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INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 8, Edição número 28, outubro 2018 / março 2019 - p 1 DA NAU DOS LOUCOS A BISPO DO ROSÁRIO: ANÁLISE DISCURSIVA DE CARTAZES DOMOVIMENTO DA LUTA ANTIMANICOMIAL Cláudia Janice Hilgert* Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho** RESUMO: A Reforma Psiquiátrica foi iniciada, no Brasil, no final da década de 1970, em um momento que se construíam grandes modificações no cenário político nacional, impulsionadas por movimentos sociais, como o da redemocratização, por exemplo. O Movimento de Luta Antimanicomial, também surgido neste contexto, por meio de movimentos dos trabalhadores em saúde mental, deve ser tomado como indissociável da Reforma Psiquiátrica no Brasil. O dia da Luta Antimanicomial, 18 de maio, foi instituído em 1987, durante o I Congresso dos Trabalhadores em Saúde Mental e, desde então, a cada ano, em todo o território nacional, são programadas diversas atividades como forma de lembrar e divulgar a luta pelo fim dos manicômios. Os cartazes produzidos para esta data são importantes estratégias de divulgação do movimento e são carregados de sentidos sobre a história da saúde mental. Neste trabalho foram analisados três cartazes alusivos ao dia da luta antimanicomial, obtidos no site de buscas na internet Google, com as palavras “18 de maio dia da luta antimanicomial”. Sob o olhar da Análise de Discurso francesa, com base em autores como Pêcheux (1999, 2014, 2015), Orlandi (2007, 2015) e outros, buscou-se apontar efeitos de sentido produzidos pelo material em análise. A produção dos materiais que foram analisados parte de memórias que constituíram no decorrer da história, e ainda constituem, o dizer sobre a loucura e os seus sentidos, e materializam posições ideológicas e políticas do movimento antimanicomial. ABSTRACT: The Psychiatric Reform began in Brazil at the end of the 1970s, at a time when great changes were being made in the national political scene, boosted by social movements such as redemocratization, for example. The Anti-Manicomial Movement, also arising in this context, through the movement of workers in mental health, must be taken as inseparable from the Psychiatric Reform in Brazil. The day of the anti-asylum movement, May 18, was instituted in 1987 during the First Congress of Mental Health Workers, and since then, every year, throughout the national territory, various activities are planned as a way of remembering and fight for the end of asylums. The posters produced for this date are important strategies for publicizing the movement and are loaded with meanings about the mental health history. In this work, three posters allusive to the day of the antimanicomial fight were analyzed, obtained in the Google search site, with the words "May 18 antimanicomial fight day". From the perspective of French Discourse Analysis, based on authors such as Pêcheux (1999, 2014, 2015), Orlandi (2007, 2015) and others, we sought to point out the meaning effects produced by the material under analysis. The production of the materials that were analyzed leaves of memories that constituted in the course of history, and still constitute, the discourse about the madness and its meanings, and materialize the ideological and political positions of the antimanicomial movement. PALAVRAS CHAVE: Loucura; manicômios; luta antimanicomial; análise de discurso. KEYWORDS: Madness; insane asylums; antimanicomial movement; discourse analysis.

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DA NAU DOS LOUCOS A BISPO DO ROSÁRIO: ANÁLISE

DISCURSIVA DE CARTAZES DOMOVIMENTO DA LUTA

ANTIMANICOMIAL

Cláudia Janice Hilgert*

Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho**

RESUMO: A Reforma Psiquiátrica foi iniciada, no Brasil, no final da década de 1970, em um momento

que se construíam grandes modificações no cenário político nacional, impulsionadas por movimentos

sociais, como o da redemocratização, por exemplo. O Movimento de Luta Antimanicomial, também surgido

neste contexto, por meio de movimentos dos trabalhadores em saúde mental, deve ser tomado como

indissociável da Reforma Psiquiátrica no Brasil. O dia da Luta Antimanicomial, 18 de maio, foi instituído

em 1987, durante o I Congresso dos Trabalhadores em Saúde Mental e, desde então, a cada ano, em todo

o território nacional, são programadas diversas atividades como forma de lembrar e divulgar a luta pelo

fim dos manicômios. Os cartazes produzidos para esta data são importantes estratégias de divulgação do

movimento e são carregados de sentidos sobre a história da saúde mental. Neste trabalho foram analisados

três cartazes alusivos ao dia da luta antimanicomial, obtidos no site de buscas na internet Google, com as

palavras “18 de maio dia da luta antimanicomial”. Sob o olhar da Análise de Discurso francesa, com base

em autores como Pêcheux (1999, 2014, 2015), Orlandi (2007, 2015) e outros, buscou-se apontar efeitos

de sentido produzidos pelo material em análise. A produção dos materiais que foram analisados parte de

memórias que constituíram no decorrer da história, e ainda constituem, o dizer sobre a loucura e os seus

sentidos, e materializam posições ideológicas e políticas do movimento antimanicomial.

