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DA IRREGULARIDADE FUNDIÁRIA URBANA À REGULARIZAÇÃO: ANÁLISE COMPARATIVA PORTUGAL–BRASIL Isabel Raposo Lucia Bógus Suzana Pasternak ORGANIZADORAS

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DA IRREGULARIDADE FUNDIÁRIA URBANA À REGULARIZAÇÃO:

ANÁLISE COMPARATIVA PORTUGAL–BRASIL

Isabel Raposo Lucia Bógus

Suzana Pasternak

ORGANIZADORAS

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOReitor: Dirceu de Mello

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Conselho EditorialAna Maria Rapassi

Cibele Isaac Saad RodriguesDino Preti

Dirceu de Mello (Presidente)Marcelo da Rocha Marcelo Figueiredo

Maria do Carmo GuedesMaria Eliza Mazzilli PereiraMaura Pardini Bicudo Véras

Onésimo de Oliveira Cardoso

São Paulo2010

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EDUC – EDITORA DA PUC-SP Rua Monte Alegre, 971 – sala 38CA05014-001 – São Paulo – SPTel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558E-mail: [email protected]: www.pucsp.br/educ

Produção EditorialSonia Montone

Preparação e RevisãoSonia Rangel

Editoração EletrônicaWaldir Antonio AlvesWilliam Martins

CapaEduc

SecretárioRonaldo Decicino

Ficha catalográfi ca elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri/PUC-SP

Copyright © 2010, Isabel Raposo, Lucia Bógus e Suzana Pasternak. Foi feito o depósito legal.

Da irregularidade fundiária urbana à regularização: análise comparativa Portugal–Brasil / orgs. Isabel Raposo, Lucia Bógus e Suzana Pasternak. - São Paulo : EDUC, 2010.452 p. ; 16 cm.

ISBN (em curso)

1. . 2. . 3. . I. Raposo, Isabel. II. Bógus, Lucia. III. Pasternak, Suzana.

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APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 7Isabel RaposoLucia BógusSuzana Pasternak

INTRODUÇÃO À PARTE IBairros clandestinos na periferia de Lisboa ....................................................... 25

Teresa Barata Salgueiro

PARTE I ! A ILEGALIDADE FUNDIÁRIA URBANA EM PORTUGAL

Do “bairro clandestino” às “Áreas de Gênese Ilegal” – um problema que permanece em Portugal ....................................................... 31

Maria Teresa Craveiro

Augi / “Clandestinos” ...................................................................................... 61Manuel da Costa Lobo

Reconversão de territórios de gênese ilegal na Grande Área Metropolitana de Lisboa (GAML) ................................................................... 81

Isabel Raposo

Localização territorial e sustentabilidade ambiental das áreas urbanas de gênese ilegal na Grande Área Metropolitana de Lisboa .............................. 123

Ademar Luís Gonzaga Machado

Qualifi cação do espaço público de loteamentos de gênese ilegal na Grande Área Metropolitana de Lisboa ....................................................................141

Sílvia Branco Jorge

Do ilegal ao formal: percursos para a reconversão urbana das Áreas Urbanas de Gênese Ilegal em Lisboa ............................................... 159

Jorge GonçalvesCarla Mota AlvesFernando Nunes da Silva

INTRODUÇÃO ÀS PARTES II E IIILoteamentos clandestinos .............................................................................. 189

Ermínia Maricato

PARTE II ! IRREGULARIDADE FUNDIÁRIA E DIREITO À MORADIA EM METRÓPOLES BRASILEIRAS DO NORDESTE

Regularização fundiária como direito à moradia: qual o caminho? ................. 197Camila D’OttavianoSérgio Luis Quaglia-Silva

Loteamentos e Assentamentos de Gênese Ilegal na metrópole do Recife: descompasso entre arcabouço jurídico e realidade social ............................... 219

Maria Angela de Almeida Souza

O processo de regularização fundiária de Alagados – Salvador Bahia .............. 247Nelson Baltrusis

Ilegalidade urbana na Região Metropolitana de Fortaleza: Zonas Especiais de Interesse Social como alternativa de solução ..................... 271

Renato Pequeno

PARTE III ! A IRREGULARIDADE FUNDIÁRIA NO PROCESSO DE EXPANSÃO URBANA DA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO

Notas sobre a produção da irregularidade no espaço urbano em São Paulo .... 305Beatriz Bezerra ToneLuciana Nicolau Ferrara

Assentamentos irregulares e proteção ambiental: impasses e desafi os da nova legislação estadual de proteção e recuperação dos mananciais na Região Metropolitana de São Paulo .......................................................... 331

