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GOMES, Marcia Regina Brand; TENÓRIO, Luciana Altmann; MEDEIROS, Cláudio M. Da propriedade coletiva à função social da propriedade. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 1, n. 1, 3º quadrimestre de 2006. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica DA PROPRIEDADE COLETIVA À FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE 1 Marcia Regina Brand Gomes 2 Luciana Altmann Tenório 3 Cláudio M. Medeiros 4 Sumário Introdiução 1Contextos históricos nos tempos de Aristóteles, Rousseau e Kant. 2 Conceito de propriedade e outros aspectos relacionados ao tema em Aristóteles, Rousseau, Kant e o atual Código Civil Brasileiro. 2.1 Conceito de propriedade em Aristóteles. 2.2Conceito de propriedade em Rousseau. 2.3 Conceito de propriedade em Kant. 2.4 Atual Código Civil Brasileiro. 3 Evolução do Conceito de Propriedade e a função social da propriedade no direito brasileiro. Conclusão. Referência das fontes citadas. Resumo O presente texto busca investigar o tema propriedade, a partir do diálogo com Aristóteles, Rousseau e Kant. O resgate da construção desse fenômeno social e jurídico faz-se por meio de recortes históricos extraídos do ambiente destas personalidades clássicas. A investigação é acompanhada de análise sucinta da temática no contexto jurídico brasileiro atual. Discorre-se sobre a evolução do conceito de propriedade, chegando-se à idéia de sua função social, própria do Estado Contemporâneo. Com base na principiologia contemporânea, a propriedade passa a ser considerada um direito-dever, dependendo sua eficácia de sua realização, a pressupor um aprofundamento do debate com a sociedade civil sobre a temática, eis que não esgotado. Palavras-chave: Propriedade. Função Social. 1 Este artigo foi escrito sob a orientação do Professor Doutor Álvaro Borges de Oliveira e revisão da Professora Doutora Daniela Cademartori, do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. 2 Mestranda em Ciência Jurídica pela Univali, advogada e professora da Faculdade Cenecista de Joinville – FCJ – Endereço eletrônico: [email protected] . 3 Mestranda do programa de Mestrado em ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Advogada em autarquia municipal e professora da Universidade da Região de Joinville. Endereço eletrônico luciana.tenó[email protected] . 4 Mestrando do programa de Mestrado em ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Advogado . Professor da Universidade da Região de Joinville. Endereço elertônico: [email protected]

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GOMES, Marcia Regina Brand; TENÓRIO, Luciana Altmann; MEDEIROS, Cláudio M. Da propriedade coletiva à função social da propriedade. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 1, n. 1, 3º quadrimestre de 2006. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica

DA PROPRIEDADE COLETIVA À FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE1

Marcia Regina Brand Gomes2

Luciana Altmann Tenório3 Cláudio M. Medeiros4

Sumário

Introdiução 1Contextos históricos nos tempos de Aristóteles, Rousseau e Kant. 2 Conceito de propriedade e outros aspectos relacionados ao tema em Aristóteles, Rousseau, Kant e o atual Código Civil Brasileiro. 2.1 Conceito de propriedade em Aristóteles. 2.2Conceito de propriedade em Rousseau. 2.3 Conceito de propriedade em Kant. 2.4 Atual Código Civil Brasileiro. 3 Evolução do Conceito de Propriedade e a função social da propriedade no direito brasileiro. Conclusão. Referência das fontes citadas. Resumo

O presente texto busca investigar o tema propriedade, a partir do diálogo com Aristóteles, Rousseau e Kant. O resgate da construção desse fenômeno social e jurídico faz-se por meio de recortes históricos extraídos do ambiente destas personalidades clássicas. A investigação é acompanhada de análise sucinta da temática no contexto jurídico brasileiro atual. Discorre-se sobre a evolução do conceito de propriedade, chegando-se à idéia de sua função social, própria do Estado Contemporâneo. Com base na principiologia contemporânea, a propriedade passa a ser considerada um direito-dever, dependendo sua eficácia de sua realização, a pressupor um aprofundamento do debate com a sociedade civil sobre a temática, eis que não esgotado.

Palavras-chave: Propriedade. Função Social. 1 Este artigo foi escrito sob a orientação do Professor Doutor Álvaro Borges de Oliveira e

revisão da Professora Doutora Daniela Cademartori, do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí.

2 Mestranda em Ciência Jurídica pela Univali, advogada e professora da Faculdade Cenecista de Joinville – FCJ – Endereço eletrônico: [email protected] .

3 Mestranda do programa de Mestrado em ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Advogada em autarquia municipal e professora da Universidade da Região de Joinville. Endereço eletrônico luciana.tenó[email protected] .

4 Mestrando do programa de Mestrado em ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Advogado . Professor da Universidade da Região de Joinville. Endereço elertônico: [email protected]

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Introdução

Com o objetivo de contribuir com a qualificação do debate acerca do tema

“Propriedade”, dialogou-se com Aristóteles, Rousseau e Kant, buscando extrair

das idéias destes filósofos, a compreensão deste instituto jurídico, presente no

curso da história da humanidade.

Além disso, fez-se uma sucinta análise da temática no contexto jurídico

brasileiro atual.

Iniciou-se por recortes históricos extraídos do ambiente destas personalidades

clássicas do pensamento humano, com o intuito de resgatar a construção

desse fenômeno social e jurídico.

Enquanto Aristóteles e Rousseau abordam o tema de forma pragmática e

integrada à sociedade, ocupando-se de enfatizar sua finalidade e função, Kant,

de maneira sistemática, trata da propriedade, conceituando-a juridicamente e

remetendo a reflexões sobre questões concernentes, a exemplo do “modo de

aquisição da propriedade”.

Na seqüência, discorre-se sobre a evolução do conceito de propriedade,

chegando-se a sua função social, própria do Estado Contemporâneo.

