Da Poesia Concreta Ao Poema Concreto - Um Passeio Pelo Fio Da Navalha

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HELBA CARVALHO DA POESIA CONCRETA AO POEMA-PROCESSO: UM PASSEIO PELO FIO DA NAVALHA Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, na área de Literatura Brasileira, sob a orientação do Prof. Dr. João Adolfo Hansen. SÃO PAULO 2002

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dissertação

Transcript of Da Poesia Concreta Ao Poema Concreto - Um Passeio Pelo Fio Da Navalha

  • HELBA CARVALHO

    DA POESIA CONCRETA AO POEMA-PROCESSO:

    UM PASSEIO PELO FIO DA NAVALHA

    Dissertao de Mestrado apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, na rea de Literatura Brasileira, sob a orientao do Prof. Dr. Joo Adolfo Hansen.

    SO PAULO 2002

  • Para Helosa e Helotnio.

    Para meu pai, na terceira margem do rio.

    ii

  • AGRADECIMENTOS

    A Joo Adolfo Hansen: orientao, dilogo e bom-humor.

    A Celso Fernando Favaretto, pela grande ajuda bibliogrfica, dilogos,

    sugestes e correes.

    A Alcides Celso Oliveira Villaa, pelas leituras atentas e comentrios sempre

    reveladores.

    A minha me, Helosa Helena, pelo apoio constante e preocupao.

    A meu pai, Antnio, pelos raros momentos de dilogo e ateno.

    A meu irmo, Helotnio: amizade, colaborao e incentivo.

    Aos amigos Danilo Tovo Ortigoso, Flvio Felcio Botton, Petruska Castelo

    Chaves, Regina Venncio e Snia Amaral.

    A Denise Ceron, pelas sugestes e trabalhos de reviso.

    A Izabel C. S. Monteiro: amizade, estmulo e pacincia.

    iii

  • RESUMO A proposta desta dissertao discutir a polmica trajetria das vanguardas

    poticas brasileiras, representadas pela poesia concreta, neoconcreta, praxis e

    poema-processo, com base na anlise de alguns procedimentos tcnicos, conceitos

    tericos e princpios formais apresentados nos principais textos (manifestos e

    plataformas) e prticas poticas desses movimentos.

    Feita uma reviso crtica do conceito de vanguarda e suas aporias no

    contexto da crise do Modernismo na segunda metade do sculo XX, foram

    discutidos alguns impasses esttico-polticos, tericos e prticos dessa poesia de

    vanguarda, diante do cenrio sociocultural brasileiro dos anos 1950 e 1960. Se, por

    um lado, a necessidade programtica de afirmar o novo nos grupos vanguardistas

    lanou alguns procedimentos tcnicos e princpios formais que, principalmente com

    a poesia concreta, incidiram no campo da crtica literria e do ensino das letras nas

    universidades, por outro, retomou e radicalizou velhas categorias futuristas,

    cubistas, construtivistas e modernistas de 1922.

    iv

  • ABSTRACT

    The proposal of this dissertation is to discuss the polemic course of Brazilian

    poetry avant-gardes, represented by Concrete, Neoconcrete, Praxis and Process

    poetries, based on the analysis of some technical procedures, theoretical concepts

    and formal principles presented in the main texts (manifests and platforms) and

    poetical practices in these movements.

    After a critical revision of the concept of avant-garde and its contradictions

    in the context of the Modernism crisis in the second half of the 20th century, we

    discussed some esthetic-political, theoretical and practical deadlocks, inside the

    sociocultural Brazilian scenario during the 1950s and 1960s. If, on one side, the

    need of stating the new in the avant-garde groups created some technical

    procedures and formal principles that, notably with the concrete poetry, targeted the

    fields of literary critics and teaching literature at universities, on the other side,

    resumed and radicalized old futurist, cubist, constructivist and 1922 modernist

    categories.

    v

  • A necessidade de tomar riscos actualiza-se na idia do experimental que,

    simultaneamente, transfere da cincia para a arte a utilizao consciente dos

    materiais contra a concepo de um procedimento orgnico inconsciente.

    Actualmente, a cultura oficial concede um espao particular ao que ela, com

    desconfiana, considera como experimentao, aguardando j em parte o seu

    insucesso e assim a neutralizando.

    Theodor Adorno (1970, 51)

    Mas de qualquer modo, esta poesia de vanguarda representa de maneira viva

    o passeio pelo fio da navalha

    Antonio Candido (1972, 22)

    vi

  • SUMRIO APRESENTAO _________________________________________________2

    1. CONSIDERAES INICIAIS _____________________________________3

    1.1. Vanguarda em questo: conceito e aporias__________________________3

    1.2. As vanguardas poticas no contexto brasileiro: anos 1950-1960 ________11

    1.2.1. Artes visuais, poesia e ideologias _____________________________11 1.2.2. Vanguardas poticas e situao literria ________________________22

    2. DA POESIA CONCRETA AO POEMA-PROCESSO _________________29

    2.1. Poesia concreta ______________________________________________29

    2.2. Poesia neoconcreta ___________________________________________63

    2.3. Poesia Praxis ________________________________________________81

    2.4. Poema-Processo_____________________________________________104

    3. (IN)CONCLUSO _____________________________________________126

    POSFCIO _____________________________________________________130

    BIBLIOGRAFIA_________________________________________________131

    Especfica _____________________________________________________131

    Geral _________________________________________________________137

    1

  • APRESENTAO

    Esta dissertao resulta de uma reflexo crtica sobre a presena polmica da

    poesia de vanguarda brasileira de tendncia experimental, geralmente considerada

    formalista, representada pelas poesias concreta, neoconcreta, praxis e pelo

    poema-processo, no contexto brasileiro dos anos 1950 e 1960. A preocupao

    central desses movimentos foi incorporar dados novos de um contexto universal a

    uma problemtica da cultura nacional, com a experimentao de novas formas de

    poesia, e criticar a prtica e o consumo da poesia escrita em verso, metrificado ou

    livre.

    O propsito deste estudo foi, portanto, identificar nos procedimentos tcnicos

    e conceitos tericos da poesia de vanguarda brasileira algumas de suas aporias e

    discutir suas possveis contribuies (ou no) o eventual alcance crtico para o

    sistema literrio brasileiro.

    Esta dissertao divide-se em duas partes. A primeira, que consta de trs

    momentos, oferece ao leitor um conjunto de informaes que vo desde as reflexes

    crticas sobre o conceito original da palavra vanguarda e suas aporias, segundo a

    anlise dos principais crticos da arte de vanguarda, passando pela genealogia da

    poesia de vanguarda brasileira e sua relao com as ideologias esttico-polticas no

    Brasil da poca, at um exame sobre as possveis contribuies das neovanguardas

    brasileiras para a situao literria brasileira dos anos 1950 e 1960. A segunda parte

    dedicada leitura e anlise dos principais textos tericos e programticos e de

    alguns poemas, no apenas com o objetivo de identificar os modos como as

    neovanguardas teorizam a histria, mas tambm de observar algumas contradies

    tericas e prticas presentes em cada movimento.

    2

    Por fim, em se tratando de uma sugesto de leitura e reflexo crtica sobre

    um tema ainda muito polmico e em discusso, sugeriu-se uma in(concluso), que

    retoma as questes j levantadas no decorrer deste estudo e prope outras, a fim de

    contribuir para o debate sobre as estticas da arte de vanguarda brasileira.

  • 1. CONSIDERAES INICIAIS

    1.1. Vanguarda em questo: conceito e aporias

    Originalmente, o termo vanguarda designa parte de um exrcito que

    avana na linha de frente de um combate para se antecipar ao corpo principal de

    soldados e defend-lo. Segundo Hans Magnus Enzensberger,1 a palavra passou da

    noo de estratgia militar para as artes por volta dos anos 50 do sculo XIX, na

    Frana revolucionria. No discurso da crtica de arte, a atividade artstica vinculou-

    se ao ativismo poltico (o artista deve comprometer-se com a participao nas lutas

    sociais). A partir desse momento, a palavra vanguarda assume um sentido

    figurado que vai ocultar seu significado original.

    Enzensberger faz a crtica da vanguarda com base na anlise de suas aporias

    que j esto inscritas na prpria palavra composta avant-garde. Originalmente,

    avant tem um sentido espacial. Empregada metaforicamente, a partcula ganha uma

    referncia temporal. O aspecto temporal est diretamente associado idia de

    mudana (inovao, avano, antecipao). Para o autor, o avanar da vanguarda

    quer realizar simultaneamente o futuro no presente, antecipar-se ao curso da

    histria.2 Sendo assim, precedida pelo projeto, a obra s se completa no futuro. O

    avanar s pode ser comprovado no futuro, eis a sua prpria contradio.

    Alm das implicaes temporais, sociologicamente, o termo garde pode

    significar guarda pessoal de prncipes e tambm tropa de elite de um exrcito;

    ambas conotam a idia de coletividade, porm, normalmente, apresentam seu lder.

    Compem, assim, um grupo distinto, que se considera elite.

    O poeta e crtico alemo lembra que, meio sculo depois, em 1919, a noo

    de vanguarda foi aplicada muito precisamente poltica por Lnin, que definiu o

    1 As aporias da vanguarda. Tempo Brasileiro, n.26-27, jan./mar. 1971, p.92. 2 Idem, p.93.

    3

  • partido comunista como a vanguarda do proletariado (...) um grupo de combate,

    fortemente organizado, composto por uma elite, para a qual uma disciplina interna

    rigorosa bem natural; igualmente natural o estatuto privilegiado que lhe parece

    diante da massa dos que esto fora do partido. (...) Somente num ponto, o sentido

    figurado se afasta do sentido primitivo: a vanguarda comunista no tem que se

    regular pela marcha do grosso das tropas, mas, inversamente, ela ao mesmo tempo

    Estado Maior cujos planos devem comandar toda a operao. (...) O que est

    adiante definido uma vez por todas por uma doutrina infalvel, e o adversrio

    contra o qual dirigido o ataque bem determinado e existe realmente.3

    Se em Lnin a aplicao da idia de vanguarda poltica se mostrou precisa,

    nas artes no se pode dizer o mesmo, pois a impresso de algo confuso. Ao

    mesmo tempo em que h um esforo coletivo, h tambm uma idia falsa de tropa

    organizada, disciplinada, que vai frente. Os participantes de um movimento de

    vanguarda se relacionam com o movimento total, sem intermedirios que assumam

    seu risco pessoal. Quanto idia de revoluo, o autor observa que no h

    referncia a ela na metfora de vanguarda; no entanto, todos os grupos trazem em

    seus programas protestos contra a ordem estabelecida e, rompendo com essa ordem,

    prometem a liberdade mediante a revoluo.4 Porm, como essa liberdade nas

    artes estabelecida de forma doutrinria pela vanguarda, a idia de revoluo

    permanece vaga e confusa.