Angélica Alvin

Urbanização e regularização de loteamentos e habitações ............................... 359Gilda Collet Bruna

Evolução espacial dos loteamentos irregulares em São Paulo .......................... 381Suzana Pasternak

À sombra da regularização fundiária .............................................................. 417Mônica de Carvalho

Regularização fundiária urbana participava: a experiência do loteamento Ponte Alta “Osvaldinho” no município de Taboão da Serra ........................... 437

João Marcus Pires Dias

QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL

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In BÓGUS, Lúcia, RAPOSO, Isabel, PASTERNAK, Suzana (2011) Da irregularidade fundiária urbana à regularização: análise comparativa Portugal-Brasil, São Paulo, EDUC, pp. 143-159.

QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL

NA GRANDE ÁREA METROPOLITANA DE LISBOA 1 Sílvia Branco Jorge

Arquitecta, Mestranda em Reabilitação da arquitectura e dos Núcleos Urbanos na FAUTL. Bolsista de Investigação da Fundação para a Ciência e Tecnologia,

membro do GESTUAL (Grupos de Estudos Socio-territoriais e Urbanos e Acção Local). Contato: [email protected]

Introdução

O espaço público dos loteamentos de génese ilegal localizados na GAML é o objecto de estudo deste texto. Face à complexidade e à tendência para a privatização do fenómeno urbano, a reflexão sobre o espaço público começa a impor-se, obrigando a alterar os modelos teóricos e os paradigmas de intervenção. O olhar centra-se aqui na caracterização e na qualificação do espaço público dos loteamentos de génese ilegal, considerando-se que agindo sobre o espaço se age sobre a sociedade (Guerra 2007).

A qualidade do espaço público reside na confluência da forma com o uso e dos significados que assume, variáveis ao longo do tempo e com a cultura de quem os produz e deles se apropria e/ou os vivencia. A análise acompanha o percurso dos loteamentos de génese ilegal da GAML, desde o seu surgimento até aos dias de hoje, através de uma breve contextualização

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 Investigação conduzida no quadro do Projecto de Investigação PTDC/AUR/71721/2006 “Reconversão e reinserção urbana de bairros de génese ilegal. Avaliação socio-urbanística e soluções integradas de planeamento estratégico”, coordenado pela Professora Isabel Raposo, desenvolvido na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

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histórica, centrada na caracterização social e territorial, nas políticas, estra-tégias e metodologias de intervenção adoptadas, que interferem e/ou deter-minam as transformações do espaço público. Procura-se demonstrar que o fenómeno dos loteamentos de génese ilegal, ao inverter a ordem do proces-so de construção do espaço urbano, possibilitou o acesso à propriedade e ao urbano de classes sociais com menos recursos, embora tenha atrasado a construção do espaço público, dissociando-o da intervenção no domínio privado e remetendo-o para a fase final do processo de urbanização.

Origem do fenómeno: o primado do espaço privado

O crescimento industrial, que eclode em Portugal no final da década de 1950, atraiu fortes contingentes populacionais vindos das zonas rurais para o litoral, principalmente para Lisboa, resultando na explosão demográfica da capital. Estes fluxos demográficos de grande intensidade estão associa-dos ao fenómeno da periurbanização, e contribuíram para a reconfiguração social dos centros urbanos tradicionais (PORTAS et al. 2007).

Os centros urbanos dos vários municípios da GAML cresceram e expandiram-se de forma diferente no tempo, consequência das transforma-ções que ocorreram no seu uso do solo, da melhoria da acessibilidade e dos principais eixos dos transportes, das propostas de planeamento territorial de que foram objecto ou, pelo contrário, em consequência da sua inadaptação (PINHEIRO et al. 2001).

A partir sobretudo da década de 1960, cresce a cidade não planeada, que se estende na periferia da cidade planeada ou histórica, ou ocupando os seus interstícios, e se constrói por processos não controlados institucional-mente, considerados marginais e ilegais: o espaço urbano clandestino. No contexto dos grandes desequilíbrios socioeconómicos que caracterizam a época, as populações de origem rural, recém chegadas à cidade, ou na busca de residência própria, sem hipótese de chegarem ao mercado legal de habitação, começam a construir as suas casas “clandestinas” em terrenos privados e loteados ilegalmente.

