao [de propsito e meios] at onde este conceito pode faz-lo. Assim, podemos dizer: a teoria a representao da arte atravs de conceitos. Podemos ver facilmente que isto constitui a totalidade da arte, com duas excees: talento, que fundamental para tudo, e prtica - nenhum dos quais pode ser o produto da teoria.10 Em suma, at mesmo a teoria mais realista nunca pode se igualar realidade. Ocorre que todas as tentativas no sentido de estabelecer regras com fora normativa foram inteis numa atividade como o combate, e que a teoria militar nunca pode ser imediatamente utilitria. Como escreveu Clausewitz no mesmo ensaio, as regras no se destinam a casos isolados e a ao nestes casos s pode ser determinada aplicando-se os conceitos de propsito e de meios.11 Tudo que a teoria poderia fazer dar ao artista ou ao soldado pontos de referncia e padres de avaliao em reas especficas de ao, no com o propsito maior de dizer-lhe como agir, mas de desenvolver a sua capacidade de julgar.14 25. Era este processo de aperfeioamento da capacidade de julgar e do tato instintivo do indivduo que age que constitua a funo pedaggica da teoria, no a redao de regras para serem aprendidas mecanicamente. (Um outro importante aspecto pedaggico da teoria, importante para Clausewitz pessoalmente, estava relacionado com o processo criativo. Ao elaborar uma estrutura analtica para a guerra, Clausewitzfortaleceu as suas aptides intelectuais e implementou o programa de auto-educao do qual no havia se desviado desde a adolescncia.) Mas embora somente uma sria investigao _________________ 10 11Geist und Tat, pag. 159. O ensaio no possui data, mas provavelmente foi escrito durante o perodo das reformas. Idem, pag. 162.terica pudesse deixar a mente livre, Clausewitz acreditava que a maioria dos homens no era capaz de obter um conhecimento intelectual profundo das reas complexas da atividade humana, nem estava muito interessada em faz-lo. Para ajud-los atravs da confuso da guerra era necessrio que houvesse guias relativamente slidos. Como estes guias poderiam ser fornecidos? De acordo com Clausewitz, a experincia j tinha feito uma grande parte, mas no fim os guias de conduta adequados s seriam obtidos atravs de uma anlise abrangente e cientfica. Este era o lado cognitivo da teoria. As anlises no utilitrias, preocupadas apenas em obter uma compreenso mais profunda, poderiam provocar uma melhora do desempenho operativo e estratgico, mas para Clausewitz a investigao cientfica no precisava de justificativas. Embora nunca tivesse perdido o interesse pelos aspectos militares, naquele momento uma compreenso como esta era o que mais importava para ele, e foi a esta tarefa que Da Guerra se dedicou. Quando Clausewitz pela primeira vez comeou a pensar em escrever um estudo que iria explorar a totalidade da guerra, no apenas algumas das suas partes, ele escolheu como modelos intelectuais livros como De lEsprit des lois, de Montesquieu, e Crtica da Razo Prtica, de Kant. Se na sua verso final Da Guerra manteve pouca semelhana com estas obras, elas apesar disto do alguma indicao sobre o mtodo empregado pelo seu autor. Anteriormente classifiquei o seu mtodo como dialtico. Ele era, mas num sentido especial. Ele certamente no procedeu de uma maneira formal e altamente estruturada. A tese, a anttese e a sntese de Hegel, para mencionar uma abordagem que foi muitas vezes lida em Da Guerra, pareceriam inadequadas a Clausewitz, como pareceria qualquer sistema cuja simetria lgica e intelectual fosse obtida s custas da realidade. Mas muitas vezes ele desenvolveu as suas idias no que poderia ser chamada de uma forma modificada da tese e da anttese, que lhe permitiu explorar as caractersticas cientficas de um determinado fenmeno com um elevado 15 26. grau de exatido. Propsito e meios, estratgica e ttica, teoria e realidade, inteno e execuo, amigo e inimigo - estes so alguns dos opostos que ele define e compara, no apenas para obter uma verdadeira compreenso de cada membro do par, mas tambm para pesquisar os vnculos dinmicos que uniam todos os elementos da guerra num estado de interao permanente. Uma das caractersticas marcantes desta maneira de pensar que ela define cada elemento da maneira mais clara possvel, ao mesmo tempo em que insiste na ausncia de limites distintos. Guerra e poltica, ataque e defesa, inteligncia e coragem - para mencionar alguns dos outros pares - nunca so opostos absolutos; em vez disto, um flui dentro do outro. Uma vez mais, a filosofia alem, juntamente com determinadas premissas analticas e estruturais das cincias naturais, proporcionaram a Clausewitz uma atitude fundamental e as ferramentas intelectuais necessrias para express-la. A crena na necessidade de averiguar a essncia de cada fenmeno, ou a idia que o rege - como a violncia, que de acordo com Clausewitz era a idia essencial do fenmeno guerra - associada a uma viso universal e a uma percepo de que os pequenos detalhes continham a explicao para as grandes foras, assim como o conhecimento de uma flor era fundamental para a compreenso da natureza, ou saber porque e como um homem lutava era essencial para compreender a guerra. Foi de acordo com esta perspectiva cultural mais ampla, bem como com as suas tendncias pessoais, que Clausewitz evitou fazer generalizaes e, ao mesmo