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Introdução Escrever sobre a Educação Física e os elementos da cultura corporal tratados por ela no contexto escolar é algo que nos motiva há algum tempo, principalmente quando temos a oportunidade de nos focar nos conhecimentos específicos da dança. Ao contrário do que poderíamos esperar para um país dito “dançante”, a dança é um dos conhecimentos da Educação Física pouco trabalhado nas escolas. Na verdade, referimo-nos a pouco trabalhado, pois entendemos que um conhecimento escolar deva ter sentido, significado, contextualização, além de objetivos específicos associados ao componente curricular a que se destina. E, geralmente, o trabalho de dança que encontramos nas escolas se remete a simples composições coreográficas com fins em si mesmo. Neste texto buscamos uma nova relação em nossos estudos ao utilizar um conceito já sugerido por Daolio (1994) de cultura como categoria principal para a Educação Física. Na realidade esta relação não é apenas nova para nós e sim para a área como um todo, afinal as Ciências Humanas têm tido um reconhecimento mais significativo na Educação Física, entre avanços e críticas, há pouco mais de uma década. Nesse caso, a dança, sendo o conhecimento sobre o qual nos debruçamos nesse momento, também será vislumbrada à luz de uma abordagem cultural. Para iniciar tal reflexão consideramos necessário reportar-nos à fase mais antiga da inclusão da Educação Física em nossas escolas, a fim de verificar como o seu reconhecimento tem se dado ao longo dos anos e como esse componente curricular tem sido tratado até os dias de hoje com possibilidades de entendimento cultural. Em seguida, passamos a pensar na dança como conhecimento da Educação Física que imprime e expressa relações estabelecidas pela cultura do corpo. Ao final desse estudo, propomos um olhar prático, sugerindo uma proposta metodológica para que a dança seja, efetivamente, trabalhada entre os conhecimentos da Educação Física no contexto escolar. Educação Física na escola: do biológico ao cultural A inclusão da Educação Física na escola brasileira ocorreu ainda no século passado, no entanto é certo que a preocupação com os exercícios físicos já era uma constante no século XVIII, principalmente na Europa. Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.121-126, mai./ago. 2005 Dança: conhecimento a ser tratado nas aulas de Educação Física Escolar Mônica Caldas Ehrenberg 1 Jorge Sérgio Pérez Gallardo 2 1 Academia de Ensino Superior – Sorocaba SP e FEFISA – Santo André 2 Faculdade de Educação Física - UNICAMP Resumo: Este estudo de cunho bibliográfico visa refletir sobre a Dança como um dos conhecimentos a ser tratado nas aulas de Educação Física escolar, com um olhar estabelecido pelo conceito de cultura como categoria principal para essas aulas. Sendo esta uma abordagem relativamente nova para a área e ainda discutida de maneira equivocada, é que nos sentimos motivados a escrever este texto, partindo dos pressupostos mais antigos da Educação Física, cuja associação sempre foi de um corpo exclusivamente biológico, e buscando alcançar a relação cultural para área. Reconhecendo a dificuldade de um olhar prático para o conceito estabelecido, é que sugerimos, ao final do texto, uma possibilidade de trabalho para a Dança nas aulas de Educação Física escolar, com um enfoque cultural. Palavras-chave: Educação Física Escolar. Cultura. Dança. Dance: knowledge to be treated scholastic Physical Education Abstract: This review of literature paper discusses the role of the Dance as a body of knowledge that needs to be addressed at Physical Education classes. It is through a cultural approach that Dance is here valued as especially favored for the classes concerned. Because this is a relatively new approach and it still has being discussed on questionable assertions, we felt moved to write this paper, based upon the old assumptions of the Physical Education field. In which human body is here regarded not in exclusively biological terms, but also in its cultural implications. As we recognize the practical difficulties implied on this matter, we finish our analysis proposing a possibility of activities on the Dance in scholastic Physical Education situations with a cultural approach. Key Words: Scholastic Physical Education. Culture. Dance.

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  • Introduo Escrever sobre a Educao Fsica e os elementos da

    cultura corporal tratados por ela no contexto escolar algo que nos motiva h algum tempo, principalmente quando temos a oportunidade de nos focar nos conhecimentos especficos da dana.