ABSTRACT: The Psychiatric Reform began in Brazil at the end of the 1970s, at a time when great

changes were being made in the national political scene, boosted by social movements such as

redemocratization, for example. The Anti-Manicomial Movement, also arising in this context, through the

movement of workers in mental health, must be taken as inseparable from the Psychiatric Reform in Brazil.

The day of the anti-asylum movement, May 18, was instituted in 1987 during the First Congress of Mental

Health Workers, and since then, every year, throughout the national territory, various activities are planned

as a way of remembering and fight for the end of asylums. The posters produced for this date are important

strategies for publicizing the movement and are loaded with meanings about the mental health history. In

this work, three posters allusive to the day of the antimanicomial fight were analyzed, obtained in the

Google search site, with the words "May 18 antimanicomial fight day". From the perspective of French

Discourse Analysis, based on authors such as Pêcheux (1999, 2014, 2015), Orlandi (2007, 2015) and

others, we sought to point out the meaning effects produced by the material under analysis. The production

of the materials that were analyzed leaves of memories that constituted in the course of history, and still

constitute, the discourse about the madness and its meanings, and materialize the ideological and political

positions of the antimanicomial movement.

PALAVRAS CHAVE: Loucura; manicômios; luta antimanicomial; análise de discurso.

KEYWORDS: Madness; insane asylums; antimanicomial movement; discourse analysis.

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INTRODUÇÃO

Efeito de Início

O movimento da Reforma Psiquiátrica, iniciado no Brasil ao final da década de 1970, foi

consolidado pela Lei 10.216/2001, que estabelece os direitos dos portadores de transtorno

mental e o modelo de assistência em saúde mental. Essa legislação proporcionou uma

nova direção para a assistência psiquiátrica e regulamentou as internações involuntárias,

colocando-as sob a supervisão do Ministério Público. No contexto dessa lei, a Reforma

Psiquiátrica é entendida como um processo social complexo, que envolve a mudança na

assistência, de acordo com os novos pressupostos técnicos e éticos, devidos à

incorporação cultural desses valores e a convalidação jurídico-legal dessa nova ordem.

(BRASIL, 2005).

De acordo com Amarante (1992, p. 104), a época em que Movimento de Reforma

Psiquiátrica (final da década de 1970, início da década de 1980) tomou força foi marcada

por uma série de mudanças na conjuntura político-social brasileira. Diversos movimentos

sociais e instituições se mobilizaram pela “anistia, pela reinserção político-partidária,

pelas liberdades sindicais e de associação civil, enfim, pela redemocratização”. De início,

o movimento surgiu como um apelo corporativista dos profissionais de saúde e entidades

de classe, para, posteriormente, se tornar o principal crítico da psiquiatria clássica e dos

manicômios.

O movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, no período da recente

redemocratização, inicia-se pautado, sobretudo, em questões de ordem

trabalhista e em denúncias das políticas de saúde mental. É evidente que com

a conjuntura repressiva e autoritária de então, o objetivo da transformação

esteja centrado em torno, primeiramente, ou da humanização dos serviços

hospitalar-manicomiais, ou da administração dos serviços ou, ainda, da

questão genérica das condições de trabalho e assistência. (AMARANTE, 1992,

p. 103)

O Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil deu origem a um movimento mais

específico que é o Movimento da Luta Antimanicomial, de forma que os dois se tornaram

praticamente indistinguíveis. O dia 18 de maio marca o dia nacional da Luta

Antimanicomial. Esta data foi estabelecida em 1987 na cidade de Bauru, durante o I

Congresso de trabalhadores de serviços de saúde mental e instituiu, além da data, o lema

“Por uma sociedade sem manicômios”. (SANTO; ARAUJO; AMARANTE, 2016)

A luta por uma sociedade sem manicômios é uma das mais bem sucedidas da

história recente brasileira. Uma das principais práticas de visibilidade do

movimento é a comemoração do Dia Nacional de Luta Antimanicomial, sendo

a data lembrada em diversas localidades do Brasil. As comemorações desse

dia têm nos cartazes uma das suas principais estratégias de divulgação e

mobilização: com eles circulam e são difundidos os discursos que defendem

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uma sociedade sem manicômios. (SANTO; ARAUJO; AMARANTE, 2016, p.

454).

O objetivo deste artigo é analisar, com base na teoria e procedimentos da Análise de

Discurso francesa (AD), cartazes de campanhas do Dia da Luta Antimanicomial, 18 de

maio. Esta análise permite compreender a produção de sentidos no contexto do

movimento antimanicomial e suas posições ideológicas, de acordo com a teoria pela qual

este trabalho é composto, assinalando sua relação com outros discursos e com a memória

discursiva, resgatada historicamente.

