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  • DADOS DE COPYRIGHT

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

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  • Coleo Clssicos Globo

    Coordenao: Manuel da Costa Pinto

    Ttulos publicados:

    Memrias de um sargento de milcias, de Manuel Antnio de AlmeidaMacrio/Noite na taverna, de lvares de AzevedoA Viagem Lua, de Cyrano de BergeracAs aventuras do sr. Pickwick, de Charles DickensO bracelete de granadas, de Aleksandr Ivnovitch KuprinEcce Homo, de Eusbio de MatosPequenas tragdias, de Aleksander Sergheievitch PchkinA capital!, de Ea de QueirsInfortnios trgicos da constante Florinda,de Gaspar Pires de RebeloA cartuxa de Parma, de StendhalO Silvano, de Anton TchkhovContos e novelas, de Voltaire

  • A coleo Clssicos Globo traz obras clebres da literatura universal e da lnguaportuguesa, retomando e ampliando um dos projetos editoriais mais marcantes dahistria recente do Brasil: o acervo de tradues constitudo nos anos 1930 e 40 pelaeditora Globo de Porto Alegre, que tinha, entre seus colaboradores, intelectuais comoErico Verissimo e Mario Quintana, e ficou conhecida como Globo da rua da Praia.

    Os ttulos da coleo Clssicos Globo foram escolhidos a partir desse catlogo. Almdas tradues (revistas e atualizadas) de livros pertencentes ao cnone da literaturaocidental, a coleo compreende tambm novas obras, em edies crticas e verses feitaspor tradutores contemporneos que do continuidade a esse legado editorial.

  • Charles Dickens

    As aventuras do sr. Pickwick

    traduo:Otvio Mendes Cajado

    posfcio:Ricardo Lsias

  • Copyright da traduo by Editora Globo S.A.

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada oureproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecnico ou eletrnico, fotocpia,gravao etc. nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados, sem aexpressa autorizao da editora.

    Ttulo original:The Pickwick Papers

    Reviso: Maria Sylvia Corra e Denise Padilha LotitoCapa: Isabel Carballo, sobre People strolling by the banks of the River Thames: in thedistance is Chelsea Old Church (ca. final do sc. XVIII, incio do XIX), de CheyneWalk, Londres, Museu de Londres/HIP

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Dickens, Charles, 1812-1870As aventuras do sr. Pickwick / Charles Dickens ; traduo Otvio Mendes Cajado ;posfcio Ricardo Lsias. So Paulo : Globo, 2004. (Clssicos Globo / coordenaoManuel da Costa Pinto)

    Ttulo original: The Pickwick papers.isbn 978-85-250-5548-4

    1. Fico inglesa I. Pinto, Manuel da Costa. II. Ttulo III. Srie

    04-6744 cdd-823

    ndice para catlogo sistemtico:1. Fico : Literatura inglesa 823

    Direitos de edio em lngua portuguesa para o Brasiladquiridos por Editora Globo S. A.Av. Jaguar, 1485 05346-902 So Paulo SPwww.globolivros.com.br

  • Sumrio

    CapaColeo Clssicos GloboA coleoFolha de rostoCrditosNota introdutriacaptulo icaptulo iicaptulo iiicaptulo ivcaptulo vcaptulo vicaptulo viicaptulo viiicaptulo ixcaptulo xcaptulo xicaptulo xiicaptulo xiiicaptulo xivcaptulo xvcaptulo xvicaptulo xviicaptulo xviiicaptulo xixcaptulo xxcaptulo xxicaptulo xxiicaptulo xxiiicaptulo xxivcaptulo xxvcaptulo xxvicaptulo xxviicaptulo xxviiicaptulo xxixcaptulo xxxcaptulo xxxicaptulo xxxiicaptulo xxxiii

  • captulo xxxivcaptulo xxvcaptulo xxxvicaptulo xxxviicaptulo xxxviiicaptulo xxxixcapitulo xlcaptulo xlicaptulo xliicaptulo xliiicaptulo xlivcaptulo xlvcaptulo xlvicaptulo xlviicaptulo xlviiicaptulo xlixcaptulo lcaptulo licaptulo liicaptulo liiicaptulo livcaptulo lvcaptulo lvicaptulo lviiPosfcioCronologiaNotas

  • Nota introdutria

    DICKENS ERA UM FORNECEDOR de fico ligeira para as massas, o continuador da antiganovela sensacionalista barata e o inventor do moderno thriller, em suma, o autor de livrosque, independentemente da qualidade literria, correspondem em todos os aspectos aoconceito atual de best sellers. A frase de Arnold Hauser expressa o enigma representadopela obra de Dickens em relao ao sistema literrio de seu tempo um enigma que sfez crescer desde ento e continua vlido para o nosso presente, em que a qualidadeliterria parece irremediavelmente divorciada do sucesso de pblico.

    Pois embora Dickens fosse considerado autor para um pblico iletrado umamassa de leitores bem diferente daquela que no passado lia Richardson, Defoe eFielding, e que agora preferia George Eliot ou Thackeray ao autor de Oliver Twist , afortuna crtica posterior o descreve como epicentro da prosa de lngua inglesa do sculoXIX. Recentemente, um ensasta sofisticado como Harold Bloom colocou Bleak House aolado de Middlemarch, de George Eliot, como exemplo de romance cannico. E o poetaT. S. Eliot formulou uma aproximao surpreendente, ao dizer que Dickens compartilhacom Shakespeare essa capacidade singular de criar personagens de carne e osso comapenas uma frase.

    A despeito de suas narrativas muitas vezes se assemelharem a contos de fadas comfinais edificantes a famosa filosofia de Natal com que ele pretende purgar os malesda sociedade industrial (to bem descritos e denunciados em seus romances) por meio depregaes evanglicas e de solues meramente filantrpicas , Dickens ocupa umlugar-chave na histria de um gnero que surge para dar conta de novos contedos, quepor sua vez correspondem a uma nova classe social e a um novo tipo de leitor.

    O surgimento do romance um tema inesgotvel e controvertido. Mas se verdade(como afirma Ian Watt no clssico A ascenso do romance) que autores como Defoe eFielding atenderam expectativa de um pblico entediado com as aventuras galantes, deextrao francesa, e sequioso de enredos prximos da realidade e da linguagemcotidianas, Dickens amplifica e ultrapassa esse fruto literrio da revoluo burguesaque o romance: seus livros so verdadeiras sinfonias que ecoam as diversas vozes quese cruzam na cidade moderna.

    E mesmo que seus proletrios sejam um tanto idealizados, ele no deixa de ironizaressas idealizaes. No esse, alis, o tema de fundo de As aventuras do sr. Pickwick? Aetnografia burlesca dos pickwickianos no revela como suas pretenses cientficas demapear Londres e seus habitantes eram risveis e o quanto, afinal, toda representao(literria ou no) deforma a realidade? A grande contradio de Dickens foi ter associadostira e distanciamento irnico a enredos que transpiram sinceridade, sentimentalismo,at mesmo ingenuidade e talvez seja essa contradio que o defina.

    O fato de ser considerado um escritor ignorante para os padres da poca e de terse exercitado no jornalismo antes de enveredar pela fico (Sketches by Boz, sua srie dereportagens sobre Londres, seria precursor de As aventuras do sr. Pickwick) explica apopularidade de Dickens, um escritor que falava na lngua de seu pblico e que soube

  • explorar como poucos o canal de veiculao representado pelos romances de folhetim(os fascculos de Pickwick chegaram a ultrapassar, na poca, a casa dos 40 mil exemplaresvendidos). Que esse pblico seja composto no apenas de pequenos-burguesesconsumidores de romances escapistas, mas tambm por crticos e romancistas exigentesem relao autoconscincia ficcional, torna o autor de Tempos difceis um caso inigualvelde escritor que consegue ser best seller antes de se tornar um clssico (no sentido antigo dotermo) e que consegue ser clssico apesar de ser um best seller (no sentido contemporneodo termo).

    Manuel da Costa Pinto

  • captulo i

    Os pickwickianos

    O PRIMEIRO RAIO DE LUZ que ilumina a treva e converte em brilhante claridade aescurido em que pareciam envolvidos os primrdios da carreira pblica do imortalPickwick nasce do exame da seguinte ata dos trabalhos do Clube Pickwick, que o editordestes escritos tem o mximo prazer em apresentar aos seus leitores, como prova dacuidadosa ateno, da infatigvel diligncia e da sagacidade pesquisadora com queprocedeu investigao dos muitos documentos que lhe foram cometidos:

    12 de maio de 1827. Sesso presidida por Josepb Smiggers, Esq., V.P.P.M.C.P.[1] Foram unanimemente aprovadas as seguintes resolues:

    Essa associao ouviu, com purssima satisfao e aprovao sincera, a leitura damonografia que lhe foi comunicada por Samuel Pickwick, Esq., P.G.M.C.P.,[2]intitulada Especulaes sobre a Origem das Lagoas de Hampstead, com AlgumasObservaes sobre a Teoria dos Girinos; e esta associao apresenta, por meio desta, osseus mais sinceros agradecimentos ao dito Samuel Pickwick, Esq., P.G.M.C.P.

    Ao mesmo passo que esta associao reconhece perfeitamente as vantagens que causa da cincia ho de advir da obra citada bem como das incansveis pesquisas deSamuel Pickwick, Esq., P.G.M.C.P., em Hornsey, Highgate, Brixton e Camberwell ,no pode menos de reconhecer os inevitveis benefcios que ho de resultar doalargamento das especulaes do erudito cavalheiro num campo mais vasto, estendendo-lhe as viagens e ampliando-lhe, por conseguinte, a esfera de observao, para oprogresso do conhecimento e a difuso do saber.

    Com o supracitado intuito, tomou esta associao em srio apreo uma propostafeita pelo sobredito Samuel Pickwick, Esq., P.G.M.C.P., e de trs outros pickwickianosque a seguir se nomeiam, para formar um novo ramo da unio pickwickiana, sob ottulo de Sociedade Correspondente do Clube Pickwick.

    A dita proposta foi sancionada e aprovada por esta associao.Fica, pela presente, constituda a Sociedade Correspondente do Clube Pickwick; e

    Samuel Pickwick, Esq., P.G.M.C.P., Tracy Tupman, Esq., M.C.P., AugustusSnodgrass, Esq., M.C.P., e Natanael Winkle, Esq., M.C.P., so, por meio desta, eleitos enomeados membros da mesma; ficando encarregados de apresentar, de tempos atempos, ao Clube Pickwick, com sede em Londres, relatrios autnticos de suas viagens

  • e investigaes, de suas observaes sobre caracteres e costumes, e do conjunto de suasaventuras, alm de todas as narrativas e documentos a que possam dar origem as cenasou sociedades locais.

    Esta associao est perfeitamente de acordo com o princpio segundo o qual todomembro da dita Sociedade Correspondente deve custear as suas despesas de viagem; eabsolutamente no se ope a que qualquer um deles proceda s suas investigaesdurante o espao de tempo que lhe prouver, nas mesmas condies.

    Os membros da referida sociedade so, por meio desta, informados de que a suaproposta, para que cada qual pague o porte de suas cartas e o envio das suasencomendas, foi discutida por esta associao; e esta associao, considerando talproposta digna dos espritos elevados de que emanou, comunica-lhes, pela presente, asua absoluta aquiescncia.