1Contextos históricos nos tempos de Aristóteles, Rousseau e Kant

O pensamento de Aristóteles 5 não pode ser apartado de seu contexto

histórico. Discípulo de Platão, viveu na Academia por vinte anos. Partiu das

teorias de Platão e procurou superá-las, mantendo, contudo, sempre vivo o

espírito do mestre. O pensamento na Grécia em que Platão e Aristóteles

viveram provém do período de formação e desenvolvimento da polis,

5 Nasceu em 384 a.C. (século III a.C.), em Estagira (cidade grega sob domínio), na

Macedônia. Seu pai, chamado Nicômaco, era médico do rei Amintas, pai de Filipe da Macedônia. Com 18 anos (366 a.C.) foi para Atenas e ingressou na Academia de Platão, lá permanecendo enquanto Platão viveu (20 anos). Após, muda-se para a Ásia Menor. Em 343 a.C., Filipe da Macedônia o chama para a corte, confiando-lhe a educação de Alexandre, com 13 anos de idade. Permaneceu na corte até Alexandre subir ao trono, em 336 a.C. Em 335 a.C. volta para Atenas e funda sua escola, perto do Templo de Apolo Liceano, daí decorrendo o nome de Liceu dado a sua escola, também chamada peripatética (e seus alunos de peripatéticos – os que passeiam - devido ao costume de dar lições, em amena palestra, passeando nos umbrosos caminhos do ginásio de Apolo). ARISTÓTELES. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p. 5-9.

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intimamente ligados à luta entre as massas pobres (da cidade e do campo) e

da classe escravagista contra a velha nobreza (chamada de eupátridas). Disto

resultou o tema corrente na Grécia antiga: a luta entre democracia e

aristocracia. Essa luta contra a velha nobreza, iniciada ainda no século VII

a.C., terminou com a vitória do demos em quase toda a parte, afastando a

nobreza da direção do Estado, fazendo-a perder seus privilégios. Foi, então, no

século VI a.C. que apareceram as primeiras teorias filosóficas gregas, pois nos

séculos V e VI, Atenas saiu em defesa das instituições democráticas de outros

Estados da Grécia. Como ao redor de Atenas e de Esparta6 agruparam-se

outras cidades-Estados menos importantes, foram formadas duas grandes

ligas: a Liga do Peloponeso7 e a Liga Ateniense8. A rivalidade entre as duas9

gerou a Guerra do Peloponeso – século V a.C. (431-404). Nesse contexto,

surgem várias teorias políticas traduzindo os interesses dos meios sociais que

as constituíam.

A economia e a cultura gregas, em meados do século V a.C., alçaram

considerável desenvolvimento nas polis, bem como as suas contradições. Os

meios comerciais e industriais10 defendiam uma democracia escravagista com

alguns direitos aos pobres livres. Por outro lado, a nobreza (latifundiária)

exigia o fim da democracia e a implantação da aristocracia. Esse contexto se

refletia nas correntes ideológicas, no campo filosófico. Em destaque estava a

linha de Demócrito11 (materialista avançado) contra a linha de Platão (idealista

reacionário)12.

6 Esparta: cidade-Estado grega situada na Lacônia, vivia sob o regime aristocrático e lutava

contra a democracia. 7 Formada pelas cidades da Grécia Meridional, liderada por Esparta – século VI a.C. 8 Liderada por Atenas – século V. 9 Traços comuns:

a) inamovibilidade do regime escravagista e ausência total dos direitos dos escravos;

b) fundamentam a necessidade ou inevitabilidade da desigualdade social;

c) baseiam-se nas condições gerais da vida política antiga, fixando como ideal, as formas mais políticas das polis da própria Grécia escravagista. In: POKROVSKI, V. S. História das ideologias: do escravagismo ao feudalismo, p. 52.

10 As guerras grego-persas tiveram como resultado uma notável democratização de Atenas e outras cidades. Aumentou o papel das assembléias populares, que eram convocadas com mais freqüência, bem como a importância da arte oratória. A ampliação na produção (trabalho escravo) animou o comércio marítimo e consolidou vínculos contra a pressão persa. As contradições sociais e o intenso comércio aumentaram a importância do direito e do Estado para as polis. Maior preocupação: origem e essência dos dois. In: POKROVSKI, V. S. História das ideologias: do escravagismo ao feudalismo, p. 52.

11 Demócrito foi defensor da democracia escravagista, ideólogo dos meios comerciais e industriais. Para ele, um meio de atenuar as contradições criadas pelo mundo

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Aristóteles, diferentemente de Platão, foi partidário da democracia, embora

ainda escravagista. Suas concepções defenderam e justificaram a escravidão,

vendo-a como necessária e natural.

Rompe com as idéias religiosas para explicar a origem do Estado. Sustenta

que o homem é um ser político e que o Estado tem origem na atração natural

dos homens pela vida em comum. A origem das monarquias está na forma

mais natural de aldeia: a colônia de famílias, com seus filhos e netos. Quando

essas aldeias se unem numa única comunidade, grande o bastante para ser

auto-suficiente, configura-se a cidade, ou Estado – que nasce para assegurar o

viver e que, depois de formada, é capaz de assegurar o viver bem. A cidade-

Estado é uma forma natural de associação, assim como o eram as associações

primitivas das quais ela se originou13.

Em Aristóteles, o indivíduo é concebido em função da cidade (animal político).

Por isso, o cidadão é aquele que participa da administração da cidade (faz

parte das assembléias que legislam e administram a justiça). O valor moral, a

justiça e o bom senso devem estar presentes num cidadão, a fim de que o

mesmo seja considerado justo, ajuizado e sábio. Na teoria aristotélica, existe

uma correspondência entre o Estado e a alma do cidadão. Decorre daí a

afirmação de Aristóteles de que a cidade perfeita deve sê-la na medida do

cidadão.

Em Aristóteles, estabelece-se uma relação mais estreita entre o Direito e o

Estado. O Direito é interpretado por ele como a justiça política estabelecida no

Estado. Seu objetivo é servir à utilidade comum dos cidadãos, in casu, dos

melhores e mais fortes14.

Rousseau 15 , natural de Genebra, Suíça, viveu num dos séculos mais

marcantes da sociedade humana. Nasceu em 1712, ou seja, no século XVIII,

escravagista (homens livres e pobres), disse que os ricos tinham que ajudar os pobres. Tinha medo da guerra civil que essa desproporção poderia criar. POKROVSKI, V.S. História das ideologias: do escravagismo ao feudalismo. 2.ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1973. p. 59.

