Da Lógica dos Sinais (Semiótica) · Da Lógica dos Sinais 3 conceito por ele co-assinalado,...

23
Da Lógica dos Sinais (Semiótica) Tradução de António Fidalgo, Universidade da Beira Interior Edmund Husserl Hua XII- Philosophie der Arithmetik, pp. 340-373 [340] Mas como é possível falar de con- ceitos que propriamente (eigentlich) não te- mos, e como é que não é absurdo que sobre esses conceitos se funde a mais segura de to- das as ciências, a aritmética? Vamos respon- der a isto com uma reflexão do âmbito da ló- gica. Conceitos, conteúdos, podem-nos ser da- dos de duplo modo: primeiro, de um modo próprio, isto é, como aquilo que eles são; se- gundo, de um modo impróprio ou simbólico, isto é, pela mediação de sinais (Zeichen), que são eles mesmos representados propri- amente. Assim, por exemplo, cada repre- sentação intuitiva na sensação ou na fantasia é uma representação própria, na medida em que não nos serve de sinal de uma outra; se o fizer, porém, então é, relativamente a esta, uma representação simbólica. A palavra sinal, como aqui a definimos, deve ser tomada no sentido mais amplo que é possível conceber. Não nos limitamos, pois, aos sinais sensíveis exteriores que as- sociamos às coisas, a fim de mais facilmente as distinguirmos e reconhecermos. Desse género são os nomes próprios como Pedro e João; o mesmo se diga dos nomes das entidades abstractas. Mas também os no- mes gerais são sinais. Todo o nome ge- ral é um sinal de uma representação ge- ral, e esta por sua vez é um sinal de cada um dos objectos que são subsumidos sob o conceito abstracto correspondente; assim, cada nome geral é, nesta mediação, um si- nal de cada um dos objectos que abarca, gra- ças à sua "co-assinalação"(Mitbezeichnung). Ademais, entendemos (e isso já se depre- ende do último exemplo dado) como sinal cada marca (Merkmal) conceptual, desde que sirva precisamente como marca. Qual- quer qualidade, [341] seja ela absoluta ou negativa, pode servir ocasionalmente como sinal marcante do objecto que a possui. É evidente que aqui reside a fonte dos equívo- cos do nome ’marca’: no seu sentido origi- nário significa o mesmo que sinal, sendo de- pois restringido às qualidades tomadas como sinais, para no fim, em sentido figurado (in übertragenem Sinn), significar o mesmo que qualidade em geral. No entanto, não é em todas as circunstâncias que uma qualidade nos serve de sinal, embora cada uma possa servir ocasionalmente para esse fim. Por ve- zes, interessam-nos as qualidades do alumí- nio enquanto tais, na medida em que en- riquecem o conhecimento que temos desse metal; noutros casos, porém, podem preci- samente as mesmas qualidades, constatadas

Transcript of Da Lógica dos Sinais (Semiótica) · Da Lógica dos Sinais 3 conceito por ele co-assinalado,...

Da Lógica dos Sinais (Semiótica)Tradução de António Fidalgo, Universidade da Beira Interior

Edmund Husserl

Hua XII- Philosophie der Arithmetik, pp. 340-373

[340] Mas como é possível falar de con-ceitos que propriamente (eigentlich) não te-mos, e como é que não é absurdo que sobreesses conceitos se funde a mais segura de to-das as ciências, a aritmética? Vamos respon-der a isto com uma reflexão do âmbito da ló-gica.

Conceitos, conteúdos, podem-nos ser da-dos de duplo modo: primeiro, de um modopróprio, isto é, como aquilo que eles são; se-gundo, de um modo impróprio ou simbólico,isto é, pela mediação de sinais (Zeichen),que são eles mesmos representados propri-amente. Assim, por exemplo, cada repre-sentação intuitiva na sensação ou na fantasiaé uma representação própria, na medida emque não nos serve de sinal de uma outra; seo fizer, porém, então é, relativamente a esta,uma representação simbólica.

A palavra sinal, como aqui a definimos,deve ser tomada no sentido mais amplo queé possível conceber. Não nos limitamos,pois, aos sinais sensíveis exteriores que as-sociamos às coisas, a fim de mais facilmenteas distinguirmos e reconhecermos. Dessegénero são os nomes próprios como Pedroe João; o mesmo se diga dos nomes dasentidades abstractas. Mas também os no-mes gerais são sinais. Todo o nome ge-

ral é um sinal de uma representação ge-ral, e esta por sua vez é um sinal de cadaum dos objectos que são subsumidos sobo conceito abstracto correspondente; assim,cada nome geral é, nesta mediação, um si-nal de cada um dos objectos que abarca, gra-ças à sua "co-assinalação"(Mitbezeichnung).Ademais, entendemos (e isso já se depre-ende do último exemplo dado) como sinalcada marca (Merkmal) conceptual, desdeque sirva precisamente como marca. Qual-quer qualidade, [341] seja ela absoluta ounegativa, pode servir ocasionalmente comosinal marcante do objecto que a possui. Éevidente que aqui reside a fonte dos equívo-cos do nome ’marca’: no seu sentido origi-nário significa o mesmo que sinal, sendo de-pois restringido às qualidades tomadas comosinais, para no fim, em sentido figurado (inübertragenem Sinn), significar o mesmo quequalidade em geral. No entanto, não é emtodas as circunstâncias que uma qualidadenos serve de sinal, embora cada uma possaservir ocasionalmente para esse fim. Por ve-zes, interessam-nos as qualidades do alumí-nio enquanto tais, na medida em que en-riquecem o conhecimento que temos dessemetal; noutros casos, porém, podem preci-samente as mesmas qualidades, constatadas

2 Edmund Husserl

num corpo ainda desconhecido, serem utili-zadas como sinais marcantes de que se tratajustamente de alumínio.

Como sinal de uma coisa (de um conteúdoem geral) pode servir tudo aquilo que a dis-tingue, que é adequada a diferenciá-la de ou-tras, e pelo qual somos capazes de a reco-nhecer de novo. Não consideramos, todavia,esse reconhecimento como um mecanismopsicológico, que funciona sem que dêmosconta disso; que devido a uma representa-ção nos chama à consciência uma outra, semque, contudo, sejamos capazes (pelo menosem geral) de dar conta de que foi aquela quenos recordou esta e mediou o seu reconheci-mento. Para que o conceito de sinal seja pos-sível, para que possamos utilizar e encontrarintencionalmente (mit Absicht) sinais, temosde atender particularmente à relação entre si-nal e assinalado, e, na realidade, fizemos ve-zes sem conta a experiência de que marcassensíveis-exteriores e conceptuais são apro-priadas para dirigir o nosso pensamento paraos conteúdos que as possuem. O conceito desinal é justamente um conceito de relação;ele aponta para um assinalado.

Os sinais permitem múltiplas divisões.Distinguimos: 1) sinais exteriores e concep-tuais, ou seja, sinais em sentido restrito emarcas. Um sinal exterior é aquele que nadatem a ver com o conceito especial do assi-nalado, com o seu conteúdo ou com as suasqualidades específicas. É nesta relação que,por exemplo, se encontra o nome de umapessoa com esta mesma; ele assinala-a, masnão a caracteriza (charakterisiert).

[342] Um sinal conceptual é uma marcainterior ou exterior que serve como sinal, nosentido habitual destes termos. Ambas asmarcas dependem do conceito especial doassinalado. As primeiras são determinações

que estão incluídas como conteúdos parciaisna representação do conteúdo assinalado; asúltimas são determinações relativas que ca-racterizam o conteúdo como o fundamentode certas relações nele baseadas. De resto édigno de nota que também as marcas absolu-tas, se virmos bem, representam determina-ções relativas. Quando alguém nos descreveum objecto desconhecido, assinalando-o en-tre outros como sendo vermelho, então não éo vermelho enquanto tal que nos serve de ca-racterística do objecto, mas sim o ser verme-lho, isto é, a relação, por nós bem conhecidana sua especificidade, entre coisa e cor. Mas,deste modo são também relativas as marcasexteriores, independentemente do seu con-teúdo especificamente relacional. Nestas en-contramos, portanto, uma relação múltipla:a relação da coisa assinalada com outras coi-sas e, além disso, a relação da mesma coma própria relação, mediante a qual o atributorelativo enquanto atributo recebe o seu sig-nificado. Se, por exemplo, a primeira rela-ção for uma relação de semelhança entre A eB, então a última é aquela que possibilita oatributo "semelhança com A". Podemos ex-primir da seguinte maneira a representaçãosinalética (Zeichenvorstellung) para marcasabsolutas e relativas: uma vez, "algo que tema cor vermelha"; a outra vez, "algo que se en-contra numa relação de semelhança com B".

2) Sinais unívocos e equívocos, havendo adistinguir entre sinais que são casualmenteunívocos ou equívocos e sinais que o sãopela sua natureza e determinação (Bestim-mung). Por determinação é unívoco, porexemplo, todo o nome próprio; encerra, po-rém, uma equivocidade casual quando váriaspessoas têm o mesmo nome. Por outro lado,todo o nome geral é casualmente unívocoquando de facto apenas existe um objecto do

www.bocc.ubi.pt

Da Lógica dos Sinais 3

conceito por ele co-assinalado, embora sejaequívoco por sua natureza e determinação.

Mediante a associação e a limitação re-cíprocas de vários sinais equívocos podemconstruir-se sinais compostos unívocos, umprocesso de que a língua se serve continua-mente em relação aos nomes gerais, do queresulta uma [343] enorme economia de si-nais e uma importante promoção do conheci-mento obtido com os sinais descritivos (ums-chreibenden).

