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  • DADOS DE COPYRIGHT

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

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  • Os donos do poder

  • Outras obras do autor: Machado de Assis: A pirmide e o trapzio / A Repblicainacabada (Fbio Konder Comparato, org. e pref.) / A democracia trada:entrevistas (Mauricio Dias, org. e notas)

  • Raymundo Faoro

    Os donos do poder

    Formao do patronatopoltico brasileiro

    5. edio

    prefcio:

    Gabriel Cohn

  • Copyright 1957, 2000 by Raymundo Faoro

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada oureproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecnico ou eletrnico, por

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    Preparao de texto: Maria da Anunciao Rodrigues

    Reviso: Maria Sylvia Castro Corra,Silvana Salerno Rodrigues e Cacilda Guerra

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    Editor digital: Erick Santos CardosoProduo para ebook: S2 Books

    Dados internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Faoro, Raymundo, 1925-2003.Os donos do poder : formao do patronato poltico

    brasileiro / Raymundo Faoro ; prefcio Gabriel Cohn. 5.ed. So Paulo : Globo, 2012.

    Bibliografia.ISBN 978-85-250-5296-4 2.113kb; ePUB 1. Autoritarismo - Brasil 2. Brasil - Poltica e

    governo 3. Elite (Cincias sociais) - Brasil 4. Poder(Cincias sociais) I. Cohn, Gabriel. II. Ttulo.

    12-08262 CDD-

    305.520981

    ndices para catlogo sistemtico:

  • 1.Brasil : Poder e autoridade : Classes

    sociais 305.520981

    Direitos da edio em lngua portuguesa

    adquiridos porEDITORA GLOBO S.A.

    Av. Jaguar, 1485 05346-902 So Paulo spwww.globolivros.com.br

  • Maria Pompa

  • Nicht nur der Vernunft von Jahrtausenden auchihr Wahnsinn bricht an uns aus. Gefhrlich ist es, Erbe zu sein.

  • Sumrio

    CapaFolha de RostoCrditosDedicatriaEpgrafeSumrioPersistente enigmaPrefcio segunda edioCaptulo I ORIGEM DO ESTADO PORTUGUS

    1 - A guerra, o fundamento da ascendncia dos reis. As bases damonarquia patrimonial: as contribuies e os concelhos

    2 - Os fundamentos ideolgicos da monarquia: o direito romano3 - O Estado patrimonial e o Estado feudal

    Captulo II A REVOLUO PORTUGUESA1 - 1. Preliminares da revoluo de 1383-85: a nobreza, a burguesia e dom

    Fernando2 - A Revoluo de Avis: vitria da burguesia sob a tutela do rei3 - O estamento: camada que comanda a economia, junto ao rei4 - Da aventura ultramarina ao capitalismo de Estado5 - A ideologia do estamento: mercantilismo, cincia e direito

    Captulo III O CONGELAMENTO DO ESTAMENTO BUROCRTICO1 - A cidade comercial: a corte barroca e o funcionrio2 - O congelamento e a paralisia do Estado barroco3 - Elite e estamento

    Captulo IV O BRASIL AT O GOVERNO-GERAL1 - A inveno ednica da Amrica2 - A integrao da conquista no comrcio europeu3 - Colonizao como prolongamento do sistema de feitorias4 - A colonizao: regime poltico e administrativo das capitanias. Vnculos

    da colnia com a metrpole5 - A distribuio de terras: mudana do sentido da sesmaria, com o

    predomnio do contedo dominial sobre o administrativo6 - O chamado feudalismo brasileiro

    Captulo V A OBRA DA CENTRALIZAO COLONIAL1 - O governo-geral: causas de sua criao2 - Os municpios e a centralizao3 - Os colonos e os caudilhos: a conquista do serto

    Captulo VI TRAOS GERAIS DA ORGANIZAO ADMINISTRATIVA,SOCIAL, ECONMICA E FINANCEIRA DA COLNIA

  • 1 - A administrao e o cargo pblico2 - O espectro poltico e administrativo da metrpole e da colnia3 - As classes: transformaes e conflitos4 - A apropriao de rendas: o pacto colonial, monoplios, privilgios e

    tributosCaptulo VII OS PRDROMOS DA INDEPENDNCIA

    1 - A vida rural do comeo do sculo XIX: a autarquia agrcola2 - A transmigrao e a frustrada reorganizao poltica e administrativa3 - O dissdio e a transao

    Captulo VIII AS DIRETRIZES DA INDEPENDNCIA1 - A tentativa de reorganizao poltica do pas independente2 - O Poder Moderador e a luta parlamentar3 - O sistema poltico do 7 de abril4 - As reformas do 7 de abril: a descentralizao

    Captulo IX A REAO CENTRALIZADORA E MONRQUICA1 - A reorganizao da autoridade: a conciliao geogrfica e a reao

    centralizadora2 - As bases econmicas da centralizao3 - Os fundamentos legais da centralizao monrquica

    Captulo X O SISTEMA POLTICO DO SEGUNDO REINADO1 - O modelo francs e o ingls2 - O parlamentarismo e o Poder Moderador3 - A representao do povo: as eleies4 - O estamento burocrtico

    Captulo XI A DIREO DA ECONOMIA NO SEGUNDO REINADO1 - Economia dependente, sob a orientao do Tesouro2 - O regime de terras, o agricultor e o comissrio3 - O centro estatal do crdito: o dinheiro e as emisses4 - O poltico e o especulador

    Captulo XII O RENASCIMENTO LIBERAL E A REPBLICA1 - Do liberalismo propaganda republicana2 - A fazenda sem escravos e a Repblica3 - O Exrcito na monarquia e sua converso republicana

    Captulo XIII AS TENDNCIAS INTERNAS DA REPBLICA VELHA1 - Liberalismo econmico e diretrizes econmicas do perodo republicano2 - O militar e o militarismo3 - A transio para o federalismo hegemnico: a poltica dos governadores

    Captulo XIV REPBLICA VELHA: OS FUNDAMENTOS POLTICOS1 - A fora e a fragilidade da poltica dos governadores. O consulado de

    Pinheiro Machado2 - A ordem e a contestao. O novo presidencialismo

  • 3 - O sistema coronelistaCaptulo XV MUDANA E REVOLUO

    1 - O abalo ideolgico e as aspiraes difusas2 - A emergncia do Estado forte e o chefe ditatorial.3 - Os novos rumos econmicos e sociais

    Captulo final A VIAGEM REDONDA: DO PATRIMONIALISMO AOESTAMENTOFac-smile de manuscritosBibliografia sobre Ray mundo Faorondice remissivo

  • Persistente enigma

    Admitamos, de sada: para um exigente estudo histrico-sociolgico publicado hmeio sculo por obscuro advogado gacho sem vnculos com a academia numaeditora de Porto Alegre mais conhecida na rea estritamente literria, serreconhecido hoje como uma das grandes interpretaes do Brasil no sculo xxno coisa de somenos. Pois Os donos do poder: formao do patronato poltico brasileiro tudo isso. Antes mesmo de falar da obra e sequer nomear seu autor, seja feito odevido registro de circunstncia que exige lembrana, em nome da justia. Nofosse a ousada aposta desse admirvel empreendimento editorial que j era emmeados do sculo passado a editora Globo, talvez no tivssemos hoje em moseste livro. Mais do que isso: o livro talvez no tivesse vencido com dificuldade eao longo de no poucos anos a muralha da indiferena se no ocorresse aalgum na editora (consta que Erico Verissimo) a ideia de reservar ao ttulooriginal, que aludia formao do patronato poltico, a condio de subttulo elhe antepor a referncia, tirada da obra, aos donos do poder. Lance de gnio,que tornou incisiva a luz ainda um tanto baa do ttulo anterior. Claro que issono deve obscurecer o fato de que esse livro se insere na florao de obrasrelativas formao que, maneira de um testemunho do amadurecimento dascondies histricas para tal, vieram a lume nos anos finais da dcada de 1950 dosculo passado. Formao econmica do Brasil, formao da literatura brasileira outros clssicos, enfim, aos quais Faoro veio trazer a sua interpretao daformao poltica brasileira.

    J aqui, contudo, desponta a originalidade da obra. Pois, se o ttulo fala emformao, a forma o grande problema na anlise, ao invs de se apresentarcomo seu desenlace natural. No tanto porque falte forma, talvez at porque ahaja demais. O que h no cerne mesmo da interpretao de Faoro e desde logolhe d originalidade que no h neste livro nada que se assemelhe ao relato dagradativa constituio de uma configurao nacional com feio e dinamismoprprios. mais propriamente a crnica de uma deformao ou, maisprecisamente, de uma m formao que nele se encontra. Nada da gradativaproporo e sincronia das partes de um todo harmonioso. o extemporneo e odesconexo que absorvem a ateno e suscitam a questo decisiva: no a de comoisso ganhou forma e sim a do segredo da persistncia daquilo que Faoro, citandoToynbee, designa como monstruosidade social.

    Antes de formular aquilo que o prprio Faoro chama de enigma e tentarreconstruir a resposta para a qual sua anlise aponta, tempo de expor algunstraos centrais do seu argumento. Para Faoro, o entendimento do Brasil

  • contemporneo (e isso se aplica tanto a 1958, quando saiu a primeira edio dolivro, quanto a 1975, na segunda edio muito ampliada, e a 2001, na terceiraedio revista e por certo tambm a agora, no cinquentenrio da obra) s possvel se atentarmos para uma matriz histrica localizada em Portugal umsculo e meio antes de suas naves aportarem nesta terra. Essa matriz marca umdescompasso na histria portuguesa e assinala uma soluo peculiar para ele. EmPortugal, desde a ascenso ao poder da dinastia de Avis com dom Joo I em 1385,uma simbiose entre os interesses da realeza e do comrcio abre espao para aconstituio de um poder estatal centralizado com base econmica napropriedade fundiria, de tal sorte que esse embrio de Estado nacionalcentralizado se torna moderno quando ainda ningum o era. Mas isso se d demaneira singular, muito prpria, que lhe custaria ver sua precoce modernidade seconverter em persistncia fatal, em multissecular repetio da mesma estruturacom contedos diferentes, numa espcie de fixao neurtica histrica. Deprecoce a sua singular modernidade se converte em senil sem tirar proveito dasua efmera glria juvenil na poca pioneira da expanso ultramarina. O segredoda precocidade lusa consiste na peculiar amlgama que ocorre quando areconquista do territrio sob domnio mourisco e a incorporao de vastasextenses de terra ao tesouro real vale dizer, do rei que assim se equipa para oexerccio de um poder de carter patrimonial, no qual a fazenda pblica seconfunde com a propriedade do mandatrio maior , associada expansocomercial que, com o decisivo apoio do novo Estado, lana as bases para ograndioso empreendimento das navegaes na explorao de terras distantes,permite a Portugal dar o salto para a centralizao poltica num Estadoempreendedor comercial, quando no resto da Europa o rumo da histria seguiaoutra via. Essa outra via era a do sistema feudal, da partilha do poder entresuserano e bares, que s seria desmontada com o desenvolvimento docapitalismo na sua vertente industrial, que passa pela consolidao dos estadosnacionais no lugar da descentralizao feudal. Portugal se adianta nacentralizao e abre o caminho para um capitalismo de perfil comercial eorientado a partir do centro do poder, de cunho poltico, portanto. Isso, todavia,significou cortar o caminho para a plena constituio de um capitalismoorientado pela sua lgica prpria de mercado, ao invs de ser pautado pelagesto estatal. Como mais adiante sugere Faoro com relao ao perodosubsequente independncia brasileira, a nova condio nacional se exprime nainternalizao, no do mercado, mas da substituio da oposio entre metrpolee colnia pela entre Estado e nao vale dizer, entre a associao parcial que apartir do Estado rege o conjunto e a sociedade como um todo, conferindo aoEstado feio gestora de ndole mais parasitria do que produtiva.