12 POKROVSKI, V.S. História das ideologias: do escravagismo ao feudalismo. p. 58-59. 13 ARISTÓTELES. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p. 145-146. 14 POKROVSKI, V. S. História das ideologias: do escravagismo ao feudalismo, p. 90. 15 Jean-Jacques Rousseau (1712 a 1779), filho de um relojoeiro de poucas posses, nasceu

em Genebra (Suíça) e viveu a partir de 1742 em Paris, onde fervilhavam as idéias liberais que culminaram na Revolução Francesa (1789). As principais idéias políticas de Rousseau estão nas obras Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e do Contrato Social. Espírito contraditório, elaborou as bases da pedagogia moderna com a obra Emílio. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda et MARTINS,

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numa família de origem francesa e protestante, vindo a falecer com sessenta e

seis anos de idade (1778).

Desenvolveu o tema de que da própria civilização vinham os males que

afligiam o homem civilizado. Considerava os homens iguais no estado natural,

quando viviam isoladamente como selvagens, e entendia que a civilização se

encarrega de introduzir a desigualdade. Conforme POKROVSK16, a par dos

problemas relacionados com a origem da desigualdade entre os homens,

Rousseau coloca o relativo à origem do Estado.

Rousseau considera necessário, segundo POKROVSK17, para pôr fim a todas as

calamidades, destruir o despotismo e criar um regime de Estado baseado num

contrato social, que pressupõe um regime democrático em que o homem,

vivendo em sociedade e subordinando-se ao poder do Estado, continue a ser,

apesar de tudo, livre.

No Contrato Social, Rousseau afirma que só um poder democrático é legítimo;

a liberdade só é garantida num Estado em que todo o povo participe na

legislação. Só com uma organização democrática do Estado, o homem pode

adquirir, em troca da sua liberdade natural perdida, a liberdade política sob a

qual, mesmo quando subordina ao seu poder, já não é um escravo, como sob

o despotismo.

O contexto histórico durante a vida de Kant (1724 a 1804), como a de

Rousseau, foi marcado pelo Iluminismo moderno18, entendido como o período

que vai dos últimos decênios do séc. XVII aos últimos decênios do séc. XVIII,

designado como século das luzes.

Kant atribuiu ao Iluminismo, a saída dos homens do estado de minoridade,

esta entendida como a incapacidade de utilização do intelecto sem a

orientação de outro. Essa minoridade é responsabilidade dos próprios homens

Maria Helena Pires. Filosofando Introdução à Filosofia. São Paulo. Editora Moderna. 2 ed. 1997. p. 223-224).

16 POKROVSKI, V.S.. História das Ideologias. Decadência do Feudalismo e Revoluções Burguesas. 2 Ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1973. p. 86.

17 POKROVSKI, V.S.. História das Ideologias. Decadência do Feudalismo e Revoluções Burguesas., p.89

18 Kant, Emmanuel (1724 a 1804) – filósofo alemão, nasceu e morreu em Königsberg (Prússia). Teve vida calma e inteiramente dedicada ao ensino e à meditação. Seus primeiros escritos eram de natureza lírica. Versavam, sobretudo, acerca da natureza da matéria e a formação do mundo. Somente aos 57 anos de idade, passou a escrever sua obra filosófica propriamente dita. OLIVEIRA, Manoel Cipriano. Noções Básicas de Filosofia do Direito. São Paulo: Iglu, 2001. p. 61.

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se não for causada por deficiência intelectual, mas por falta de decisão e

coragem para utilizar o intelecto como guia. ‘Sapere Aude! Tem coragem de

usar teu intelecto!’.19

As teorias políticas e jurídicas do idealismo alemão de fins do século XVIII e

princípios do XIX, são representadas pela filosofia de Kant, Fichte e Hegel.20

Os idealistas alemães propuseram uma série de reformas para o regime

estatal e jurídico, porém, moderadas, considerando o conservadorismo da

burguesia nacional, que via a necessidade de manter incólume o império dos

princípios feudais no regime social e estatal do seu país.

A burguesia não representava uma classe unida e firmada. Ela dependia da

nobreza, por representar sua principal consumidora de mercadorias, sobretudo

objetos de luxo, cuja venda constituía praticamente a única fonte do bem-

estar da burguesia.21

Ao contrário dos ideólogos da burguesia francesa, os alemães encontravam-se

numa situação humilhante, uma vez que tiveram que se instalar nas cortes

dos príncipes e adaptar-se aos seus caprichos. Assim, a ideologia burguesa

alemã era impotente e amorfa.

O idealismo alemão alimentou-se do regime social e estatal da própria

Alemanha e desenvolveu-se sob a influência da situação internacional,

especialmente, sob a influência da revolução burguesa do século XVIII (1789),

que perturbou os fundamentos dos Estados onde ainda se mantinha o regime

social e estatal feudal.

Na Alemanha, a filosofia iluminista francesa era limitada e não suscitou nas

concepções dos iluministas alemães um espírito revolucionário combativo.22

Karl H. Marx23, ao fazer uma análise da situação da Alemanha desse período,

ressalta a impotência, a depressão e o abatimento dos burgueses alemães,

que nunca conseguiram superar a escala de interesses nacionais de classe.24

19 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1ª edição brasileira

coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho Benedetti – 4ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 535.

20 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. p. 534-535. 21 POKROVSKI, V.S.. História das Ideologias. O capitalismo. 2 Ed. Lisboa: Editorial

Estampa, 1973. Tradução de Luís Marques Silva., p. 29. 22 POKROVSKI, V.S.. História das Ideologias. O capitalismo, p. 29-30.

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A atitude de oposição à Revolução Francesa por parte da burguesia e da maior

parte da nobreza, traduziu-se, também, na filosofia do idealismo alemão e, de

modo particular, na sua teoria relativa ao Estado e ao Direito.

A revolução burguesa francesa provocou uma violenta resistência da

aristocracia feudal, tanto no interior da França como fora dele. Por conta dessa

atitude, surgiu a reação ideológica que buscava resgatar a concepção feudal

religiosa de mundo e defender as relações feudais existentes e à sua

restauração onde tinham sido destruídas.

A Escola Histórica do Direito, desenvolvida na Alemanha, representa uma das

manifestações da resposta aristocrática.

