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DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudiávelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

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OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:LeLivros.orgouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluiraumnovonível."

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EditorasCristinaFernandesWarthMarianaWarth

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RevisãoDayanaSantos

CapaediagramaçãoAronBalmas

EstapublicaçãofoirealizadacomrecursosdoEditaldeApoioàCoediçãodeLivrosdeAutoresNegros,daFundaçãoBibliotecaNacional,doMinistériodaCultura,emparceriacomaSecretariadePolíticasdePromoçãodaIgualdadeRacialdaPresidênciadaRepública-SEPPIR/PR.

EstelivrosegueasnovasregrasdoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.

TodososdireitosreservadosàPallasEditoraeDistribuidoraLtda.Évetadaareproduçãoporqualquermeiomecânico,eletrônico,xerográficoetc.,semapermissãoporescritodaeditora,departeoutotalidadedomaterialescrito.

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E94o1aed.

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3areimpr.

Evaristo,ConceiçãoOlhosd’água/ConceiçãoEvaristo.–1.ed.–RiodeJaneiro:Pallas:FundaçãoBibliotecaNacional,2016.

116p.:il.;21cm.

ISBN978-85-347-0597-4(PallasEditora)

1.Ficçãobrasileira.I.FundaçãoBibliotecaNacional.II.Título.

14-17384CDD:869.93CDU:821.134.3(81)-3

PallasEditoraeDistribuidoraLtda.RuaFredericodeAlbuquerque,56–HigienópolisCEP21050-840–RiodeJaneiro–RJTel./fax:212270-0186

[email protected]

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PREFÁCIO

“Minhamãesemprecosturouavidacomfiosdeferro.”

As palavras acima, de uma personagem do conto “A Gente combinamos de nãomorrer”,constituemcontundenteepígrafeparaumcomentáriosobreOlhosd`água,estanova coleçãode contos deConceição Evaristo. Trata-se de frase-chaveque enfeixa oturbilhãodequestões sociais e existenciais recorrentesna escritadaautora, apresidirsuaconstruçãoficcionaleareiterarsuaunidadetemática.Comoantesemsuaobraficcional,poética,ensaística,Conceiçãoajustaofocodeseu

interesse na população afro-brasileira abordando, semmeias palavras, a pobreza e aviolência urbana que a acometem: “Ultimamente na favela tiroteios aconteciam comfrequênciaeaqualquerhora”,lemosem“Zaítaesqueceudeguardarosbrinquedos”.Sem sentimentalismos facilitadores, mas sempre incorporando a tessitura poética à

ficção, os contos de Conceição Evaristo apresentam uma significativa galeria demulheres – Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, ameninaZaíta.Ouserãotodasamesmamulher,captadaerecriadanocaleidoscópiodaliteratura,emvariados instantâneosdavida?Diferemelasemidadeeemconjunturasdeexperiênciasmascompartilhamdamesmavidade ferro, equilibrando-sena“frágilvara”que,lemosnoconto“OCooperdeCida”,éa“cordabambadotempo”.Naverdade,essamulherdemuitasfaceséemblemáticademilhõesdebrasileirasna

sociedadedeexclusõesqueéanossa.Frágilvara,cordabamba,fiosdeferro,ferrodepassar,adançadasmetáforasasenlaçae retronstróiavidadepessoasdespossuídasaqualexpressa,apesardetudo,umavitalidadeprópriaqueotextodeConceiçãoinsisteem celebrar: “Era tudo tão doce, tão gozo, tão dor!”, sintetiza “Ana Davenga”. Oscontos, assim, equilibram-se entre a afirmação e a negação, entre a denúncia e acelebraçãodavida,entreonascimentoeamorte:“Brevementeiriaparirumfilho.Umfilho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte.” (“Quantos filhosNatalinateve?”).Nolivroestãopresentesmães,muitasmães.Etambémfilhas,avós,amantes,homens

emulheres – todos evocados em seus vínculos e dilemas sociais, sexuais, existenciais,numapluralidadeevulnerabilidadequeconstituemahumanacondição.Semquaisquer

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idealizações, são aqui recriadas com firmeza e talento asduras condições enfrentadaspelacomunidadeafro-brasileira.Aabrangênciade talproblemáticaultrapassa,decerto,omundonegro, assimcomo

transcendeodiadehoje.Os contos, sempre fincadosno fugidiopresente, abarcamopassadoeinterrogamofuturo.Sintomaticamente,sãomuitosediversososvelhoseascrianças que oshabitam.Opassado é inevitavelmente implacável, o futuro, emgeralduvidoso, certas vezes inexoravelmente negado. É o caso, por exemplo, do piveteLumbiá, ou domenino Lixão, nos contos que levamos seus nomes: “E [Lixão] foi seencolhendo, se enroscando até ganhar a posição de feto”. A força simbólica de talregressãofísicaeemocionalédeumasínteseirreparável.Em seu percurso, o livro, além do mundo de mulheres e de meninos, incorpora

homenscomoprotagonistas(Quimbá,Ardoca),cujaperspectiva,ocasionalmente,passaa comandar a narração. Ouso dizer que o fluxo narrativo atinge o seu clímax no jácitado “A gente combinamos de não morrer” em que, pela primeira vez, diversosnarradores encaminham a ação. Fragmenta-se uma univocidade feminina, por maisdispersa e múltipla que esta já fosse. A par disso, constata-se, num crescendo, umestilhaçar ficcional que o texto assume ao reduplicar a precariedade de seuspersonagens,paraquem“àsvezesamorteélevecomoapoeira.Eavidaseconfundecomumpóbrancoqualquer”.Ocontoimplodeasuaprópriatécnicanarrativa.Emumverdadeiroavessodeapoteose,otextoficcional,paradigmáticodasociedade,tambémse pulveriza: “Alguém cantou a pedra e o segredo foi rompido. A desgraça vaza dosporos da terra. O mundo explode. Seres de mil mãos agarram tudo. Nada escapa.”Atenção,leitor.Écomvocê,éconosco,écomtodos,queaquisefala.Mas a positividade textual prevalece, apesar de tudo. Uma positividade em que

escrever é, certamente, “umamaneira de sangrar”;mas tambémde invocar e evocarvidascosturadas“comfiosdeferro”–porémaquipreservadascomapersistentecosturados fios da ficção, em que também se almeja e se combina, incansavelmente, nãodecertoaimortalidade,masatenazvitóriahumana,acadageração,sobreamorte.

HeloisaTollerGomes

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Introdução

Amulhernegra temmuitas formasde estarnomundo (todos têm).Masumcontextodesfavorável, um cenário de discriminações, as estatísticas que demonstram pobreza,baixaescolaridade,subempregos,violaçõesdedireitoshumanos,traduzemhistóriasdedor.Quemnãovê?Parcelasdasociedadeestãodizendoparavocêqueesteéocenário.Asleiturasquese

fazdeletrazpossibilidadesemextremos:podesevertantoamulherdestituída,vivendoo limite do ser-que-não-pode-ser, inferiorizada, apequenada, violentada. Pode-se vertambém aquela que nada, buscando formas de surfar na correnteza. A que inventajeitosdesobrevivência,parasi,paraafamília,paraacomunidade.Pode-severaqueéderrotada, expurgada.Mas, se prestar umpoucomais atenção, vai ver outra. Vai verCaliban(oescravodeSheakespeareemATempestade)atualizado,vivo,pujante.Aquelequeaprendealínguadosenhoreconstróialiberdadedemaldizer!AosubverteralínguadePróspero—ohomembranco—,Caliban—amulhernegra

—abrecaminhoparaaliberdade.Radicalizaojogo.Expõeasregrasdojogoquejoga:contaosegredo.Descortinaomistério.Aqui,instala-seaculturadearkhéatualizada,comoexpressouMunizSodré.Atesta-se

apresençaeopoderdeumatradiçãoviva.NestelivroencontreioutravezCalibanocupadoemmuitassubversões.EraIyalodê,a

que fala pelasmulheres quenão podem falar, contando, dizendo, amaldiçoando. EraOxum, às portas da casa de Oxalá, amaldiçoando a pobreza e a injustiça que recaíasobreasmulheres.Ecrescendoemforçaepoder,transformando-senadonadetodaariqueza...Éassimqueasmulheres,nósmulheresnegras,buscamosformasdesernomundo.De

contaromundocomoformadeapropriarmo-nosdele.Denomeá-lo.Denommo,oaxé,apalavraquemovimentaaexistência.É assim que Conceição Evaristo inventa estemundo que existe. De Ana Davenga,

Maria, Duzu-Querença, Natalina, Salinda, Luamanda, Cida, Zaíta, Maíta. E dessesmeninos/ homens perdidos, herdeiros de mães sem nome, herança que as mulheresdeixaram e que ninguém quis receber. São histórias duras de derrota, de morte,machucados. São histórias que insistem em dizer o que tantos não querem dizer. Omundoqueéditoexiste.Suasregras,explícitas.

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O lugar demero ouvinte é desautorizado. Nesta literatura/cultura, a palavra que éditareivindicaocorpopresente.Oquequerdizeração.Conceição, Iyalodê, canta sua cantiga. Conta. Propaga o axé. Aqui, convida-nos a

cantarcomela.Fazerexistiroutromundo.Euagradeço.