    Ao contrrio do que poderamos esperar para um pas dito danante, a dana um dos conhecimentos da Educao Fsica pouco trabalhado nas escolas. Na verdade, referimo-nos a pouco trabalhado, pois entendemos que um conhecimento escolar deva ter sentido, significado, contextualizao, alm de objetivos especficos associados ao componente curricular a que se destina. E, geralmente, o trabalho de dana que encontramos nas escolas se remete a simples composies coreogrficas com fins em si mesmo.

    Neste texto buscamos uma nova relao em nossos estudos ao utilizar um conceito j sugerido por Daolio (1994) de cultura como categoria principal para a Educao Fsica. Na realidade esta relao no apenas nova para ns e sim para a rea como um todo, afinal as Cincias Humanas tm tido um reconhecimento mais significativo na Educao Fsica, entre avanos e crticas, h pouco mais de uma dcada. Nesse caso, a

    dana, sendo o conhecimento sobre o qual nos debruamos nesse momento, tambm ser vislumbrada luz de uma abordagem cultural.

    Para iniciar tal reflexo consideramos necessrio reportar-nos fase mais antiga da incluso da Educao Fsica em nossas escolas, a fim de verificar como o seu reconhecimento tem se dado ao longo dos anos e como esse componente curricular tem sido tratado at os dias de hoje com possibilidades de entendimento cultural.

    Em seguida, passamos a pensar na dana como conhecimento da Educao Fsica que imprime e expressa relaes estabelecidas pela cultura do corpo.

    Ao final desse estudo, propomos um olhar prtico, sugerindo uma proposta metodolgica para que a dana seja, efetivamente, trabalhada entre os conhecimentos da Educao Fsica no contexto escolar.

    Educao Fsica na escola: do biolgico ao cultural

    A incluso da Educao Fsica na escola brasileira ocorreu ainda no sculo passado, no entanto certo que a preocupao com os exerccios fsicos j era uma constante no sculo XVIII, principalmente na Europa.

    Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.121-126, mai./ago. 2005

    Dana: conhecimento a ser tratado nas aulas de Educao Fsica Escolar

    Mnica Caldas Ehrenberg 1 Jorge Srgio Prez Gallardo 2

    1Academia de Ensino Superior Sorocaba SP e FEFISA Santo Andr 2 Faculdade de Educao Fsica - UNICAMP

    Resumo: Este estudo de cunho bibliogrfico visa refletir sobre a Dana como um dos conhecimentos a ser tratado nas aulas de Educao Fsica escolar, com um olhar estabelecido pelo conceito de cultura como categoria principal para essas aulas. Sendo esta uma abordagem relativamente nova para a rea e ainda discutida de maneira equivocada, que nos sentimos motivados a escrever este texto, partindo dos pressupostos mais antigos da Educao Fsica, cuja associao sempre foi de um corpo exclusivamente biolgico, e buscando alcanar a relao cultural para rea. Reconhecendo a dificuldade de um olhar prtico para o conceito estabelecido, que sugerimos, ao final do texto, uma possibilidade de trabalho para a Dana nas aulas de Educao Fsica escolar, com um enfoque cultural.

    Palavras-chave: Educao Fsica Escolar. Cultura. Dana.

    Dance: knowledge to be treated scholastic Physical Education

    Abstract: This review of literature paper discusses the role of the Dance as a body of knowledge that needs to be addressed at Physical Education classes. It is through a cultural approach that Dance is here valued as especially favored for the classes concerned. Because this is a relatively new approach and it still has being discussed on questionable assertions, we felt moved to write this paper, based upon the old assumptions of the Physical Education field. In which human body is here regarded not in exclusively biological terms, but also in its cultural implications. As we recognize the practical difficulties implied on this matter, we finish our analysis proposing a possibility of activities on the Dance in scholastic Physical Education situations with a cultural approach.

    Key Words: Scholastic Physical Education. Culture. Dance.

  • M. C. Ehrenberg & J. S. P. Gallardo

    Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.121-126, mai./ago. 2005 122

    Soares (1998) afirma que a ginstica era considerada como parte significativa dos novos cdigos de civilidade e uma educao do fsico, como cita a autora, era reconhecida com extrema importncia ao longo de todo o sculo XIX europeu. O corpo reto de porte rgido era essencial e os exerccios fsicos eram instrumentos capazes de moldar e adestrar os corpos a fim de instaurar a ordem coletiva. Esta ginstica, proveniente da Europa, chega ao Brasil e passa a ser disciplina obrigatria no ensino primrio enquanto a dana inserida para as mulheres no ensino secundrio com o objetivo de promover exerccios fsicos que eram sinnimos de boa sade, alm de possibilitar e preparar estas mulheres para a maternidade. A caracterstica destas aulas de dana d-se por exerccios calistnicos, com reproduo de gestos de forma harmnica e padronizada, ritmadas por uma msica de fundo. Segundo Darido (1999) isto ocorre por volta de 1854, trs anos aps a reforma de Couto Ferraz.