O corpus deste trabalho é constituído por três imagens de cartazes alusivos ao dia 18 de

maio. As imagens foram selecionadas por meio de uma pesquisa no site de buscas Google,

direcionada pelas palavras-chave: “18 de maio dia da luta antimanicomial”. Os cartazes

foram escolhidos pela forma como representam a questão manicomial e o tratamento da

loucura. A decisão por este tipo de material se deu pela sua grande circulação, já que estão

disponíveis em meio virtual, e pelo papel que desempenham dentro do movimento, o de

representar seus ideais.

Este artigo é composto por uma breve contextualização teórica da AD, apresentando

conceitos necessários ao entendimento da produção de sentidos no discurso, o que irá

basear as análises do corpus que se seguem. O item seguinte apresenta os cartazes

selecionados e suas análises, que mobilizam, além da teoria da AD, outras fontes, como

o trabalho de Foucault (1984, 2014) e outros autores, sobre a loucura, para colocar em

evidência sentidos produzidos no material.

1. CONTEXTUALIZANDO TEORICAMENTE A PESQUISA: A ANÁLISE DE

DISCURSO FRANCESA

Antes de iniciar a exposição do material a ser analisado, é importante realizar algumas

considerações teóricas a respeito da Análise de Discurso pêuchetiana (AD), que norteia

teórica e metodologicamente este trabalho. A construção teórica da AD foi iniciada na

França por Michel Pêcheux, durante a década de 60. De acordo com Orlandi (2015), a

linguagem para a AD não é tratada como um simples sistema, fechado em si mesmo e

com sentidos transparentes. A língua é concebida como mediação entre o homem e sua

realidade, essa mediação é o discurso. Assim, para a AD, na materialidade da língua o

discurso é produzido e determinado por um contexto, em que pesam também o sujeito

que o produz e a quem ele é dirigido:

Chamaremos discurso uma sequência linguística de dimensão variável,

geralmente superior à frase, referida às condições que determinam a produção

dessa sequência em relação a outros discursos, sendo essas condições

propriedades ligadas ao lugar daquele que fala e àquele que o discurso visa,

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isto é, àquele a quem se dirige formal ou informalmente, e ao que é visado

através do discurso. (PÊCHEUX, 1973/2015, p. 214)

Dessa forma, para a AD, é importante o estabelecimento das condições de produção ou o

contexto, para análise dos efeitos de sentido de um discurso, já que estes são determinados

historicamente, segundo essa teoria. O conceito “condições de produção” foi deslocado

do âmbito da economia, de acordo com Pêcheux (1973/2015, p. 215), para indicar a

descrição da conjuntura em que o discurso foi produzido, principalmente no diz respeito

à “produção de um efeito”, isto é, o jogo das relações sociais e as posições sustentadas

pelos sujeitos.

A Análise de Discurso, segundo Orlandi (2015), articula conhecimentos das áreas da

Linguística e das Ciências Sociais, questionando seus métodos e suas bases

epistemológicas, a fim de gerar reflexões a respeito da determinação histórica da língua

e da linguagem tomada como transparente, como se houvesse um sentido único e literal

para as palavras. Assim, a AD tem como objetivo “compreender a língua fazendo sentido,

enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e de

sua história” (p.15).

O quadro epistemológico da Análise do Discurso, dessa forma, é composto pela

articulação das três seguintes áreas do conhecimento científico:

1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas

transformações, compreendida aí a teoria das ideologias;

2. a linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de

enunciação ao mesmo tempo;

3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos

semânticos.

Convém explicitar ainda que essas três regiões são, de certo modo,

atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza

psicanalítica) (PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p. 160)

De acordo com Pêcheux (2014) a necessidade de uma teoria materialista do discurso está

na característica dos sentidos das palavras serem construídos histórica e socialmente, ou

seja, pela posição ideológica que o sujeito ocupa, no processo sócio-histórico em que o

discurso é produzido. Desta forma, o sentido do discurso muda conforme as posições

sustentadas por aqueles que o produzem, ou “em referência às formações ideológicas nas

quais essas posições se inscrevem” (p. 147). Assim, foi teorizado um conceito muito

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importante para a AD, que permite conceber como se dão os processos discursivos, o de

formação discursiva1 (FD):

Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação

ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada,

determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e o que deve

ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto,

de uma exposição, de um programa, etc.) (PÊCHEUX, 2014, p. 147, grifo do

autor)

Desta maneira, não se pode falar de um sentido único para uma palavra, e sim de sentidos,

determinados pela formação discursiva à qual pertence. De acordo com Pêcheux (2014),

a formação discursiva também tem a propriedade de dissimular, pelo efeito de uma

transparência de sentido (isto é, o que é dito só pode ser compreendido daquela forma), a

formação ideológica da qual é dependente para se constituir.

A ideologia funciona de modo a interpelar os indivíduos em sujeitos, fornecendo a estes

sua realidade. O funcionamento, em última instância, da ideologia é inconsciente,

apagado ou esquecido, e se dá por meio de um efeito de sujeito e de sentido, disfarçados,

“sob a forma de autonomia” do sujeito (p. 149), o que o leva a acreditar que somente pode

dizer algo da forma como diz e com o sentido que pretende dar ao que comunica.