    Um observador casual, acrescenta o secretrio, a cujas notas devemos a narrativaseguinte um observador casual no teria, porventura, notado nada de extraordinriona cabea calva e nos culos circulares atentamente voltados para o rosto dele, secretrio,durante a leitura das sobreditas resolues; mas para os que sabiam que o crebrogigantesco de Pickwick trabalhava debaixo daquela testa, e que os olhos luminosos dePickwick cintilavam atrs daqueles vidros, era o espetculo realmente interessante. Lestava o homem que rastreara, at a sua origem, as grandes lagoas de Hampstead, eagitara o mundo cientfico com a sua teoria sobre os girinos, calmo e impassvel comoas profundas guas das primeiras num dia de geada, ou como um espcime solitrio dosltimos nos mais ntimos recessos de uma bilha de barro. E quo mais interessante setornou o espetculo quando, trmulo de vida e animao, ao ouvir os gritos simultneosde Pickwick desferidos pelos discpulos, trepou esse homem ilustre na cadeiraWindsor em que at ento estivera sentado e dirigiu-se ao clube que ele mesmo fundara.Que magnfico objeto para um estudo de artista apresentava a comovente cena! Oeloqente Pickwick, com uma das mos graciosamente escondida debaixo do rabo dacasaca e a outra a agitar-se-lhe no ar, para reforar-lhe a calorosa declamao; a posioelevada permitia verem-se-lhe a cala e polainas, que, se vestissem um homem comum,poderiam passar despercebidas, mas que, vestidas por Pickwick, inspiravam um temor eum respeito espontneos; cercado pelos homens que se haviam voluntariamenteoferecido para compartir os perigos das suas viagens e estavam destinados a participardas glrias dos seus descobrimentos. sua direita sentava-se o sr. Tracy Tupman osuscetibilssimo Tupman, que, sabedoria e experincia de mais maduros anos,acrescentava o entusiasmo e o ardor de um menino, na mais interessante e perdovel dasfraquezas humanas o amor. O tempo e a boa mesa haviam-lhe dilatado a forma,outrora romntica; o colete de seda preta desenvolvera-se-lhe cada vez mais; polegadapor polegada, a corrente de ouro do relgio fora-se escapando, debaixo dele, do campovisual de Tupman; e, gradativamente, o queixo volumoso ultrapassara-lhe os bordos dagravata branca; mas a alma de Tupman no se alterara e a admirao do belo sexoera-lhe ainda a paixo dominante. esquerda do grande chefe sentava-se ainda o poticoSnodgrass e, perto deste, Winkle, o caador, o primeiro poeticamente envolvido numamisteriosa casaca azul, com gola de pele de cachorro, e o segundo a transmitir um lustreadicional a uma casaca verde e nova de caador, ao leno axadrezado do pescoo e a calaestreita, cor de cinza.

    A orao do sr. Pickwick nessa conjuntura e os debates que dela se originaram

  • esto registrados nas atas do clube. Todos apresentam grande semelhana com asdiscusses de outras clebres assemblias; e, como sempre interessante evidenciar asanalogias entre os atos dos grandes homens, transcreveremos a ata nestas pginas.

    Observou o sr. Pickwick (diz o secretrio) que a fama grata ao corao de todosos homens. A fama potica era grata ao corao do seu amigo Snodgrass; a fama dasconquistas era igualmente cara a seu amigo Tupman; e o desejo de alcanar fama emtodos os desportos do campo, do ar e da gua imperava no seio do seu amigo Winkle.Ele (o sr. Pickwick) no negaria que experimentava a influncia das paixes humanas edos sentimentos humanos (aplausos) qui das fraquezas humanas (gritos violentosde No) , mas uma coisa diria: se o fogo do amor-prprio lhe irrompera alguma vezno seio, apagara-o eficazmente o desejo de beneficiar, primeiro, o gnero humano. Oslouvores dos homens constituam-lhe o gosto; a filantropia era-lhe o escritrio deseguros. (Aplausos veementes.) Sentira certo orgulho reconhecia-o abertamente, etirassem disso os inimigos o proveito que pudessem , sentira certo orgulho emapresentar ao mundo a sua teoria sobre os girinos, que podia ser clebre ou no. (Umgrito de clebre, e grandes aplausos.) Aceitaria a afirmao do honrado pickwickianocuja voz acabara de ouvir era clebre; mas, se a fama daquele tratado devesseestender-se aos mais remotos confins do mundo conhecido, o orgulho que lhe poderiaadvir da autoria daquela obra nada seria diante do orgulho com que olhava sua volta,naquele momento, o mais glorioso de sua existncia. (Aplausos.) Era um indivduohumilde. (No, no.) Sem embargo, no poderia deixar de compreender que o haviamescolhido para um servio de grande honra e algum perigo. As viagens se achavamnuma situao confusa e os espritos dos cocheiros andavam perturbados. Olhassem ospresentes sua volta e contemplassem as cenas que, em torno deles, se desenrolavam.Tombavam as diligncias em todos os sentidos, os cavalos empinavam, os barcosviravam, explodiam as caldeiras. (Aplausos Uma voz: No.) No! (Aplausos.)Tivesse o honrado pickwickiano que dissera No com tanta fora a bondade deaproximar-se e desmenti-lo, se o pudesse. (Aplausos.) Quem havia gritado No?(Aplausos entusisticos.) Teria sido algum vaidoso e desapontado j no diria umretroseiro (vivos aplausos) que, invejoso dos louvores que tinham sido talvezimerecidamente conferidos s investigaes dele, sr. Pickwick, e consumido pelascensuras acumuladas sobre as suas dbeis tentativas de competio, valia-se agora desseprocesso vil e calunioso para...

    O sr. BLOTTON (de Aldgate) pediu a palavra pela ordem. Aludira a ele o honradopickwickiano? (Gritos de Ordem, sr. Presidente, Sim, No, Continuem, Chega,etc.)

    O sr. PICKWICK no quis deixar-se intimidar pelos clamores. Aludira,efetivamente, ao honrado cavalheiro. (Grande comoo.)

    O sr. BLOTTON , nesse caso, limitava-se a declarar que repelia a falsa e aleivosaacusao do honrado cavalheiro com profundo desprezo. (Grandes aplausos.) Ohonrado cavalheiro era um embusteiro. (Imensa confuso e gritos altos de sr.Presidente e Ordem.)

    O sr. SNODGRASS pediu a palavra pela ordem. (Ouam!) Queria saber se sepermitiria que continuasse aquela vergonhosa disputa entre dois membros do clube.(Ouam, ouam.)

    O PRESIDENTE tinha a absoluta certeza de que o honrado pickwickiano retiraria a

  • expresso que acabara de empregar.O sr. BLOTTON , apesar de todo o respeito que consagrava ao presidente, tinha a

    absoluta certeza de que no a retiraria.Ao PRESIDENTE afigurou-se que lhe corria a imperativa obrigao de perguntar ao

    honrado cavalheiro se empregara a expresso que lhe acabava de fugir dos lbios numsentido comum.

    O sr. BLOTTON no vacilou em dizer que no que empregara a palavra numsentido pickwickiano. (Ouam, ouam.) Impedia-lhe reconhecer que, pessoalmente,dedicava a mais elevada estima e considerao ao honrado cavalheiro; e julgava-oembusteiro apenas de um ponto de vista pickwickiano. (Ouam, ouam.)

    O sr. PICKWICK declarou-se muito satisfeito com a nobre, sincera e completaexplicao do honrado amigo. E pediu fosse imediatamente compreendido que as suasprprias observaes deviam ter uma interpretao puramente pickwickiana.

    Aqui termina a ata, e no duvidamos de que terminassem tambm os debates,chegados a to clara e satisfatria concluso. Carecemos de relatos oficiais sobre os fatosque o leitor ver registrados no captulo seguinte, mas o terem sido cuidadosamentecoligidos de cartas e outros manuscritos autorizados, indisputavelmente autnticos,justifica-lhes a narrao em forma continuada.

  • captulo ii

    O primeiro dia de viagem e as aventuras da primeira tarde; com as suasconseqncias.

    O SOL, OBREIRO PONTUAL DE TODOS OS TRABALHOS, acabara de levantar-se e principiava aalumiar a manh do dia 13 de maio de 1827, quando o sr. Pickwick rompeu, qual outrosol, do seu sono, escancarou a janela do quarto e considerou o mundo que lhe quedavaembaixo. A rua Goswell estava a seus ps, a rua Goswell estava sua direita at ondea vista podia alcanar, a rua Goswell estendia-se-lhe esquerda; e sua frente estava ooutro lado da rua Goswell. Tais, pensou o sr. Pickwick, so as vistas estreitas dessesfilsofos que, contentando-se com examinar as coisas que jazem diante deles, noenxergam as verdades escondidas atrs delas. Eu tambm poderia contentar-me comolhar indefinidamente para a rua Goswell, sem o mnimo esforo por penetrar as ocultasregies que de todos os lados a circundam. E, tendo feito essa bela reflexo, entrou osr. Pickwick a enfiar-se nas suas roupas e a enfiar as suas roupas na mala. Raros so osgrandes homens demasiado escrupulosos no arranjo de seus trajes; a operao debarbear-se, vestir-se e ingerir o caf foi logo executada; e uma hora depois, com a malana mo, o telescpio no bolso do sobretudo e o caderno de apontamentos no colete,pronto para a recepo de quaisquer descobrimentos dignos de serem registrados,chegava o sr. Pickwick estao de diligncias em St. Martins-le-Grand.

    Cocheiro! disse o sr. Pickwick. Pronto, senhor berrou um estranho espcime da raa humana, que

    envergava um casaco de serapilheira e um avental do mesmo pano, e que, com uma placade lato numerada volta do pescoo, parecia catalogado nalguma coleo de raridades.Era o criado da estao. Pronto, senhor. Vamos, primeiro cabriol! E, tendo sidoo cocheiro tirado da taberna em que estivera fumando o seu cachimbo, o sr. Pickwick ea sua mala foram arremessados ao interior do veculo.

    Golden Cross disse o sr. Pickwick. Um xelim apenas, Tommy gritou mal-humorado o cocheiro, para

    informao do amigo, o moo da estao, quando partiu o cabriol. Que idade tem esse cavalo, meu amigo? perguntou o sr. Pickwick,

    esfregando o nariz com o xelim que destinara passagem. Quarenta e dois replicou o cocheiro, considerando-o de revs.

  • Qu! exclamou o sr. Pickwick, levando a mo ao caderno de apontamentos.O cocheiro reiterou a afirmao primeira. O sr. Pickwick olhou muito de fito o rostodo homem, mas os traos deste no se alteraram, de sorte que ele registrou incontinentio fato.

    E por quanto tempo fica fora da cocheira? insistiu o sr. Pickwick, procurade novas informaes.

    Duas ou trs semanas voltou o homem. Semanas! registrou, atnito, o sr. Pickwick, e tornou a tirar o caderno de

    apontamentos. Ele mora em Pentonwil observou, muito frio, o cocheiro , mas quase

    nunca o levamos para casa, por causa da sua fraqueza. Por causa da sua fraqueza? repetiu o perplexo sr. Pickwick. Sempre que o tiramos do carro ele cai continuou o cocheiro , mas, quando

    est atrelado, seguramos as guias bem curtas, de sorte que no pode cair to facilmente;temos tambm um bom par de rodas, que correm atrs dele quando anda e no o deixamparar.

    O sr. Pickwick assentou palavra por palavra, no caderno, o que lhe dissera ococheiro, no intuito de comunic-lo ao clube, como singular exemplo da vitalidade doscavalos em circunstncias difceis. Mal terminara o assentamento quando chegaram aGolden Cross. Saltou o cocheiro ao cho e o sr. Pickwick saiu do carro. O sr. Tupman,o sr. Snodgrass e o sr. Winkle, que esperavam ansiosos a chegada do ilustre chefe,acorreram para saud-lo.

    Aqui est o seu dinheiro disse o sr. Pickwick, estendendo o xelim aococheiro.

    Qual no foi o assombro do erudito homem quando essa inconcebvel pessoaatirou o dinheiro ao pavimento e solicitou, em linguagem figurada, o prazer de lutarcom ele (sr. Pickwick) pelo xelim!