JuremaWerneck

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Olhosd’água

Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu deminhaboca.Dequecoreramosolhosdeminhamãe?Atordoada,custeireconheceroquartodanovacasaemeuqueestavamorandoenãoconseguiamelembrardecomohavia chegado até ali. E a insistente pergunta martelando, martelando. De que coreramosolhosdeminhamãe?Aquelaindagaçãohaviasurgidohádias,hámeses,possodizer.Entreumafazereoutro,eumepegavapensandodequecorseriamosolhosdeminhamãe.Eoqueaprincípiotinhasidoummeropensamentointerrogativo,naquelanoitesetransformouemumadolorosaperguntacarregadadeumtomacusativo.Entãoeunãosabiadequecoreramosolhosdeminhamãe?Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo busquei dar conta deminhas próprias

dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado deminhamãe, aprendi a conhecê-la.Decifravao seu silêncionashorasdedificuldades,como também sabia reconhecer, em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias.Naquelemomento,entretanto,medescobriacheiadeculpa,pornão recordardequecorseriamosseusolhos.Euachavatudomuitoestranho,poismelembravanitidamentede vários detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo mindinho do péesquerdo... da verruga que se perdia nomeio uma cabeleira crespa e bela... Umdia,brincandodepentearboneca, alegriaqueamãenosdavaquando,deixandoporunsmomentos o lava-lava, o passa-passa das roupagens alheias e se tornava uma grandeboneca negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no courocabeludodela.Pensamosquefossecarrapato.Amãecochilavaeumademinhasirmãs,aflita,querendolivraraboneca-mãedaquelepadecer,puxourápidoobichinho.Amãeenósrimoserimoserimosdenossoengano.Amãeriutanto,daslágrimasescorrerem.Masdequecoreramosolhosdela?Eume lembrava tambémdealgumashistóriasda infânciademinhamãe.Elahavia

nascidoemumlugarperdidono interiordeMinas.Ali,ascriançasandavamnuasatébemgrandinhas.Asmeninas,assimqueosseioscomeçavamabrotar,ganhavamroupasantesdosmeninos.Àsvezes,ashistóriasdainfânciademinhamãeconfundiam-secomas de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãecozinhava,dapanelasubiacheiroalgum.Eracomosecozinhasse,ali,apenasonossodesesperadodesejodealimento.Aslabaredas,sobaáguasolitáriaquefervianapanela

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cheiadefome,pareciamdebochardovaziodonossoestômago,ignorandonossasbocasinfantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamentenessesdiasdeparcoounenhumalimentoqueelamaisbrincavacomas filhas.NessasocasiõesabrincadeirapreferidaeraaquelaemqueamãeeraaSenhora,aRainha.Elase assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes, colhíamosflores cultivadasemumpequenopedaçode terraquecircundavaonossobarraco.Asflores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diantedela fazíamos reverênciasàSenhora.Postávamosdeitadasnochãoebatíamoscabeçapara a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. Amãesóriadeumamaneiratristeecomumsorrisomolhado...Masdequecoreramosolhosdeminhamãe?Eusabia,desdeaquelaépoca,queamãeinventavaesseeoutrosjogosparadistrairanossafome.Eanossafomesedistraía.Àsvezes,nofinaldatarde,antesqueanoitetomassecontadotempo,elasesentava

nasoleiradaportae,juntas,ficávamoscontemplandoasartesdasnuvensnocéu.Umasviravam carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e haviaaquelasqueeramsónuvens,algodãodoce.Amãe,então,espichavaobraço,queiaatéocéu,colhiaaquelanuvem,repartiaempedacinhoseenfiavarápidonabocadecadaumadenós.Tudotinhadesermuitorápido,antesqueanuvemderretesseecomelaosnossossonhosseesvaecessemtambém.Masdequecoreramosolhosdeminhamãe?Lembro-me ainda do temor deminhamãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da

cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados deprantosbalbuciavarezasaSantaBárbara,temendoqueonossofrágilbarracodesabassesobrenós.Eeunãoseiseolamento-prantodeminhamãe,seobarulhodachuva...Seique tudo me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nessesmomentososolhosdeminhamãe se confundiamcomosolhosdanatureza.Chovia,chorava! Chorava, chovia! Então, por que eu não conseguia lembrar a cor dos olhosdela?Enaquelanoiteaperguntacontinuavameatormentando.Haviaanosqueeuestava

forademinhacidadenatal.Saírademinhacasaembuscademelhorcondiçãodevidaparamim e paraminha família: ela eminhas irmãs tinham ficado para trás.Mas eununcaesqueceraaminhamãe.Reconheciaa importânciadelanaminhavida,nãosódela,masdeminhastiasedetodasasmulheresdeminhafamília.Etambém,jánaquelaépoca, eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a Áfricavinhamarandoaterradavidacomassuasprópriasmãos,palavrasesangue.Não,eunãoesqueçoessasSenhoras,nossasYabás,donasdetantassabedorias.Masdequecoreramosolhosdeminhamãe?E foi então que, tomada pelo desespero por nãome lembrar de que cor seriam os

olhosdeminhamãe,naquelemomentoresolvideixartudoe,nodiaseguinte,voltarà

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cidadeemquenasci.Euprecisavabuscarorostodeminhamãe,fixaromeuolharnodela,paranuncamaisesqueceracordeseusolhos.Assimfiz.Voltei,aflita,massatisfeita.Viviaasensaçãodeestarcumprindoumritual,

emqueaoferendaaosOrixásdeveriaserdescobertadacordosolhosdeminhamãe.Equando,após longosdiasdeviagemparachegaràminha terra,pudecontemplar

extasiadaosolhosdeminhamãe,sabemoquevi?Sabemoquevi?Visólágrimaselágrimas.Entretanto,elasorriafeliz.Maseramtantaslágrimas,que

eumepergunteiseminhamãetinhaolhosourioscaudalosossobreaface.Esóentãocompreendi.Minhamãetrazia,serenamenteemsi,águascorrentezas.Porisso,prantoseprantosaenfeitaroseurosto.Acordosolhosdeminhamãeeracordeolhosd’água.ÁguasdeMamãeOxum!Rioscalmos,masprofundoseenganososparaquemcontemplaavidaapenaspelasuperfície.Sim,águasdeMamãeOxum.Abraceiamãe,encosteimeurostonodelaepediproteção.Sentiaslágrimasdelasse

misturaremàsminhas.Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos deminhamãe, tento descobrir a cor dos

olhosdeminhafilha.Façoabrincadeiraemqueosolhosdeumasetornamoespelhoparaosolhosdaoutra.Eumdiadessesmesurpreendicomumgestodeminhamenina.Quandonósduasestávamosnessedocejogo,elatocousuavementenomeurosto,mecontemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntoubaixinho, mas tão baixinho, como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou comoestivesse buscando e encontrando a revelação de um mistério ou de um grandesegredo.Euescuteiquando,sussurrando,minhafilhafalou:—Mãe,qualéacortãoúmidadeseusolhos?

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AnaDavenga

Asbatidasnaportaecoaramcomoumprenúnciodesamba.OcoraçãodeAnaDavenganaquela quasemeia-noite, tão aflito, apaziguou umpouco. Tudo era paz então, umarelativapaz.Deuumsaltodacamaeabriuaporta.Todosentraram,menososeu.OshomenscercaramAnaDavenga.Asmulheres,ouvindoomovimentovindodobarracodeAna, foram também.De repente, naqueleminúsculo espaço coube omundo. AnaDavengareconheceraabatida.Elanãohaviaconfundidoasenha.Otoqueprenúnciodesambaoudemacumbaestavaadizerquetudoestavabem.Tudoempaz,namedidadopossível.Umtoquediferente,debatidasapressadasdiziadealgomau,ruim,danosono ar.O toqueque ela ouvira antesnãoprenunciavadesgraça alguma. Se era assim,ondeandavaoseu, jáqueosdasoutrasestavamali?Porondeandavaoseuhomem?PorqueDavenganãoestavaali?Davenga não estava ali. Os homens rodearam Ana com cuidado, e as mulheres

também. Era preciso cuidado. Davenga era bom. Tinha um coração de Deus, mas,invocado,eraoprópriodiabo.TodoshaviamaprendidoaolharAnaDavenga.Olhavamamulher buscando não perceber a vida e as delícias que explodiam por todo o seucorpo.ObarracodeDavengaeraumaespéciedequartel-general,eeleeraochefe.Ali se

decidia tudo. No princípio, os companheiros de Davenga olharam Ana com ciúme,cobiça e desconfiança. O homemmorava sozinho. Ali armava e confabulava com osoutrostodasasproezas.Ederepente,semconsultaroscompanheiros,metealidentroumamulher.Pensaramemescolheroutrochefeeoutrolocalparaquartel-general,masnãotiveramcoragem.Depoisdecertotempo,Davengacomunicouatodosqueaquelamulherficariacomeleenadamudaria.Elaeracega,surdaemudanoquesereferiaaassuntos deles. Ele, entretanto, queria dizermais uma coisa: qualquer umque bulissecom ela haveria demorrer sangrando nasmãos dele feito porco capado. Os amigosentenderam. E quando o desejo aflorava ao vislumbrar os peitos-maçãs salientes damulher,algocomoumadorprofundadoíanaspartesdebaixodeles.Odesejoabaixavaentão, esvanecendo,diluindoapossibilidadedeereçãodoprazer.EAnapassoua serquaseumairmãquepovoavaossonhosincestuososdoshomenscomparsasdosdelitosedoscrimesdeDavenga.OpeitodeAnaDavengadoíadetemor.Todosestavamali,menosodela.Oshomens