Seguidamente refira-se a divisão dos si-nais em: 3) sinais simples e compostos (zu-sammengesetzte), que contudo não deve serconfundida com uma outra divisão particu-larmente importante e que se cruza com ela:4) a dos sinais directos e indirectos. Sinal ecoisa podem nomeadamente estar ligados di-recta ou indirectamente, através da mediaçãode outros sinais. O sinal indirecto é um sinalcomposto, em que os sinais parciais não seencontram uns ao lado dos outros, mas so-brepostos e relacionados uns aos outros. Sé um sinal do objecto O pelo facto de S serum sinal de S0 e este um sinal de O; ou en-tão, pelo facto de S ser um sinal de S1, esteum sinal de S2 e este, por sua vez, talvez umsinal de S3, etc., até finalmente o sinal Snassinalar directamente O. Todo o nome pró-prio é um sinal directo, todo o nome geralé um indirecto. De facto o nome geral assi-nala o objecto através da mediação de certasmarcas conceptuais. O adjectivo vermelhoassinala directamente o ser-vermelho (abar-cando a entidade abstracta vermelho comoparte metafísica) e justamente este pode ser-vir como sinal marcante para o próprio ob-jecto, embora tenha que se acrescentar outropara a assinalação se tornar unívoca. Todosos sinais equívocos, que co-assinalam umdeterminado âmbito da equivocidade, são in-

directos; pois que esta assinalação só podeocorrer mediante uma marca geral que, por-tanto, faz a mediação entre sinal e assina-lado.

Nos sinais indirectos é necessário distin-guir: aquilo que o sinal significa (bedeutet)e aquilo que ele assinala. Nos sinais di-rectos identificam-se. O significado de umnome próprio, por exemplo, consiste em jus-tamente designar este determinado objecto.Em contrapartida, existem nos sinais indirec-tos mediações entre sinal e coisa, e o sinalassinala a coisa precisamente através dessasmediações, e é por isso que elas constituem osignificado. O significado do sinal indirectoS é de que assinala directamente S1, este di-rectamente S2 etc. e finalmente Sn assinaladirectamente O. Assim, por exemplo, o sig-nificado do nome geral consiste em que ele[344] assinala qualquer objecto na base de emediante certas marcas que este possui.

Todos os sinais matemáticos superioressão indirectos, são sinais sobrepostos de si-nais sobre sinais. É fácil de ver que esta di-visão se cruza com as duas divisões já referi-das. Em particular é de notar que os sinaisparciais mediadores podem ser tanto uní-vocos como equívos, tanto exteriores comoconceptuais (eventualmente ambos à mis-tura). Veremos como sinais indirectos, pura-mente exteriores, e completamente unívocos(ao lado de sinais indirectos e misturados)desempenham um papel importantíssimo naaritmética.

5) Sinais idênticos e não-idênticos, equi-valentes e não-equivalentes. Dois sinaissão idênticos aquando assinalam do mesmomodo o mesmo objecto ou os objectos de ume mesmo conjunto. Um é a simples repetiçãodo outro, por exemplo, cavalo e cavalo, cincoe cinco. Sinais identicamente equívocos não

www.bocc.ubi.pt

4 Edmund Husserl

assinalam em geral identicamente o mesmoobjecto, mas sempre objectos de um iden-ticamente mesmo âmbito, determinado pelosignificado do sinal.

Dois sinais são equivalentes desde que as-sinalem de diferentes modos o mesmo ob-jecto ou os objectos de um e mesmo conjuntode objectos, seja através de meios exterioresou conceptuais, por exemplo um par de no-mes sinónimos como rei e rex; Guilherme II= actual imperador alemão; 2 + 3 = 5 = 7 - 2= + 25.

Exemplos especiais de equivalências desinais são as definições no sentido de umalógica verdadeiramente formal. Uma defini-ção é uma frase que exprime o significadode um sinal exterior mediante um sinal equi-valente desta espécie. Um sinal exterior di-recto não tem um significado exprimível emsinais, não pode portanto ser definido, porexemplo, nomes próprios, nomes de entida-des abstractas, o sinal 1 e semelhantes.

Por fim, os sinais podem ser divididos emsinais para conteúdos-de-representação e si-nais para actos psíquicos, sobretudo para juí-zos. A maior parte das palavras da língua sãosinais independentes (selbstständige) ou de-pendentes para conteúdos. Juízos aparecemlinguisticamente na forma de frases. Juí-zos matemáticos aparecem nas [345] formassimbólicas das equações, inequações, con-gruências e semelhantes.

Os sinais para conteúdos subdividem-seem sinais para conteúdos absolutos e si-nais para relações (Relationen), para liga-ções (Beziehungen) e conexões (Verbindun-gen); os últimos são expressos linguisti-camente com frequência mediante palavrassincategoremáticas tais como: "e", "mas".Na aritmética distinguem-se os sinais de nú-

meros dos sinais =, =, e dos sinais de opera-ções +, *, etc.

Da divisão dos sinais em naturais eartificiais.

As mesmas leis naturais estão na base dossinais artificais e dos naturais. O elementonovo que surge nos sinais artificiais é a in-fluência da vontade orientada por motivosgnosiológicos (Erkenntnismotiven) e a capa-cidade de, através dela, regular, consoanteesses interesses, o decurso da actividade ju-dicativa.A descoberta de sinais artificiais em geralocorre já ao nível mais primário do desen-volvimento humano. As precondições psico-lógicas que ela exige, a compreensão para afunção dos sinais e o poder da vontade sobreos motores psíquicos subjacentes, são justa-mente tão simples e tão frequentemente re-alizados que não podemos admirar-nos demesmo animais se entenderem, até um certograu, através de sinais. Uma expressão sen-sível, por exemplo aquela que a um indiví-duo singular se apresenta como um sinal na-tural, pode tornar-se ao mesmo tempo paraum outro indivíduo mediadora da compreen-são. O reconhecimento deste sucesso podedar azo a utilizar conscientemente o sinal na-tural como um meio de compreensão. Atra-vés de um uso frequente e recíproco surgemassim sinais com um significado fixo e con-vencional. Analogamente se passa tambémcom o surgimento de sucedâneos artificiais,por exemplo dos primeiros mais simples queconhecemos, os sinais numéricos. Na maiorparte das línguas a palavra cinco significatanto como "uma mão".

Uma outra distinção entre sinais é a entre

www.bocc.ubi.pt

Da Lógica dos Sinais 5

sinais formais e materiais. Ela é de impor-tância fundamental para a lógica. É revela-dor do estado da lógica formal que não setenham até hoje clarificado as opiniões rela-tivamente à distinção entre forma e matéria.[346] Duas distinções completamente hete-rógenas têm sido desde sempre metidas nomesmo saco: a distinção entre conteúdo dojuízo e acto do juízo, por um lado, e a entrefundamentos da relação e relação, por ou-tro. Confundia-se forma do acto judicativo(Beurteilung) e forma da relação. Na ve-lha explicação do juízo como uma relaçãoou conexão de representações subjaz indu-bitavelmente esta confusão. Sem compara-ção, a maioria dos nossos juízos incide sobrerelações, e daí que se identifique o ajuizarcom o relacionar. Entretanto não se procediacom a necessária consequência e atribuiam-se elementos da relação ora à forma ora aoconteúdo. No juízo "Deus é justo"atribuia-se "Deus"e "justo"à matéria; no juízo "To-dos os homens são mortais"o "todos"(comoem geral os sinais de quantidade) à forma,na opinião de que a quantidade respeita aomodo de ajuizar. As investigações epocaisde Brentano puseram um fim a estas teoriaserróneas. De acordo com os seus resulta-dos, todo o juízo é uma afirmação ou ne-gação de um conteúdo representativo (Vors-tellungsinhaltes). Se nos deixarmos orientarpelo princípio até agora vigente da distinçãoentre forma e matéria, pelo qual se atribui àforma tudo aquilo que respeita ao modo deajuizar, ou seja, ao acto do juízo, então have-ria que encarar como matéria do juízo o con-teúdo sobre que se ajuiza, e como forma oreconhecimento ou a rejeição. Contudo, parauma lógica formal, o outro princípio de dis-tinção é seguramente de bem maior impor-tância, pelo qual o formal se funda no modo

da relação. Com efeito, as uniformidades naconstrução das frases, que dão azo a classesbem distintas, dependem quase sempre dasformas de relação, e só as respectivas infe-rências permitem em maior escala um modode tratamento formal, isto é, algorítmico.

Vamos agora explicar melhor a distinçãoaqui visada. Em qualquer pensamento (Ge-danken) composto distinguimos matéria eforma. A matéria é representada por nomes,e a forma por expressões sincategoremáticas,sejam elas simples ou compostas. Os nomesservem, e essa é a sua especial função, paradesignar os conteúdos absolutos, os funda-mentos da relação. Em contrapartida, as ex-pressões sincategoremáticas têm a função deexprimir a relação entre os elementos abso-lutos do pensamento (Gedanken). A [347]palavra relação é entendida aqui, como aliásem toda a obra, num sentido muito amplo.Incluimos nela tanto as relações em sentidorestrito, que pertencem ao conteúdo primá-rio, como também aquelas que são mediadaspor actos psíquicos. Do último ponto de vistaapenas nos interessam os juízos e os actos re-lacionais. Compreender uma relação a partirde um "ponto de vista"(Standpunkt) de um ede outro fundamento, é uma actividade psí-quica especial que pertence ao género do re-presentar. Se ligarmos esta com um reconhe-cimento ou rejeição, então obtemos a classemais importante de juízos, em que a matériase dispõe e se ordena (gegliedert und geord-net ist). Se imaginarmos, por exemplo, umasemelhança de A e B, então a actividade re-lacional produz a representação de A com oatributo relativo "semelhante a B"; o reco-nhecimento, porém, produz o juízo "A é se-melhante a B". Uma relação de grandezasentre A e B produz a representação relaci-onal (Verhãltnisvorstellung) A maior que B,

www.bocc.ubi.pt

6 Edmund Husserl

donde surge o juízo "A é maior que B", etc.Os fundamentos da relação A e B perten-cem à matéria, as expressões complementa-res: "maior que", "é maior que"etc. à forma.À forma pertence ainda a diferença da posi-ção que caracteriza sujeito e predicado en-quanto fundamentos da relação - digo da re-lação e não do "juízo". Através da activi-dade relacional perdem os fundamentos rela-cionais, nomeadamente, a sua equivalência:um torna-se o fundamento principal, o su-jeito, ao qual se acrescenta como atributo oestar-em-relação com o outro fundamento. Ofundamento-predicado é parte integrante dopredicado gramatical. Se disser "oiro é ama-relo", então "oiro"é o fundamento-sujeito,o abstracto (a "parte metafísica") "cor ama-rela"o fundamento-predicado, o predicadogramatical, porém, é amarelo, isto é, "tendocor amarela"(Gelbe habend) ou "sendo ama-relo". O reconhecimento incide sobre o atri-buto enquanto atributo do oiro; ele exprime *a disposição, estabelecida pela actividade re-lacional, do conteúdo judicado. A diferençaentre sujeito e predicado pertence, portanto,por completo ao conteúdo judicado e não aomodo do juízo. Apenas não incluimos todoo predicado, mas só o fundamento-predicadona matéria, de acordo com o nosso princípio.