    Esse homem est louco disse o sr. Snodgrass. Ou bbedo disse o sr. Winkle. Ou ambas as coisas disse o sr. Tupman. Vamos! desafiou o cocheiro, esmurrando o ar como uma mquina de

    relgio. Vamos, todos os quatro. Que boa pndega! berrou meia dzia de cocheiros de aluguel. Mos

    obra, Sam e cercaram o grupo com enorme satisfao. Que aconteceu, Sam? indagou um cavalheiro que trazia mangas de algodo

    preto. Que aconteceu? retorquiu o cocheiro. Por que foi que ele quis o meu

    nmero? Eu no quis o seu nmero volveu espantado o sr. Pickwick. E por que o tomou? insistiu o cocheiro. Eu no o tomei exclamou, indignado, o sr. Pickwick. Seria algum capaz de acreditar prosseguiu o cocheiro, apelando para a

    multido , seria algum capaz de acreditar que entra um espia da polcia no carro deum homem, no s para lhe tomar o nmero, mas para anotar, ainda por cima, todas aspalavras que diz? (Uma luz se fez no crebro do sr. Pickwick era o caderno deapontamentos.)

  • Mas ele tomou? perguntou o outro cocheiro. Tomou, tomou respondeu o primeiro. E depois de me haver obrigado,

    com as suas provocaes, a agredi-lo, arranjou trs testemunhas. Mas ele me paga, aindaque isso me custe seis meses de cadeia. Vamos! e o cocheiro lanou o chapu ao cho,com negligente descaso de suas propriedades, atirou longe os culos do sr. Pickwick econtinuou o ataque com um murro no nariz do sr. Pickwick, outro no peito do sr.Pickwick, um terceiro nos olhos do sr. Snodgrass, e um quarto, para variar, no coletedo sr. Tupman; em seguida, pulou para a rua, depois voltou para a calada e, finalmente,arrancou todo o suprimento temporrio de flego do corpo do sr. Winkle; e tudo issoem meia dzia de segundos.

    No haver um polcia por aqui? perguntou o sr. Snodgrass. Coloquem-nos debaixo da bomba sugeriu um pasteleiro. Os senhores ho de pagar por isto resfolegou o sr. Pickwick. Espias! rugiu a multido. Vamos! berrou o cocheiro, que no cessara de esmurrar o vento.O populacho fora at ento passivo espectador da cena, mas quando se espalhou a

    notcia de que os pickwickianos eram espias da polcia, principiou a discutir comextrema vivacidade a convenincia de levar a efeito a proposta do pasteleiro; e no hdvida de que atos de agresso pessoal poderia ter cometido no houvesse a contendainesperadamente terminado com a interveno de um recm-chegado.

    Que aconteceu? perguntou um rapaz alto e magro, de casaca verde,subitamente sado do ptio dos carros.

    Espias! voltou a berrar a turba. No verdade bramiu o sr. Pickwick, num tom capaz de convencer qualquer

    ouvinte imparcial. No so mesmo? perguntou o rapaz, voltando-se para o sr. Pickwick, e

    abrindo caminho atravs da plebe com o infalvel processo de acotovelar o rosto dosseus membros.

    O erudito homem explicou em poucas e apressadas palavras a verdadeira situaodo caso.

    Venham, ento disse o de casaca verde, arrastando atrs de si o sr. Pickwick viva fora e falando durante todo o trajeto. Aqui, 924, receba o dinheiro e d ofora... Um cavalheiro respeitvel... Eu o conheo bem... Nada de tolices... Por aqui,senhor... Onde esto os seus amigos?... Vejo que foi tudo um engano... No seamofinem... essas coisas acontecem... nas melhores famlias... Ningum morre disso... preciso coragem... Denunciem-no... Ele que se arrume... Malditos patifes. E comuma longa fieira de sentenas truncadas como essas, proferidas com extraordinriavolubilidade, o estranho abriu caminho para a sala de espera dos viajantes, aonde foiacompanhado de perto pelo sr. Pickwick e seus discpulos.

    Garom! gritou o estranho, tocando a campainha com tremenda violncia. Copos para todos... aguardente e gua, quente e forte. E doce, e bastante... O olhomachucado, senhor? Garom! Um pedao de carne crua para o olho do cavalheiro...Nada como a carne crua para um olho pisado, senhor; um poste frio tambm muitobom, mas incmodo... Muito esquisito ficar a gente meia hora em plena rua com o olhoencostado num poste... timo... ha! ha! E o estranho, sem descontinuar para tomarflego, engoliu de uma vez s meia canada da aguardente fumegante e atirou-se a uma

  • cadeira com a mesma displicncia com que o faria se nada de extraordinrio houvesseacontecido.

    Ao passo que os trs companheiros se afadigavam em agradecer ao novoconhecido, o sr. Pickwick teve suficiente vagar para examinar-lhe os trajes e o aspecto.

    Era, aproximadamente, de altura mediana, mas a magreza do corpo e ocomprimento das pernas davam-lhe a aparncia de ser muito mais alto. A casaca verdefora uma bonita vestimenta na poca dos rabos-de-andorinha, mas adornara,evidentemente, nessa ocasio, um homem muito mais baixo, pois as mangas, ensebadas edesbotadas, mal chegavam aos pulsos do estranho. Trazia-a abotoada at o queixo,apesar do perigo iminente de rasgar-lhe as costas; e uma velha gravata, sem vestgios decolarinho, ornamentava-lhe o pescoo. A cala preta e apertada ostentava, aqui e ali, osremendos brilhantes que falam de longos servios, e estavam fortemente presas a umpar de sapatos remendados e consertados, como se devessem ocultar a sujeira das meiasbrancas que, no obstante, eram distintamente visveis. Os cabelos, compridos e negros,escapavam-se-lhe, em ondas negligentes, de cada lado do velho chapu de abas voltadaspara cima! E podiam observar-se-lhe trechos dos pulsos nus entre os canhes das luvase os punhos das mangas do casaco. O rosto era magro e plido; mas um ar indescritvelde alegre imprudncia e perfeito domnio de si mesmo impregnava o homem todo.

    Tal era o indivduo em que se enfitava o sr. Pickwick atravs dos culos (que ele,afortunadamente, recuperara), e a quem principiou, depois de exaustos os amigos, aapresentar por sua vez os mais calorosos agradecimentos pela sua recente assistncia.

    No falemos nisso atalhou o estranho, interrompendo-lhe os cumprimentos, basta; sujeito duro o tal cocheiro... sabe jogar aos punhos; mas se eu fosse o seuamigo da casaca verde... por Deus... ter-lhe-ia quebrado a cabea... isso eu garanto... e ado pasteleiro tambm... palavra de honra.

    Esse coerente espiche foi interrompido pela entrada do cocheiro de Rochester, paraanunciar que o Comodoro estava a pique de partir.

    O Comodoro! exclamou o estranho, erguendo-se. O meu carro... lugarreservado... do lado de fora... paguem a conta... no tenho trocado... moedas falsas...dinheiro de Birmingham... no faz mal... os senhores no vm? e abanou a cabeacom muita convico.

    Ora, sucedia que o sr. Pickwick e os trs companheiros haviam decidido fazer deRochester tambm o seu primeiro ponto de parada; e havendo informado o recenteconhecido que demandavam a mesma cidade, concordaram em ocupar o banco traseirodo carro, onde poderiam ficar todos juntos.

    Pois ento, upa! disse o estranho, ajudando o sr. Pickwick a escalar o teto docarro com tamanha precipitao que lhe transtornou assaz materialmente a gravidade doporte.

    No tem bagagem, senhor? perguntou o cocheiro. Quem... eu? S este embrulho de papel pardo... O resto foi embarcado... caixas

    pregadas... grandes como casas... pesadas, pesadas, horrivelmente pesadas replicou oestranho, procurando enfiar no bolso tudo o que podia do embrulho de papel pardo,que apresentava suspeitssimas indicaes de conter uma camisa e um leno.

    As cabeas... cuidado com as cabeas! gritou o loquaz desconhecido aopassarem pela abbada baixa que naquele tempo constitua a entrada para o ptio doscarros. Lugar terrvel... trabalho perigoso... Outro dia... cinco crianas... a me, uma

  • senhora alta, comendo sanduches... esqueceu-se do arco... crac... bumba... as crianasolharam em torno... a cabea da me tinha cado... um sanduche na mo... sem boca paraenfi-lo... a cabea de uma famlia cada... impressionante, muito impressionante! Estolhando para Whitehall, senhor?... Belo lugar... a janelinha... outra cabea tambm caiude l, no foi?... Essa tambm no tomou muito cuidado... hein, senhor, bem?

    Estou ruminando disse o sr. Pickwick sobre a estranha mutabilidade dascoisas humanas.

    Ah! j sei... A gente entra um dia pela porta do palcio e sai no outro pela janela.Filsofo, senhor?

    Observador da natureza humana, senhor retrucou o sr. Pickwick. Ah, como eu. Muita gente assim quando tem pouco que fazer e menos ainda

    que ganhar. Poeta, senhor? O meu amigo, sr. Snodgrass, tem uma pronunciada veia potica volveu o sr.

    Pickwick. Eu tambm tornou o estranho. Poema pico... 10 mil versos... a

    revoluo de julho... composto no prprio lugar... Marte de dia, Apolo de noite...descarregando o fuzil, tangendo a lira.

    O senhor presenciou a gloriosa cena? inquiriu o sr. Snodgrass. Se a presenciei? Como no![3] Eu descarregava um mosquete... descarregava

    uma idia... corria para a taberna... punha-a por escrito... voltava para a rua... pum,pum... outra idia... a taberna de novo... pena e tinta... rua outra vez... cortava eacutilava... gloriosos tempos. O senhor caador? perguntou, voltando-se, brusco,para o sr. Winkle.

    Um pouco, senhor replicou esse cavalheiro. Bela ocupao... bela ocupao. Cachorros? Por enquanto, no. Ah! devia ter cachorros... belos animais... sagazes criaturas... Um cachorro meu,

    certa vez... perdigueiro... instinto surpreendente... Sa um dia para caar... entrava numcouto... assobiei... o cachorro parou... tornei a assobiar... Ponto!... No se mexeu;continuou imvel... Chamei-o... Ponto, Ponto... No quis andar... cachorropetrificado... olhando para uma tabuleta... ergui os olhos, vi uma inscrio... Ocouteiro tem ordens para matar todos os cachorros encontrados neste couto... No quispassar... co maravilhoso... co inestimvel... inestimvel.

    Circunstncia singular observou o sr. Pickwick. Permite-me que tomenota dela?

    Naturalmente, senhor, naturalmente... Cem outras anedotas do mesmo animal. Bela rapariga, senhor (ao sr. Tracy Tupman, que vinha lanando diversos olharesantipickwickianos a uma jovem que passava pela estrada).

    Muito! concordou o sr. Tupman. As raparigas inglesas no so to belas como as espanholas... nobres criaturas...

    cabelos de azeviche... olhos negros... formas sedutoras... meigas criaturas...formosssimas.

    Esteve na Espanha, senhor? perguntou o sr. Tracy Tupman. Morei l... sculos. Muitas conquistas? indagou o sr. Tupman. Conquistas! Milhares. Don Bolaro Fizzgig... grande de Espanha... filha nica...

  • Dona Cristina... esplndida criatura... morria de amores por mim... pai ciumento... filhaapaixonada... ingls bonito... Dona Cristina desesperada... cido prssico... bombaestomacal na minha mala... executou-se a operao... o velho Bolaro em xtase...consente em nossa unio... mos unidas e torrentes de lgrimas... histria romntica...muito romntica.

    Acha-se agora na Inglaterra esta senhora? inquiriu o sr. Tupman, sobre oqual a descrio dos seus encantos causara profunda impresso.

    Morta, meu caro senhor... morta volveu o desconhecido aplicando ao olhodireito os exguos remanescentes de um velho leno de cambraia. Nunca maisrecuperei a bomba estomacal... o organismo debilitado... foi vitimado.