tempo, rejeitou a anarquia do pragmatismo puro. O seu propsito era obter uma estruturao lgica da realidade. Ele acreditava que isto poderia ser feito se a busca de idias reguladoras e a sua elaborao fossem informadas e controladas pelo respeito que os tericos tinham pela realidade presente e passada. Consequentemente, o seu mtodo consistia num permanente dilogo entre a observao, a interpretao histrica e o raciocnio terico. medida em que a anlise progredia, tentava levar em conta todos os elementos da guerra em suas dimenses atuais e passadas, adaptar-se a todos, integrar todos eles e nunca ressaltar um em detrimento dos outros. Veremos que esta caracterstica tambm se mantm verdadeira na teoria resultante, que flutua, disse Clausewitz, entre os principais fenmenos da guerra, sem ressaltar qualquer deles em particular. Os perigos do exagero, de ser ofuscado pelas condies atuais, principalmente a defesa injusta e parcial, so assim em grande parte evitados. Um exemplo da maneira pela qual o mtodo de Clausewitz transformou a realidade numa forma analisvel fornecida pela sua criao do conceito de frico. Ele empregou pela primeira vez o termo durante a campanha de 1806, para descrever as dificuldades que Scharnhorst enfrentava para convencer 16 27. o alto comando a tomar decises, e as dificuldades adicionais para fazer com que as decises fossem implementadas. Incerteza, ignorncia, confuso, cansao, erros e outros inmeros elementos imponderveis - todos interferiam no emprego efetivo da fora. Durante o perodo das reformas Clausewitz ampliou o conceito e vinculou-o a outras idias. At 1812 ele havia compreendido perfeitamente as suas implicaes tericas. Um ensaio que ele escreveu para o Prncipe Herdeiro no fim do seu perodo como tutor terminava com uma seo sobre frico, em que tanto o contedo como a redao tornaram-se a base do captulo A Frico na Guerra de Da Guerra e para a anlise da frico que se estende por toda a obra.12 Travar uma guerra muito difcil, escreveu ele, mas a dificuldade no que seja necessrio possuir erudio e um grande talento . . . no existe uma grande arte em conceber um bom plano de operaes. Toda a dificuldade reside nisto: Em combate, permanecer fiel aos princpios que foram estabelecidos para ns. Para explicar porque deve ser assim, Clausewitz recorreu a uma analogia: A conduo da guerra se parece com o funcionamento de uma mquina complexa, com um tremendo atrito, de modo que as operaes que podem ser facilmente planejadas no papel s podem ser executadas atravs de um grande esforo. Consequentemente, a livre determinao e a inteligncia do comandante encontram-se tolhidas a todo momento e necessrio que haja uma notvel energia da mente e do esprito para superar esta resistncia. At mesmo muitas idias boas so destrudas pela frico, e devemos realizar de uma maneira mais simples e modesta o que de uma forma mais complicada teria apresentado melhores resultados. A frico, continua ele, mesmo se for criada por foras fsicas - mau tempo, por exemplo, ou fome - sempre exerce um efeito psicologicamente inibidor. A energia psquica deve contribuir portanto para super-la: Em combate, as nossas imagens e percepes fsicas so mais intensas do que as impresses que obtivemos anteriormente atravs de uma reflexo amadurecida. Mas elas so apenas a aparncia exterior das coisas que, como sabemos, raramente correspondem exatamente sua essncia. Corremos portanto o risco de sacrificar uma reflexo amadurecida dando preferncia s primeiras impresses. Ante a estas presses, os homens devem manter as suas convices e a confiana no seu conhecimento e no seu critrio, seno se rendero fora da frico. A frico, viria ele concluir em Da Guerra, o nico conceito que contm mais ou menos os fatores que distinguem a guerra real da guerra no papel.13 17 28. Ao criar o conceito de frico, ele tornou um dos elementos mais importantes em sua imagem da guerra - o acaso - sujeito anlise terica. Na medida em que a frico interferia nas aes de algum, ela s representava os aspectos negativos do acaso. Os aspectos positivos do acaso eram representados pela fora igualmente penetrante da frico do lado do inimigo. Para avaliar a importncia deste fenmeno devemos nos lembrar de que os escritores militares do Iluminismo, ao mesmo tempo em que muitas vezes reconheciam o poder do fortuito, esforavam-se para reduzir a esfera de ao do acaso. Os seus sucessores espirituais, Bulow e Jomini, lutaram para atingir o mesmo propsito atravs de sistemas que ampliavam as regras imensamente detalhadas do Sculo XVIII para marchas, acampamentos e ____________ 12O ensaio, Die wichtigsten Grundsatze des Kriegfuhrens . . . , foi apresentado em ingls por H. Gatzke, com o ttulo um tanto enganoso de Princpios da Guerra (Harisburgo, Filadlfia, 1942). Com relao s citaes seguintes, que constam da minha traduo, compare-as com Gatzke, pag. 60, 61 e 67. 