Nas últimas décadas do século XVIII e princípios do XIX, a Alemanha era um

dos países mais atrasados da Europa Ocidental, pelo seu regime econômico,

social e político. As relações feudais subsistiam, sob a forma de servidão e de

organização gremial dos ofícios.

Apenas uma pequena parte dos camponeses havia se tornado pequenos

proprietários livres de qualquer dependência. Os latifundiários continuavam a

aumentar as suas terras, cultivadas pelos camponeses.

A indústria capitalista se desenvolvia de forma lenta e desigual, em algumas

regiões.

A Revolução Industrial na Alemanha ocorreu apenas na quarta década do

século XIX, portanto, tardiamente, pela subsistência das relações feudais na

agricultura. A maioria das empresas eram relativamente pequenas e em

algumas regiões (sul da Alemanha, Áustria), predominaram durante muito

tempo o artesanato e as formas embrionárias da manufatura.

A população rural era , do ponto de vista numérico, superior à urbana.

23 POKROVSKI, V.S.. História das Ideologias. O capitalismo. p. 30. 24 Karl. H. Marx (1818 a 1883) – político, filósofo e economista alemão, nasceu em Tréves

e morreu em Londres. Era de família abastada. Seu pai era advogado. Fez estudos clássicos nas Universidades de Bonn e de Berlim, onde foi influenciado por Hegel e conheceu Fuebarch. Em 1841, apresenta uma tese sobre a filosofia de Epicuro, voltando-se depois para o jornalismo. (...) Foi para Bruxelas, onde, a pedido da liga dos comunistas, redige com Engels, em 1847, O manifesto comunista. (...) Sua principal obra é O capital, 1864 a 1876, que sua morte deixa inacabada. (...) O princípio da filosofia de Marx é o de partir do homem como ser agente e não como ser pensante. Sua doutrina é, ao mesmo tempo, uma teoria do conhecimento e uma filosofia da história. In: OLIVEIRA, Manoel Cipriano. Noções Básicas de Filosofia do Direito,p. 63-64.

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O regime político caracterizava-se pelo extremo fracionamento, pela fraqueza

do poder central (do imperador e das instituições imperiais), e pelo super

poder dos príncipes e demais feudais, donos de inúmeros domínios em que o

país estava dividido.

Extremamente reacionário era o sistema de governo dominante na Prússia e

na Áustria, que representavam modelos de um Estado policial, em razão da

onipotência da burocracia e dos militares, da repressão total aos direitos

individuais dos súditos e a tutela ilimitada e minuciosa sobre todos os aspectos

da vida social e pessoal.25

Kant, prussiano, viveu a maior parte de sua vida sob o reinado de Frederico II,

que teve início em 1740 e término em 1786. “A burguesia acreditou ter

encontrado o seu intérprete em Frederico II da Prússia - soberano iluminado,

“rei filósofo”, mecenas dos philosophes e por eles aconselhado. E isso apesar

de as mudanças e reformas de Frederico da Prússia já aparecerem aos olhos

de alguns de seus contemporâneos como obras mais formais do que

substanciais”.26

Todos esses acontecimentos e características da realidade alemã, contribuíram

para a consolidação e a divulgação das teorias reacionárias, do idealismo

alemão, do “romantismo”27 e da teoria da Escola Histórica do Direito, que tem

como fundador Gustav Hugo (1764-1844) e como figuras de destaque,

Savigny (1779-1861) e Georg Friedrich Puchta (1798-1846).

“Marx e Engels falam desta escola como da “...que viveu das idéias de

Bonald, de Maistre (teorias reacionárias) e dos demais escritores da primeira

geração de legitimistas franceses”.28

As teses da Escola Histórica do Direito, foram aceitas e repetidas pelos

ideólogos do fascismo germânico e tiveram reflexo em algumas teorias

reacionárias dos juristas norte-americanos.29

25 POKROVSKI, V.S.. História das Ideologias. O capitalismo, p. 31. 26 POKROVSKI, V.S.. História das Ideologias. O capitalismo, p. 19. 27 REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Do humanismo a Kant; - São

Paulo: Paulus, 1990. p. 820. 28 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, p. 860. 29 POKROVSKI, V.S. História das ideologias. O capitalismo, p. 25-26.

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2 Conceito de propriedade e outros aspectos relacionados ao tema em Aristóteles, Rousseau, Kant e o atual Código Civil Brasileiro

2.1 Conceito de propriedade em Aristóteles

Aristóteles pronuncia-se a favor da propriedade privada, contudo é contra a

propriedade ilimitada nas suas dimensões. É partidário da abundância média

que os setores médios da sociedade possuem30.

No intuito de amenizar as contradições existentes, incita os escravagistas a

serem comedidos com as pessoas pobres livres, condenando a sua tendência

irrefreável para o lucro, pois teme a acentuação da luta de classes entre eles.

É contra a usura e a atividade comercial em vasta escala. Recomenda, para

garantir a propriedade privada e dar solidez ao regime escravagista, a ajuda

aos desprotegidos.

Em sua obra Política, Aristóteles sustenta que a propriedade é parte de uma

família e sua aquisição integra a arte de dirigir uma família, pois nenhum

homem pode viver bem ou até mesmo viver sem atender às suas

necessidades. “A família é a associação estabelecida por natureza para suprir

as necessidades diárias dos homens (...).” 31 Uma família completa

corresponde a escravos e homens livres. Senhor e escravo, marido e mulher,

pais e filhos. Há ainda na família um quarto elemento, chamado a arte de

enriquecer, que é a arte de administrar a casa.

Para Aristóteles, a propriedade é formada pela reunião de instrumentos

(objetos produtivos). Por isso, o escravo, sendo criatura viva, é uma

ferramenta equivalente às outras. É um pedaço da propriedade, não é apenas

servo do senhor como pertence totalmente a ele.

A arte de administrar a família está relacionada à subsistência – aquisição

natural de propriedade. Há um limite para a riqueza.

Mas há uma outra variedade de aquisição, à qual o termo acumular riqueza é

acertadamente vinculado. É o processo de troca.32

30 POKROVSKI, V. S.. História das ideologias. O capitalismo. p. 88. 31 ARISTÓTELES. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p. 145. 32 ARISTÓTELES. São Paulo: Nova Cultura, 2004, p. 157-158.

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A priori, a troca não é modo de enriquecer, mas, a partir daí surge o

enriquecimento.