    O fulcro da argumentao de Faoro com relao forma da matrizhistrica da sociedade brasileira, remota porm persistente nos seus efeitos

  • estruturais, encontra-se, pois, na recusa da tese de que Portugal e por extenso oBrasil tenham conhecido o feudalismo. Essa posio j foi interpretada comomeramente polmica em relao aos representantes de uma historiografia defonte marxista que entendiam ser inadmissvel a passagem para o capitalismo sema etapa feudal. Isso simplifica ambas as posies, e negligencia o fato de que dademonstrao da inexistncia do feudalismo nesses dois casos dependia toda aconstruo analtica de Faoro. Pois apenas com base nisso que ele ganhacondies para identificar a natureza da estrutura social e, por extenso, polticaque aqui se constitui, a partir de Portugal.

    Na ausncia de corpos intermedirios dotados de autonomia poltica comoos feudos, a experincia histrica portuguesa se d mediante um desdobramentopeculiar da forma patrimonialista de organizao do poder. Nesta, o mandatriodetm a propriedade da riqueza e governa mediante funcionrios que soextenso da casa. A revoluo de 1385 em Portugal nem concentrou tudo nafigura real nem assegurou o poder de uma classe (que no caso seria algo comouma burguesia comercial). Embora comerciantes e financistas tivessem sebeneficiado, um novo ator emergiu para ocupar posio vantajosa na estruturasocial e de poder que se constitua: o dos peritos nas leis e nas tcnicas demando. Associados num grupo que se revelava indispensvel ao governo do rei-proprietrio, seus integrantes assentaram as bases para a moldagem de um entesocial capaz de se reproduzir indefinidamente, mediante a aplicao de umprincpio de aglutinao interna e diferenciao externa consoante umaconcepo da honra associada ao pertencimento ao grupo. Temos nisso um casodaquilo que Faoro, seguindo Max Weber, denomina estamento. O ponto decisivo,porm, que esse grupo estamental, que s admite no seu interior quemcompartilhe seu princpio bsico, enquanto pode admitir qualquer um que o faa,assume um carter peculiar nessas circunstncias. que, se nas suascaractersticas prprias o estamento uma forma de associao estritamentesocial (diz respeito a quem est qualificado a se relacionar com quem), nascondies histricas descritas por Faoro ele assume carter de instnciapoliticamente dominante, ao se apropriar de condies de mando e gerarmecanismos para reserv-los para si. Mais do que isso, na medida em que se vodiferenciando as funes de gesto, esse peculiar grupo estamental se amolda snovas exigncias. Destarte vai ganhando o carter que, no entender de Faoro,define a base social do exerccio efetivo do poder na sociedade brasileira dosprimrdios at o presente. Ele o faz ao assumir carter burocrtico, mediante aincorporao dos traos de um rgo voltado estritamente para a gesto. Ocorreque a expresso rgo no boa neste contexto, pois o estamento traz a si opoder de mando, no o exercendo para outrem seno na subordinao formal aomandatrio supremo, seja ele qual for. isso que lhe permite a relativaindependncia da sociedade pela qual adquire poder sobre ela, embora na

  • verdade dela faa parte. O estamento sem mais seria apenas a face social daconstituio de um grupo aglutinado em torno de especfica concepo exclusivade honra. A burocracia sem mais seria mero aparato de poder controlado pelomandante, conquanto indispensvel gesto. A combinao das duas coisas criaum ente de certo modo monstruoso, que ao mesmo tempo bloqueia a organizaodo poder central e a da sociedade a ele submetida. O estamento burocrticoatua, fundamentalmente, no interesse da sua perpetuao; mas, sendo eleprprio ente poltico, sua ao se volta para assegurar o padro de poder centralno qual est incrustado. O tema aparece repetidas vezes na anlise de Faoro.Assim, na abolio do trabalho escravo o estamento se empenha em restaurar opoder sem renov-lo; ou ento, na Repblica, ainda na hora derradeira ele tentasalvar a monarquia, nos moldes tradicionais e, se no o consegue, logra frustraras reformas liberais mais consequentes. Ao examinar o funcionamento do sistemapoltico no Imprio, Faoro comenta que este assenta sobre a tradio, teimosana sua permanncia de quatro sculos, embora ela no se alimente apenas dainrcia, seno de fatores ativos, em movimento e renovao, mas incapazes dealterar os dados do enigma histrico.

    Enigma histrico: isso que se trata de desvendar. O primeiro passo, naanlise de Faoro, consiste em identificar o agente nessa configuraoenigmtica. Sobre as classes que se armam e se digladiam, debaixo do jogopoltico, vela uma camada poltico-social, o conhecido e tenaz estamento,burocrtico nas suas expanses e nos seus longos dedos. E, nesse pontoimportante da sua anlise, Faoro recorre s palavras de participante naquelejogo e autor no qual encontra apoio. Os erros administrativos e econmicos queafligem o imprio no so exclusivamente filhos de tal ou tal indivduo que hsubido ao poder, de tal ou tal partido que h governado: no, constituem umsistema seguido, compacto, invarivel. Eles procedem todos de um princpiopoltico afetado de raquitismo, de uma ideia geradora e fundamental: aonipotncia do Estado, e no Estado a mquina central, e nesta mquina certas edeterminadas rodas que imprimem movimento ao grande todo. em TavaresBastos que Faoro vai buscar essas palavras, traindo nisso um componente da sualinhagem de pensamento (para usar termo de atento leitor seu, Gildo MaralBrando, para quem Faoro pode ser lido como um grandioso prolongamento deTavares Bastos em outro contexto). Faoro, alis, avaro em elogios ao longo desua opulenta obra, cheia de anlises por vezes minuciosas entremeadas porsnteses cortantes. No mximo, deixa entrever sua afinidade com personagem ouautor ao traz-lo ao primeiro plano em passagem central da sua argumentao,como ocorre neste caso. Uma nica exceo: Joaquim Nabuco, o mais altoesprito brasileiro, o homem que melhor conheceu o seu pas. Temos a um poucodas referncias que nortearam suas anlises.

    Desde o lanamento do livro voz corrente que a anlise de Faoro deve

  • muito a Max Weber. verdade, e de maneira que comentarei em seguida. Deve,porm, outro tanto a Montesquieu (esse precursor de Weber em pontosimportantes, como j lembrava Cassirer). Pois um pouco o esprito das leis nasua verso luso-brasileira que est em jogo, o princpio mais fundo que as rege e,sobretudo, o esprito, a alma do capitalismo que se gesta no Brasil no a docapitalismo racional moderno, mas a sua antiga vertente poltica, que abomina emantm distncia o novo. Montesquieu, na verdade, mais propriamente umareferncia negativa, embora ajustada ao objeto da ateno de Faoro, comoancestral que da doutrina da liberdade sem a democracia e do liberalismofora da soberania popular, a qual, na trilha de Benjamin Constant, viria a dar noPoder Moderador imperial na primeira hora do Brasil independente. No possvel, todavia, deixar de lado a poderosa presena intelectual de Max Weber,autor que Faoro estudou muito e conhecia como poucos. Ateno, contudo: noestamos diante de obra weberiana, o que quer que isso signifique, como, alis, oprprio autor adverte. Se Faoro extraiu algo da sua condio provinciana foi aorgulhosa independncia intelectual. Ele faz uso de Weber sua maneira,embora certamente reconhecesse que as categorias histricas que adotou noncleo da sua anlise patrimonialismo, capitalismo politicamente orientado,estamento, burocracia e sua sntese singular no estamento burocrtico devemmuito a ele. Faoro trabalha com o instrumento analtico que Weber denominoutipo ideal; com restries, embora, pois dele s faz uso da capacidade decaracterizar com nitidez o objeto, sem se preocupar com o outro passo, que seriao estabelecimento de comparaes com vistas ao traado de diferenassignificativas. H, contudo, um aspecto central na anlise de Faoro que evoca,surpreendentemente talvez, um ponto pouco explorado no esquema de Weber.Faoro usa seguidamente a imagem do estamento burocrtico como molde ourevestimento que recobre a nao, tolhendo os seus movimentos naquilo que,conforme uma das suas expresses, seria o abrao sufocante da carapaaadministrativa. Na realidade, ele usa duas frmulas. Uma a da supremaciasobre as classes e o conjunto da sociedade. A outra se refere ao invlucroasfixiante, reforada pela ideia do congelamento estrutural. Socomplementares: uma diz respeito dimenso propriamente estamental, a outraconcerne dimenso administrativa, burocrtica. Somadas no estamentoburocrtico, tolhem a sociedade de ponta a ponta no seu avano para ocapitalismo competitivo moderno e o regime poltico liberal-democrtico. Oponto essencial, no qual se encontra a chave para a soluo do enigma histricoexposto em Os donos do poder, a questo da rigidez, do carter inelstico daestrutura de poder. E aqui podemos invocar Weber, por um ngulo que Faoro nochega a explicitar, mas que no lhe ter passado despercebido na sua leitura deEconomia e sociedade (at porque, no essencial, se encontra no captulo daquelaobra sobre feudalismo, estado estamental e patrimonialismo). que Weber tira

  • amplo proveito da ideia de estereotipagem de relaes sociais no interior deformas de exerccio do poder, associada ao contraste entre rigidez e elasticidadedas relaes. Com efeito, quanto mais estereotipadas vale dizer, regularizadas esto as relaes, mais o conjunto delas se torna rgido, no sentido desubmetido a restries, no limite (que corresponde s formas sociais maismodernas) mantidas por regulamentao legal. A tendncia histrica, nassociedades ocidentais pelo menos, consiste em passar do mais elstico ao maisrgido que corresponde, tambm, ao mais previsvel e, nessa linha, ao maisracional. Neste ponto, entretanto, encontramos uma espcie de paradoxo naargumentao de Faoro, que ele prprio resolver. que ele reiteradamentesugere que o grande problema da presena histrica do estamento burocrticoreside na rigidez que ele impe ao conjunto da sociedade e nos empecilhos inovao nisso envolvidos. Entretanto, se bem examinarmos a sua argumentao,veremos que no se trata de excessiva rigidez, mas, em certo sentido, docontrrio: de uma forma peculiar de plasticidade. Como diz Faoro, o estamentoburocrtico serve de molde ao conjunto das relaes econmicas e polticas.Com isso fica claro que ele se refere ao revestimento, ao envoltrio dasociedade; forma, em contraste com o contedo. Nisso, alis, ele inteiramente afim ao esquema analtico de Weber, o qual nas suas anlisesmacro-histricas sempre deu mais ateno s formas assumidas pelos contedossociais as aes dotadas de sentido para os agentes do que variedade destes(a nica maneira, alis, de passar do plano estritamente individual da ao para ocoletivo, de massa). A forma historicamente assumida pela congrie de aeseconmicas e polticas na sociedade brasileira, como j na portuguesa, entoestamental-burocrtica, e em nenhum momento feudal. Nesse ponto nosaproximamos de um contraste decisivo. que, bem vistas as coisas, a formaestamental-burocrtica tem efeito asfixiante sim, mas no por ser demasiadorgida e sim por aquilo que, falta de melhor termo, designarei como resilincia(em Faoro o termo no aparece). Submetida a presso ela cede, para em seguidareassumir a configurao original. Da a sua eficcia, e da tambm a suacapacidade de resistir ao avano do capitalismo moderno. Pois este foi bem-sucedido no seu avano quando seu obstculo era o feudalismo, um sistema que,como mostra Weber, menos elstico, tem menor plasticidade do que oestamental de raiz patrimonial. por isso que a demonstrao de que nem emPortugal nem no Brasil jamais houve feudalismo to importante para Faoro. Ocontraste claro para ele. Submetido ao impacto do capitalismo, sustenta ele, osistema feudal, de feitio rgido, se estilhaa; mas no ocorre o mesmo com osistema patrimonial de feitio estamental-burocrtico, capaz de acomodao ecompatibilidade enquanto resiste a mudanas de forma. Caractersticoprincipal, o de maior relevncia econmica e cultural, ser o predomnio, junto aofoco superior de poder, do quadro administrativo, o estamento que, de