    E o pai? perguntou o potico Snodgrass. Remorso e aflio retorquiu o estranho. Desaparecimento sbito... a

    cidade inteira falou no caso... investigaes em toda parte... sem resultado... A fonte dapraa pblica, de repente, parou de jorrar... Passaram-se semanas... A gua no saa...Empregaram-se obreiros para limp-la... Retirou-se a gua... Meu sogro foi encontradode cabea para baixo no cano principal, com uma confisso completa na bota esquerda...Retiraram-no dali e a fonte volveu a funcionar, to bem como antes.

    Consente em que eu tome nota desse romancezinho, senhor? pediu o sr.Snodgrass, profundamente comovido.

    Certamente, senhor, certamente... Cinqenta mais, se lhe apraz ouvi-los...Estranha vida, a minha... histria curiosa... no extraordinria, mas singular.

    Nesse diapaso, com um copo ocasional de cerveja, guisa de parntese, quando semudavam os cavalos do carro, prosseguiu o desconhecido, at chegarem ponte deRochester, onde os cadernos de apontamentos, assim do sr. Pickwick como do sr.Snodgrass, j se achavam completamente cheios de selees das suas aventuras.

    Magnfica runa! exclamou o sr. Augustus Snodgrass, com o potico fervorque lhe era peculiar, ao avistarem o belo e antigo castelo.

    Que objeto de estudo para um antiqurio! foram as palavras que caram daboca do sr. Pickwick ao aplicar vista o telescpio.

    Ah! formoso lugar disse o estranho , soberba massa... paredes sombrias...arcos vacilantes... escuros recantos... escadarias arruinadas... A velha catedral tambm...cheiro de terra... os velhos degraus gastos pelos ps dos peregrinos... pequenas portassaxnias... confessionrios semelhantes a bilheterias de teatros... Gente engraada essesmonges.... papas e tesoureiros, e toda a sorte de velhos sujeitos, com cares vermelhos enarizes quebrados, que todos os dias se desenterram... gibes de camura tambm...arcabuzes de mecha... sarcfagos... belo lugar... velhas lendas... histrias estranhas:magnfico e o desconhecido continuou o solilquio at chegarem Estalagem doTouro, na rua principal, onde o carro se deteve.

    Fica aqui, senhor? perguntou o sr. Natanael Winkle. Aqui? Eu, no... Mas os senhores deviam ficar... boa casa... timas camas... O

    Hotel Wright, pegado, caro... muito caro... meta coroa a mais na conta se olharem parao criado... cobra mais se jantarem em casa de um amigo do que se jantarem no hotel...gente engraada... muito engraada.

    O sr. Winkle voltou-se para o sr. Pickwick e murmurou algumas palavras; omurmrio passou do sr. Pickwick ao sr. Snodgrass, do sr. Snodgrass ao sr. Tupman, etrocaram-se acenos de assentimento. O sr. Pickwick dirigiu-se ao desconhecido.

  • O senhor nos prestou um servio importantssimo hoje de manh disse ele. Permite que lhe ofereamos uma pequena mostra da nossa gratido solicitando o favorda sua companhia ao jantar?

    Com muito prazer... No me atrevo a sugerir, mas que tal um frango assado ecogumelos?... Excelente coisa! A que horas?

    Deixe-me ver redargiu o sr. Pickwick, consultando o relgio , j soquase 3. Que tal s 5?

    Para mim est timo tornou o estranho s 5, precisamente... At j,ento... Tenham cuidado consigo e, levantando o chapu de abas erguidas algumaspolegadas acima da cabea, para logo o recolocar, negligente, muito inclinado sobre umdos lados, com metade do embrulho de papel pardo a sair-lhe do bolso, o desconhecidocruzou rapidamente o ptio e desembocou na rua principal.

    evidentemente um homem que viajou muitos pases e profundo observadordos homens e das coisas disse o sr. Pickwick.

    Eu gostaria de ver-lhe o poema disse o sr. Snodgrass. Eu gostaria de ter visto o tal cachorro disse o sr. Winkle.O sr. Tupman no disse nada; mas pensava em dona Cristina, na bomba estomacal

    e na fonte; e tinha os olhos marejados de lgrimas.Tendo sido reservado um refeitrio particular, inspecionados os quartos de dormir

    e encomendado o jantar, saiu o grupo a visitar a cidade e as circunvizinhanas.No encontramos, depois de cuidado estudo das notas do sr. Pickwick sobre as

    quatro cidades, Stroud, Rochester, Chatham e Brompton, nenhuma divergnciaimportante entre as suas impresses e as de outros viajantes que palmilharam o mesmosolo. Resume-se-lhe facilmente a descrio geral.

    As produes principais dessas cidades, diz o sr. Pickwick, parecem sersoldados, marinheiros, judeus, giz, camares, oficiais e estivadores. As mercadoriasprincipalmente expostas venda nas vias pblicas so provises nuticas, caramelos,mas, linguados e ostras. As ruas apresentam um aspecto vivo e animado,principalmente causado pela sociabilidade dos militares. deveras deleitoso para umesprito filantrpico ver cambalearem esses homens intrpidos sob a influncia de umexcesso de espritos assim animais como ardentes; maiormente se considerarmos que osegui-los e remoque-los proporciona uma diverso barata e indecente a todos osmeninos da cidade. Nada, acrescenta o sr. Pickwick, pode exceder-lhes o bom humor.Na vspera da minha chegada, um deles havia sido grosseiramente insultado numataberna. A criada negara-se terminantemente a dar-lhe mais bebida; em troca do que (spor brincadeira) ele arrancara da baioneta e ferira a rapariga no ombro. E, no entanto,esse bravo sujeito foi o primeiro que, na manh seguinte, voltou taberna para declararque no guardava rancor nenhum e estava disposto a esquecer o ocorrido.

    O consumo do fumo nessas cidades, continua o sr. Pickwick, h de ser muitogrande; e o cheiro que impregna as ruas deve ser excessivamente deleitoso para os quegostam de fumar. Um viajante superficial poderia criticar a lama, que a principalcaracterstica dessas cidades; mas, para aqueles que a encaram como indicao de trfegoe de prosperidade comercial, verdadeiramente grata.

    s 5 horas, pontualmente, chegou o estranho e, pouco depois, o jantar. Livrara-seele do embrulho de papel pardo, mas no fizera modificao alguma nos trajes; e estava,se possvel, mais loquaz do que nunca.

  • Que isso? perguntou, quando o garom retirou um dos talheres. Linguados, senhor. Linguados... Ah... peixe excelente... vm todos de Londres... os proprietrios

    das diligncias organizam jantares polticos para o transporte de linguados... dzias decestas... sujeitos espertos... Um copo de vinho, senhor?

    Com prazer redargiu o sr. Pickwick; e o estranho tomou vinho, primeirocom ele, depois com o sr. Snodgrass, depois com o sr. Tupman, depois com o sr.Winkle e depois com todos os presentes quase to rapidamente quanto falava.

    Confuso dos diabos na escada, garom disse o desconhecido. Bancosque sobem... carpinteiros que descem... lmpadas, vidros, harpas. Que aconteceu?

    Um baile, senhor respondeu o garom. Baile por subscrio? No, senhor. Baile beneficente. Sabe se h muitas mulheres bonitas na cidade? indagou o sr. Tupman, com

    grande interesse. Esplndidas... excelentes. Kent, senhor... toda a gente conhece Kent... mas,

    cerejas, lpulo e mulheres. Um copo de vinho? Com muito prazer replicou o sr. Tupman. O desconhecido encheu o copo e

    esvaziou-o. Eu gostaria imenso de ir disse o sr. Tupman, voltando ao assunto do baile

    , gostaria muitssimo. Entradas no balco, senhor acudiu o garom; meio guinu por pessoa.O sr. Tupman voltou a expressar um desejo imenso de estar presente festa, mas,

    no encontrando resposta nos olhos obscurecidos do sr. Snodgrass, nem no olharabstrato do sr. Pickwick, aplicou-se com sumo interesse ao vinho do Porto e sobremesa que se acabava de servir. Retirou-se o garom, deixando o grupo a ss, paragozar-se das duas horas confortveis que se seguem ao jantar.

    Perdo, senhor disse o estranho , a garrafa est parada... obrigue-a a dar avolta... como o sol... pela botoeira... sem deixar restos no copo e esvaziou o seu, queenchera dois minutos antes, tornando a ench-lo, com o ar de quem estava habituadoquilo.

    Passou-se o vinho e encomendou-se nova proviso. O visitante falava, ospickwickianos ouviam. O sr. Tupman sentia-se, a cada momento, mais disposto a ir aobaile. Iluminava o semblante do sr. Pickwick uma expresso de filantropia universal; osr. Winkle e o sr. Snodgrass haviam adormecido.

    Esto comeando, l em cima disse o estranho , escutem... os violinostocam... agora a harpa... l vo eles. Os vrios sons que chegavam ao pavimentoinferior anunciavam o princpio da primeira quadrilha.

    Como eu gostaria de ir! exclamou o sr. Tupman, outra vez. Eu tambm volveu o estranho , maldita bagagem... navios lerdos... no

    tenho com o que ir... engraado, no ?Ora, a benevolncia geral era um dos traos principais da teoria pickwickiana, e

    ningum mais notvel pelo zelo com que observava princpio to nobre que o sr. TracyTupman. O nmero de casos, registrados nas atas da sociedade, em que esse homemexcelente remetera casa de outros membros os infortunados que lhe vinham pedirroupas velhas e socorros pecunirios era quase incrvel.

  • Eu teria muita satisfao em poder emprestar-lhe um terno novo para a ocasio disse o sr. Tracy Tupman , mas o senhor muito magro, e eu...

    Muito gordo... Baco crescido... cortou as folhas... desmontou o tonel e vestiucala, no foi?... No duplamente destilado, mas duplamente modo... ah! ah! Passe ovinho.

    Se o sr. Tupman se indignou com o tom peremptrio em que lhe pediram quepassasse o vinho, to rapidamente engolido pelo desconhecido; ou se se sentiujustamente escandalizado ao ver um membro influente do Clube Pickwickignominiosamente comparado a um Baco desmontado, um fato que ainda no seestabeleceu definitivamente. Passou o vinho, tossiu duas vezes e encarou o estranho,durante alguns segundos, com severa intensidade. Como o indivduo, porm, parecesseperfeitamente calmo e sereno debaixo do seu olhar perscrutador, a pouco e pouco sereportou, e volveu a falar do baile.

    Eu estava a ponto de observar disse ele que se as minhas roupas somuito grandes para si, talvez lhe sirvam melhor os trajes do meu amigo sr. Winkle.

    O estranho tomou com a vista as medidas do sr. Winkle; e o semblante alumiou-se-lhe de satisfao, ao dizer: exatamente o de que preciso.

    O sr. Tupman circunvolveu os olhos. O vinho, que exercera a sua soporferainfluncia sobre o sr. Snodgrass e o sr. Winkle, colhera de surpresa os sentidos do sr.Pickwick. Esse cavalheiro passara gradualmente pelas vrias fases que precedem aletargia produzida pelo jantar, e as suas conseqncias. Experimentara as transiescomuns entre o auge da alacridade e os abismos da tristeza, e entre os abismos da tristezae o auge da alacridade. Como um lampio de gs, cheio de vento no tubo, alardeara porinstantes um brilho desnatural; cara depois to baixo que mal se poderia enxerg-lo;aps um breve intervalo, voltara a iluminar-se, para logo bruxulear, com luz vacilante eincerta, e, por fim, sumira-se completamente. Tinha a cabea afundada no peito; e umronco perptuo, acompanhado, s vezes, de sufocaes parciais, era a nica indicaoaudvel da presena do grande homem.

