DA MORTE AO FILME Monografia apresentada como requisito...

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URIEL PEREIRA DA SILVA DA MORTE AO FILME Monografia apresentada como requisito parcial para a conclusao do Curso de P6s- Gradua<;iio Latu Sensu em Cinema da Universidade Tuiuti do Parana. Orientadora: Professora Dr." Sandra Fischer. CURITIBA 2003

Transcript of DA MORTE AO FILME Monografia apresentada como requisito...

URIEL PEREIRA DA SILVA

DA MORTE AO FILME

Monografia apresentada como requisitoparcial para a conclusao do Curso de P6s-Gradua<;iio Latu Sensu em Cinema daUniversidade Tuiuti do Parana.

Orientadora: Professora Dr." Sandra Fischer.

CURITIBA

2003

INDICE

TNTRODUCAo IV

CENTRAL DO BRASIL

FESTA DE FAMiLIA (FESTEN) 13

TUDO SOBRE MINI-IA MA-E (TODO SOBRE MI MADRE) 18

SOBRE A MORTE 23

A MORTE REPRESENTADA NOS TRES FILMES 30

CENTRAL DO BRASIL 35

FESTA DE FAMhfA 39

TUDO SOBRE MINNA MA-E 42

CONSlDERACOES FINAlS 48

BIBLIOGRAFIA 50

INTRODU<;:AO

E inteny30 deste trabalho a analise da representa930 da merte nos filmes Central do

Brasil, Festa de Familia c Tlldo Sobre Minha Mae, obms que abordam rcia<;:oes famiiiares,

cujas tram as descnvolvem·se a partir da morte de pessoas pr6ximas aos protagonistas; os

relacionamcnlOs e a constru9ao da subjetividade dos oulros personagens sc da justamcnte em

decorrencia dessa marte. Os filmes sao contemporaneos, mas distintos no que se rcfere aos

recursos e tecnicas cinematognificas utilizados pelos respectivos direlores.

Em urn primeiro momento, sera apresentada urna panoramica e breve critica dos tres

filmes, posterionncnte a morte sera discutida para verificar como a mcsma foi trabalhada nas

obras em questao.

CENTRAL DO BRASIL

Celllral do Brasil, filmc brasileiro de Walter Moreira Salles Junior, produzido em

1988, com duracyao de 115 minutos, conta a hist6ria de uma escrevedora de cartas que viaja

juntamente com urn garoto, cuja mac foi atropeJada pOT urn onibus, para encontrar 0 pai no

interior do nordeste brasileiro. A mae do menino, Ana, com 0 objetivo de cntrar em cantata

com 0 pai de seu filho, acompanhada destc, procura uma escrevedora de cartas, Dora, que

trabalha na Estary80 Central do Brasil, e Ihe recomenda que seja escrita urna carta, com

palavras rispidas, cobrando do pai do menina a participacyao na criaryao do filho.

Posteriormente, decidida a mudar 0 conteudo do tcxto original da corrcspondencia, a mulher

rcloma mais uma vez a estary80 e na saida da rncsma e atropelada por urn onibus. Sozinho, sem

parentes a quem recorrer, 0 menino, Josue, pennanece na esta9ao com 0 intuito de cobrar da

escrevedora que a carta seja de fato enviada.

Na mesrna esta9ao, urn adolescente que tenta furtar uma bolsa e perseguido e

executado por urn senhor, Pedrao, especie de xerife da esta9ao, que veste um col etc preto c

cobra dos comerciantes urn pedagio pcla "seguran9a" do local. Esta cena e alusao a um fate

real, exibido nos teiejomais, que ocorreu na saida do Shopping Rio Sui. A escrevedora de

cartas, mulher rude e fria, acaba levando 0 garoto para casa, onde hit a eonfinna9ao de uma

suspeita do menino, qual seja: as eartas das pessoas nao sao eneaminhadas para 0 seu destino.

Corn a indica9ao de Pedrao, a eserevedora vende a crian9a para uma mulher que supostamcnte

faria uma intennedia9ao para doa91i.o de crian9as a europeus.

Ao chegar em casa, Dora e cobrada pela amiga, sua vizinha, que teve conhecimento

da existencia do garoto, e suspeita que a crianya sera utilizada para retirada de orgaos. Apos se

arrepender de ter vendi do a crianya, a escrevedora "sequestra" a mesma e juntas partem em

direyao ao nordeste do pais, a procura do pai do menino.

Interessante a relat;ao que se pode fazer, neste caso, em que os orgaos retirados das

crianyas do filme Celllral do Brasil poderiam ser contrabandeados pelo personagem escritor

do filme Cronicamcnte inviavel e utilizados no Hospital Vita do filme TlIdo Sobre Minha

Mae, na Europa. I

Nesta primeira etapa, 0 filme Central do Brasil apresenta cenas ciaustrofobicas, com

varias 10cat;6es intemas, apartamentos minusculos, estayao e ruas lotadas, sendo as poucas

extemas de dias nublados, com imagens de trens cinzentos, pn!dios velhos construidos

desordenadamente, onde a luz do sol dificilmente eonsegue ehegar, violando 0 espayo natural,

representando suburbios decadentes de uma grande cidade. As relat;5es humanas, com

exceyao da amiga de Dora, tambem sao mas e superficiais. As pessoas, principaimente Dora,

esHio fechadas em seus pr6prios mundos, vivendo as "mesquinhices" do cotidiano, da luta pela

sobrevivencia, dominadas pela maxima "cada urn por si e Deus por todos".

I 0 contrabando de 6rgaos chegou a ser objcto de uma reponagem denominada "0 escfmdalo da Ado{xio" publicada na

rcvista ISrOE, 11." 1521, de 25 de novembro de 1998, com uma ressalva, as pessoas que estariam cnvolvidas no trafico

de 6rgaos cram urn Juiz e urna Promotora, ou seja, pessoas supostamente integmntes da classe media alta, enquanto no

filme todos os pcrsonagcns sao pobres, vivem em um submundo da classe baixa.

Os tons das cores que aparecem nessa etapa, prineipalmente a einzento e 0 oere,

tam bern contribucm para aumentar esta scnsar;80 de vida humana sem brilho, especialmemc

nos grandes centros urbanos. "Entre 1I0S, a gris-cillza e lima cor de /uto aliviado. A grisalha

de certos tempos b11l111OS0S do lima impressiio de tristeza, de me/allcolia, de ell/ado"

(Chevalier, 1990, p. 248 ).

Durante a viagcm em direr;80 ao Nordeste, a imagem vai ficando mais aberta. As

cores vilo ficando menos carregadas. Todos os dias sao ensolarados. 0 tom ocre agora e da

terra castigada pelo calor excessivo, pela falta de chuva, que provoca secas, resultando em

uma vegetar;80 atrofiada: vegetar;ao de cerrado.

Chevalier ao falar sabre a cor preta cita 0 amarelo ocre como a cor que representa a

terra esteril:

Na linguagem hen'tldica, a cor preta e chamada sable (palavra francesa que

significa "areia"), a que exprime suas afinidades com a terra estt!!ril, habitualmente

representada par urn amarelo ocre, que e as vezes tambem 0 substituto do preto: e esse

mesmo amarelo de terra ou de areia que representa 0 norte, frio e hibemal, para cenos

povos amerindios. Bern como para as tibetanos e as kalmuks.

(Chevalier, 1990, p. 741).

Os personagens tambem mudam. 0 relacionamento entre Dora e Josue pouco a pouco

vai ficando mais forte. Josue nao mais aparenta a dar da recente perda da mae. Dora,

gradativamente, vai se transfonnando, mostrando-se mais fra!,,-jl, mais humana, se enchendo

mais de vida. No cntanto, continua extemando sentimentos de reprovar;80 em rela9ilo aos seus

semelhantes, enquanto 0 filme realya peculiaridades da classc dcsfavorecida da popula~ao,

como a freqiiente enfase da questao do alcoolismo, que acaba sendo confinnada com 0 relato

do novo proprietario do antigo terreno do pai de Josue, que leria gasto todo 0 dinheiro da

venda em bebida.

Dutro exemplo que ilustra este aspecto e 0 fato de que, com urn pouco de dinheiro 0

motorista do 6nibus jit aceita levar 0 garoto, ou seja, observa-se que todo mundo compra todo

mundo, nao hit dignidade, e em geral os personagcns coadjuvantes sao analfabctos, miseraveis,

ignorantes, alc061atras e corruptos, os quais apenas suportam a vida movidos pel a fe, ou

melhor, pelo fanatismo religioso. Ao se embrenhar mais em direyao ao sertao, 0 filme

mergulha em imagcns de pessoas embriagadas na religiao, fato que faz com quc Dora desmaic

por nao suportar a overdose do credo.

o filme tambem da enfase a degradayao da estrutura familiar convencional, fonnada

por pai, mae e filhos. A ideia de estrutura familiar e melhor explicitada por Fischer:

A id6ia de familia remete ao grupo de convivencia constituido por pai, mae e

filhos habitando 0 mesmo espa;;o fisico - por mais especificas, elasticas ou confusas

que sejam, eventualmente, as concepyoes particulares e as convicyoes intimas que cada

um possa ter a respeito de famnia, e por mais diversas que se mostrem as experiencias

pessoais. Parece ser, portanto, a noyao de familia nuclear composta pela trlade pai, mae

e filho, poslulada por Sigmund Freud, aquela que predominantemente perpassa 0

entendimento amplo e generico do que seja familia.

(Fischer, 2002, p. 05)

No meio da viagcm Dora conhece urn caminhoneiro, pelo qual mostra certo interesse,

e por algum tempo tem-se a impressao de uma potencial fonnayao de uma familia com pai,

mae e filho: Cesar, Dora c Josue. Quando eles se scntam it mesa de urn restaurante de estrada,

Cesar pede tres refeiyoes e uma agua. A gan~onetequestiona Dora sobre 0 que deseja tomar e,

apos receber a resposta que deseja urna cerveja, pergunta: "E pro sell jUlio". Cczar e Dora se

olham encabulados. Josue responde: "lima Coca-Cola". A principio, poder-se-ia acreditar que

estaria havendo a fonna<;aode urna estrutura familiar no fihne, composta pela triade pai, mae

e tilho, com Josue tomando a iniciativa de se colocar no papel de tilho. Dora tenta uma

aproxima<;ao maior em relayao a Cezar, que fica assustado. Ela vai ao banheiro se ajeitar.

co10ca um batom nos labios, penteia 0 cabelo, 0 que sugere que ela esta interessada em

conquistar 0 motorista. Isso corrobora a ideia dc conquista, possibilidade de casamento e

fonnayao de familia. Entretanto, assustado frente it investida de Dora, enquanto ela esta no

banheiro, 0 motorista a abandona com 0 garoto no restaurante.