13 A Frico na Guerra, Livro Um, Captulo Sete de Da Guerra.dispositivos tticos para a estratgia. O xito poderia ser assegurado escolhendo-se as tcnicas corretas. Outros escritores afirmavam que a guerra moderna era anrquica, suscetvel apenas ao tratamento emprico. Scharnhorst, ao contrrio, sustentava que o comportamento natural das sociedades e dos indivduos na guerra poderia ser compreendido e, portanto, at certo ponto orientado, e Clausewitz deu a esta crena uma forma terica. Na sua opinio, excluir ou negar o acaso era ir contra a natureza. Na realidade, o acaso deveria ser bem vindo porque fazia parte da realidade. No era apenas uma ameaa, mas tambm uma fora inegvel a ser explorada. Napoleo expressou perfeitamente esta idia em sua mxima operativa: Engaje o inimigo e veja o que acontece. O comandante colocava-se no caminho do acaso. A fora que tinha sua disposio e a sua determinao de utiliz-la permitiam que ele transformasse o acaso numa nova realidade. A fora que poderia criar e explorar esta realidade da maneira mais eficaz era o gnio. Assim, o conceito de frico veio a constituir na vida exterior o oposto do resultado das anlises anteriores da vida interior do indivduo, feitas por Clausewitz. A observao e a reflexo o haviam levado a elevar o gnio - a combinao harmoniosa de dons excepcionais e, por extenso, de qualidades intelectuais e emocionais em geral - a uma posio de destaque em suas conceituaes da guerra. Os conceitos de gnio, de frico e de acaso, em suas mltiplas interaes, possibilitam agora que o terico submeta as vastas reas da realidade militar a uma anlise lgica e sistemtica. Durante a guerra de 1812, Clausewitz serviu como Oficial de Estado-Maior em diversos comandos russos, sendo que o seu desconhecimento do idioma o limitou ao papel de observador at o 18 29. fim de Dezembro, quando tomou parte nas conversaes entre as autoridades russas e o comandante do destacamento prussiano na Grande Arme, que levaram estratgica e politicamente importante separao das foras prussianas do controle francs. Enquanto os combates deslocavam-se para oeste, ele concebeu o plano para organizar a milcia da Prssia Oriental, mais um passo significativo no processo de livrar a Prssia do domnio Francs. Na campanha da primavera de 1813, ainda usando o uniforme russo, trabalhou como assessor de Scharnhorst e de Gneisenau at a morte do primeiro e, em seguida, tornou-se Chefe do Estado-Maior de um pequeno exrcito internacional que protegia o flanco dos Aliados no Bltico. Embora alguns monarquista rigorosos, inclusive o prprio Rei, continuassem a se ressentir da sua recusa anterior de seguir a poltica oficial e lutar para os franceses, ele obteve finalmente a sua readimisso ao Exrcito Prussiano. Durante a campanha de Waterloo serviu como Chefe do Estado-Maior de um dos quatro destacamentos que constituam o Exrcito de campo prussiano e lutou em Ligny e em Wavre, onde o seu destacamento imobilizou a fora superior de Grouchy, at que o principal Exrcito francs estivesse derrotado. Em 1816 tornou-se Chefe do EstadoMaior do novo comando de Gneisenau, com sede em Coblenz, no Reno. Dois anos mais tarde foi transferido para Berlim, como Superintendente da Academia de Guerra. Suas novas funes no eram nem rduas nem especialmente gratificantes. Procurou diversas vezes trocar o Exrcito pela diplomacia, mas como a sua poltica reformadora o havia tornado inaceitvel para a corte, continuou por doze anos em sua funo administrativa, no descontente, compensado pela a oportunidade de dedicar uma grande parte do seu tempo ao estudo e a escrever. Foi nos primeiros anos da paz, aps o violento intervalo das ltimas campanhas contra Napoleo, que Clausewitz voltou seriamente ao trabalho terico. Uma nota encontrada em seus papis, que a sua esposa cita em sua introduo a Da Guerra, indica que enquanto estava servindo na Rennia comeou a escrever pequenos ensaios sobre estratgia, destinados aos conhecedores do assunto.14 Nenhuma dessas peas parece ter sobrevivido, mas possumos pelo menos um estudo preliminar do qual Clausewitz esperava extrair o ensaio aforstico que estava pretendendo escrever: Do Avano e da Pausa na Atividade Militar. Ele forneceu a base para o Captulo Dezesseis do Livro Trs de Da Guerra, que, por sua vez, elabora um dos argumentos chave no primeiro captulo da obra: a guerra real fica aqum da violncia total que em tese a sua essncia porque, entre outros motivos, a guerra no consiste num nico ato, ou num grupo de aes simultneas, mas estende-se ao longo do tempo, com perodos alternados de ao e de inao. Um outro ensaio, muito menos importante, pode ter sido a anlise de uma organizao do Exrcito que normalmente publicada como um apndice na edio 19 30. alem de Da Guerra. Os seus pontos essenciais podem ser encontrados no Captulo Cinco do Livro Cinco. Estes ensaios, concisos como so, no se equiparam extrema brevidade dos captulos das obras de Montesquieu, que, escreve Clausewitz, serviram-lhe naquela poca como uma espcie de modelo geral. Nem a estrutura da sua argumentao assemelha-se de Montesquieu. Mas as caractersticas de De lEsprit des lois e a personalidade do seu autor indicam com bastante clareza o fundamento para o sentimento de afinidade de Clausewitz. A introduo, apenas para mencionar um exemplo, contm ____________________ 14M. v. Clausewitz, Prefcio, Da Guerra. A citao do seu marido aparece na pag. 65. Cronologicamente esta a segunda das quatro notas introdutrias escritas por Clausewitz para Da Guerra. A primeira, Prefcio do Autor, datada de 1816 a 1818, faz referncia aos ensaios que ele estava escrevendo naqueles anos (pag. 62 e 63). A segunda, contida no prefcio da sua esposa, faz referncia ampliao do esquema original. A terceira, datada