    A trajetria da Educao Fsica no interior das escolas longa e repleta de (re) configuraes. Os contedos e os objetivos desta rea de conhecimento vo se moldando com influncias e interferncias de diferentes instituies, sejam estas em alguns momentos mdicas, militares ou esportivistas, todas j bastante criticadas e superadas. No entanto, reconhecemos que estas tiveram seu valor, principalmente se considerarmos que estas instituies foram a gnese da sistematizao da Educao Fsica na escola. O que no se pode negar que em todos os momentos a Educao Fsica brasileira tendeu-se a uma forte influncia das Cincias Naturais e o conceito de homem sempre foi defendido sobre uma tica exclusivamente biolgica.

    As aulas de Educao Fsica visavam o desenvolvimento da aptido fsica e, existente at os dias atuais em algumas escolas, os alunos eram submetidos a testes de esforo fsico ao incio e ao final do ano letivo a fim de verificar o alcance, ou no, dos objetivos propostos pela rea.

    Darido (1999) aponta que em meados da dcada de 80 a Educao Fsica passa por importante debate acadmico. Vrias concepes passam a surgir de maneira bastante significativa tendo em comum entre elas a tentativa de romper com o modelo mecanicista.

    Neste mesmo perodo surgem os primeiros cursos de ps-graduao no Brasil e muitos profissionais esto retornando de cursos no exterior. Assim, o debate acadmico fica mais intenso e a Educao Fsica insere-se num movimento social muito amplo, a redemocratizao da sociedade brasileira. Como cita Caparroz (1997) este foi um momento de reivindicaes, organizao dos sindicatos em busca das diretas-j e de uma transio democrtica para o pas, enquanto no cenrio acadmico da Educao Fsica debates importantes eram travados. A contestao da rea pelo modelo vigente torna-se palco para a realizao de significativos congressos e eventos, tais como o Congresso Brasileiro de Cincias do

    Esporte em 1980, e no mesmo ano, o I Encontro Nacional de Estudantes de Educao Fsica (ENEEF).

    Acreditamos que os avanos so significativos e as tentativas de romper com antigos modelos so plausveis. No entanto, tudo muito lento e corre-se sempre o risco de o novo, sofrer interpretaes errneas, o que dificulta ainda mais o entendimento da rea.

    Daolio (1998) considera que neste perodo de transio, o predomnio biolgico passa a ser questionado e as Cincias Humanas na rea da Educao Fsica passam a ter maior espao. Ainda que bastante inicial passa a surgir neste momento a questo cultural, ou seja, comea-se a contextualizar o homem no meio em que vive, reconhece-se, ainda que superficialmente, que este faz parte de um contexto e que no possvel dissoci-lo.

    Cada indivduo traz uma bagagem repleta de sentidos e significados que no deve ser desconsiderada. Apesar de ser um significativo avano na rea, Daolio (1998) considera que nem tudo esteja resolvido, afinal a Educao Fsica ainda compreende o conceito de cultura sem profundidade ou at erroneamente. Torna-se necessrio para a rea revisar esse conceito, visto que tratamos do homem e suas manifestaes culturais relacionadas ao corpo e movimento (esportes, jogos, danas, lutas, etc.) ficando difcil desvincular o homem e sua produo do meio social em que vive.

    Consideramos que o conceito de cultura no seja muito simples de ser entendido, principalmente se considerarmos que h muito tempo os profissionais da rea so formados sob uma viso de corpo - matria onde as diferenas entre os homens do-se apenas por questes antomo - fisiolgicas e, conseqentemente os indivduos passam a ser separados em aptos e inaptos para cada determinada atividade. Neste caso tudo est determinado geneticamente, bastando ser treinado e provar sua capacidade inata. Esta maneira de entender o homem est bastante consolidada em nossa rea, no entanto, entendemos que outras vertentes, provenientes das Cincias Humanas, esto consolidando-se e provando que somos mais do que de sistema nervoso, circulatrio, respiratrio,... mas sim, somos tambm cercados de sistemas organizados simbolicamente .