(PÊCHEUX, 2014)

2. OS CARTAZES DE 18 DE MAIO COMO ESPAÇO DE MEMÓRIA DA LUTA

ANTIMANICOMIAL

Como dito anteriormente, este trabalho propõe analisar discursivamente 2 cartazes de

divulgação de eventos e atividades referentes à data de 18 de maio, dia nacional da Luta

Antimanicomial. A figura 1 mostra um cartaz produzido em 1997, que anuncia um evento

em comemoração ao dia 18 de maio, com apresentações culturais, conforme especificado

na tarja direita do cartaz. Os promotores do evento são: o Conselho Regional de

Psicologia (CRP), o Departamento de Psicologia clínica da UNESP, e o governo

municipal e estadual, por meio de suas secretarias de saúde.

1 O conceito de formação discursiva foi constituído por Foucault (2009) como uma regularidade que se

estabelece no discurso. Segundo o autor: “no caso em que se puder descrever, entre um certo número de

enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os

conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e

funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva.”

(FOUCAULT, 2009, p. 43)

Pêcheux deslocou este conceito para a AD, mudando o entendimento que uma formação discursiva seja

regular e homogênea, mas sim heterogênea, definida pela ideologia, em contextos determinados pela luta

de classes, em um posicionamento claramente marxista.

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O cartaz traz a imagem de duas pessoas nuas, do sexo masculino, um branco, outro negro,

em frente a uma parede, na qual, ao lado esquerdo, pode ser observado um portão de

grades fechado. Há manchas no chão e nas paredes, próximas das pessoas, o que sugere

sujeira no ambiente. Os personagens do cartaz estão sentados, nus, na sujeira. Acima, na

imagem, há o enunciado “Manicômio nunca mais”, escrito em formato de círculo, como

se fosse um carimbo. Nas informações presentes na lateral direita do cartaz podemos

observar a programação de uma série de eventos culturais (dança, teatro, música, pintura,

etc) realizados em uma praça (praça da catedral).

Figura 1- Cartaz Movimento Antimanicomial

Fonte: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/wp-content/uploads/2016/06/manicomio_nunca_mais

A forma como o cartaz é construído é coerente com uma FD que compartilha o modelo

de saúde mental proposto pela Reforma Psiquiátrica. Os eventos propostos levam a

loucura para as ruas, as praças. Uma das principais propostas da Reforma Psiquiátrica,

como se pôde ver, é a de reinserir socialmente o sujeito. O dizer “Manicômio nunca mais”

é disposto como um carimbo, é uma marca do movimento da Luta Antimanicomial, como

uma palavra de ordem repetida e que pode ser observada na maioria dos seus materiais

de divulgação. O dizer “Manicômio nunca mais” recupera uma memória histórica do

movimento e marca um posicionamento ideológico do grupo ou das instituições que

produziram o material em questão.

Porém, como observam Santo, Araújo e Amarante (2016), em um artigo que analisam

discursivamente este e outros cartazes do dia 18 de maio, no canto inferior direito há a

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informação de dois patrocinadores, “Risperidal” e “Janssen Farmacêutica”, que são

empresas farmacêuticas. Os autores sustentam que os interesses da indústria farmacêutica

podem ser antagônicos ao movimento de Luta Antimanicomial, pois a medicação é a nova

forma de contenção utilizada na área da saúde mental. A tarja preta na lateral do cartaz

também retoma sentidos relacionados ao tema da medicação: a maioria dos psicoativos

apresentam a tarja preta em sua embalagem, que sinaliza o possível desenvolvimento de

dependência química, em caso de uso excessivo. A tarja também retoma a memória da

loucura como doença.

O que torna possível estas contradições no interior de um enunciado é a ação da ideologia,

em que o sujeito produz enunciados sem se dar conta que estes são determinados pela FD

em que está inserido. Assim, para o sujeito que produz discurso não há contradição no

que é dito, pois pelo efeito da ideologia, existe uma naturalização dos sentidos, a

linguagem é tomada como transparente para aquele que diz. Também se pode afirmar que

existe uma relação interdiscursiva, na qual sentidos produzidos em outros contextos são

retomados, inconscientemente, no interior de uma determinada FD. O interdiscurso foi

proposto por Pêcheux (2014, p. 149)como aquilo que “fala sempre ‘antes, em outro lugar

e independentemente’, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas”.

Desta forma, é possível que no cartaz encontremos discursos que, a princípio, seriam

contraditórios, mas pela ação da ideologia, e da própria constituição do sujeito, estas

contradições são apagadas na formulação do dizer.

O sentido é constituído para o sujeito no interior das FDs, segundo Pêcheux (2014, p.