    A tentao de assistir ao baile e de colher as primeiras impresses sobre aformosura das senhoras de Kent era forte no sr. Tupman. A tentao de levar consigo oestranho era igualmente forte. Desconhecia inteiramente o lugar e os seus habitantes; e oestranho parecia ter de ambos um grande conhecimento, pois l vivera durante a suainfncia. O sr. Winkle adormecera e o sr. Tupman tinha suficiente experincia dessesassuntos para saber que, no momento em que ele acordasse, iria, seguindo o cursoordinrio da natureza, rolando pesadamente para a cama. Quedou-se indeciso.

    Encha o copo e passe o vinho disse o infatigvel visitante.O sr. Tupman fez o que lhe pediam; e o estmulo adicional do ltimo copo levou-o

    a decidir-se. O quarto de Winkle d para o meu disse o sr. Tupman. Eu no

    conseguiria faz-lo compreender o que desejo se o acordasse agora, mas sei que tem umterno completo na mala; e se o senhor o usasse no baile, e o despisse quandovoltssemos, eu poderia recoloc-lo facilmente no lugar sem incomodar o nosso amigo.

    Excelente volveu o estranho , plano magnfico... situaoengraadssima... catorze casacas nas minhas malas e obrigado a usar a de outro...esplndida idia... muito boa.

    Temos de comprar as nossas entradas disse o sr. Tupman.

  • No vale a pena trocar 1 guinu acudiu o estranho , tiremos a sorte paraver quem paga as duas... eu escolho; o senhor atira uma moeda ao ar... na primeira vez...mulher... mulher... feiticeira mulher e l veio o soberano, com Drago (chamado,por cortesia, a mulher) para cima.

    O sr. Tupman tocou a campainha, comprou as entradas e mandou que trouxessemcandeeiros. Um quarto de hora depois, estava o estranho inteiramente adornado com umtraje completo do sr. Natanael Winkle.

    uma casaca nova disse o sr. Tupman, ao passo que o estranho se remiravacom suma complacncia num espelho emoldurado , a primeira que se fez com odistintivo do nosso clube e chamou a ateno do companheiro para o grande botodourado, em que se via, no centro, o busto do sr. Pickwick, com as letras C. P. de cadalado.

    C. P. considerou o estranho , adereo engraado... o retrato do velho e asletras C. P. ... Que quer dizer C. P. ... Singular, esta casaca, no ?

    Com indignao crescente, e grande importncia, explicou o sr. Tupman a msticadivisa.

    Meio curta na cintura, no mesmo? observou o estranho, voltando-se paraver ao espelho os botes da cintura, que lhe tinham ficado na metade das costas. Parece casaca de carteiro... esquisitas, essas casacas... feitas por contrato... sem medidas...misteriosos desgnios da Providncia... todos os homens baixos tm casacascompridas... todos os homens altos tm casacas curtas. E, prosseguindo nesse estilo,o novo companheiro do sr. Tupman ajustou os seus trajes, ou melhor, os trajes do sr.Winkle, e, acompanhado do sr. Tupman, subiu as escadas que levavam para o salo debaile.

    Os nomes, senhores? perguntou o homem que estava ao p da porta. O sr.Tracy Tupman j se adiantava para anunciar os seus ttulos, quando o estranho lhetolheu os passos:

    Nada de nomes e murmurou para o sr. Tupman: Os nomes no valemnada... No so conhecidos... Podem ser muito bons, mas no so grandes nomes...nomes excelentes numa festinha, mas no causariam impresso numa grandeassemblia... Incgnitos, isso que ... cavalheiros de Londres... nobresdesconhecidos... qualquer coisa. Abriu-se a porta; e o sr. Tracy Tupman e o estranhopenetraram no salo de baile.

    Era uma sala comprida, com bancos carmesins estofados e velas de cera emcandelabros de vidro. Os msicos achavam-se cuidadosamente presos num estrado alto,e as quadrilhas eram sistematicamente atravessadas por dois ou trs grupos dedanarinos. Duas mesas de jogo haviam sido preparadas na sala pegada, e dois pares develhas senhoras e um nmero correspondente de vigorosos cavalheiros jogavam o whist.

    Concluda a msica, entraram os bailarinos a passear pela sala, e o sr. Tupman e ocompanheiro postaram-se num canto, para observar os presentes.

    Espere um pouco disse o estranho , vai ver uma coisa engraada... aspessoas de qualidade ainda no chegaram... Lugar divertido... Os funcionriossuperiores do arsenal de marinha no se do com os inferiores... os funcionriosinferiores no se do com os burgueses... os burgueses no se do com os negociantes...o comissrio do governo no se d com ningum.

    Quem aquele rapazinho loiro, de olhos vermelhos, fantasiado? perguntou

  • o sr. Tupman. Silncio, por favor... olhos vermelhos... fantasiado... rapazinho... tolice...

    Alferes do 97... o honourable Wilmot Snipe... grande famlia... os Snipes... muito grande. Sir Toms Clubber, lady Clubber e as srtas. Clubbers! berrou o homem da

    porta com voz estentrea. E em toda a sala produziu grande sensao a entrada de umcavalheiro alto, de casaca azul e botes brilhantes, uma senhora volumosa vestida decetim azul e duas senhoritas, de idntico feitio, com vestidos elegantes da mesma cor.

    Comissrio do governo... diretor do arsenal... grande homem... notavelmentegrande sussurrou o estranho ao ouvido do sr. Tupman, ao mesmo passo que acaridosa comisso de recepo do baile conduzia sir Toms Clubber e a famlia ao pontomais alto da sala. O honourable Wilmot Snipe e outros ilustres cavalheiros apressaram-se aapresentar as suas homenagens s srtas. Clubbers; e sir Toms Clubber permaneceuereto, contemplando, majestoso, a assemblia do alto da sua gravata preta.

    O sr. Smithie, a sra. Smithie e as srtas. Smithies foi o anncio seguinte. Quem o sr. Smithie? perguntou o sr. Tracy Tupman. Qualquer coisa do arsenal replicou o estranho. O sr. Smithie inclinou-se,

    deferente, para sir Toms Clubber; e sir Toms Clubber respondeu ao cumprimentocom altiva condescendncia. Lady Clubber olhou telescopicamente para a sra. Smithie efamlia, atravs de sua luneta, e a sra Smithie olhou, por sua vez, para a sra Fulana deTal, cujo marido no pertencia ao arsenal.

    O coronel Bulder, a esposa do coronel Bulder e a srta. Bulder anunciou emseguida.

    Comandante da guarnio disse o desconhecido, respondendo ao olharinterrogativo do sr. Tupman.

    A srta. Bulder foi calorosamente recebida pelas srtas. Clubbers; os cumprimentosentre a esposa do coronel Bulder e lady Clubber foram da mais afetuosa natureza; ocoronel Bulder e sir Toms Clubber trocaram caixas de rap e pareciam muito um par deAlexander Selkirks Monarcas de quanto sobreolhavam.

    Ao passo que a aristocracia do lugar os Bulders, os Clubbers e os Snipes preservava dessa forma a sua dignidade no canto superior da sala, as outras classes dasociedade imitavam-lhe o exemplo nos outros cantos. Os oficiais menos aristocrticosdo 97 dedicavam-se s famlias dos funcionrios menos importantes do arsenal. Asmulheres dos advogados e a do negociante de vinhos encabeavam outro crculo (aesposa do cervejeiro visitava os Bulders); e a sra. Tomlinson, a agente do correio,parecia haver sido, por mtuo consentimento, escolhida para chefe do grupo doscomerciantes.

    Um dos personagens mais populares, em seu prprio crculo, que se encontravapresente, era um homenzinho gordo, com um anel de cabelos negros eriados volta dacabea e uma extensa plancie calva em cima dela o dr. Slammer, cirurgio do 97. Odoutor tomava rap com toda a gente, falava com toda a gente, ria-se, danava,pilheriava, jogava o whist, fazia tudo e estava em toda a parte. A estas preocupaes,posto que mltiplas, acrescentava a mais importante de todas era infatigvel nocortejar, ininterrupta e devotadamente, uma viuvinha j idosa, cujos trajes ricos e cujaprofuso de ornamentos a recomendavam como desejabilssima adio a um parcorendimento.

    Os olhos do sr. Tupman e do companheiro fitavam-se havia j algum tempo no

  • doutor e na viva, quando o estranho desfez o silncio. Muito dinheiro... solteirona... doutor pomposo... no m idia... muito

    engraado foram as sentenas inteligveis que lhe saram dos lbios. O sr. Tupmanencarou-lhe interrogativamente o rosto.

    Vou danar com a viva disse o estranho. Quem ela? perguntou o sr. Tupman. No sei... Nunca a vi mais gorda... Vou desbancar o doutor... L vou eu. O

    estranho cruzou a sala; e, recostando-se escarpa de uma chamin, principiou a mirarcom respeitosa e melanclica admirao o gordo semblante da velha senhora. O sr.Tupman fitou nele os olhos, com mudo assombro. O estranho progredia rapidamente;o doutor danava com outra senhora; a viva deixou cair o leque, o desconhecidoapanhou-o e estendeu-lho... Um sorriso... Uma inclinao... Uma cortesia...

    Algumas palavras de conversao. O estranho dirigiu-se, intrpido, ao mestre-de-cerimnias, e voltou com ele; uma pantomimazinha de apresentao; e o estranho e a sra.Budger tomaram os seus lugares na quadrilha.

    Embora fosse grande a surpresa do sr. Tupman diante desse procedimentosumrio, incomensuravelmente maior foi o pasmo do doutor. O desconhecido era mooe a viva sentia-se lisonjeada. As atenes do doutor eram desdenhadas pela viva; e aindignao do doutor no causava impresso alguma sobre o seu imperturbvel rival. Odr. Slammer quedou paralisado. Ele, o dr. Slammer, do 97, ser desbancado nummomento por um homem que ningum nunca vira, e que ningum ainda conhecia! Dr.Slammer... o dr. Slammer do 97 desbancado! Impossvel! No podia ser! No entanto,era verdade; l estavam eles. Qu! E agora apresentava o amigo! No podia acreditar noque viam os seus olhos! Voltou a olhar e viu-se na penosa necessidade de admitir averacidade do que via: a sra. Budger danava com o sr. Tracy Tupman, no haviadvida. L estava a viva diante dele, em carne e osso, pulando de vez em quando, cominusitado vigor; e o sr. Tracy Tupman, aos saltos em torno dela, com um rosto em quese expressava a mais intensa solenidade, danando (como o faz muita gente boa) como seuma quadrilha no fosse coisa para rir, mas uma prova severa de sentimentos, que exigeuma inflexvel resoluo para suportar.

    Silencioso e paciente, sofreu o doutor tudo isso, afora os oferecimentos de sangria,a espera dos copos, o avano sobre os biscoitos, e o coquetear que se lhes seguiu; mas,poucos instantes depois, quando o desconhecido sumiu-se para conduzir a sra. Budgerao seu carro, precipitou-se para fora da sala, com todas as partculas de sua entosopitada indignao a efervescerem-lhe de todas as partes do rosto, que transpirava depaixo.

    O estranho voltava, acompanhado do sr. Tupman. Dizendo qualquer coisa em vozbaixa, riu. O doutor sentiu sede daquela vida. O outro exultava. Triunfara.

    Senhor interpelou-o o doutor, com voz medonha, apresentando um cartode visitas e retirando-se para um ngulo do corredor , o meu nome Slammer, dr.Slammer, senhor... do 97. Regimento... nos Quartis de Chatham... O meu carto,senhor, o meu carto Teria acrescentado mais alguma coisa, mas a indignaosufocava-o.

    Ah! replicou o estranho, friamente , Slammer... muito obrigado... muitoatencioso... No estou doente agora, Slammer... Mas quando estiver... irei procur-lo.

    O senhor... o senhor um intrujo! explodiu o furioso doutor. Um

  • poltro... um covarde... um mentiroso... um... um... Nada o induzir a dar-me o seucarto?