de 10 de Julho de 1827, constitui a primeira metade da Observao e menciona o plano de Clausewitz de fazer uma reviso completa dos Livros Um a Seis e dos esboos para os Livros Sete e Oito (pag. 70 e 71). A segunda parte da Observao foi escrita mais tarde, possivelmente em 1830, e indica que Clausewitz no havia avanado muito em sua reviso (pag. 62 e 72).frases que o prprio Clausewitz poderia ter escrito: Eu peo um favor que temo que no venha a ser concedido - no julguem o trabalho de vinte anos num s momento. Aprovem ou rejeitem todo o trabalho, no algumas das suas afirmativas. Se algum quiser procurar saber a inteno do autor, ela s poder ser revelada no esquema do trabalho. Um trecho posterior, em que Montesquieu afirma que enquanto estava escrevendo no conhecia regras nem excees, dificilmente pode ser melhorado para descrever a atitude de Clausewitz com relao ao estudo da guerra.15 Os ensaios, cada um destacando um determinado fenmeno ou conceito, tinham a vantagem de revelar com maior clareza as principais caractersticas de cada um deles, mas a anlise inevitavelmente fragmentada deixou Clausewitz insatisfeito. medida em que acrescentava novas sees e revia as existentes, a caracterstica aforstica e condensada da sua obra deu lugar a um tratamento mais minucioso, que correspondia sua preferncia por um desenvolvimento sistemtico das idias e pela aplicao uniforme de conceitos a uma gama mais ampla de fenmenos. Coincidentemente, ele achava que uma anlise mais ampliada e mais explcita seria adequada a um pblico mais amplo do que o que originalmente tinha em mente. O resultado foi Da Guerra, basicamente como o conhecemos hoje, exceto pelas revises limitadas feitas a partir de 1827. Os leitores desta obra, e dos estudos que levaram a ela, podem perguntar porque Clausewitz achou que era necessrio afirmar repetidamente que a violncia a essncia da guerra, e considerar esta reiterao uma insistncia pedante no bvio. Mas Clausewitz ressaltou este ponto, no s porque a 20 31. experincia e o estudo do passado o haviam convencido da sua veracidade, mas ele estava tambm dando uma resposta ao nmero surpreendentemente elevado de tericos que continuavam a afirmar que as guerras poderiam ser ganhas atravs de manobras e no atravs do derramamento de sangue. De qualquer modo, o que importa so as dedues que ele extraiu do que era por si s evidente. Quando tinha 24 anos de idade, havia escrito que a guerra deve ser sempre travada com a maior quantidade de energia possvel - que apenas as operaes mais decisivas estavam de acordo com a natureza da guerra.16 Oito anos depois, ensinava ao seu pupilo, o Prncipe Herdeiro, que a guerra exigia sempre a mais completa mobilizao de recursos e a sua utilizao mais vigorosa.17 Havia aqui implicaes especficas decorrentes do conceito de guerra absoluta, da guerra que, de uma maneira ideal, deveria ser travada com o mximo de violncia - de uma maneira ideal porque a violncia extrema estava de __________________ 15Montesquieu, De lEsprit des lois, Gnova, 1749, pag. iii e vi. Plano de Operaes, Strategie aus dem Jahr 1804, pag. 51 e 52. 17 Princpios da Guerra, pag. 46. 16acordo com a sua natureza. Se a guerra era um ato de fora, Clausewitz no podia perceber quaisquer limites lgicos, intrnsecos ou auto-impostos, ao uso da fora. A sua insistncia nos extremos durante a era Napolenica decorria, evidentemente, no s da lgica, mas tambm da situao histrica. Entre 1792 e 1815 eram de fato necessrios um esforo e uma disposio excepcionais para correr grandes riscos para preservar a independncia da Europa, ou para reconquist-la. Mas mesmo nos anos de maior desafio, Clausewitz reconhecia que a exigncia da violncia absoluta ou extrema, embora logicamente vlida, raramente era atendida na realidade. A guerra absoluta era uma fico, uma abstrao que servia para unificar todos os fenmenos militares e ajudava a tornar possvel o seu tratamento terico. Na prtica, o uso da fora tendia a ser limitado. O poder de frico reduzia o absoluto terico s formas modificadas que assumia na realidade. A principal parte de Da Guerra, no revista, est dominada pela relao dialtica mutuamente esclarecedora existente entre a guerra absoluta e a guerra real. Mas era realmente verdade que a guerra real sempre modificava o absoluto terico? E, em segundo lugar, era vlido deduzir, a partir do conceito de guerra absoluta, que todas as guerras, quaisquer que sejam as suas causas e os seus propsitos, devem ser travadas com o esforo mximo? Em 1804, Clausewitz j fazia uma distino entre as guerras travadas para exterminar o oponente e destruir a sua existncia poltica, daquelas travadas para enfraquecer o oponente o suficiente para que pudesse impor condies [a ele] na conferncia de paz.18 Quanto ainda estava elaborando esta 21 32. distino, Clausewitz negava que o fato dos propsitos serem limitados justificasse uma limitao dos esforos. Ele argumentava que, mesmo que no se pretendesse mais do que obrigar o oponente a concordar com os termos, o seu poder e a sua determinao de resistir deveriam ser quebrados. Por motivos polticos e sociais, bem como por motivos militares, a melhor maneira de ocasionar a vitria era a mais curta e mais direta, e isto significava utilizar toda a fora possvel. Em sua opinio, como afirmei, a experincia apoiava