A riqueza e o enriquecimento são diferentes. A riqueza verdadeira, produtiva,

de acordo com a natureza, pertence à administração da casa. A acumulação

da riqueza, não natural, pertencente ao comércio e não à produção de bens

em seu sentido pleno. Desaprova o enriquecimento pelo comércio e a usura33.

Aristóteles alerta que a acumulação de riqueza é um fim em si mesma e por

isso, sem limites.34

A verdadeira riqueza compõe-se de bens de consumo, cuja quantidade,

necessária à vida, não é ilimitada. Por essa razão, a acumulação na economia

doméstica é limitada e a tendência para o lucro por meio do comércio não.

2.2Conceito de propriedade em Rousseau

Segundo Rousseau, no Discurso sobre a desigualdade entre os Homens, 1753,

no estado natural não existia propriedade privada nem o poder do Estado; os

homens tinham uma moral primitiva. O pensador retrata este estado dos

homens como uma Idade de Ouro que teriam perdido.

Segundo POKROVSKI, Rousseau entendia que o homem é susceptível de se

aperfeiçoar e disse-o expressamente. O aperfeiçoamento, segundo afirma o

filósofo, levou inevitavelmente à invenção de ferramentas e determinou a

passagem dos homens à vida sedentária, e a da sociedade humana do cultivo

da terra. Os homens iniciaram o trabalho dos metais, e estes, juntamente com

as ferramentas, melhoraram o cultivo da terra. Daqui nasceu de certo modo, e

como resultado do progresso da sociedade, a propriedade privada. Esta

trouxe, como conseqüência, a divisão da sociedade em ricos e pobres e a

tendência de uns enriquecerem à custa de outros. Surgiram lutas, discórdias e

apropriações que deram lugar à formação do Estado.

Na opinião de Rousseau, o Estado nasce para consolidar o domínio, para

salvaguardar a propriedade privada. No Contrato Social, o pensador descreve

que a subordinação ao poder democrático assegura a felicidade e a liberdade 33 “Também causa muito descontentamento a prática da usura; e o descontentamento é

plenamente justificado, pois o lucro resulta do dinheiro em si, não do que o dinheiro pode propiciar.” ARISTÓTELES. São Paulo: Nova Cultura, p. 162.

34 ARISTÓTELES. São Paulo: Nova Cultura, 2004, p. 159.

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do indivíduo, adquirindo o direito de propriedade sobre tudo o que possui.

Sonhava Rousseau com uma sociedade em que não houvesse ricos nem

pobres, mas onde a propriedade privada se mantivesse íntegra. A

propriedade, segundo o filósofo, corresponde ao contrato social, deve ser

inamovível, por ser necessária em qualquer sociedade. Sonhava também com

um pequeno Estado democrático patriarcal em que cada um tivesse uma

pequena propriedade, suficiente para prover às suas necessidades

elementares, ou seja, preconizava a pequena propriedade privada.

Sobre propriedade e domínio real, Rousseau escreve35 que o Estado, pelo

Contrato Social, é senhor de todos os bens de seus membros e fundamento de

todos os direitos.

Quanto às outras autoridades, esclarece o mesmo autor, prevalece o direito do

primeiro ocupante, que preencher as seguintes condições: que o terreno não

se encontre habitado por ninguém; que seja ocupada área necessária à

subsistência e que a posse se legitime pelo trabalho e pela cultura, único sinal

de propriedade que, à falta de títulos jurídicos deve ser respeitado por

outrem.36

Independente do modo de aquisição da propriedade, o direito de cada

particular sobre sua parte do solo está subordinado ao direito da comunidade

sobre o todo, sob pena de não haver solidez no laço social nem força real no

exercício da soberania.37

2.3 Conceito de propriedade em Kant

Kant é considerado pai do idealismo alemão e as suas concepções filosóficas

independentes formaram-se até o ano de 1770.38

Tendo em vista o objeto desta investigação - o tema propriedade - a obra de

Kant que explora tal temática é a Metafísica dos Costumes, mais precisamente

a Parte I que trata dos Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito, datada de

1797, portanto, tendo como pano de fundo, movimentos de reação e de

35 ROUSSEAU. Jean-Jaques. O Contrato Social e Outros Escritos. 20 ed. São Paulo:

Editora Cultrix, 2004. Tradução de Rolando Roque da Silva. p. 34-37. 36 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social e Outros Escritos, p. 34-37. 37 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social e Outros Escrito, p. 34-37. 38 POKROVSKI, V.S. História das ideologias. O capitalismo, p. 31.

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consolidação da Revolução Francesa, que representou o rompimento com o

modelo feudal e deu início ao modelo capitalista de produção.

A investigação concentrou-se nos capítulos primeiro e segundo,

respectivamente “O modo de ter algo exterior como seu” e “O modo de

adquirir algo exterior”, objetivando destacar o conceito de propriedade e

outros aspectos pertinentes ao tema.

No primeiro capítulo, encontra-se a definição do conceito “do meu e do teu

exterior”, isto é, a definição nominal que afirma que “o meu externo é aquilo

cujo uso não me pode ser estorvado sem me lesar, mesmo quando eu não

tenha a posse dele (não seja detentor do objeto)”.39

Após a definição do conceito, Kant levanta a questão “como são possíveis um

meu exterior?” que se resolve em outras duas questões: “como é possível

uma posse meramente jurídica (inteligível)?”, e esta, por seu turno, numa

terceira: “como é possível uma proposição jurídica sintética a priori?”,

entendido a priori como racional.

Em resposta a essas questões, objetivando identificar a origem da posse

particular de cada homem, chega-se ao conceito jurídico, baseado na razão

prática, não em elementos empíricos, mas em consonância com o disposto na

legislação, que permite o uso da expressão “Este objeto exterior é meu”,

porque assim se impõe a todos os outros uma obrigação que, de outro modo,

não teriam: a de se abster de usá-lo.40

Feitas essas considerações, Kant assevera que somente no estado civil,

entendido este como a sociedade politicamente organizada, pode haver o meu

e o teu exterior41.