148), por meio do assujeitamento ideológico e do que ele chamou de “processo

discursivo”, que “passara a designar o sistema de relações de substituição, paráfrases,

sinonímias, etc., que funcionam entre elementos linguísticos – ‘significantes’ – em uma

formação discursiva dada”. Conforme Courtine (2009, p. 73), as FDs não são passíveis

de se isolarem “das relações de desigualdade, de contradição ou de subordinação que

marcam sua dependência em relação ao ‘todo complexo com dominante’ das FD”. O

autor ainda esclarece que esse complexo ideológico é nomeado “interdiscurso” e o estudo

do processo discursivo necessita levar em consideração as relações interdiscursivas que

o constitui.

Na relação entre o interdiscurso de uma FD e o processo de enunciação, que se estabelece

uma articulação ente o discurso e a língua denominada “pré-construído”. De acordo com

Courtine (2009, p. 74), esse termo foi introduzido por Paul Henry e “designa uma

construção anterior, exterior, independente por oposição ao que é construído na

enunciação”. São os pré-construídos que fornecem ao sujeito os objetos de seu discurso.

Quando Pêcheux (1999, p. 52) explica o funcionamento da memória no discurso, ele

afirma que os pré-construídos residem na memória, “na forma de remissões, retomadas e

paráfrases” que, pela repetição, podem contribuir para a construção de estereótipos.

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Retomando a análise dos cartazes, a sua imagem central, os dois homens sentados no

chão, nus, com a cabeça abaixada, cabelos curtos ou raspados, no meio da sujeira, retoma

memórias históricas dos campos de concentração nazistas, do Holocausto dos judeus,

durante a segunda Guerra Mundial, ocorrida entre 1939 e 1945, envolvendo grande parte

das nações do mundo. A foto do cartaz, segundo o site de buscas Google, é de pacientes

do Hospital Colônia de Barbacena, Minas Gerais, que, pelo histórico de abusos e maus

tratos, foi chamado de “Holocausto Brasileiro”, tamanhos foram os horrores e a

quantidade de pessoas atingidas.

A história do Hospital Colônia de Barbacena ficou marcada como um dos principais

exemplos das condições desumanas a que eram submetidos milhares de internos nos

manicômios do Brasil, de tal forma que foi relacionado a um dos acontecimentos que

mais guardam memórias de horror e medo da história, o holocausto dos judeus. Em ambos

os casos, os sujeitos são desumanizados, alienados de sua condição, “estrangeirizados”,

conforme Foucault (2014), a familiaridade, o reconhecimento se desfazem, então se torna

possível a violência e o isolamento, pois aqueles que o praticam, não o fazem contra seus

iguais.

A figura 2, é composta por duas fotografias, uma de um campo de concentração, outra do

interior do Hospital de Barbacena, que assinala a memória que é retomada no Cartaz 1,

por meio da imagem dos homens nus. Pode-se observar semelhanças, entre as fotos da

figura 2 e a figura 1, como a nudez e a magreza das pessoas, as poucas vestes em trapos,

as cabeças raspadas, o ambiente sujo, fechado. Na foto do cartaz, os sujeitos não encaram

a câmera, o efeito de sentido produzido é de sujeitos em posição de submissão, alienados

da situação. Nas fotos da figura 2, existe o olhar dos sujeitos, que produzem um efeito de

tristeza, desolamento.

Figura 2 - à esquerda, uma imagem de um campo de concentração nazista (Buchenwald,

na Alemanha); à direita, uma fotografia dos internos do Hospital Colônia de Barbacena.

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Fonte: Google imagens

No prefácio do livro intitulado Holocausto Brasileiro, da jornalista Daniela Arbex (2013),

Eliane Brum diz que utilizar a palavra holocausto fora do contexto do nazismo pode

parecer exagero, mas neste caso, não o é. Segundo a escritora, na obra de Arbex, “seu uso

é preciso. Terrivelmente preciso” (p.12). Arbex (2013) narra em seu livro uma extensa

investigação que realizou no “Colônia”, como o hospital era chamado na região,

pesquisando documentos e registros, realizando entrevistas com ex-pacientes e

funcionários. Os números chocam: 60 mil mortos entre os anos de 1930 e 1980 (p. 229).

Mas o terror não é resumido somente em números. Os internos dormiam em montes de

palha, para economizar espaço no hospital e acumular mais gente. Passavam frio, fome,

andavam nus ou em trapos. Bebiam água de esgoto, apanhavam, eram abusados

sexualmente, eram submetidos a tratamentos de eletrochoque que, em muitos casos, por

uso indiscriminado de força, causavam a morte do paciente. O hospital comercializou

centenas de corpos para uso em faculdades. Cerca de 30 crianças foram tiradas de suas

mães (ARBEX, 2013, p. 107). As crianças que estavam internadas no hospital tinham um

espaço chamado de “Enfermeirinha”, e recebiam tratamentos desumanos tais quais os

adultos.