  • aristocrtico, se burocratiza progressivamente, em mudana de acomodao eno estrutural. (...) O caminho burocrtico do estamento, em passosentremeados de compromissos e transaes, no desfigura a realidadefundamental, impenetrvel s mudanas. (...) A compatibilidade do modernocapitalismo com esse quadro tradicional, equivocadamente identificado ao pr-capitalismo, uma das chaves da compreenso do fenmeno histrico portugus-brasileiro. No desfigura. A monstruosidade social no uma deformao,antes forma resiliente, obstinada, persistente, apesar de todas as deformaesmomentneas, que se resolvem em acomodao e compatibilidade. A chave doenigma, portanto, est na resilincia da forma patrimonial, em contraste com arigidez feudal, que Portugal e Brasil no conheceram, e que obsta o caminhopara a modernidade econmica e poltica.

    Por vezes censura-se Faoro por fazer incidir sua crtica sobre o Estadocomo o epicentro dos problemas nacionais, como se ele, ao cabo da sua anlise,fosse levado a converter-se em defensor de algo como o Estado mnimo, numliberalismo exacerbado. O problema de Faoro, contudo, no o Estado, e sim anatureza que ele assume nas condies histricas brasileiras. a forma doEstado que absorve a sua ateno; mais precisamente, a dificuldade senoimpossibilidade histrica do Estado racional liberal-democrtico, enleado ( bemisso, mais do que sufocado) que est na forma estamental-burocrtica. A questode Faoro passa por uma das suas imagens, a de verter vinho novo em odre velho:como liberar contedos novos em moldes antigos? E, por extenso, claro: comoconstruir moldes novos? Bem vistas as coisas, esse tipo de questo perpassa todoo grande pensamento social brasileiro no sculo xx, em formulaes eperspectivas diversas. A originalidade de Faoro no consiste em ver carterproblemtico na sociedade brasileira em seu perfil e no seu desenvolvimentohistrico, mas no modo como formula a questo e na implacvel coerncia daargumentao que disso retira.

    Faoro encerra o livro falando da viagem redonda, imagem que refora atese do livro e lhe valeu ser censurado por ter produzido obra em tom fatalista, deacerbo pessimismo, como se o caminho j percorrido (se que realmente houvepercurso que no circular) constrangesse todos os trajetos possveis, extremandoaquilo que alguns chamariam de path-dependence. Isso, todavia, entra emchoque com a sua trajetria pessoal, que duas dcadas aps publicar Os donos dopoder o levou a participar em posio de frente no combate ao arbtrio do regimemilitar, especialmente na condio de presidente da Ordem dos Advogados doBrasil OAB entre 1977 e 1979, e a manter-se ativo como figura pblica depoisdisso at a morte. Pessimismo da inteligncia, otimismo da vontade, diriamalguns, citando autor que ele certamente apreciava.

    Gabriel Cohn

  • Professor do Departamento de Cincia Polticada Universidade de So Paulo

  • Prefcio segunda edio

    Montaigne, que nega ao autor o direito de alterar o texto de um livro hipotecadoao pblico, justificou as suas infidelidades ao princpio, com este subterfgioresvaladio: Jadjouste, mais je ne corrige pas. Posso afirmar, sem receio ao olhomalicioso e zombeteiro do francs quinhentista, que a tese deste ensaio amesma de 1958, ntegra nas linhas fundamentais, invulnervel a treze anos dedvidas e meditao. A forma, todavia, est quase totalmente refundida, outra adisposio dos assuntos, adequado o estilo s minhas exigncias atuais. Houve oacrscimo de dois captulos e a adio de inmeras notas, ordenadas ao fim dovolume, para orientar o leitor acerca das fontes do trabalho.

    Os conceitos bsicos patrimonialismo, estamento, feudalismo, entreoutros esto fixados com maior clareza, indicada a prpria ambiguidade que osdistingue, na cincia poltica. A perplexidade que alguns leitores da primeiraedio demonstraram, ante uma terminologia aparentemente bizarra, estaratenuada, neste novo lanamento. Advirta-se que este livro no segue, apesar deseu prximo parentesco, a linha de pensamento de Max Weber. No raro, assugestes weberianas seguem outro rumo, com novo contedo e diverso colorido.De outro lado, o ensaio se afasta do marxismo ortodoxo, sobretudo ao sustentar aautonomia de uma camada de poder, no diluda numa infraestruturaesquemtica, que daria contedo econmico a fatores de outra ndole. Estopresentes, nas pginas que se seguem, os clssicos da cincia poltica, Maquiavele Hobbes, Montesquieu e Rousseau, relidos num contexto dialtico. As hiptesese conjeturas, em aberta rebeldia aos padres consagrados, inspiram-se nopropsito de abarcar, num lance geral, a complexa, ampla e contraditriarealidade histrica. Um longo perodo, que vai do Mestre de Avis a GetlioVargas, valoriza as razes portuguesas de nossa formao poltica, at agoradesprezadas em favor do passado antropolgico e esquecidas pela influncia decorrentes ideolgicas, originrias da Frana, da Inglaterra e dos Estados Unidos,s traduzidas nos ltimos cento e cinquenta anos. Na evocao no se pode evitaro eu de um longnquo pesadelo, com certas rabugens de pessimismo, comolembrou um amvel crtico, mais amigo do que crtico.

    Contra, na elaborao deste ensaio, nas suas duas feies, muitas dvidas,que no comprometem a responsabilidade dos credores. A maior de todas devo-aa Guilhermino Cesar, que, ainda em Porto Alegre, no carinhoso convvio demuitos anos, discutiu as hipteses e suscitou questes novas, franqueando-me suabiblioteca para o estudo e a pesquisa. O prprio ttulo do livro, ao que apurei, saiude uma de suas sbitas inspiraes. Augusto Meyer e Jorge Moreira leram os

  • originais. Paulo Olinto Vianna e Slvio Duncan cuidaram da reviso, compacincia e amor mincia. Arthur Cezar Ferreira Reis, no preparo destaedio, socorreu-me com preciosas indicaes bibliogrficas, acompanhadas doemprstimo do livro raro. Amandino Vasconcellos Beleza, com seu vigilante bomgosto, leu os originais, aparando erros e atalhando incongruncias. GenolinoAmado incumbiu-se da reviso das provas tipogrficas, em testemunho degenerosa amizade. No devo esquecer, neste elenco, o meu editor, representadopor Jos Otvio Bertaso, que se decidiu aventura e ao risco, confiado apenas nomrito discutvel do livro, em homenagem a um autor que, sem conhec-lo,enviou-lhe os originais pelo correio alma forte e corao sereno, como delediria o maior de seus editados, Simes Lopes Neto.

    Rio de Janeiro, fevereiro de 1973.

    R. F.

  • Captulo I

    ORIGEM DO ESTADO PORTUGUS

    1. A guerra, o fundamento da ascendncia dos reis. As bases da monarquia patrimonial: as contribuies e os concelhos2. Os fundamentos ideolgicos da monarquia: o direito romano3. O Estado patrimonial e o Estado feudal

  • 1

    A Pennsula Ibrica formou, plasmou e constituiu a sociedade sob o imprio daguerra. Despertou, na histria, com as lutas contra o domnio romano, foi oteatro das investidas dos exrcitos de Anbal, viveu a ocupao germnica,contestada vitoriosamente pelos mouros. Duas civilizaes uma do ocidenteremoto, outra do oriente prximo pelejaram rudemente dentro de suasfronteiras pela hegemonia da Europa. Das runas do imprio visigtico,disciplinado e enriquecido pela cultura dos vencidos, dilacerado em pequenosreinos, gerou-se um mundo novo e ardente, que transmitiu sua fisionomia aostempos modernos. Do longo predomnio da espada, marcado de cicatrizesgloriosas, nasceu, em direo s praias do Atlntico, o reino de Portugal, filho darevoluo da independncia e da conquista. O reino de Portugal dir, j comanacrnica arrogncia, um annimo escritor do sculo XVII to guerreiro,que nasceu com a espada na mo, armas lhe deram o primeiro bero, com asarmas cresceu, delas vive, e vestido delas, como bom cavaleiro, h de ir para acova no dia do juzo. Dos fins do sculo XI ao XIII, as batalhas, todos os diasempreendidas, sustentadas ao mesmo tempo contra o sarraceno e o espanhol,garantiram a existncia do condado convertido em reino, tenazmente. Aamlgama dos dois fragmentos o leons e o sarraceno , ambos conquistadoscom esforada temeridade, criou a nova monarquia, arrancada, pedao a pedao,do caos. Do elemento leons lhe veio a armadura e a fisionomia, ao elementosarraceno imps seu molde, recebendo, de seu lado, vestgios guardados nocarter e no esprito. Estes dois fatos pertencem histria do pas: constituemas fontes dessa civilizao.[1] No topo da sociedade, um rei, o chefe da guerra,general em campanha, conduz um povo de guerreiros, soldados obedientes a umamisso e em busca de um destino.