Sendo juridicamente possível ter um objeto exterior como seu, o sujeito nesta

condição, poderá forçar qualquer um que venha a entrar em conflito sobre o

39 KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes: Princípios Metafísicos da Doutrina do

Direito. Tradução: Artur Morão. Edições 70, Ltda. Lisboa/Portugal.,p. 56-57. 40 KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes: Princípios Metafísicos da Doutrina do

Direito, p. 61-62. 41 KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes: Princípios Metafísicos da Doutrina do

Direito, p. 64.

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meu e o teu relacionado ao mesmo objeto, a ingressar com ele numa

constituição civil.42

A expressão direito real significa não apenas o direito a uma coisa (ius in re),

mas também o conjunto de todas as leis que regulam o meu e o teu reais. O

direito a uma coisa somente existe no estado civil, no qual existe relação de

obrigação. Buscando um melhor entendimento sobre a expressão direito real,

Kant menciona a seguinte situação: “É claro, porém, que um homem

completamente só sobre a terra não poderia, em rigor, ter nem adquirir

nenhuma coisa externa como sua: porque entre ele como pessoa e todas as

outras coisas externas como coisas não há nenhuma relação de obrigação”. 43

Partindo do fato de que todos os homens estão na posse comum do solo da

terra inteira, todo solo pode ser originariamente adquirido, por meio da

ocupação, sendo, porém, essa aquisição, considerada provisória, por ser fruto

da vontade unilateral. A aquisição definitiva somente é possível numa

constituição civil, que cria a posse intelectual (suprimindo todas as condições

empíricas espaço-temporais) e funda a proposição: “O que eu submeto ao

meu poder em conformidade com leis da liberdade exterior, e quero que seja

meu, é meu”.44

Segundo Kant, o Estado dá à propriedade uma força legal, porém, não pode

dela dispor, sob pena de apoderar-se de toda a propriedade e, assim, anulá-

la. O Estado apenas pode impor tributos à propriedade privada e protegê-la. A

defesa da propriedade é executada pela polícia, entre cujos deveres não figura

só a salvaguarda da segurança pública, mas também a guarda da felicidade

social até aos próprios limites do domicílio. Kant, assim manifestando-se,

mostra-se defensor da propriedade burguesa contra o Estado feudal.45

Em relação às teorias sobre a propriedade, Kant assumiu uma posição

intermediária entre as teorias extremas (aquelas que afirmam que a

propriedade é um direito natural, ou seja, um direito que nasce do estado de

natureza, antes e independentemente do surgimento do Estado, a exemplo de

Puffendorf – fundamento da propriedade privada era o contrato e Locke – 42 KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes: Princípios Metafísicos da Doutrina do

Direito, p. 67. 43 KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes: Princípios Metafísicos da Doutrina do

Direito, p. 70. 44 KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes: Princípios Metafísicos da Doutrina do

Direito ,p. 72-73. 45 POKROVSKI, V.S. A história das ideologias. O capitalismo, p. 37-38.

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fundamento da propriedade era o trabalho) e, aquelas que negam o direito de

propriedade como direito natural, sustentando que o direito de propriedade

nasce somente como conseqüência da constituição do estado civil, a exemplo

de Hobbes e Rousseau), sustentando que a propriedade é um direito natural,

isto é, que a aquisição se dá independentemente do Estado; mas defende, por

outro lado, em conformidade com a distinção entre direito privado e direito

público, que a aquisição de uma coisa própria, no estado de natureza, é

meramente provisória, e somente após a constituição do Estado torna-se

peremptória (definitiva). Kant não aceita nem a teoria do contrato nem a do

trabalho, com relação a passagem do estado de comunidade originária para a

individual, mas, defende a teoria da ocupação, sendo este o ato jurídico da

aquisição originária.46

São apresentados três momentos da ocupação: 1º) a apreensão do objeto que

não pertence atualmente a ninguém; 2º) a declaração de que eu quero

possuir aquela coisa como minha e proibir a sua posse aos outros; 3º) a

apropriação, ou seja, o acordo da minha vontade individual com a vontade

externa e universalmente legisladora, segundo a qual todos os outros são

obrigados a estar de acordo com o meu arbítrio.

Os dois primeiros momentos correspondem ao modo de aquisição e o terceiro

constitui o verdadeiro título da aquisição.

2.4 Atual Código Civil Brasileiro

O conceito de propriedade encontrado no atual Código Civil, está no contexto

do Estado Contemporâneo, aqui analisado sucintamente em alguns de seus

aspectos, para uma melhor compreensão daquele.

O surgimento do Estado Contemporâneo se deu na segunda metade do século

passado, em 1917, com a Constituição Mexicana e, em 1919, com a

Constituição de Weimar (cidade alemã), prevendo a intervenção do Estado na

economia, fato que marca o nascimento do Estado Social e, posteriormente,

como fruto de evolução, o Estado Social de Direito.47

46 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emmanuel Kant. 3 Ed.

Brasília: Editora UnB, 1995, p. 105. 47 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. 2 Ed 2ª tir.Curitiba:

Juruá, 2004. p.235.

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Streck e Bolzan de Morais, demonstram a significativa mudança de concepção

da propriedade no Estado Contemporâneo, com a seguinte afirmação: “da

propriedade com direito de pleno uso, gozo, disposição, passamos a uma

exigência funcional da propriedade, sendo determinante sua utilização

produtiva e não mais seu título formal”.48

A mudança de concepção de propriedade se deve ao fato de que o Estado

Contemporâneo passa a se ocupar da concretização do bem comum.

Buscando caracterizar o Estado Contemporâneo, Pasold 49 destaca alguns

componentes capazes de esboçar um desenho inicial do Estado: a relação

sistêmica que a vida do Estado pode conter, envolvendo segurança, ordem,

justiça, força, poder, autoridade; a diferenciação, na teoria e na prática, entre

o poder social e a função governamental e o Estado realizando a coerção da

conduta humana num contexto organizado, submetido a uma conformação

judicial geral.

O Estado transformou-se em grande regulador do Direito de Propriedade, por

meio das leis e depois das constituições. As necessidades sociais passaram a

exigir uma relativização de tal direito e sua subordinação a função social,

voltada para o progresso material, mas sobretudo à valorização crescente do

ser humano, num quadro em que o homem exercita a sua criatividade para

crescer como indivíduo em conjunto com a Sociedade .50

A Constituição Federal Brasileira de 1988, no Artigo 170, estabelece que “A

ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre

iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os

ditames da justiça social, observados os princípios” arrolados em nove

incisos, dentre os quais, encontram-se a propriedade privada e a função social

da propriedade.