    Separar os aspectos biolgicos dos sociais algo ainda bastante comum para a rea. Nas prprias Faculdades de Educao Fsica encontramos a diviso por Departamentos distintos, onde geralmente, de um lado encontramos os estudos provenientes de uma viso natural e de outro lado os estudos de viso cultural e, dificilmente um se integra ao outro. Esta separao entre natureza e cultura est centrada no pensamento iluminista do sculo XVIII, j superada pelas Cincias Humanas, mas ainda presente na Educao Fsica atual.

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    Mais uma vez concordamos com Daolio (informao verbal)1 quando prope a superao da clebre oposio entre natureza e cultura optando por utilizar o termo Natureza Cultural. Assim, acreditamos na juno dos dois conceitos sem que um sobreponha-se ao outro nem ao menos que um seja excludo frente ao outro. Desta forma considerada a natureza biolgica do indivduo, porm considerando-o como parte de contextos culturais diferenciados.

    De maneira ainda mais enftica, Durham (1984) escreve ser impossvel considerar um indivduo apenas matria, sob uma perspectiva apenas biolgica e afirma que, sem as construes sociais, ou seja, sem

    [...] as orientaes, regras simbolicamente construdas, o homem no teria um comportamento mais natural - seria, ao contrrio uma monstruosidade biologicamente invivel, incapaz de governar seus impulsos, viver em sociedade e organizar sua ao sobre o mundo (p. 72).

    Com a citao descrita acima nos parece que a Educao Fsica tem tratado o homem como um ser incompleto, esquecendo-se dos smbolos que construmos ao longo da vida e que se tornam indissociveis de cada um de ns. Os smbolos tornam-se elementos constitutivos da vida social e estes so cercados de significados constitudos por ns, ou como cita Geertz (1989) defendendo um conceito de cultura semitico, o homem um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu (p.15) e, assumindo isto, o autor entende a cultura como sendo essas teias.

    Para Geertz (1989) a cultura um contexto como sistemas entrelaados de signos interpretveis, a cultura pblica, pois, segundo ele, o significado tambm o .

    Em um ponto acreditamos que as vrias abordagens emergentes da Educao Fsica concordam entre si, que esta uma rea de conhecimento que trabalha com o homem; sendo assim no se pode conformar que o conceito de cultura esteja distante ou at seja inexistente, principalmente se tomarmos como certas as citaes feitas anteriormente a respeito da impossibilidade de um homem sem construes simblicas. Estes homens com os quais trabalhamos devem ser vistos e entendidos em sua totalidade.

    Os conhecimentos abordados nas aulas de Educao Fsica so manifestaes culturais explicitadas atravs do corpo. Os jogos, os esportes, as lutas, as danas (entre outros que vem sendo propostos por alguns autores) manifestam-se de diferentes formas dependendo do tempo e espao que esto inseridos, ou seja, dependendo das construes simblicas que os cercam.

    1 Citao utilizada por Daolio, J. em aulas do Programa de Ps Graduao Mestrado/Doutorado da FEF Unicamp, na disciplina ministrada por ele: Educao Fsica e Cultura, no 2 semestre de 2001.

    O fato de referenciar estes conhecimentos significa, para ns, levar em considerao aqueles que fizeram parte das experincias do grupo familiar (pais, avs, irmos, etc) conhecimentos estes que, estruturam as formas de ser e pertencer ao grupo social, outorgando-lhes uma identidade. A isto denominamos Educao Patrimonial (PREZ GALLARDO, 2003).

    Entendemos que as aulas de Educao Fsica na escola devam ser trabalhadas a partir dos elementos da cultura corporal, com a idia de diversific-los e ampli-los, com o intuito de aumentar e possibilitar novas experincias, alm de transferi-los para situaes mais complexas. Consideramos que esta ampliao se d de forma espiralada, isto , a partir do conhecimento adquirido no grupo social familiar e ampliando esta estrutura para os conhecimentos relativos regio que o aluno pertence, posteriormente cidade, seguida de uma viso nacional e at internacional.

    Acreditamos que dessa forma, o aluno perceba-se e considere-se como parte integrante da formao e recriao dessas manifestaes culturais com as quais a Educao Fsica trabalha, passando essas a ter sentido e significado no ambiente escolar.