    A singular histria portuguesa, sulcada interiormente com a marcha dasupremacia do rei, fixou o leito e a moldura das relaes polticas, das relaesentre o rei e os sditos. Ao prncipe, afirma-o prematuramente um documento de1098, incumbe reinar (regnare), ao tempo que os senhores, sem a aurola feudal,apenas exercem o dominare, assenhoreando a terra sem govern-la.[2] Ainda umavez a guerra, a conquista e o alargamento do territrio que ela gerou, constitui abase real, fsica e tangvel, sobre que assenta o poder da Coroa. O rei, comosenhor do reino, dispunha, instrumento de poder, da terra, num tempo em que asrendas eram predominantemente derivadas do solo. Predomnio, como se ver,no quer dizer exclusivismo, nem a sede dinmica, expressiva da economia. ACoroa conseguiu formar, desde os primeiros golpes da reconquista, imensopatrimnio rural (bens requengos, regalengos, regoengos, regeengos),cuja propriedade se confundia com o domnio da casa real, aplicado o produto

  • nas necessidades coletivas ou pessoais, sob as circunstncias que distinguiam malo bem pblico do bem particular, privativo do prncipe. A conquista ao sarracenoou ao inimigo se incorporava ao domnio do rei, ao reinado, se no apropriada aterra por legtimos ttulos prvios. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, noremoto ano de 1140, alude a todo herdamento e vinhas, e almoinhas, e figueirasque para mim tomei nas cercanias de vora. Dom Dinis, em 1308, lembrava aoconcelho de Santarm ser o proprietrio das terras, visto que El Rey DomAffonso o primeiro Rey de Portugal, que filhou Santarem e Lisboa a Mouros, logoem comeo da povoana da terra as filhou assinadamente para sy, como filhoutodollos outros Reguengos, e todallas outras cousas, que ha...[3] Acentue-se, portemor generalizao, que a obra de restaurao, j completa no sculo XIII,respeitou a propriedade individual. Os morabes, antigos cristos arabizados, osdescendentes dos colonos africanos e asiticos, os sucessores dos sditos evassalos dos reis de Oviedo e Leo tiveram seus bens reconhecidos. Sobravam,todavia, margem desses quistos, largos domnios para apropriar: as terras dosmouros, reduzidas, pelo extermnio ou pela batalha, a terras sem dono; as terrasfiscais dos sarracenos, aquelas reservadas a empresas de colonizao ou aobjetivos vinculados estrutura do Estado; as confiscadas aos particulares, emrepreslia a crimes ou traies; as que caam sob o poder do rei em razo dodireito de monhadego ou monaria, isto , o direito da Coroa de herdar os bensdos viles (vilani) que morriam sem prole.[4] Do patrimnio do rei o mais vastodo reino, mais vasto que o do clero e, ainda no sculo XIV, trs vezes maior que oda nobreza[5] fluam rendas para sustentar os guerreiros, os delegadosmonrquicos espalhados no pas e o embrio dos servidores ministeriais,aglutinados na corte. Permitia, sobretudo, a dispensa de largas doaes rurais,em recompensa aos servios prestados pelos seus caudilhos, recrutados, alguns,entre aventureiros de toda a Europa.

    Os dois caracteres conjugados o rei senhor da guerra e o rei senhor deterras imensas imprimiram a feio indelvel histria do reino nascente. Acrise de 1383-85, de onde nascer uma nova dinastia, a dinastia de Avis, dar afisionomia definitiva aos elementos ainda dispersos, vagos, em crescimento. Umfato quantitativo, o rei como o maior proprietrio, ditar, em consonncia com achefia da guerra, a ndole qualitativa, ainda mal colorida, da transformao dodomnio na soberania do dominare ao regnare. O centro supremo das decises,das aes temerrias, cujo xito geraria um reino e cujo malogro lanaria misria um conde, impediu que, dispersando-se o poder real em domnios, seconstitusse uma camada autnoma, formada de nobres proprietrios. Entre o reie os sditos no h intermedirios: um comanda e todos obedecem. Arecalcitrncia contra a palavra suprema se chamar traio, rebeldia vontadeque toma as deliberaes superiores. O chefe da heterognea hoste combatenteno admite aliados e scios: acima dele, s a Santa S, o papa e no o clero;

  • abaixo dele, s h delegados sob suas ordens, sditos e subordinados.[6]Excepcionalmente, em ateno ao costume dos soldados estrangeiros, vindos daIdade Mdia francesa, a concesso de terras acarretava, alm da propriedade, ogozo da soberania, trao de cunho feudal. O tempo, girando sob o tropismo dandole geral do pas, se incumbiu de absorver e anular esses pontos extravagantesde direito estrangeiro. A independncia da nobreza territorial e do clero, comlastro em seu domnio de terras, frustrou-se, historicamente condicionada etolhida, enferma de uma fragilidade congnita. A concesso de senhorio ou deuma vila, filha da liberalidade do rei, no importava na atribuio de poderpblico, salvo em medida limitada. A Coroa separava nos nobres ricos-homens,infanes e cavaleiros a qualidade de funcionrio da qualidade deproprietrio. Seu poder, na verdade avultado, derivava da riqueza e no dasfunes pblicas. Nos tormentosos dois sculos iniciais do reino de Portugaltraaram-se limites ntidos entre o exerccio de um cargo e a propriedadeprivilegiada. O pas se dividia em circunscries administrativas e militares, asterras ou tenncias, cujo superior governo cabia a um chefe, o tenens, dentrodas quais se constituam distritos, os prstamos, administrados por umprestameiro designado pelo rei. A funo pblica de primeiro nvel cabia aonobre, senhor da terra ou alheio ao solo jurisdicionado. Igualmente, ascircunscries judiciais (julgados) e as circunscries fiscais (almoxarifados)dependiam, no provimento dos cargos, da exclusiva escolha rgia. O corpo defuncionrios recebia a remunerao das rendas dos casais, aldeias e freguesias,dos estabelecimentos no beneficiados com a imunidade fiscal. Os cargos eram,dentro de tal sistema, dependentes do prncipe, de sua riqueza e de seus poderes.Extremava-se tal estrutura da existente na Europa contempornea, marcando umprematuro trao de modernidade.[7] O rei, quando precisava do servio militarda nobreza territorial, pagava-a, como se paga a um funcionrio. As soldadasmarcam o vnculo de subordinao, origem das futuras quantias, periodicamentedistribudas, e que daro causa, no momento de apertura do tesouro real nosculo XIV, converso em terras, largamente doadas por um rei aparentementeprdigo.

    Entre o esquema, traado pela lgica da histria, e a realidade,convulsionada por foras em tumulto, h um salto e muitas discordncias. O laode subordinao entre o rei e a nobreza territorial e o clero no se fixou semmuitas escaramuas e muitas resistncias. A fraqueza da classe territorial,derivada das fronteiras inscritas na transferncia da terra, se robusteceu, emmovimento paralelo expanso dos poderes rgios, com a explorao dasimunidades dos domnios. Entre a Coroa e a nobreza trava-se, em direo oposta ordem esboada nos desgnios da realeza, uma longa e porfiada batalha, da qualresulta a derrota das veleidades feudais. As doaes de terras, em retribuio aservios de guerra ou aos servios da estirpe, privilegiavam os nobres com a

  • jurisdio privativa sobre os moradores e a completa iseno de tributo. Sob estabase, idntica da fidalguia encontrada pela dinastia borgonhesa ou afonsina,furtava-se a aristocracia do garrote da realeza.[8] Enquanto a imunidadetributria permaneceu indisputada, no curso dos sculos, salvo com a sisa, fixadapara todos no sculo XIV, a jurisdio privativa no gozou da mesma sorte.Percebeu bem a realeza que o poder de julgar envolve, em ltima anlise, o poderde sujeitar o homem a uma camada intermediria e autnoma. Sem a jurisdio,o sdito ficaria liberto da obedincia, preso apenas a uma lealdade de segundograu, indireta, convertido o poder supremo em fico. Da a doutrina, jsustentada tenazmente no perodo da dinastia borgonhesa: O direito e costumegeral do reino, dizia el-rei dom Dinis em 1317, eram e tinham sido sempre que emtodas as doaes rgias se entendesse reservada para a Coroa a justia maior, asuprema jurisdio, em reconhecimento ao maior senhorio.[9] medida queestendiam a atribuio jurisdicional, os reis conquistavam sditos, os quais, porum movimento convergente, procuravam fugir s prerrogativas da nobreza e doclero. Lavradores, artesos e mercadores despontavam como aliados da Coroa,reforados com a solidariedade da organizao municipal, os concelhos. O velhodireito de Castela, consolidado no Fuero Viejo, vigente em Portugal, reservava aorei, nas doaes ou nos senhorios, certas prerrogativas (justia, moeda, fossadoou jantar), tidas como inerentes sua preeminncia na sociedade poltica.Algumas vezes, verdade, margem dos padres gerais, premida pelos variadoslances a que se expunha, a monarquia transigia em doaes peculiares, com oabandono de suas prerrogativas.

    exacerbao dos privilgios da nobreza territorial e do clero, responderamos reis com o incremento de uma instituio, pretensamente recebida da velha, eem alguns momentos influente, ordem romana. O municpio, arma comum estratgia poltica da realeza na Europa, mereceu especial estmulo, na mesmamedida em que se ensoberbeciam os potentados rurais. Os concelhos,conservados tenuemente pela tradio, no incio desvinculados de carta de foral,pouco representavam, no curso dos dois primeiros sculos da monarquiaportuguesa.[10] Temerosa do domnio autnomo das camadas que a apoiavam o clero e a nobreza a realeza deslocou sua base de sustentao, criando ascomunas e estimulando as existentes, no incremento da realidade capaz de lheproporcionar suporte poltico, fiscal e militar. Buscava o trono a aliana,submissa e servil, do povo o terceiro estado. J Afonso II ( 1223), na lutacontra o clero, pde bem avaliar a fora desse novo instrumento poltico, aoenfrentar, ajudado pela plebe furiosa, um poderoso bispo e seu cabido. Os forais a carta de foral , pacto entre o rei e o povo, asseguravam o predomnio dosoberano, o predomnio j em caminho do absolutismo, ao estipularem que a terrano teria outro senhor seno o rei. Com a instituio dos concelhos logrou apoltica medieval ferir a prepotncia eclesistica, num meio que levaria a

  • subjugar a aristocracia. A esta razo se agregava outra, inspirada na ndolemilitar do pas, em estreita conexo com o fundamento poltico do alargamentoda forma municipal. Decretada a criao do concelho, que deveria organizar umapovoao, reedific-la ou reanim-la, procurava o rei impor-lhe o dever dedefend-la militarmente contra seus inimigos, os mouros ou os vizinhosestrangeiros. Criava-se, obediente monarquia, uma milcia gratuita, infensa smanipulaes da nobreza ou do clero batizados os antigos municeps e castellanuscom o nome de alcaide, palavra sugerida pela invaso rabe. Abria-se, destaforma, um campo neutro aos privilgios aristocrticos, muitos deles os coutos eas honras isentos da prestao militar, paga pelo rei quando dela necessitava.Finalmente, os concelhos somavam renda do prncipe, oriunda de seupatrimnio fundirio, largas contribuies. As imunidades da propriedadearistocrtica no permitiam que a casa real dela retirasse os avultados meios deque carecia, para as despesas da guerra e de seu incipiente corpo burocrtico.Este ltimo vnculo entre as contribuies e o tesouro rgio suscita acomercializao, a reduo em riqueza mvel, do patrimnio do soberano. Por ase canalizar o influxo, poderoso dentro de dois sculos, de carter patrimonialdo Estado, indistinta a riqueza particular da pblica. Os mordomos, sob a chefia doalmoxarife, todos incipientes funcionrios pblicos, proviam a casa real dasarrecadaes nos mais distantes lugarejos. A concesso de forais permitiu melhorsistema de cobrana, com o arrendamento dos direitos aos concelhos, mais tardesubstitudo pelo arrendamento a particulares. Facilitava-se com a medida, almdisso, o amoedamento das arrecadaes, numa prematura transformao daeconomia natural para a economia monetria. Fundar uma vila ou povoao, atode benemerncia rgia, era converter em moeda sonante o produto bruto dafazenda agrcola. Os impostos locais estabelecidos, as multas na quantidade dosdelitos passveis dessa pena, a prestao ajustada pelos direitos de proprietrioabandonados, tudo isso constitua receita considervel. Em cada povoao ostabelies pagavam, pelo exerccio do cargo, uma anuidade. E no desdenhava odador do foral pequenos mananciais de renda, alguns singulares. destes adisposio no estatuto da Covilh, segundo o qual se cobrava das mulheresmundanas um soldo cada ms, pelo direito de exercerem a profisso...[11]

    Guerra, ascendncia do rei com a rede de seus agentes cobrindo o pas,controlando-o e dirigindo-o, domesticao sem aniquilamento da nobreza soos traos que imprimem o carter sociedade nascente. Um brao, dia a diamais vigoroso, completar o quadro, com a entrada do povo nos clculos polticos,amparado nos concelhos, sob o ditado da velha feio romana. Astcia epacincia erguero, do desprezo e do alheamento, uma classe, com a qual osoberano dividir lucros e moeda: ter xito a caa ao tigre por meio da lebre.[12] Os ingressos da Coroa levaro o sangue, o calor, o estmulo e a vida a todasas atividades, agricultura, comrcio e indstria do reino. H um jogo de presses

  • e influncias recprocas, que associam o predomnio do soberano nas rendas maisaltas e nos misteres mais humildes. A propriedade do rei suas terras e seustesouros se confunde nos seus aspectos pblico e particular. Rendas edespesas se aplicam, sem discriminao normativa prvia, nos gastos de famliaou em obras e servios de utilidade geral.