    Enzensberger nota ainda que, no aspecto temporal, o problemtico avanar

    da vanguarda foi rapidamente esvaziado diante de uma apropriao neutralizadora

    da indstria cultural nas sociedades capitalistas. Paralelamente, a partir dos anos

    1940-1950, houve uma reduo progressiva da experimentao esttica a um fim

    em si mesmo. O autor observa que, nos anos 1950-1960, movimentos como o

    tachismo, a pintura monocromtica, a msica eletrnica, a poesia concreta, a

    literatura beat etc. tinham em comum a formao coletiva, o carter doutrinrio e a

    convico de estar adiante. Em cumplicidade com a indstria cultural, ao mesmo

    3 Idem, p.99-100.

    4 4 Idem, p.101.

  • tempo em que reivindicaram o estatuto de vanguarda, esses movimentos utilizaram-

    no de forma publicitria e doutrinria:

    Idia lgica em si mesma, a vanguarda se props sempre o movimento, no

    somente no sentido histrico-filosfico, mas igualmente no sentido sociolgico. Cada um

    de seus grupos no acreditou somente em antecipar uma fase do processo histrico, mas

    alm disso se considerou como movimento. No duplo sentido da palavra, este movimento

    se proclama agora como um fim em si mesmo. O parentesco com os movimentos

    totalitrios salta aos olhos, o essencial destes sendo precisamente, como mostrou Hannah

    Arendt, o movimento para o vazio que emite exigncias ideolgicas perfeitamente

    arbitrrias, ou antes manifestamente absurdas, e as transporta para os fatos.5

    As vanguardas dos anos 1950-1960, para Enzensberger, retomam o que j

    havia sido formulado pelas primeiras vanguardas do incio do sculo XX, no que se

    refere idia de vanguarda como grupo unido a uma doutrina e disposto a romper

    com a ordem estabelecida:

    Todas as vanguardas de hoje no so seno repetio, embuste para com as outras

    ou para consigo mesmo. O movimento, que como grupo unido a uma doutrina, nascido h

    cinqenta ou trinta anos com o propsito de romper com a resistncia que uma sociedade

    compacta oferecia arte moderna, no sobreviveu s condies histricas que o tornaram

    possvel. Conspirar em nome das artes no possvel seno onde elas sofrem opresso.

    Uma vanguarda a que os poderes oficiais favorecem uma vanguarda que perdeu o direito

    de s-lo. (...)

    A acusao que se deve fazer vanguarda de hoje , no a de ir longe demais,

    porm de manter as portas abertas atrs dela, de procurar apoio em doutrinas e

    coletividades, de no ser consciente de suas prprias aporias, desde h muito resolvidas

    pela histria. Ela faz comrcio de um futuro que no lhe pertence. Seu movimento no

    seno regresso. A vanguarda se transformou no seu oposto, ela se tornou anacronismo. O

    risco pouco visvel, mas infinito, em que vive o futuro das artes, ela recusa assumir.6

    Contemporneo a Enzensberger, Edoardo Sanguineti tambm faz uma

    anlise da vanguarda, em termos marxista, com base em suas aporias, porm se

    5 Idem, p.105.

    5 6 Idem, p.112.

  • volta mais para o que chama de conflito econmico. Em seu livro Ideologia e

    linguagem, Sanguineti observa um duplo movimento interno da vanguarda

    representado por dois momentos s aparentemente contraditrios: no primeiro,

    denominado herico e pattico, o produto artstico tenta fugir ou finge fugir ao

    jogo da oferta e da procura; no segundo, denominado cnico, o produto artstico

    assume a sua existncia prpria, natural e efetiva de mercadoria, perde seu carter

    de novidade em concorrncia com outras mercadorias e acaba neutralizado.7

    Segundo o terico, a vanguarda questiona a neutralizao mercantil, forando as

    contradies existentes em sua heteronmia, no importa se herica ou cinicamente,

    o que importa que ela exprime o momento dialtico no interior da neutralizao

    assinalada pela mercantilizao esttica.8

    Observa-se que tanto para Enzensberger como para Sanguineti o avanar da

    vanguarda, no seu sentido metafrico em direo ao novo, acaba, num movimento

    contraditrio, promovendo sua prpria neutralizao. Situada entre o academicismo

    beletrista e o kitsch de massa, a vanguarda tem como projeto o rompimento com a

    tradio e a afirmao do novo. Assim, acaba reproduzindo contraditoriamente o

    movimento mesmo do capital, que , ele sim, revolucionrio das cincias e tcnicas.

    Theodor Adorno tambm discutiu a arte na sociedade industrial capitalista.

    importante ressaltar que o conceito de arte moderna para Adorno nica arte

    legtima do presente engloba os antecedentes dos movimentos de vanguarda (a

    partir de Baudelaire), os prprios movimentos e as neovanguardas.9 A obra de

    vanguarda analisada como expresso necessria da alienao na sociedade

    capitalista avanada.10 No centro da teoria de Adorno sobre a arte moderna,

    encontra-se a categoria do novo. O novo a renovao dos temas, motivos e

    processos artsticos estabelecidos pela evoluo da arte desde a modernidade. Essa

    categoria representa a hostilidade contra a tradio peculiar da sociedade burguesa

    7 Porto, Portucalense, 1972, p.57-59. 8 Apud ARANTES, Otlia. Depois das vanguardas. Arte em Revista, ano 5, n.7, ago. 1983, p.11. 9 A interpretao de Peter Brger (Teoria da vanguarda, 1.ed., Lisboa, Vega, 1993, p.136).

    6 10 Idem, p.146.

  • capitalista. Em Teoria esttica, escrito em 1968, ltima obra do pensador, a

    vanguarda pode ser traduzida como o experimental:

    A violncia do Novo, para o qual se adoptou o nome de processo experimental, no

    deve imputar-se ao pensamento subjetivo ou natureza psicolgica do artista. Onde nem as

    formas nem os contedos determinam este mpeto, os artistas produtivos so objetivamente

    compelidos experimentao. No entanto, o conceito de experimentao modificou-se em

    si, e de maneira exemplar para as categorias do Moderno. Originalmente, ele significava

    apenas que a vontade consciente de si mesma experimentava processos tcnicos

    desconhecidos ou no sancionados. Tradicionalmente, estava subjacente a crena de que

    tornaria pblico se os resultados se impunham ao que j estava estabelecido e se

    legitimava. Esta concepo da experimentao artstica tornou-se to evidente como

    problemtica na sua confiana na continuidade. O gestus experimental, termo que designa

    os procedimentos artsticos para os quais o Novo obrigatrio, manteve-se, mas hoje

    designa de muitos modos, com a passagem do interesse esttico da subjetividade

    comunicativa para a consonncia do objecto, algo de qualitativamente outro: o facto de que

    o sujeito artstico pratica mtodos cujos resultados concretos no pode prever.11

    Deve-se lembrar que as vanguardas das primeiras dcadas do sculo XX, ao

    romperem com a tradio das Belas-Artes, fizeram uma crtica frente aos valores

    institudos e introduziram novos procedimentos e possibilidades de fazer arte:

    parecia possvel fazer tudo, com tudo, em qualquer direo.12 Essa aparente

    desorganizao o selo de autenticidade do Modernismo.(...) A energia

    antitradicionalista transforma-se em turbilho devorador. Nesta medida o Moderno

    um mito voltado contra si mesmo; a sua intemporalidade torna-se catstrofe do

    instante que rompe a continuidade temporal. O conceito de Benjamin de imagem

    dialtica encerra este momento. Mesmo quando o Moderno conserva, enquanto

    tcnicas, aquisies tradicionais, estas so suprimidas pelo choque que deixa

    nenhuma herana intacta. Assim como a categoria do Novo resultava do processo

    histrico, que dissolve primeiro a tradio especfica, em seguida, toda e qualquer

    tradio, assim o Moderno no nenhuma aberrao que se deixaria corrigir,

    11 Lisboa, Edies 70, 1993, p.36.

    7

    12 Cf.BRITO, Ronaldo. O moderno e o contemporneo (o novo e o outro novo). In:VVAA. Arte Brasileira Contempornea. Caderno de Textos 1. Rio de Janeiro, Funarte, 1980, p.5.

  • regressando a um terreno que j no existe e no mais deve existir; isto

    paradoxalmente o fundamento do Moderno e confere-lhe o seu carter

    normativo.13 Visto assim, o Moderno produziu uma situao contraditria: ao

    mesmo tempo que rompeu com a tradio e com a continuidade temporal,

    inaugurou uma nova tradio, a Tradio do Novo, como chamou Harold

    Rosenberg. 14 Institucionalizadas, as obras da Modernidade transformaram-se em

    figuras ideais, modelos, seguindo uma cronologia de movimentos que permitiu o

    encadear de semelhanas, conflitos e oposies. Os procedimentos e materiais que

    pareciam inaceitveis foram incorporados tradio e Histria da Arte. Sob o

    signo do Moderno e do novo, o gestus experimental, em sua necessidade de tomar

    riscos, pratica mtodos cujos resultados concretos no pode prever.15 Consciente

    da perda de poder e controle que adveio da tecnologia libertada, o sujeito precisava

    dominar a multiplicidade de materiais e integr-la ao ponto de partida subjetivo para

    torn-la um momento do processo de produo. O produto vaporoso da

    imaginao pode, por seu lado, enquanto meio artstico especfico, ser imaginado na

    sua impreciso.16 Deve-se ressaltar que a anlise de Theodor W. Adorno sobre o

    Moderno e o experimental considera a produo artstica da sociedade capitalista

    avanada.

    Num outro contexto, as vanguardas poticas brasileiras dos anos 1950 e

    1960, ainda sob o signo do novo Moderno e impulsionadas pela euforia dos anos

    50, tentaram retomar e recodificar, num processo semelhante de inveno, muitos

    dos procedimentos das vanguardas europias. Esse assunto, porm, ser discutido

    mais adiante.

    Peter Brger outro terico que merece destaque nas reflexes sobre a

    vanguarda. Na primeira parte de sua Teoria da vanguarda,17 Brger prope uma

    13 ADORNO, Theodor W. Op.cit., p.35. 14 Cf. ROSENBERG, Harold. A Tradio do Novo. So Paulo, Perspectiva, 1974. 15 ADORNO, Theodor W. Op. cit., p.36. 16 Idem, ibidem.

    8

    17 Lisboa, Vega, 1993. Algumas das principais teses de Brger foram resumidas e comentadas por Iumna Maria Simon, no artigo Esteticismo e participao: as vanguardas poticas no contexto brasileiro (1954-1969) (in Amrica Latina: palavra, literatura e cultura: vanguarda e modernidade, org. por Ana Pizarro, Campinas, Memorial/Unicamp, 1995, 3v., p.355-356).

  • discusso sobre os movimentos histricos de vanguarda do incio do sculo XX

    com base em suas tentativas de transgredir os limites da arte como instituio e

    romper com a idia da arte como representao.