A diferença entre matéria e forma é evi-dentemente uma diferença relativa. Qual-quer conteúdo representado pode servir-nosocasionalmente de fundamento de relação,portanto, também uma relação representada[348], um juízo de relação, uma cadeia deinferência, etc., podem pertencer à matéria.Em qualquer raciocínio, os juízos singula-res constituem partes integrantes da matéria.É que um raciocínio é um juízo composto.Nesses casos, porém, o ponto de vista daanálise mostrará de um modo cada vez mais

claro o que é matéria e o que é forma. Entãoperguntar-se-á sempre qual a relação que lheestá na base.

Do ponto de vista do juízo singular, per-tence à forma, por exemplo na frase, tudoaquilo que exprime a relação judicada, e aoconteúdo tudo aquilo que é aqui fundamentoda relação *. Se um destes for composto,então pertence á matéria, relativamente aesta composição, o elemento da ligação, e àforma o modo da ligação. No raciocínio, aspremissas e a conclusão constituem a maté-ria e a sua disposição (Anordnung), na me-dida em que for característica da relação dasfrases, a forma. Só em segunda linha é quea forma das frases singulares e em terceiralinha a forma das suas matérias pertence àforma do raciocínio, na medida em que pro-cesso e conteúdo da actividade inferencialsão também condicionados por elas.

Pelo modo em que definimos matéria eforma, temos de dizer que uma frase existen-cial "A é", em que "A"representa um con-teúdo simples ou não articulado ou que nãoinclui qualquer atribuição, não tem formanem matéria. Para abranger todas as fra-ses, poderíamos talver definir: à matéria per-tencem os conteúdos ou substratos das nos-sas actividades lógicas, à forma estas mes-mas. Actividades lógicas são o ajuizar eas actividades de representação que o ad-juvam, sobretudo relacionar, conectar, par-ticularizar, etc. Na frase "A é"seria então"A"a expressão da matéria, "é"a expressãoda forma. Na expressão "Semelhança de Ae B"pertenceriam à matéria "A"e "B", "Se-melhança"e o "e"e o "de"à forma; é que asúltimas indicam uma actividade relacional edisposicional que é pressuposta no juízo.

De que a nossa distinção entre matéria eforma tem realmente valor para uma lógica

www.bocc.ubi.pt

Da Lógica dos Sinais 7

formal, disso temos a melhor prova nas ciên-cias em que uma actividade inferencial, ver-dadeiramente frutuosa e [349] abrangente,ocorre mediante mecanismos formais: as ci-ências dos números, grandezas, extensões.Por toda a parte vemos que não se distin-guem nos sinais acto do juízo e conteúdo ju-dicado, mas entre sinais para fundamentos darelação e sinais para relações; sendo os últi-mos de dulpa espécie: uns exprimem a exis-tência (Bestehen) ou não-existência de umarelação, e implicam por conseguinte uma ju-dicação, enquanto os outros não o fazem,mas tão só indiciam a formação de uma re-presentação relacional composta. Assim„por exemplo, na aritmética os sinais =, , #,&shyp;, etc, e na geometria os sinais , , etc.são da primeira espécie; = significa: é igual,> significa: é maior, etc. Os sinais das ope-rações aritméticas +, *, etc. são da segundaespécie. Para os métodos formais (formaleVerfahrensweisen) não há necessidade de si-nais especiais para o reconhecimento ou re-jeição.

Outra divisão dos sinais emnaturais e artificiais:

Não é nossa tarefa aqui apresentar em deta-lhe o imenso significado que as representa-ções impróprias, como sejam os símbolos emgeral, têm para toda a nossa vida psíquica.Elas começam por surgir nos estádios inici-ais do desenvolvimento psíquico e acompa-nham estes, cada vez mais abrangentes, assu-mindo funções cada vez mais gerais e com-plexas, até aos estádios mais altos. Pode-mos até afirmar mais: não só acompanham odesenvolvimento psíquico, como o condicio-nam essencialmente, o tornam primeiro pos-

sível. Sem a possibilidade de sinais marcan-tes exteriores e permanentes enquanto apoiosda nossa memória, sem a possibilidade de re-presentações simbólicas substitutas de repre-sentações próprias, mais abstractas, e maisdifíceis de distinguir e de manejar, ou mesmode representações que nos são de todo in-terditas enquanto próprias, não haveria qual-quer vida espiritual superior, para já não falarde ciência. Os símbolos são o maior meio deajuda natural com que ultrapassamos os limi-tes estreitos da nossa vida psíquica, com quepodemos tornar inofensivas, pelo menos atéum certo grau, estas imperfeições essenciaisdo nosso intelecto. Por desvios peculiares,poupando actos superiores do pensamento,capacitam o espírito humano a realizaçõesque directamente, com um [350] trabalhognosiológico próprio, nunca poderia alcan-çar. Os símbolos servem a economia do tra-balho intelectual tal como as ferramentas e asmáquinas servem o trabalho mecânico. Coma simples mão, o melhor desenhador não tra-çará tão bem um círculo como um rapaz deescola com o compasso. O homem maisinexperiente e mais fraco produzirá com umamáquina (desde que a saiba manejar) incom-paravelmente mais que o mais experiente emais forte sem ela. E o mesmo se passa nocampo intelectual. Tirem-se ao maior génioas ferramentas dos símbolos e ele tornar-se-á menos capaz que a pessoa mais limitada.Hoje em dia uma criança que aprendeu a fa-zer contas está mais capacitada que na anti-guidade os maiores matemáticos. Problemasque para eles eram de difícil compreensão ede todo insolúveis resolve-os hoje um prin-cipiante sem grande dificuldade e sem qual-quer mérito especial. E assim como as fer-ramentas, em crescente complexificação atéàs máquinas mais maravilhosas, constituem

www.bocc.ubi.pt

8 Edmund Husserl

uma série gradativa que reflecte o progressoda humanidade no trabalho mecânico, assimtambém acontece com os símbolos relativa-mente ao trabalho intelectual. Com a aplica-ção consciente dos símbolos o intelecto hu-mano eleva-se a um novo nível, a um nívelverdadeiramente humano. E o progresso dodesenvolvimento intelectual corre paralelo aum progresso na ciência dos símbolos. Ofantástico desenvolvimento das ciências danatureza e a técnica nelas fundada consti-tuem sobretudo a glória e o orgulho dos úl-timos séculos. Mas não menor título de gló-ria parece merecer, com efeito, esse notávelsistema de símbolos, ainda não esclarecido,a que aquelas devem imenso, e sem o qualtanto teoria como prática ficariam completa-mente desamparadas: o sistema da aritmé-tica geral, a mais admirável das máquinas es-pirituais que já alguma vez apareceram.

Entre os sinais desempenham as repre-sentações "impróprias"um papel particular-mente importante. Conforme à nossa defi-nição, é representado impropriamente todo oconteúdo que nos é dado não como aquiloque ele é, mas só indirectamente, mediantequalquer sinal. Assim, torna-se evidenteque os conceitos sinal e representação im-própria não coincidem. Toda a represen-tação imprópria é, sem dúvida, um sinal,mas um sinal não é inversamente uma re-presentação imprópria. Se uma coisa nãonos for dada directamente, mas apenas soba mediação [351] de sinais, então o com-plexo desses sinais ou a sinal por eles com-posto faz de representante (vertritt) da coisa.Mas nem todos os sinais têm esta funçãode fazer-de-representante (stellvertretende),e também nem todos têm aptidão para isso.É que só quando o sinal for unívoco, sufici-ente por si só, para assinalar (kennzeichnen)

a coisa, quer exteriormente, quer conceptual-mente, é a coisa dada indirectamente atravésdo sinal; só então pode o sinal servir comorepresentante (Stellvertreter) da coisa.

De resto, não se deve urgir o conceito dosinal unívoco e do de fazer-de-representante(Stellvertretung) num sentido lógico rigo-roso. Para a possibilidade lógica de fazer-as-vezes-de exige-se simplesmente a univo-cidade do sinal em sentido psicológico. Eme para si, e logicamente considerado, pode osinal ser equívoco, mas, sob as circunstân-cias reais hic et nunc, nesta orientação do-minante do interesse, é unívoco e, por isso,apto a fazer-de-representante. Só onde qui-sermos empregar representações impróprias(eventualmente com a consciência particularda sua função) para fins cognitivos, é que te-mos necessariamente de nos libertar de todasas circunstâncias contingentes e mutáveis e,desse modo, atribuir aos sinais um signifi-cado (Bedeutung) lógico bem definido quelhes confere univocidade rigorosa. Para real-çar mais vincadamente a diferença entre re-presentação imprópria e sinal, vamos dar aseguinte definição: Todo o sinal (simples oucomposto, exterior ou conceptual, etc.) quefunciona como representante da coisa assi-nalada, é uma representação imprópria.

Este fazer-de-representante pode ser pas-sageiro ou (mais ou menos) duradoiro. Asrepresentações impróprias podem nomeada-mente:

1) servir como simples mediadores paraa produção das correspondentes representa-ções próprias. Deste modo funcionam, porexemplo, os emblemas (Abzeichen) conven-cionais, sequências verbais mnemotécnicas,versos decorados mecanicamente, etc.