    O rei, na verdade, era o senhor de tudo tudo hauria dele a legitimidadepara existir , como expresso de sua autoridade incontestvel, bebidavorazmente da tradio visigtica e do sistema militar. Discernir e especificar afonte dos ingressos da realeza ser trabalho de revelao da prpria estruturaeconmica do reino. Mostrar a anlise a base do poder supremo, sua estrutura eprofundidade, fonte das remuneraes aos guerreiros, funcionrios em embrio,homens da corte, letrados em flor. No h dvidas: a parte fixa, permanente,previsvel dos rendimentos do prncipe flui da propriedade fundiria (os bensreguengos, regalengos, regoengos, regeengos), senhorio territorial comooutro qualquer, seja da nobreza ou do clero, singularizado com o fim de servir aochefe do Estado e se destinar, eventualmente, a objetivos que hoje se diriampblicos. Esta propriedade territorial sofria duas modalidades de explorao: aindireta e a direta. A explorao indireta, por sua vez, gerava duas espcies derendas: uma que se aproxima da que caracteriza o moderno arrendamento,temporrio o cultivo da herdade; na outra, o lavrador detinha o domnio til dosolo, transmissvel entre vivos e por herana, revertendo ao rei o foro. Na gestodireta do imvel, os colonos se obrigavam a prestar, gratuitamente, alguns dias detrabalho por ano, no excludo o salrio, em moeda ou in natura. Esta aexplorao direta era a regra do trato da pecuria, adotada tambm, emmenor parcela, nas culturas arvenses, vinhas e olivais.[13] Dessa circunstncia o rei principal lavrador da nao, com celeiros e adegas espalhados por todos osconfins de seus domnios, atarefados os seus mordomos na cobrana de foros erendas concluiu-se ser a monarquia portuguesa uma monarquia agrria.[14]O fato, repita-se, no pode ser posto em dvida: as rendas do soberano, na partemais considervel, fluam da terra. A concluso, todavia, aparentemente lgica,no se concilia com as demais caractersticas do reino, em que o soberano seconfunde com o titular, pelo menos eventual ou sobreproprietrio, de toda ariqueza e de toda a economia. As garras reais, desde cedo, se estenderam aocomrcio, olhos cobiosos no comrcio martimo. J nos meados do sculo XIII,estimulado pela conquista de Lisboa em 1147, o comrcio martimo mostra ossinais do seu futuro prximo, ativo com as trocas dos produtos da Inglaterra,Flandres, Frana, Castela e Andaluzia.[15] Dispunha o pas, para o trficointernacional, de assentada economia de sal, pescado, vinhos, azeite, frutas,couros, cortia produtos que lhe proporcionavam os txteis flamengos eitalianos, o ferro da Biscaia, as madeiras do norte, a prata da Europa central eoriental, as especiarias, o acar.[16] Portugal, alm disso, cobria-se de feiras,

  • ardentes e ativas na promoo do comrcio interno, j vinculado navegaointernacional. Tudo dependia, comrcio e indstria, das concesses rgias, dasdelegaes graciosas, arrendamentos onerosos, que, a qualquer momento, sepoderiam substituir por empresas monrquicas. So os fermentos domercantilismo lanados em cho frtil. Dos privilgios concedidos paraexportar e para importar no se esquecia o prncipe de arrecadar sua parte,numa apropriao de renda que s analogicamente se compara aos modernostributos. No fim do sculo XIV a sisa, devida ao tesouro pelos consumidores nacompra e venda e na troca de mercadorias, ocupa o primeiro lugar no oramento,recaindo sobre toda a gente, nobres, eclesisticos e plebeus, com o rompimentodo privilgio da imunidade. Era o comrcio, atestado num fato fiscal,atravessando, sob o patrocnio soberano, todas as camadas da populao,estimulado na organizao dos concelhos. Nas fendas da monarquia agrria, maisfico do que realidade, cresciam os outros rendimentos da Coroa. Dapropriedade no fundiria do domnio eminente e no efetivo bem como doexerccio da soberania ainda mal definida decorriam variadas, mltiplas, coloridase pitorescas contribuies. Ligado s origens da monarquia destaca-se o quintoda guerra, institudo na luta contra os sarracenos, que se materializava na taxa devinte por cento sobre os despojos tomados ao inimigo, fonte dos dispersosdomnios reais em todo o territrio. Uma tentativa de classificao, semdesfigurar a realidade com padres conceituais modernos: a) os rditos comorigem na agricultura e no pastoreio cnones, pores, direituras e miunasdos herdamentos rgios, jugadas dos herdamentos dos herdadores pees, omontado pago sobre certas pastagens, as vendas da produo direta; b) rditosprovenientes da circulao interna e do mercado portagens, aougagem,alcavalas; c) os rditos provenientes do comrcio externo dzimas, portagens;d) as multas judiciais, ou calnias e coutos; e) rditos provenientes da atividadeindustrial vieiros e minas, dzima do pescado, taxa de mesteres; f) serviosprestados ao rei ou aos oficiais rgios geiras de malados jniores e outros,almocreverias e carretos, servio de remadores na frota real [...] ou suascompensaes monetrias; g) jantar ou colheita; h) emisses de moeda.Extraordinariamente, recorria-se ao pedido ou finta ou talha.[17] No so dedesdenhar, ainda, as rendas colhidas da dzima eclesistica, das penses detabelionato e da justia civil. Dessa ampla rede vinham os tesouros rgios,moedas, ouro e prata, que avultam nos testamentos dos soberanos, numaindicao da nascente economia monetria. A simplificao da cobrana, j senotou, levou ao calculado incremento da ordem municipal. A Coroa criava rendasde seus bens, envolvia o patrimnio particular, manipulava o comrcio parasustentar o squito, garantia a segurana de seu predomnio.

    Este o primeiro ato do drama. O sdito o sdito qualificado, o nobre, jabsorvido o clero nas malhas do poder supremo, e o sdito sem esporas no

  • paga servios, tangveis ou abstratos, como o contribuinte moderno. Um poderososcio, scio e patro, tosquia a melhor l, submetendo o proprietrio nominal obrigao de cuidar da ovelha. A nobreza, agarrada aos velhos privilgios, aindase manter no nvel de companheira do soberano. Um pouco mais e ela, jcercada, com as unhas embotadas, dividir, domesticada depois de umarevoluo, o segundo lugar com a burguesia. A ideologia completar a obra,vencendo as conscincias e roubando imaginao o estandarte da resistncia.O Estado patrimonial, implacvel nos seus passos, no respeitar o peso dossculos, nem os privilgios da linhagem antiga.

    2

    O contedo do Estado, capaz de ajustar juridicamente as relaes entre osoberano e os sditos, formou-se de muitos fragmentos, colhidos numa longatradio. O ponto inicial, quanto ao carter poltico, pode ser situado naconstituio de Diocleciano (285-305). O direito ser o de Justiniano (527-65),cujas codificaes se propagaram no ocidente, modelo indelvel do pensamentojurdico.

    Fixados os dois marcos a organizao poltica e o conjunto de regrasjurdicas no se presume uma continuidade sem quebra, no curso de setesculos. A sequncia se funda no aproveitamento, ao sabor das circunstnciassociais, de retalhos e restos vivos, conjugados para estruturar uma ideologia, sesta coerente. O trabalho de reconstruo espiritual deformar muitasrealidades, roubadas de sua significao ntima, transfiguradas em corposdiferentes, de cor diversa, com outra fisionomia. H o trabalho surdo, em que asideias se filtram nos costumes, e o trabalho de criao consciente, ao modo deuma obra de arte, que a Escola de Bolonha (sculos XII e XIII) sistematizar. Deuma e de outra fonte correro as guas para se encontrar no Estado moderno: oEstado que consagra a supremacia do prncipe, a unidade do reino e a submissodos sditos a um poder mais alto e coordenador das vontades. No fundo, os sinosda catedral submersa, que os godos e os rabes no puderam calar.

    As colunas fundamentais, sobre as quais assentaria o Estado portugus,estavam presentes, plenamente elaboradas, no direito romano. O prncipe, com aqualidade de senhor do Estado, proprietrio eminente ou virtual sobre todas aspessoas e bens, define-se, como ideia dominante, na monarquia romana. O rei,supremo comandante militar, cuja autoridade se prolonga na administrao e najustia, encontra reconhecimento no perodo clssico da histria imperial.[18] Oracionalismo formal do direito, com os monumentos das codificaes, servir, deoutro lado, para disciplinar a ao poltica, encaminhada ao constante rumo daordem social, sob o comando e o magistrio da Coroa.