as exigncias da lgica. No era difcil acreditar que a Frana tenha sado vitoriosa das primeiras campanhas da Revoluo at as guerras de 1806 e 1809 porque os seus oponentes no puderam empenhar-se ao mximo. E foi em parte porque a realidade contempornea parecia confirmar que toda guerra era uma modificao da guerra absoluta e que deveria ser travada sem que fossem impostas restries ao emprego racional da fora, que estes argumentos conservaram o que poderia ser chamado de uma supremacia formal na obra de Clausewitz, mesmo que ele viesse a considerar que eram ____________________ 18Plano de Operaes, Strategie aus dem Jahr 1804, pag. 51.parciais. O seu ensaio sobre Avano e Pausa indica que em 1817 ele no ficava mais satisfeito em atribuir totalmente as modificaes da atividade militar fora da frico. Como a guerra consistia numa srie de interaes entre oponentes, era adequado, tanto na lgica como na realidade, que nem todos os minutos devessem transcorrer na maior intensidade de esforo e de violncia. Inmeras insinuaes contidas nos Livros de Um a Seis apontam na mesma direo. No meio da dcada de 1820, Clausewitz reconheceu plenamente que o segundo tipo de guerra real - uma guerra travada para a consecuo de propsitos ilimitados - no era necessariamente uma modificao ou uma deturpao do princpio terico de guerra absoluta. Como ele afirmou em sua Observao e na ltima reviso do Captulo Um do Livro Um, existia um segundo tipo de guerra que era to vlido quanto a guerra absoluta, no apenas no campo, mas tambm filosoficamente. As guerras limitadas podiam ser uma modificao das absolutas, mas no precisavam ser, se o propsito pelo qual eram travadas tambm fosse limitado. A violncia continuava a ser a essncia, a idia reguladora, mesmo das guerras limitadas travadas por fins limitados, mas nestes casos a essncia no exigia a sua maior expresso possvel. O conceito de guerra absoluta de maneira alguma tinha deixado de ser vlido. Ele continuava a desempenhar funes analticas decisivas, mas estava agora acompanhado do conceito de guerra limitada.22 33. A dupla natureza da guerra, como afirmou Clausewitz nos ltimos anos de sua vida, est expressa em dois pares de possveis conflitos, cada um deles caracterizado de acordo com o propsito envolvido. A guerra travada com o propsito de derrotar totalmente o inimigo, para (1) destru-lo como um organismo poltico, ou (2) para obrig-lo a aceitar quaisquer termos, e as guerras travadas para conquistar territrios, para (1) manter a conquista, ou (2) utilizar a terra ocupada como moeda de troca nas negociaes de paz. Em Observao, Clausewitz afirmou a sua inteno de fazer a reviso de todo o texto de Da Guerra para desenvolver sistematicamente estes diferentes tipos de guerra. Mas ele foi alm. Como segundo tema em importncia, a reviso iria pesquisar o carter poltico da guerra. A distino que ele fez entre os dois temas intrigante, uma vez que no pargrafo anterior ele declara que os motivos polticos determinam se um conflito limitado ou ilimitado. Clausewitz no explicou a distino que fazia entre a dupla natureza da guerra e o seu carter poltico, mas Eberhard Kessel aventou um motivo, com base em argumentos e em observaes que se repetem ao longo de todos os escritos de Clausewitz.19 A guerra influenciada pelos fatores polticos, objetivos e subjetivos. Os fatores objetivos compreendem as caractersticas especficas, o poderio do Estado em questo e as ___________ 19 Kessel, Zur Genesis der modernen Kriegslehre, pag. 415 a 417. Ver tambm Die doppelte Art des Krieges, do mesmo autor, Wehrwissenschaftliche Rundschau, 4 (Julho de 1954), n 7.caractersticas gerais da poca - polticas, econmicas, tecnolgicas, intelectuais e sociais. Os fatores subjetivos consistem na livre determinao da liderana, que deve estar de acordo com as realidades objetivas, mas que muitas vezes no est. Colocando de uma maneira diferente, Clausewitz separava as consequncias polticas das condies em geral, daquelas decorrentes da inteligncia, das emoes e do gnio individuais. Ele pode ter procurado obter uma clareza analtica ligando a sua anlise das realidades polticas objetivas, principalmente ao conceito da dupla natureza da guerra, e as questes da liderana principalmente ao conceito do carter poltico da guerra. Mas qualquer que seja a maneira pela qual seja interpretada a declarao programtica de Clausewitz, o leitor de Da Guerra se encontrar de acordo com o seu autor, se der aos motivos polticos e s caractersticas da guerra mais relevncia do que eles recebem em grande parte do texto e, alm disto, se alterar as sees no revistas para que as guerras limitadas no precisem ser uma modificao, mas que teoricamente e na realidade existam dois tipos de guerra igualmente vlidos.23 34. Clausewitz chegou em grande parte ao reconhecimento da dupla natureza da guerra atravs dos seus estudos histricos, que o convenceram de que os conflitos limitados tinham ocorrido frequentemente, no porque os meios dos protagonistas impedissem que deixasse de ser despendido um esforo maior por parte da sua liderana, mas porque as suas intenes eram limitadas demais para justificar qualquer coisa mais. Face s provas histricas, a teoria tinha que ser corrigida. Como Clausewitz insistiu durante toda a sua vida, o presente no pode reivindicar qualquer