Ao final do tilme, Dora ja esta transfonnada; a mulher que antes era solitaria e

insensivel, agora esta mais humanizada. Josue fica corn os innaos it espera do pai. Urn dos

innaos de Josue e carpinteiro, como 0 pai, e Ihe faz urn piao. Pode-se estabelecer 0 paralelo de

morte ao pensarmos que a mae morre quando tenta atravessar a rua, enquanto que Josue tenta

pegar seu pian que caiu no canto da estrada. 0 pian era 0 brinquedo que acompanhava Josue

quando 0 mcsmo, juntamente com a mae, procurou a escrevedora de cartas. Josue chegou a

deixar Dora initada por insistir em furar sua mesa com 0 piao. 0 piao vern a ser urn elemento

preponderante na cena da morte da mae de Josue. Enquanto esse tenta pegar seu piao que caiu

no canto da estrada, a mae morre quando tenta atravessar a rua. No encontro dos innaos,

pcssoas do mesmo san!,'Ue,Josue novarnente ganha outro piao para brincar, fechando urn cicio.

Dentre tantos brinquedos artesanais e simples que poderiam ter sido escolhidos para servir de

passarcmpo ou brinquedo para 0 mcnino Josue, e significativa a escolha do piao: quando

impulsionado, urn piao gira sobre seu proprio ccntro/eixo c so para e cai quando perde 0

impulso e a forya. Se, no entanto, reparannos no desenho que cria cnquanto csta em

movimento - similar ao de uma espirai - podemos trayar urn paralelo com a concepyao

oriental da vida, entendida como urn cicio cspiralado, que pode sempre corneyar de novo, ao

contrario da visao ocidentallinear de vida que tem comeyo, meio e nm, sem a possihilidade de

nascer outra vez. A trajctoria de acontecimentos na vida de Josue parece representar esse cicio

vital cspiralado, pois com 0 fim do primeiro cicio, representado pela morte da mae, outra vida

ou cicio comeya na companhia de Dora. Quando cia 0 deixa com seus irmaos, que 0

presenteiam com um novo pia~, inicia-se urn novo cicio. E assim, sucessivamente, podemos

imaginar que a vida de Josue sera feita naturalmente de perdas e ganhos, de enconlros e

dcspedidas, mortes que levam it vida, ciclos que iniciam c se acabam, com Josue ao centro da

ayaOgiratoria.

E interessante verifiear que, aICmda profissao de carpinteiro, 0 pai de Josue tambcm

possui 0 nome Jesus. Assim, pode-se afirmar que 0 filme assume urn tom bastante messianico;

uma vez que a busca do pai e metaf6rica: Josue busea 0 pai, Jesus, que nao conhece, e

eneontra seus innaos Isaias e Moiscs, lodos sao nomes biblicos. Todos esperam 0 pai. Ele

existe, ou nao? 0 pai (Deus) os abandonou a sua propria sorle. Assim a miseria torna-se

justificavc\: Deus assim 0 quis.

Quanto a linguagem, 0 tiline 6 "digestivo", com cSlilo de fotografia e decupagem

perfeitamente c1aros; urn cinema bern conheeido de todos c facil dc ser aceito pelo publico

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brasilciro, que historicamente se recusa a olhar as imagens da propria miseria. Todavia, ao

apresentar a c1asse socioeconomica baixa de fonna unilateral, 0 filme omite uma questao

politica importante: a injusta questao da distribuiyao de rcnda. Segundo Saliba:

( ...) Central do Brasil fala dos cxcluidos e desenraizados, mas nao faz nenhuma

menc;ao aos geslos de poder que os excluirarn. Oai uma persistenle ambigliidade que

esta no nucleo do filme: este arcaismo estetizado pelo movimento, que oOlite as

condiC;oes rea is, corrcndo 0 risco de passar ao largo das singularidades temporais,

diluindo-as nas generalidades dramaticas, escamoleando os processos sociais,

achatando a historia.

(Saliba, 200 I, p. 254)

Todos os movimentos sociais e lutas annadas que ocorreram durante os poucos

seculos apcs a colonizayao brasileira foram dominados pelas foryas (annadas) "Iegais" e

suprimidos da historia oficial contada nas escolas, como se a hist6ria do Brasil tivcsse sido

deserila apenas pela vontade de poueos govemantes, que foram benevolentes corn 0 povo e

fizcram mudanyas que aos poueos melhoraram a condiyao de vida da populayao. Dessa

maneira, 0 processo de concentrayao de rendas passa a ser visualizado como algo natural. Se 0

proeesso de empobrecimento dessa grande parcela da popular;ao mostrada em Central do

Brasil tern origem no modele de colonizayao adotado pelos portugueses, e sabido que:

( ...) 0 processo de enriquccimento - acumulac;ao de lodas as foroms de bens:

agricuhura, comercio, industria, infonnayao - dura seculos. E aqui quero lembrar a

reflexao de Sader sobre 0 trabalho de Marilena Chaui. Segundo esta reflexao, existe

umn "mem6ria de vencedor" que busca negar 0 passado como movimento vivo de

enfrentamento de classes e gropos sociais. Assim. 0 pobre e pobre, sempre existiu

como pobre. 0 discurso do Estado se autoconstituiu em sua propria compctencia,

II

trazendo em seu bojo a dcsqualificac;ao das prnticas e falas populares, de modo que a

realidadc nlio podcria aparccer como qucstao.

(Lima, 2000, p. 24-5)

Nao se pode negar que existe em Central do Brasil uma visao vertical, patcmalista,

da elite financeira brasilcira desccndente dos colonizadores Europeus, onde a cJasse pobre e

[ratada como urna crian9a que precisa ser tutoriada, c "essa elite herdoulcultivoll 0 desejo e

capacidade de ma1/ler-se flO poder. Assim, caminhalldo pOl' fodas as lases da histaria do

!laSSo pais ellCOlllraremos as ramos dessa arvore geneal6gica chamada de de!lomilladores, all

de O/Ilro nome qualquer" (Lima, 2000, p. 09). Dessa forma, citamos, com 0 intuito de mostrar

as origens ideol6gicas dos criadores de Central do Brasil, Firmino Holanda:

Nelson Rockefeller chegou a patroeinar reaciomiria seita religiosa norte-

americana, que 'pacificaria' na Amazonia as tribos indigenas, cujas terras serviriam

para seus empreendimentos agro-industriais, de extrac;ao da borracha, do petr61eo e de

minerais. Empresarios brasileiros, como Walther Moreira Salles, e norte-amerieanos

aqui rcsidentes, fonnariam grupos a respaldar as ac;oes de Rockefeller - nao

esqueyamos, urn homem forte do govemo Roosevelt e de outros presidentes.

(Holanda, 2001, p. 174-5)

Diante do exposto, percebe-se que do ponto de vista cinemalOgrilfico, a tematica da

morte em Central do Brasil cxtrapola questoes facilmente palpaveis. Podendo muito hem

representar questoes morais de uma sociedadc corrompida pelo "jeitinho brasileiro" da cJasse

excluida, mostrada no filme, e da c1asse historicamente favorecida, escondida atras da camera,

que indecentementc continua acumulando nquezas com a explora~ao predatoria da outra

c1asse.

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FESTA DE FAMiLIA (FESTEN)

o filme Festa de Familia, de Thomas Vinterberg, Dinamarca, 1998, 105 minutes,

teve sua imagcm captada em video, relembrando urn procedimento tao corriqueiro nas festas

familiares, qual seja, 0 registro da festa por meio de uma camera VHS. Apesar de poder seT

considerado uma alusao aD filme Alljo Exlermillador, classico de 1962, de Luis Bui'iuel, sua

prOdUy80 ocorrcu dentTo das conven90es do movimcnto denominado "Dogma 95", que tern

como regras: I) filmar em iocacyocs, sem ccnarios artificiais; 2) utilizar somcnte scm direto c

scm trilha sonora; 3) usaf camera fla mao; 4) tilmar em cores e sem iluminayao artificial; 5)

evitar trucagcns e filtros; 6) nae utilizar ncnhuma m;ao superficial (assassinatos, annas etc.); 7)

evitar referencias temporais e geograticas; 8) nao produzir filmes de genero; 9) deve ter

fonnatayao final de 35 mm; 10) nao creditar 0 diretor.2

2 • Regras obtidas no sile http://www.dogme95.dk. segue 0 texto original abaixo:

"I swear to submit to the following set ofmles drawn up and confmned by DOGME 95:

I. Shooting must be done on location. Props and SCL<;must not be brought in (if a panicular prop is necessary for the

story, a location must be chosen where trus prop is to be found).

2. The sound must never be produced upan from the images or vice versa. (Music must not be used unless it occurs

where the scene is beillg shot).

3. The camera must be hand-held. Any movement or iounobility attainable in the hand is pennitted. (The film must

not take place where the camera is standing; shooting must take place where the film takes place).

4. The film must be in colour. Special lighting is not acceptable. (If there is too little light for exposure the scene

must be CUt or a single lamp be attached to the camera).

5. Optical work and filters are forbidden.

6. The film must not contain superficial action. (Murders, weapons, etc. must not occur.)

7. Temporal and geographical alienation arc forbidden. (That is to say that the film takes place hcre and now.)

8. Genre movies arc not acceptable.

9. The fihn fonnat must be Academy 35 mill.

10. The director must not be credited."

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o filme gira em tomo de uma festa, que ocorre no hotel da propria familia, em

comemoracyaoaD aniversario de urn abastado senhor, Helge, que ira completar 60 anos. Na

festa, entre varios convidados, todos da familia, esHio seus tres filhos: Christian, Michael e

Helene. Uma Dutra filha, Linda, irma gemea do filho primogenito, Christian, morreu ha pouco

tempo, deixando uma carta escondida na lumimiria do banheiro onde suicidou-se. Sua irma,

Helene, com a ajuda do recepcionista do hotel, encontra a carta e a esconde dentro de urn tubo

de remedios.

o pai, Helge, pede a Christian que arrume uma esposa e volte para casa para

comandar os neg6cios de familia. Com a recusa de Christian, 0 pai acaba convidando Michael

para entrar na macyonariae assumir os neg6cios da familia. Ao inicio do jantar 0 pai pede,

reservadamente, ao irmao mais velho, Christian, que pronuncie algumas palavras em

homenagem a irma morta. Christian, ao atender ao pedido do pai, durante 0 jantar, denuncia-o

pOTsevicia-los quando eram criancyas.Tal pratica teria sido 0 motivo que levara ao suicidio da

irma. A delacyaode Christian e interrompida diversas vezes pelo inllao mais novo, Michael,

que lenta impedi-lo. Apesar do aniversariante ter side acusado perante lodos os convidados de

abuso sexual, a familia insiste em continuar com 0 cerimonial do jantar. A mae e a irma se

esforcyamno sentido de persuadir os convidados tentando convence-los de que Christian esta

delirando ou brincando. A mae chega a relatar que Christian durante a inrancia tinha urn

amigo ficticio denominado "Snoot", com 0 qual conversava sempre. Pelo relato da mae, se

"Snoot" nao gostasse de alguma coisa, Christian tambem nao gostava. Christian diz que a mae

tinha conhecimento dos abusos sexuais contra ele e a irma, mas nada fizera. A mae de

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Christian, apesar do incidente na festa, mantem urn sorriso constante no rosto. Tal atitude

representa bern a situa<;aode hipocrisia com a qual a familia convive.