O Hospital Colônia de Barbacena, atual Centro Hospitalar Psiquiátrico de

Barbacena, foi criado em 1903. Na década de 1930 a cidade de Barbacena, que

em função do grande nosocômio recebia pacientes de todo o estado, foi

apelidada de “Cidade dos Loucos”. Na instituição já se contabilizou algo em

torno de 100 óbitos em um único inverno, o que fez com que ficasse conhecida

por ser uma das principais fornecedoras de cadáveres para faculdades de

Medicina de todo do país. (BORGES, 2017, p. 105)

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O hospital de Barbacena era um depósito de “indesejados”, estima-se que 70% dos

pacientes não tinham diagnóstico de transtorno mental, mas eram pessoas que a sociedade

não queria em circulação. Esta situação também foi relatada por Foucault (2014), que

narra a transformação das grandes estruturas dos leprosários em manicômios, quando

ficaram ociosas a partir do controle da lepra, que se deu, em grande parte, pelo próprio

isolamento dos doentes nos hospitais. Esta estrutura teve um novo destino, no período

que Foucault chamou de “a grande internação”, ocorrida nos meados século XVII. Nesta

época, os manicômios não abrigavam somente loucos, mas também paralíticos,

mendigos, indigentes, desempregados, prostitutas, doentes venéreos, idosos senis e toda

sorte de indesejados pela sociedade. A internação tinha um caráter moral e até, em alguns

casos, religioso, que uniformizava os que não se enquadravam nos padrões e não era

questionada. De acordo com o autor, o “espanto pelo fato de doentes terem sido fechados,

por ter-se confundido loucos com criminosos, surgirá mais tarde. Por ora, estamos diante

de um fato uniforme” (p. 83).

Desde o início do século XX, a falta de critério médico para as internações era

rotina no lugar onde se padronizava tudo, inclusive os diagnósticos. Maria de

Jesus, brasileira de apenas vinte e três anos, teve o Colônia como destino, em

1911, porque apresentava tristeza como sintoma. Assim como ela, a estimativa

é que 70% dos atendidos não sofressem de doença mental. Apenas eram

diferentes ou ameaçavam a ordem pública. Por isso, o Colônia tornou–se

destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras,

alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os

tipos de indesejados, inclusive os chamados insanos. A teoria eugenista, que

sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e justificava seus

abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em

local que a vista não pudesse alcançar. (ARBEX, 2013, p. 21)

De acordo com Borges (2017, p. 105), o Hospital Colônia de Barbacena expõe uma

memória dolorosa da história da psiquiatria no Brasil e, ao mesmo tempo, se constituí

como um importante patrimônio, entendido aqui como atitude política, a serviço da Luta

Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica. “O patrimônio cultural é um discurso político

que procura instituir a importância de determinados bens, materiais ou imateriais”, neste

caso, as condições desumanas encontradas nos hospitais psiquiátricos quando estes foram

abertos, durante a década de 1970 e 1980, no início do Movimento da Reforma

Psiquiátrica.

O movimento da Reforma Psiquiátrica, como forma de preservar a memória dos horrores

e sofrimento, infringidos aos pacientes no interior dos hospitais psiquiátricos durante

décadas, foi responsável pela criação do Museu da Loucura, que toma parte do que foi o

Hospital Colônia de Barbacena. Borges (2017, p. 111) cita ainda o museu Bispo do

Rosário de Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro, o Memorial do São Pedro, em Porto

Alegre e o Centro de Documentação e Pesquisa do Hospital Colônia Sant´Ana, em Santa

Catarina como “instituições de memória dentro de hospitais psiquiátricos” que fazem

parte do mesmo movimento.

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Discursivamente, segundo Pêcheux, (1999, p. 50), a memória deve “ser entendida aqui

não no sentido diretamente psicologista da ‘memória individual’, mas nos sentidos

entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória

construída do historiador”. A memória constitui um espaço discursivo dividido, de

disjunções, deslocamentos e retomadas, de conflitos e regularização, “um espaço de

desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos” (p. 56).

A memória discursiva estabelece o que Pêcheux (1999, p. 52) chamou de implícitos, ou

seja, “mais tecnicamente, os ‘pré-construídos’, elementos citados e relatados, discursos

transversos, etc”, necessários à leitura de um acontecimento, ou seja, a memória fornece

elementos para a construção de sentidos para um determinado objeto, que são

regularizados, por meio da repetição do discurso. De acordo com Courtine (2009, p. 105-

106), a memória discursiva “diz respeito à existência histórica de um enunciado no

interior de práticas discursivas”. A memória, em seu funcionamento em uma FD,

possibilita lembranças, repetições, negações, e também esquecimentos, que se

materializam nos enunciados.

Desta forma, quando o Movimento Antimanicomial produz um material de divulgação

como o cartaz 1, ele promove uma fusão do sentido do manicômio com a memória dos

holocaustos (tanto judeu como o holocausto brasileiro), reforçando a palavra de ordem

expressa no material (Manicômio nunca mais), interditando, pelo horror, outros possíveis

sentidos em relação aos manicômios, que não o de um lugar desumano, cruel e que deve

ser banido da sociedade.