    A dana e a abordagem cultural: discusses preliminares

    Durante algum tempo estamos atendo-nos ao estudo da dana acreditando que esse seja mais um dos elementos a ser trabalhado pela Educao Fsica no contexto escolar. Atualmente temos nos preocupado com este conhecimento focando principalmente os processos metodolgicos utilizados pelos professores que trabalham com o mesmo.

    Os significados da dana para os alunos so os mais variados, diferenciando-se muito de acordo com a prtica metodolgica utilizada pelo professor. O que percebemos, em estudo recente, que a dana, na escola, assume as caractersticas mais tradicionais da Educao Fsica, fazendo-se valer como uma mera oportunidade de reproduo de movimentos rtmicos. Em geral, o professor escolhe uma msica, elabora uma seqncia coreogrfica de acordo com uma data festiva vigente e os alunos, todos iguais, copiam a movimentao (EHRENBERG, 2003). Aquela dana, inserida na escola brasileira com carter e objetivos biologicistas iniciada em 1854, citada anteriormente, parece perpetuar-se.

    Freqentemente, ao serem questionados sobre o valor cultural que a dana possibilita aos alunos, os professores o reconhecem e o consideram como positivos. Muitos professores dizem que buscam passar estes significados aos seus alunos valorizando a cultura nacional, apresentando danas tpicas brasileiras, aquelas que eles no conhecem, mas que fazem parte da nossa histria (EHRENBERG, 2003). Implicitamente, percebemos neste discurso que, ainda nos dias de hoje, falar de cultura pode significar falar do outro, do que no nos comum.

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    Fazendo um paralelo com a Antropologia, j que esta , segundo Laplantine (1988) uma cincia que busca estudar o homem por inteiro e suas diversidades histricas e geogrficas, consideramos importante destacar o relato feito por este autor sobre os antroplogos ao iniciarem os estudos das sociedades humanas, ou seja, das culturas humanas. Ele descreve que estes estudiosos dedicaram-se primeiro aos estudos das sociedades no tradicionais, no caso, as comunidades camponesas, depois grupos marginais e por ltimo e h apenas poucos anos o setor urbano. O autor reconhece a dificuldade de nos perceber como seres culturalmente constitudos e diz que [...] de fato, presos a uma nica cultura, somos no apenas cegos dos outros, mas mopes quando se trata da nossa (LAPLANTINE, 1988). No entanto, atualmente, j se reconhece a nossa cultura entre tantas outras, mas consideramos que temos ainda dificuldade em analis-la, critic-la e explor-la.

    Reconsiderando o conhecimento da Educao Fsica em questo, inmeras so as manifestaes culturais expressas atravs da dana. A cada gerao surgem novas peculiaridades, em cada regio de um nico pas como o nosso encontramos singularidades de movimentos rtmicos. Mas, o que encontramos no interior das escolas, quando no so movimentos mecnicos reproduzidos pelos alunos em funo de uma data comemorativa, so as danas ditas folclricas (este termo deveria ser conhecido com maior profundidade por aqueles que dizem trabalhar com ele) ou populares de diferentes regies do pas, mas ainda assim sendo reproduzidas sem interpretao de seus valores e significados. Sinceramente no sabemos qual o valor que se pode dar ao ensino (destacamos por considerarmos que ensino vai alm da simples cpia) do Maracatu2, por exemplo, a alunos de uma escola no interior de So Paulo, ou qualquer outra manifestao de dana, sem que os alunos sequer saibam sua origem, seu significado e suas reconfiguraes dos dias atuais. Exaltamos aqui que no desconsideramos a importncia de conhecer manifestaes culturais longnquas, porm elas devem ser contextualizadas.

    Sem dvidas existem vrias formas culturais de se compreender a dana, formas estas construdas ao longo dos tempos e especfica de cada local, mas no existe sentido em estudar tais manifestaes desvinculadas de seu contexto social, poltico, histrico. necessrio ir alm do movimento por si s e com fins em si mesmo. A dana, como outras manifestaes da cultura corporal, capaz de inserir o seu aluno ao mundo em que vive de forma crtica e reconhecendo-se como agente de possvel transformao, mas, para tal necessrio no apenas contemplar estes contedos e sim identific-los, vivenci-los e interpret-los corporalmente.

    2 Maracatu uma dana de origem africana executada ao som de instrumentos de percusso alm de violas. Dana muito conhecida na regio Norte do Brasil.