Michael se coloca como 0 defensor da moral de sua familia, tentando preserva-la,

evitando que seu irmao continue a difama-la. Percebe-se tambem que os convidados, parentes

do patriarca, nao recebem de born !,TTadoas denuncias, inclusive tentam ir embora, mas sao

impedidos pelo sumi<;odas chaves dos carros, escondidas pelos criados a mando do chefe da

cozinha, amigo de iniancia de Christian. Com 0 objetivo de impedir que Christian continue a

relatar os fatos, seu irmao tenta expulsa-Io do hotel, chegando ao extremo de amarra-Io em

uma ruvore e trancar as portas das dependencias do hotel para evitar que ele entre. Dessa

forma, 0 jantar recome<;ae e interrompido varias vezes.

o desfecho da hist6ria ocorre quando Pia, a camareira interessada em Christian,

encontra a carta dentro do tubo de remedios de Helene e a entrega para Christian, que

conseguiu se desamarrar da aTVoree volta para 0 hotel, entregando a carta para Helene. 0

mestre de cerim6nias encontra urn bilhete dentro de sua ta<;a,onde "um homem solidta que

Slla irma lela lima carta para a pal". Helene tenta resistir, mas 0 mestre de cerimonias

achando que se trata de uma tradi<;aode familia insiste que Helene leia a carta. Na carta, a

irma de Christian revela que se suicidou porque seu pai havia tornado a estupra-Ia em seus

sonhos. Confirmadas as denuncias de Christian, apos 0 pai dizer na mesa que cles nao serviam

para outra coisa, Christian volta ao quarto e desmaia, acaba sonhando com a irma e, quando

acorda, encontra Pia dormindo ao seu lado. Na madrugada Michael surra 0 pai, que acaba

sendo salvo por Christian. Durante 0 cafe da manha Christian convida Pia para seguir com ele

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para Paris, e Michael pede para que 0 pai se retire da mesa, saindo dessa fonna de cena. 0

filme tennina com urn close de Christian.

o hotel onde ocorre a Festa nao possui uma locaJiza9ao geognifica definida,

provavelmente por tratar-se de uma das regras, citadas acima. do "Dogma 95". Dessa fonna,

ele poderia ser urn hotel de estrada, ou urn hotel fazenda, ou mesmo estar proximo a alguma

pequena cidade. 0 isolamento do hotel, com seu afastamento de urn grande centro urbano,

possibilita 0 entendimento de urn descnvolvimenlo familiar onde 0 local da moradia e trabalho

sao os mcsmos, 0 que nos remota it familia primitiva. Segundo Fischer, Festell (Festa de

Familia):

( ...) apresenta a familia nuclear freudiana em plena exercicio de seus jogos relacionais.

Com base nas tcorias dc Freud, pode-se entender que as letHeS da filmagem focam,

com especial enfase, questoes que remetem ao ambito da horda primitiva. Festell pode

ser lido, portanto, como se Fosse uma especie de ensaio filmico que, alem de examinar

o lugar do pai e a lugar do filha oa familia, tece especulat;5es sobre de onde e de que

fonna a primeiro, com a imposi9ao de sua lei (que detennina a castra9ao), garante, de

certa forma, 0 estabelecimento de UI11 espa90 de atua9ao para 0 segundo -

viabilizando-Ihe a passagem do estado de natureza para 0 eslado da cultura e inserindo-

o no tecido social.

(Fischer, 2002, p. 65)

A imagem, muitas vezes !,'Tanulada,captada por meio de uma camera oa mao, da ao

fihne urn certo nervosismo, perturbando 0 espectador. "A camara na mao, a mais

pertllrbadora posi9QO de dimera 110 cinema, (rinca, racha a mo/dllra do quadro e 0 proprio

quadro ( ... ) Desestabi/izando, perlUrbando a Capta9QO da luz, aba/alldo a paisagem e €)'polldo

a nervura sells;vel do desespero }wlnano (... )" (Bressane, 2000, p.64/66). As regras seguidas

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pelo filme, que sao as do "Dogma 95", subvertem valores do cinema mercadologico,

principalmente, em se tratando da decupagem, piastica da imagem, ausencia de trilha sonora,

movimento de camera, que sao, de certa fonna, acentuadas pel a mise en scime3,

principal mente na cena da expuisao da esposa de Michel e os filhos do carro para dar carona

para 0 irmao e, posteriormente, a cena de sexo do proprio Michel com a esposa, entre outras.

A capta~ao da imagem por meio de video, corn sua posterior transferencia para a

peJicula, foi considerada por muitos uma revolw;ao cinematogrMica, com previsoes ate

apocaJfpticas sobre 0 futuro do cinema como 0 conhecemos atualmente. Entretanto, Gerbase

escJarece que:

(. ..) As imagens digitais sao, com certeza, uma aceierayao de urn movimento

tecnol6gico que tern origens na ideia de modemidade e sofre uma "virada" importante

com a invenyao da fotografia. Poderiamos, quem sabe, dizer que a foto digital, a video

digital e 0 cinema digital sao momentos culminantes de seus equivalentes anal6gicos.

E poderiamos, sem medo de eITar, prever que a compieta integrayao e digitaiizayao de

todos estes vciculos sen\. urn momenta de 'fechamento' de uma era (que chega ao seu

climax) e 0 inicio de uma revoiuyao, como querem tanlos autores.

(Gerbase, 2001, p. 37)

3 Segundo Bressane, em Cinemancia, p. 64, Mise ell scene "consiste em operar uma passagem da escritllra dramatica aescrirurtl cenica e adiciollar a meramOifose do texto wn jogo em lermos de reulidade cenica. Projetar 110e5pw;o 0 que 0

texto projetou 110 tempo (... )".

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TUDO SOBRE MINHA MA-E (TODO SOBRE MI MADRJ:.)

Tudo Sobre Millha Mae de Pedro Almodovar, Espanha, produzido em 1999, e urn

filme ricamente intcrtcxtual. Segundo Fischer, essa intertextualidade se da, entre outras, par

mcio de lreS vertentes rclcvantes:

I-Ia pelo menos tres vigorosos universos de doadores imediatamcnte

identificaveis nos transplantes realizados em Todo sabre mi madre: 0 tilme All aboul

Eve (1950), dirigido par Joseph L. Mankiewicz, a que as personagens Manuela e

Esteban assistem no inicio da fita. a p~a tealral A streetcar /lamed desire (produzida

em 1947), do dramartugo Tennessee Williams, reiterada praticamcnte durante todD 0

filme de Almodovar, e tcxtos dramaticos de Federico Garcia Lorea - Yerma e Hodas

de sangre -, explicitamente referenciados pela persollagem Hurna ao final do filme,

durante 0 ensaio de uma pl!iFa de tealro.

(Fischer, 2002, p. 177-8)

o conjunto dessas doa'Yoes resulta em urn filme cujo enredo tern como protagonista

Manuela, mulher de meia idade, que vive ern Madri com Esteban, seu unico filho, que nunca

teve a oportunidade de conhecer 0 pai. - Como Celltral do Brasil, aqui tam bern temos, no

inicio da trama, urna familia [onnada apenas por mae e filho, corn auscncia do pai. - Esteban,

deseja ser escritor e decide escrever sobre sua mac. Dessa fonna assistc a uma simuia'Yao de

doacyao de 6rgaos rcprescntada par sua mac, no hospital onde a mesma trabalha como

coordcnadora do programa de doat;6es. No dia cm que completani 17 anos assiste, juntamente

com a sua mac, a pCya de tcatro Um BOlideChamado Desejo (A Streetcar Named Desire). Na

saida do teatro, enquanto aguarda Huma, a protagonista da pC9a, para tcntar COnSCb'1lirurn

aut6grafo, confessa para sua mae que quase pediu como presente de aniversario infonnac;oes

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sobre 0 seu pai. A contragosto, a mac promctc que ira contar tudo. Em seguida Esteban eatropelado, na tentativa de conseguir 0 aut6grafo de Huma, e morre. Sua mae pennite que seu

corayao seja doado a outro homem. Corn 0 objetivo de encontrar 0 pai de seu filho, que

tarnbern se chama Esteban, mas implantara seios postiyos e assumira 0 codinome "Lola",

Manuela viaja a Barcelona, de onde havia saido gravida de Esteban.

Ja em Cel/tral do Brasil a separay80 da mae de Josue de seu pal, ainda gravida, ocorre

por urn processo migrat6rio que leva rnilhares de rnoradores da regi30 Nordeste brasileira a

tcntar a sorte nas rCh>10CSrnais industrializadas do pais. Atingidos pela seea c pela auseneia de

politicas govemamentais que desrnonte a estrutura latifundiaria feudal brasileira. cssas pessoas

nao vern outra saida a nao ser abandonar seus lares, e cidades de origens, em busca de

melhores condiyoes de vida. Ternos nesse caso uma abordagem de urna questao social onde os

cxcluidos economicamente sao 0 foco principal do tilme. Em Tlldo Sabre Millha Mae,

Manuela havia abandonado seu companheiro quando estava gravida, pois esse havia assumido

uma conduta sexual nao convencional. Dessa maneira, ocorre a abordagern de urn tema, 0

sexual, com enfase nas opyoes nao convencionais, ou seja homossexuais e bissexuais, que

tambem sao vitimas de forte preconccito fla sociedade4.

Quando chega a Barcelona Manuela reencontra urn amigo travesti, Agrado, que lhe

infonna do desaparecimento do pai de Esteban. Com 0 objetivo de ajudar Manuela a encontrar

emprego, Agrado apresenta-a a uma freira conhecida, Rosa, que freqiientemente ajuda

prostitutas e travestis.

~ Em Festa de Familia tambem ocorrc a abordagcm da questao sexual, so quc vista como uma docnya: a pcdofilia.