    Oh! Agora percebo revidou o estranho, meio de lado , a sangria aqui muito forte... O dono da casa muito liberal... Grande asneira... muito grande... alimonada prefervel... salas quentes... senhores de idade... Vai sofrer por causa dissoamanh cedo... Triste... muito triste e afastou-se um ou dois passos.

    O senhor est hospedado nesta casa recalcitrou, indignado, o homenzinho. Agora est embriagado; mas ter notcias minhas amanh cedo. Saberei encontr-lo,senhor, saberei encontr-lo.

    Ser-lhe- mais fcil encontrar-me na rua do que em casa redargiu oestranho, impassvel.

    Com ferocssimo aspecto, o dr. Slammer enfiou o chapu na cabea, dando-lheuma pancada furiosa; e o estranho e o sr. Tupman subiram para o quarto deste ltimo afim de devolver as penas emprestadas ao inconsciente Winkle.

    Este cavalheiro dormia profundamente; a restituio no tardou a se fazer. Oestranho mostrava-se extremamente faceto; e o sr. Tracy Tupman, atordoado com ovinho, a sangria, as luzes e as damas, considerava tudo aquilo como impagvelbrincadeira. O seu novo amigo partiu; e, depois de experimentar uma pequenadificuldade em achar o orifcio do barrete de dormir, originalmente destinado recepoda sua cabea, e derrubando, por fim, o castial em seus esforos para coloc-lo, o sr.Tracy Tupman teve traas de enfiar-se na cama por meio de uma srie de complicadasevolues e, pouco depois, mergulhava no sono.

    Mas cessara o relgio de dar as 7, na manh imediata, quando o esprito universaldo sr. Pickwick foi despertado do estado de inconscincia, em que o sono o imergira,por fortes pancadas porta do quarto.

    Quem ? perguntou o sr. Pickwick, saltando na cama. O criado, senhor. Que quer? Poderia fazer-me o obsquio de dizer qual dos senhores usa uma casaca azul-

    clara, de boto dourado, com as letras C e P? Deram-lho para escovar pensou o sr. Pickwick e o homem j no sabe a

    quem pertence. Sr. Winkle gritou , terceiro quarto, direita. Obrigado, senhor disse o criado, afastando-se. Que aconteceu? gritou o sr. Tupman, quando uma violenta pancada sua

    porta o arrancou, a ele, do sono do esquecimento. Posso falar com o sr. Winkle, senhor? retrucou, de fora, o criado. Winkle... Winkle! berrou o sr. Tupman, chamando para o quarto interior. Al! respondeu uma voz fraca, do fundo das cobertas. Querem falar-lhe... H uma pessoa porta e, depois do esforo que lhe foi

    preciso para articular tudo isso, o sr. Tracy Tupman voltou-se para o lado e tornou acair no sono.

    Querem falar-me! repetiu o sr. Winkle, saltando, pressa, da cama evestindo algumas peas de roupa. Querem falar-me! A esta distncia da cidade... Masquem que pode querer falar-me?

    Um cavalheiro na sala de jantar retrucou o criado, quando o sr. Winkle abriua porta e se defrontou com ele. Diz o cavalheiro que o no deter por muito tempo,

  • senhor, mas que no admite recusas. Muito esquisito! disse o sr. Winkle. Descerei imediatamente. Enrolou-se,

    precipitadamente, num chale de viagem e num roupo, e desceu as escadas. Uma velha edois criados limpavam a sala e um oficial, paisana, olhava pela janela. Voltou-sequando o sr. Winkle entrou e fez uma rgida inclinao de cabea. E, depois de haverordenado aos criados que se retirassem e fechado muito cuidadosamente a porta,perguntou: O senhor o sr. Winkle, se no me engano?

    O meu nome Winkle, senhor. Nesse caso no se surpreender, se eu lhe disser que vim aqui hoje cedo de parte

    do meu amigo, o dr. Slammer, do 97. O dr. Slammer! exclamou o sr. Winkle. O dr. Slammer. Ele me encarregou de dizer-lhe que acha que o seu

    procedimento ontem noite foi tal que nenhum cavalheiro seria capaz de tolerar; e acrescentou que nenhum cavalheiro poderia ter para com outro.

    O assombro do sr. Winkle era to real e to evidente que no poderia escapar observao do amigo do dr. Slammer; este, portanto, continuou:

    O meu amigo, dr. Slammer, pediu-me acrescentasse estar firmementepersuadido de que o senhor esteve embriagado parte da noite e no teve, talvez,conscincia da extenso do insulto que lhe dirigiu. Encarregou-me de dizer que, se osenhor alegar esse fato como escusa para o seu procedimento, consentir em aceitar umasatisfao escrita, redigida por si e ditada por mim.

    Uma satisfao escrita! repetiu o sr. Winkle, no tom de assombro maisenftico possvel.

    O senhor, naturalmente, conhece a alternativa replicou, friamente, o visitante. lncumbiram-no dessa mensagem para mim, pessoalmente? indagou o sr.

    Winkle, cujo intelecto se achava desesperadamente confuso com to extraordinriaconversao.

    Eu no me achava presente voltou o visitante , e, em conseqncia da suafirme recusa de dar ao dr. Slammer o seu carto, pediu-me esse cavalheiro queidentificasse a pessoa que usava uma casaca assaz extraordinria... uma casaca azul-clara,com um boto dourado em que se viam um busto e as letras C e P.

    O sr. Winkle quase desmaiou de espanto ao ouvir to minuciosa descrio do seuprprio fato. O amigo do dr. Slammer prosseguiu: As investigaes que acabo defazer no balco convenceram-me de que o dono da casaca em apreo chegou aqui, ontem tarde, em companhia de trs cavalheiros. Mandei consultar imediatamente o cavalheiroque me descreveram como chefe do grupo, e ele me indicou incontinenti o senhor.

    Se a torre principal do castelo de Rochester tivesse inopinadamente sado dos seusalicerces e caminhado at a frente da janela da sala de jantar, a surpresa do sr. Winkle noteria sido nada em comparao ao pasmo profundo com que ouviu as palavras do outro.A sua primeira impresso foi a de que a casaca fora roubada. Permite-me que eu odetenha por um instante?

    Naturalmente replicou o importuno visitante.O sr. Winkle subiu rapidamente as escadas e, com mo trmula, abriu a mala. L

    estava a casaca no lugar habitual, evidenciando, porm, depois de mais acurado exame,ter sido manifestamente usada na noite anterior.

    Foi isso, com certeza disse o sr. Winkle entre si, deixando cair a casaca das

  • mos. Bebi muito vinho depois do jantar e tenho uma lembrana muito vaga dehaver caminhado pelas ruas e fumado um charuto. O fato que eu estava muito bbedo;devo ter trocado de casaca... ido a algum lugar... e insultado algum... no h dvidanenhuma; e esta mensagem a terrvel conseqncia. Monologando assim, tresandouo sr. Winkle para a sala de jantar, com a tremenda e sombria deciso de aceitar o desafiodo belicoso dr. Slammer e sujeitar-se s piores conseqncias que dele poderiam advir.

    A essa determinao foi levado o sr. Winkle por uma srie de consideraes: aprimeira das quais era a sua reputao perante o clube. Sempre o haviam consideradogrande autoridade em todas as questes de recreio e destreza, defensivas, ofensivas, ouinofensivas; e, se, na primeira ocasio em que era posto prova, recuasse, sob os olhosdo chefe, perderia para sempre o nome e a posio. Alm disso, lembrava-lhe ter ouvidodizer amide aos no iniciados nesses assuntos que, por um implcito arranjo entre ospadrinhos, eram as pistolas raro carregadas de balas; e, alm do mais, refletiu, se pedisseao sr. Snodgrass que lhe servisse de padrinho, e descrevesse o perigo em termosvigorosos, esse cavalheiro poderia, qui, transmitir a informao ao sr. Pickwick, oqual, por certo, no perderia tempo em comunic-la s autoridades locais, impedindo,dessarte, fosse morto ou deteriorado o seu discpulo.

    Tais eram os seus pensamentos ao voltar para a sala de jantar e ao declarar queaceitava o desafio do doutor.

    Querer o senhor indicar-me um amigo para combinarmos a hora e o local doencontro? perguntou o oficial.

    Isso desnecessrio retorquiu o sr. Winkle. Designe-os o senhor epoderei depois procurar um amigo que me acompanhe.

    Que tal... ao pr-do-sol hoje tarde? perguntou o oficial, em tom negligente Muito bem retrucou o sr. Winkle, achando, interiormente, que era muito

    mal. O senhor conhece o Forte Pitt? Conheo; vi-o ontem. Se quiser dar-se ao trabalho de virar para o campo que bordeja a trincheira,

    tomar o atalho esquerda quando chegar a um ngulo da fortificao e seguir para afrente at encontrar-se comigo, eu o conduzirei a um local solitrio, onde o caso poderser decidido sem receio de interrupes.

    Receio de interrupes!, pensou o sr. Winkle. Creio ento, que no h mais nada para tratar disse o oficial. Que se saiba, no redargiu o sr. Winkle. Bom dia. Bom dia e o oficial afastou-se, assobiando uma cano brejeira.Naquela manh correu tristemente o desjejum. O sr. Tupman no se achava em

    condies de levantar-se, depois das inusitadas extravagncias da vspera; o sr.Snodgrass parecia experimentar uma potica depresso de esprito; e o prprio sr.Pickwick demonstrava desusado apego gua de soda. O sr. Winkle aguardava,ansioso, a sua oportunidade; esta no demorou em chegar. O sr. Snodgrass props umavisita ao castelo, e como fosse o sr. Winkle o nico membro do grupo disposto acaminhar, saram juntos.

    Snodgrass disse o sr. Winkle, assim que deixaram a via pblica ,Snodgrass, meu caro, posso fiar-me na sua discrio? E esperava, ao diz-lo, ardentee devotamente, que no pudesse.

  • Pode replicou o sr. Snodgrass. Se quiser que eu jure... No, no atalhou o sr. Winkle, aterrado com a idia de que o companheiro se

    comprometesse, inconscientemente, a no transmitir a informao. No jure, nojure; no preciso.

    O sr. Snodgrass deixou cair a mo que, num movimento potico, erguera para asnuvens ao fazer o apelo acima, e assumiu uma postura de ateno.

    Preciso da sua assistncia, meu caro amigo, num caso de honra disse o sr.Winkle.

    Pois h de t-la respondeu o sr. Snodgrass, apertando-lhe a mo. Com um doutor... o dr. Slammer, do 97 prosseguiu o sr. Winkle, desejando

    emprestar ao assunto o aspecto mais solene possvel. Uma pendncia com um oficial,que tem por padrinho outro oficial, ao pr-do-sol, hoje tarde, num campo solitrio,alm de Forte Pitt.

    Eu o acompanharei disse o sr. Snodgrass.O sr. Winkle estava espantado, mas no desanimado. extraordinria a frieza que

    uma pessoa pode demonstrar nesses casos quando no o principal interessado.Esquecera-se disso. Julgara os sentimentos do amigo pelos seus.

    As conseqncias podem ser terrveis acrescentou o sr. Winkle. Espero que no disse o sr. Snodgrass. Penso que o doutor atira muito bem voltou o sr. Winkle. Quase todos os militares so bons atiradores observou, muito calmo, o sr.

    Snodgrass. Mas voc tambm , no verdade?O sr. Winkle replicou afirmativamente; e, conhecendo que no assustara

    suficientemente o amigo, mudou de ttica. Snodgrass exclamou com voz trmula de comoo , se eu morrer, voc

    encontrar num embrulho, que lhe hei de entregar, um bilhete para meu... para meu pai.Esse ataque tambm falhou. O sr. Snodgrass estava comovido, mas encarregou-se

    de entregar o bilhete com a presteza de um estafeta. Se eu morrer tornou o sr. Winkle , ou se morrer o doutor, voc, meu

    querido amigo, ser julgado como cmplice. Deverei expor um amigo a ser deportado...talvez para o resto da vida?