2) As representações impróprias podemtambém, enquanto representações sucedâ-

www.bocc.ubi.pt

Da Lógica dos Sinais 9

neas, substituir as próprias. Aqui há que dis-tinguir dois casos:

A) As representações impróprias servemde [352] substitutos cómodos às próprias,para aliviar uma actividade psíquica supe-rior. Consideram-se nesta perspectiva comoactividades psíquicas superiores: o represen-tar na fantasia face ao sentir; o represen-tar de conteúdos mais abstractos face ao deconteúdos mais concretos; o representar emactos de nível superior face ao representarem actos de nível inferior e, corresponden-temente, também o representar de uma mul-tiplicidade face ao representar de um con-teúdo singular; o representar de actos psí-quicos face ao de um conteúdo primário e,assim também, o representar de uma rela-ção psíquica face ao de uma relação de con-teúdo primário. Sempre que possível, osconteúdos, que exigem uma actividade psí-quica inferior, sobretudo os conteúdos pri-mários e as relações primárias, funcionamcomo sucedâneos dos conteúdos superiores.No decurso de um pensamento rápido pre-valecem num montante extraordinário as re-presentações impróprias do género aqui con-siderado. Palavras ou caracteres, acompa-nhados de fantasmas vagos e obscuros, eme com marcas singulares abruptas, começosrudimentares de actividades psíquicas supe-riores, ora reduzindo-se a à simples repre-sentação verbal, ora aproximando-se, nesteou naqueles aspecto, da representação real(wirklichen) - isso são, vendo bem, os nos-sos pensamentos. E tão perfeita e segura-mente substituem os conceitos realmente in-tendidos que não nos damos conta, na maiorparte dos casos, da diferença entre eles, ape-sar da enorme distância que os separa. Ossinais e rudimentos fazem as vezes dos con-ceitos reais, mas nós não reparamos no facto

de eles fazerem as vezes destes. Como é pos-sível que estes sucedâneos extremamente po-bres e, em parte, intrinsecamente estranhosao verdadeiro conceito das coisas, possamcontudo substituir estes e servir de funda-mento aos juízos, às volições, etc. que so-bre eles incidem? A resposta é a seguinte:devido ao facto de que os sinais, que fazem-as-vezes-de (e que em relação à mesma coisase alteram de momento a momento), ou en-cerrarem em si as marcas, em que cai o in-teresse momentâneo, como conteúdos parci-ais ou então, pelo menos, possuirem a ap-tidão de servir como os pontos de partida ede ligação de processos ou actividades psí-quicos que conduziriam a essas marcas oumesmo aos conceitos plenos e que nós, [353]sempre que necessário, podemos provocar eproduzir. Se se tratar, por exemplo, do con-ceito de uma esfera, então surge com a pala-vra repentinamente a representação de umabola em que se dá particular atenção apenasà forma. Esta representação acompanhante,cuja marca apresenta uma tosca aproxima-ção ao conceito intendido e mediante isso osimboliza, pode desaparecer então de novo,ficando a simples palavra; mas o seu surgi-mento bastou para nos assegurar a familiari-dade com a coisa. Muitas vezes mesmo bastaa palavra só com o juízo de reconhecimentoreproduzido repentinamente. No decurso dacorrente do pensamento emerge então do te-souro da memória este ou aquele momentode que justamente precisamos; por exem-plo, a definição geométrica - seja como sim-ples proposição com o complexo sonoro jáconhecido, seja num deficiente "tornar sen-sível"(Versinnlichung) (por exmplo, três ouquatro rectas partindo do mesmo ponto comofantasmas muito imprecisos) - ou a maneirade produção através da rotação de um círculo

www.bocc.ubi.pt

10 Edmund Husserl

ou qualquer teorema etc. Tudo isto é repro-duzido com aquele grau da aproximação aosrespectivos verdadeiros conceitos, de que na-quele momento necessitamos, ou logo e ime-diatamente ou então em passos sucessivos.Pressupõe-se aqui que os necessários proces-sos de reprodução se desenvolvem com umafiabilidade incondicional. Se o não fizerem,se a memória nos falhar, de imediato acabaa compreensão, os símbolos não alcançamo seu objectivo, a corrente dos pensamentospára, e então damo-nos conta nós mesmos deque nos faltam os conceitos verdadeiros.

Deste modo cada representação real (wir-klichen) possui um complexo de recordaçõesmais ou menos extenso: palavras, frases,fantasmas com marcas habitualmente con-sideradas absolutas ou relativas que se en-contram intimamente ligadas por associaçãoe das quais, consoante a direcção do inte-resse, ora são reproduzidas estas ora aque-las. Não se entende isto como se o interessedevesse ou pudesse visar algo inconsciente(nomeadamente os conteúdos "inconscien-tes"guardados na caixa da memória). O inte-resse incide naturalmente sobre o conteúdorealmente presente; este acto psíquico, po-rém, constitui a causa psicológica para a re-produção de um conteúdo ligado associativa-mente ao conteúdo presente, conteúdo esseque, [354] unido anteriormente a este último,esteve na base de um interesse semelhante.

No decurso da corrente rápida do pensa-mento, os sinais fazem de sucedâneo (comojá foi dito), sem que saibamos disso. Jul-gamos operar com os conceitos verdadeiros(wirklichen). Mas mesmo quando, obriga-dos à reflexão, nos damos conta da verda-deira situação, como quando, tomados de re-pente pela dúvida, meditamos sobre o signi-ficado de uma palavra, não nos satisfazemos,

em regra, com simples sucedâneos. Quais-quer restos reproduzidos e, a estes ligado, umvivo juízo de reconhecimento são-nos sufi-cientes. Certificam-nos da possibilidade deque seríamos capazes a cada momento de ex-plicitar o conteúdo pleno do significado dapalavra. Sentimo-nos familiarizados com acoisa e prosseguimos, na expectativa de queo mecanismo da reprodução funcionará bem.

B) A classe de representações sucedâneas,que temos estado a tratar, caracteriza-se pelofacto de as representações próprias, que ossucedâneos substituem, estarem todo o mo-mento à nossa disposição. Onde o inte-resse só puder ser satisfeito por elas pró-prias, emergem de novo da memória. Tam-bém é claro que a existência anterior dasrepresentações próprias constitui a condiçãopara as impróprias que servem de substitu-tas. Completamente diferente é o que sepassa, em todas estas relações, com as repre-sentações simbólicas da segunda classe. Es-tas não servem a uma simples comodidadedo pensamento, não são sinais ou abrevia-turas para as representações próprias origi-nais e a cada momento fáceis de reproduzir.Os símbolos reportam-se, ao contrário, a coi-sas cuja representação própria nos é inter-dita, seja temporariamente, seja permanen-temente. Em muitos casos, as representa-ções próprias têm, pelo menos, uma prio-ridade psicológica relativamente às simbóli-cas. É o caso de muitas representações dafantasia e da memória. Nas primeiras é aindapossível, que os objectos respectivos sejamlevados posteriormente a uma representaçãoprópria, como quando penso num quadro noquarto ao lado e vou lá e o observo; aocontrário, os objectos da última ficam parasempre inacessíveis a uma intendida apro-priação (vermeinten Vereigentlichung). Ne-

www.bocc.ubi.pt

Da Lógica dos Sinais 11

nhuma força do mundo pode chamar de novoà realidade um acontecimento passado, deque me recordo. [355] É claro que esta dis-tinção é válida em geral. – Por outro lado,há imensos casos onde a representação sim-bólica tem a prioridade relativamente à pró-pria. E também aqui se dividem novamenteos casos em dois grupos, consoante a repre-sentação própria intendida puder posterior-mente ser realizada ou ficar-nos para sempreinterdita. Explicitemos isto com exemplosfáceis de obter. Lemos compreensivamenteum relato geográfico de uma viagem, semno entanto nunca termos visto paisagens, ho-mens, animais, etc., do tipo ali descrito, paranão falar já deles próprios. Mas pode ser,que viajemos um dia até lá e os conheça-mos posteriormente. Os casos mais fáceissão aqueles onde os objectos descritos per-tencem a um género que conhecemos nor-malmente bem. São-nas dadas as marcas sin-gulares, o seu agrupamento e contexto é re-constituído facilmente na fantasia de acordocom modelos conhecidos e a representaçãode um algo, que se iguala ao fantasma cons-truído, serve de substituto suficiente para acoisa que agora também pode ser reconhe-cida, caso apareça alguma vez. Logo que es-tejamos suficientemente familiarizados comas representações simbólicas tão concretasdaí resultantes, passamos à sua substituiçãoatravés de representações sucedâneas maiscómodas, menos concretas ou até exteriores(portanto, através de uma simbolização desegundo nível), de acordo com o já várias ve-zes mencionado pendor económico do nossoespírito. Consideremos agora exemplos dosegundo grupo. Antes de mais, conceitos dotipo Àfrica, a Terra etc., embora afins aosexemplos citados, pertencem aqui; depois, oconceito do homem no sentido da fisiologia

e da psicologia e, em sentido análogo, o con-ceito de um animal e de uma planta, os con-ceitos de ciências etc. Um enorme complexode representações impróprias, ordenado pormúltiplos juízos, com a possibilidade de umaextensão ilimitada, mas circunscrita por mar-cas características (charakteristische Merk-male), constitui a soma do que o melhor co-nhecedor desse conceito pode ter presente oudesignar indirectamente como pertencendo-lhe. Naturalmente também aqui não opera-mos com os próprios complexos, nem se-quer na extensão ao nosso dispor, mas comsucedâneos concisos, por conseguinte, comsímbolos indirectos que, sob mediação demarcas características (as quais constituem ocerne à volta do qual se [356] cristalizam to-das as restantes) e de sinais exteriores, as-sinalam e substituem os conceitos intendi-dos. A maior distância das representaçõesreais (wirklichen) é alcançada pela consti-tuição das representações simbólicas comoDeus, coisa exterior, espaço real, alma de umoutro, etc., depois, na constituição de con-ceitos contraditórios como ferro de pau, qua-drado redondo, etc. Enquanto nos exemplosanteriores mesmo assim é pensável que umcerto alargamento quantitativo das capacida-des intelectuais possibilitasse uma represen-tação real (por exemplo, de Àfrica), é claro,nos exemplos agora expostos, que nenhumaumento de que tipo for das nossas capa-cidades poderia levar aos conceitos intendi-dos; em alguns não, porque um juízo evi-dente garante-nos a impossibilidade de uniãodas marcas; noutros não, porque o intendido,através de determinações negativas, perten-centes ao conteúdo conceptual, é pensadoexpressamente como extra-psíquico e, por-tanto, como irrepresentável; alguns encer-ram, além disso, como marcas os concei-

www.bocc.ubi.pt

12 Edmund Husserl

tos de aumentos infinitos, não só no sen-tido de ilimitado, mas de actualmente infinito(como, por exemplo, o conceito de Deus, asperfeições infinitas), conceitos cuja apropri-ação pressuporia uma capacidade psíquicaactualmente infinita, a nós de todo imcom-preensível.