19

Quando se dirigem para conversar corn Rosa, caminhando pelas ruas de Barcelona,

Manuela e Agrado falam sobre litros de silicone, prostitutas e travestis, enquanto estao sendo

cmolduradas por pn!dios antigos de arquitetura ciassica. Posterionnente, Rosa leva Manuela

para a casa de sua mae, corn 0 intuito de arrumar-lhe urn cmprego. A mae de Rosa,

falsificadora de quadros de arte, preocupadissima com as aparcncias, fica irritada corn a filha

por ter tentado contratar uma suposta prostituta para trabalhar em sua casa.

o predio no qual mora a mae de Rosa, denominado Casa Batlle (1904 a 1906), foi

refonnado pelo famoso Arquitcto Antoni Gaudi (1852-1926)5, especialmente ern seus aspectos

decorativos. Dessa forma, pode-se tra9ar urn paralelo entre a falsificadora de obras de arte, que

trabalha copiando obras ja cxistentes e a criayao de Gaudi no citado predio, que a partir de

uma simples reforma de urn edificio ja construido, criou uma obra de arte. 0 filme apresenta

ainda, entre outros monumentos, a Igreja La Sagrada Familia, obra inacabada de Gaudi

dcvido a sua mortc. Coincidenternente, essa igreja e mostrada na volta de Manuela para

Barcelona que tambem havia deixado para tnls urn relacionamento mal resolvido, alem de uma

promessa feita ao seu filho que nao poderia ser mais cumprida pela morte deste. Esteban, 0

filho de Manuela, fora atropelado par urn carro, quando tentava conseguir urn autegrafo de

uma artista talentosa. Morreu por seu amor it arte. Gaudi, que resolvcu moraT em uma tcnda ao

lado do canteiro de obras da La Sagrada Familia, foi atropelado par urn motoTista que se

distraiu admirando 0 monumento que 0 arquitcto estava construindo.

So arquitero Antoni Gaudi y Cornet nasceu em Reus, na Tarragonha, Espanha, em 25 dejunho de 1852. Entre as suasprineipais obras cstao a La Sagrat/a Familia, La Pet/rera, Cas(l Ballla, POI'que Giiell e a Colonia Giiell. MOrTeu no dia07 de junho de 1926, vitima de atropc1amcDlo.

20

Quando Rosa tom a conhecimento que esta gravida e com AIDS, sem poder con tar

com 0 apoio de sua "sagrada familia", acaba, ironicamente, recebendo amparo de Manuela.

Temos novamente a abordagcm de uma questao social. a A IDS, doenc;:a que ficou

estigmatizada como sendo de homossexuais masculinos, incluidos no grupo denominado "de

risco". Entretanto, 0 primeiro personagem apresentado por Almodovar, como portador do

virus, alcm de ser mulher, c freira, nao relacionada, portanto, em nenhum "grupo de risco".

Coincidentemente, Rosa esta gravida de Lola, pai de Esteban, de quem contraiu a doenc;:a.

A pec;:a de teatro Um BOlide Chamado Desejo (A Streetcar Named Desire),

protagonizada por Huma, que tambern e homossexual, c apresentada em Barcelona. Manuela

se aproxima de Huma e, contratada por cia para tTabalhar na produc;:ao da pec;:a, acaba

interpretando urn personagem que ja havia representado em outra epoca, na companhia de

Lola, antes do nascimenlo de Esteban. Os acontecimentos em Tlldo Sobre MinIm Mae sao, de

certa forma, ciclieos: 0 proprio nome Esteban acaba sendo utilizado peJa terceira vez, com 0

nascimento do filho de Rosa.

Rosa morre de AIDS apos 0 nascimento de seu tilho. No enterro, Manuela encontra

Lola, que esui bastante doente, e the conta tudo sobre a tilho que tiveram juntos, 0 qual Lola

nunea conhecera. Como sugere Fischer, observa-se que 0 titulo do filme dcixa a cntender que

sera contado tudo sabre a mac. No cntanto, e a mae que promete contar tudo ao filho sobre 0

pai e acaba contando tudo ao pai sobre 0 filho. (Fischer, 2002, p. 193). Posterionnente,

Manuela apresenta it Lola 0 tilho dele corn Rosa e, pOT meio de urna foto, 0 seu filho Esteban

que morreu no dia que cornpletava dezessete anos.

21

Apos a morte de Lola, Huma dfl 0 autografo na foto de Esteban que havia sido

entregue a Lola. Autografo esse pelo qual Esteban perde a vida. 0 filho de Rosa, 0 3Q Esteban,

rejeitado pc\a avo materna, e levado por Manuela para Madri. Dois anos depois, Manuela

retoma a Barcelona, com a finalidade de participar de uma confcrcncia sobre AIDS,

juntamente com 0 menino, que, como entao se constata, nao fora contaminado pelo virus.

Tudo Sobre Minha Mae e um filme que aborda 0 universo feminino, ao contririo de

Festa de familia, onde e evidente 0 sistema patriarcal, em que a mae de Christian tern urn

pape! suhmisso. Em Tudo Sobre Millha Mae, os homens sao figuras frageis, quase

desneccssarias, tendo uma simples funyao reprodUlora. 0 que representa uma inversao da

socicdade patriarca! vigente. Podemos dizer que se para Freud a mulher possui inveja do falo,

para Almodovar 0 homem possui inveja dos seios.

22

SOBRE A MORTE

"A morle desiglla 0 fim absoluto de qua/quer coisa de positivo: um ser IllImallo. Um

animal, lima plaflla, uma amizade. lima aliall~a) a paz, ilma epoca. Nao se Jala na marIe de

uma lempeslade, mas lIa marIe de lim dia belo" (Chevalier, 1990, p. 621). Entretanto, a morte

tambem representa 0 fim de urn cicIo, 0 que, conseqiientcmente, pode significar 0 inicio de

outro, como na propria citac;ao, ao lenninar uma epoca estani se iniciando cutra. Contudo, em

reiayao ao individuo vivo, sob a 6tica de vida ocidental, a morte representa 0 seu fim

irreversivel, e principalmente na especie humana, para os convivas, uma perda irrepanivel.

Segundo definiyao do DiciOluirio de Simbolos:

(...) enquanto simbolo, a marte e 0 aspecto perceive] e destrutivel da existencia. Ela

indica aquila que desaparece na evolw;ao irreversivel das coisas: esta ligada ao

simbolismo da terra. Mas e tambCm a introdutora aos mundos desconhecidos dos

Infernos au dos Paraisos; 0 que revela a sua ambivalcncia, como a da terra, e a

aproxima, de certa fonna, dos ritos de passagem. Ela e revela~ao c introdu~ao.

(Chevalier, 1990, p. 621)

Nos lrf!S filmes em analise, pode-se identificar a existencia de ciclos na vida dos

persona gens, como no processo de humanizac;:ao de Dora, em Central do BraSil, a pretensao

de Christian em fonnar uma nova familia em Festa de Familia, eo proprio cicio da vida com

o nascimento do filho de Rosa, urn novo Esteban, em Tlido Sobre Minha Mae. Todavia, ern

23

relalYao ao estado espirituai pas-morte fisica, 0 unico que faz referencia a isso e Festa de

Familia.

Helene recebe para se hospedar 0 quarto onde a inna morreu. Juntamente corn Lars, a

recepcionista do hotel, cornelYa a retirar as panos que cobrern os moveis, uma camera subjetiva

foca eles de dentro do banheiro. A imagen e em camera lenta e nao tern som. Seria 0 ponto de

vista de uma fantasma, a inna marta de Christian? Helene fala para Lars: "Foi ollde

aCOllteceu. No ballheim. Me/hor mudar de quarto", e sussurra: "estou captando pessimas

vibraryoes". Em sehTUida ouve-se urn barulho de movimentalY8.o na agua. Helene pergunta para

Lars, que ja esta com as olhos arregalados: "voce ouviu?". Nesta parte do filme as dais estao

com medo, como se existisse urn fantasm a no quarto. Mas por que alguem teria medo de urn

morto, que quando vivo era urn integrante querido da familia? Segundo Westermarck (1906-

8)6

A morte e em geral encarada como 0 mais grave de todos os infortunios; dai

acreditar-se que os mortos estejam extraordinariamente insatisfeitos com a sua sorte.

De acordo com as ideias primitivas, uma pessoa s6 morre se for morta - pela magia,

quando nao pela fonTa - e uma morte assim tende naturalmente a tamar a alma

vingativa e mal-humorada. Tern inveja dos vivos e anseia pela companhia dos velhos

amigos; nao e de admirar, portanto, que envie doem;as para causar a morte deles ( ...)

Mas a nOyaO de que a alma desencarnada e, em geral, um ser maldoso ( ...) tem

tambem, indubitavelmente, uma estreita relayao com 0 medo instintivos dos mortos, 0

qual, por sua vez, e resultado do medo da morte.

(Freud, 1999, p.68)

6 Westermarck, em seu livro The Origin and Development of the Moral Ideas, citado por Freud em Totem e Tabu, p. 68.

24

Entretanto, Freud vai al6m, afinnando que:

Em guasc todos as casos em que existe uma intensa ligm;ao cmocional com

uma pessoa em particular, descobrimos que por tras do temo amor ha uma hostilidade

oculta no inconscicnle. Esse e 0 cxemplo ciassico, a prot6tipa, da ambivalencia das

cmoryocs humanas. Essa ambivalencia esta presente em maior ou menor grau na

disposiry30 inata de cada urn (...) 0 tabu sabre os mOI1OSsurge, como as outros, do

contraste exislente entre a sofrimenlo consciente e a satisfaryao inconscientc pela morte

que ocarreu. Uma vez que essa e a origem do ressentimenlo da alma do morta, segue-

se naturalmente que os sobreviventes que mais terao a temcr serao aqueJes que cram

anteriormcnte as seus mais cbegados e qucridos.

(Freud, 1999, p. 69-70)

Em outro momento do filme Christian sonha com a inna ap6s ler convencido a todos

que 0 pai reahnente havia abusado sexualmente deles. No sonho 6 represcntada a dcspedida de

Christian com a inna. Os dois agora libertos do pai podem seguir seus rumos: Christian poden'l

reconstruir a sua vida e fonnar uma nova familia enquanto a inna, Linda, podera deixar de ser

uma alma errante e seguir seu caminho em direyao a vida etema 7.

o intuito deste trabalho e comentar a representa~ao bern como a papel da morte

(fisica) como clemento desencadcador central no desenvolvimento da narrativa filmica.

Todavia, ao discorrer-se sabre esse terna, que serviu de leitmotiv para a construyao e

representayao das tres filmes, na~ se pode deixar de citar a existencia da morte simb6lica, nao

explicita, como par exemplo: a "morte" dos parentes para as pessoas que encaminham cartas

com enderclYo incerto em Celltral do Brasil; a "mOJ1e" do pai de Rosa, autista que

7 Como OS tn?s mmes foram reitos em paises cristiios, com uma concepy3o linear de vida, supoe-se que 0 POllto de vistareligioso sobre a mOrle e 0 da passagem para a vida etema.

25

praticamente s6 se comunica com urn cachorro e nao reconhece a pr6pria filha (alem da morte

como urn todo da propria familia que a rejeita); e a "mortc" do pai de Christian em Festa de

Familia, objew de analise por parte de Fischer, como segue:

( ...) Michael- finalmente convicto da "veracidade" do relato do innao - faz com quc 0

pai abandone a prot~ao do interior da casa e, no espaco extemo, surdo as suplicas

rnatemas, trava com cle uma luta de agressoes verbais e corporais, derrubando-o ao

chao. Ironicamente, e Christian quem, acudindo aos ragos da mae, vai ao cncontra dos

dois e interferindo cncerra 0 combate - momento dramatico em que 0 pai, ainda

estendido no solo balbucia: "Voces esrao me malalldo". Considerando que os inmios

como que se unern para praticar esse parricidio - Linda da 0 mote, com a carta;

Christian viabiliza a delayao; I-Ielenc consuma 0 ato pel a leitura da carta; e Michael

"pune" 0 pai castrador, caslrando-o ao imobiliza-Io no chao - pode-se aplicar it esta

cena a nocao freudiana que constr6i 0 "mito cicntifico" da "horda primitiva".