    O estudioso estabelece duas teses principais: 1) a vanguarda permite

    reconhecer determinadas categorias gerais da obra de arte na sua generalidade, e

    que portanto a partir da vanguarda podem ser conceptualizados os estdios

    precedentes no desenvolvimento do fenmeno arte na sociedade burguesa, mas no

    o inverso; 2) o subsistema artstico atinge, com os movimentos de vanguarda

    europia, o estdio da autocrtica.18 E cita exemplo: O dadasmo, o mais radical

    dos movimentos da vanguarda europia, j no critica as tendncias artsticas

    precedentes, mas a instituio arte tal como se formou na sociedade burguesa.19

    Brger esclarece que o pleno desenvolvimento da instituio arte na

    sociedade burguesa, chamado de esteticismo, atinge seu apogeu quando rompe com

    a sociedade vigente e cria um subsistema autnomo,20 caracterizado pelo aspecto

    individual da produo artstica e pela obra de arte que se transforma no contedo

    da arte.

    Com isso, o esteticismo torna-se a condio prvia para a interveno das

    vanguardas europias que negam a autonomia da arte burguesa e propem a

    aproximao da arte prxis vital. A inteno dos vanguardistas pode definir-se

    como sendo a tentativa de devolver a experincia esttica (oposta prxis vital),

    criada pelo esteticismo, prtica.21

    Peter Brger observa, no entanto, que as vanguardas das dcadas de 1950 e

    1960, denominadas neovanguardas, no atingiram o mesmo valor de protesto e

    efeito de choque que as vanguardas histricas, embora possam ter sido mais bem

    realizadas que as primeiras. Mas vale notar que a neovanguarda institucionaliza a

    vanguarda como arte e nega assim as genunas intenes vanguardistas. () A arte

    18 Cf. op. cit., p.47-48. 19 Idem, p.51. 20 Idem, p.65-66.

    9 21 Idem, p.66.

  • neovanguardista arte autnoma no pleno sentido da palavra, e isto significa que

    nega a inteno vanguardista de uma reintegrao da arte na prxis vital.22

    Brger declara ainda que as neovanguardas contradizem as intenes dos

    movimentos histricos de vanguarda (romper com a instituio arte), por isso elas

    podem ser vistas como afirmao de uma regresso, um anacronismo. Ao

    institucionalizar a vanguarda como arte, as neovanguardas cumprem o destino que

    lhes est reservado: j nascem historicizadas. A novidade duvidosa, sempre

    sombra do novo produzido pelas vanguardas histricas, faz de seus avanos

    patentes recuos que deveriam prever sua morte prematura.

    O destino reservado s neovanguardas, como se viu, j est previsto no

    prprio conceito blico da palavra vanguarda: o grupo que avana heroicamente

    na frente j deve prever que cumpre uma misso suicida. Porm, como se observou

    na anlise dos tericos, as neovanguardas parecem ignorar tal sina. Ao assumir a

    posio de vanguardista na busca incessante pelo novo, a poesia de vanguarda

    brasileira no est isenta do mesmo destino. Num contexto totalmente inverso, sem

    a presena do capitalismo industrial avanado e da massificao, restou vanguarda

    potica brasileira, num quadro de atraso social prprio do subdesenvolvimento,

    idealizar uma situao de desenvolvimento.23 Os pases desenvolvidos tornam-se o

    espelho dos vanguardistas brasileiros, como observou Ferreira Gullar:

    Mas essas vanguardas trazem em si, embora equivocadamente, a questo do novo, e

    essa uma questo essencial para os povos subdesenvolvidos e para os artistas desses

    povos. A necessidade de transformao uma exigncia radical para quem vive numa

    sociedade dominada pela misria e quando se sabe que essa misria produto de estruturas

    arcaicas. Grosso modo, somos o passado dos pases desenvolvidos e eles so o espelho de

    nosso futuro.24

    22 Idem, p.105. 23 Cf. SIMON, Iumna Maria, art. cit., p.358. 24 In: Vanguarda e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1969, p.23.

    10

  • Alm de sofrer as aporias prprias de toda vanguarda, a poesia de vanguarda

    brasileira confronta-se ainda com a questo do subdesenvolvimento. Essa e outras

    questes so, no entanto, assunto dos prximos itens.

    1.2. As vanguardas poticas no contexto brasileiro: anos 1950-1960

    1.2.1. Artes visuais, poesia e ideologias

    A I Exposio de Arte Concreta,25 inaugurada em dezembro de 1956 no

    MAM (Museu de Arte Moderna) de So Paulo (em janeiro de 1957, foi realizada no

    MAM do Rio de Janeiro), marca o surgimento da poesia concreta. Essa exposio,

    que reuniu artistas plsticos e poetas do Rio de Janeiro e de So Paulo, no s

    revelou as diferenas entre as experincias dos grupos paulista e carioca, mas

    tambm permitiu observar algumas semelhanas entre a poesia e a pintura

    concretas: Mrio Pedrosa observou que os poetas concretistas aproximam-se das

    artes plsticas, aproximam-se da msica para alcanar a nudez de percepo, a

    virgindade e a pureza do golpe inicial, global, perceptivo das gestalts. Eis por que

    sofregamente abandonam o verso, com suas andanas, seu corte, sua natureza

    invencivelmente cultivada, erudita, conceitual, para contactar, apegar-se a um

    objeto bruto, a uma experincia que ainda est para c dos conceitos, para c do

    inevitvel encadeamento lgico-associativo, especulativo-psicolgico.26

    Essa aproximao entre poetas e pintores parece bastante ntida na I

    Exposio Nacional de Arte Concreta, mas deve-se lembrar que, antes de a poesia

    25 Entre os participantes dessa exposio estavam os artistas plsticos Geraldo de Barros, Waldemar Cordeiro, Lygia Clark, Hlio Oiticica, Alfredo Volpi, Maurcio Nogueira Lima, Lygia Pape, entre outros, e os poetas Ronaldo de Azeredo, Augusto e Haroldo de Campos, Dcio Pignatari, Ferreira Gullar e Wlademir Dias Pino. Cf. Arquitetura e Decorao, n.20, nov./dez. 1956 (especial sobre a I Exposio Nacional de Arte Concreta).

    11

    26 Poeta & pintor concretista. In: AMARAL, Aracy A. (org.). Projeto construtivo brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro/So Paulo, Museu de Arte Moderna/Pinacoteca do Estado, 1977, p.145.

  • concreta ser lanada oficialmente, j havia um estreito dilogo dos poetas Augusto e

    Haroldo de Campos, Dcio Pignatari e Ferreira Gullar com os principais grupos

    representantes da arte concreta, Ruptura (So Paulo) e Frente (Rio de Janeiro),

    criados em 1952. Mais tarde, esses grupos formam o par

    concretismo/neoconcretismo. Nesse mesmo ano, Dcio Pignatari forma o grupo

    Noigandres, com Augusto e Haroldo de Campos, e entra em contato com Waldemar

    Cordeiro (principal expoente do grupo Ruptura). Ferreira Gullar inicia uma longa

    amizade com o crtico de arte Mrio Pedrosa, principal terico e divulgador da arte

    abstrata no Brasil. Tanto Gullar quanto Mrio Pedrosa e Waldemar Cordeiro, como

    crticos da poca, imprimem diferentes direes ao movimento artstico de

    vanguarda.

    Vale destacar aqui o papel de Mrio Pedrosa: na coluna diria Artes

    Plsticas, do Correio da Manh, o crtico trazia o exemplo da arte internacional,

    especialmente a abstrata, encorajando os jovens artistas brasileiros interessados em

    romper com os mestres. Tornou-se um arauto das vanguardas artsticas

    brasileiras, como ele mesmo dizia, em busca da atualizao da arte moderna no

    Brasil: Na linha da concluso do Manifesto de Trotsky, Breton e Rivera, acreditava que

    independncia da arte e revoluo andavam juntas, batalhando para que o Brasil sasse do

    isolamento e se alinhasse arte mais avanada do tempo. No h dvida que esbarrava nos

    impasses caractersticos de um pas perifrico, onde falar de independncia artstica algo

    no mnimo problemtico, mas o sopro de ar novo que trouxe obrigou nossos artistas e

    crticos a porem em discusso o rumo que a arte em ntido refluxo em relao s

    conquistas vanguardistas ia tomando entre ns.27

    A arte abstrata, em oposio arte figurativa, promover a autonomia entre

    arte e representao. Essa autonomia, j preparada pelas vanguardas modernas

    desde as ltimas dcadas do sculo XIX, ser questo fundamental nas artes a partir

    das primeiras aquarelas abstratas de Kandinsky, em 1910. Mais tarde, na dcada de

    12

    27 Cf. ARANTES, Otlia Beatriz Fiori. O ponto de vista do crtico. In: Mrio Pedrosa: itinerrio crtico. So Paulo, Pgina Aberta, 1991, p.XII-XIII.

  • 1950, nomes como Malevitch, Calder, Mondrian, Pevsner, Van Doesburg, Walter

    Gropius, Max Bill e a Escola de Ulm e suas teorias passam a ser divulgados no

    Brasil, ora por meio de artigos publicados nos principais jornais de So Paulo e do

    Rio de Janeiro, ora por intermdio de exposies e bienais e dos prprios artistas

    plsticos brasileiros (caso de Mary Vieira e Almir Mavignier), que promoveram um

    intercmbio cultural com o exterior, estudando e expondo nos grandes centros:

    Alemanha (Escola de Ulm), Sua e Frana. Segundo Ferreira Gullar, foi a partir da

    I Bienal de So Paulo, em 1951, com a participao de Max Bill, que os jovens

    artistas se entregaram s experincias no campo da linguagem geomtrica.28

    Ronaldo Brito, porm, observa que a formao mais ou menos simultnea,

    no campo das chamadas artes visuais, de uma vanguarda de linguagem geomtrica

    no Rio de Janeiro e em So Paulo, no incio dos anos 50, obedecia a razes sem

    dvida mais significativas do que simplesmente o entusiasmo por recentes

    exposies de Max Bill, Calder ou Mondrian. O que contou foram as presses

    estruturais que os nossos artistas e intelectuais, como membros de classe mdia,

    sofreram nesse sentido. Qualquer projeto de vanguarda sempre um esforo para

    compreender e evoluir com uma situao.29

    Enquanto nesse mesmo perodo o informalismo comeava a predominar na

    Europa e nos Estados Unidos, o Brasil e a Argentina retomavam a tradio

    construtiva como projeto de vanguarda. Malevitch, Mondrian e Max Bill, que

    lanaram seus manifestos e movimentos (Suprematismo, De Stijl e Arte Concreta,

    respectivamente) nas primeiras dcadas do sculo XX, s foram assimilados pelas

    artes plsticas brasileiras na dcada de 1950. Deve-se lembrar, porm, que essa

    tradio construtiva tinha na Arte concreta, lanada por Max Bill em 1936, sua

    principal representante internacional e a ltima das formulaes construtivas

    importantes da primeira metade do sculo. Ronaldo Brito lembra que a arte concreta

    de Max Bill pretendia operar duas transformaes/continuaes bsicas: a

    incorporao radical de processos matemticos produo artstica levando s

    28 Arte concreta. In: Projeto construtivo brasileiro na arte, cit., p.107.

    13

    29 Vanguardas construtivas no Brasil. In: Neoconcretismo: vrtice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. Rio de Janeiro, Funarte/ Instituto Nacional de Belas Artes, 1985, p.30.