superioridade definitiva sobre o passado e, para que seja de qualquer modo vlida, a teoria deve ser vlida universalmente. Desde o incio, como sabemos, a histria ajudou a orientar as suas idias sobre a guerra. Pode-se pensar que dificilmente isto era incomum. Assim como alguns tericos deixaram de reconhecer o papel que os fatores psicolgicos desempenharam na guerra, a maioria proclamou o valor da histria militar para uma boa compreenso da guerra. Mas o que Clausewitz tinha em mente era profundamente diferente das crnicas no ponderadas e das ilustraes utilitrias das leis estratgicas e tticas que eram tomadas como histria na literatura militar. Ele no considerava a histria como sendo um livro de exemplos a partir do qual os soldados pudessem aprender, diretamente ou por analogia. A sua maneira individualizadora de pensar, que permitiu que ele destacasse a fora do carter e a inteligncia no choque de grandes exrcitos e interpretasse as instituies, as sociedades e as naes como sendo personalidades maiores - separadas e diferentes umas das outras - ampliou a sua viso do passado. A histria, tambm, estava marcada por uma diversidade constante, no sujeita a padres - a marcha do progresso, por exemplo, na busca de Deus pelo homem - que para Clausewitz eram simplesmente suposies criadas pela moda, elas mesmos sempre mudando. Cada perodo existia por si mesmo, no como parte de um grande esquema, e s poderia ser compreendido em seus prprios termos. Certos grandes temas repetiam-se ao longo do tempo. Eles advinham dos desejos humanos elementares de segurana, poder e conhecimento, mas manifestavam-se de formas constantemente mutveis. Como a teoria militar, a histria no possua lies ou regras para oferecer ao estudioso, s podia ampliar a sua compreenso e fortalecer a sua capacidade crtica de julgar. Na obra pedaggica e terica de Clausewitz, a histria tinha a funo adicional de ampliar a experincia do estudioso ou do leitor, ou de substitu-la quando faltasse experincia. A histria retratava e representava a realidade. O papel da teoria, pelo contrrio, declarou Clausewitz uma vez, era simplesmente ajudar-nos a compreender a histria - uma inverso extremamente notvel dos papis, com que poucos outros tericos teriam concordado, ou at mesmo compreendido.2024 35. Esta concepo imps certas exigncias maneira de escrever e ao estudo da histria, o que constitui uma outra diferena entre Clausewitz e a maioria dos seus contemporneos. Ele considerava inteis as narrativas vagas do passado. Era muito melhor, dizia ele, estudar uma campanha em seus mnimos detalhes do que adquirir um conhecimento vago de uma dzia de guerras. Os seus prprios escritos histricos revelam uma preocupao por peculiaridades que era excepcional em sua poca, ainda mais porque que a grande quantidade de dados estatsticos, organizacionais e cartogrficos est associada a reflexes muito amplas sobre intenes e implicaes. Da Guerra est repleta de referncias histricas. Elas foram muitas vezes criticadas - e algumas vezes suprimidas - como sendo detalhes desnecessrios e ultrapassados. So de fato descries da realidade, que por si ss justificam o arcabouo terico e que deveriam estimular o leitor moderno a meditar sobre as suas prprias experincias e a recorrer ao seu conhecimento de acontecimentos da sua prpria poca, bem como do passado. Quando Clausewitz decidiu que o texto de Da Guerra precisava ser remodelado para levar devidamente em conta a natureza dupla e o carter polticos da guerra, ele no terminou o manuscrito, mas, em vez disto, voltou pesquisa histrica. Entre 1827 e 1830, quando novas funes interromperam os seus estudos, ele revisou apenas alguns poucos captulos de Da Guerra. A maior parte do seu tempo foi dedicada a escrever histrias da campanha de 1815 e de duas guerras limitadas, as campanhas ____________________ 20Princpios da Guerra, pag. 67.italianas de 1796 e de 1799.21 Ele precisava entender como as suas idias funcionavam na realidade, antes que pudesse realizar o seu tratamento terico sistemtico. Quando ele poderia ter se sentido pronto para voltar a Da Guerra, circunstncias externas intervieram. A sua transferncia para a Inspetoria de Artilharia do Exrcito obrigou-o a familiarizar-se com um setor do servio do qual conhecia relativamente pouco. Mal tinha assumido suas novas funes quando a Revoluo Francesa de 1830 provocou uma nova mudana. O seu amigo Gneisenau foi reconvocado para o servio ativo, para comandar o exrcito que a Prssia havia mobilizado e convidou Clausewitz para ser o seu Chefe do Estado-Maior. Quando a poltica externa cautelosa do novo regime francs e a rebelio polonesa contra a Rssia transferiram a crise para leste, as foras de Gneisenau foram dispostas ao longo da fronteira oriental da Prssia para proteger o pas contra incurses polonesas e contra o clera, que havia 25 36. se propagado da Rssia para a Polnia. A epidemia no pde entretanto ser detida e, em Agosto de 1831, Gneisenau tornou-se uma das suas vtimas. Em 16 de Novembro, pouco depois de haver voltado s suas funes normais de Inspetor Geral da Artilharia da Silsia, Clausewitz morreu subitamente, provavelmente de um ataque cardaco provocado por um caso relativamente suave de clera. Mesmo aps as suas revises definitivas, Clausewitz sabia que as suas idias precisavam de outro