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rodeavam Ana. E asmulheres, como se estivessem formando pares para uma dança,rodeavam seus companheiros, parando atrás de seuhomemcerto.Anaolhou todos enão percebeu tristeza alguma. O que seria aquilo? Estariam guardando uma dorprofunda e apenasmascarandoo sofrimentoparaque elanão sofresse? Seria algumabrincadeiradeDavenga?Eleestariaescondidoporali?Não!Davenganãoerahomemdetaismodos!Eleatébrincava,porém,sócomoscompanheiros.Assimmesmodeumabrincadeirabruta.Socos,pontapés,safanões,tapas,“seusfilhosdaputa”...Maispareciabriga.OndeestavaDavenga?Teriasemetidoemalgumaconfusão?Sim,seuhomemsótinha tamanho. No mais era criança em tudo. Fazia coisas que ela nem gostava depensar.Àsvezes,ficavadiasedias,mesesaté,foragido,equandoelamenosesperavadavacomeledentrodecasa.Poisé,Davengapareciatermesmoopoderdesetornarinvisível.Umpoucoqueelasaíaparabuscarroupasnovaraloufalarumtantinhocomasamigas,quandovoltavadavacomele,deitadonacama.Nuzinho.BonitooDavengavestidocomapelequeDeus lhedeu.Umapelenegra, esticada, lisinha,brilhosa.Elamal fechava a porta e se abria todinha para o seu homem. Davenga! Davenga! E aíacontecia o que ela não entendia. Davenga que era tão grande, tão forte, mas tãomenino, tinha o prazer banhado em lágrimas. Chorava feito criança. Soluçava,umedecia ela toda. Seu rosto, seu corpo ficavam úmidos das lágrimas deDavenga. Etodasasvezesqueelaviaaquelehomemnogozo-pranto,sentiaumadorintensa.EracomoseDavengaestivessesofrendomesmo,efosseelaaculpada.Depoisentão,osdoisaindadecorposnus,ficavamali.Elaenxugandoaslágrimasdele.Eratudotãodoce,tãogozo,tãodor!UmdiapensouemsenegarparanãoverDavengachorandotanto.Maselepedia,caçava,buscava.Nãorestavanadaafazer,anãoserenxugarogozo-prantodeseuhomem.Todos continuavam parados olhando Ana Davenga. Ela recordou que uns tempos

atrásnenhumdeleseraamigo.Eraminimigos,quase.ElesdetestavamAna.Elanãoosamavanemosodiava.ElanãosabiaondeelesestavamnavidadeDavenga.Equandopercebeu, viu quenão poderia ter por eles indiferença. Teria de amá-los ou odiá-los.Optou por amá-los, então. Foi difícil. Eles não a queriam. Não era do agrado denenhumdelesaquelamulherdentrodoquartel-generaldochefe,sabendodetodosossegredos. Achavam que Davenga iria se dar mal e comprometer todo o grupo. MasDavengaestavamesmoapaixonadopelamulher.Quando Davenga conheceu Ana em uma roda de samba, ela estava ali, faceira,

dançandomacio.Davenga gostoudosmovimentosdo corpodamulher. Ela fazia ummovimentobonitoeligeirodebunda.EstavatãodistraídanadançaquenempercebeuDavenga olhando insistentemente para ela.Naqueles dias, ele andava com temor nopeito. Erapreciso cuidado.Oshomens estavamatrásdele. Tinhahavidoumassalto aumbanco e o caixa descrevera alguémparecido comele.Apolícia já tinha subidoo

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morro e entrado em seu barraco várias vezes. O pior é que ele não estava metidonaquelamerda.Seriaburrodeassaltarumbancoalimesmonobairro,tãopertodele?Faziaosseusserviçosmaislonge,ealémdomaisnãogostavadeassaltosabancos.Jáatéparticiparadealguns,masachavaoservicinhosemgraça.Nãodavatempodeverasfeiçõesdasvítimas.Oqueelegostavamesmoeradeveromedo,otemor,opavornasfeições e modos das pessoas. Quanto mais forte o sujeito, melhor. Adorava ver oschefões,osmandachuvassecagandodemedo,feitoaqueledeputadoqueeleassaltouum dia. Foi amaior comédia. Ficou na ronda perto da casa do homem.Quando elechegouesaltoudocarro,Davengaseaproximou.—Poisé,doutor,avidanãotáfácil!Aindabemquetemhomemláemcimacomoo

senhordefendendoagente,ospobres.—Eramentira.—Doutor,euvoteinosenhor.—Eramentiratambém.—Enãomearrependi.Veiovisitarafamília?Eutambémtouindoveraminhaequero levarunspresentinhos.Querochegarbem-vestido, comoosenhor.Ohomemnãodeutrabalhoalgum.PressentiuaarmaqueDavenganemtinhasacado

ainda. E quando isto aconteceu, o próprio deputado já tinha adiantado o serviçoentregando tudo. Davenga olhou a rua. Tudo ermo, tudo escuro. Madrugada e frio.Mandouqueohomemabrisseocarroepediuaschaves.Odeputadotremia,aschavestilintavamemsuasmãos.Davengamordeuo lábio, contendoo riso.Olhouopolíticobemnofundodosolhos,mandouentãoqueeletirassearoupaefoirecolhendotudo.—Não,doutor,acuecanão!Suacuecanão!Seiláseosenhortemalgumadoençaou

setácomocusujo!Quandoarrecadoutudo,empurrouohomemparadentrodocarro.Olhouparaelee

balançouaschaves.Deuumadeusaodeputado,quecorrespondeuaogesto.Davengatinhaopeitoexplodindoemgargalhadas,masconteveoriso.Apertouopasso,tinhadeabreviar. Eram três e quinze da madrugada. Daí a pouco passaria por ali umapatrulhinha.Diasatráselehaviaestudadooambiente.FoiporaquelesdiasdoassaltoaodeputadoqueDavengaconheceuAna.Avendado

relógio lhehavia rendido algumdinheiro, foraoque estavana carteira. Ede cabeçaleve resolveu ir com os amigos para o samba. Sabia, porém, que devia ficar atento.Estava atento, sim. Estava atento aos movimentos e à dança da mulher. Ela lhelembrava uma bailarina nua, tal qual a que ele vira um dia no filme da televisão. Abailarina dançava livre, solta, na festa de uma aldeia africana. Só quando a bateriaparou foi que Ana também parou e se encaminhou com as outras para o banheiro.Davengaassistiaatudo.Navoltaelapassouporele,olhou-oedeu-lheumlargosorriso.Elecrioucoragem.Eraprecisocoragemparachegaraumamulher.Maiscoragematédo que para fazer um serviço. Aproximou-se e convidou-a para uma cerveja. Elaagradeceu. Estava com sede, queria água e deu-lhe um sorrisomais profundo ainda.

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Davengaseemocionou.Lembroudamãe,dasirmãs,dastias,dasprimaseatédaavó,avelha Isolina. Daquelas mulheres todas que ele não via há muitos anos, desde quecomeçara a varar o mundo. Seria tão bom se aquela mulher quisesse ficar com ele,morarcomele,serdelenavidadele.Mascomo?Elequeriaumamulher,umasó.Estavacansado de não ter pouso certo. E amulher que lhe lembrava a bailarina nua haviamexido com ele, com alguma coisa lá dentro dele. Ela lhe trouxera saudade de umtempopaz,umtempocriança,umtempoMinas.Iatentar,iatentar...Ana,abailarinadesuaslembranças,bebeuáguaenquantoDavengaenamoradotomavaacerveja,semsentirogostodolíquido.Quandoterminou,pegounamãodamulheresaiu.OsamigosdeDavengaviramquandoele,descuidadodequalquerperigo,atravessouoterreirodarodade sambaecaminhou feitonamoradopuxandoamulherpelamão,ganhandooespaçoláfora,quaseesquecidodoperigo.Desde aquele dia Ana ficou para sempre no barraco e na vida de Davenga. Não

perguntoudequeohomemvivia.Eletraziasempredinheiroecoisas.Nostemposemque ficava fora de casa, eram os companheiros dele que, através das mulheres, lhetraziamosustento.Elanãoestranhavanada.Muitasvezes,Davengamandavaqueelafosse entregar dinheiroou coisas para asmulheres dos amigosdele. Elas recebiamasencomendasemandavamperguntarquandoe se seushomensvoltariam.Davengaàsvezes falava do regresso, às vezes, não. Ana sabia bem qual era a atividade de seuhomem. Sabia dos riscos que corria ao lado dele.Mas achava também que qualquervidaeraumriscoeoriscomaioreraodenãotentarviver.Enaquelanoiteprimeira,nobarracodeDavenga,depoisde tudo,quandocalmoseele jádeolhosenxutos,—elehavia chorado copiosamente no gozo-pranto — puderam conversar, Ana resolveuadotar o nome dele. Resolveu então que a partir daquelemomento se chamaria AnaDavenga.Elaqueriaamarcadohomemdelanoseucorpoenoseunome.Davenga gostara de Ana desde o primeiromomento até o sempre.Dera seu nome