    As crianas e adolescentes das nossas escolas de hoje possuem um rico e vasto conhecimento de suas prprias tribos. Elas identificam-se nesse universo particular que, sem dvida, est entrelaado em significados. Ser, ento, que estes conhecimentos trazidos pelos prprios alunos, muitas vezes provenientes de uma cultura de massa televisiva, no so manifestaes culturais dignas de serem aproveitadas nas nossas aulas?

    Na verdade, toda influncia que a mdia exerce sobre a populao s ocorre porque existe grande aceitao por parte dessa populao e de nada adiantaria uma censura ou proibio, pois limitaria as pessoas a refletirem e aqui cabe o papel da escola (SBORQUIA; PREZ GALLARDO, 2002, p. 105).

    Por estarmos tratando do trabalho da dana, reconhecemos ser necessrio filtrar as danas ditas da mdia ao inseri-las no interior da escola e discuti-las como manifestaes culturais de nossos tempos, mas no concordamos que a dana seja mais um conhecimento da Educao Fsica a reproduzir movimentos mecnicos totalmente pobres de significados e sentidos.

    Todos os elementos corporais tratados pela Educao Fsica so culturalmente construdos e determinados por ns com diferentes significados, dependendo do contexto que esto inseridos e isto precisa ser considerado.

    Entender e considerar que mudar o conceito at ento estabelecido pode tornar a rea mais rica parece-nos confortvel. Como ento redirecionar o ensino da dana no contexto escolar, a luz de uma categoria cultural?

    A dana na escola: uma sugesto metodolgica

    A dana, sendo um dos elementos da cultura corporal a ser trabalhado nas escolas junto ao componente curricular de Educao Fsica, pode contribuir para um conhecimento de nossa realidade em diferentes mbitos, seja como referncia da cultura local, regional, nacional ou internacional. O necessrio reconhecer que fazemos parte desta realidade e considerar que estamos fazendo histria a cada dia, que construmos os significados de nossas vidas a cada aula e talvez a cada nova composio coreogrfica. No entanto, enquanto estivermos apenas reproduzindo movimentos prontos, sem pensar ou agir sobre eles, pouca coisa estaremos construindo e em nada teremos superado aquela Educao Fsica mecnica e com caractersticas unicamente biolgicas.

    Sugerimos que a dana, inserida nas aulas de Educao Fsica no ultrapasse o mbito da vivncia, proporcionando aos alunos que experimentem e apropriem-se desta possibilidade de manifestao corporal. O interesse pedaggico no deve estar centrado predominantemente no domnio tcnico do

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    conhecimento trabalhado, mas sim na possibilidade de incorporao das muitas tcnicas de execuo que possibilitem a sua transferncia para vrias outras situaes ou contextos (PREZ GALLARDO, 2002).

    Sugerimos uma diviso para as aulas em trs etapas:

    O primeiro momento refere-se explorao de movimentos espontneos. No caso de uma msica, ou outro estmulo sonoro escolhido como referncia, no necessrio conhecer os passos e movimentos especficos da mesma. Neste primeiro momento buscamos estabelecer uma linguagem corporal comum ao grupo. Este seria o momento de exteriorizar o que sentimos em relao msica, transformando a linguagem musical em linguagem do movimento. Explorar os movimentos em diversos planos e eixos, ora sozinhos, ora em duplas, ou pequenos grupos, reconhecer a si mesmo e interagir com os outros construindo diferentes maneiras de se locomover alm de elaborar formaes que variem no espao pr-estabelecido, fazem parte desse processo inicial.

    Acreditamos ser necessrio ressaltar que nem toda dana faz-se ao som musical, o ritmo corporal, cadenciado pelo silncio pode ser considerado uma forma de dana muito comum entre os estilos contemporneos, no entanto muitos estudos j comprovam o fator motivacional que a msica capaz de proporcionar ao ser humano, sendo assim a escolha da mesma pode contribuir com a aceitao e participao efetiva dos alunos na aula de Educao Fsica. Alm disso, concordamos com Schroeder (2000) ao considerar em seu trabalho que a msica s sustenta-se na dana como fora expressiva e no como cerne, porm ao emprestar o mpeto de seu fluxo a uma composio corporal, msica e dana acabam por somar riquezas, ampliando o alcance sugestivo e as possibilidades de articulao, revigorando assim, sua fora expressiva, uma na outra.