  • ltimas conseqncias as idias de um Vantongerloo, por exemplo e o

    estabelecimento, com suportes mais firmes, do projeto construtivo de integrao da

    arte na sociedade industrial, resultando na abertura da Escola de Ulm (Escola

    Superior da Forma) em 1951.30

    No Brasil, desde a dcada de 1930, as ideologias construtivas foram

    introduzidas e primeiro assimiladas pela moderna arquitetura brasileira que

    precedeu o concretismo e o neoconcretismo. Antes da Escola de Ulm, a Bauhaus,

    em 1919, j apresentava o racionalismo formalista como uma de suas principais

    correntes e evidenciava a necessidade de inserir a arquitetura num ntimo dilogo

    com a sociedade e com a nova orientao tcnico-industrial. A idia de Walter

    Gropius era desenvolver uma arquitetura social, que conjugasse as necessidades

    do indivduo com as da coletividade; da o carter funcional ser o lema da nova

    arquitetura, em que a idia era unir o til ao belo.

    Seguindo as idias da Bauhaus, Le Corbusier, um dos principais cones da

    arquitetura moderna, tornou-se o mestre dos grandes arquitetos brasileiros entre

    eles Lcio Costa e Oscar Niemeyer. O demasiado abstracionismo programtico

    estava na base das teorizaes de Le Corbusier. Outra idia do arquiteto era a de

    realizar a synthse des arts majeurs, ou seja, reunir as trs artes visuais (pintura,

    escultura e arquitetura) na elaborao de um projeto com a interveno de diversos

    artistas. Essas e outras idias passam a ser divulgadas pelo prprio Le Corbusier, em

    sua visita ao Brasil em 1929, em conferncias no Rio e em So Paulo. Dez anos

    depois, Le Corbusier realizou no Rio o que chamou de sntese das artes: iniciou a

    construo do prdio do Ministrio de Educao e Cultura em parceria com Lcio

    Costa, Oscar Niemeyer e outros arquitetos, integrando construo o paisagismo de

    Burle Marx, a pintura de Portinari e a escultura de Bruno Giorgi.

    No Brasil, a adeso s idias da Nova Arquitetura ocorreu imediatamente.

    Sob a direo de Lcio Costa, alguns jovens arquitetos, insatisfeitos com o ensino

    acadmico oficial, passam a estudar as obras de Gropius e principalmente as de Le

    Corbusier. Segundo Mrio Pedrosa, a inspirao doutrinria do grupo Lcio

    1430 Idem, p.33.

  • Costa, Oscar Niemeyer, Carlos Leo, Jorge Moreira, Afonso Reidy e Ernani

    Vasconcellos vinha das idias de Le Corbusier. Seu dogmatismo terico de ento

    se alicerava em um sentimento muito moderno: a f nas virtualidades democrticas

    da produo em massa. Esta disciplina terica lhes permitiu, quando se apresentou a

    oportunidade, pr em prtica suas idias.31

    A prtica quase imediata das idias revolucionrias de Le Corbusier no Brasil

    de 1930 era, no mnimo, paradoxal. Num pas de passado colonial, atrasado, situado

    nos confins da expanso capitalista, em que quase tudo veio de fora, tanto o escravo

    como o senhor, o importante era criar algo novo, voltar-se para o futuro,

    modernizar-se. A oficializao progressiva dessa arquitetura, que revelava o gosto

    pelo suntuoso e pela riqueza, impressionava os responsveis pela ditadura, que a

    apoiava como uma forma de autopropaganda e exibio de fora dos governantes.

    Por um lado, essa arquitetura permitiu uma aparente modernizao brasileira,

    ainda que forada e imposta s populaes brasileiras que permaneceram exteriores

    aos projetos dessa modernizao, s participando deles como massa de manobras

    populistas, ou seja, como populao subordinada e explorada, excluda por

    definio das grandes questes da arte. Por outro, permitiu aos jovens artistas

    realizar os ideais democrticos e sociais implcitos nos princpios racionais e

    funcionalistas do Movimento Moderno.32

    Algo semelhante pode-se notar durante a dcada de 1950 com o governo

    Juscelino Kubitschek e a construo de Braslia. O desenvolvimentismo, modelo

    econmico adotado por Kubitschek que foi articulado a um certo nacionalismo, no

    fundo nem era nacionalista nem criava um desenvolvimento capitalista, pois o

    desejo de fazer o pas crescer de forma extraordinariamente rpida obrigou o

    presidente a apelar maciamente ao capital estrangeiro e aos emprstimos externos,

    aumentando a dvida externa. Desse modo, o nacionalismo foi estranhssimo,

    baseado no capital estrangeiro e na tecnologia importada. Pode-se dizer que, no

    plano econmico, houve mais crescimento do que desenvolvimento.

    31 Introduo arquitetura brasileira. In: PEDROSA, Mrio. Acadmicos e modernos: textos escolhidos III. So Paulo, Edusp, 1998, p.386.

    1532 Citao de Mrio Pedrosa por Otlia Arantes, in Mrio Pedrosa: itinerrio crtico, cit., p.86.

  • importante destacar, no entanto, que a ideologia desenvolvimentista,

    segundo Maria Victoria Benevides, tinha sobre o nacionalismo vantagens que o

    tornaram mais atraente, tanto do ponto de vista puramente ideolgico, quanto em

    termos pragmticos. (...) Isso porque: para a burguesia industrial em expanso o

    desenvolvimentismo, ao contrrio do nacionalismo getulista, evitava a nfase na

    interveno estatal na economia; para a classe trabalhadora, se o nacionalismo era

    uma abstrao, o desenvolvimentismo era concreto: a classe mobilizada atravs

    do exerccio do trabalho pela crena num futuro melhor pelos frutos do

    desenvolvimento (...).33

    A tentativa de realizar na prtica a ideologia nacionalista-desenvolvimentista

    ocorreu com a elaborao e execuo do Plano de Metas, um plano de ao

    econmica em grande escala que apresentou maiores resultados nos setores de

    energia, indstria, transportes e quase nenhum resultado significativo na educao e

    no setor agrcola. No entanto, a meta-smbolo do governo foi a construo de

    Braslia. A nova capital pareceu repetir, s que em grandes propores, a

    modernizao forada vista nos anos 1930 com a prtica da Nova Arquitetura de Le

    Corbusier. Projetada em 1956 por Lcio Costa (que apresentou seu plano-piloto da

    nova cidade), Braslia sintetizaria as duas ideologias presentes nessa poca: o

    desenvolvimentismo e o projeto construtivo. No ensaio Reflexes em torno da

    nova capital, Mrio Pedrosa, recorrendo ao conceito de Worringer de civilizao-

    osis, observa que Braslia seria mais um transplante artificial, entre vrios que

    ocorreram durante o processo de colonizao:

    No paradoxal destinar-se tal colnia de fabricao ultramoderna a ser a cabea

    dirigente do pas, a sede de seu governo? Instalar-se-ia assim o centro poltico-

    administrativo do Brasil de novo num osis, isto , numa colnia de ocupao afastada das

    reas onde se desenvolve o processo vital de crescente identificao entre sua histria

    natural e sua histria cultural e poltica.

    16

    33 Entre as vantagens elencadas pela autora, citaram-se algumas. Cf. O papel da ideologia desenvolvimentista. In: O governo Kubitschek: desenvolvimento econmico e estabilidade poltica (1956-1961). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p.240.

  • Fatalmente isolado do povo brasileiro, o seu governo desconhecer, no participar

    seno de fora do drama de seu crescimento, do amadurecimento de sua cultura, da

    formao de sua personalidade. Braslia seria uma espcie de casamata impermevel aos

    rudos externos, aos choques de opinio (...)

    Eis por que o programa de Braslia, no seu imediatismo, tem algo de imaturo e, ao

    mesmo tempo, de anacrnico.34

    A citao longa, mas revela os velhos problemas da modernizao

    conservadora: de um lado, as camadas dominantes ultramodernas; de outro, a

    multido de despossudos. Enfim, era esperado que a noo de desenvolvimento

    veiculada pela propaganda presidencial no pudesse ocultar que os xitos

    conseguidos com o Plano de Metas e a industrializao forada estavam associados

    ao aumento das desigualdades sociais, das disparidades regionais e dos bolses de

    misria.35

    Enquanto Braslia representou a construo maior, coletiva, funcional e, por

    isso mesmo, uma obra de arte total, uma sntese das artes, como pensou Mrio

    Pedrosa, por ser o exemplo mais completo e oxal o mais feliz de uma totalidade

    social, cultural e artstica que contm em si mesma,36 So Paulo, nesse tempo, j

    concentrava boa parte das indstrias brasileiras e tornou o pas um pouco mais

    moderno.

    Pode-se dizer que em 1956 havia um clima favorvel ao surgimento da I

    Exposio Nacional de Arte Concreta no MAM de So Paulo, com a infiltrao das

    ideologias construtivas (Max Bill, Le Corbusier, Niemeyer) e da ideologia

    desenvolvimentista (governo Kubitschek). Nas artes plsticas foi um momento de

    reestruturar as linguagens, de atualiz-las com o mundo internacional das artes

    visuais. Passou-se do campo da criao para o da inveno das formas, rompendo os

    esquemas convencionais de percepo e de sintaxe. Frente ao esquema tradicional,

    34 In: Acadmicos e modernos: textos escolhidos III, cit., p.391-392. 35 Cf. MARANHO, Ricardo. O Plano de Metas e o grande capital. In: O governo Juscelino Kubistchek. So Paulo, Brasiliense, 1994, p.66-67. 36 Citado por Otlia Arantes, in Braslia: sntese das artes (Mrio Pedrosa: itinerrio crtico, cit., p.130).

    17

  • a arte concreta coloca-se de modo anlogo ao da poesia concreta diante do velho

    alicerce formal e silogstico-discursivo da potica convencional e discursiva. Em

    ambos os casos, a questo romper um esquema formal dominante e todo o sistema

    de significaes dele necessariamente solidrio.37

    A arte concreta surge como proposta de radicalizao do mtodo construtivo

    no interior das linguagens geomtricas. O concretismo brasileiro elimina o puro

    intuicionismo, a transcendncia e, operando com uma racionalidade esttica, prope

    o artista informador. H uma nsia de superar o atraso tecnolgico e o

    irracionalismo decorrente do subdesenvolvimento.