para Ana e se dera também. Fora com ela que descobrira e começara a pensar noporquêdesuavida.Foracomelaquecomeçaraapensarnasoutrasmulheresquetiveraantes.Eumalhetraziaumgostoderemorso.ElehaviamandadomatarMariaAgonia.Conhecera amulher aovisitarumcompanheirona cadeia.O amigo armarauma e

nãosederabem.Aprisãodeviaserhorrível.Sóempensartinhamedoedesespero.Seum dia caísse preso e não conseguisse fugir, se mataria. E foi nessa única visita aoamigo que conheceuMaria Agonia. Ela vivia dizendo da agonia de uma vida sem oolhar do Senhor. Naquele dia, quando saíram da cadeia, ela veio conversando comDavenga.Erabonita,usavaumaroupaabaixodojoelho,ocabeloamarradoparatrás.Umavozcalmaacompanhadadegestostranquilos.Davengaestavagostandodeouviras palavras de Maria Agonia. Marcaram um encontro para o domingo seguinte napraça.Quandoelechegou,opastorfalava,eMariaAgoniaestavacomaBíbliaaberta

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namão.Davengaobservavaosmodoscontritosdamulher.Ela,aolevantarosolhoseperceberoolhardele,piedosamenteabaixouacabeçaevoltouao livro.Ele saiue seencaminhouparaobotequimem frente.Ao acabar apregação, ela saiudomeiodosoutros,passouporeleefezumsinal.Elefoiatrás.Assimquetodossedispersaram,elafalou do desejo de estar com ele. Queria ir para algum lugar, sozinhos. Foram e seamarammuito.Elechoroucomosempre.Essesencontrosacontecerammuitasemuitasvezes.Primeiroapraça,apregação,acrença.Depoistudonosilêncio,namoita,tudoescondidinho.Umdiaeleseencheu.Propôsqueelasubisseomorroeficassecomele.Corresse com ele todos os perigos. Deixasse a Bíblia, deixasse tudo. Maria Agoniareagiu.Vêsóseela,crente,filhadepastor,instruída,iriadeixartudoemorarcomummarginal,comumbandido?Davengaserevoltou.Ah!Entãoera isso?Sóprazer?Sóogostoso?Sóaquilonacama?SaiudalieranovamenteaBíblia?Mandouqueamulhersevestisse. Ela ainda se negou. Estava querendomais. Estava precisando do prazer queele,sóele,eracapazdedar.Saíramjuntosdomotel,acertaaltura,comosempre,eledesceudocarroecaminhousozinho.Nãohaviadesernada.Tinhaalguémquefariaoserviçoparaele.Diasdepois,aseguintemancheteaparecianosjornais:“Filhadepastorapareceunua e todaperfuradadebalas. Tinha ao ladodo corpoumaBíblia.AmoçacultivavaohábitodevisitarospresídiosparalevarapalavradeDeus”.Por mais que Ana Davenga se esforçasse, não conseguia atinar com o porquê da

ausência de seu homem. Todos estavam ali. Isso significava que, onde quer queDavenga estivesse naquelemomento, ele estava só. E não era comum em tempos deguerracomoaqueles,elesandaremsozinhos.Davengadeviaestaremperigo,emmauslençóis. As histórias e os feitos de Davenga vieram quentes e vivos em sua mente.Dentre eles, um em que havia uma semelhante sua, morta. Nem no dia em queDavenga,decabeçabaixa,lhecontaraocrime,elativeramedodohomem.Buscouasfeições de suas semelhantes, ali presentes. Encontrou calma. Seria porque os homensdelasestavamali?Não,nãoera.Aausênciadeumdelessignificavasempreperigoparatodos.Porqueestavamtãocalmas,tãoalheiasassim?Novasbatidasecoaramnaportae jáeramprenúnciosdesamba.Erasambamesmo.

AnaDavengaquisromperocírculoemvoltadelaeseencaminharparaabriraporta.Os homens fecharam a rodamais ainda e as mulheres em volta deles começaram abalançar o corpo.CadêDavenga, cadêDavenga,meuDeus?Oque seria aquilo? Erauma festa! Distinguiu vozes pequenas e havia as crianças. Ana Davenga alisou abarriga. Lá dentro estava a sua, bem pequena, bem sonho ainda. As crianças, haviaumasquedelongeouàsvezesdeperto,acompanhavamasfaçanhasdospais.Algumasseguiriampelasmesmastrilhas.Outras,quemsabe,traçariamcaminhosdiferentes.Eofilho dela com Davenga, que caminho faria? Ah, isto pertence ao futuro. Só que o

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futuroalichegavarápido.Otempodecrescererabreve.Odemataroumorrerchegavabreve,também.EofilhodelaedeDavenga?CadêDavenga,meuDeus?Davengaentrafurandoocírculo.Alegre,zambeiro,cabeça-sonho,nuvens.Abraçaa

mulher.Noabraço,alémdocorpodeDavenga,elasentiuapressãodaarma.

—Davenga,Davenga,quefestaéesta?Porqueistotudo?—Mulher,tápancada?Parecequebebe?Esqueceudavida?Esqueceudevocê?

Não,AnaDavenganãohaviaesquecido,mastambémnãosabiaporquelembrar.Eraaprimeiraveznavida,umafestadeaniversário.O barraco de Ana Davenga, como o seu coração, guardava gente e felicidades.

Alguns se encostaram pelo pouco espaço do terreiro. Outros se amontoaram nosbarracos vizinhos, poronde rolavama cachaça, a cerveja e omais emais.Quandoamadrugada afirmou, Davenga mandou que todos se retirassem, recomendando aoscompanheirosqueficassemalertas.Ana estava feliz. Só Davenga mesmo para fazer aquilo. E ela, tão viciada na dor,

fizera dos momentos que antecederam a alegria maior um profundo sofrimento.Davengaestavaalinacamavestidocomaquelapelenegra,brilhante,lisaqueDeuslhedera.Elatambém,nua.Eratãobomficarsetocandoprimeiro.Depoishaveriaochorode Davenga, tão doloroso, tão profundo, que ela ficava adiando o gozo-pranto. Jáestavamparaexplodirumnooutro,quandoaportaabriuviolentamenteedoispoliciaisentraram de armas em punho. Mandaram que Davenga se vestisse rápido e nãobancasseoengraçadinho,porqueobarracoestavacercado.Outropolicialdo ladodefora empurrou a janela demadeira.Umametralhadora apontoupara dentro de casa,bemnadireçãodacama,namiradeAnaDavenga.Elaseencolheulevandoamãonabarriga,protegendoofilho,pequenasemente,quasesonhoainda.Davenga vestiu a calça lentamente. Ele sabia estar vencido. E agora o que valia a

vida?Oquevaliaamorte?Irparaaprisão,nunca!Aarmaestavaali,debaixodacamisaqueeleiapegaragora.Poderiapegarasduasjuntas.Sabiaqueestegestosignificariaamorte.SeAnasobrevivesseàguerra,quemsabeteriaoutrodestino?Decabeçabaixa,semencararosdoispoliciaisasuafrente,Davengapegouacamisa

edessegestoseouvirammuitostiros.Osnoticiáriosdepois lamentavamamortedeumdospoliciaisdeserviço.Nafavela,

oscompanheirosdeDavengachoravamamortedochefeedeAna,quemorreraalinacama, metralhada, protegendo com as mãos um sonho de vida que ela trazia nabarriga.Emumagarrafadecervejacheiadeágua,umbotãoderosa,queAnaDavengahavia

recebidodeseuhomem,nafestaprimeiradeseuaniversário,vinteesete,seabria.

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Duzu-Querença

Duzulambeuosdedosgordurososdecomida,aproveitandoosúltimosbagosdearrozquetinhamficadopresosdebaixodesuasunhassujas.Umhomempassoueolhouparaamendiga, com uma expressão de asco. Ela lhe devolveu um olhar de zombaria. Ohomem apressou o passo, temendo que ela se levantasse e viesse lhe atrapalhar ocaminho.Duzu olhou no fundo da lata, encontrando apenas o espaço vazio. Insistiu ainda.