(Fischer, 2002, p. 97-8)

A analise acima nos remere ao banquete totemico, narrado por Freud:

Certo dia, os innaos que tinham sido expulsos retomaram juntos, malaram e

devoraram 0 pai, colocando assirn urn fim it horda patriarca!. Unidos, teria sido

impassivel fazcr individualmente (...) A refeicao totemica, que e talvez 0 mais antigo

festival da humanidade, seria assim uma repcticao, c uma comemoracao dcsse ato

memoravcl e criminoso. que foi 0 comeco de tantas coisas: da organizayao social, das

restriyoes morais e da religiao.

(Freud, 1999, p.146)

A marte simb6lica do pai que abusava sexualmente dos filhos representa para

Christian, abatido peJa morte da inna, em Festa de Familia, 0 inicio de uma nova vida, e 0

pr6prio prop5e a fonnayao de uma nova familia, ou seja:

26

Todas as iniciayoes atravcssam uma fase de morte, antes de abrir a acesso a

uma vida nova. Nesse sentido, cia tern um valor psicologico: ela libcrta das fon;as

negativas e regrcssivas, cia desmatcrializa e libera as [oryas de asccnsao do cspirito. Se

cia e, par si mesma, filha da noite e imla do sono, cia possui, como sua mae c seu

innao, 0 poder de regcncrar.

(Chevalier, 1990, p. 621)

Dificil e analisar sob esse mesmo aspecto a morte da mae e do filho em Cell/ral do

Brasil e Tlldo Sobre Minlta Mae, respectivamcnte. Em Cell/ral do Brasil, 0 objetivo do garoto

~ de encontrar 0 pai ~ acaba sendo fortalecido, uma vez que nao Ihe resla outra oPC;ao, haja

vista que 0 mcsmo encontra-se em situaC;ao de completo abandono. 0 auxilio de Dora em sua

viagem ao Nordeste, praticamente uma substituic;ao tempor{uia da mae, nao ini reparar ao

garoto 0 dane da perda. Em Tilda Sobre Minlta Mae, Manuela retoma a Barcelona com 0

objetivo de encontrar 0 pai de Esteban, acaba ficando com 0 filho de Rosa, situac;ao que

lambem nao reparara a perda de seu fitho ie!:,ritimo. Entretanto, para 0 homem que recebeu 0

corac;ao de Esteban de fato ocoreeu urna nova fase em sua vida, podendo-se ate dizer que de

fato ocoereu urna segunda chance para sua vida.

Pode-se perceber nos tres filmes que ha urn processo de superac;ao pcssoal dos

personagens protagonistas em relac;ao it perda dos entes queridos, ou seja, um processo de

l'ranscendencia:

Os "simbolos de transcendencia" sao aqueles que represemam a luta do

hornem para aJcanyar 0 seu objctivo. Fomeccm os meios atraves dos quais os

conteudos do inconscientc podcm penetrar no consciente e sao tambem, clcs proprios,

uma exprcssao ativa destcs conteudos.

27

Estes sirnbolos aprcsentam multiplas fonnas e sua import[mcia esta sempre

patente, tanto [az encontra-Ios na hist6ria da humanidade ou nos sonhos de hornens e

mulhcres contemporiineos que passam por alguma rase critica em suas vidas.

(Jung, 1964, p.ISI)

Manuela procura ajudar a todos, Christian trava urna batalha com 0 pai e contra ele

proprio, urna vez que precisa ter coragem para se expor perante todos. A razao que motiva

esses personagens pode ser 0 sentimento de culpa em rela~ao as mortes do filho c da inna,

respectivamcnte: Manuela, por nao ter contado ao filho nada sobre 0 pai, e Christian, por ter

abandonado a inna doente. Ern rela~ao a esse sentimento discorre Freud:

Quando uma esposa perde a marido au urna filha a mae, nao e raro acontecer

que a sobrevivente lique atonnentada par duvidas alrozes (as quais damos a nome de

"autocensura obsessiva") quanto a se ela propria nao poderia ter sido a responsave1

pela morle dessc entc querido atraves de algum ato de descuido ou negiigencia.

Nenhuma quantidade de lembran9as do cuidado que prodigalizou ao sofredor ncnhurna

quantidade de reputa90es objetivas da acusa<;ao serve para dar fim ao tonncnto. Essa

atitudc pode scr enearada como urna [onna patol6gica de lulo e, com a passagern do

tempo, poueo a poueo se desvanecc.

(Freud, 1999, p. 68)

Ern Celllra! do Brasil, Josue e colocado como viti rna, nao deixando transparecer que

tenha algum sentimento de culpa peia morte da mae. Tambem existe no filme urn processo de

banalizayao da morte. A execu~ao do adolescentc. que tenta furtar a bolsa, exp6e U!TIa

sociedade que vive ortao dos direitos que deveriarn seT fomecidos pelo Estado, como

seguran/Ya publica, poder judiciario efieicnte, educayao, emprego, habitayao, etc.

28

o dcsvanccimento da fase de luto nos tres filmes ocorre de fonna distinta, mas com

marca~ao bern definida. Em Cellfral do Brasil, ap6s 0 inicio da viagem de Josue com Dora,

nao hit mais nenhuma referencia a motie por atrope1amento da mae do menino. Em Festa de

Familia 0 ponto de ruptura e 0 sonho de Christian com a inna e, em Tilda Sabre Minha Mae, a

supera~ao de Manuela, pela perda do filho, ocorre quando ela fica responsavel pelo filho de

Rosa.

29

A MOR TE REPRESENT ADA NOS TltES FLLMES

A imagem cinematognifica possui codigos ic6nicos-visuais que sao comuns a todas

as linguagens da imagem e c6digos que sao proprios das imagens obtidas par meio de

duplic3((ao mecanica, denominada "imagem mecfinica" Em seu centro encontram-se os

codigos denominados fOlogrMicos. Dessa maneira, Metz discorre sabre a noyao de fotografia:

( ...) design~ em ccrtos contcxtos 0 conjunto das imagcns figurativas ob[jdas par meio

mcc5.nico (c que, na verdadc, asscmclham-sc muito na rcccpc:io, como ocorre com 0

par cincma-tclcviS.:1.o). Neste gnlpo, lemos, portanlo, as codificacoes '"fOlograficas·'.

ligadas a fcn6mcnos como incidencia angular (= 5.ngulos de filmagcm: p/ongee<1.

contrJ.-p/ongee, incidcncia frontal, "cnqundramcntos inclinndos", CIC.),n "escalada dos

pIanos" (frcq(ienlcmcnrc codificada confor111e 0 escnlonamcnto progressivo das

'·espcssuras·' na linha axial da objc[iva, a cspcssurn considcrada pcrtinenlc sendo a do

mo[ivo principal da imagem: plano afasl3do, plano media. plano grandc, cle.). os

cfcitos pcrccplivcis dos divcrsos focais assim como dos filtros e de oulros aparclhos. a

diafragmar;50 (de que dcpcndc a zona de nitidez cm torno do objcto sobre a qU3l foi

rcgulada a focalizar;no. c portanlo a conjunto dos jogos com a '·profundidade de

campo" au com sua ausctlcia), elc. Tudo isso dcscmpcnha um dos mais importanlCs

papCis nos filmcs.

(Metz, 1971, p. 272)

A forma como esses codigos cinematof:,'Taficos sao utilizados causam no especlador

reacy6es distintas. Diallte disso, Orson Welles, quando filmou II's All -hl/e, no Ceara, exagerou

nos contra-plollgee, representando assim a nobreza de urn povo simples trabalhador,

~ Plo/lget!: mrnagcm erellIada de eillla pam bai.xo.

30

ressaltando a dignidade desse povo9• No filme Festa de Familia 0 contra-p/ongee e utilizado

principalmente na cena em que Christian entra no hotel apcs a prirneira expulsao feita pelo

innao, com 0 objetivo de afastar 0 denunciante da sala de jantar. Christian passa por varias

portas e e reprcsentado como urn her6i se dirigindo para 0 campo de batalha au urn gladiador

entrando na arena. Nao raro, encontrarnos em varios filmes, principalmente nos weslems

americanos, a imagem dos homens em contra-plongee e a da mulher em p/ongee para

rcpresentar 0 dominante e 0 dominado, respectivamente, em um mundo caracteristicarnente

machista.

A imagem cinematogrMica, entrctanto, e urn conjunto de fotografias. Dessa maneira,

H(. .) a imagem de cinema nao so e mcciinica e iconica; ela e, atem do mais, '11I1l1tip/a', iSlO e.pOSla em seqiiellcia cOllsigo proprio; ul1Ift/me. sao varias imagens" (Metz, 1971, p. 272).

Scndo assim, diante da "voracidade colltilllia" de imagens, 0 filme nao pennite ao espectador

a contcmpla93o de um unico fotob'Tama. Dessa fonna, Barthes (1984, p. 86) afinna que 0

cinema comparado a fotografia possui "mllitas outras qua/idades, mas nao pClJsatividatie ".

Todavia, 0 cinema tcm urn poder que, it primeira vista, a Fotografia nao tem: a

tela (observou Bazin) naa e um enquadramento, mas urn escondcrijo; 0 personagem

que sai dela continua a \river: urn "campo cego" duplica incessantemcnte a visao

parcial. (...) Quando se define a Foto como uma imagcm im6vel, isso nao qucr dizer

apcnas que os persona gens que ela reprcsenta nao sc mcxem; isso quer dizer que cles

nilo SQ(!lIl: eslao ancstesiados e fincados, como borboletas.

(Barthes, 1984, p. 86)

9 Fimlino Holanda ,em scu livro Orson Welfes no Ceara, p. 123, cita que Welles oa sua "obsessao estilistica" pelacamera baixa chegava a cavar buracos na areia c em uma das vezcs "(...) NllO teve tempo de reparar 0 C/IIl1/1l0sedescllidoll e seils pes desca{(;:os afllm/arum na va/a, feila jllSlamenle em ,recho do ten'ellO lfsado como /arrina pe/oslIIoradore:i do arraiaf".

31

Diante do exposto, pode-se concluir que a represcnta(fao das mortes tratada neste

capitulo, qual seja, a morte da mae de Josue, do filho de Manuela e da irma de Christian, nao

teria a mesma enfase na fotografia que a obtida no cinema, pois:

(...) a fotografia nao tem 0 poder do cinema, s6 pode captar 0 imediato, nao pode

representar mais que rearyao tresloucada do rosto humane diante daquele momenta

unico por excelencia, que e a morte. ( ...) Ao 10ngo deste secuio, que chega ao seu final,

o cinema transfonnou na sua principal vocaryao aquilo que a fotografia nunca

conscguiu captar: as imagens em movimento, a animaryao das cenas, 0 transito das

luzcs, 0 ritmo inccssante das mudanryas de pIanos.