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Os “clandestinos” representaram “um importante depoimento da iniciativa privada das populações, posta ao serviço da satisfação das necessidades mais elementares” (Rodrigues 1989: 80), como o acesso à habitação. O Estado Novo não desenvolveu uma política capaz de gerir o fluxo migratório e resolver a questão habitacional das populações migrantes e percepcionou estes segmentos da população como “classes perigosas” (Gros 1982). As carências ao nível da habitação, ensino, saúde, equipamentos e infra-estruturas básicas tornam-se prementes mas faltam os meios para as solucionar (id.: 47).

Os loteamentos de génese ilegal constituem alternativas às insuficiên-cias ou incapacidades – financeiras, técnicas e políticas – das administra-ções públicas (centrais, regionais e locais) em responderem ao crescimento urbano e ao afluxo à cidade inicialmente dos migrantes e, mais tarde, dos imigrantes, “incapacidades a que não são alheias as contradições e confli-tos que se desenvolvem a nível do poder político quer antes quer depois do 25 de Abril” (Soares 1984: 21).

O fenómeno dos loteamentos clandestinos desencadeou uma profunda alteração na estrutura fundiária das periferias urbanas, alterando a estrutura dos agentes urbanos e gerando contradições entre o grande e o pequeno capital, entre os promotores imobiliários e os proprietários clandestinos (ibid.).

Os loteamentos clandestinos caracterizam-se pelo traçado ortogonal, de rápida implementação, alheios às características locais, nomeadamente topográficas. A prioridade destes loteamentos clandestinos é o espaço privado, constituído pelos “lotes”, em detrimento do espaço público, entendido como a área sobrante do parcelamento, de acesso às parcelas, sem articulação com uma envolvente urbana, muitas vezes inexistente, com a qual pudesse estabelecer continuidades2.

O loteador ilegal oferecia uma alternativa de solo urbanizável (ilegalmente), sem a responsabilidade de fazer cedências nem obras de urbanização. A localização dos loteamentos clandestinos era função da disponibilidade de parcelas, em geral rústicas, a baixo preço, em alguns

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!2 Apesar dos clandestinos ocuparem inicialmente posições periféricas, integraram-se progressivamente no tecido urbano, devido ao crescimento contínuo do tecido urbano metropolitano, embora alguns se mantenham, até aos dias de hoje, isolados.

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FIGURA 1 - PLANTA DE UM TERRITÓRIO LOTEADO ILEGALMENTE

(QUINTA DO CONDE, SESIMBRA), POR UM DOS PRINCIPAIS

LOTEADORES ILEGAIS DA GAML, O SR. XAVIER DE LIMA.

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casos, áreas naturais de protecção ecológica marcadas por diversas condicionantes (ver texto de Ademar Machado). Resultou um uso do solo fragmentado, uma estrutura urbana descontínua e mal preenchida, carente de planeamento e ligação à envolvente, sem enquadramento das administrações públicas, à mercê da rentabilização financeira do loteador ilegal, da maximização da ocupação do solo. A população adquiria assim uma parcela de terreno (rústico) para construção (ilegal), não urbanizada, ou seja, sem vias pavimentadas, nem rede de água ou esgotos, recolha de lixo, transporte público ou equipamentos públicos.

A ocupação dos “lotes” fez-se gradualmente, sem regras formais. O loteamento clandestino definia o parcelamento do solo3, ficando ao critério dos proprietários a opção quanto à tipologia de construção e forma de ocu-pação dos terrenos, em função dos seus anseios e capacidades económicas. Consequentemente, os clandestinos incorporam uma diversidade de modelos, sobretudo residenciais, com diferentes densidades e padrões de ocupação, com variações entre margem Sul e margem Norte da GAML, entre cada um dos 18 municípios que a compõem, entre cada uma das freguesias e, em alguns casos, num mesmo bairro.

Ao construírem as suas habitações, muitas vezes em regime de auto-construção, os proprietários de “lotes” intervêm na produção do seu espaço habitacional (Lefebvre 1974). O preço acessível de aquisição do terreno, muitas vezes pago em prestações, e as tipologias evolutivas, adaptadas às necessidades e aos recursos disponíveis, o investimento e melhoramento gradual das casas, são vantagens significativas para as populações que optaram pela prática de construção clandestina.

Nestas construções evidenciam-se os materiais e tecnologias disponíveis no mercado, o que lhes confere uma mobilidade plástica e uma mutabili-dade permanente que se adapta às necessidades de quem as constrói e utiliza. Nelas, destacam-se: a tendência para um tratamento decorativo e de superfície dos elementos construtivos; a necessidade de afirmação

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3 O parcelamento do solo era feito pelo loteador ilegal, através de uma planta básica de loteamento. Nalguns casos, eram os proprietários que escolhiam a parcela de terreno, a sua localização, e dimensão: “esticava-se a fita métrica [e] colocavam-se as estacas” segundo depoimento do Sr. Rui Pego, filho do loteador ilegal da Quinta da Fábrica, Vinha e Atafoneira, no município de Loures (entrevista a 6 de Julho de 2009).