    A poesia concreta, em estreito convvio com a arte concreta, torna-se tambm

    uma vertente do projeto construtivo. Pode-se, por exemplo, comparar o plano-piloto

    da poesia concreta com o de Braslia: o esforo de produzir uma obra de arte total,

    ultramoderna, funcional, artificial, com o rigor matemtico da nova arquitetura de

    Lcio Costa e Niemeyer, trazida por Le Corbusier, e a produo esquemtica da

    poesia concreta com sua valorizao do espao. O smbolo do poder e da autoridade

    representado por Braslia, sede do governo, corresponde ao discurso autoritrio e

    dogmtico presente nos manifestos de Augusto e Haroldo de Campos e Dcio

    Pignatari. Uma vista area da nova capital, com sua organizao planejada e

    calculada dos prdios nos espaos, j faria lembrar um poema concreto, com suas

    palavras rigorosamente distribudas no papel em branco.

    Acusados pelos seus opositores, os poetas e artistas concretos do Rio, de

    adotarem um racionalismo excessivo e ignorarem os problemas sociais, os poetas

    concretos de So Paulo procuraram fazer do concretismo uma imitao do modelo

    nacionalista-desenvolvimentista de Kubitschek: no plano poltico-econmico, o

    capital estrangeiro financiava o desenvolvimento do pas; no plano artstico, a

    importao de modelos como Max Bill, Le Corbusier, Mondrian, Norbert Wiener,

    Gestalt etc. desempenhava o mesmo papel. Isso tambm no deixava de ser uma

    retomada da teoria antropofgica de Oswald de Andrade, como observou Ronaldo

    Brito:

    1837 Cf. BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vrtice e ruptura do projeto construtivo brasileiro, cit., p.36.

  • Mas fcil perceber igualmente que, com sua afirmao dos valores da

    modernidade, e com sua progressista recusa de assumir uma mtica nacionalista, essa

    produo nem por isso dissimulava uma defasagem cultural tipicamente subdesenvolvida:

    ela parecia ignorar as verdadeiras condies sociais em que emergia e dizia bem menos

    respeito nossa realidade cultural mais ampla do que s afetaes e pretenses de um

    grupo vanguardista de classe mdia. Apesar de lances importantes como a retomada de

    Oswald de Andrade e sua teoria antropofgica; apesar da proposta de criao de um

    barroco industrial, atendendo s disposies especficas da realidade brasileira, o

    Concretismo no foi capaz de pensar sistematicamente a razo poltica de sua prtica e

    justificar a sua insero no nosso ambiente cultural.38

    Deve-se lembrar, entretanto, que em 1959 o concretismo carioca assume

    oficialmente uma posio contrria dos artistas concretos paulistas: se os ltimos

    esto preocupados com a industrializao, os mass media, as teorias racionalistas,

    os processos semiticos, o primeiro, j definido nesse momento como

    neoconcretismo, como vrtice e ruptura da tradio construtiva brasileira, na

    expresso de Ronaldo Brito, rejeita o racionalismo, retoma elementos da ideologia

    romntica e assume uma concepo empirista do trabalho de arte, suas significaes

    sociais e humanas. importante ressaltar que as caractersticas apresentadas at

    agora do concretismo e o neoconcretismo, principalmente no campo das artes

    plsticas, vo se refletir na poesia tambm.

    Outra diferena observada entre os dois movimentos nas artes plsticas o

    uso da cor. Enquanto o paulista Waldemar Cordeiro defende o uso intelectual do

    branco/preto, os artistas cariocas defendem o uso emocional da cor. Essa posio

    anloga na poesia: os poetas concretos dispem de uma aplicao racional da

    palavra que reduzida a um objeto-coisa; os poetas neoconcretos imprimem

    palavra um uso vivencial, orgnico.

    Enquanto o concretismo e o neoconcretismo (nas artes plsticas e na poesia),

    com suas teorias e prticas, provocaram polmica no campo das artes nos anos

    1950, a dcada seguinte deu novos rumos a essas vanguardas. A euforia provocada

    1938 Idem, p.44.

  • com a industrializao e certa prosperidade durante o governo Juscelino

    Kubitschek (1956-1960) no se estendeu aos anos 1960. A industrializao era

    destinada a um mercado restrito e de alto poder aquisitivo (representado por uma

    burguesia nacional e multinacional), o que provocou uma acentuada concentrao

    de renda, baixos salrios, desequilbrios regionais, enfim, srios problemas que

    impulsionaram a classe trabalhadora urbana e rural formao de movimentos

    reivindicatrios com feies polticas no incio da dcada de 1960. Nesse momento,

    a Doutrina de Segurana Nacional, elaborada na dcada anterior pela Escola

    Superior de Guerra, tornou-se um ponto de convergncia ideolgica e a ESG um

    ponto de encontro entre setores militares e os novos setores burgueses; grupos que

    aprofundaram e acirraram internamente a polarizao esquerda versus direita que

    funcionou como estratgia para desalojar do poder os grupos populistas.39

    Num sentido inverso ao do governo Kubitschek, Joo Goulart procurou

    estimular a indstria e os setores agrrios produtores de bens bsicos para o

    mercado interno, reduzir as desigualdades regionais e o analfabetismo e controlar a

    inflao. A proposta nacional-reformista de Goulart era vista pela esquerda como a

    realizao de uma das etapas da revoluo. Ao mesmo tempo em que apoiava o

    governo, pressionava-o para ver as promessas cumpridas.

    importante destacar que houve uma intensa mobilizao social nesse

    perodo, como aquela da UNE (Unio Nacional dos Estudantes) que assume uma

    posio social, a qual teve um desempenho importante na rea da cultura popular

    com o CPC (Centro Popular de Cultura), criado em 1961. Esse movimento, em

    oposio s vanguardas artsticas formalistas dos anos 1950, atuou em vrias

    partes do pas, promovendo atividades literrias, musicais, teatrais e plsticas.

    Preocupando-se com o lugar social do artista, que deveria assumir uma misso

    salvadora, o CPC voltou-se para as temticas populares que funcionavam como

    propaganda poltica; logo, negava qualquer experimentao na linha do concretismo

    ou do neoconcretismo.

    20

    39 Cf. PAES, Maria Helena Simes. A dcada de 60: rebeldia, contestao e represso poltica. So Paulo, tica, 1997, p.33-34.

  • Pode-se dizer que, enquanto nos anos 1950 as artes vanguardistas seguem,

    preponderantemente, o caminho da construo, da internacionalizao, no incio

    da dcada seguinte muitos artistas de esquerda voltam-se para a participao, o

    nacional, o popular. Algumas vanguardas formalistas, como o concretismo,

    especialmente a poesia concreta, tentam adaptar-se nova situao, produzindo

    alguns poucos textos tericos e poemas que esbarram na questo nacional e social.

    Sentindo-se impossibilitado de fazer uma vanguarda essencialmente formalista,

    Ferreira Gullar deixa o neoconcretismo em 1961 e alia-se ao CPC.

    Dissolvido o neoconcretismo, como movimento organizado, dotado de

    propostas tericas, o comportamento experimental continuou presente nas

    manifestaes de vanguarda posteriores, como a Instaurao Praxis, de Mrio

    Chamie, que vai tomar lugar do movimento neoconcreto nas polmicas com o

    concretismo e os seus principais inventores. Praxis, movimento que se manifesta

    principalmente na literatura, ainda na linha formalista, tenta integrar a

    experimentao formal com a participao, como um meio-termo entre concretismo

    e CPC.

    Mas o que era puro esprito de renovao nos anos 1950, com as poesias

    concreta e neoconcreta, era na dcada seguinte o impasse maior de criar uma poesia

    moderna participante, que estivesse atualizada no somente com a industrializao,

    mas tambm com as questes sociais:

    Da comparao, embora aproximativa, derivaria a impresso de que os anos 50

    caracterizavam-se pela montagem (ou, no mnimo, reforo) de tendncias ideolgicas

    nacionalistas que vinham se plasmando em ressonncia a processos polticos e sociais

    marcados pelo desenvolvimento econmico e pela criao de condies para uma possvel

    revoluo burguesa. A superao do subdesenvolvimento o termo ganhou concreo

    nessa dcada transformou-se em alvo difuso a ser atingido pelas foras vivas da Nao:

    de periferia dever-se-ia atingir, de maneira planejada, a condio de centro, para

    retomar vocabulrio caro aos nacionalistas. Nos anos 60, sobretudo na segunda metade, o

    que se verifica a inviabilidade da frmula, ocorrendo crticas e revises radicais.

    Observadas em conjunto as duas dcadas, dir-se-ia que a primeira de consolidao de um

    sistema ideolgico (com suas mltiplas vertentes, por vezes, diretamente, interligadas:

    21

  • neocapitalista, liberal, nacionalista, sindicalista, desenvolvimentista, marxista); ao passo

    que a segunda dcada, vista globalmente, aparece antes como de desintegrao desse

    sistema ideolgico, apresentando vertentes em que houve rupturas radicais, dando origem a

    novas constelaes de difcil avaliao ().40

    Se na viso global de Carlos Guilherme Mota a dcada de 1960 apresentou

    uma desintegrao do sistema ideolgico visto na dcada anterior, especificamente

    no plano dos movimentos de vanguarda potica, a presena da questo nacional

    fundamental para se equacionar uma perspectiva que viabilize a criao de um

    futuro. Muitas vezes, a discusso entre os poetas concretistas e os setores ditos

    nacionalistas apresentada como se os primeiros fossem realmente os crticos da

    questo nacional, abraando a causa da internacionalizao. Esquece-se, porm, que

    a prpria idia de vanguarda construtiva e planificada encerra em si a noo de

    projeto, no sentido de planificao que antecede todo um movimento cultural: como

    este Plano Piloto da Poesia de Dcio Pignatari, que nos lembra tanto as exigncias

    da poca, a construo de Braslia e seu Plano Piloto.41

    Por fim, em 1967, em plena ditadura militar e j um pouco fora de situao e

    com pouco flego, surge o poema-processo que, se por um lado, radicaliza as

    principais idias da poesia concreta, por outro, retoma muitas experimentaes do

    cubismo e do futurismo.

    1.2.2. Vanguardas poticas e situao literria

    No campo literrio, em 1950, a chamada gerao de 45 era representante

    do academicismo artstico, com suas recuperaes neoparnasianas e neo-

    simbolistas. Em oposio ao arcasmo dessa gerao, a poesia concreta surgiu como

    representante do industrialismo, do desenvolvimentismo. Se, por um lado, a poesia

    40 Cf. MOTA, Carlos Guilherme. Nacionalismo, desenvolvimento, radicalismo: novas linhas da produo cultural. In: Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). So Paulo, tica, 1980, p.155-156.

    2241 Cf. ORTIZ, Renato. A moderna tradio brasileira. So Paulo, Brasiliense, 1988, p.109.

  • concreta rompeu com os poetas de 1945, por outro, fez de Joo Cabral de Melo

    Neto uma das referncias para suas invenes. Na linhagem de Murilo Mendes e

    Carlos Drummond de Andrade, Joo Cabral produziu uma linguagem direta,

    objetiva, econmica, antilrica, algumas vezes geomtrica, caractersticas que

    levaram o nome do poeta para o elenco do paideuma concreto. Essas renovaes, no

    entanto, no eram suficientes para a produo de uma nova poesia. Foi preciso

    atualizar-se com o que estava ainda iniciando no Brasil: os mass media, as noes

    da ciberntica e da teoria da informao, a propaganda, a indstria, o objeto de

    consumo.