    O direito escrito dos visigodos se construiu sobre o direito romano e a

  • influncia do clero, penetrada esta dos rasgos principais das antigas codificaesjustinianas. Bem verdade que os costumes, alm do extenso territrio das prticasextralegais, conservaram carter godo, sobrepondo-se, em muitos assuntos, ordem jurdica formalizada. De outro lado, a disperso da autoridade, fenmenogeral na Idade Mdia, conspirava em favor do predomnio do direito costumeirodo costume da terra, rplica continental do Common Law. Sobre este manto de muitascores e de muitos retalhos, o direito romano j se impe como o modelo dopensamento e o do ideal de justia uma ideologia ainda em formao,germinando obscuramente. No subsistiria se no a fecundasse o adubo dosinteresses, que se aproveitam da armadura espiritual, conservando-a por fora edilacerando-a na intimidade. O clero, desde o distante sculo VI, convertido o reivisigtico ao catolicismo, trabalhou para romanizar a sociedade. Serviu-se, paraesta obra gigantesca, do direito romano, o qual justificava legalmente seusprivilgios, revelando-se o instrumento ideal para cumprir uma misso e afirmarum predomnio. A Pennsula Ibrica, unida cabea papal, absorveu as lies dosclrigos-juristas, que se espalham pela Europa, sobretudo a partir dos sculos XIe XII. Culmina este movimento, j contestada a supremacia do clero, com asobras jurdicas e legislativas de Afonso X (1267-72), rei de Castela, autor domonumento das Siete partidas, e do rei portugus Afonso III (1246 ou 1248-79) comsua ordenao sistemtica sobre o processo.[19]

    O domnio do clero e da nobreza, empreendido pelo rei, encontrou, nesseinstrumento, os meios espirituais de justificao. A obra dos juristas eimperadores romanos serviu, v-se logo, a fins opostos aos previstos pelo clero,num movimento que d contedo novo s formaes ideolgicas. As duas fasesdessa luta obedecem aos padres, acabados e perfeitos, do jurismo justinianeu. Aprimeira batalha, rijamente estimulada pelos soberanos portugueses, buscou nosmunicpios romanos a forma adequada instituio dos concelhos, de cujoexpressivo papel histrico j se fez meno. Certo, uma viva polmica seinstaurou, a este propsito, nas letras portuguesas e europias, com graves danos tese sustentada por Herculano e Gama Barros, que no hesitaram em ver naorganizao municipal dos concelhos a face romana.[20] No centro dadivergncia h uma incompreenso: o municpio portugus se filia origemromana, mas sua feio ideolgica, no sua continuidade real. A forma, omodelo, a estrutura so romanos o contedo, os fins a que se destina, asfunes que desempenha so modernos, e, em muitos pontos, incompatveis como molde abstrato antigo. Este o sentido, de resto, da influncia romana. Porisso, os princpios justinianeus apareceram em certo momento, no momento deatuar, corrigir e dominar, e no em todos os tempos. A incorporao dos enxertosvelhos se opera seletivamente, infundindo vida a um corpo apagado, sem almaprpria. No importa a observao em afirmar o papel passivo da ideologia: elapressiona, se interpenetra, ou, em casos extremos, frustra a realidade. Impossvel

  • ser, todavia, dissoci-la do sistema ou da estrutura social, dentro da qual vive eatua, perecendo se afastada do hmus que a tonifica. Igualmente, a segunda fasedo movimento lanado para erguer o prncipe sobre as camadas que o queremtolher, dividindo com ele o poder, se apia sobre o direito romano. O primeiropasso ser o depuramento do direito romano do direito cannico[21], dissonnciaque traduz a discrdia entre o clero e a Coroa. Entram em cena, nesta luta, osletrados, filhos diretos ou indiretos da Escola de Bolonha (sculos XII e XIII) edas universidades europias, progressivamente implantadas. Define-se, a partirda corte, a distino entre o dominare, reservado nobreza territorial, e o regnare,exclusivo do prncipe, embrio da futura doutrina da soberania, cujo proprietrioser o rei. Refinado o pensamento, o conceito de propriedade do reino se elevarpara reconhecer ao soberano a qualidade de defensor, administrador eacrescentador, teoria que assenta sobre o domnio eminente e no real. So asvsperas vsperas de alguns sculos do absolutismo.

    Ao tempo que combatia o particularismo da nobreza territorial, a recepodo direito romano no favorecia os interesses comerciais. Raciocniosimplificador poderia, ao situar uma face do problema, evocar a outra, como se,entre as duas, no se interpusesse, mais alto, o prncipe, titular de grandes,poderosos e extensos interesses econmicos. O comrcio j criara, no seio daIdade Mdia, o seu prprio direito, fundamento e origem do moderno direitocomercial com suas sociedades comerciais e os ttulos de crdito. AInglaterra, me do capitalismo moderno, pde desenvolver seus instrumentoslegais de relaes econmicas, sem que o direito romano exercesse papel derelevo. A direo que suscitou o recebimento do direito romano ser de outrandole: a disciplina dos servidores em referncia ao Estado, a expanso de umquadro de sditos ligados ao rei, sob o comando de regras racionais, racionais sno sentido formal. A calculabilidade do novo estilo de pensamento jurdico,reduzida ao aspecto formal, no exclui, na cpula, o comando irracional datradio ou do capricho do prncipe, em procura da quebra aos vnculos dascamadas nobres. No ganhou a justia foros de impessoalidade, assegurada nasgarantias processuais isentas da interferncia arbitrria dos julgados. O cronistado sculo XV, Ferno Lopes, no consegue repudiar, embora no aprove nontimo, os desvairados atos de justia de dom Pedro I ( 1367). Usou odesesperado amante de Ins de Castro de justia sem afeio, sem que aigualdade de tratamento a todos os delinquentes traduzisse a moderna igualdadeperante a lei. Graduava as penas de acordo com seu enlouquecido juzo, semobedincia a cnones pr-fixados. A um adltero mandou, em sua cmara,cortar-lhe aqueles membros que os homens em maior apreo tm. Por suaprpria mo, meteu a tormento um dos assassinos de Ins de Castro, sem pouparchicotadas aos criminosos. Justia salomnica, cuja caricatura fez do governadorSancho Pana o modelo dos juzes do caso a caso, espectro racional ao servio

  • das decises arbitrrias. As instituies no gozam de campo prprio de atuao,visto que esto subordinadas ao poder do prncipe, capaz de decidir da vida e damorte, reminiscncia prxima do rei-general, competente para julgar todos ossoldados. Verdade que, nos calcanhares, a nobreza territorial, dominada mas nodomesticada, rosna ameaas rancorosas, espreita do momento de lanar-lhe osdentes, cautelosa.

    O renascimento jurdico romano, estimulado conscientemente para reforodo Estado patrimonial, serviu de estatuto ascenso do embrionrio quadroadministrativo do soberano, grmen do ministerialismo. Ainda aqui, a tradiovisigtica infiltrou, no reino recm-constitudo, os fluidos poderosos das ideias einstituies romanas. As ondas da era de Diocleciano, contaminadas doorientalismo dos prncipes despticos, atingem o mundo novo, ditando-lhe, emacolhimento seletivo, a ordem antiga. Os funcionrios romanos se transmutaramna aristocracia goda, que se afastou da sua imagem original pela riquezaterritorial. O papel da ltima, porm, sofreu limites severos na sua independnciaou autonomia, com a poltica real de agrupar, na corte, os nobres, atrelados afunes pblicas, que os amarravam ao poder do soberano. Por via do leito,cavado no sculo III, no lograram as impetuosas guas descentralizadorasapagar a organizao antiga. A Pennsula Ibrica teria sido conquistada, mas nogermanizada, fiel a uma utopia perdida, atuante como uma viso potica, capazde imantar as imaginaes, se os interesses a evocarem.[22] O elementocatalisador das baronias territoriais foi o officium palatinum ou aula regia, criao deDiocleciano, composta dos principais oficiais da monarquia, magistradossuperiores, civis e militares, rgo onde se fundiam a aristocracia burocrtica dosromanos e a militar dos godos. O recrutamento, condicionado pela tradio,obedecia liberdade do rei, que nela inclua servos de sua casa, ao lado desenhores territoriais. Consultiva por natureza, pesava, sem embargo, nas decisesda realeza, capaz at de depor um rei, condenado ao desterro aviltante comoacontecera com o desventurado Vamba (672-80). Mais importante do que a aularegia e os conclios, destitudos de atribuies diretas de comando, era o corpoministerial, responsvel pelos negcios da Coroa, antecipao da organizaomoderna, sem ntida separao de competncia, indistinto o patrimnio rgio dopatrimnio da nao. Incluam-se nesse conselho: o comus thesaurorum, a umtempo almoxarife e ministrio da fazenda; o comus patrimoniorum, uma espcie deministro do imprio; o comus notoriorum, semelhante a um procurador-geral daCoroa; o comus spathiorum, general-em-chefe das guardas do rei (cousa diversa doexrcito, que ento se formava com os contingentes da nobreza e dos concelhos);o comus scanciorum, mordomo-mor; o comus cubiculi, camareiro-mor; o comus stabuli,estribeiro-mor; e, finalmente, o comus exercitus, ministro da guerra.[23] Estaordem poltica, com a conquista sarracena, se desintegrou desintegrou-se masno se perdeu, conservada na tradio. A reconquista a revalorizou, nico padro

  • espiritualmente mantido no renovo do poder real. O baro no se extremou, nemse estereotipou no feudalismo: as populaes s aceitam, hipnotizadas por umestilo antigo, a nica predominncia do rei, chefe dos exrcitos. O baro definesua sobranceria como funcionrio e no como senhor os agrupamentos demoradores, as behetrias, reivindicam autonomia, s obediente ao chefe supremo.[24] H um trao do feudalismo mas no o feudalismo como instituio. O direitopblico que define as relaes entre o rei e os sditos continuavisigtico[25], assegurando as prerrogativas intangveis do rei. No sculo XV, estalinha de pensamento levaria um rei a se reconhecer titular do poder absoluto. Aorganizao ministerial renasceu, ela tambm, dos escombros da monarquiavisigtica, por sua vez impregnada de romanismo. O mais elevado cargo, exercidosob o direto comando do rei, modifica-se, quanto preeminncia, tal como naordem visigtica, de acordo com as condies do reino. Sob as aperturas daguerra de reconquista e de definio do pas, a principal funo caber aocomandante do exrcito, comandante superior na ausncia do rei o alferes-mor (signifer). Esta funo, simbolizada na competncia para levar o pendo dorei, cabia, em tempo de paz, a um escudeiro. No sculo XIII, os personagens maisimportantes do reino, os que mais assiduamente frequentavam o rei, eram osguardas dos livros dos rditos da Coroa (recabedo regni): o alferes, o mordomo e ochanceler. O chefe da administrao civil, equiparado ao alferes, era o mordomoda corte (mordomus curiae). Sob a influncia inglesa, em 1382, criaram-se os postosde condestvel e marechal da hoste, cabendo ao primeiro superintender oexrcito e tomar-lhe a vanguarda, cargo que, como o de maior honra do reino,coube a Nuno lvares, durante a crise de 1383-85.[26] Ao marechal da hoste seatribuam as funes de primeiro auxiliar do condestvel, com as funes dechefe dos rgos judicirios em campanha.[27] indistino das atribuies,sucede, sob a presso dos juristas, uma organizao de competncias cada vezmais fixas. H, portanto, uma linha ideolgica contnua entre o imprio deDiocleciano e o reinado da reconquista: linha cortada de muitos acidentes,reconstituda pelos letrados, no limiar da Renascena. Para acabar de destruir apreponderncia e at o equilbrio dos elementos polticos a pena do jurista, maispesada que o montante do soldado, porque representava a inteligncia, achava-sena balana ao lado do cetro. Educados na admirao da sociedade romana napoca do imprio, deslumbrados pela indubitvel superioridade das suasinstituies civis sobre as rudes e incompletas usanas tradicionais da idademdia, os letrados acolhiam com o mesmo culto supersticioso as mximas dapoltica desptica dos csares. (O monge de Cister, cap. XVII.) No antecipemos,porm, a hora do absolutismo, nem a hora singular de Joo das Regras, capaz deformar, com suas mos cultas e astutas, uma nova dinastia, sada da espada danao popular.

  • 3

    Os mencionados fundamentos sociais e espirituais renem-se para formar oEstado patrimonial. A realidade econmica, com o advento da economiamonetria e a ascendncia do mercado nas relaes de troca, dar a expressocompleta a este fenmeno, j latente nas navegaes comerciais da IdadeMdia. A moeda padro de todas as coisas, medida de todos os valores, podersobre os poderes torna este mundo novo aberto ao progresso do comrcio,com a renovao das bases de estrutura social, poltica e econmica. A cidadetoma o lugar do campo. A emancipao da moeda circulante, atravessando pasese economias at ento fechadas, prepara o caminho de uma nova ordem social, ocapitalismo comercial e monrquico, com a presena de uma oligarquiagovernante de outro estilo, audaz, empreendedora, liberta de vnculosconservadores.[28] Torna-se possvel ao prncipe e ao seu estado-maior organizaro Estado como se fosse uma obra de arte, criao calculada e consciente. Ascolunas tradicionais, posto que no anuladas ou destrudas, graas aos ingressosmonetrios, ao exrcito livremente recrutado e aos letrados funcionrios daCoroa, permitem a construo de formas mais flexveis de ao poltica, semrgidos impedimentos ou fronteiras estveis.[29] o Estado moderno,precedendo ao capitalismo industrial, que se projeta sobre o ocidente.