Diversas vezes levou a mão lá dentro e retornou com um imaginário alimento quejogava prazerosamente à boca. Quando se fartou deste sonho, arrotou satisfeita,abandonandoa latanaescadariada igrejaecaminhouatémaisadiante,seafastandodos outrosmendigos. Agachou-se quieta. Ficou por algum tempo olhando omundo.Sentiuuminíciodecãibranaspernas,ergueu-sepelametade,acocorando-sedenovo.Estava mesmo ficando velha, pensou. Levantou devagar. Olhou para trás, viu oscompanheiros seus estirados, depois do almoço, contemplando omeio-dia. Ensaiou emudouospassos,cambaleantee insegurafeitocriançaquecomeçaaandar.Sorriudalerdezaedacãibraque insistiam.É,apernaestavaquerendofalhar.Elaéquenão iaficaraliassentada.Seaspernasnãoandam,éprecisoterasasparavoar.QuandoDuzu chegou pela primeira vez na cidade, ela eramenina, bem pequena.

Vieranumaviagemde trem,diasedias.Atravessara terrase rios.Aspontespareciamfrágeis.Elaficavaotempotodoesperandootremcair.Amãejáestavacansada.Queriadescernomeiodocaminho.Opaiqueriacaminharparaoamanhã.OpaideDuzu tinhanosatosamarcadaesperança.Depescadorqueera, sonhava

umofícionovo.Eraprecisoaprenderoutrosmeiosdetrabalhar.Eraprecisotambémdaroutravidaparaafilha.Nacidadehaviasenhorasqueempregavammeninas.Elapodiatrabalhareestudar.Duzueracaprichosaetinhacabeçapara leitura.Umdiasuafilhaseria pessoa de muito saber. E a menina tinha sorte. Já vinha no rumo certo. UmasenhoraquehaviaarrumadotrabalhoparaafilhadeZéNogueiraiaencontrarcomelesnacapital.Duzuficoucomnacasadatalsenhoradurantemuitosanos.Eraumacasagrandede

muitosquartos.NosquartosmoravammulheresqueDuzuachavabonitas.Gostavadeficar olhando para os rostos delas. Elas passavam muitas coisas no rosto e na boca.Ficavam mais bonitas ainda. Duzu trabalhava muito. Ajudava na lavagem e na

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passagemdaroupa.Eraelatambémquemfaziaalimpezadosquartos.Asenhoratinhaexplicado a Duzu que batesse nas portas sempre. Batesse forte e esperasse o podeentrar.UmdiaDuzuesqueceuefoientrando.Amoçadoquartoestavadormindo.Emcimadeladormiaumhomem.Duzuficouconfusa:porqueaquelehomemdormiaemcima da moça? Saiu devagar, mas antes ficou olhando um pouco os dois. Estavaengraçado. Estava bonito. Estava bom de olhar. Então resolveu que nem sempre iabaternasportasdosquartos.Nem sempre ia esperaropode entrar.Algumasvezes iaentrar-entrando.Efoinoentrar-entrandoqueDuzuviuváriasvezeshomensdormindoem cima dasmulheres.Homens acordados em cima dasmulheres.Homensmexendoem cima dasmulheres. Homens trocando de lugar com asmulheres. Gostava de veraquilo tudo.Emalgunsquartosameninaera repreendida.Emoutros,erabem-aceita.Houveatéaquelequartoemqueohomemlhefezumcarinhonorostoefoiabaixandoamão lentamente... Amoçamandou que ele parasse. Não estava vendo que ela eraumamenina?Ohomemparou.Levantouembrulhadonolençol.Duzuviuentãoqueamoçaestavanua.ElepegouacarteiradedinheiroedeuumanotaparaDuzu.Elaolhoutimidamente para o homem. Voltou ali no outro dia no entrar-entrando. Não era omesmo.Saiudesapontadaetriste.Passadosalgunsdiasvoltouaentrardesupetão.Eraele.Eraohomemquelhehaviafeitoumcarinhoelhedadoumdinheiro.Eraelequeestava lá.Estavamosdoisnuzinhos.Eleemcima,parecendodentrodamulher.Duzuficou olhando tudo. Teve um momento em que o homem chamou por ela.Vagarosamente ela foi se aproximando. Ele, em cima damulher, comuma dasmãosfaziacarinhonorostoenosseiosdamenina.Duzutinhagostoemedo.Eraestranho,maserabom.Ganhoumuitodinheirodepois.Duzuvoltavasempre.Vinhanumentrar-entrandocheiodemedo,desejoedesespero.

Umdiaohomemestavadeitadonuesozinho.Pegouameninaejogounacama.Duzunão sabia aindao ritmodo corpo,mas, rápida e instintivamente, aprendeu adançar.Ganhavamaisemaisdinheiro.Voltavaeamoçadoquartonuncaestava.UmdiaquemabriuaportadesupetãofoiD.Esmeraldina.Estavabrava.Seamenina

quisessedeitar comhomempodia. Sóumacoisa elanão iapermitir:mulherdeitandocom homem, debaixo do teto dela, usando quarto e cama, e ganhando o dinheirosozinha!Seameninaeraesperta,elaeramaisainda.Queriatodoodinheiroejá!Duzunaquelemomentoentendeuoporquêdohomemlhedardinheiro.Entendeuoporquêde tantas mulheres e de tantos quartos ali. Entendeu o porquê de nunca mais terconseguido ver a sua mãe e o seu pai, e de nunca D. Esmeraldina ter cumprido apromessadedeixá-laestudar.Eentendeutambémqual seriaa suavida.É, ia ficar. Iaentrar-entrandosemsaberquandoeporqueparar.Dona Esmeraldina arrumou um quarto para Duzu, que passou a receber homens

também.Crioufreguesesefama.

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Duzumoroualimuitosanosedelápartiuparaoutraszonas.Acostumou-seaosgritosdas mulheres apanhando dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas.Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos mandos e desmandos das cafetinas.Habituou-seàmortecomoumaformadevida.OsfilhosdeDuzuforammuitos.Nove.Estavamespalhadospelosmorros,pelaszonas

epelacidade.Todososfilhostiveramfilhos.Nuncamenosdedois.Dentreosseusnetostrês marcavam assento maior em seu coração. Três netos lhe abrandavam os dias.Angélico, que chorava porque não gostava de ser homem. Queria ser guardapenitenciárioparapoderdarfugaaopai.Tático,quenãoqueriasernada.EameninaQuerençaqueretomavasonhosedesejosdetantosoutrosquejátinhamido...Duzuentrouemdesesperonodiaemque soubedamortedeTático.Elehavia sido

apanhadodesurpresaporumgrupoinimigo.Eratãonovo!Trezeanos.Tinhaaindavoze jeito de menino. Quando ele vinha estar com ela, passava às vezes a noite ali.Disfarçava. Pedia a benção. Ela sabia porém que ele possuía uma arma e que a corvermelho-sanguejásederramavaemsuavida.Com amorte de Tático, Duzu ganhou nova dor para guardar no peito. Ficava ali,

amuada,diantedaportadaigreja.Olhavaossantosládentro,oshomenscáfora,semobter consolo algum. Era preciso descobrir uma forma de ludibriar a dor. Pensandonisto, resolveu voltar ao morro. Lá onde durante anos e anos, depois que ela haviadeixadoazona,foramorarcomosfilhos.FoiretornandoaliqueDuzudeudebrincardefazdeconta.Efoiaprofundandonasraiasdodelírioqueelaseagarrouparaviverotempodeseusúltimosdias.Duzuolhouemvolta,viualgumasroupasnovaral.Levantoucomdificuldadese foi

atélá.Comdificuldademaiorainda,ficounaspontinhasdospésabrindoosbraços.Asroupasbalançavamaosabordovento.Ela,alinomeio,sesentiacomoumpássaroqueiaporcimadetudoedetodos.Sobrevoavaomorro,omar,acidade.Aspernasdoíam,maspossuíaasasparavoar.Duzuvoavanoaltodomorro.Voavaquandoperambulavapelacidade.Voavaquandoestavaalisentadaàportadaigreja.Duzuestavafeliz.Haviaseagarradoaosdelírios,entorpecendoador.Efoisemisturandoàsroupasdovaralqueelaganharaasaseassimviajava,voava,distanciando-seomaispossíveldoreal.Estava chegando uma época em que o sofrer era proibido. Mesmo com toda

dignidade ultrajada,mesmo quematassem os seus,mesmo com a fome cantando noestômagode todos, como frio rachandoapeledemuitos, comadoença comendoocorpo, com o desespero diante daquele viver-morrer, pormaior que fosse a dor, eraproibidoosofrer.Elagostavadestetempo.Alegrava-setanto!Eraocarnaval.Ejáhaviaaté imaginado a roupa para o desfile da escola. Ela viria na ala das baianas. Estavafazendoumafantasialinda.Catavapapéisbrilhantesecosturavapacientementeemseuvestido esmolambado.Umcompanheiromendigohavia-lheditoque sua roupa, assim