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individual na pintura colorida das fachadas ou no revestimento com materiais cerâmicos; a preocupação com o embelezamento dos espaços da entrada, como a demarcação dos muros que separam o privado do público; e a ornamentação de vãos e recantos (Fernandes 1989: 134). Nos loteamentos clandestinos, as construções exprimem os modelos, os desejos e o gosto de quem as produz ou habita.

As populações tinham o sonho de construir uma casa, não ambicionavam construir cidade, o que condiciona a relação entre o individual e o colectivo, entre o espaço privado e o espaço público. A conjuntura da sociedade portuguesa, no terceiro quartel do século XX, e a origem rural das populações explicam o desejo pela posse de um “pedaço de terra” e de uma habitação unifamiliar. Na adaptação à cidade, os residentes do clandestino não pretenderam “urbanizar o rural”, mas sim “ruralizar o urbano”, de acordo com o seu habitus (Ferreira et al 1984: 117). Assim, predomina entre o clandestino a baixa densidade e a habitação unifamiliar, sendo mais reduzida a percentagem da habitação plurifamiliar, geralmente prédios para arrendamento, localizados principalmente nos municípios da margem Norte, da primeira coroa, próximos da capital ou dos principais centros de emprego. A intervenção das populações no espaço privado, nomeadamente nas características exteriores das construções, interferiu e interfere nas características do espaço público, o qual se configura pela relação entre a verticalidade do lote/construção e a horizontalidade do espaço exterior (Oliveira 2008).

No caso da habitação unifamiliar (moradia), o espaço público é marcado pela forte presença dos muros de vedação que delimitam cada uma das parcelas, marca do domínio privado e demarcação da rua; pela ausência de passeios e de arborização nas vias públicas; pela inexistência de mobiliário urbano; pela presença das infra-estruturas aéreas, quando existentes, nomeadamente os cabos da rede de electricidade e de telefone; e pela carência de comércio local. Nestas áreas domina a mono-funcionalidade, a escassez de transportes públicos, a deslocação a pé, nos primeiros anos, e actualmente a dependência do transporte individual. Na habitação plurifamiliar, o espaço público é marcado pelo uso comum de espaços de acesso e circulação entre vizinhos, em contraponto com a moradia uni-familiar que garante uma maior privacidade e autonomia.

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Em 1965, para enquadrar a expansão urbana crescente, surgiu o primeiro diploma legal (Decreto-Lei n.º 46673/65, de 29 de Novembro) que faz depender de licenciamento da Câmara Municipal o parcelamento do solo urbano. Este Decreto-Lei bem como o que se lhe seguiu, em 1973, que tentou impor algumas regras, centrou-se apenas na questão do licenciamento, sem alusão aos espaços públicos e equipamentos colectivos destes loteamentos ilegais. As exigências de execução das obras de urbanização, de cedência de terrenos para o domínio dos municípios, para espaços verdes e equipamentos, não entravam no quadro das relações entre Estado e promotores privados até à década de 1970. Só a lei dos solos marcelista (Decreto-Lei n.º 576/70), assim como alguns diplomas que lhe seguiram, desencadearam algumas alterações ao “capitalismo urbano

português” (Soares 1984: 20).

A realização das obras de urbanização, surge assim, contrariamente aos loteamentos legais, na fase final do processo de urbanização, após o parcelamento, a venda de “lotes” e a sua ocupação. Esta inversão do processo, através da alteração das etapas de urbanização, permitiu o investimento repartido ao longo de prazos relativamente largos, possibilitando o acesso à propriedade e ao urbano a classes socais com menos recursos.

A REVOLUÇÃO DE ABRIL: A EXPANSÃO DO CLANDESTINO E A CONSTRUÇÃO DE INFRA-ESTRUTURAS

A Revolução de 1974, com a instauração das liberdades democráticas e a integração, na nova constituição, do direito à habitação, favoreceu o pequeno investidor urbano e dinamizou a pequena construção e o loteamento a ela associado (Soares 1984). No entanto, o Estado não reuniu os meios técnicos e económicos necessários para responder às necessidades e reivindicações da população, como o acesso a habitação e a infra-estruturas básicas, nem teve capacidade de impedir o desenvolvimento dos loteamentos clandestinos e das construções ilegais, o que se traduziu numa postura tolerante relativamente a estes fenómenos que se expandem. Além da resposta à necessidade de uma habitação, permanente ou secundária, passa a coexistir, com mais frequência, a prática de aquisição de mais de

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uma parcela clandestina visando a especulação fundiária e imobiliária. Constituem exemplo as várias áreas loteadas ilegalmente sem qualquer construção, que ainda hoje se mantêm expectantes, em geral na expectativa de valorização e posterior venda.