    Para Antonio Candido, uma das fontes da poesia de vanguarda brasileira da

    segunda metade do sculo XX o modernismo dos anos 1920, com a esttica do

    fragmento, as intenes antilricas e um certo gosto pela desarticulao do poema.

    Com isto, instauraram um ar de jogo combinatrio, de experincia calculada e de

    projeto mental que contrastava com a expresso dominante no decnio de 50, a da

    chamada gerao de 45, formada por poetas inclinados ao mistrio, ao

    sentimentalismo, a um certo pattico, embora entre eles se inclua um

    completamente diferente, Joo Cabral de Melo Neto, precursor da vanguarda

    atual.42 Mas ressalta:

    Estas tendncias, seguidas por poetas que so quase todos tambm crticos, so

    cheias de interesse e de nimo renovador; mas podem comprometer a poesia e,

    implicitamente, a prpria concepo de literatura. Lendo-os, sentimos s vezes como pode

    ficar tnue, quase impalpvel, a fronteira entre poesia e piada, trocadilho, jogo gratuito,

    associao livre, charada, caricatura, propaganda, representao visual.43

    Antonio Candido declara ainda que, mesmo reservadas as diferenas entre as

    experincias poticas do concretismo, neoconcretismo, praxis e outras tendncias:

    Forando bastante, seria possvel tentar caracterizar estas correntes, por vezes

    inimigas entre si, pelo seguinte resumo: supresso dos nexos sintticos e conseqente

    42 CANDIDO, Antonio.A literatura brasileira em 1972. Arte em Revista, ano 1, n.1, p. 22, jan./mar. 1979.

    2343 Idem, p.22.

  • descontinuidade do discurso: substituio da ordem temporal, no linear: substituio da

    metfora pela paronomsia.44

    Em Joo Cabral de Melo Neto, a preocupao de produzir uma poesia

    atualizada com a poca apontada na tese apresentada ao Congresso de Poesia de

    So Paulo, em 1954,45 que defende a idia de que a crise da poesia em nosso tempo

    decorre, principalmente, do desajuste da forma moderna e individualista do poema

    aos meios de comunicao prprios da poca.

    A tese de Joo Cabral parece prever o que ser apresentado oficialmente em

    1956 pelo grupo Noigandres, o mesmo criador da poesia concreta: uma poesia que

    rompe com a gerao individualista de 45, com o verso, valorizando as novas

    tcnicas jornalsticas, a teoria da informao, a ciberntica, a segunda revoluo

    industrial etc.

    interessante notar que a poesia concreta, efetivamente a que mais teve

    atuao e alguma eficcia prtica, previa nos seus manifestos e textos crticos uma

    tcnica do escndalo, ou seja, a interveno nos circuitos letrados da crtica literria,

    principalmente, desqualificando modos de conceber e fazer poesia e, para isso,

    afirmando os autores vanguardistas como arautos do novo, os primitivos de uma

    nova era. H no discurso da teoria da poesia concreta um eu autoral que

    imperial, pleno de certeza, autoritrio e mitolgico, principalmente pela

    disseminao de nomes de filsofos, artistas, semiticos, lingistas etc. agrupados

    por justaposio, o que apaga justamente a particularidade histrico-ideolgica de

    cada um dos sistemas tericos ou regimes artsticos que so citados.

    Isso produzia, por um lado, o que Wilson Martins definiu muito bem:

    O paradoxo da poesia moderna (digamos, do Modernismo ao Concretismo) est em

    que a sua importncia independe e transcende de seu eventual sucesso esttico. Quero dizer

    com isso que, realizando-se, em grande parte, por meio de obras falhadas ou discutveis,

    ela criou uma situao literria depois da qual a poesia nunca mais seria a mesma (...).46

    44 Idem, ibidem. 45 Da funo moderna da poesia. In: Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, p.767.

    2446 Destinos da poesia. O Estado de S. Paulo, 18 jun. 1966. Suplemento Literrio, p.2.

  • No papel de crticos, os poetas concretos Augusto e Haroldo de Campos e

    Dcio Pignatari renovavam as referncias, obrigando os interessados em arte a

    pensar em novas possibilidades tericas. Tambm usavam os nomes dos autores

    com a preocupao de demonstrar um saber que os fazia melhores, como se

    ningum os conhecesse.

    Ao observar os textos crticos, nota-se que a poesia concreta incidia

    criticamente em vrios pontos fundamentais, que devem ser destacados: a) o da

    prtica e consumo de poesia escrita com verso, metrificado ou livre; b) o da crtica

    contempornea de poesia, adepta ou no da poesia moderna ou modernista; c) o da

    historiografia literria e da luta pela autoridade cannica, ou seja, a disputa pelo

    poder de determinar quem quem na literatura e tambm determinar de que modo

    deve ser lida.

    Quanto poesia, os poetas concretos decretavam o encerramento do ciclo

    histrico do verso. Essa afirmao postula um desenvolvimento retilneo e evolutivo

    das artes, pressupondo que elas se superam no tempo. O prprio pressuposto

    discutvel, pois afirma uma teleologia, um finalismo ou um ponto do futuro ainda

    no realizado, mas de onde vem o sentido dessa superao, sem suficiente base

    terica e principalmente emprica. Ainda sobre a poesia, ao mesmo tempo em que

    declaram o encerramento do ciclo histrico do verso, os concretos propem noes

    como no-linear, descontnuo, simultneo, espao, que so transpostas das

    artes plsticas, da matemtica e da teoria da informao.

    No caso da crtica, importante observar que, nos anos 1950, havia,

    principalmente nos suplementos literrios, pelo menos trs correntes: o velho

    impressionismo baseado nas livres associaes psicolgicas dos intrpretes, como

    Srgio Milliet; a crtica sociolgica do grupo de Antonio Candido, da revista Clima,

    dos anos 1940; e um incio de new criticism norte-americano, trazido para o Brasil

    principalmente por Afrnio Coutinho. O ncleo de todas essas crticas era a

    representao, que no era posta em questo, pois a literatura era lida como

    expresso do drama humano ou como reflexo de contradies sociais. O new

    criticism propunha a anlise imanente das formas literrias e as questes de tcnica

    25

  • do verso ou tcnica narrativa. Enfim, nada de novo, no sentido vanguardista. A

    nova crtica era para a crtica o que a poesia concretista estava sendo, no mesmo

    momento, para a poesia, isto , uma teoria brilhante com demonstraes

    decepcionantes no campo das aplicaes prticas, onde o pluralismo metodolgico

    aparecia como um contraponto sugestivo.47

    Por ltimo, a questo da histria literria e do cnone. Os poetas concretos

    inventam sua tradio do novo, por isso descartam tudo que no interessa ao seu

    presente de produo. No caso, com um enunciado escandalosamente nacionalista

    arte de exportao os concretistas propunham o internacionalismo em arte que

    era o up-to-date da desconstruo em poesia: Mallarm (mas no Rimbaud), Pound

    (mas no T. S. Eliot) e Joyce (mas no Kafka ou Proust). A escolha de autores

    nitidamente anti-realistas, que deram importncia s questes formais, tambm

    indica a oposio ao modelo de histria literria ainda dominante, que vem do

    romantismo, que entende a literatura como representao da cultura nacional e

    pressupe, para isso, a expresso, a representao, o realismo, a realidade nacional

    etc.

    Vistos assim, os poetas concretos, alm de promoverem uma nova situao

    literria e um domnio dessa situao sobre as demais vanguardas poticas (tiveram

    a vantagem de inaugurar o segundo ciclo vanguardista no contexto da modernidade

    literria brasileira), tambm expressaram a possibilidade de modernizao e

    progresso tecnolgico e industrial, atualizando suas experimentaes formais com

    as pesquisas mais recentes da tecnologia e da cincia.

    Mesmo coincidindo com as idias de modernizao e com a promessa de

    futuro melhor, divulgadas pela poltica econmica do governo Kubitschek, os textos

    tericos e programticos do grupo concreto, at o final dos anos 1950, no fazem

    referncias circunstncia histrica imediata, mas direcionam-se para o culto

    excessivo dos avanos e grandes conquistas cientficas e tecnolgicas ainda to

    distantes do cenrio cultural brasileiro.48

    47 Cf. MARTINS, Wilson. A crtica literria no Brasil (1940-1981). Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983, v.II.

    2648 Cf. SIMON, Iumna Maria, art. cit., p. 342.

  • No h como negar a posio privilegiada e decisiva do grupo Noigandres no

    sistema literrio, como observaram vrios crticos.49 A atuao do grupo instaurou

    um paradigma para a poesia contempornea. Contrariando a prpria noo de

    vanguarda esttica, que rompe com os cnones, inaugura uma nova tradio no

    Brasil, a da poesia visual.50

    De acordo com Iumna Maria Simon, o modelo instaurado pelos poetas

    concretos, que serviu de matriz para os demais movimentos, pressupe uma

    produo que trabalhe com as seguintes questes: a conscincia utilitria; a abertura

    da poesia cultura dos meios de comunicao; a mudana do espao de fruio do

    poema; a mudana da relao sujeito/objeto; a necessidade de construir um

    paideuma; a concepo de uma historiografia prpria, na qual se inclui a reviso

    da literatura brasileira, com base na eficincia de certos procedimentos; a crise do

    verso; e a antidiscursividade.51

    Se o grupo Noigandres exerceu um papel crtico sobre o sistema literrio j

    ineficaz e desgastado para a nova poesia de vanguarda, neoconcretismo e praxis, se

    no trouxeram tantas novidades e alcance crtico quanto a poesia concreta,

    cumpriram bem o papel de crticos dessa vanguarda. O neoconcretismo combate o

    que ele considera o racionalismo excessivo dos concretistas e pretende devolver

    palavra sua totalidade transcendente, seu valor subjetivo e social. Praxis, j

    inserida no contexto do nacional-popular dos anos 1960, denomina concretismo e

    neoconcretismo de vanguarda velha que, se parece uma designao contraditria,

    no deixa de ser verdadeira, pois esses primeiros movimentos, apegados ideologia

    construtiva mais presente nos anos 1950, envelheceram diante da nova situao

    discutida nos anos 1960. Praxis, apesar de se utilizar de muitos procedimentos

    construtivistas semelhantes aos dos concretos, introduz a noo de rea de

    levantamento, a qual prope uma valorizao de uma situao social que, totalizada,

    49 Cf. Wilson Martins (nota 44). Entre os crticos mais recentes esto: Iumna Maria Simon (art. cit.) e Paulo Franchetti (Alguns aspectos da teoria da poesia concreta, Campinas, Editora da Unicamp, 1989). 50 Cf. MENEZES, Philadelpho. A trajetria visual da poesia de vanguarda brasileira. Dissertao de mestrado apresentada PUC-SP. So Paulo, 1987, 158p. Seguindo a direo da crtica formalista, o autor faz uma anlise semitica da poesia visual brasileira, partindo da poesia concreta como matriz dos demais movimentos: neoconcretismo e poema-processo.