A compreensão psicológica das represen-tações sucedâneas da classe aqui consideradanão exige, em comparação com as da ante-rior, novos princípios. Apenas um merece re-ferência, a saber, que as representações sim-bólicas, que são derivadas das representa-ções próprias respectivas, têm, pela naturezada coisa, uma prioridade psicológica rela-tivamente às representações que não foramengendradas desse modo. Temos de estarjá familiarizados com a equivalência práticadas representações próprias e dos seus sím-bolos, que torna possível empregar estes emvez daquelas, a fim de que possa realizar-seuma formação de representações simbólicasnão fundadas em precedentes representaçõespróprias. O facto de que, com a constituiçãoda língua, as representações impróprias destetipo teriam de ganhar cada vez maior expan-são e importância, não precisa de uma expli-cação especial. Com o desenvolvimento dalíngua ocorre simultaneamente uma forma-ção superior de conceitos. Qualquer compo-sição de conceitos marcantes (Merkmalbe-griffen), ligada pelo conceito indeterminadode um algo [357] (ou de um substituto a eleequivalente), poderia agora servir como re-presentação simbólica na base da conhecidarelação entre símbolo e coisa.

Queremos agora discutir alguns pontosmais importantes que dizem respeito a todasas representações impróprias. Como pontode partida tomamos uma distinção a que jáaludimos aqui. Não se deve confundir o

facto da aplicação de representações suce-dâneas com o conhecimento dessa aplica-ção. Este último falta em muitos casos, se-não até na maior parte deles; os rudimentose sinais fazem de sucedâneo, mas que o fa-zem, disso não nos damos conta. Mesmoonde a relação-símbolo pertence ao conteúdoda representação imprópria, costuma perder-se ao realizar-se uma substituição (Surrogie-rung) de segundo nível. Fala-se, por exem-plo, de Bismarck. Sei muito bem que a mi-nha representação dele é imprópria e que oseu carácter simbólico pertence ao seu con-teúdo pleno, mas na corrente rápida do pen-samento substitui-a de novo uma abrevia-tura, seja uma imagem rudimentar da fan-tasia, e então a relação sinalética perdeu-se.As representações impróprias são os funda-mentos da nossa comum actividade práticade ajuizar. Portanto, se é certo que em regraoperamos com sinais sem um conhecimentoparticular de que o fazemos, então tambémé claro que, para o nosso ajuizar prático, acircunstância de que os sinais são sinais nãopode funcionar como motivo gnosiológico, eisto apesar de os juízos visarem os concei-tos próprios e não os símbolos. Por con-seguinte, é certo que não são motivos ló-gicos, isto é, motivos do conhecimento, aguiarem-nos na actividade prática de ajuizar,mas sim leis psicológicas cegas. Não opera-mos, pois, com os sinais em vez das coisasporque tenhamos feito uma indução, ou por-que uma experiência variada nos tivesse en-sinado: sinais e coisas estão numa tal relaçãoque um processo judicativo, fundado em si-nais, prova todas as vezes ser também certopara as respectivas coisas. Não. Procede-mos sem reflexão, e, portanto, também semindução. A verdadeira situação é muito maissimples. No ajuizar seguimos a linha da as-

www.bocc.ubi.pt

Da Lógica dos Sinais 13

sociação de ideias que no percurso do nossointeresse reproduz ora este ora aquele grupodo complexo associativo pertencente ao con-ceito; e os nossos juízos e [358] raciocínios,nestes rudimentos ora mais ricos ora maispobres e por vezes, como iremos ver, con-tinuados e ligados exclusivamente a sinais,procedem como se tivessem por base sem-pre e em todo o lado o verdadeiro conceitoda coisa, e, com efeito, apenas porque justa-mente não reparamos que operamos com su-cedâneos em vez do conceito pleno. O quese passa com os nossos juízos é análogo aoque se passa com as nossas representações,em vez de juízos próprios temos juízos sim-bólicos, mas que estes o são, disso não nosdamos nós conta.

Entretanto, não nos devemos cingir à elu-cidação dos factos psicológicos. Nos juízosaparece uma perspectiva que falta nas repre-sentações, a saber, a dupla questão da justi-ficação e da verdade. No que respeita ao seulado subjectivo, há que, no nosso caso, per-guntar o seguinte: com que direito operamosnós, nos nossos juízos práticos, e da maneiraatrás descrita, com símbolos em vez de con-ceitos verdadeiros? A resposta encontra-senas exposições anteriores. Procedemos semqualquer justificação, não nos guia um mo-tivo gnosiológico, mas sim um mecanismopsicológico.

Com isto, porém, não ficou resolvida o se-gundo lado, o lado objectivo da questão, oda verdade. É muito bem possível que umprocesso, logicamente injustificado, leve porfim ao verdadeiro resultado. Temos aqui umtal caso, que é com efeito extremamente no-tável. A priori poder-se-ia muito bem pen-sar que uma disposição psicológica da nossanatureza impelisse o nosso ajuizar prático(extra-lógico) sempre ou de preferência ao

erro e só excepcionamente à verdade. Narealidade passa-se precisamente o contrário.Em regra saimo-nos muito bem no ajuizarcom sucedâneos (e a incomparável maioriados juízos é deste tipo). Isto é um facto me-tafisicamente muito interessante. Poder-se-ia aqui dizer, recorrendo a uma observaçãode Hume, que corresponde à sabedoria ge-ral da natureza assegurar, através de um im-pulso mecânico, uma actividade da alma tãoessencial à conservação do género humano,impulso que na sua actividade está em re-gra livre de erro, que entra em função logono início da vida e do pensamento e que éindependente das fundamentações da razão,só [359] possíveis num período mais madurodo desenvolvimento. Autores mais recentespoderiam talvez preferir explicar este pen-dor teleológico da nossa natureza com prin-cípios darwinistas - contudo, aqui onde nãose trata de metafísica, nada temos a ver comisto. O que procuramos, e devemos procurar,é uma elucidação lógica do estado de coisas.Como? Uma elucidação de um processo re-conhecidamente não lógico, perguntar-se-á;não há aí uma contradição? Não será difí-cil tornar clara a justeza da nossa intenção.Se um típico processo judicativo, apesar denão guiado por motivos gnosiológicos, con-duzir a resultados certos, então teremos deprocurar e encontrar na sua estrutura interna(inneren Bau), caso seja perscrutável, as ra-zões por que é adequado a produzir a verdade(embora não conhecimento). Por outras pa-lavras, tem de se indicar um processo lógicoparalelo que explique o mecanismo do pro-cesso judicativo e de certo modo o esclareçacomo se o tivesse inventado racionalmente;com a sua ajuda compreenderemos porqueé que esse processo não-lógico tinha de agir

www.bocc.ubi.pt

14 Edmund Husserl

como se fosse processo lógico, e isso é a ex-plicação lógica de que falámos acima.

Perguntamos pois: Como é possível que,na prática habitual do ajuizar, possamosprescindir dos conceitos próprios? Cremosajuizar sobre eles, mas o que está na base dosnossos juízos são aqueles sucedâneos tão po-bres e tantas vezes mutáveis (e mutáveis rela-tivamente à mesma coisa!). Como é possívelque os nossos juízos sejam, por um lado, in-dependentes destes últimos e, por outro, fiá-veis relativamente aos conceitos verdadeiros,que exclusivamente intendem?

A fim de obtermos uma resposta há quedistinuir duas classes principais de casos: 1)aqueles em que o processo, tanto nos seuspassos singulares como no encadeamentodestes, encerra um ajuizar próprio, o qual sópossui um carácter simbólico, aliás não parti-cularmente notório, visto a matéria ajuizadaconsistir em sucedâneos em vez de represen-tações próprias; 2) aqueles casos em que opróprio ajuizar é impróprio, e o é na medidaem que sinais exteriores, por exemplo, pro-posições ou complexos proposicionais siste-máticos, fazem as vezes de sucedâneos dejuízos e raciocínios.

Para a primeira classe, a solução sim-ples do enigma reside no seguinte. [360]É certo que os nossos juízos implicam ape-nas sucedâneos oscilantes, obscuros, mutá-veis. Mas estes sucedâneos encerram emcada momento justamente as partes e mar-cas dos conceitos reais (wirklichen) em queincide o interesse judicativo. Enquanto ob-jectos de particular atenção não são obscu-ros e oscilantes, mas antes são representadoscom o grau da nitidez que o ajuizar precisa-mente requer, por mais que as restantes par-tes do sucedâneo sejam difusas; pode ser quevariem momento a momento, mas nisso elas

seguem a variação do interesse judicativo. Seperguntarmos qual o valor gnosiológico des-ses juízos, então é claro que eles têm de tervalidade para os conceitos próprios, na me-dida em que estes justamente também pos-suem as marcas particularmente considera-das e judicadas dos sucedâneos. Encaradologicamente é o seguinte esquema que lheestá subjacente: Um juízo liga-se exclusi-vamente a um X na medida em que pos-sui a marca O; O possui a marca O; logo ojuízo também é válido para O, precisamentesob o mesmo ponto de vista. O sinal X fazde representante da nossa representação sim-bólica, por exemplo um fantasma de restomuito pouco claro, em que é exclusivamenteconsiderada e judicada a marca O. Ora jus-tamente a mesma é comum à coisa inten-dida (G) e, por isso, o juízo também é vá-lida para esta. No decorrer natural do nossopensamento não se encontra qualquer vestí-gio de considerações lógicas deste tipo. Onosso ajuizar prático não é justamente ne-nhum ajuizar lógico. Fazemos juízos na basede sucedâneos e, indiferentes à questão delegitimidade, manejamo-los sem mais comojuízos acerca de conceitos próprios. Mas re-conhecemos aqui porque é que tal acção nãoleva a qualquer erro; vemos que o processonão lógico tem de dar o mesmo resultado queo lógico, com a única diferença (essencial-mente teórica, mas não prática) de que o úl-timo garante evidência na sua legitimidade,ao passo que o primeiro não.