    O sr. Snodgrass estremeceu, mas o seu herosmo foi invencvel. Pela causa daamizade exclamou com fervor , arrostarei todos os perigos.

    Sabe Deus quanto o sr. Winkle amaldioou, intimamente, a dedicada amizade docompanheiro, enquanto caminhavam em silncio, ao lado um do outro, durante algunsminutos, cada qual mergulhado em suas prprias meditaes! A manh passava; eledesesperou-se.

    Snodgrass disse, parando de repente , no deixe que me atrapalhem nessenegcio... No d informao nenhuma s autoridades locais... No pea a assistncia devrios oficiais da polcia, para que me prendam, nem ao dr. Slammer, do Regimento 97,presentemente aquartelado em Chatham, a fim de impedir o duelo. Veja l, no faa nadadisso.

    O sr. Snodgrass apoderou-se, com mpeto, da mo do amigo ao responder,entusiasmado: No, por nada deste mundo!

    Um calafrio percorreu o corpo do sr. Winkle ao persuadir-se de que nadapoderia esperar dos temores do amigo, e que estava destinado a converter-se num

  • simples alvo animado. Explicados formalmente os pormenores do caso ao sr. Snodgrass e alugada a

    um fabricante de Rochester uma caixa de pistolas satisfatrias, com o satisfatrioacompanhamento de plvora, balas e cpsulas, voltaram os dois amigos estalagem; osr. Winkle para ruminar sobre a luta que se aproximava, e o sr. Snodgrass para arranjaras armas de guerra e coloc-las em condies de serem imediatamente usadas.

    Caa a tarde triste e pesada quando volveram a sair para o desagradvelempreendimento. O sr. Winkle envolvera-se num enorme sobretudo para no ser visto,e o sr. Snodgrass levava, debaixo do seu, os instrumentos de destruio.

    Voc trouxe tudo? indagou o sr. Winkle, em tom agitado. Tudo respondeu o sr. Snodgrass. Bastante munio para o caso de no

    fazerem efeito os tiros. Na caixa, vai um quarto de libra de plvora, e trago no bolsodois jornais para servirem de buchas.

    Eram estas mostras de amizade pelas quais qualquer um poderia razoavelmentesentir-se gratssimo. Presume-se fosse to intensa a gratido do sr. Winkle que no sepodia manifestar por meio de palavras, pois caminhava em silncio e assaz lentamente.

    Chegamos com tempo disse o sr. Snodgrass, ao passo que transpunham acerca do primeiro campo. Agora que o sol est-se pondo.

    O sr. Winkle fitou os olhos no globo que declinava e pensou dolorosamente napossibilidade de pr-se ele tambm, dentro em pouco.

    L est o oficial exclamou o sr. Winkle, depois de caminhar alguns minutos. Onde? perguntou o sr. Snodgrass. L... Aquele cavalheiro de casaca azul. O sr. Snodgrass olhou na direo

    do indicador do amigo, e distinguiu uma figura, encapotada, segundo a descrio. Ooficial mostrou que dera pela presena deles fazendo um leve aceno de mo; e os doisamigos seguiram-no a pequena distncia, medida que ele se afastava.

    A tarde se tornava, a cada passo, mais escura, e um vento melanclico zunia sobreos campos desertos, como um gigante que assobiasse, de longe, pelo seu co. A tristezada cena emprestou uma lgubre tintura aos sentimentos do sr. Winkle. Ele estremeceuao passar pelo ngulo da trincheira dir-se-ia um tmulo colossal.

    O oficial deixou, de repente, o atalho e, aps escalar uma estacada e transpor umasebe, entrou num campo afastado. Dois homens l estavam, a espera; um deles era umhomenzinho gordo, com cabelos negros; e o outro imponente personagem quetrajava um sobretudo cheio de alamares estava sentado com perfeita equanimidadenum banco de campanha.

    , com certeza, o outro grupo, acompanhado de um cirurgio disse o sr.Snodgrass. Tome um gole de aguardente. O sr. Winkle tomou da garrafa coberta devime que o amigo lhe estendia e sorveu um bom trago da bebida fortificante.

    Meu amigo, senhor, o sr. Snodgrass disse o sr. Winkle, quando o oficial seaproximou. Inclinou-se o amigo do dr. Slammer, e apresentou uma caixa semelhante que trazia o sr. Snodgrass.

    Creio que no temos mais nada para dizer observou friamente, ao abrir acaixa. As justificaes foram terminantemente recusadas.

    Mais nada, senhor volveu o sr. Snodgrass, que principiava a sentir-setambm pouco vontade.

    Quer dar-se ao incmodo de adiantar-se? perguntou o oficial.

  • Certamente replicou o sr. Snodgrass. Mediu-se o terreno e concertaram-se aspreliminares.

    O senhor achar estas aqui melhores do que as suas disse o padrinhoadversrio, exibindo as suas pistolas. Viu-me carreg-las. Ope-se a fazer uso delas?

    Est claro que no retrucou o sr. Snodgrass. O oficial tirava-o de umembarao considervel, pois eram meio vagas e indefinidas as suas noes acerca decarregar pistolas.

    Creio, ento, que podemos colocar os nossos homens em seus lugares observou o oficial, com a mesma indiferena com que o faria se os principais fossempeas de xadrez e os padrinhos, jogadores.

    Creio que podemos assentiu o sr. Snodgrass, que teria anudo a qualquerproposta, pois no entendia patavina do assunto. O oficial voltou-se para o dr.Slammer, e o sr. Snodgrass aproximou-se do sr. Winkle.

    Est tudo pronto disse ele, oferecendo a pistola. D-me o seu capote. O embrulho est com voc, meu caro amigo disse o pobre Winkle. Est certo redargiu o sr. Snodgrass. Seja firme e acerte-lhe o ombro.Ocorreu ao sr. Winkle que esse conselho era muito semelhante ao que do

    invariavelmente os circunstantes ao menor dos meninos numa briga de rua, a saber,Vamos, desanque-o admirvel recomendao, quando a gente sabe, ao menos,como execut-la. Despiu, todavia, o capote em silncio levava sempre muito tempo atirar aquele capote e aceitou a pistola. Retiraram-se os padrinhos, o cavalheirosentado sobre o banco de campanha fez o mesmo, e os beligerantes aproximaram-se umdo outro.

    O sr. Winkle fora sempre notvel pela sua humanidade extrema. Conjetura-se que asua repugnncia em ferir intencionalmente um semelhante foi o que o levou a cerrar osolhos, chegado ao local fatal; e a circunstncia de estarem fechados os seus olhosimpediu-o de observar o procedimento assaz extraordinrio e inexplicvel do dr.Slammer. Esse cavalheiro estremeceu, encarou o outro, afastou-se, esfregou os olhos,tornou a encar-lo; e finalmente, gritou: Parem, parem!.

    Que isto? perguntou o dr. Slammer quando o seu amigo e o sr. Snodgrassse aproximaram, a correr. No este o homem.

    No o homem! disse o padrinho do dr. Slammer. No o homem! disse o sr. Snodgrass. No o homem! disse o cavalheiro com o assento de campanha na mo. Claro que no volveu o doutorzinho. No foi essa a pessoa que me

    insultou ontem noite. extraordinrio! exclamou o oficial. Muito concordou o cavalheiro com o banco de campanha. Resta apenas

    saber se o cavalheiro, j que se acha, no campo, no deve ser considerado, por umaquesto de forma, o indivduo que insultou o nosso amigo, dr. Slammer, ontem noite,seja ele ou no seja realmente o mesmo indivduo. E, tendo feito essa sugesto, comar sapiente e misterioso, o homem com o assento de campanha tomou uma grande pitadade rap e relanceou profundamente o olhar sua volta, com ar de autoridade no assunto.

    Ora, o sr. Winkle abrira os olhos e os ouvidos quando ouviu o adversrio exigiruma cessao de hostilidades; e percebendo-lhe, pelas palavras, que haviaindisputavelmente algum engano no caso, previu de pronto o acrescentamento de

  • reputao que lhe adviria de ocultar o verdadeiro motivo do seu comparecimento.Adiantou-se, pois, atrevidamente, e declarou:

    Eu no sou a pessoa. J o sabia. Nesse caso interveio o homem do assento , isto uma afronta ao dr.

    Slammer, e razo suficiente para que se proceda sem demora ao duelo. Fique quieto, por favor, Payne disse o padrinho do doutor. Por que no

    me comunicou esse fato hoje cedo, senhor? Naturalmente, naturalmente acudiu, indignado, o homem do assento. Peo-lhe que fique quieto, Payne tornou o outro. Posso repetir a

    pergunta, senhor? Porque replicou o sr. Winkle, que tivera tempo para pensar numa resposta

    , porque o senhor me disse que uma pessoa embriagada e mal-educada vestia umacasaca que eu tenho a honra, no s de usar, mas tambm de ter inventado... o propostouniforme do Clube Pickwick, de Londres. Sinto-me obrigado a manter a honra desseuniforme, portanto, sem maiores indagaes aceitei o desafio que me foi feito.

    Meu caro senhor exclamou o jovial doutorzinho, adiantando-se com a moestendida , rendo homenagem sua galanteria. Permita-me dizer-lhe que admiromuitssimo o seu procedimento, e lamento extremamente haver-lhe causado o incmododeste encontro, sem necessidade.

    Peo-lhe que no fale nisso disse o sr. Winkle. Terei muito orgulho em conhec-lo volveu o doutorzinho. E eu terei a maior satisfao em conhec-lo replicou o sr. Winkle. Diante

    disso o doutor e o sr. Winkle apertaram-se as mos, depois fizeram o mesmo o sr.Winkle e o tenente Tappleton (o padrinho do doutor), o sr. Winkle e o homem do bancode campanha e, finalmente, o sr. Winkle e o sr. Snodgrass este ltimo levado de umexcesso de admirao ao procedimento nobre do herico amigo.

    Creio que podemos dar o caso por encerrado disse o tenente Tappleton. Por certo acrescentou o doutor. A no ser atalhou o homem do assento de campanha , a no ser que o sr.

    Winkle se sinta ofendido pelo desafio; nesse caso, reconheo que tem o direito de exigirsatisfaes.

    O sr. Winkle, com suma abnegao, declarou que j estava plenamente satisfeito. Ou talvez disse o homem com o assento de campanha o padrinho do

    cavalheiro se sinta insultado por algumas observaes que me escaparam no princpiodeste encontro; nesse caso, eu teria imenso prazer em dar-lhe imediata satisfao.

    O sr. Snodgrass apressou-se em agradecer, efusivamente, ao cavalheiro que acabarade falar, o delicado oferecimento, que s recusava por estar inteiramente satisfeito com amaneira por que se haviam passado as coisas. Os dois padrinhos ajustaram as caixas, e ogrupo todo deixou o terreno com muito maior animao do que l entrara.

    Demora-se muito aqui? perguntou o dr. Slammer ao sr. Winkle, enquantocaminhavam, muito amigos, ao lado um do outro.

    Penso que partiremos depois de amanh foi a resposta. Confio em que terei o prazer de v-lo e ver os seus amigos em meus aposentos,

    e de passar consigo uma noite agradvel, depois deste desagradvel equvoco disse odoutorzinho. Tem algum compromisso para hoje noite?

    Temos aqui alguns amigos replicou o sr. Winkle , e eu no gostaria de

  • deix-los hoje noite. Talvez o senhor e os seus companheiros queiram encontrar-seconosco na Estalagem do Touro.

    Com grande prazer respondeu o doutorzinho. No ser muito tarde sdez, para uma visita de meia hora?

    De maneira nenhuma volveu o sr. Winkle. Eu gostaria muito deapresent-lo aos meus amigos, o sr. Pickwick e o sr. Tupman.

    O prazer ser todo meu retorquiu o dr. Slammer, mal suspeitando daidentidade do sr. Tupman.