(Saliba, 2001, p. 249-50)

Para rcprescntar 0 movimcnto, a imagem cinematografica criada se utiliza de uma

seqiiencia de vinte e quatro quadros (fotogramas) por segundo, que ao ser projetada nos da a

impressao de movimento, ou seja, urn conjunto de imagens estaticas que juntas geram uma

imagem com mobilidade. Segundo Metz:

( ...) em urn momento em que a fabricaryao do movimento a partir das imobilidades

sucessivas na~ e mais urn problema, e quando figuras novas vern se inscrever num

tecido de imediato, movei: neste estadio do processo, 0 movimento nao e mais uma

forma que 0 c6digo deve conquistar, mas simplesrnente urn dos caracteres de uma

materia da expressiio inicialmente disponivel: 0 fotograma (artesao de sua propria

negaryao e portanto do movirnento) e entao "ultrapassado", deixou de ser pertinente.

(Metz, 1971, p. 229)

As seqiiencias consccutivas de fotogramas uteis na montagem do fiIme, captados em

cada iomada, ou seja, a partir do momenta em que a camera e ligada ate 0 momento que a

32

mesma e desligada, representam pianos, que possuem um gropo de c6digos, que necessitam de

mais de um fotograma para se articularem, denominados codigos cinematognificos.

Para Eisenstein a menor unidade do filme era 0 plano, e:

( ...) eada plano agia como uma atra~ao circense para transmitir urn estimulo

psieol6gico particular que poderia depois combinar-se com outros pianos vizinhos para

construir 0 filmc. Posterionnente Eisenstein se tomou mais interessado nas

possibilidades dos elementos dentro do proprio plano, proporcionando varias atra~oes

harmoniosas e conflitantc.

( ...) Eisenstein reconhccia que a particula elementar do cinema, 0 plano isolado, e

diferentc de urn tom ou de urn som. Ja e compreensivel e atinge imediatamente a mente

do espectador, assim como seus sentidos. Para dar ao cineasta 0 mesmo poder do

compositor e do pintar, achava Eisenstein, as pianos devem ser neutralizados a fim de

se tomarem elementos fonnais hasicos capazes de serem combinados sempre que 0

diretor aehar necessario, e de acordo com qualquer dos principios fonnais que ele

possa desejar. Seu "senso" genuino deve ser eXlraido, a fim de que suas propriedades

fisicas possam ser usadas para criar urn significado novo e superior.

(Andrew, 1989, p. 56-7)

Assim, nas palavras de Metz, "0 cinema nlio e uma maqllilla de somar Jotogramas,

mas de suprimi-Ios e torna-Ios impercepliveis" (1971, p. 227). Dessa fanna, pereebe-se a

existencia de uma linguagem que difere de autras linguagens por uma razao peculiar

detenninante, qual seja, a mobilidade da imagem. Confonne Metz:

A iconicidade, a duplica~ao mecanica e a seqijencia~ao nao sao os unicos

lra~os pertinentes da ma\(~ria da cxpressao propria da imagcm de cinema; esta, aiem

disso, e movel. ( ...) as constru~oes ligadas ao movimento da imagem assim como ao

movimento na imagem: sao as duas grandes fannas da mobilidade, proximas e distinlas

33

(a camera pode movimentar-se, 0 ator tambem). Tem-se assim as "movimcntos de

dimera" (os diversos tipos de travellillg.\· 6pticos" como 0 zoom e 0 pancinor, etc.),

tem-se lodas as figuras de montagem que sao inseparaveis da mobilidade, sem cia,

material mente irreali7..aveis: "ajustamento no movimento" de uma imagem para a

outra, passagem de um plano afastado a um plano aproximado (au a invers~) enquanto

proccsso de montagem que faz sucedcrem-se duas imagens diferenles sem recorrcr ao

"corte", certas movimenta~oes dos atores (ditas "entradas e saidas de cena") que

proporcionam varias cenas num unico plano, etc. Recursos expressivos que, como os

dos outros niveis, conslantemente atuam nos filmcs, e que marcam todas as obras

referentes a lingua gem cincmatografica.

(Metz, 1971, p. 274-5)

Desse modo, com recursos tecnicos para juntar imagens em movimentos, recriando

seqih~ncias de imagens, captando gestos, representando emo~5es, dando "vida" a urn

"conjunto" de fOlo!:,'Tafias, 0 cinema pode criar iiusoes, hipnotizar, emocionar. Nesse senti do,

cilarnos Carriere:

(...) 0 cinema podc (au pode em certa epoca) literalmente nos possuir: cle sc

apodcra dc n6s, nos domina e manipula; c ainda nos absorvc, nos ilude. Aqui tcmos urn

paradoxo. 0 cinema faz usa da ilusao precisamente par ser urna sequencia de

fotografias pastas em movimento, sonorizadas e enlaO projetadas cm uma detcrminada

area; precisamenle par ser uma arte baseada na realidade, como se, ao explorar a

ilusao, ele reconhecesse sua inabilidade em compreender e reconstruir essa estranha

rcalidade que ate as cicntistas hcsitam em nomear.

(Carriere, 1995, p. 76-7)

Essa possibilidade de representar a rcalidade, ou mesmo de capUt-la, pennitiu ao

cinema reproduzir "a passagem illaprccllsivel da vida a morle", antes poderia-se apenas

"rcpreSClllar Iml moriblllulo Ol/llm cadaver" (Saliba, 2001, P. 250). Entretanto, os tres filmes

34

objeto desta amilise utilizaram-se de subterfugios que nao os da reproduy8.o direta desta

passagcm inapreensivcl da vida para a mortc.

CENTRAL DO BRASIL

Em Central do Brasil, a cena do atropelamento e uma montagem de pianos

curtissimos, com poucos fotogramas, que faz com que a irnagcm exibida na tela nao pennita a

percep9ao de seus detalhes. Ao abrir 0 sinal para pedestres, Josue e a mae comc9am a

atravcssar uma rua, que apresenta urn intenso rnovimento de pedestres e veiculos. Urn homem

passa e bate em Josue fazendo seu piao cair e rolar para 0 canto da rua. Segue abaixo a

descri9ao de uma sequencia de pianos que mostram a cena da morte de Ana, a mae de Josue:

1° - detalhe de Josue ajuntando 0 piao;

2° - a mae, de costas para 0 tluxo de carros, chama 0 garoto;

3° - Josue 01113 para a mae;

4° - primeiro plano do rOSlOda mae, que olha para Josue e em seguida, para 0 fluxo de

veiculos. Subtende-se que a partir desse momento 0 sinal foi fechado para os pedestres

e aberto para os veiculos;

5° - urn onibus em uma rua praticamente deserta se aproxima da camera;

6° - primeiro plano de Josue;

7° - urn veiculo passa em frente de Josue que 0 acompanha com 0 olhar;

go_primeirissimo plano do rosto da mae, preenchendo pralicarnente toda a tela, mostrando

o pescoyo. a boca, 0 nafiz, as orelhas;

35

9° - plano detalhe das rodas do 6nibus se aproximando e iniciando um processo de

frenagem;

10° - novamente primeirissimo plano do rosto da mae apavorada (cnquadramento indo da

boca ate a testa), com aproximacyao nlpida da camera;

11° - Imagem da parte inferior do onibus passando;

12° - imagem da cintura para baixo, da mae de Josue, mostrando as pemas e 0 pc com

sandaiias brancas, apareccndo ao fundo a rua vazia. As pemas de Ana sao Icvantadas

e em seguida comecyam a cair;

13° - Dora levanta-se da cadeira;

14° - imagem de varias pessoas olhando de dentro do 6nibus e do Iado da estayao;

15° - 0 corpo caido sob 0 6nibus a frcnte da roda dianteira;

16° - pcssoas se aproximam;

17° - Josue olha scm reacyao, enquanto as pessoas passam por de;

18° - Josue, visto por t[<1S,sc aproxima da mac;

19° - 0 homcm que rezava dentro da estacyao se benze;

20° - Peddio fala para Dora que urn onibus passou em cima de uma mulher. Dora pergunta

se ela morreu, e ouve de Peddio que "estaja esra acertalldo as cOllfas Id em cima";

21 ° - Josue se aproxima do corpo;

22° - Imagem do bracyo da mae para fora da lateral do 6nibus;

23° - Imagem de Dora c 0 Peddio;

24° - Imagem de Josue chegando no corpo da mae, uma pessoa 0 afasta;

25° - Algucm abracya Josue (nao aparece 0 TOsto da pessoa que 0 abraya).

36

A altemancia de pianos com a rua supennovimentada e a rua praticamente vazia

lcnde a passar despercebida pelo publico, uma vez que os pianos sao curtissimos, numa

varia~ao em torno de 5 a 10 fotogramas. Lembramos que a cada segundo temos, no cinema, 24

fotogramas e no video 30. Como trata-se de uma rua central, supennovimenlada, e de se

esperar que quando 0 sinal esteja fechado, os carrOs pennane~am parados pr6ximos it faixa.

Ao abrir 0 sinal, eles precisariam ser acelerados para avanctar. Entretanto, 0 onibus ja vern

embalado sem nenhum carro it sua frente. Os varios pontos de vista do atropeiamento,

analisados em scparado, pennitcm conc1uir que a mae de Josue foi atropelada mais de uma vez

pelo mesmo 6nibus, e mesmo assim 0 seu corpo nao foi jogado a metros de distfll1cia, mas cai

no local em que estava em cima da faixa, talvez ate urn pOlleo antes do local onde foi

atropelada, contratiando as leis da fisica, ptineipalmente as tres leis de NewtonlO sobre 0

movimento, estudadas no secundirio. Tal fato comprova que a realidade filmica nao precisa

neccssariamente scr tiel it vida real.

Na cena em analise, ao se mostrar varios pontos de vista antes do atropelamento,

primeiramcnte se usou urn recurso de prolongamento do tempo. Sobrc tal recurso, ja utilizado

a bastante tempo no cinema, discorre Carriere:

Ocasionalmente, como nos tiroteios dos westerns, 0 cinema alonga 0 tempo.

Nos thrillers, por exemplo: 0 punhal voa em dirC(fao a garganta e - scm recorrer acamera lenta (quase sempre urn dcsastre estetico), uma vcz mais utilizando um simples

truque de montagem, atraves de uma sequencia de tomadas altemadas, 0 punha! nunea

encerrando 0 seu voo nem a garganta, 0 seu ofcreeimento ao saerificio - 0 tempo se

\0 As tres leis b,isieas de Newton, rclaeionadas ao movimento, dizem respeilo ao principio da incrcia, a forya, e aoprincipio da acyao e rcacyao, tambi:m eOllhecidas como Primeira, Segunda e Terceira Lei de Newlon.