    2751 Art. cit., p.346.

  • imprime uma tendncia participante, como instrumento de transformao da

    realidade brasileira. Talvez a denominao vanguarda nova, como se

    autodenominou praxis, seja um tanto forada nesse momento em que o prprio

    termo vanguarda j se encontra desgastado.

    O poema-processo rompe com a histria literria, dispensa a palavra e, em

    seu lugar, enfatiza a importncia dos signos no-verbais. Prope uma radicalizao

    superficial dos movimentos anteriores: retoma o poema-cdigo ou semitico da

    poesia concreta e introduz a idia de processo, que promove certo dinamismo ao

    poema. Com base em um poema-matriz, proposta a inveno de sries que fazem

    do leitor um co-autor. Se o poema-processo procurou espantar pela radicalidade,

    rompendo com o passado, espantou tambm pela superficialidade ao reintroduzir

    procedimentos tcnicos bsicos das vanguardas anteriores: ao propor uma dinmica

    nas estruturas, muito prximas da ltima fase da poesia concreta, retoma tambm os

    procedimentos futuristas e cubistas.

    Para que se tenha uma noo mais clara das questes levantadas at aqui, na

    prxima parte desta dissertao feita uma leitura dos principais textos tericos e

    programticos e so comentados alguns poemas significativos de cada movimento

    da poesia de vanguarda brasileira.

    28

  • 2. DA POESIA CONCRETA AO POEMA-PROCESSO

    Marinetti, Acadmico L chegam todos, l chegam todos... Qualquer dia, salvo, venda, chego eu tambm... Se nascem, afinal, todos para isso... No tenho remdio seno morrer antes, No tenho remdio seno escalar o Grande Muro... Se fico c, prendem-me para ser social... L chegam todos, porque nasceram para Isso, E s se chega ao Isso para que se nasceu... L chegam todos... Marinetti, acadmico... As Musas vingaram-se com focos eltricos, meu velho, Puseram-te por fim na ribalta da cave velha, E a tua dinmica, sempre um bocado italiana, f-f-f-f-f-f-f-f... lvaro de Campos (1969, 415)

    2.1. Poesia concreta

    Du sagst nichts und verrtst nichts, o Ulysses, aber Du wirkst.

    Carl Gustav Jung

    Para traar a trajetria da poesia concreta, duas fontes so fundamentais:

    Teoria da poesia concreta (de Augusto e Haroldo de Campos e Dcio Pignatari) e

    Noigandres 5. A primeira rene os principais artigos (textos crticos e manifestos)

    que foram publicados em jornais como Correio Paulistano, Jornal do Brasil,

    Dirio de So Paulo, O Estado de S. Paulo e revistas Noigandres e Arquitetura

    e Decorao que circularam na poca. J a segunda, ltimo nmero da revista,

    uma antologia do grupo, do verso poesia concreta. Essas duas fontes, vale

    ressaltar, permitem uma leitura cronolgica do movimento da poesia concreta, na

    teoria e na prtica.

    29

  • Trata-se aqui de considerar e analisar os textos tericos mais expressivos

    sobre a poesia concreta, bem como os poemas mais significativos, e observar no

    processo de atualizao e transformao do objeto esttico seu distanciamento do

    conceito tradicional de poesia e, paralelamente, as contradies desse processo.

    Segundo eles, na ausncia de crticos da poca adequados para analisarem e

    discutirem a poesia concreta e os demais movimentos de vanguarda, os prprios

    poetas concretos tornaram-se crticos de suas obras, como se pode notar em alguns

    textos tericos do grupo Noigandres que trazem leituras e comentrios sobre os

    poemas.52

    Na Introduo da 2a edio de 1975 da Teoria da poesia concreta,

    Augusto de Campos observou:

    () Realmente, mais do que a teoria nos interessava ver editada a poesia sempre menos

    editvel , a poesia, que afinal o que interessa. A teoria no passa de um tacape de

    emergncia a que o poeta se v obrigado a recorrer, ante a incompetncia dos crticos, para

    abrir a cabea do pblico (a deles invulnervel).53

    Em estudo sobre a teoria da poesia concreta, Paulo Franchetti, ao analisar a

    trajetria terica do grupo Noigandres, nota a presena de pelo menos trs fases

    bem distintas: aquela em que comea a constituir o projeto potico, aquela em que

    se trata de justificar e defender o projeto e aquela em que se faz mais fraca a coeso

    do grupo.54

    Franchetti afirma, no entanto, que:

    52 o caso de Poesia concreta: pequena marcao histrico-formal, que comenta os poemas silncio, de Haroldo de Campos, o formigueiro, de Ferreira Gullar e ovonovelo, de Augusto de Campos; Poesia concreta linguagem comunicao, de Haroldo de Campos, que trata dos poemas terra e beba coca cola, ambos de Dcio Pignatari; Poesia concreta: organizao, que comenta os poemas um movimento, de Dcio Pignatari, velocidade, de Ronaldo Azeredo, e outros; A moeda concreta da fala, que traz comentrios sobre hombre hembra hambre, de Dcio Pignatari, e branco vermelho, de Haroldo de Campos; Novos Poemas Concretos, que fala sobre caviar, de Dcio Pignatari, e forma, de Jos Lino Grnewald. Todos os artigos foram publicados em Teoria da poesia concreta, organizado por Augusto e Haroldo de Campos e Dcio Pignatari (So Paulo, Brasiliense, 1987). 53 P.11.

    3054 Alguns aspectos da teoria da poesia concreta, cit., p.27.

  • uma pessoa que estivesse preocupada fundamentalmente com a produo potica do grupo

    Noigandres certamente se sentiria inclinada a encarar a produo terica de acordo com as

    vrias fases poticas do grupo: a pr-concreta, a da fenomenologia da composio, a

    da matemtica da composio, a do salto participante e a dos poemas semiticos.55 Como a finalidade desta dissertao discutir algumas contradies do

    percurso da poesia de vanguarda brasileira, faz-se necessria uma leitura dos

    principais textos tericos de cada movimento e suas prticas correspondentes;

    portanto, para estabelecer uma relao entre teoria e poesia, a tendncia seguir as

    fases da produo potica, no caso da poesia concreta.

    Tendo em vista primeiro as concepes de poesia concreta, o estudo se inicia

    com a leitura crtica da teoria, seguindo as fases da poesia. O texto que abre a

    Teoria da poesia concreta um depoimento de Dcio Pignatari, de 1950, que tenta

    descrever como deve ser a nova poesia:

    Um poema no quer dizer isto nem aquilo, mas diz-se a si prprio, idntico a si

    mesmo e dissemelhana do autor, no sentido do mito conhecido dos mortais que foram

    amados por deusas imortais e por isso sacrificados.56

    fundamental assinalar que essa uma definio de poema que ir

    persistir nos textos tericos posteriores.

    Em Poetamenos (1955), publicado como introduo srie de poemas

    poetamenos, Augusto de Campos busca uma melodiadetimbres com palavras. O

    poeta utiliza diferentes procedimentos (a funo das cores como vozes, disposio

    espacial das palavras, a ruptura sinttica, as palavras so funcionalizadas pela

    melodia das cores57):

    como em Webern:

    uma melodia contnua deslocada de um instrumento para outro, mudando

    constantemente sua cor:

    55 Idem, ibidem. 56 Depoimento. In: Teoria da poesia concreta, cit., p.15.

    3157 Cf. MENEZES, Philadelpho, op. cit., p.13.

  • instrumentos: frase/palavra/slaba/letra(s), cujos timbres se definam p/um tema

    grfico-fontico ou ideogrmico.58

    interessante observar que essa citao de Augusto de Campos, ao valorizar

    o som e o timbre das palavras, slabas e letras, analogamente, faz lembrar o modelo

    da fonologia, a qual trabalha com fonemas que, como unidades distintivas de

    significado, no tm significao em si, mas passam a t-la quando combinados ou

    permutados com outros. A disposio dos elementos na pgina inclui o espao-

    suporte como signo, ou seja, o espao tambm significa, segundo as aberturas, as

    linhas, as distncias etc., como se pode notar no poema a seguir de Augusto de

    Campos, da srie poetamenos:

    Em Pontos periferia poesia concreta (1956),59 Augusto de Campos cita

    o termo poesia concreta pela primeira vez:

    58 Teoria da poesia concreta, cit., p. 21. A srie de poemas poetamenos de janeiro e julho de 1953 e foi publicada originalmente em Noigandres (n. 2, fev. 1955).

    32

    59 In: Teoria da poesia concreta, cit., p.23-31. preciso lembrar que esse artigo constitui a fuso, com ligeiras modificaes, dos artigos Poesia, estrutura e Poema, ideograma, publicados em 20 e 27 de maro 1955 no Dirio de So Paulo.

  • A verdade que as subdivises prismticas da Idia, de Mallarm, o mtodo

    ideogrmico de Pound, a apresentao verbivocovisual joyciana e a mmica verbal de

    Cummings convergem para um novo conceito de composio, para uma nova teoria de

    forma uma organoforma onde noes tradicionais como princpio-meio-fim, silogismo,

    verso tendem a desaparecer e ser superadas por uma organizao potico-gestaltiana,

    potico-musical, potico-ideogrmica da estrutura: POESIA CONCRETA.60

    Augusto de Campos, apesar de ainda no definir com preciso o que ser

    essa poesia concreta, diante das pesquisas sobre os rumos tomados pela literatura

    e, principalmente, pela poesia, com Mallarm, Pound e cummings , observa que os

    procedimentos adotados por esses poetas apontam para um novo conceito de

    composio, para uma nova teoria da forma.

    O termo poesia concreta novamente aparece em artigo homnimo de

    Augusto de Campos (1955):

    Em sincronizao com a terminologia adotada pelas artes visuais e, at certo ponto,

    pela msica de vanguarda (concretismo, msica concreta), diria eu que h uma poesia

    concreta. Concreta no sentido em que, postas de lado as pretenses figurativas da

    expresso (o que no quer dizer: posto margem o significado), as palavras nessa poesia

    atuam como objetos autnomos. Se, no entender de Sartre, a poesia se distingue da prosa

    pelo fato de que para esta as palavras so signos enquanto para aquela so coisas, aqui essa

    distino de ordem genrica se transporta a um estgio mais agudo e literal, eis que os

    poemas concretos caracterizar-se-iam por uma estruturao tico-sonora irreversvel e

    funcional, e, por assim dizer, geradora da idia, criando uma entidade todo-dinmica,

    verbivocovisual o termo de Joyce de palavras dcteis, moldveis, amalgamveis,

    disposio do poema.61

    O trecho bastante significativo para a anlise. O poeta observa o uso do

    termo concreto nas artes visuais e na msica (o concretismo e a msica de

    vanguarda) e, numa tentativa de atualizar-se com os novos movimentos, transfere-o

    para a poesia que est projetando. Segundo Augusto de Campos, seu uso elimina as

    pretenses figurativas, mas no o significado. Eliminada a funo de

    60 Idem, p.31.

    3361 Idem, p.40.

  • representao da palavra, o significado, obscurecido, parece transferido para uma

    mera estruturao tico-sonora irreversvel e funcional. Sendo assim, as palavras

    atuam como objetos autnomos. Essa idia, pode-se dizer, um desenvolvimento

    do que foi visto no primeiro texto de Dcio Pignatari: o poema idntico a si

    mesmo.