aprimoramento, e trechos de Da Guerra e da sua correspondncia do seu ltimo ano indicam importantes acrscimos teoria que ele nunca elaborou em detalhes. O livro Seis, por exemplo, afirma explicitamente que a dupla natureza da guerra aplica-se tanto guerra defensiva como ofensiva, mas a definio contida no captulo inicial da obra s se refere ao lado que d incio ao conflito. Talvez este tenha sido o nico motivo pelo qual, em Observao, ele destaca o seu tratamento da defensiva como sendo pouco mais do que uma primeira tentativa, que precisava ser completamente refeita. Uma vez mais, as suas definies partem do princpio de que os propsitos polticos e militares eram basicamente semelhantes, muito embora estivesse ciente de que a relao entre eles tendia a ser mais complexa e que as metas podiam mudar ao longo dos combates. Apesar da notvel concepo do conceito de escalada, Clausewitz nunca explorou suficientemente as diversas maneiras pelas quais um dos lados influencia o outro, principalmente na defensiva. Mas estes so comentrios, no crticas. Eles nos lembram uma vez mais a maneira pela qual Clausewitz formou e aprimorou as suas idias. Lembram tambm a vitalidade dessas idias, que nunca se fundiram num sistema finito, mas que levaram a hipteses que ao longo de ____________________ 21Os manuscritos, que foram publicados nos volumes de 4 a 6 e 8 das suas obras compiladas, chegam a 1.500 pginas impressas.um sculo e meio revelaram a capacidade de um crescimento contnuo, que Clausewitz acreditava ser a marca da sua verdadeira teoria.26 37. MICHAEL HOWARD_____________________________________________________________ A Influncia de Clausewitz Quando a viva de Clausewitz publicou Da Guerra em 1832, um ano aps a morte do seu marido, o livro foi recebido com um respeito que deveu-se mais reputao de Clausewitz, como pertencente grande gerao de reformadores militares prussianos, discpulo de Scharnhorst e colega ntimo de Gneisenau, do que a qualquer estudo profundo ou muito difundido do seu contedo. O crrego cuja torrente cristalina se derrama sobre pepitas de ouro puro, alertou um crtico maneiroso, 27 38. no corre sobre qualquer leito de rio plano e de fcil acesso, mas por um estreito vale rochoso cercado de Idias gigantescas, e sobre a sua entrada o poderoso Esprito monta guarda, como um querubim com a sua espada, fazendo voltar todos os que esperam ser admitidos pagando o preo habitual por um jogo de idias.1 Em outras palavras, ele o achou difcil de ler, e no foi o nico leitor a achar isto. A primeira edio, com 1.500 cpias, ainda no estava esgotada vinte anos depois, quando os editores decidiram publicar uma outra. Desta vez, muitos dos trechos obscuros existentes no texto original obscuridade talvez inevitvel na publicao pstuma de um trabalho to vasto e complexo, realizada por uma viva dedicada, mas inexperiente - foram esclarecidas atravs de revises e correes liberais feitas pelo cunhado do autor, o Conde Frederico von Bruhl. Nenhuma outra edio surgiu at 1867. Naquele ano, o escritor militar Wilhelm Rustow dedicou um captulo a Clausewitz em sua pesquisa sobre A Arte da Guerra no Sculo XIX, mas disse que ele era muito conhecido mas pouco lido, um aforismo que no perdeu nada da sua exatido com a passagem do tempo. Mas mesmo aqueles que no o leram, sabiam que os seus ensinamentos expressavam aquela liberdade de pensamento, aquela nfase na ao criativa dos indivduos e o desprezo pelo formalismo em que se assentavam as bases das reformas do Exrcito Prussiano, idealizadas por Scharnhorst, e que o seu sucessor como Ministro da Guerra, Hermann von Boven tentou manter viva durante o perodo estril e reacionrio da dcada de 1840. Os conservadores militares preferiam os ensinamentos do General von Willisen, cuja Theorie des grossen Krieges (1840) estabelecia regras e princpios categricos, com um dogmatismo Jominiano. A sua predominncia em ___________________ 1Preussiche Militair-Literatur Zeitung, 1832. Citado por Werner Halweg em sua introduo 16 edio de Vom Kriege (Bonn, 1952), daqui por diante referido como Hahlweg.posies de influncia naquele momento pode ter sido em parte responsvel por ter evitado que as idias de Clausewitz fossem mais amplamente conhecidas.2 Mas a causa fundamental para a prolongada obscuridade de Clausewitz deve ser buscada no prprio texto, bem como a causa da diversidade de interpretaes a que estaria sujeito. O prprio Clausewitz havia alertado que se no vivesse para completar o seu trabalho deixaria atrs de si uma massa disforme de idias que seriam interminavelmente mal interpretadas e tornadas o alvo de muitas crticas mal feitas. Como Clausewitz no viveu para dar-lhes uma forma acabada e coerente, foi tambm uma massa de idias das quais escritores posteriores viriam a extrair idias e frases que conviessem s necessidades das suas prprias teorias e do seu prprio tempo. luz do que veio a28 39. acontecer, vemos que Clausewitz tinha menos motivos para temer os seus crticos do que para ser cauteloso a respeito dos seus admiradores confessos. Na nota introdutria que escreveu em 1827, Clausewitz deixou clara a situao. Ele havia terminado seis livros. O stimo e o oitavo eram ainda rascunhos no trabalhados. Quando esses estivessem terminados, ele voltaria novamente a todo o trabalho e apresentaria