37

arrasta indefinidamente, e par vezcs parcce parar para cstimular nossa sensa9ao de

angustiada expectativa. Prendemos a rcspira9ao, 0 pr6prio tcmpo se queda paralisado.

(Carriere, 1995, p. 118)

Interessante ressaltar que somente as pemas, vistas debaixo do onibus, sao mostradas

durante 0 momento exato do atropelamento, mas nao 0 choque do corpo com 0 onibus e muito

menos 0 onibus parando. Oeorre, sim, a utilizay3.o de subterfUgios de montagem em que Dora

e mostrada levantando-se da cadeira e em seguida 0 onibus, ja parado, com os passageiros

olhando pela janela. Ao contnirio dos instantes anteriores ao atropelamento, tem-se agora uma

acelerayao do tempo. A ausencia da imagem do atropelamento em si, nao diminui os meritos

de uma cena, ao contrario, os truques utilizados para representa-la, podem engrandecer 0 seu

valor artistieo. Como por cxemplo no filme Os Amantes do Circu/o Polar, Espanha, 1998, de

Julio Medem, em que a representay3.o do atropelamento se da pela imagem das maos jogando

o jomal para cima, seguindo-se urn fade ow. Entretanto, na analise do conjunto de pianos

relacionados acima, verifica-se que existe uma certa desarticulayao, com a ausencia de

preocupayao pel a continuidade dos pIanos, ou methor, uma cena montada a partir de

fragmentos de planos, na qual mal se pode enxergar 0 plano, havcndo apenas a preocupayao

com a representayao da ayao. Sabre esta questao citamos novamentc Carriere:

A montagem e as efeitos especiais predominam atualmente no cinema.

Estamos falando, e ciaro, do estilo basieo de video, ja mencionado: uma louea

prolifcra9ao de quadros e de a9ao impaciente, que pareee 0 resultado do pula-pula

entre os canais de leVI!. Parecem destinados a nos impedir de pensar, de compreender

ou ate de vcr, por medo talvez de revelar urn imenso vacuo.

(Carriere, 1995, p. 122)

38

FESTA DE FAMiLIA

Em Fesra de Familia, a narrativa cinematognifica ComC((8 apos a morie da inna de

Christian. A primeira referencia [eila it marte e uma Frase que Helene fala para Christian: "Nao

[oi /lin velorio linda?" Essa frase resume a hipocrisia na qual convive uma familia

desestruturada que 1uta para manter as aparencias. Apesar da morte da inna ja ter ocorrido

antes do inicio do filme, existe urna cena, ou conjunto de cenas paraieias, que representam,

subjetivamente, 0 que leria side 0 suicidio da inna, ou a descoberta de Helene sebre a morte

da inna.

Helene esta no banheiro juntamente com Lars, que csta deitado oa banheira. Os dais

procuram pistns de algum fecado deixado pela inna. Chirstian esla em outro quarto

conversando com Pia, que tenta, em va~, seduzi-lo. No quarto onde Michael esta hospedado,

ap6s uma discussao violcnta dele com a esposa, ocorre uma relatyao sexual brutal. Quando

Lars e Helene encontram a carta, Pia mergulha na banheira. Helene cometya a ler a carta em

voz alta, depois continua Iendo em sijcncio. E mostrada a imagem de Pia submersa na

banheira. Dificil nao se fazer uma analogia com a imagem de Pia submersa e a inna de

Christian morta. Ha uma altemancia de primeirissimos pianos de Pia, Helene e 0 copo de agua

na mao de Christian. Helene tennina de ler a carta, olha para Lars e da urn susto ncle. Quase

ao mesmo tempo, com pIanos rcpresentados por alguns fotogramas, Michael cai dentro do box

do banheiro, 0 copo cai da mao de Christian, Pia emerge para respirar e Helene fala para Lars:

"Essa casa sempreJoi assombrada".

39

Nesta cena que faz referencia it motte da inna de Christian, ha uma forte freqiiencia

da utilizayao da cor branca, aparecendo 0 preto nas roupas para contrastar. Fisicamente 0 preto

e 0 resultado da absoryao de todos as cores por urn corpo, ou seja 0 corpo possui todas as

cores, enquanlo 0 branco e 0 resultado da nao abson;ao de nenhuma cor pelo corpo. A cor que

os olhos captam e a cor que 0 corpo nao possui, e a cor refletida pele corpo. Assim, urn

material identificado como sendo de cor vennelha, possui todas as cores, menos a vennelha.

No caso do preto, em que 0 corpo possui todas as cores, muitas vezes e considerado urn corpo

scm cor, por nao refletir nenhuma cor. As duas cores eslao relacionadas simbolicamente a

morte. Portanto, seu uso, nesta parte do filme, nao foi por aeaso. Segundo 0 Dicionario de

Simbolos. 0 branco significa:

( ...) ora a ausencia. ora soma das cores. Assim, coloea-se as vezes no inicio e, outras

vezes, no termino da vida diurna e do mundo manifesto, 0 que Ihe confere urn valor

ideal, assint6tico. Mas 0 h~nnino da vida - 0 momento da morte - e tambem urn

momento transit6rio, situado no ponto de jun9ao do visivel e do invisivel e, portanto, eurn outro inicio. ( ...) E uma cor de passagem, no sentido a que nos referimos ao falar

dos ritos de passagem: e e justamente a cor privilegiada desses ritos, atraves dos quais

se operam as muta90es do ser, se~,'"Undo0 esquema chlssieo de toda inicia9ao: morte e

renascirnento. ( ...) Em todo pensamento simb6lico, a morte precede a vida, pais todo

nascimenlo e urn renascimento. Par isSQ, a branco e primitivamente a cor da morte e

do luto. E isso ainda ocolTe em todo a Oriente, tal como oeOlTeu, durante muito tempo,

na Europa e, em especial, na corte dos rcis de Fran9a. ( ...) E a cor das almas do outro

mundo, 0 que explica que 0 primeiro homem branco a aparecer entre as bantos do sui

dos Camaroes lcnha sido chamado de 0 NangoKol1 - 0 fantasma-albino. De inicio,

esse 'fantasIlla' fez com que fugissem, atcrrorizadas, todas as popula90es que

encontraV3. Depois, tranqiiilizadas c confiantes em suas inten90es pacificas,

com~aram 3 vir, pouco a poueo, para pedir-Ihe noticias dos parentes ja falecidos,

porquanto e1e, proveniente do pais dos mortos, evidentemente devia estar em

condi90es de dar essas noticias.

(Chevalier, 1990, p. 141-42)

40

E, de acordo com 0 citado dicionario, 0 preto:

( ...) Simbolicamente, e com mais frequcncia compreendido sob seu aspecto frio,

negativo. Cor oposta a todas as cores, e associ ada as trcvas primordiais, ao

indiferenciamcnto original. Nessc scntido, lembra a significa9aO do branco neutro, do

branco vazia, e serve de suporte a representa90es simb6licas amllogas, como as dos

cavalos da morte, as vezes brancos, as vezes pretos. ( ...) 0 preto e cor de luto; nao

como 0 branco, mas de uma maneira mais opressiva. 0 luto branco tern alguma coisa

de messianico. Indica uma ausencia destinada a ser preenchida, uma falta provis6ria.

(. ..) Do ponto de vista cia analise psicol6gica, nos sonhos diumos au notumos, bem

como nas perceP90es sensiveis no estado de vigilia, a preto e considerado como a

ausencia dc toda cor, de toda luz. 0 preto absorve a luz e nao a restitui. Evoca, antes de

tudo, 0 caos, a nada, 0 ceu notumo, as trevas lcrrestres da noite, 0 mal, a angustia, 0

inconsciente e a Morte. ( ...) Enquanto imagem da morte, da terra, da scpultura, da

t,.avessia noturna dos misticos, a preto eSla tambem ligado a promcssa de uma vida

rcnovada, assim como a noite contem a promessa da aurora, e 0 invcmo a da

primavera.

(Chevalier, 1990, p. 740 - 43)

A agua tamhem 6 urn e1emento fundamental da cena, a16m de estar presente em todo

filmc. Como simholo a agua aprescnta um amplo horizonte, mas possivel de reduzir-se a tres

temas dominantes: fontc de vida, meio de purificay3.o, centro de regenerescencia (Chevalier,

1990, p. 15). Essencial a vida, urna vez que as seres vivos possuem sua estrutura organica

composta principal mente por agua. Segundo 0 Diciomirio de Simbolos:

( ...) Nas Iradi90es judaica e crista, a agua simboliza, em primeiro lugar, a origem da

cria9ao ( ...) Todavia, a agua, como, alias, todos as simbolos, pode ser encarada em dois

pianos rigorosamente opostos, embora de nenhum modo irredutiveis, e essa

41

ambivalencia se situa em todos os ruveis. A agua e fonte de vida e fonte de motte,

criadora e destruidora ( ...) a imersao nela e regeneradora, opera urn nascimento, no

senti do ja mencionado, par ser ela, ao mesmo tempo, morte e vida. A agua apaga a

historia, pais restabelece 0 ser num estado novo".

(Chevalier, 1990, 16118)

Esta dualidade, morte e vida, e encontrada na cena em analise, conforme descrita par

Fischer:

E no banho que a inna gemea de Christian encontra a motte pelo suicfdio. Com sua

figura fortemente colada a figura do innao (quase como se fossem siameses), pode-se

entender que 0 personagem de Linda funde-se ao de Christian - e assim se presentifica

no filme: e1a representa uma das pecas fundamentais do jogo, mesmo sendo uma

ausencia. Linda partiihara com Christian a agua primordial, uterina, a agua-mae.

Nascem, ambos, dessa mesma agua; "morrem" e "renascem", posterionnente, em outra

agua: nas aguas do banho (metaforicamente naquelas em que eram as dais obrigados a

tomar com a pai, e literalmente naquele em que Linda, ao suicidar-se, com sua motte

instiga a innaa a lutar pela vida). Se Linda submerge nas aguas da banheira - que Ihe

serve de tumba e de berea - para dali renascer para a "/uz e beleza ", confonne diz na

carta, Christian emerge dessas mesmas aguas para a vida.

(Fischer, 2002, p. 80)

TUDa SaBRE MINHA MA-E

A representayaa da morte de Esteban em Tudo Sobre Minha Mae, tambem ocorre por

mcio de urn atropeiamento. No meio da chuva, protegidos par uma sombrinha, Esteban e

Manuela estao conversando, a espera de Huma, de quem Esteban pretende pedir urn aut6grafo.

42

Esteban diz it mae que quase pediu para saber sobre 0 pai como presente de aniversario. Apos

relutar urn pouco, a mae promete contar tudo sobre 0 pai. Huma sai do teatro e pega urn Hixi.