Depois do 25 de Abril, foi-se consolidando o acesso às infra-estruturas básicas nos loteamentos ilegais e especificamente, no que importa à caracterização do espaço público, a pavimentação das vias, a execução dos passeios e a iluminação pública. Parte destas obras foram apoiadas pelos municípios, que cederam materiais e equipamentos aos moradores: as chamadas “obras de fim-de-semana”. A intervenção directa das populações na produção do espaço urbano extravasa agora a construção das próprias habitações, expressando-se através do financiamento e construção de infra-estruturas, da reivindicação das obras de urbanização e da criação de comissões e associações de moradores (Soares 1984) que, em alguns casos, ainda se mantêm em funcionamento.

Em 1976 verifica-se uma mudança de olhar do legislador com a saída do Decreto-Lei nº. 804/76, de 6 de Novembro. Além de contemplar três medidas de actuação (legalização, manutenção temporária e/ou demolição), refere-se pela primeira vez ao domínio público destas áreas. Assim, no Projecto de Urbanização ou Reconversão (artigo 6º) são previstos:

“o equipamento social e as infra-estruturas a instalar ou melhorar e o volume das

despesas a realizar para esse efeito; as redistribuições, correcções ou reduções que

eventualmente se mostrem indispensáveis nos diversos lotes, para adequado

reordenamento da área, incluindo a obtenção dos terrenos necessários para as infra-

estruturas e o equipamento social (...)”.

Há que ressaltar a importância deste texto legal, apesar do seu impacto no terreno não ter tido o peso pretendido, sobretudo devido à falta de meios financeiros – quer dos proprietários, que concentravam os seus recursos na habitação, quer do Estado –, para se efectuar a expropriação por utilidade pública dos terrenos necessários para a construção de infra-estruturas e equipamentos4.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4 Segundo o depoimento do jurista António Janeiro, em entrevista realizada no dia 20 de Maio de 2009.

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Neste período, regista-se também, nos loteamentos clandestinos, o acréscimo do fenómeno de arrendamento, principalmente nos municípios da margem Norte limítrofes da capital. Este facto deve-se em parte, no período entre 1974 e o início da década de 1980, ao afluxo dos retornados e de imigrantes das ex-colónias, logo a seguir à descolonização. Em alguns bairros assistiu-se à transformação da habitação uni-familiar para habitação pluri-familiar, para arrendamento, com consequências ao nível da configuração do espaço público.

Em 1984, com a aprovação de um novo diploma (Decreto-Lei nº. 400/84, de 31 de Dezembro), passou a ser proibida a venda de parcelas em avos, o que atenuou o avanço do fenómeno clandestino, mas aquele não teve impacto ao nível do espaço público dos loteamentos clandestinos existentes, por se cingir à questão fundiária e à divisão do solo em regime de compropriedade.

As intervenções nos loteamentos clandestinos melhoraram as condições de vida das populações, mas, do ponto de vista jurídico, “apenas [se semearam] estradas, candeeiros, passeios e casas em prédios descritos na

conservatória do registo predial como rústicos, destinados à cultura

arvense” (RAMOS 2002: 161). Esta questão jurídica foi encarada de forma mais incisiva uma década depois com a aprovação da lei de excepção.

UMA LEI EXCEPCIONAL PARA A RECONVERSÃO DAS ÁREAS URBANAS DE GÉNESE ILEGAL

Em 1995, entrou em vigor o actual regime jurídico de excepção para os loteamentos clandestinos. De acordo com a Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, passaram a denominar-se áreas urbanas de génese ilegal (AUGI) “os prédios ou conjuntos de prédios contíguos que, sem a competente

licença de loteamento, quando legalmente exigida, tenham sido objecto de

operações físicas de parcelamento destinadas à construção” (artigo 1º, n.º 2).

Esta Lei obrigou a repensar conceitos, metodologias e técnicas de intervenção para as AUGI. Estabeleceu como princípio geral o dever de reconversão, imputado aos particulares, concretizado no "dever de

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conformar os prédios que integram a AUGI com o alvará de loteamento ou

com o plano de pormenor de reconversão, nos termos e prazos a

estabelecer pela câmara municipal" (n.º 2 do art. 3º) e no “dever de

comparticipar nas despesas de reconversão” (n.º 3 do mesmo artigo).