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tãoenfeitadadepapéisrecortadosemformadeestrelas,maispareciaroupadefadadoque de baiana.Duzu reagiu.Quemdisse que estrela era só para as fadas! Estrela erapara ela, Duzu. Estrela era para Tático, para Angélico. Estrela era para a meninaQuerença, moradia nova, bendito ayê, onde ancestrais e vitais sonhos haveriam deflorescereacontecer.Duzucontinuavaenfeitandoavidaeovestido.Odiadodesfilechegou.Erapreciso

inaugurar a folia. Despertou cedo. Foi e voltou. Levantou voo e aterrizou. E foiescorregando brandamente em seus famintos sonhos que Duzu visualizou segurosplantiosefartascolheitas.Estrelaspróximasedistantesexistiameinsistiam.Rostosdospresentes se aproximavam. Faces dos ausentes retornavam. Vó Alafaia, Vô Kiliã, TiaBambene,seupai,suamãe,seusfilhosenetos.MeninaQuerençaadiantava-semaisemais.Suaimagemcrescia,crescia.Duzudeslizavaemvisõesesonhosporummisteriosoeeternocaminho...Menina Querença, quando soube da passagem da Avó Duzu, tinha acabado de

chegarda escola. Subitamente se sentiu assistida e visitadaporparentesque elanemconhecera e de quem só ouvira contar as histórias. Buscounamemória os nomes dealguns.Alafaia,Kiliã,Bambene...EscutouosassobiosdoprimoTáticoláforachamandopor ela. Sorriu pesarosa, havia uns trêsmeses que ele também tinha ido... Querençadesceu o morro recordando a história de sua família, de seu povo. Avó Duzu haviaensinado para ela a brincadeira das asas, do voo. E agora estava ali deitada nasescadariasdaigreja.Efoinodelíriodaavó,naformaalucinadadeseusúltimosdias,queela,Querença,

haveria de sempreumedecer seus sonhosparaque eles florescesseme se cumprissemvivosereais.Eraprecisoreinventaravida,encontrarnovoscaminhos.Nãosabiaaindacomo.Estavaestudando,ensinavaascriançasmenoresdafavela,participavadogrupode jovens da Associação de Moradores e do Grêmio da Escola. Intuía que tudo eramuitopouco.A lutadevia sermaior ainda.MeninaQuerença tinha treze anos, comoseuprimoTáticoquehaviaidoporaquelesdias.Querença olhou novamente o corpomagro e a fantasia da avó.Desviou o olhar e

entre lágrimascontemploua rua.O solpassadodemeio-diaestavacoladonoaltodocéu.Raiosdeluzagrediamoasfalto.Mistérioscoloridos,cacosdevidro—lixotalvez—brilhavamnochão.

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Maria

Maria estava paradahámais demeiahoranopontodo ônibus. Estava cansada deesperar.Seadistânciafossemenor,teriaidoapé.Eraprecisomesmoirseacostumandocomacaminhada.Opreçodapassagemestavaaumentandotanto!Alémdocansaço,asacolaestavapesada.Nodiaanterior,nodomingo,haviatidofestanacasadapatroa.Elalevavaparacasaosrestos.Oossodopernileasfrutasquetinhamenfeitadoamesa.Ganharaasfrutaseumagorjeta.Oosso,apatroaiajogarfora.Estavafeliz,apesardocansaço. A gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muitogripados.Precisavacomprarxaropeeaqueleremedinhodedesentupirnariz.Dariaparacomprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. Ascriançasnuncatinhamcomidomelão.Serásqueosmeninosiriamgostardemelão?Apalmadeumadesuasmãosdoía.Tinhasofridoumcorte,bemnomeio,enquanto

cortavaopernilparaapatroa.Quecoisa!Facaalasercortaatéavida!Quandooônibus apontou lána esquina,Maria abaixouo corpo,pegandoa sacola

queestavanochãoentreassuaspernas.Oônibusnãoestavacheio,havialugares.Elapoderia descansar um pouco, cochilar até a hora da descida. Ao entrar, um homemlevantou lá de trás, do último banco, fazendo um sinal para o trocador. Passou emsilêncio, pagando a passagem dele e de Maria. Ela reconheceu o homem. Quantotempo, que saudades! Como era difícil continuar a vida sem ele.Maria sentou-se nafrente.Ohomemsentou-seaseulado.Elaselembroudopassado.Dohomemdeitadocom ela.Da vida dos dois no barraco.Dos primeiros enjoos.Da barriga enorme quetodosdiziamgêmeos,edaalegriadele.Quebom!Nasceu!Eraummenino!Ehaveriadesetornarumhomem.Mariaviu,semolhar,queeraopaideseufilho.Elecontinuavaomesmo. Bonito, grande, o olhar assustado não se fixando em nada e em ninguém.Sentiu umamágoa imensa. Por quenão podia ser de uma outra forma? Por quenãopodiamserfelizes?Eomenino,Maria?Comovaiomenino?cochichouohomem.Sabequesintofaltadevocês?Tenhoumburaconopeito,tamanhaasaudade!Tousozinho!Não arrumei, não quis mais ninguém. Você já teve outros... outros filhos? Amulherbaixouosolhoscomoquepedindoperdão.É.Elatevemaisdoisfilhos,masnãotinhaninguémtambém.Ficava,apenasdevezemquando,comumououtrohomem.Eratãodifícil ficar sozinha! E dessas deitadas repentinas, loucas, surgiram os dois filhosmenores. E veja só, homens também! Homens também? Eles haveriam de ter outra

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vida.Comeles tudohaveriade serdiferente.Maria,não te esqueci! Tá tudo aquinoburacodopeito...O homem falava, mas continuava estático, preso, fixo no banco. Cochichava com

Mariaaspalavras,sementretantovirarparaoladodela.Elasabiaoqueohomemdizia.Ele estava dizendo de dor, de prazer, de alegria, de filho, de vida, de morte, dedespedida.Doburraco-saudadenopeitodele...Destavezelecochichouumpouquinhomaisalto.Ela,aindasemouvirdireito,adivinhouafaladele:umabraço,umbeijo,umcarinhonofilho.Elogoapós,levantourápidosacandoaarma.Outroláatrásgritouqueeraumassalto.Mariaestavacommuitomedo.Nãodosassaltantes.Nãodamorte.Simdavida.Tinhatrêsfilhos.Omaisvelho,comonzeanos,erafilhodaquelehomemqueestavaalinafrentecomumaarmanamão.Odeládetrásvinharecolhendotudo.Omotoristaseguiaaviagem.Haviaosilênciodetodosnoônibus.Apenasavozdooutroseouviapedindoaospassageirosqueentregassemtudorapidamente.OmedodavidaemMariaiaaumentando.MeuDeus,comoseriaavidadosseusfilhos?Eraaprimeiravezqueelaviaumassaltonoônibus. Imaginavao terrordaspessoas.Ocomparsadeseu ex-homempassou por ela e não pediunada. Se fossemoutros os assaltantes? Elateriaparadarumasacoladefrutas,umossodepernileumagorjetademilcruzeiros.Nãotinharelógioalgumnobraço.Nasmãosnenhumaneloualiança.Aliás,nasmãostinhasim!Tinhaumprofundocortefeitocomfacaalaserquepareciacortaratéavida.Osassaltantesdesceramrápido.Mariaolhousaudosaedesesperadaparaoprimeiro.

Foi quando uma voz acordou a coragemdos demais. Alguém gritou que aquela putasafada lá da frente conhecia os assaltantes. Maria se assustou. Ela não conheciaassaltantealgum.Conheciaopaideseuprimeirofilho.Conheciaohomemquetinhasidodelaequeelaaindaamavatanto.Ouviuumavoz:Negrasafada,vaiverqueestavadecoleiocomosdois.Outravozvindaládofundodoônibusacrescentou:Calma,gente!Se ela estivesse junto com eles, teria descido também. Alguém argumentou que ela nãotinha descido só para disfarçar. Estavamesmo com os ladrões. Foi a única a não serassaltada.Mentira,eunão fuienãoseiporquê.Mariaolhounadireçãodeondevinhaavoz e viu um rapazinho negro emagro, com feições demenino e que relembravamvagamenteo seu filho.Aprimeiravoz, aque acordoua coragemde todos, tornou-seumgrito:Aquelaputa,aquelanegrasafadaestavacomosladrões!Odonodavozlevantoue se encaminhou emdireção àMaria. Amulher tevemedo e raiva.Quemerda!Nãoconhecia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém.Olha só, a negra ainda éatrevida,disseohomem,lascandoumtapanorostodamulher.Alguémgritou:Lincha!Lincha! Lincha!... Uns passageiros desceram e outros voaram em direção à Maria. Omotoristatinhaparadooônibusparadefenderapassageira:—Calmapessoal!Queloucuraéesta?Euconheçoestamulherdevista.Todososdias,

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maisoumenosnestehorário,elatomaoônibuscomigo.Estávindodotrabalho,dalutaparasustentarosfilhos...Lincha!Lincha!Lincha!Mariapunha sanguepelaboca,pelonarizepelosouvidos.A

sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão. Será que os meninos iriamgostardemelão?Tudo foi tão rápido, tão breve, Maria tinha saudades de seu ex-homem. Por que

estavam fazendo isto com ela? O homem havia segredado um abraço, um beijo, umcarinhonofilho.Elaprecisavachegaremcasaparatransmitirorecado.Estavamtodosarmadoscom facasa laserquecortamatéavida.Quandooônibusesvaziou,quandochegouapolícia,ocorpodamulherestavatododilacerado,todopisoteado.Mariaqueriatantodizeraofilhoqueopaihaviamandadoumabraço,umbeijo,um

carinho.

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QuantosfilhosNatalinateve?

Natalinaalisoucarinhosamenteabarriga,ofilhopulouládedentrorespondendoaocarinho.Ela sorriu feliz. Era a suaquarta gravidez, eo seuprimeiro filho. Só seu.Dehomem algum, de pessoa alguma. Aquele filho ela queria, os outros não. Os outroseramcomosetivessemmorridopelomeiodocaminho.Foramdadoslogoapóseantesaté do nascimento. As outras barrigas ela odiara. Não aguentava se ver estufando,estufando,pesada, inchada e aquele troco, aquela coisamexendodentrodela. Ficavacomocoraçãocheiodeódio.Enjoavaevomitavamuitodurantequasetodaagravidez.Naterceira,vomitouaténahoradoparto.FoiapiorgravidezparaNatalina.Pioratédoqueaprimeira,emborafosseaindaquaseumameninaquandopariuoprimeirofilho.Brincavagostosoquasetodasasnoitescomoseunamoradinhoequandodeufé,ojogoprazeroso brincou de pique-esconde lá dentro de sua barriga. A mãe desesperadaperguntouseelaqueriaofilhoeseBilicoqueriatambém.Elanãosabiaresponderporele. Sabia,porém,queela,Natalina,nãoqueria.Queamãeaperdoasse,nãobatessenela, não contasse nada para o pai.Que fizesse segredo até para o Bilico. Ela estavacom ódio e vergonha. Bilico nunca mais brincaria com ela. Ele não ia querer umameninaqueestivesseesperandoumfilho.Queamãeficassecalada.Elaiadarumjeitonaquilo.Natalina sabia de certos chás.Várias vezes vira amãe beber. Sabia tambémque às

vezesoschásresolviam,outrasvezes,não.Escutavaamãecomentarcomasvizinhas:—Ei,fulana,otroçodesceu!—Esoltavaumagargalhadaaliviadadequemconhecia

ovalordavidaeovalordamorte.Natalinapreparouoschásetomouduranteváriosdias.Elaficavaemcasacuidando

dosirmãosmenores.Iafazercatorzeanos.Umacoisaestavaládentrodabarrigadelaeiacrescer,cresceratéumdiaarrebentarnomundo.Não,elanãoqueria,precisava severlivredaquilo.Ameninaestavacomeçandoaficardesesperada.Tomavaoschásenãoresolvia.Um

diaamãeperguntou-lhecomoestavaindotudo.Elanãorespondeu.Amãeentendeuarespostamudadafilha.Agoraelamesmaéquemiaprepararoschás.Comohaveriadecriarmais uma criança?O que fazer quando o filho damenina nascesse?Na casa jáhaviatantagente!Ela,omaridoesetecrianças.Eagorateriaofilhodafilha?Iatentarmaisumpoucodebeberagens, senãodesse certo, levariaameninaaSáPraxedes.A

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velhaparteiracobrariaumpouco,masficariamlivresdetudo.Natalinasegurouotemorem silencio. Sá Praxedes, não! Ela morria de medo da velha. Diziam que ela comiameninos.MulheresbarrigudasentravamnobarracodeSáPraxedes, algumas,quandosaíam,traziamnosbraçosassuascrianças,outrasvinhamdebarriga,debraçosemãosvazias.OndeSáPraxedesmetiaascriançasqueficavamládentro?SáPraxedes,não.AmãedeNatalinaeasoutrasmãessabiamqueerasódizerparacriançasqueiamchamara velha e os filhos ficavam quietos, obedeciam. Sá Praxedes comia criança! Natalinasabia disso. Ela também muitas vezes conseguia a obediência dos irmãos menorestrazendoavelhaparteiraatéomedodeles.A mãe devia estar mesmo com muita mágoa dela. Estava querendo levá-la a Sá

Praxedes.Avelhaiacomeraquiloqueestavanabarrigadela.Iaconseguirfazeroqueoschásnãotinhamconseguido.Natalinaesperou.Nooutrodia,quandoamãesaiucedoparaacozinhadamadame,

elasaiulogoatrásparalugaralgum.Nãosabiaparaondeia.Aodesceromorro,emumdos becos passou em frente ao barraco de Bilico. Era ali que os dois brincavamprazerosos,sempre.Passourápido,pisandolevementecommedodeservista.TinhadefugirdeSáPraxedes.Ganhouaavenida,ganhououtrasruas.Escondeu-seomaislongepossível de casa. Ganhou outros amigos também. Um dia, junto com outra menina-mulher que também esperava um filho, tomou um trem para mais longe ainda. Erespiroualiviada.SáPraxedesnãoapegarianunca.Naterceirabarrigaelasabiadetudoqueiaacontecer.Naprimeiraenasegundafora

apanhada de surpresa. Bilico, amigo de infância, crescera com ela. Os dois haviamdescobertojuntosocorpo.Foicomelequeeladescobriuque,apesardedoerumpouco,oseuburacoabriaealidentrocabiaoprazer,cabiaaalegria.QuandoacriançanasceueraacaradeBilico.Igual,igualzinha.ElaconseguirafugirdeSáPraxedes.Nãoqueriaomenino,mastambémnãoqueriaqueelefossecomidopelavelha.Umaenfermeiraquisomenino.Amenina-mãesaiuleveevaziadohospital!Eeracomoseelativesseganhoumabonecaquenãodesejasseecedesseobrinquedoparaalguémquequisesse.Asegundagravidezfoitambémsemquerer,maselajáestavamaisesperta.Brincava

gostoso com os homens, mas não descuidava. Quando cismava com qualquer coisa,tomava os seus chazinhos, às vezes, omês inteiro. As regras desciam então copiosascomo rios de sangue. Mesmo assim, um dia uma semente teimosa vingou. Natalinapassounovamentepelomomentodevergonha.NãoiacontarparaTonho,masorapazdesconfiou.Havianoitequeseassentavamnobancodapraçaenemconversaram,elasócochilava.Umavezvomitouaosentircheirodepipoca.Depois,umdia,noquartodaobra onde ele morava, quando Natalina se pôs nua, o rapaz perguntou docementesobre aquela barriguinha que estava crescendo. Ela, envergonhada, contou-lhe queestavaesperandoumfilho.Queeleaperdoasse.Queelahaviatomadounschás.Que

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elaconheciaumataldeSáPraxedes...QuandoacabouafalaçãoeolhouparaTonho,omoçochoravaeria.AbraçouNatalinaerepetiafelizqueiaterumfilho.Queformariamuma família.Natalina ganhou preocupação nova. Ela não queria ficar comninguém.Nãoqueriafamíliaalguma.Nãoqueriafilho.QuandoToinzinhonasceu,elaeTonhojáhaviamacertadotudo.Elagostavadele,masnãoqueriaficarmorandocomele.Tonhochorou muito e voltou para a terra dele, sem nunca entender a recusa de Natalinadiantedoqueelejulgavaseromododeumamulherserfeliz.Umacasa,umhomem,umfilho...VoltoulevandoconsigoofilhoqueNatalinanãoquis.A terceira gravidez, ela também não queria. Quem quis foi o casal para quem

Natalina trabalhava. Os dois viviam bem. Viajavam de tempos em tempos e quandoregressavam davam sempre festas. Ela gostava de trabalhar ali. Era tudo muitotranquilo, ficavasozinhatomandocontadoapartamento.Cozinhava,passava, lavava,massóprasi.Acasapareciasersódela.Umdia,enquantodivagavaemseussonhosdepretensadona,otelefonetocou.Eraapatroaqueligavadoestrangeiro,emprantos,lhepediaajuda.Elaqueriaeprecisavaterumfilho.SóNatalinapoderiaajudá-la.Elanãoentendeu o telefonema nem as palavras da patroa. Ficou aguardando o regresso dosdois.Daíunsdiasapatroavoltou.Natalinaouviueentendeutudo.Amulherqueriaumfilho e não conseguia. Estava desesperada e envergonhada por isso. Ela emarido jáhaviamconversado.Erasóaempregadafazerumfilhoparaopatrão.Elassepareciamum pouco. Natalina só tinha um tom de pele mais negro. Um filho do marido comNatalinapoderiapassarcomosendoseu.Natalinalembrou-sedeSáPraxedescomendocrianças. Vai ver que a velha, um dia, comeu o filho destamulher e ela nem sabia.Lembroudaprimeiracriançaquetiveraequenemtinhavistodireito,poisforadiretopara as mãos-coração da enfermeira que seria a mãe. Lembrou da segunda que eladeixaracomoTonho,paifeliz.Nãoentendeuporqueaquelamulhersedesesperavaese envergonhava tantopornão ter um filho. Tudo certo.Deitaria comopatrão, sempagaalguma,tantasvezesfossepreciso.Deitariacomeleatéaoutraseengravidar,atéaoutraencontrarnofundodeumútero,quenãooseu,algumbebêperdidonolimiarde um tempo que só a velha Praxedes conhecia. A patroa chorava, mas parecia umpoucomais aliviada.Natalina levantou rápido e foi ao banheiro, na boca uma salivagrossa.Eramosprimeirosenjoosquejácomeçavam.ApatroadeNatalinapassouaviajarsozinha.Opatrãoficavanoquartodele,denoite

levantava e ia buscarNatalinanoquartode empregada.Não falavamnada,naquelesencontrosdeprazercomedido.Cadavezqueapatroavoltava,traziaemsiodesejodegravideznoolhar.Ostrêsbuscaramagravidezdurantemesesemeses.UmdiaasregrasdeNatalinanãodesceram.Apatroaaflitapediuaurina,fizeramoexame:positivo.Ostrêsestavamgrávidos.Opaisorriu,voltouaviajarsempre.Apatroaficavaotempotodocom ela. Contratou outra empregada. Levava Natalina ao médico, cuidava de sua