Esteban corre ate 0 carro e bate na janela para chamar Hwna. 0 carro parte. Manuela se

aproxima de Esteban com a sombrinha. Huma olha para Esteban. Manuela diz para Esteban

deixar essa ideia para la. Esteban, como desafiando a mae e esperanlfoso com 0 olhar de

Huma, sai correndo atras do taxi. A imagem vai se afastando de Manuela, como se estivesse

pressentido a perda do filho. Imagcm de Esteban correndo na chuva com uma callfa escura,

awis do taxi. 0 taxi enlra na rua principal. Camera subjetiva de um Dutro carro entrando na rua

atras do taxi, ligeiramente urn homem de callfa azul clara cntra na frente do carro. Manuela

olha assustada. Esteban bate no vidro do carro. A partir deste instante tem-se a imagem de

uma camera subjetiva (ponto de vista de Esteban) caindo, em um plano sequencia, como

segue: 0 ceu escuro com uma itrvore, a luz do poste, 0 edificio ao lado e 0 asfalto com

Manuela ao fundo, correndo em direlf80 de Esteban, ate aparecer apenas os pes de Manuela,

que chorando grita ""ao" e pega 0 garoto deitado no chao eo coloca no colo. Mas a morte do

garoto na realidadc filmica s6 ocorre no hospital, quando Manuela c avisada pelos medicos.

A principio poderia-se afinnar que na cena do atropelamento em Tilda Sabre Mil/I/O

Miie, por alguns instantes, tamhem tern-se uma seqiiencia de fragmentos de planas, na qual

mal se pode enxergar 0 plano. Mas 0 detalhe do afastamento da Camera mostrando Manuela

antes do acidente e 0 plano seqiiencia com 0 ponto de vista de Esteban no momenta que e

atropelado fazem a diferenya; a primeiro par mostrar filmicamentc, em urn plano, 0

afastamento entre mac e filho; 0 segundo par dar ao espectador a impressao de estar no lugar

de Esteban no momento do atropelamento, venda sua mae correndo desesperadarnente em sua

direyao, aumentando, assim, a realismo da cena. Alem disso, a conversa previa entre mac e

43

filho, com a promessa da mae de contar tudo ao filho sobre 0 pai, cria no espectador uma

expectativa da revelayao de algo, al6m de uma cumplicidade entre mae e filho na qual 0

espectador ja vinha se sentindo intimo.

Em relayao a essa cumplicidade, a mesma ja vinha sendo construida bern antes da

cena do atropelamento: a mae so tern ao filho como companhia; 0 filho pretende escrever

sobre a mae; 0 filho se interessa por saber detalhes sobre 0 trabalho da mae. Almodovar tern 0

cuidado de enquadrar ern urn rnesmo plano mae e filho, conversando sobre sentimentos

pessoais rclacionados aos dois. 0 enquadrar, segundo Fischer,

( ...) e por em quadro, colocar em tela. Emoldurar. Limitar, detenninar, definir urn

campo. E, no sentido amplo em que estamos empregando 0 lermo, delimitar uma

imagem com movimentos de camera, aproximacao e distaneiamento, detalhamento e

fusao. Todo enquadramenlo e uma especie de moldura, que lorna rc1evante 0 que esta

denlro do quadro (espayo topieo) ou, par outro lado, 0 que esta fora dele (espaco

heterot6pico).

(Fischer, 2002, p. 56)

Ocssa rnaneira, pode-se dizer que ao enquadrar mae e filho!] em urn mesmo plano,

por varias vezes seguidas, conversando sobre assuntos pessoais intimamente relaeionados aos

dois, Almodovar eriou uma familia com apenas dois integrantes: mae e filho, que se

complementavam, cuja separaCao brusca 6 inimaginavel peIo espectador.

II CelltraJ do Brasil tambem utiliza 0 mesmo recurso do enquadramento de mae e filho em urnmesmo plano, entretanto, as mesmos estao conversando com uma terceira pessoa, no caso Dora, na~havendo a mesma conota~iio observada em Tudo Sobre Minha Mae.

44

Outra quesHio relevante na cena e a presenya das cores verde, vennelha, azul e

amarela na sombrinha de Manuela. Almodovar utiliza com destaque, durante todo 0 filme,

essas cores, sendo a amarela com menos freqiiencia. Sao cores vivas que esHio relacionadas

entre si: "Sitllado elllre 0 azul e 0 amare/o, 0 verde e ° resultado de suas inleljerellcias

crol1uiticas. Mas enlra, com 0 vermelho, lIU11Ijogo simb6lico de altemiincias" (Chevalier,

1990, p. 938).

A principio, a significay80 simboJica dessas cores, principal mente as cores verde e

vennelho, esta diretamente relacionada corn a vida. Pois, segundo Chevalier, "0 desellcadear

da vida parte do vermelllO e desabrocha 110verde" (1990, p. 939). Portanto, nao faria sentido a

utiliza<yao dessas cores em urn filme que trata da morte do filho da protagonista, aU:m de

outros dois personagens, Rosa e Lola. Mas apesar da morte ser urn dos temas da narrativa,

Tudo Sabre Minha Mae nao e urn filme fUnebre, sendo ate alegre em varios momentos. Alem

disso, 0 filme tam bern fala de esperanya e do nascimento de uma nova vida: 0 novo Esteban,

filho de Rosa, livre do virus da AIDS. Sendo assim, a morte no filme e colocada como algo

natural, que por mais dolorido que seja, precisa ser superado, pois a vida sempre renascera em

urn novo individuo. Dessa forma, justifica-se a utiliza<;ao de cores vivas que alem de serem

considcradas como simbolo da vida, tam bern podem ser da morte:

( ...) ao verde dos brotos primaveris opoe-se a verde do mora, da putreray30 - existe urn

verde de marte, assim como urn de vida. (. ..) 0 verde conserva urn caniter estranho e

complexo, que provem da sua polaJidade dupla: 0 verde do bralo e 0 verde do mora, a

vida e a marte. E a imagem das profundezas e do destino.

(Chevalier, 1990, p. 938-43)

45

o filme que fala em doa95es de orgaos, onde 0 sangue venne1ho pulsando nas veias

representa vida, tambem fala do sangue contaminado com 0 HIV, que, infelizmente, ainda

significa urn prenuncio de morte. Alem disso, 0 sangue que sai das veias de Esteban no

momento do acidente, nao mostrado no filme, tambem esta relacionado com a morte: "Pm·que

eSfa e com efeilo. a ambivalellcia deste vermelho do sallgue projimdo: escondido. ele e a

cOfldi9aO cia vida. Espalhado. signijica a morte". (Chevalier, 1990, p. 944)

A reJa.yao da cor azul, tanto com a vida como com a morte, se da de uma fonna mais

subjetiva. Segundo Chevalier:

[material em si rnesmo, 0 azul dcsmaterializa tudo aquilo que dele se empregna. E 0

caminho do infinito, onde 0 real se transfonna em imaginario. ( ...) 0 azul resolve em si

mesmo as conlradilYocs, as altemancias - tal como a do dia e da noite - que dao ritmo it

vida humana. lmpavido, indifercnte. mio estando em nenhurn outro lugar a nao ser em

si mesmo. 0 azul nao e deste rnundo; sugere uma ideia de etemidade tranqUila e

aitaneira, que e sobre-humana - ou inumana. C .. ) 0 azul e branco. cores marianas,

cxprimem 0 desapego aos valores desle mundo e 0 arrcmesso da alma liberada em

dirC9ao a Deus, i. c., em difC9ao ao 0111'0 que vira ao encontro do branco virginal,

durante sua ascensao no azul-celeste. RecnCOlltra-se ai, pananta, valorizada

positivamente pela CfCIlIYano Ah!m, a associalYiio das significa<;iSes mortuarias do azul

e do branco.

(Chevalier, 1990, p. 107-9)

lit ° amareio, que aparece com menos fTequcncia no fiime, tambem possui a

ambivalcncia encontrada tanto nas cores verde como vennelho:

46

(...) 0 amarelo, cor masculina, de luz e de vida (. ..) e a cor da terra fertil. (...) Mas essa

cor das espigas maduras do vedio ja anuncia a do outono. quando a terra se desnuda,

pcrdendo seu manto de verdurn. ..) Ela e, enlao, a allunciadora do declinio. da

velhice, da aproximayao da mone.

(Chevalier, 1990, p. 40-1)

47

CONSIDERA<;:OES FINAlS

Pode-se dizer que 0 enredo de cada urn dos tres filmes aqui tratados e construido a

partir do tema da marte, que pode ser considerada a fore;a motriz, ou gatilho, que dcsencadeia

as a<;6es de cada personagem envolvido na trarna. Sua ocorrencia no inicio do filme serve

como ponto de ruptura oa vida dos personagens, pennitindo que 0 espectador acompanhe

tadas as transfonna<;oes subseqiientes, scntindo-se como testemunho da historia narrada.

A mOrle apresentada no inicio dos tres filmes apresenta varios elementos em comum,

mas com peculiaridades distintas, como aprescntado neste trabalho, que detcnninam urn

diferencial importante no resultado final de cada obra. Dessa fonna, a qualidade artistica de

cada filme pode ser definida por detalhes que muitas vezes tendem a passar despercebidos do

publico, ou mesmo do espectador mais atento, quando assiste ao filme uma linica vez. No

entanto, a ausencia desses detalhes, pode causar no espectador uma sensay30 de que algo esta

faltando no filme, mesmo que ele nao consiga identificar 0 que.

Dentro do possivel e do que foi proposto no presente trabalho, procurou-se apresentar

esses detalhes que resultaram nas diferenyas c semelhanyas entre os filmes. Apesar de

existirem diferenyas e semelhanyas bern marcantes, pode-se citar 0 fato dos tres filmes

abordarem questoes familiares, caracterizadas por familias incompietas com 0 pai ausente,

exceto Festa de Familia, onde a presenya do pai e exatamente 0 fato gerador dos problemas.

Dessa fonna, a busca pelo pai, acaba sendo urn fator detenninante, inclusive em Festa de

Familia, onde Christian vai em dircyao ao pai para cnfrcnta-Io.

48

Outro fator de semelhanr;a, e a morte representada por atropelamcnto, em urn fiime,

Central do Brasil, da mae de Josue, em Tlldo Sobre Minha Mae, do filho de Manuela,

oeorrcndo a diferenr;a novamcnte em Festa de Familia, onde a inna de Christian suieidou~se.

Em relar;ao a decupagem do filme e a fonna como a imagem foi captada tambem

pode~se averiguar a semelhanya entre Central do Brasil e Tlldo Sobre Minha Mae, os dois

possuem uma decupagem c1assica, e sao captados em 35 mm, enquanto Festa de Familia foi

captado em video, a16m de zornbar da decupagem, subvcrtendo regras pre~definidas de

montagem.

Por ultimo, se faz importante ressaltar que os trcs filmes se preoeuparam em tratar de

questoes de eunho relevantes para a sociedade, como a abordagem de temas scxuais em Festa

de Familia e Tlldo Sobre Mil/fla Mae e socioeconomico em Central do Brasil.

49

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