Foram introduzidas alterações à Lei n.º 91/95, com a Lei n.º165/99, de 14 de Setembro, a n.º 64/2003, de 23 de Agosto, e a n.º 10/2008, de 20 de Fevereiro. O problema, no entanto, catorze anos após a entrada em vigor da lei de excepção, está longe de ser resolvido, não apenas devido à extensão do território que falta reconverter (ver artigo de Isabel Raposo nesta edição) mas, sobretudo, pela forma como se intervém, na prática, nos territórios de génese ilegal.

A maioria das reconversões, em curso e concluídas, incide sobretudo na legalização da ocupação do solo e na infra-estruturação, a qual é dissociada da reconversão urbanística e da qualificação do espaço público. A reconversão subordina-se assim à divisão estabelecida pelo loteador ilegal, consolidando-se uma estrutura urbana que dá prioridade ao espaço privado, em detrimento do público, mesmo nos casos onde poucas parcelas estão ocupadas e o território não se encontra muito comprometido.

Em todos os municípios da GAML, os planos de reconversão restringem-se à propriedade loteada ilegalmente, não se articulando com o território envolvente, o que condiciona a intervenção no domínio público, esquecendo que, como refere CERTEAU, intervir no território implica “pensar a própria pluralidade do real” (1990: 173). Constitui excepção o município de Oeiras, onde os loteamentos de génese ilegal são integrados em planos territoriais não eficazes (de Ordenamento e Reconversão), que incluem outras situações territoriais, de génese ilegal (como ocupações de terrenos municipais e construções não licenciadas sobre parcelamento legal de terreno municipal) e legal (como cooperativas e condomínios fechados), possibilitando uma intervenção integrada e o entendimento global do espaço público.

A Lei n.º 91/95 prevê a cedência, para o domínio público, de áreas para espaços verdes e equipamentos, essenciais para a qualificação do espaço público, mas o seu enunciado é susceptível de diferentes interpretações. Diz o texto da Lei que:

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“as áreas de terreno destinadas a espaços verdes e de utilização colectiva, infra-

estruturas viárias e equipamentos podem ser inferiores às que resultam da aplicação

dos parâmetros definidos pelo regime jurídico aplicável aos loteamentos quando o

cumprimento estrito daqueles parâmetros possa inviabilizar a operação de

reconversão” (art.º 6.º, n.º 1),

havendo, nestes casos, “lugar à compensação [...] a qual deve, sempre que

possível, ser realizada em espécie” (n.º 2) e “no território das freguesias onde se situa a AUGI” (art.º 6.º, n.º 4 da alteração à Lei de 1999, sublinhado nosso). Apoiados neste último enunciado, em muitos municípios não se exige a cedência efectiva, mas sim, a compensação monetária, o que condiciona, na maioria dos casos, a qualificação do espaço público. Apenas três dos dezoito municípios da GAML, Loures, Almada e Seixal, exigem ou incentivam a cedência efectiva, mesmo que seja na área envolvente, caso não haja possibilidade de se efectuar no interior do bairro, à excepção de situações pontuais em que não se aplica esta regra devido à falta de recursos económicos. Com efeito, nalguns casos, os proprietários não têm capacidade para pagar a compensação em numerário, arrastando-se o processo pela falta de pagamento; noutros, como sucede em Sesimbra, nos loteamentos de génese legal paga-se metade da compensação devida.

No processo de reconversão, são diversos os entraves que impossibilitam ou condicionam a cedência efectiva, entre os quais: i) inexistência de terrenos livres dentro dos limites da área urbana de génese ilegal, estando todo o espaço loteado e construído; ii) falta de capacidade financeira dos proprietários para a aquisição de terrenos para cedência; iii) falta de interesse dos proprietários na qualificação do espaço público, prevalecendo o interesse pelo espaço privado e uma urbanidade influenciada pelo habitus rural; iv) alguma desconfiança dos proprietários em relação aos serviços municipalizados sobre o destino das áreas que irão ceder, atrasando ou inviabilizando a cedência; v) intenção dos proprietários de venderem o(s) lote(s) que possuem, estando mais motivados pela rentabilização do seu terreno que pelas cedências para equipamentos e/ou espaços verdes.

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Uma das dificuldades do processo de reconversão surge da imposição camarária de demolição de muros de vedação para alargar e qualificar a via pública. A grande resistência de muitos proprietários em ceder uma parte do seu lote explica-se em parte pelo significado que a habitação adquire no território clandestino. Como refere Guerra (1989: 111), a casa é “o resultado da poupança da geração anterior, realização da geração presente e património para a geração futura, numa íntima articulação de esforços e acordos sobre as perspectivas de vida.” Desfazer-se de uma parte da casa ou do lote adquire neste contexto mais do que uma dimensão material.