Vamos ao segundo cartaz, (figura 3), composto por 6 quadros, distribuídos na parte

superior, sob um fundo preto. A primeira imagem é de um livro aberto, e ao lado vê-se o

dizer: “1961 – 2011 50 anos História da Loucura na Idade Clássica Michel Foucault”,

fazendo referência à obra de Foucault, que trata, historicamente, da história da loucura na

Europa, e o do início dos internamentos como forma de exclusão e tratamento dos loucos

nas cidades.

Figura 3 – Cartaz dia da Luta Antimanicomial.

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Fonte: http://antimanicomialbh.blogspot.com.br/p/blog-page.html

O cartaz mostra sobre o fundo branco a figura de um homem, com uma vestimenta com

muitos bordados coloridos, puxando uma carretinha de madeira com vários barquinhos

de papel. Na lateral esquerda há uma tarja preta (que faz alusão às tarjas das embalagens

dos medicamentos psicoativos, com esta cor), com os dizeres: “Se quero o outro comigo,

fraco, cansado ou louco... ... tenho que deixar sempre abertas, as portas do coração”.

Acima da figura do homem está escrito: “18 de maio Dia Nacional da Luta

Antimanicomial”. Abaixo, no canto esquerdo, se encontra o logotipo do Conselho Federal

de Psicologia ao lado do dizer “Por uma sociedade sem manicômios”.

Realizando uma primeira “leitura” dos dizeres do cartaz, embora não se tenha

informações sobre o ano em que foi produzido, percebe-se uma mudança em relação aos

outros cartazes apresentados: fornece ao louco uma humanidade, representada pela

fragilidade a que qualquer ser humano está exposto: fraco, cansado ou louco. Estes 3

adjetivos, que seguem o enunciado: “se quero o outro comigo”, produzem um efeito de

aproximação com o interlocutor. Notemos que este sujeito não está mais trancado. É uma

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outra abordagem da questão da luta antimanicomial que é apresentada, a do sujeito com

transtorno mental próximo, incluído, se movimentando pelo espaço da sociedade.

Dessa forma, deve-se “manter” a porta aberta, não das celas ou do hospital e sim do

coração. O efeito de sentido aqui é consolidação do movimento, de criar uma

aproximação afetiva com a loucura, de aceitação desta na sociedade, com suas

características e particularidades. O enunciado: “por uma sociedade sem manicômios”,

que é o lema estabelecido no I Congresso de Trabalhadores de serviços de saúde mental,

em 1987, quando se instituiu a data de 18 de maio como dia da luta antimanicomial. É

mais uma memória do movimento de luta antimanicomial que é retomada na

materialidade discursiva do cartaz em questão.

O homem que aparece no cartaz é Arthur Bispo do Rosário (1909 – 1989), um artista

brasileiro que, aos30 anos, de acordo com Jimenez (2008) foi internado sob um

diagnóstico de esquizofrenia paranóide e viveu desde então em manicômios da cidade do

Rio de Janeiro. Suas obras foram expostas em diversos museus no mundo todo. Constitui

um verdadeiro enigma para os estudiosos da área, o fato de um sujeito que viveu isolado

da sociedade por tanto tempo produzir obras com tão grande impacto e de tamanha

sofisticação estética. O “fio” pelo qual o artista puxa o carrinho é composto pela seguinte

frase: “Obra de Arthur Bispo do Rosário, internado no Hospital Psiquiátrico Pedro II, no

Rio de Janeiro, após delirar dois dias nas ruas. ”

O cartaz dá ao portador de transtornos mentais um outro lugar, pelo fato de representar

não mais o louco aprisionado, imóvel, mas sim em movimento, indo ao longe, seguido

por sua arte. Por outro lado, e de forma mais contundente ainda, está a arte de Arthur

Bispo do Rosário, que provocou rupturas no imaginário construído a respeito da loucura,

libertando, simbolicamente, o seu discurso. Ambos rompem com os discursos da razão,

que falam da/e pela loucura e dão voz aos loucos que falem por si mesmos. Assim temos

uma loucura muito mais próxima daquela do período da renascença, representada no

cartaz analisado anteriormente pela obra de Bosch, em era portadora de uma verdade

sobre a natureza do homem.

Orlandi (2012) trata dos meios de “individu(aliz)ação” do sujeito na modernidade, sob a

ordem do capitalismo, de modo que, interpelado pela ideologia em sua constituição como

sujeito, acredita-se e percebe-se como ser “responsável, dono de sua vontade, com direitos

e deveres e direito de ir e vir” (p. 228). Esse sujeito moderno, que adquire “valor” em

uma sociedade por meio do trabalho, ao mesmo tempo em que é alienado dos frutos

produzidos por este, se identifica nesta “posição-sujeito” individual, e é isto que permite

sua inscrição em uma determinada formação discursiva. Ironicamente, a ideologia pode

falhar nesse processo, gerando rupturas captadas na materialidade do discurso:

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[...] A ideologia, como dissemos, é um ritual com falhas. Mas nem por isso, a

ideologia pára de funcionar.