Até aqui limitámo-nos a investigar as ra-zões da verdade objectiva dos juízos singu-lares do tipo considerado. Mas é claro quepara a compreensão dos raciocínios que per-tencem a isto não há a acrescentar nada deessencialmente novo. Se os juízos singularessobre sucedâneos são equivalentes aos dos

www.bocc.ubi.pt

Da Lógica dos Sinais 15

conceitos próprios respectivos, então tam-bém um raciocínio com juízos [361] de umtipo é equivalente a um com juízos do outrotipo.

Debrucemo-nos agora sobre o segundogrupo de casos em que apenas símbolos exte-riores subjazem aos nossos juízos, enquanto,sem entraves, prosseguimos com o processojudicativo. Isto é possível por o próprioajuizar aqui não ser como antes um ajui-zar próprio, mas sim um exteriormente im-próprio. Sinais sensíveis das representações(por exemplo, nomes) são ligados precisa-mente aos de reconhecimento ou rejeição;surgem proposições; encadeamentos siste-máticos de proposições simbolizam raciocí-nios e o processo judicativo consiste em queum prosseguir exteriormente ao longo da ca-deia de sinais faz de sucedâneo do raciocinarreal (wirkliche Schließen). Alguns exemplosesclarecerão isto: a é maior que b, este émaior que c, este é maior que e, logo a émaior que e; a = b, b = c, c = d, d = e, logo a =e; todos os A são B, todos os B são C, todosos C são E, logo todos os A são E. Sejam pe-las letras sempre entendidos nomes de con-teúdos visados pela nossa actividade judica-tiva. Raciocínios deste tipo realizamo-los emregra simbolicamente. Frequentemente, logonos passos singulares, agarramo-nos não aconteúdos próprios e plenos nem a conteú-dos parciais sucedâneos, mas simplesmentea nomes ou letras, de modo que não pode-mos falar eo ipso de um ajuizar ou racio-cinar próprios. Mecanicamente vamos aolongo da cadeia, ligamos e eliminámos ele-mentos, como o exige o modelo, e obte-mos assim um juízo simbólico (uma proposi-ção), que nos serve de sinal de uma verdade.Mais frequentemente, porém, os passos sin-gulares são feitos numa judicação real; mas

na medida em que os seus resultados se ex-pressam simultaneamente em sinais exterio-res, por exemplo em proposições, são estesque, no decorrer subsequente do processo,fazem de sucedâneo dos juízos reais, e o raci-ocínio faz-se, como anteriormente, de modosimbólico-exterior.

De novo pomos a questão quanto à legi-timidade lógica destes métodos simbólicos.Que são simbólicos, nem sequer o notamos.Seguimo-los sem reflexão, e não na base deuma indução anterior ou de qualquer ou-tra reflexão legitimadora. Não são métodoslógicos precisos (kunstgerechte), mas antesprocessos mecânicos naturais. [362] A nossapergunta é outra: Em que se fundamenta ovalor de verdade dos resultados destes meca-nismos naturais? A resposta exige algumasconsiderações. Há que notar, em primeirolugar, que métodos simbólicos deste tipo nãopossuem a mesma originalidade que os mé-todos reais respectivos, antes se constroem, apartir destes, na forma de simplificações có-modas. O carácter uniforme dos raciocíniosde determinada espécie, cunhado em unifor-midades da expressão exterior, leva por si esem especial reflexão, a sequir estas unifor-midades da expressão, mesmo também ondefaltam as actividades psíquicas fundantes.De novo, é a força da associação de ideiaso motor invisível do processo, mas obvia-mente funciona aqui num modo muito pró-prio. A conclusão não é reproduzida de umavez, num acto; isso pressuporia que tivésse-mos feito já repetidas vezes a mesma con-clusão com as mesmas premissas, quandoprecisamente o que é característico do pro-cesso reside no facto de, em cada novo caso,se aplicar mecanicamente e com sucesso. Areprodução faz-se indirectamente, sob medi-ação da forma. Por isso entendemos algo

www.bocc.ubi.pt

16 Edmund Husserl

de parecido à lógica formal, quando fala deformas de raciocínio, onde obviamente nãonos agarramos à explicação que nos dá dasformas como tais, mas à utilização fácticaque delas faz. A forma de um raciocínioconsiste no género exterior do encadeamentoe ordenamento das premissas Desse modo,cada premissa e, consoantemente, cada umdos nomes inseridos na premissa adquiremum lugar determinado no sistema. Natural-mente são qualidades internas do sistema ju-dicativo, inserido no processo intelectual doraciocínio, que fundamentam a forma siste-mática da expressão linguística e lhe con-cedem uma universalidade muito para alémdo caso concreto. Mas aqui não é precisoaprofundar mais isso. Basta dizer que é pos-sível conceber inúmeros raciocínios que seexprimem de forma igual. Se tivermos feitofrequentemente raciocínios de uma determi-nada forma, e o tivermos feito realmente, ese o seu tipo sistemático for fácil de apren-der, então o mesmo inculcar-se-á na memó-ria, e posteriormente bastará um sistema depremissas conforme para [363] reproduzir aconclusão. Desde que, passo a passo ajui-zando e falando, entramos na rotina bem co-nhecida, a reprodução antecipatória (vora-neilende) manifesta-nos a forma da conclu-são.

Mas não só isto, também o conteúdo quepreenche a forma, isto é, os nomes que acompletam numa conclusão plena, é dadopela reprodução. De facto, onde, como jáfoi referido, cada nome tem o seu lugar sis-temático, e na conclusão os nomes são liga-dos numa posição caracterizada muito deter-minadamente, (como nos exemplos anterio-res o primeiro e último nome), aí os valoresda posição (Stellenwerte) servem como mo-mentos reprodutivos que evocam os nomes

respectivos e desse modo possibilitam umareprodução plena da conclusão toda.

Após termos adquirido mediante estasanálises um conhecimento mais exacto domecanismo psicológico natural do raciocíniosimbólico, torna-se possível construir o pro-cesso lógico paralelo que resolve a nossa per-gunta e nos dá a experiência porque é queaquele processo mecânico tinha de produzirresultados correctos. A fim de que um talmecanismo possa construir-se e funcionar,têm os respectivos raciocínios e seus cor-relatos linguísticos de satisfazer certas exi-gências. Enumeremo-los por ordem. An-tes de mais, reside na natureza dos meiosde assinalar linguísticos (sprachlichen Be-zeichnungsmittel) a utilizar, que eles, em-bora nem sempre em todas as circunstân-cias, sejam unívocos nas ligações sistemá-ticas aqui em causa. As formas de liga-ção sistemáticas das palavras têm de reflec-tir exactamente as dos pensamentos, de ou-tro modo não poderiam as primeiras algumavez tornar-se os sucedâneos habituais das úl-timas. Os equívocos obrigariam, apesar detoda a reprodução, a realizar sempre as re-presentações, juízos e raciocínios reais, e ummecanismo seria impossível. Mas há aindauma outra qualidade, mais especial, que umsistema de sinais tem de ter, tendo em contaque uma reprodução da conclusão deve po-der realizar-se com base unicamente nas pre-missas. Uma parte do sistema, aquela quecontém as premissas na ordem e ligação ade-quadas, tem evidentemente de determinar deum ponto de vista unicamente formal (reinformell) a outra parte, aquela que contém aconclusão, e mais, de a determinar univo-camente; só então pode a fantasia reprodu-tiva, em casos onde só a primeira é dada,[364] de imediato (no modo acima descrito)

www.bocc.ubi.pt

Da Lógica dos Sinais 17

construir a segunda parte em falta, a con-clusão. Tendo em conta a univocidade daassinalação segue-se que o sistema judica-tivo correspondente tem de ser constituidode tal modo que o conjunto dos juízos daspremissas determine univocamente o juízoda conclusão. Tudo isto leva a um resul-tado importante. Se uma determinada formade raciocínio ou uma classe de raciocíniospor ela caracterizados preencher todos os re-quisitos, então o conhecimento desta situa-ção capacitar-nos-á a substituir, com cons-ciência do objectivo e por razões lógicas,o raciocínio real por um raciocínio simbó-lico. Com efeito, desde que seja dado in con-creto um sistema de premissas pertencente aesta classe, podemos, com base unicamentenas expressões linguísticas e sem relação aoscorrelatos psíquicos, construir a conclusão, etermos a plena certeza lógica de ter no juízocorrespondente o juízo conclusivo intendidoe correcto. O que fazemos deste jeito porrazões gnosiológicas, fá-lo o mecanismo dareprodução por causalidade cega. Para queeste possa construir-se e funcionar, são pre-cisos, como já vimos, justamente as qualida-des dos raciocínios que, caso fossem conhe-cidas, legitimariam logicamente o processomecânico. A univocidade da expressão lin-guística e a determinação unívoca da con-clusão pelas premissas, tanto pelo lado psí-quico como pelo simbólico – isso são exi-gências necessárias e suficientes para o pro-cesso mecânico cego, por um lado, e para oprocesso lógico-mecânico, por outro. Destemodo, resolveu-se a nossa tarefa: a teleolo-gia aparente do processo natural fica perfei-tamente esclarecida. De particular interesseaqui, porém, é a circunstância de que o pro-cesso lógico paralelo também é um processomecânico, só que a instalação do mecanismo

foi inventada intencionalmente com base emconsiderações lógicas; a universalidade domesmo concentra-se numa regra lógica que,para a classe respectiva de formas de raci-ocínio ensina como o raciocínio próprio sesubstitui por um operar exterior com os si-nais linguísticos e, desse modo, se constróia expressão linguística do juízo conclusivo apartir dele mesmo. Nisso consiste, contudo,todo o raciocínio formal no verdadeiro e ge-nuíno sentido da palavra. Mas que um racio-cínio desse tipo não é (como se [365] pode-ria supor pelos exemplos simples atrás apon-tados) irrelevante, mas, ao contrário, consti-tui um importantíssimo instrumento do pro-gresso científico, disso deverá a nossa teoriada aritmética dar as provas mais fortes.Até aqui as nossas investigações incidiramsobre os símbolos de processos simbólicosde grau ínfimo, sobre aqueles que no de-curso do pensamento natural e irreflectido,graças à constituição legítima da nossa na-tureza, fazem de sucedâneo das representa-ções, juízos e raciocínios próprios, sem quehaja uma consciência especial desta sua fun-ção, e muito menos que motivos lógicos (an-teriores ou simultâneos) regulem a sua utili-zação. Mas, além destes sucedâneos naturais(assim os podemos designar numa palavra),utilizamos também, e em muito maior grau,sucedâneos artificiais. Inventamos símbo-los e processos simbólicos ou utilizamos osque outros inventaram como apoios e suce-dâneos de representações e processos judica-tivos e fazemo-lo com consciência, sabendobem que lidamos com símbolos.