A relação entre a esfera privada e pública é condicionada por factores como a tipologia de ocupação, a densidade populacional, o nível económico, o grau de cooperação entre os habitantes, a distância entre grupos sociais, ou a mobilidade social e o interesse por estas áreas de classes sociais mais altas. Como vários estudos têm mostrado, o maior poder aquisitivo pode fazer diminuir a necessidade de ajuda mútua e aumentar a necessidade individual do espaço (Serpa 2004: 31) enquanto a falta de recursos materiais pode gerar um uso mais intenso do espaço público, mesmo se não qualificado.

A alteração do modelo de ocupação, pode desencadear mudanças ao nível da esfera pública. O aparecimento de novos fluxos imigratórios, provenientes principalmente dos cinco países africanos de língua oficial portuguesa, do Brasil e, mais recentemente, da Europa de Leste (Ucrânia, Moldávia, Rússia e Roménia), fundamentalmente arrendatários, alterou as expectativas de alguns proprietários, que passaram a alugar parte ou a totalidade das suas construções. Os proprietários ao rentabilizarem o espaço privado, alugando-o (ilegalmente), desinteressaram-se pela reconversão, e dificilmente os inquilinos conseguem influenciar as decisões da Comissão de Administração Conjunta5. A Lei nº. 91/95 (artigo 8.º, n.º1), ao prever a criação de Administração Conjunta composta unicamente por (com)proprietários e não por moradores, não favorece uma participação

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!5 Por exemplo no bairro Miratejo Queimadas, em Loures, o passeio em frente a uma construção arrendada não foi concluído porque o proprietário em causa, que aluga a totalidade da sua construção e não reside no bairro, não comparticipou nas obras de urbanização. Neste caso, excepcionalmente, um dos inquilinos tomou conhecimento da situação através da Junta de Freguesia e decidiu pagar as comparticipações, deduzidas mais tarde na sua renda, para beneficiar da qualificação do espaço público do bairro onde reside (depoimento de moradora, entrevistada a 20 de Julho de 2009).

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alargada. A dificuldade de inserção no tecido laboral e social, remete a comunidade imigrante para uma marginalidade económica, social, cultural e habitacional.

MUDANÇA DE PARADIGMA: DA RECONVERSÃO À QUALIFICAÇÃO

Começa a ganhar corpo, uma nova atitude de entender e intervir nas AUGI, particularmente nalguns municípios da GAML, quer da margem Norte (Amadora, Cascais, Oeiras e Loures), quer da margem Sul (Almada e Seixal), anunciando uma mudança de paradigma: da reconversão à qualificação. Procura-se ir além de simples intervenções locais, delimitadas aos loteamentos clandestinos, numa abordagem integrada e estruturante. Esta transição, embora nem sempre transposta para o território, observa-se não só no discurso dos políticos e técnicos municipais, mas também, dos moradores das AUGI.

Apesar desta mudança de paradigma, a cedência efectiva para o domínio público nem sempre corresponde à qualificação do espaço público. A localização das áreas cedidas pode não ser determinada pela estrutura urbana, mas pelas disponibilidades concretas de área livre no interior da AUGI, podendo ceder-se terrenos para o domínio público dentro ou fora do seu limite. Estes, mantendo-se expectantes, sem arranjos exteriores nem equipamentos, não contribuem no curto prazo para a qualificação do domínio público.

Em contrapartida, existem outros espaços, no interior ou nas imediações do loteamento que são lugares de referência para encontro e convívio dos residentes. Um pequeno largo, uma escadaria, um café ou mercearia, umas hortas urbanas, ou uma associação cultural ou recreativa são espaços vividos. As intervenções visando a qualificação do espaço público requerem o estudo das vivências e da qualidade destes lugares de encontro já apropriados pelos moradores.