    Na aparente sequncia sem acidentes, que parte da guerra e amadurece nocomrcio, com o prncipe senhor da espada e das trocas, h um srio problemahistrico. Seria a nova construo poltica um acontecimento s possvel depoisda runa do feudalismo ou teria ele uma linha prpria de crescimento, sem vnculonecessrio com o sistema reinante na Europa central? A questo, de feitioenganadoramente terico, tem largo alcance no tempo: ser uma dasdeterminantes que explicar a histria da sociedade brasileira. Sua ressonnciaalcanar o sculo XX, envolvendo apaixonada polmica, ditando a interpretaohistrica da estrutura econmica vigente. No bojo da tese central h outras duas:o feudalismo na Pennsula Ibrica e em Portugal e o feudalismo no Brasil.

    H um dogma, frio, penetrante, expansivo, que pretende comandar ainterpretao histrica. A sociedade capitalista, no ocidente, se gerou das runasda sociedade feudal. A era capitalista, caracterizada pela propriedade daburguesia dos meios de produo e da explorao do trabalho assalariado, teriaseu ponto de partida no sculo XVI. Os acontecimentos singulares dessa poca as navegaes e os descobrimentos, as colnias e os novos mercados aceleraram uma transformao fundamental da histria, convertida, pelo seuvolume, de quantitativa em qualitativa, segundo o enunciado de uma lei dadialtica. A produo da economia natural, com trocas apenas do suprfluo,cedeu o lugar s manufaturas, iniciando o irreversvel e fatal movimento daacumulao do capital, que expropriou as terras dos produtores, separando-os,

  • tambm na produo artesanal, dos meios de produo. Rompe-se, com estasalavancas, o mundo feudal, substitudo pelo mundo capitalista, este aniquila oprimeiro, com armas que, um dia, se voltaro contra o novo sistema.[30] Ofeudalismo, fase necessria no ocidente europeu, seria um momento da diviso dotrabalho, que se projeta em formas diversas de propriedade. Sucedeu ao primeiroestgio, o tribal, o perodo estatal e comunal, alcanando o sistema feudal,preldio da era capitalista. Cidade e campo, polarizados com a propriedadeterritorial e corporativa, respectivamente, se identificam numa ordem patriarcale hierrquica.[31] Feudalismo e economia natural seriam termos correlatos.[32]O ponto importante, que caracteriza a economia da Idade Mdia, identificadaem bloco com o feudalismo, reside na propriedade dos meios de produo. Regia,antes do advento do capitalismo, a pequena indstria, calcada na propriedade doarteso sobre os meios produtivos, e, no campo, a agricultura de lavradoreslimitados a plantar para as suas necessidades, ou pouco mais. Os meios detrabalho a terra, os implementos agrcolas, a oficina, as ferramentas erammeios de trabalho dos indivduos, destinados to-s ao uso individual, e, portanto,necessariamente pequenos, minsculos, limitados. Por isso mesmo pertenciam,em regra, ao prprio produtor.[33] O tear individual cedeu lugar ao tearcoletivo, a roca foi substituda pela mquina de fiar a produo perde ocarter individual, entregue a foras coletivas, que convertem o trabalho emmercadoria, degradando-o condio de coisa, perdida a identidade do homemna ndole annima de seus produtos. Inegvel, no quadro medieval, alm da feioidealizadora, a cor idlica, adequada para se opor ao negro painel do capitalismo.Idade Mdia e feudalismo, reduzido este, fundamentalmente, a uma forma detrabalho, se confundem. Dela e s dela, imperativamente brota ocapitalismo, filho das contradies aninhadas no seu seio: uma classe oprimida, aburguesia das cidades, se ergue contra os nobres, esmagando-os, primeiro nocampo econmico e depois na arena poltica. Outra consequncia do modelomarxista: o capitalismo, responsvel pela runa feudal, o capitalismo dasmanufaturas, fase primeira do capitalismo industrial. Isto no exclui, verdade,que, a seu servio, em pases diferentes, ele se projete no capitalismo comercial,caracterizado na troca de produtos manufaturados alheios, por mercadoriasarrancadas do prprio solo, do mar ou das navegaes. O contexto da nova pocater carter universal, arrastando, nas suas guas, as naes que trabalham nasusinas, as naes inertes e as naes que buscam, na aventura, a riqueza e aopulncia. Ainda uma observao. As pocas econmicas do mundo asitico,antigo e feudal so fases, encadeadas sob o vnculo progressivo e ascendente, queculminou na poca moderna.[34] A histria segue um curso linear emborareconhea a doutrina a ausncia de feudalismo nos Estados Unidos e a nopeculiaridade de certas relaes sociais tidas como especficas da Idade Mdia.[35]

  • Esta doutrina, construda sobre uma tradio histrica, recebida sem examecrtico de profundidade, infiltrou-se na teoria, ganhando o prestgio dos lugares-comuns. Ela contaminou os estudos do sculo XX, empenhada em, por toda parte,sobretudo nos pases subdesenvolvidos, descobrir a estrutura feudal, os restosfeudais, perdidos no mundo universal do capitalismo. Os estudos do sculo XIX,sobre os quais brotou a tese marxista, pareciam apoi-la, com raros dissidentes. AEuropa seria, sem maiores dvidas, um universo feudal desmoronado, no sculoXV, sob o peso das manufaturas e das monarquias. Os movimentos anteriores polticos e sociais seriam, quando existentes, antecipaes de um cursohistrico geral.[36] O problema no seria pertinente a este ensaio se ofeudalismo no houvesse deixado, no seu cortejo funerrio, vivo e persistentelegado, capaz de prefixar os rumos do Estado moderno. Patrimonial e no feudalo mundo portugus, cujos ecos soam no mundo brasileiro atual, as relaes entreo homem e o poder so de outra feio, bem como de outra ndole a natureza daordem econmica, ainda hoje persistente, obstinadamente persistente. Na suafalta, o soberano e o sdito no se sentem vinculados noo de relaescontratuais, que ditam limites ao prncipe e, no outro lado, asseguram o direitode resistncia, se ultrapassadas as fronteiras de comando.[37] Dominante opatrimonialismo, uma ordem burocrtica, com o soberano sobreposto ao cidado,na qualidade de chefe para funcionrio, tomar relevo a expresso.[38] Almdisso, o capitalismo, dirigido pelo Estado, impedindo a autonomia da empresa,ganhar substncia, anulando a esfera das liberdades pblicas, fundadas sobre asliberdades econmicas, de livre contrato, livre concorrncia, livre profisso,opostas, todas, aos monoplios e concesses reais.

    O feudalismo no cria, no sentido moderno, um Estado. Corporifica umconjunto de poderes polticos, divididos entre a cabea e os membros, separadosde acordo com o objeto do domnio, sem atentar para as funes diversas eprivativas, fixadas em competncias estanques. Desconhece a unidade decomando grmen da soberania , que atrai os fatores dispersos, integrando-os; apenas concilia, na realizao da homogeneidade nacional, os privilgios,contratualmente reconhecidos, de uma camada autnoma de senhoresterritoriais.

    No h feudalismo sem a superposio de uma camada de populao sobreoutra, dotada uma de cultura diversa. O ajuste, a adaptao das duas estruturasse processa, num momento sobretudo (no necessariamente) de economianatural e de trnsito precrio, tornando difcil ou impossvel a troca demercadorias. O feudalismo, fenmeno no somente europeu, significa, portanto,um acidente, um desvio na formao da nao politicamente organizada. No seapresenta ele no mundo grego ou no mundo romano, onde uma linha seminterrupo se fixou, desde a tribo at ao Estado universal. H insupervelincompatibilidade do sistema feudal com a apropriao, pelo prncipe, dos

  • recursos militares e fiscais fatores que levam a intensificar e racionalizar oEstado, capaz, com o suporte econmico, de se emancipar, como realidadeeminente, das foras descentralizadas que o dispersam, dividem e anulam.Mesmo nos pases de tradio feudal, a emergncia desses elementos golpeou odesenvolvimento de suas expresses caracterizadoras.[39] O incremento docomrcio, de outro lado, acelera o aparecimento do sistema patrimonial,contrrio ordem feudal.[40] O feudalismo, realidade histrica e sistema social,no se constri, desta sorte, mediante modelos arbitrrios, esquematicamentesimplificados. Ele h de se retratar num tipo ideal, capaz de, fielmente, reconstruirum momento histrico, em traos simultneos, que, reunidos, formam o conceitoda realidade. O sistema se compe de elementos militares, econmico-sociais epolticos; a identificao de um carter disperso no o caracteriza lembraaspectos feudais, que, como tais, so o oposto do feudalismo. O chamadofeudalismo portugus e brasileiro no , na verdade, outra coisa do que avalorizao autnoma, truncada, de reminiscncias histricas, colhidas, por falsaanalogia, de naes de outra ndole, sujeitas a outros acontecimentos, teatro deoutras lutas e diferentes tradies. De outro lado, o feudalismo suporta diversasbases, em que predominam um e outro fator essencial, sem a excluso de seuselementos fundamentais. O elemento militar do regime feudal caracteriza asituao de uma camada (estamento v. adiante) vinculada ao soberano por umcontrato um contrato de status, calcado na lealdade, sem subordinaoincondicional. Sob o aspecto econmico-social, aos senhores est reservada umarenda, resultante da explorao da terra. Politicamente, a camada dominante,associada ao rei por convvio fraternal e de irmandade, dispe de poderesadministrativos e de comando, os quais, para se atrelarem ao rei, dependem denegociaes e entendimentos. Dos trs elementos, que somente reunidosconstituem o feudalismo, resulta, com respeito ao soberano, a imunidade armada,capaz de se extremar na resistncia, elevada categoria de um direito. O servioao rei e o servio aos senhores, por meio do conceito de vassalagem, no constituiuma obrigao ou um dever forma um apoio livre, suscetvel de ser retirado emqualquer tempo.[41]

    Situado terica e historicamente o contedo do sistema feudal, ressalta doenunciado a sua incompatibilidade com o mundo portugus, desde os primeirosatos do drama da independncia e da reconquista. A velha tese de AlexandreHerculano, sustentada com paixo, est hoje consagrada, sem embargo dasisoladas resistncias: Portugal no conheceu o feudalismo.[42] No se vislumbra,por mais esforos que se faam para desfigurar a histria, uma camada, entre orei e o vassalo, de senhores, dotados de autonomia poltica. O feudalismo,acidente poltico e de direito pblico, no se configura, historicamente, sem querena os elementos que o fazem um regime social. O argumento de que se deveprocurar-lhe o cerne no sistema econmico, no enquadramento das foras de

  • produo, peca por uma fraqueza fundamental. Se ele no logrou provocar, nasuperfcie, as floraes sociais, jurdicas e institucionais as chamadassuperestruturas , essa incapacidade denuncia a prpria incerteza da infra-estrutura, da base. Quer, todavia, como regime econmico, por emprstimo oucomo fenmeno comum europeu, quer como realidade social, militar e poltica,esteve ele ausente de Portugal, salvo, como assinalado, em algumas ilhasfrancesas, logo absorvidas no contexto nacional. A persistncia, no curso dahistria, de magnatas territoriais, no os extrema, apesar dos poderesdecorrentes da riqueza e das dependncias que ela gera, na caracterizao deum sistema que, para se aperfeioar, exige o conjunto de outras atribuies,imunidades e competncias de ordem pblica. A terra obedecia a um regimepatrimonial, doada sem obrigao de servio ao rei, no raro concedida com aexpressa faculdade de alien-la. O servio militar, prestado em favor do rei, erapago. O domnio no compreendia, no seu titular, autoridade pblica, monoplioreal ou eminente do soberano.