    Num segundo momento da aula, com a msica internalizada, sentida e vivida, consideramos ser pertinente a relao de troca de experincias entre alunos que j conhecem a dana escolhida e os que desconhecem. A experimentao dos movimentos mais prximos ao tipo de dana que est sendo estudada deve acontecer sem grandes preocupaes em relao forma estrutural. As movimentaes podem ser adaptadas caso seja necessrio, de acordo com as necessidades da turma, no entanto importante que os alunos saibam e conscientizem-se de que existe uma forma j criada, culturalmente determinada e que, conforme as necessidades, estaremos recriando-as em aula, configurando-as conforme a realidade inserida.

    Acreditamos que, em pequenos grupos, os alunos possam elaborar seqncias simples utilizando-se da movimentao explorada no primeiro momento da aula, alm de movimentos do segundo momento, possivelmente j conhecida.

    No terceiro e ltimo momento, consideramos que a contextualizao da dana trabalhada deve fazer-se presente. Refletir e esclarecer o significado da dana estabelecida em diferentes aspectos como, em que regio se apresenta, seu carter histrico, a questo das vestimentas e indumentrias, bem como comparar a diferena de movimentos realizados antes no primeiro momento (espontneos) e a caracterizao dos movimentos mais especficos. A utilizao de vdeos, gravuras, fotos, pode contribuir com este momento de contextualizao.

    Desta forma, acreditamos iniciar a visualizao de um processo mais consciente, efetivo e de um aluno mais integrado ao conhecimento que est sendo desenvolvido e no apenas uma repetio de movimentos secos, frios e vazios de significados.

    Prez Gallardo (2002) prope uma classificao das danas segundo sua origem, a fim de facilitar a delimitao deste conhecimento na escola. Segundo o autor, para estar inserida nas aulas de Educao Fsica possvel considerar as danas tradicionais ou folclricas, por representarem a cultura particular de uma regio, e as danas populares que so aquelas veiculadas pelos meios de comunicao e praticadas pela comunidade, chegando, em alguns casos, a tornarem-se tradicionais. Ressaltamos aqui, como j citamos anteriormente, a importncia do professor em reconhecer este tipo de dana como relevante e propcio, ou no, para o mbito escolar.

    Com a classificao citada, busca-se oportunizar ao aluno reconhecer e interpretar as danas do seu cotidiano, bem como conhecer representaes que no fazem parte de seu universo mais prximo. Todos os tipos de dana selecionados para serem trabalhados nas aulas devem possibilitar interpretaes e (re) criaes do que j se tem constitudo, ou seja, no necessariamente ir se reproduzir o ritmo do Forr proveniente da regio Nordeste do Brasil e sim, alm de vivenci-lo, busca-se interpret-lo, identificar as semelhanas e diferenas regionais podendo criar um Forr de acordo com o contexto do prprio mbito escolar que se est inserido.

    Apresentao de vdeos, discusses de textos e questes problematizadoras, alm de movimentaes exploratrias das coreografias so um conjunto de possibilidades para um trabalho de dana na escola.

    A sugesto que se faz cabe no s para o conhecimento da dana, em especfico, mas acreditamos fazer parte de um trabalho mais completo da Educao Fsica no contexto escolar. O aluno deve ser estimulado a conhecer e reconhecer-se como agente constituinte do meio, possibilitando apropriar-se das manifestaes corporais que so (re) criadas por ns ao longo dos tempos.

    O homem por inteiro, inserido numa Natureza Cultural (utilizando o termo sugerido por Daolio) que a Educao Fsica comea a perceber, capaz de

  • M. C. Ehrenberg & J. S. P. Gallardo

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    transmitir os sentimentos da vida pela arte, sentimentos estes essenciais. Desta forma, acreditamos que a dana, inserida como elemento da cultura corporal e, portanto tratada na escola pela Educao Fsica, ainda tenha um longo caminho a percorrer. Mas a discusso est aberta e parece que nos ltimos anos debates relevantes a respeito do aspecto cultural para nossa rea tem se findado, o que no poderia ser diferente, afinal como mais uma vez, citamos Daolio (1998), os profissionais da Educao Fsica no lidam simplesmente com o corpo, [...] mas com a cultura expressa nele e por ele(p. 27).

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    Endereo: Mnica Caldas Ehrenberg Av. Senador Flaquer, 746/51 Vila Euclides So Bernardo do Campo SP 09725-443 E-mail: [email protected]

    Manuscrito recebido em 21de julho de 2005. Manuscrito aceito em 22 de novembro de 2005.