Vamos agora dedicar algumas considera-ções à lógica das representações e juízossimbólicos. A elaboração de uma tal lógicateria como objectivo fundamentar a funçãodas representações e juízos simbólicos na ac-

www.bocc.ubi.pt

18 Edmund Husserl

tividade judicativa teórica e, sobretudo, elu-cidar os métodos algorítmicos que se torna-ram, em medida tão extraordinária, no veí-culo do progresso das ciências exactas, e es-tabelecer as regras de exame e descobertadesses métodos. Investigações do tipo comoas que fizemos atrás sobre a actividade judi-cativa natural e prática, teriam de constituirnaturalmente um fundamento para essas in-vestigações superiores. Com efeito, um pro-cesso lógico não é de modo algum, face aoprocesso natural correspondente, diferentetoto genere. Ambos fazem uso das leis psico-lógicas da nossa natureza e, em grande me-dida, das mesmas. Mas só em parte, e pre-cisamente nisso reside a diferença. Comonovo momento surge a influência da vontade,guiada por motivos gnosiológicos, e a ca-pacidade de através dela regular o curso daactividade judicativa justamente de acordocom estes interesses lógicos. O ajuizar natu-ral precisa [366] de uma tal regulação dadasas múltiplas fontes naturais de erro que fa-zem com que os processos naturais, emboraem média tenham uma direcção correcta, le-vem ao erro em casos especiais. Deste pontode vista, o processo lógico serve como se-gurança dos conhecimentos; por outro lado,serve para alargar o conhecimento; é que osmétodos artificiais não só fazem o mesmomelhor que os naturais, como fazem incom-paravelmente mais. Em todo o caso, a ori-gem dos métodos artificiais reside nos natu-rais. Se tomarmos especial consciência daforça, produtora de verdade, dos primeirosmétodos, então, tendo em conta o poder davontade sobre os motores psicológicos quelhe estão subjacentes, pode realizar-se umainvenção sistemática e uma aplicação cons-ciente de métodos análogos, mas agora artifi-ciais. Portanto, também deste ponto de vista

se justifica a nossa afirmação de que a aná-lise dos métodos naturais tem de preceder ados artificiais.

Os sucedâneos artificiais são uma classeespecial de sinais artificiais. Com efeito, si-nais artificiais não se inventam em geral como fito de com eles substituir representaçõese juízos impróprios, mas para servir comomarcos da memória, como apoios sensíveisda actividade psíquica, como ajudas da co-municação e do intercâmbio, etc. Só no se-guimento de um uso contínuo e da associa-ção que assim se forma, por vezes pela ex-periência ou por uma mistura de ambas, to-mam os sinais artificiais (desde que se ade-quem devidamente a isso) o carácter de su-cedâneos, de modo semelhante como os si-nais naturais tomam o carácter de sucedâ-neos naturais. A parte de longe mais consi-derável das representações e processos judi-cativos simbólicos reside na língua. Mas ossinais linguísticos não foram com toda a cer-teza inventados para esse fim, mas sim paramútuo intercâmbio. Nas ciências abstractasos sinais aritméticos e respectivas operaçõesdesempenham o papel mais significativo. Nolugar de uma dedução real de relações degrandeza a partir de relações de grandeza,dedução essa de uma complexidade inapre-ensível, surge o mecanismo cego dos símbo-los sensíveis. Mas se seguirmos os vestígiosdo desenvolvimento histórico [367], então éfácil de reconhecer que não foi a antevisãodeste objectivo que condicionou a invençãodos símbolos. Com efeito, eles serviam ori-ginalmente como simples sinais marcantesda distinção e rememoração e, através disso,também como apoios para os processos judi-cativos próprios baseados neles. É preciso jáum elevado nível de desenvolvimento da cul-tura intelectual para inventar sucedâneos ar-

www.bocc.ubi.pt

Da Lógica dos Sinais 19

tificiais com a plena consciência da sua fun-ção ou mesmo apenas para utilizar os que jáexistem. É desta espécie que têm de ser ossímbolos e processos simbólicos de uma arit-mética bem entendida, rigorosa e logificada,tal como de uma lógica formal em geral e,correspondentemente, também dos seus do-mínios de aplicação, as ciências abstractas.Entretanto, os sucedâneos artificiais que ha-bitualmente utilizamos na vida e na ciência,não têm este carácter puro. Sinais artifici-ais, tornados sucedâneos pela acção dos mes-mos motores psicológicos, exigem a nossaactividade judicativa, sem que houvesse umacompreensão correcta do verdadeiro estadode coisas.

‘A distinção atrás feita queremos agora fa-zer juntar algumas outras, importantes parauma teoria dos sinais.

Sob o título "sucedâneo"compreendemosdois tipos: Sinais ou ligações de sinaisque fazem de sucedâneo de representaçõese sinais ou ligações de sinais que fazemde sucedâneo de juízos e raciocínios. Emmaior medida e regularmente, o fazer-de-representante só pode ter lugar onde as re-presentações e os processos judicativos têmum carácter sistemático, capaz então de sereflectir num sistema de sinais e regras uni-formes da sua ligação e equivalente substi-tuição. Para a lógica formal são, por isso, deespecial interesse os sistemas de sinais e osalgoritmos neles fundados. Relativamente àorigem psicológica e histórica há que distin-guir em cada sistema de sinais: a dos sinaissingulares e a do sistema como tal. Sinaisartificiais (inventados) podem, ao apoderar-se deles o pensamento natural, desenvolver-se em sistemas de sinais, e, na verdade, emsistemas de estrutura tão rica e finamentearticulada, que a reflexão posterior chegará

primeiro e mais facilmente a qualquer outraideia do que à ideia de esses sistemas teremsurgido pela interacção cega de leis naturais.[368] Isso vale, por exemplo, para a língua.Os sinais singulares da mesma são artifici-ais. Por mais toscos que fossem os primeirosmeios de assinalar no início do desenvolvi-mento linguístico, eles tinham, todavia, o ca-rácter de invenções. A sua adequação paraexprimir fenómenos exteriores (ãußere Vor-gãnge) ou estados internos foi o motivo paraa aplicação intencional dos mesmos com oobjectivo da comunicação. E, do mesmomodo, são invenções os sinais introduzidossempre de novo. Mas dos sinais singularessurgiu, por via de desenvolvimento natural,o sistema da língua com a sua fina estruturagramatical, e é tal o realce da utilidade e be-leza da sua sistemática, que a ideia de que elapoderia ser produto de leis cegas da natureza,já pressupõe um desenvolvimento elevado dapsicologia. De modo semelhante se passatambém com a aritmética. Os sinais singula-res são invenções. Mais, aqui há ainda outracoisa: também os métodods singulares sãoinvenções. E, no entanto, o sistema da arit-mética como todo na sua maravilhosa estru-tura não é produto de uma intenção prevista,mas de um desenvolvimento natural.

Em cada sistema de sinais distinguimosentre sinais fundamentais (Grundzeichen) esinais derivados ou compostos. A deriva-ção dos últimos a partir dos sinais funda-mentais ocorre mediante operações de sinais(Zeichenoperationen). Estas são sistemáti-cas, métodos do representar, ajuizar e ra-ciocinar simbólicos, métodos esses levadosa efeito segundo determinadas regras. As-sim, por exemplo, as operações aritméticas,na medida em que são constituintes de nú-meros, são métodos regulados para a pro-

www.bocc.ubi.pt

20 Edmund Husserl

dução de representações impróprias; mas namedida em que constituam regras da forma-ção e transformação de equações e inequa-ções, são métodos para a produção de juízossimbólicos (verdadeiros). Os sinais funda-mentais da teoria dos números (Zahlentheo-rie) são os sinais 0, 1,..., 9. Todos os res-tantes sinais numéricos, e depois os sinaiscomo 2+3, 5.6, 4/2, etc. são sinais deriva-dos para números representados impropria-mente. Cda conta, por exemplo, uma adição,é uma formação simbólica de verdade (sym-bolische Wahrheitsbildung) mediante certasoperações efectuadas com os sinais funda-mentais.

Cada operação artificial com sinais serveem certa medida objectivos do conheci-mento; mas nem todas levam realmente aconhecimentos, no sentido verdadeiro e ge-nuíno da intelecção lógica. Se o processofor ele mesmo lógico, se [369] tivermos a in-telecção lógica de que assim, tal como é eporque é assim, terá de levar à verdade, sóentão será o seu resultado não uma simplesverdade de facto, mas um conhecimento daverdade (eine Wahrheiterkenntnis). Só en-tão temos a plena certeza, de estar protegi-dos do erro, e não ajuizamos por um impulsocego, nem por uma convicção mais ou menosintensa, mas sim por uma intelecção clara.Neste sentido distinguimos: 1) as operaçõessinaléticas pré-lógicas que visam a verdade,que provavelmente a atingem, sem que, noentanto, a aplicação (como já a invenção)destes métodos assentasse numa compreen-são lógica; 2) as operações sinaléticas lógi-cas que se seguem por razões cognitivas e,por isso, não só atingem a verdade, comotambém uma verdade certa.