os dois grandes temas que viriam a receber a sua explicao definitiva no ltimo livro. O primeiro tema era a dupla natureza da guerra, como um instrumento que poderia ser utilizado para destruir o inimigo ou para extrair dele uma concesso limitada. O segundo era a idia que precisa ser deixada absolutamente clara, isto , que a guerra simplesmente a continuao da poltica por outros meios. Se isto, alertava ele, for sempre mantido em mente com firmeza . . . facilitar significativamente o estudo da questo e ser mais fcil analisar o conjunto. Mas ele tinha que confiar em seus leitores para que a mantivessem em mente. A sua prpria reviso no foi alm do primeiro captulo do Livro Um, onde ele nos apresenta aos trs elementos da sua teoria: a violncia intrnseca da guerra; o papel predominante de uma poltica racional para dar-lhe forma e control-la; e o importantssimo valor do acaso. A observao acima citada torna claro que se Clausewitz tivesse vivido para terminar o trabalho, o segundo dos trs elementos acima: a predominncia que o propsito poltico deve exercer sobre os meios militares, teria sido o que teria recebido a maior nfase. Do modo como ocorreram as coisas, entretanto, Clausewitz tem muito pouco a dizer sobre isto, mesmo no Livro Trs sobre estratgia. Ele define impropriamente a estratgia como sendo o uso do combate para atingir os propsitos da _____________ 2Hahlweg, pag. 12 e 13. O trabalho de Rustow foi publicado como Die Feldherrnkunst des neunzehnten Jahrhunderts (Zurique, 1867). Ver tambm La pense militaire allemande, de Eugene Carrias, (Paris, 1948), pag. 224 a 228.Guerra. aqui que encontramos a doutrina a que viriam se agarrar leitores posteriores. A melhor estratgia ser muito forte: primeiro em todos os lugares e, em seguida, no ponto decisivo. Os dois tipos de guerra e a possibilidade de que cada um deles precise ser conduzido de acordo com princpios diferentes, s recebem aqui a mais ligeira das referncias. De uma maneira geral, a estratgia de que trata este livro simplesmente a estratgia como Clausewitz a via, de Napoleo; de uma guerra absoluta, como as injunes de uma poderosa motivao poltica poderiam fazer com que ela fosse. A mesma restrio se aplica ainda mais intensamente ao Livro Quatro, O Engajamento. No encontramos ali uma nica palavra sobre os dois tipos de guerra, ou sobre a supremacia do propsito poltico. O ponto central daquele livro a grande batalha (Hauptschlacht) e as suas conseqncias, o que Clausewitz chamou de o verdadeiro centro de gravidade da guerra. Apesar disto, quase que por 29 40. definio, guerras limitadas so conflitos em que a questo no levada a uma deciso de tal vulto. Pode-se alegar que aquele livro enfatiza o principal paradoxo de toda guerra, a dialtica existente entre as foras da violncia e as foras da razo, e que as exigncias polticas de um controle racional no podem atenuar mais a natureza essencialmente violenta dos meios do que a manipulao precisa de uma chama de oxi-acetileno pode reduzir o seu calor. Na realidade, Clausewitz deu-se ao trabalho de reiterar este ponto no primeiro captulo revisto do Livro Um, que deve ser visto como sendo a sua viso ponderada da questo: As pessoas de bom corao poderiam pensar que existisse alguma maneira criativa para desarmar ou para derrotar um inimigo sem que houvesse muito derramamento de sangue e poderiam imaginar que este o verdadeiro propsito da arte da guerra. Agradvel como possa soar, este um sofisma que precisa ser desmascarado. Assim, no h motivos para supor que em sua reviso Clausewitz tivesse abandonado qualquer das crenas expressas no Livro Quatro, crenas apresentadas em frases de uma intensidade espantosa, que eram o resultado das terrveis experincias por que ele prprio passou em 1806 e de 1812 a 1815. Mas talvez ele possa ter refletido mais profundamente sobre a maneira pela qual essa chama inexoravelmente destruidora pudesse ser atenuada e controlada para servir aos propsitos polticos que ele considerava mais importantes. O que aconteceu foi que Clausewitz no sobreviveu para fazer essa reviso. No texto que deixou atrs de si verificamos que, dos trs elementos da sua teoria, o poltico, aquele ao qual ele veio a dar a maior importncia, s tratado no ltimo livro e no primeiro captulo do primeiro. So os outros dois elementos, a violncia intrnseca da guerra e a onipresena do acaso, juntamente com as exigncias que os dois fazem das qualidades morais, que so enfatizados durante todo o resto do trabalho - exceto, na realidade, no longo, magnfico e complexo Livro Seis sobre a defesa, que praticamente no precisaria sofrer uma reviso se as suas lies tivessem sido apresentadas claramente. Estes foram certamente os aspectos da obra de Clausewitz que mais fortemente impressionaram a posteridade, e no menos o grande Helmuth von Moltke, que veio a se tornar o Chefe do Estado-Maior Geral Prussiano em 1857 e que desempenhou um papel de destaque para trazer a obra de Clausewitz ateno dos seus conterrneos. Moltke viria a citar Da Guerra, juntamente com Homero e a Bblia, como uma das verdadeiras obras embrionrias que haviam moldado o seu pensamento.3 Ele estava na Academia Militar quando Clausewitz era o Superintendente, mas como Clausewitz praticamente no tinha contato com os alunos, no se pode alegar que tenha sofrid