Apesar de excepcionais, existem já algumas intervenções, de iniciativa privada e/ou municipal, realizadas nos loteamentos de génese ilegal, de qualificação do espaço público. Em alguns municípios (Loures e Almada)

QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL

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destaca-se o forte interesse dos proprietários na qualificação do espaço público em reconversões de iniciativa privada, com ou sem o apoio das autarquias. Os proprietários cedem ao domínio público áreas para espaços verdes e equipamentos superiores às previstas, e envolvem-se na construção de equipamentos colectivos. Foi o caso, no Casal de Mirralhinhos, em Loures, em 1985 (antes da Lei n.º 91/95), na sequência de um encontro, entre as Comissões e Associações locais, em que os proprietários cederam 65.000 m2 ao domínio público, o que possibilitou a criação de espaços verdes e equipamentos de apoio à população. Mais recentemente, na Quinta Baú-Baú, em Almada, a Associação de Moradores, constituída depois da conclusão do processo de reconversão e da extinção da Administração Conjunta, construiu, no espaço cedido ao domínio público, a sua sede, um campo desportivo e um parque infantil, onde se desenvolvem actividades culturais e desportivas. A segunda geração residente nos bairros de génese ilegal é amiúde mais exigente ao nível de equipamentos, zonas verdes e espaço público. Gradualmente, reflexo da ascensão social e de uma maior urbanidade, as necessidades começam a sair da esfera privada.

Além do interesse dos proprietários pela requalificação, há que ressaltar o papel desempenhado por algumas autarquias (Cascais, Loures, Almada e Seixal) nomeadamente através de campanhas de sensibilização ou de diálogo com os proprietários, ao alertar para a importância da cedência de áreas para espaços verdes e equipamentos e da qualificação do espaço público. Estes municípios defendem o envolvimento municipal, técnico e político, na reconversão e no apoio aos proprietários para avanço do processo. Os custos das obras de qualificação são suportados pelos proprietários, por vezes com o apoio dos municípios (Cascais e Loures) através da cedência de materiais, como por exemplo asfalto para a pavimentação das ruas e calçada para a execução dos passeios públicos, maquinaria e mão de obra especializada, que acompanha e supervisiona a execução dos trabalhos.

As autarquias ao incentivar a cedência efectiva de áreas para espaços verdes e equipamentos promovem a (re)organização e (re)estruturação do território, equilibrando a relação entre a esfera privada e pública e incorporando novos usos e funções, através de intervenções de

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requalificação. Alguns municípios, quando não se conseguem efectivar as cedências para o domínio público, apostam na qualificação, plantando árvores nas vias, criando hierarquias viárias e ligações com a envolvente urbana e/ou intervindo em áreas próximas dos territórios de génese ilegal, criando equipamentos e espaços verdes. No caso de Cascais, as intervenções realizadas neste âmbito, após a legalização fundiária, são financiadas pelos proprietários, com o apoio da autarquia, nomeadamente na elaboração dos projectos de especialidade. Em Oeiras, as obras de qualificação, que antecedem a legalização fundiária, são financiadas pela autarquia, responsável pela elaboração dos projectos e pela sua execução.

Face às carências e condicionantes dos loteamentos de génese ilegal e aos elevados custos implicados na sua qualificação, alguns municípios da margem Norte (Amadora, Loures e Odivelas) têm procurado aceder a financiamentos comunitários europeus, como por exemplo o Programa Integrado de Qualificação das Áreas Suburbanas da Área Metropolitana de Lisboa (PROQUAL) ou o Quadro de Referência Estratégica Nacional (QREN). Foi o caso do município da Amadora que, com o financiamento do PROQUAL, interveio num dos núcleos clandestinos mais antigos da GAML, a Brandoa. A estratégia de actuação apostou na criação de uma nova centralidade local e municipal, através da intervenção no espaço público, requalificando-o, e no reforço da rede de equipamentos de proximidade (de carácter cívico, cultural, escolar, social e desportivo), de apoio à vida quotidiana. A concepção estruturante da intervenção e o entendimento do tecido urbano permitiu uma acção integrada e sustentável, tendo-se incorporado várias componentes (física, sociocultural e económica), graças à formação de uma equipa multidisciplinar, e apostado na formação para a cidadania, ao se mobilizar a população-alvo, por meio de uma acção permanente de negociação, comunicação e acesso à informação.

Apesar da diversidade destas intervenções de qualificação, do tipo de iniciativa privada ou municipal, dos procedimentos, enquadramentos e resultados alcançados, identifica-se uma visão mais integrada e estratégica do território e uma articulação com as dinâmicas locais, através da negociação e estreita interacção com os proprietários.

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A mudança de paradigma incorporada no discurso urbanístico e a progressiva consciencialização da importância do espaço público na requalificação dos loteamentos de génese ilegal, assenta no entendimento da esfera pública, como o elemento ordenador do urbano, capaz de suportar diversos usos e funções, de criar lugares, de integrar. No entanto, nem sempre esse entendimento se reflecte, na prática, em intervenções qualificadoras, e nem sempre tem significado para as populações, delas distantes ou distanciadas.

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