Esta distinção estende-se, como é bom dever, a todas os processos judicativos simbóli-

cos em geral, também os naturais, resultantesunicamente da acção da associação de ideiase com exclusão de motivos lógicos. Estespertencem no seu conjunto a um nível pre-lógico*.

É útil chamar aqui a atenção para o factode que uma aplicação sistemática de sinais,feita com fins cognitivos, não é só por issológica. Logo ao nível pre-lógico pode ocor-rer uma procura e aplicação sistemáticas dossinais. Pode-se muito bem notar que os si-nais prromovem o nosso conhecimento, sem,contudo, se ter a mínima ideia da razão dessapromoção. Isto será possível especialmenteentão, quando as proposições (juízos simbó-licos) obtidas por vias simbólicas levarem,através da passagem de sinais aos pensamen-tos, a juízos reais que se legitimam graçasà verificação respectiva levada a cabo. As-sim se passa na matemática. Pode-se afir-mar: a aritmética geral com os seus númerosnegativos, irracionais e imaginários ("impos-síveis") foi inventada e aplicada durante sé-culos antes de ser compreendida. Tinha-serelativamente à significação [370] destes nú-meros as teorias mais contraditórias e incrí-veis, mas isso não constituia um obstáculo àsua aplicação. Uma pessoa podia justamenteconvencer-se, através de uma verificação fá-cil, da exactidão de qualquer um medianteas proposições suas derivadas, e após inú-meras experiências deste tipo confiava na-turalmente na utilidade incondicional destesmétodos, alargava-os e aperfeiçoava-os cadavez mais - tudo isso sem a menor intelec-ção da lógica da coisa, que, apesar dos múl-tiplos esforços desde os tempos de Leibniz,D’Alembert e Carnot, não fez até hoje quais-quer progressos significativos.

Isto é o que se passa em geral com os mé-todos lógicos, por exemplo, com os da indu-

www.bocc.ubi.pt

Da Lógica dos Sinais 21

ção. Nas ciências naturais, os investigadoresutilizam com um sucesso extraordinário es-tes métodos, sem se sentirem constritos pelaprópria falta de clareza, ou pela da dos ló-gicos, sobre sentido, limites e valor cogni-tivo dos mesmos. Também na indução te-mos de distinguir entre o processo indutivopre-lógico e o lógico. Mesmo onde amboslevam ao mesmo resultado (o que não sucedesequer numa média grosseira), fazem-no demodo completamente distinto e só o lógicodá conhecimento. Fundar a indução sobre omecanismo psicológico cego do hábito, quefunciona, mas que não legitima, isso signi-fica confundir a indução pre-lógica com a ló-gica ou (com Hume) negar de todo a possibi-lidade de uma legitimação racional da indu-ção.

Isto serve de prova drástica de que umautilização de símbolos para fins científicose com sucesso científico não é, só por isso,lógica. Naturalmente não é nossa intençãorejeitar por completo a aplicaão pre-lógicade sinais. Em média ela conduz indubita-velmente a resultados correctos; mas só emmédia. E é justamente por isso que que exi-gimos para a ciência apenas a aplicação desinais legitimados logicamente. Aqui poder-se-ia utilizar contra nós o exemplo que de-mos atrás, o da aritmética. Com efeito, écerto que a aritmética desenvolvida é inde-pendente em grandíssima medida de umacompreensão lógica dos seus métodos arti-ficiais. Entretanto, a aritmética não surgiucomo invenção acabada da cabeça de umúnico indíviduo; ela é o produto de um de-senvolvimento de séculos. [371] Surgiu atra-vés de uma espécie de selecção natural. Naluta pela existência venceu a verdade con-tra o erro, demonstrada a sua insustentabi-lidade, e os métodos aritméticos formaram-

se em consonância, sujeitando-os a sucessi-vas alterações que excluiam os possíveis er-ros que ainda restavam *. Pense-se nas dis-putas infindas sobre o negativo e o imagi-nário, o infinitamente pequeno e o infinita-mente grande, sobre os paradoxos das sériesdivergentes, etc. O progresso da aritméticateria sido rápido e seguro em vez de lento einseguro, se houvesse, logo no seu desenvol-vimento, uma clara compreensão do carácterlógico dos seus métodos. E do mesmo modonão há dúvida alguma de que também parao desenvolvimento futuro da aritmética (namedida em que se vise um alargamento doseu âmbito) a intelecção no seu carácter ló-gico seria de uma influência decisiva e posi-tiva para o seu progresso.

Fora da aritmética encontramos aindamuitas mais confirmações de que os sinaisnão examinados logicamente podem condu-zir a erros. Disso também os lógicos já sederam conta há muito tempo no caso do maisimportante sistema de sinais que possuímos,a língua. Em que sentido a língua promove opensamento e, por outro lado, o tolhe, issoé discutido presentemente em qualquer ló-gica que ambicione uma acção prática. So-mos avisados para não confiar demasiado naspalavras, de em cada demonstração termospresente o seu sentido pleno, de nos preca-vermos dos equívocos, etc., regras que, nãoobstante serem extremamente úteis, se limi-tam a um círculo por demais restrito. Ao dar-se atenção normalmente só ao carácter sim-bólico das formas mais simples da fala, daspalavras e proposições, ignorava-se [372]o mesmo nos métodos mecânico-simbólicosque ocorrem no pensamento natural, méto-dos esses que substituem por meios linguís-ticos compostos um raciocínio mais ou me-nos complexo. Refiro-me aqui aos silogis-

www.bocc.ubi.pt

22 Edmund Husserl

mos simples e compostos. Embora na ló-gica formal tradicional sejam tratados emmedida excessiva, as suas regras não foram,no entanto, compreendidas. Aquilo que seconsiderava como regras do raciocínio real,eram (justamente enquanto regras formais)efectivamente regras do raciocínio simbó-lico. Essa interpretação errónea da verda-deira relação de coisas influenciou tão ne-gativamente o modo de analisar a coisa quea teoria do conhecimento foi levada a erroe, por outro lado, não se promoveu a prá-tica no mínimo que fosse. Tivesse sido re-conhecido o carácter simbólico da sologís-tica (a parte capital e cerne da velha lógicaformal) e da aritmética geral e por meio deinvestigações penetrantes precisado exacta-mente, então poderia a compreensão teóricadestas disciplinas "formais"exercer uma in-fluência clarificadora e frutuosa sobre a filo-sofia e as ciências especiais. Porém, a si-tuação hoje em dia é a de as nuvens maisdensas da confusão confundirem e tolherempara ambos os lados. Caraterístico da faltade clareza dos lógicos é o facto de se ounão preocuparem no mínimo com as teoriasdos algoritmos (e isso é a regra) ou então ofazem de um modo tão displicente e super-ficial que é o melhor sinal da falta de cla-reza. Com a segunda parte desta afirmaçãotenho em mira as disputas de Mill (Lógica,4˚ livro, cap. VI, 6) e Bain (Logic, Partfirst, Appendix B). Tomem-se apenas os al-goritmos mais corriqueiros e simples, os daarte de numerar e contar, em vão se pro-curará nas obras de lógica um ensinamentosobre o que é que verdadeiramente capacitaessas operações mecânicas com simples si-nais alfabéticos ou verbais a alargar em tãoextraordinária medida o nosso conhecimentoreal relativamente aos conceitos numéricos e

a possibilitar-nos realizações que seriam in-compreensíveis aos maiores pensadores daantiguidade. E, por outro lado, encontramosnovamente como sinal característico da faltade clareza dos matemáticos teorias estranhasque uns adoptaram de uma maneira e outrosde outra como filosofia da sua disciplina, eque bastas vezes os [373] levaram, e justa-mente as cabeças mais originais em primeirolugar, a desvios estéreis. Uma lógica for-mal verdadeiramente frutosa constitui-se deantemão como uma lógica dos sinais, que,quando suficientemente desenvolvida, cons-tituirá uma das partes mais importantes dalógica (enquanto ciência do conhecimento).A tarefa da lógica é aqui a mesma comonas outras partes: assegurar-se dos métodosnaturais do espírito judicativo, examiná-los,compreendê-los no seu valor cognitivo, a fimde poder determinar rigorosamente limites,extensão e alcance dos mesmos e estabele-cer as respectivas regras gerais. Se entenderbem a sua tarefa, então não poderá cingir-se a acompanhar a utilizacão pre-lógica dossinais. Pelo contrário, a intelecção mais pro-funda na essência dos sinais e das ciênciasdos sinais permitir-lhe-á reflectir também so-bre os métodos simbólicos a que o espíritohumano ainda não chegou, ou então de es-tabelecer as regras para a sua invenção. Arelação da lógica dos sinais com as opera-ções lógicas na prática da vida e da ciên-cia será análoga, por exemplo, à relação en-tre a lógica indutiva e as induções práticas.Esta tardiamente reconhecida tarefa da ló-gica foi também aqui de se assegurar des-tes enormes recursos naturais da formaçãode juízos e, mediante reflexões científicas so-bre legitimação, limites e alcance, fazer dosprocessos naturais e logicamente ilegítimosum processo artificial e logicamente legiti-

www.bocc.ubi.pt

Da Lógica dos Sinais 23

mado que não oferece só simples convicção,mas um conhecimento certo.

Vocabulário

Beschaffenheit = qualidadeBestimmung = determinaçãoBeurteilter= judicadoBeurteilung= judicação; beurteiltes= judicadoBezeichnen = assinalar; bezeichnetes= assinaladoBezeichnung = assinalaçãoCharakteristikum = característicaEigenart = especificidadeEigentlich = próprio/propriamenteEindeutig = unívocosErfindung = invençãoKennzeichnen = sinalMehrdeutig = equívocosMerkmal = marcaMerkzeichen = sinal característicoMitbezeichnung = co-assinalaçãoSchluß, Schlußfolgerung,Schlußverfahren = raciocínioStellvertreter = representanteStellvertretung = fazer-de-representanteSurrogatvorstellungen = representaçõessucedâneasUneingentlich = impróprio /impropriamenteUrteilen = ajuizarVermittlung = mediaçãoVertreten = fazer de representanteVorstellen = representarZeichen = sinalZeichenvorstellung = representaçãosinalética

www.bocc.ubi.pt