Em consonância com a orientação constitucional, o atual Código Civil

Brasileiro, em seu artigo 1228 “caput” e parágrafos, falam do direito de

propriedade, não como direito absoluto, destacando as suas possibilidades,

ressaltando a sua função social e as conseqüências do uso em

desconformidade com tal função.

48 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional, p. 232. 49 PASOLD, César Luiz. Função Social do estado contemporâneo. 2 ed. Florianópolis:

Estudantil, 1988. p. 31. 50 PASOLD, César Luiz. Função Social do estado contemporâneo, p. 31-32.

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3 Evolução do Conceito de Propriedade e a função social da propriedade no direito brasileiro

Antes do Direito Clássico, a propriedade era coletiva, isto é, as pastagens

pertenciam a todos e não podiam ser objeto de alienação, esta apenas

possível aos bens móveis. A propriedade familiar nasce com a República

Romana, onde os deuses domésticos ou lares tinham o seu altar firmado no

solo onde deveriam ficar para adoração pela família. Segundo Fustel de

Coulanges, “a idéia de propriedade privada já estava encerrada na própria

religião. O solo estabelecia vínculo indissolúvel com a família.”51

Celso Ribeiro Bastos52 observa que, dos relatos dos historiadores, no início das

civilizações predominava uma propriedade comunitária, com domínio coletivo

sobre as coisas úteis, ficando a propriedade privada reservada para objetos de

uso exclusivamente pessoal. Assevera ainda, que a terra não era a rigor

objeto de apropriação, dado o caráter nômade das tribos primitivas.

Com a organização das aldeias, a diversificação da produção, a separação

entre o trabalho rural e o urbano, os primeiros atos comerciais como a troca,

passando a relações comerciais mais complexas, a relação do homem com a

propriedade foi se modificando, inclusive abrindo lugar para conflitos

(posseiros e proprietários, conquistadores e conquistados, benefícios

territoriais para alguns, entre outros).

Os romanos viam na propriedade um direito absoluto e perpétuo, vinculado a

família. Fustel de Coulangens assevera que “a casa e o campo eram como que

incorporados à família não podendo esta perdê-los nem abandonar a sua

legítima posse. [...] Tudo nos leva a crer que nos tempos antigos a

propriedade era inalienável” 53 . Com o passar do tempo, limites legais à

propriedade vão surgindo, como o direito de vizinhança.

Na Idade Média, a propriedade é caracterizada pela multiplicidade do domínio,

própria do regime feudal, onde o domínio direto da propriedade pertencia ao

senhor feudal e o domínio útil ao vassalo. O Mercantilismo e a Revolução

Comercial marcaram essa fase da história da humanidade e contribuíram para

51 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional , p. 232. 52 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional, p.232. 53 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Editora Saraiva. 2004. p. 116.

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o enfraquecimento do modelo feudal de organização da sociedade, fazendo

surgir a concepção de propriedade produtiva.

Desse movimento de caráter preponderantemente econômico, surge uma

nova classe social, em busca de poder e privilégios, a burguesia, que,

inicialmente, com o desenvolvimento do comércio, passou a acumular capital.

Wolkmer54 esclarece que o Estado Moderno deriva de um processo histórico

iniciado no século XII, tendo se desenvolvido até o século XVIII e se

apresentado, num primeiro momento, por meio do Estado Absolutista

(soberano, monárquico e secularizado) e num segundo momento, por meio do

Estado Liberal (capitalista, constitucional e representativo).

A Revolução Francesa tem início no ano de 1789 (28/08) e com ela, nascem o

individualismo e o liberalismo. O ano de 1789 é marcado pela Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão, que proclamou a liberdade, a igualdade e a

soberania popular e representou, segundo Georges Lefebre55, o atestado de

óbito do Antigo Regime, destruído pela Revolução.

Aléxis de Tocqueville56, descreve a primeira fase do movimento de 1789, como

“o tempo de juvenil entusiasmo, de orgulho, de paixões generosas e sinceras,

tempo do qual, apesar de todos os erros, os homens iriam conservar eterna

memória [...]”

Proclamado como sagrado e inviolável, o direito de propriedade foi

considerado o pilar de sustentação da sociedade burguesa. Segundo Bobbio,

tal proclamação não seria necessária, considerando que “a esfera da

propriedade foi sempre mais protegida que a esfera da pessoa.”57

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e o Código de Napoleão

(1804), representam a concretização das idéias de codificação e

sistematização de normas jurídicas em compêndios e iniciam o

desenvolvimento do pensamento jurídico-político do Ocidente. Nesse contexto

a propriedade é considerada inerente à natureza humana, assim como,

considerada um direito individual, colocado no núcleo do ordenamento

54 GHIGNONE, Luciano Taques. Novo Código Civil Brasileiro. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2003.

p. 235-236. 55 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de

Janeiro: Elsevier, 2004. p. 100. 56 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 99. 57 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 132.

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jurídico. O direito de propriedade não passava de privilégio da classe

burguesa, uma vez que somente ela podia exercer tal direito, possuindo este,

portanto, caráter meramente formal.

Em 1848, Marx e Engels, negam totalmente o conceito de propriedade

privada, especialmente a agrária e a todos os outros bens de produção, no

“Manifesto Comunista”.

No Estado Contemporâneo, a propriedade, além de ser um direito individual,

está condicionado pelo princípio da função social, princípio, inclusive,

informador da ordem econômica brasileira.

Segundo Miguel Reale “Princípios são, pois, verdades ou juízos fundamentais,

que servem de alicerce ou garantia de certeza a um conjunto de juízos. (...)”. 58

A doutrina da "função social da propriedade" tem por finalidade dar um

sentido mais amplo ao conceito econômico de propriedade, encarando-a como

uma riqueza que se destina à produção de bens que satisfaçam as

necessidades sociais.

O proprietário, no exercício de seus direitos, é incumbido de cumprir o dever

social imposto pela Constituição Federal, caso contrário a propriedade perderá

sua legitimidade jurídica e o proprietário não mais poderá argüir a seu favor o

direito individual de defendê-la ou preservá-la.