    Estado patrimonial, portanto, e no feudal, o de Portugal medievo. Estadopatrimonial j com direo pr-traada, afeioado pelo direito romano, bebidona tradio e nas fontes eclesisticas, renovado com os juristas filhos da Escolade Bolonha. A velha lio de Maquiavel, que reconhece dois tipos de principado,o feudal e o patrimonial, visto, o ltimo, nas suas relaes com o quadroadministrativo, no perdeu o relevo e a significao.[43] Na monarquiapatrimonial, o rei se eleva sobre todos os sditos, senhor da riqueza territorial,dono do comrcio o reino tem um dominus, um titular da riqueza eminente eperptua, capaz de gerir as maiores propriedades do pas, dirigir o comrcio,conduzir a economia como se fosse empresa sua.[44] O sistema patrimonial, aocontrrio dos direitos, privilgios e obrigaes fixamente determinados dofeudalismo, prende os servidores numa rede patriarcal, na qual eles representama extenso da casa do soberano. Mais um passo, e a categoria dos auxiliares doprncipe compor uma nobreza prpria, ao lado e, muitas vezes, superior nobreza territorial. Outro passo ainda e os legistas, doutores e letrados,conservando os fumos aristocrticos, sero sepultados na vala comum dosfuncionrios, onde a vontade do soberano os ressuscita para as grandezas ou lhesvota o esquecimento aniquilador. A economia e a administrao se conjugampara a conservao da estrutura, velando contra as foras desagregadoras,situadas na propriedade territorial, ansiosas de se emanciparem das rdeastirnicas que lhes impedem a marcha desenvolta. H, em todos os tempos e commaior veemncia num contexto feudal de vizinhana, o impulso do domnioterritorial de se projetar numa nobreza, cuja forma de preponderar ser oaprisionamento do prncipe num sistema feudal. Enquanto o mundo no estdominado, em toda a sua extenso, pelo capitalismo industrial, o risco de umfeudalismo importado est sempre presente. Ele no pde, incontestavelmente,

  • se fixar no reino portugus, voltado, desde o bero, para um destino patrimonial,de preponderncia comercial. Nem por isso deixaram de rondar perigos prximos,sagazmente combatidos e anulados em todo o tempo, pela ordem em ascenso,comandada pelo rei, com os prstimos dos comerciantes, letrados e militares,grupos interessados na incolumidade do tesouro real, forte e centralizador, rico egeneroso.

    Uma nao se projeta, gerada sob a presso de foras singulares, na IdadeModerna, antecipando um desenvolvimento que s amadureceria dois sculosdepois na Europa. A monarquia agrria, hiptese de trabalho carinhosamentecultivada pela historiografia portuguesa[45], no passou de um esboo, varrido daterra com a abertura de Lisboa ao oceano. O comrcio definiu o destino doreino, meio natural do financiamento da obra da reconquista e da independncia.De tal maneira o trfico se converteu no modo prprio de expandir suasatividades que Portugal, embriagado de imprevidncia, abandonou a cultura dotrigo, para adquiri-lo em mercados estrangeiros, a melhor preo do que oproduzido em seus vales.[46] Uma trajetria sem interrupo, iniciada com asexportaes para Flandres, Inglaterra e Mediterrneo, culmina nas grandesnavegaes. A maior parte da populao portuguesa na Idade Mdia vivia daagricultura. Exato. No obstante, o trao caracterstico da vida econmica no dado pela explorao do solo. A atividade comercial e martima que resultou damodalidade do povoamento da costa e da explorao do mar que representa oelemento decisivo que define o gnero de vida nacional portugus baseado napesca, na salinao e nas trocas dos produtos comerciveis da terra. Graas aodesenvolvimento do trfico ocenico, os mercadores portugueses puderam desdemuito cedo estabelecer estreitas e cordiais relaes com a Flandres.[47] Entreo comrcio medieval, de trocas costeiras, e o comrcio moderno, com asnavegaes longas, h o aparecimento da burguesia desvinculada da terra, capazde financiar a mercancia. H, sobretudo, o aparecimento de um rgocentralizador, dirigente, que conduz as operaes comerciais, como empresa sua:o prncipe. Nenhuma explorao industrial e comercial est isenta de seucontrole guarda, todavia, para seu comando imediato os setores maislucrativos, que concede, privilegia e autoriza burguesia nascente, presa, desde obero, s rdeas douradas da Coroa. As outorgas de atividades, dispersas etmidas, ganham relevo com as grandes viagens, com os reis senhoresincontestveis dos mares e das rotas abertas na frica, sia e Amrica. O Estadotorna-se uma empresa do prncipe, que intervm em tudo, empresrio audacioso,exposto a muitos riscos por amor riqueza e glria: empresa de paz e empresade guerra.[48] Esto lanadas as bases do capitalismo de Estado, politicamentecondicionado, que floresceria ideologicamente no mercantilismo, doutrina, emPortugal, s reconhecida por emprstimo, sufocada a burguesia, na sua armaduramental, pela supremacia da Coroa. A camada dirigente, com o rei no primeiro

  • plano, o futuro rgio mercador da pimenta, dever ao comrcio seu papel decomando, sua supremacia, sua grandeza. A estrutura patrimonial levar, porm, estabilizao da economia, embora com maior flexibilidade do que o feudalismo.Ela permitir a expanso do capitalismo comercial, far do Estado umagigantesca empresa de trfico, mas impedir o capitalismo industrial.[49]Quando o capitalismo brotar, quebrando com violncia a casca exterior dofeudalismo, que o prepara no artesanato, no encontrar, no patrimonialismo, ascondies propcias de desenvolvimento. O trnsito, a compra e venda, otransporte, o financiamento ensejaro o gigantismo dos rgos de troca, com oprecrio enriquecimento da burguesia, reduzida ao papel de intermediria entreas outras naes. A atividade industrial, quando emerge, decorre de estmulos,favores, privilgios, sem que a empresa individual, baseada racionalmente noclculo, inclume s intervenes governamentais, ganhe incremento autnomo.Comanda-a um impulso comercial e uma finalidade especulativa, alheadores dasliberdades econmicas, sobre as quais assenta a revoluo industrial. Da segeram consequncias econmicas e efeitos polticos, que se prolongam no sculoXX, nos nossos dias. Os pases revolvidos pelo feudalismo, s eles, na Europa e nasia, expandiram uma economia capitalista, de molde industrial. A Inglaterra,com seus prolongamentos dos Estados Unidos, Canad e Austrlia, a Frana, aAlemanha e o Japo lograram, por caminhos diferentes, mas sob o mesmofundamento, desenvolver e adotar o sistema capitalista, integrando nele asociedade e o Estado. A Pennsula Ibrica, com suas floraes coloniais, osdemais pases desprovidos de razes feudais, inclusive os do mundo antigo, noconheceram as relaes capitalistas, na sua expresso industrial, ntegra. Acoincidncia flagrante e, vista da perspectiva desta ltima metade do sculoXX, ser capaz de provocar a reviso da tese de Max Weber, que vinculou oesprito capitalista tica calvinista.[50] Entre coincidncia e causalidade h, certo, um caminho a percorrer, longo caminho de muitas pesquisas, laboriosasinvestigaes e hipteses ousadas.

    Guerra, quadro administrativo, comrcio, a supremacia do prncipe quatro elementos da moldura do mundo social e poltico de Portugal. Dentro doquadro, h um drama que precipitar a emergncia de uma estruturapermanente, viva no Brasil, fixada na queda de uma dinastia, consolidada numabatalha, amadurecida com a expedio de Ceuta (1415).

  • Captulo II

    A REVOLUO PORTUGUESA

    1. Preliminares da revoluo de 1383-85: a nobreza, a burguesia e dom Fernando2. A Revoluo de Avis: vitria da burguesia sob a tutela do rei3. O estamento: camada que comanda a economia, junto ao rei4. Da aventura ultramarina ao capitalismo de Estado5. A ideologia do estamento: mercantilismo, cincia e direito

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    A obra da consolidao da monarquia portuguesa, condicionada pelo capitalismopoltico,[51] chegar ao seu ponto culminante por meio de uma revoluo, a maisprofunda e a mais permanente de todas as revolues que varreram a histria dopequeno reino. Preparam-na causas remotas e acidentes prximos, todosconjugados para a abertura de uma nova idade, a stima idade na qual selevantou outro mundo novo, e nova gerao de gentes, na palavra proftica docronista.[52] Na segunda metade do sculo XIV, uma velha camada, aaristocracia territorial, subitamente fortalecida, procurava afirmar, comexclusividade, seu domnio poltico. De outro lado, a categoria mais rica, aburguesia comercial, longamente associada Coroa, sabia que sua hora haviasoado, a hora de juntar riqueza o poder poltico. O dilaceramento das duasfaces, ao ameaar a prpria existncia da nao, provocou uma guerraexterna, expresso de uma tenaz, porfiada e autntica luta intestina. Perece umadinastia, a dinastia afonsina, filha da infncia do reino; em seu lugar, ergue-se agloriosa dinastia de Avis (1385-1580), plataforma social e poltica da conquistado mundo desconhecido pelas audaciosas naus de Vasco da Gama. Nasce,assistida pela violncia, pelo dissdio, pela guerra, a nao pica de Os Lusadas,sonho de curta durao, meterico, que deixou, na sua cauda de luz, umaconstelao ainda ntegra.

    As bases da revoluo comearam a ser lanadas com o movimento queaproxima, uma de outras, as populaes do litoral, com a abertura do comrciomartimo, primeiro com produtos agrcolas, depois com a pesca e o sal. H, nessacaminhada, uma longa histria, j ardente no domnio dos sarracenos naPennsula os portugueses sucederam ao comrcio rabe, que j havia definidoa vocao martima do pas, vocao geograficamente condicionada naconvergncia atlntica da terra. Morabes e muulmanos preparam, com otrfico pelo mar, a jornada ultramarina e a grandeza de uma camada popular, aburguesia comercial. Documentos do sculo XII demonstram que, na concessode privilgios para os oficiais de navios e nas mercadorias reexportadas, persistiauma atividade antiga, rapidamente em expanso aps a reconquista. Emconsonncia com a realidade econmica, as instituies se renovam, permitindo oflorescimento das suas virtualidades. s camadas privilegiadas nobreza e clero se contrape a ascenso popular, protegida pelas comunas, que crescem, naEuropa medieval, dentro de um contexto geral, s ideologicamente filiado stradies romanas. A fixao da monarquia portuguesa, contemporaneamente revoluo