    Iro sem falta? perguntou o sr. Snodgrass. Mas claro!A esse tempo j haviam chegado estrada. Trocaram-se adeuses cordiais, e o grupo

    separou-se. O dr. Slammer e os amigos retornaram aos quartis, e o sr. Winkle,acompanhado de seu amigo, o sr. Snodgrass, desandou para a estalagem.

  • captulo iii

    Novo conhecimento. A histria de um ator ambulante. Interrupodesagradvel e encontro inoportuno.

    EM CONSEQNCIA DA DESUSADA ausncia dos dois amigos, sentira o sr. Pickwickalgumas apreenses, que o misterioso procedimento deles durante a manh no havia, deforma alguma, tendido a diminuir. Foi, portanto, com mais do que ordinria satisfaoque se levantou para saud-los quando tornaram a entrar; e foi com interesse mais doque ordinrio que perguntou o que acontecera para o privarem da sua companhia. J sedispunha o sr. Snodgrass a apresentar um histrico relato das circunstncias queacabamos de particularizar, quando inopinadamente notou que tambm estavampresentes no s o sr. Tupman e o seu companheiro de diligncia da vspera, senooutro desconhecido de aspecto igualmente singular. Era um homem de aparnciacansada, cujo rosto plido e cujos olhos profundamente cavados pareciam ainda maisimpressionantes do que os fizera a natureza, em virtude dos cabelos lisos e negros quelhe caam, emaranhados e em desalinho, pelo rosto. Tinha os olhos extraordinariamentebrilhantes e penetrantes; os ossos das faces, altos e salientes; e eram to longas edescarnadas as mandbulas, que um observador poderia supor que ele estivesseretraindo a carne do rosto por alguma contrao dos msculos, se a boca, entreaberta, ea expresso imvel no indicassem ser essa a sua aparncia ordinria. Trazia um xaleverde volta do pescoo, cujas pontas grandes, espalhadas sobre o peito, apareciam, dequando em quando, pelas casas pudas dos botes do velho colete. Envergava um longosobretudo preto; e vestia, debaixo dele, cala larga de pano ordinrio e botas muitograndes, ameaadas de runa iminente.

    Foi nessa pessoa de extravagante aspecto que se fitaram os olhos do sr. Winkle, efoi na sua direo que o sr. Pickwick estendeu a mo, ao dizer: Est aqui um amigodo nosso amigo. Descobrimos hoje cedo que o nosso amigo mantinha relaes com oteatro neste local, embora no deseje que isso seja conhecido de todos, e este cavalheiroexerce a mesma profisso. Estava a ponto de mimosear-nos com uma anedotazinha apropsito, quando vocs entraram.

    Muitas anedotas disse o estranho de casaca verde da vspera, adiantando-separa o sr. Winkle e falando em tom baixo e confidencial.

    Sujeito original... Faz os trabalhos pesados... No ator... Homem estranho...

  • toda sorte de misrias... Jemmy, o Triste, como lhe chamamos na companhia. O sr.Winkle e o sr. Snodgrass cumprimentaram, polidos, o cavalheiro, elegantementealcunhado de Jemmy,

    o Triste; e, pedindo aguardente e gua, como fizera o resto da companhia,sentaram-se mesa.

    Agora, senhor disse o sr. Pickwick , quer fazer-nos o obsquio decomear o que nos ia referir?

    O fnebre indivduo sacou do bolso um rolo sujo de papel e, voltando-se para osr. Snodgrass, que acabava de tirar o seu caderno de apontamentos, disse com vozcavernosa, perfeitamente de acordo com o seu exterior: o senhor o poeta?

    Eu... eu fao alguma coisa nesse gnero redargiu o sr. Snodgrass, algodesconcertado pelo abrupto da pergunta.

    Ah! a poesia faz da vida o que fazem do palco as luzes e a msica... Tirando deum os seus falsos atavios e da outra as suas iluses, que restar de real em qualquer umadessas coisas que nos merea a vida e o interesse?

    bem verdade retrucou o sr. Snodgrass. Estar diante das luzes da ribalta continuou o homem triste o mesmo que

    assistir a uma reunio da corte e admirar os vestidos de seda da multido faustosa; estaratrs delas ser o fabricante dessas pompas, desprezado e desconhecido, que podeafundar ou nadar, morrer mingua ou viver, como quiser a fortuna.

    Decerto assentiu o sr. Snodgrass; pois os olhos encovados do homem tristese haviam fitado em seu rosto, e ele sentia a necessidade de dizer alguma coisa.

    Continue, Jemmy disse o viajante espanhol , vamos... Anime-se. Deixe degrasnar... Fale... Mostre-se amvel.

    No quer preparar outro copo antes de comear? perguntou o sr. Pickwick.O homem triste aceitou a sugesto e, tendo misturado num copo aguardente e gua

    e engolido metade do contedo, abriu o rolo de papel e ps-se ora a ler, ora a narrar oseguinte incidente, que achamos registrado nas atas do clube como A histria do atorambulante.

    A HISTRIA DO ATOR AMBULANTE

    No h nada de maravilhoso no que vou contar, disse o homem triste; no hsequer nada de extraordinrio. As necessidades e molstias so to comuns em muitassituaes da vida, que no merecem maior ateno do que a que se dispensa maioriadas vicissitudes ordinrias da natureza humana. Reuni estas poucas notas porque lhesconheci, durante muitos anos, o protagonista. Tracei-lhe a queda a passo e passo, at queo vi chegar ao abismo da ignomnia, de que nunca mais se levantou.

    O homem a que aludo era um reles ator de pantomimas; e, como muitas pessoasde sua classe, um bbedo habitual. Em seus melhores dias, antes de o haverenfraquecido a devassido e emagrecido a molstia, ganhava um bom salrio, que, setivesse sido cuidadoso e prudente, poderia ter continuado a receber durante alguns anos no muitos; porque esses homens morrem cedo ou, pelo desgaste excessivo de suasenergias corporais, perdem, prematuramente, o vigor fsico de que dependem para

  • subsistir. Senhoreou-o to depressa o vcio habitual, entretanto, que se verificou serimpossvel empreg-lo nas situaes em que era realmente til ao teatro. A taberna tinhapara ele encantos a que no sabia resistir. A molstia desamparada e a pobreza semesperanas seriam o seu quinho to certo como a prpria morte, se persistisse nomesmo curso de vida; sem embargo, persistiu, e pode-se adivinhar o resultado. Noconseguia emprego e carecia de po.

    Quem quer que conhea um pouco de teatro conhece o exrcito de andrajosospobretes que vive a cercar o palco de um vasto estabelecimento desse gnero atoressem emprego fixo, bailarinos, figurantes, comparsas etc., empregados enquanto durauma pantomima ou alguma pea de Pscoa, e logo despedidos, at que a apresentao deoutro espetculo requeira os seus servios. A esse modo de vida foi o homem obrigadoa recorrer; e o trabalhar todas as noites nalgum teatrinho mambembe dava-lhe maisalguns xelins por semana e permitia-lhe satisfazer a sua velha propenso. Mas at esserecurso veio logo a faltar-lhe: eram to grandes as suas extravagncias que no lhepermitiam ganhar a magra pitana que assim poderia ter conseguido, e ficouefetivamente reduzido a um estado que confina com a fome e a morte, conseguindoapenas migalhas ocasionais quando as pedia emprestadas a antigos companheiros, oulogrando empregar-se nalgum dos teatros mais nfimos; e quando ganhava algumacoisa, gastava-a segundo o velho sistema.

    Mais ou menos a esse tempo, em que ele j vivia havia mais de um ano sem queningum soubesse como, fui contratado para trabalhar por pouco tempo num dosteatros da margem sul do Tmisa, e l encontrei esse homem, que eu tinha perdido devista fazia j algum tempo; pois enquanto eu viajara pela provncia, ele vadiara pelosbecos e vielas de Londres. Vestido para sair, eu cruzava o palco quando ele me bateu noombro. Nunca me esquecer o espetculo repulsivo que os meus olhos encontraramquando me voltei. Ele estava vestido para a pantomima, com todo o grotesco de um trajede palhao. As figuras espectrais da Dana da Morte, as mais pavorosas formas que omais hbil dos pintores j conseguiu reproduzir na tela jamais apresentariam tosepulcral aspecto. O corpo intumescido e as pernas esquelticas cuja deformidade eracem vezes realada pela fantstica vestimenta , os olhos vtreos, que medonhamentecontrastavam com a espessa camada de tinta com que besuntara o rosto; a cabeagrotescamente ornamentada, trmula de paralisia, e as mos longas, sseas, esfregadascom alvaiade tudo isso lhe emprestava uma aparncia medonha e desnatural, de quenenhuma descrio poderia dar uma idia adequada, e pensando na qual, at hoje tremo.A voz era cavernosa e trmula quando me chamou de parte e, em palavras entrecortadas,me recitou um longo catlogo de doenas e privaes, concluindo, como sempre, porpedir, urgentemente, que lhe emprestasse uma quantia insignificante. Pus-lhe na moalguns xelins e, quando me voltei, ouvi as estrondosas gargalhadas que se seguiram sua primeira cambalhota no palco.

    Poucas noites depois, um menino colocou-me na mo um pedacinho sujo depapel, em que se liam algumas palavras rabiscadas a lpis, que me informavam estar ohomem perigosamente doente, e me pediam fosse v-lo, depois do espetculo, em suacasa, nalguma rua esquece-me agora o seu nome no muito longe do teatro.Prometi ir l, assim que pudesse sair: e, depois de cair o pano, sa a executar o meu tristeofcio.

    Era tarde, pois eu trabalhara na ltima pea; e, como fosse rcita de benefcio, as

  • sesses haviam-se prolongado inusitadamente. Era uma noite escura e fria, e o vento,mido e gelado, atirava a chuva, com violncia, s janelas e frontarias das casas. Poasde gua tinham-se formado nas ruas estreitas e pouco freqentadas, e, como grandenmero dos raros candeeiros havia sido apagado pela violncia do temporal, acaminhada no era apenas incmoda, seno tambm muito incerta. Eu tomara,felizmente, o caminho certo e consegui, depois de alguma dificuldade, encontrar a casaque me fora indicada um depsito de carvo, de um pavimento s, em cujos fundosjazia o objeto da minha busca. Uma mulher de aspecto miservel, a mulher do palhao,veio ter comigo na escada e, contando-me que ele acabara de cair numa espcie demodorra, fez-me entrar mansamente, e colocou uma cadeira para mim ao p da cama.Jazia o doente com o rosto voltado para a parede; e, como no desse tento da minhapresena, tive tempo suficiente para examinar o lugar em que me achava.

    Ele estava deitado sobre uma armao de cama que se retirava durante o dia. Osrestos esfarrapados de uma cortina de riscado viam-se enrolados em torno da cabeceirada cama, a fim de obstar a passagem do vento, que, sem embargo, penetrava o quartomesquinho atravs das numerosas frinchas da porta e, a todo instante, agitava a cortina.Um lume fraco de p de carvo ardia numa grelha estragada e ferrugenta; e diante delase erguia uma velha mesa manchada, de trs ps, em cima da qual havia alguns frascosde remdios, um espelho quebrado e outros utenslios domsticos. Uma criancinhadormia sobre uma cama temporria, improvisada no cho, e beira dela, numa cadeira,sentara-se a mulher. Havia duas prateleiras, com alguns pratos, copos e pires, e um parde sapatos de teatro e dois floretes estavam colocados ao lado. Com exceo de algumaspilhas de trapos e feixes, atirados em desordem para os cantos, era esta toda a moblia doquarto.

    Tive tempo para notar esses pequenos pormenores e a respirao pesada e osestremecimentos febris do doente, antes que este se advertisse da minha presena. Naagitao com que procurava uma cmoda posio para descansar a cabea, atirou a mopara fora da cama e ela veio cair sobre a minha. E