A função social da propriedade não pode ser tida como uma limitação ao

direito de propriedade e sim tendo como finalidade evitar a utilização indevida

de uma propriedade ou sua não utilização. Jamais de se interpor no direito

subjetivo do proprietário de usar, gozar, fruir e dispor de seu bem,

apresentando-se como um instrumento de defesa contra qualquer tentativa de

socialização sem prévia e justa indenização.

Os valores constitucionais relacionados ao direito de propriedade, vêm neste

direito, uma ferramenta de manutenção ou mesmo de realização de um grau

mínimo de dignidade de cada pessoa.

Atribuindo uma função social à propriedade, o ordenamento jurídico age

contra desperdícios da propriedade para satisfazer necessidades materiais ou

58 REALE, Miguel. Filosofia do Direito.19 ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p.312

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pessoais humanas, atendendo aos anseios sociais, e contribuindo para o

desenvolvimento da nação e erradicação da pobreza e desigualdades sociais.

É importante a explanação que Rogério Gesta Leal realiza a respeito da função

social da propriedade, pois enfatiza que se trata nada mais nada menos do

que um princípio informativo do direito de propriedade e, portanto, requer do

legislador seja explicitado59.

O atual Código Civil, embora não mencione a expressão “função social”, insere

deveres no exercício do direito de propriedade, subjetivo que é e continua

sendo. Nestes termos, tal direito, trata-se de um poder-dever, que representa

um direito-função.

O modelo oitocentista da propriedade, caracterizado pela concepção absoluta e

unitária, cede espaço no atual Código Civil, à noção plural das propriedades,

fenômeno que passa a exigir o seu reconhecimento e desenvolvimento por

uma atividade judicial criadora e responsável.60

Importa destacar, que a categoria função, indica ação concreta, no caso,

tomando como referência o citado artigo 1228, do atual Código Civil Brasileiro,

por parte do sujeito , isto é, o titular dos direitos e obrigações frente ao

Estado, o homem individualmente considerado e inserido numa sociedade,

voltada para a realização do bem-estar próprio e da própria sociedade.

Assim, a expressão “função social”, mencionada na Constituição Federal de

1988, tem o significado de operação, correspondendo esse termo a palavra

grega ergon, do modo como Platão diz que a função dos olhos é ver, a função

dos ouvidos é ouvir, que cada virtude é uma função de determinada parte da

alma e que a função da alma, em seu conjunto, é comandar e dirigir 61 .

Função, nesse sentido, é a operação própria da coisa, no sentido de ser aquilo

que a coisa faz melhor do que as outras coisas (Ibid., 353 a). Aristóteles

emprega esse termo com o mesmo sentido, quando, em Ética à Nicômaco,

procura descobrir qual é a função ou a operação própria do homem como ser

racional (Et. Nic., I, 7). Além disso, insiste no caráter finalista e realizador da

função: “a função é o fim, e o ato é a função.” (Met. IX, I, 1050 a 21). Essa

59 LEAL, Rogério Gesta. A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil:

aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: EDUNISC. 1998. p.117.

60LEAL, Rogério Gesta. A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil, p. 123. 61 PLATÃO. A República. Diálogos 40 ed. Publicações Europa-América. Editor: Francisco

Lyon de Castro. 1975. p. 38-39.

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palavra é usada freqüentemente com esta significação tanto na linguagem

científica quanto na comum.62

Conforme Leonetti, “apenas a propriedade que atende a sua função social está

albergada pela Constituição, como um direito, ou garantia fundamental”.63

Inspirados nas lições dos filósofos clássicos, pode-se afirmar que a

propriedade no Estado Contemporâneo é vocacionada a ter compromisso com

o todo e, não apenas, com os interesses particulares do chamado proprietário,

que deve exercer tal direito, em consonância com as suas finalidades

econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, a flora, a fauna, as

belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem

como evitada a poluição do ar e das águas.

Tem-se, portanto, que a função social da propriedade diz respeito à própria

estrutura do direito de propriedade, dispondo-a como meio de transformação

positiva do desenvolvimento social, não se confundindo, portanto, com os

sistemas de limitação da propriedade (restrições, servidões e

desapropriações).

Conclusão

No transcurso da história humana, constata-se que a figura da propriedade foi

alvo de constantes reflexões e conflitos, ora coletiva, como na Antigüidade,

ora multifacetada, como no medievo, consagrando-se como individual, na era

moderna, e, como conseqüência da relação predatória com o meio e com o

próximo, chegou-se à função social da propriedade, no Estado

contemporâneo.

Em Aristóteles, está presente o embrião da função social da propriedade,

quando este filósofo recomenda a não acumulação de riquezas, pelo fato disto

não contribuir para a estabilidade social.

Outrossim, Rousseau, com supedâneo na teoria contratualista, vislumbra a

propriedade privada como resultado do pacto social, orientando no sentido de 62 COSTA, Judith Martins. A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios,

diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 778.

63 LEONETTI. Carlos Araújo. Função Social da Propriedade: Mito ou Realidade? in Novos Estudos Jurídicos. Itajaí. 1999 , p.20

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GOMES, Marcia Regina Brand; TENÓRIO, Luciana Altmann; MEDEIROS, Cláudio M. Da propriedade coletiva à função social da propriedade. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 1, n. 1, 3º quadrimestre de 2006. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica

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que o ideal para a sociedade é a pequena propriedade, suficiente para o bem

viver de todo cidadão.

Por sua vez, Kant, expoente do pensamento científico de sua época, insere a

propriedade num contexto sistematizado, tratando-a como objeto de

externalização de um direito, consolidando a idéia de propriedade privada,

atendendo assim, ao ideal burguês.

Diante destas concepções e superadas as codificações de cunho individualista,

apresenta-se, hodiernamente, a propriedade atrelada a uma vocação

denominada de função social.

Com base na principiologia contemporânea, a propriedade passa da condição

de direito privado absoluto para um poder-dever, onde a função social é,

simultaneamente, seu limite e alvo. Se por um lado, esse direito-dever está

resguardado pela ordem jurídica, a sua eficácia depende da realização

concreta, inclusive a pressupor um aprofundamento do debate em conjunto

com a sociedade civil, eis que não esgotado.

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