    Da poesia chamada pr-concreta, produzida at 1955, parte ainda

    apresentada em versos, chamam a ateno os poemas bestirio e a srie

    poetamenos, de Augusto de Campos. Os poemas apresentam uma valorizao do

    espao, uma fragmentao da palavra e uma preocupao com seu aspecto visual e

    sonoro.

    Com a I Exposio Nacional de Arte Concreta (realizada no MAM, de So

    Paulo, em dezembro de 1956, e no MAM, do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1957),

    foram publicados alguns manifestos curiosos que vo lanar a nova poesia e

    problematizar a discusso. Neste momento, vale destacar os textos de Haroldo de

    Campos e Dcio Pignatari, que so os principais dessa fase. Em Arte concreta:

    objeto e objetivo (1956), Dcio Pignatari faz um balano das pesquisas j

    realizadas e anuncia a fase polmica do grupo:

    A poesia concreta, depois de um perodo mais ou menos longo de pesquisas para

    determinar os planos de clivagem de sua mecnica interna (Mallarm, Un coup de Ds

    Pound Joyce Cummings algumas experincias dadastas e futuristas algumas

    postulaes de Apollinaire) , entra na sua fase polmica. A mostra de poesia concreta tem

    um carter quase didtico: fases da evoluo formal, passagem do verso ao ideograma, do

    ritmo linear ao ritmo espcio-temporal: novas condies para novas estruturaes da

    linguagem, esta relao de elementos verbivocovisuais como diria Joyce.62

    E mais adiante:

    Abolido o verso, a poesia concreta enfrenta muitos problemas de espao e tempo

    (movimento) que so comuns tanto s artes visuais como arquitetura, sem esquecer a

    3462 Idem, p.45.

  • msica avanada, eletrnica. Alm disso, p. ex., o ideograma, monocromo ou a cores, pode

    funcionar perfeitamente numa parede, interna ou externa.63

    Pignatari observa que, eliminado o verso, a poesia concreta pode ser

    comparada s artes visuais, pois incorpora sua estrutura o espao e o tempo. Em

    artigo posterior, Nova poesia: concreta (1956), ao propor o novo esttico,

    banaliza-o, pois desierarquiza o potico como equivalncia geral das linguagens

    o que equivale a identificar propaganda e poesia, por exemplo, propondo a poesia

    como mercadoria. Sabe-se que ela mercadoria, mas com mediaes; aqui, tudo se

    equivale:

    uma arte geral da linguagem. propaganda, imprensa, rdio, televiso, cinema. uma

    arte popular.

    a importncia do olho na comunicao mais rpida: desde os anncios luminosos

    at as histrias em quadrinhos. A necessidade do movimento. A estrutura dinmica. O

    ideograma como idia bsica.64

    Sobre o texto de Pignatari, vale notar ainda que, ao sugerir uma arte geral

    que inclua os mass media e outras linguagens, essa nova arte torna-se

    representvel, idia que o autor parece repelir ao dizer:

    a poesia concreta acaba com o smbolo, o mito. com o mistrio. o mais lcido trabalho

    intelectual para a intuio mais clara. acabar com as aluses. com os formalismos

    nirvnicos da poesia pura. a beleza ativa, no para a contemplao. (...) o poema forma e contedo de si mesmo, o poema . a idia-emoo faz parte

    integrante da forma, vice-versa, ritmo: fora relacional.65

    Outra questo do artigo sobre a qual deve-se pensar o uso da expresso

    arte popular, que parece significar de massa. Pignatari, no artigo, acredita que a

    poesia concreta, proposta como arte geral equivalente aos mass media, possa ser

    acessvel ao grande pblico. No entanto, o autor no leva em conta as contradies

    63 Idem, p.46. 64 Idem, p.47.

    3565 Idem, p.48-49.

  • das classes sociais nem o momento de uma sociedade de consumo ainda incipiente

    que s ser mais bem definida nos anos 1960 e 1970 como mercado de bens

    culturais.66 Segundo Paulo Franchetti:

    Ao que tudo indica, Pignatari fala aqui de arte popular para sugerir que a poesia

    concreta, utilizando procedimentos semelhantes aos usados nos meios de comunicao de

    massa, estaria mais apta a atingir o pblico acostumado a esses procedimentos do que a

    poesia tradicional em versos. Assim sendo, um dos sentidos da frase uma arte popular

    nesse manifesto seria: a poesia concreta trataria de tornar a arte da poesia de novo uma

    arte popular, ou seja, possuidora de um pblico significativo, acessvel como um programa

    de televiso ou uma novela de rdio.67

    Outra questo nova identificada por Franchetti nesse artigo a associao

    do ideograma televiso, aos anncios etc. Deve-se notar que nos textos anteriores,

    o ideograma era apenas um componente de uma dada tradio erudita (). Trata-se

    ento e esse ser um dos maiores problemas tericos da poesia concreta , de

    apresentar a nova poesia como uma sntese de duas formas de produo simblica

    basicamente distintas: a indstria cultural, os mass media, e a cultura erudita, a que

    pertencem os autores do paideuma concretista.68

    O texto de Pignatari, em mais uma tentativa de atualizao da poesia,

    pretende, como observou Franchetti, numa mesma arte, incorporar formas de

    produo no s distintas, mas tambm contraditrias. Ainda nesse mesmo artigo,

    Dcio Pignatari continua uma lista de procedimentos que so rapidamente

    enumerados:69

    ttica: joyce, cummings, apollinaire (como viso, no como realizao), morgenstein, kurt

    Schwitters. estratgia: mallarm, pound (junto com fenollosa, o ideograma).

    66 ORTIZ, Renato. O mercado de bens simblicos. In: op. cit., p.114. 67 Op. cit., p.56. 68 Idem, p.57.

    36

    69 Paulo Franchetti comenta: Os textos iniciais de Pignatari, junto com esse agora citado, permitem entrever algo que parece uma caracterstica digna de nota: a facilidade com que esse autor, sem muitos cuidados, traa rpidos panoramas histricos em que no se precisam lugares, causas, nem circunstncias. No presente caso, no fosse a recorrncia desse procedimento, dispensaria comentrios tanto a sua ingenuidade lingstica quanto seu pequeno vo histrico (to rude quanto impreciso) (op. cit., p.58).

  • a tcnica de manchetes e & un coup de ds&. calder e &un coup de ds&. mondrian, a

    arquitetura, e joo cabral de melo neto. joyce e o cinema, eisenstein e o ideograma,

    cummings e paul klee. webern e augusto de campos. A psicologia da gestalt.70

    A reflexo que se pode fazer sobre essas citaes, por enquanto, esta: os

    poetas concretos, ao se apropriarem de teorias e nomes representativos da cultura

    erudita, numa tentativa de inovarem mediante o desenvolvimentismo, tornaram

    ainda mais evidente a conscincia de atraso, como definiu Antonio Candido, e o

    abismo que separa o mundo desenvolvido do subdesenvolvido. No entanto, os

    poetas concretos apresentam textos que prometem inovao, ao estilo do lema 50

    anos em 5 do governo Kubitschek, como uma modernizao/atualizao rpida e

    forada, sem muita reflexo ou questionamento.

    Ao mesmo tempo em que as referncias cultura erudita nos manifestos e

    textos crticos s revelam autoridade e conhecimento de quem fala, tambm

    imprimem, imediatamente, nos discursos a marca do desenvolvimento, do

    ultramoderno. Porm, o simples fato de no haver crtica sobre o que vem de fora, o

    que j se pode notar com a enumerao rpida de nomes e teorias, como notou

    Franchetti, revela tambm a marca do subdesenvolvido, do dominado, daquele que,

    diante do novo e do desconhecido, adota-o como sua grande novidade, seja por

    consciente necessidade de atualizao, seja por oportunismo.

    Em olho por olho a olho nu (1956), Haroldo de Campos, assim como

    Dcio Pignatari em texto anterior, prope uma arte centrada no objeto:

    uma arte no q presente mas q presentifique

    o OBJETO

    uma arte inobjetiva? no

    OBJETAL

    qdo o OBJETO mentado no o OBJETO expresso, a expresso tem uma crie

    LOGO:

    falidos os meios tradicionais de ataque ao OBJETO (lngua de uso cotidiano ou de

    conveno literria)

    3770 Teoria da poesia concreta, cit., p.48-49.

  • um(a) novo (a) meio (lngua) de ataque direto

    medula desse

    OBJETO

    POESIA CONCRETA: atualizao verbivocovisual

    Do

    OBJETO virtual71

    Nessa citao, ao criticar o uso cotidiano, Haroldo de Campos parece

    esquecer-se de que, em texto anterior, Pignatari propunha uma arte popular, ou

    seja, uma arte que fosse tambm propaganda. Novamente aparece a idia de poesia

    identificada com o objeto, designado aqui como objeto virtual, isto , aquele em

    que significante e significado se equivalem quando o objeto mentado no o

    objeto expresso (ou seja, sem psicologia e anti-romantismo). Como h essa

    correspondncia, a poesia concreta, agora objeto virtual, liberto de convenes,

    igual a si mesma, poesia no espelho:

    O OBJETO mentado em suas plurifacetas: previstas ou imprevistas: veladas ou reveladas:

    num jogo de espelhos ad infinitum em q essas 3 dimenses 3 se mtuo-estimulam num

    circuito reversvel libertas dos amortecedores do idioma de comunicao habitual ou de

    convnio livresco.72

    O trecho traz alguns pontos para a discusso: o autor critica, tal como o uso

    cotidiano, o idioma de comunicao habitual. Porm, lembrando-se de que o

    habitual estatstico, ou seja, ocorre maior nmero de vezes numa determinada

    quantidade de enunciados, parece haver nas duas expresses uma concepo

    meramente estatstica. O conceito de livresco, tambm ligado ao princpio

    estatstico e teoria da informao, sugere formas j desgastadas. Ora, a questo

    que se levanta a seguinte: como podem os tericos da poesia concreta condenar o

    livresco, o uso cotidiano, o habitual, e ao mesmo tempo propor uma arte

    vinculada aos veculos de informao propaganda, televiso, rdio etc. , que

    veiculam uma quantidade ilimitada de informaes cotidianas, habituais e mesmo

    71 Idem, p.52.

    3872 Idem, ibidem.

  • livrescas, rapidamente processadas, consumidas e descartadas? Ao observar um

    poema concreto como terra, de Dcio Pignatari, nota-se que o leitor no precisa de

    grandes elucubraes para desvendar o poema. A palavra terra fragmentada e

    esgotada em suas possibilidades combinatrias. O poema