Na falha, ela se abre em ruptura, onde o sujeito pode irromper com seus outros

sentidos e com eles ecoar na história. Condição para os sujeitos e os sentidos

possam ser outros ‘fazendo sentido no interior do não sentido’. É a isto que

chamo resistência. E não a voluntarismo inscrito em teorias que se sustentam

na onipotência dos sujeitos e dos sentidos que mudam à vontade. Somos

sujeitos interpelados pela ideologia e é só pelo trabalho e pela necessidade

histórica da resistência que a ruptura se dá quando a língua se abre em falha,

na falha da ideologia, enquanto o Estado falha, estruturalmente, em sua

articulação do simbólico com o político. Não é, pois pela magia, nem pela

vontade, mas pela práxis que a resistência toma seu lugar. (ORLANDI, 2012,

p. 231)

A resistência presente na relação interdiscursiva entre o cartaz em questão e a obra de

Arthur Bispo do Rosário aponta para possibilidades, deixa entrever, talvez, um novo lugar

para o louco que não o da doença, da incapacidade, da prisão, do silêncio. Mas, no jogo

de forças (ou luta de classes), presente desde sempre na história, em que as sociedades se

movem entre avanços e retrocessos de movimentos como o da Reforma Psiquiátrica, há

um longo caminho a ser percorrido ainda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com Amarante (1992, p. 105), o movimento de Reforma Psiquiátrica não

substitui a psiquiatria clássica por outro modelo, mas sim, procura utilizá-lo “como marco

explicativo-causal e epidemiológico para a nova organização assistencial que propõe”. A

principal diferença entre os dois modelos é que, para a Reforma Psiquiátrica o hospital é

o último recurso no tratamento dos transtornos mentais.

O autor indica ainda que, embora haja uma predominância do “modelo preventista” como

alternativa de tratamento, existe uma propagação de propostas, ideias e novos modelos

“alternativos” para a questão do tratamento em saúde mental. Referente ao modelo

preventista, ainda esclarece que este acaba por se constituir uma nova forma de controle

social da loucura, passando do modelo asilar (ou manicomial) para a medicalização.

Este fato mostra que, apesar de grandes mudanças em direção a tratamentos mais

humanizados para o transtorno mental, com melhorias das suas condições de vida e

reinserção na sociedade, o movimento da Reforma Psiquiátrica ainda não rompeu com o

discurso médico, até mesmo porque foi construído no interior de movimentos de

profissionais de saúde. Esta característica é evidenciada pelo fato de que o transtorno

mental (ou a loucura) ainda ser considerado um campo que necessita de tratamento. Não

se trata aqui de dizer que os transtornos mentais não necessitam de tratamento e sim que,

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apesar de uma outra abordagem, a Reforma Psiquiátrica ainda se inscreve no discurso

médico de oposição saúde-doença, normalidade – não-normalidade, etc.

Em última instância, e essa constatação se deve também à Análise de Discurso, quando

esta trata da ideologia, seu funcionamento interpelando os sujeitos, e também pela

conceituação de forma-sujeito, como forma histórica dos sujeitos de uma determinada

época, os modelos de tratamento em saúde mental, surgidos até agora, não rompem com

o capitalismo. Foucault (1984) relata que o grande “pecado” cometido pelos loucos, em

uma sociedade capitalista, é não produzir. Ora, até hoje a medicina esteve a serviço de

colocar os sujeitos em condições de trabalhar, seja com métodos mais ou menos humanos.

E todo este movimento histórico acaba sendo materializado nos discursos, seja na mídia,

seja no discurso científico, no cotidiano dos sujeitos e das instituições.

REFERÊNCIAS

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453-471, 2016.

*Cláudia Janice Hilgert: Mestranda em Letras - Linguagem e Sociedade pelo PPGL -

Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, graduada em Psicologia - Instituto

de Ensino Superior de Foz do Iguaçu, membro do GEAD - Grupo de Estudos em Análise

de Discurso Unioeste. [email protected]

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**Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho: Doutorando em Letras - Linguagem e

Sociedade pelo PPGL - Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste, Mestre em

Educação pelo PPGE da UCB, pesquisador do NUPESDD - Núcleo de Pesquisa e Estudos

Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos da Universidade Estadual do Mato

Grosso do Sul-UEMS, CEPAD - O Centro de Pesquisa em Análise do Discurso da mesma

Universidade e do membro do GEAD - Grupo de Estudos em Análise de Discurso

Unioeste. Professor do Curso de Licenciatura em Linguagens e Códigos - UFMA -

Campus São Bernardo. [email protected]