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alimentação e de distraí-la também. Natalina enjoava, enjoava. Vomitava sempre. Abarriga crescia devagar, lenta e preguiçosa. A outra tirava as medidas da barriga deNatalina e ficava feliz. Telefonava ao marido informando tudo. Um dia, quando jáestavanosétimomês,viuohomem,paidacriança,queestavaalimomentaneamenteemprestadadentrodela.Apatroapegouamãodomaridoepousou-alentamentesobreabarrigadeNatalina.Acriançamexeu,osdoisseabraçaramfelizes,enquantoNatalinanãoconseguiuseguraranáuseaeânsiadevômito.Apatroaveioaflita.OesforçoparavomitareratãograndequetrazialágrimasaosolhosdeNatalina.Elaaproveitoupara,silenciosamente,chorarumpouco.Tudo passava lento, os nove meses de eternidade, os enjoos. O estorvo que ela

carregava na barriga faria feliz o homem e amulher que teriam um filho que sairiadela.Tinhavergonhadesimesmaedeles.Umdiaacriançanasceufracaebela.Sobreviveu.Ospaischoravamaflitos.Natalina

quasemorreu.Tinhaosseiosvazios,nenhumvestígiodeleiteparaamamentarofilhodaoutra.Paraoseupróprioalíviofoiesquecidapelosdois.A quarta gravidez deNatalinanão lhe deixava emdívida compessoa alguma.Não

deviaoprazerdadescobertaaoiniciar-semulher,comotinhasidonosencontroscomBilico.Nãodevianada,comonasegundabarriga,quandoficoudevedoradiantedainteireza

deTonho,quesedepositavaplenosobreela,esperandoqueelafossevivercomelediascontínuosdeumcasalqueacreditaserfeliz.Não era devedora de nada, como na terceira, ao se condoer de uma mulher que

almejava sentir o útero se abrir emmovimento de flor-criança. Doou sua fertilidadepara que a outra pudesse inventar uma criação, e se tornou depositária de um filhoalheio.Não,dessavezelanãodevianadaaninguém.Seaquelabarrigatinhaumpreço,ela

tambémtinha tidoo seu,e tudo tinha sido feitocomumamoedabemvaliosa.Agorateria um filho que seria só seu, sem ameaça de pai, de mãe, de Sá Praxedes, decompanheiroalgumoudepatrões.Ehaveriadeensinarparaelequeavidaévivereémorrer.Égerareématar.O filho de Natalina continuava bulindo na barriga da mãe como se estivesse

acompanhandotambémabuscaqueelafazianamemória.Queriarelembrarocaminhopercorrido pelo carro. Um caminho que, pormais que se esforçasse, não conseguiriaretomar e reconhecer nunca. Um trajeto que não pôde ver, pois tinha os olhosvendadospeloshomensquechegaramderepentenoseubarracoeadominaramcomforça,perguntando-lhepeloseuirmão.Elanãosabiaoqueresponder.Nãotinhairmãoalgum. Saíra de casa anos atrás, deixara a mãe, o pai e as seis irmãs. Os homensinsistiam. Berravam dizendo que era pior e que não adiantava nada ela não dizer a

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verdade.Devezemquando,oqueestavasentadonobancodetráscomela,fazia-lheumcarinhonaspernas.Ela arrepiavadepavor.Asmãosestavamamarradas edoíam.Emumdadomomento,ocarroparoueoqueestavaaoseu ladodesceu.Despediu-sedela passando novamente amão em suas pernas. Bateu nas costas do que estava novolante e desejou-lhe bom proveito. O outro continuou calado. O carro seguiu emfrente. Ela calculou que deveriam ser uma três horas da madrugada, eles haviamchegado em seubarracopor voltadameia-noite. Estava fazendomuito frio.Natalinapercebeu então que amarcha do carro diminuía e que estavam saindo da estrada eentrandonomato.Escutavaoestalarderamossecos.Ohomemdesceudocarropuxou-a violentamente jogou-a no chão; depois desamarrou suas mãos e ordenou que lhefizessecarinho.Natalina, entreoódioeopavor,obedeciaa tudo.Nahora,quasenahorado gozo, ohomemarrancou a vendados olhos dela. Ela tremia, seu corpo, suacabeça estavam como se fossem arrebentar de dor. A noite escura não permitia quedivisasse o rosto dohomem. Ele gozou feito cavalo enfurecido em cima dela.Depoistombou sonolentoao lado.Foiquando, aoconsertaro corpopara seafastardele, elaesbarrouemalgonochão.Pressentiueraaarmadele.Omovimentofoirápido.Otirofoi certeiro e tão próximo que Natalina pensou estar se matando também. Fugiu.Guardou tudo sópra ela.Aquemdizer?Oque fazer? Sóqueguardoumaisdoqueoódio, a vergonha, o pavor, a dor de ter sido violentada. Guardou mais do que acoragemdavingançaedadefesa.Guardoumaisdoqueasatisfaçãodeterconseguidoretomar a própria vida. Guardou a semente invasora daquele homem. Poucosmesesdepois,Natalinasedescobriagrávida.Estavafeliz.Ofilhoestavaparaarrebentarnomundoaqualquerhora.Estavaansiosa

paraolharaquelefilhoenãoveramarcadeninguém,talveznemdela.Estavafelizesóconsigomesma.LembravadeSáPraxedesesorria.Aquelacriança,SáPraxedesnãoiaconseguircomernunca.Umdia,quandoeraquasemeninaainda,saíradacidadeondenascera fugindo da velha parteira. Agora, bem recentemente, saíra de outra cidadefugindodocomparsadeumhomemqueelahaviamatado.Sabiaqueoperigoexistia,mas estava feliz. Brevemente iria parir um filho. Um filho que fora concebido nosfrágeislimitesdavidaedamorte.

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Beijonaface

Salindatombousuavementeorostoecomasmãosemconchacolheu,pelamilésimavez, a sensação impregnada do beijo em sua face. Depois com um gesto lento ecuidadoso, abriu as palmas das mãos, contemplando-as. Sim, lá estava o vestígio docarinho.Algotãotênue,comoosrestosdeumaasaamarela,deumaborboleta-menina,que foi atropeladanosprimeiros instantesde seu inaugural voo.Rememorouaindaocorpoqueumdiaantesestiveraemofertórioaoseulado.Tudopareciaumsonho.Ostoques aconteceram carregados de sutileza. Carinhos inicialmente experimentadosapenas com as pontas dos dedos-desejos. Ela estava aprendendo um novo amor. Umamorqueviviaesefortalecianaesperadoamanhã,quesefaziainesperadamentenasfrinchasdeummomentoqualquer,queserevelavaporumsimplespiscardeolhos,porumsorrisoensaiadonametadedasbordasdeumlábio,porumrepetirconstantedoeuteamo,declaraçãofeita,muitasvezes,emvozsilenciosa,audívelsomenteparadentro,fazendo com que o eco dessa fala se expandisse no interior mesmo do própriodeclarante.Noprincípioaaprendizagemlhecustaramuito.Acostumadaaoamoremquetudoou

quase tudo pode ser gritado, exibido aos quatro ventos, Salinda perdeu o chão.Habituadaaoamorquepedeepermite testemunhas, inclusivenashorasdodesamor,viver silente tamanha emoção, era como deglutir a própria boca, repleta de fala,desejosadecontarasglóriasamorosas.Eporquenãogritar,nãopicharpelosmuros,não expor em outdoor a grandeza do sentimento? Não, não era a ostentação queaqueleamorpedia.Oamorpediaodireitodeamar,somente.Salinda tentou guardar em si as lembranças e retomar a rotina. Era preciso viver a

calmaeodesesperocomosenadaestivesseacontecendo.Haviaquaseumanoqueafelicidadelheeraservidaemconta-gotas.Pequenasgotículasqueguardavamaforçaeaparecençadereservatóriosinfindos,derepresasdefelicidadeinteira.Mesmoestandoentupida de alegria, com uma canção a borbulhar no peito, Salinda precisavaembrutecer o corpo, os olhos, a voz. Estava sendo observada em todos seusmovimentos.A vigilância sobreos seuspassospretendia, se possível, abarcar até seuspensamentos. Ela, que até então fora sempre distraída, teve de aprender a prestaratençãoatudoeemtodos.Amulherouhomemqueestivesseassentadoaoseuladono

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ônibuspoderiaserodetetiveparticularqueoseumaridotinhacontratadoparasegui-la.Ao se lembrar domarido, Salinda foi até ao quarto desfazer amala, que estava ali

abandonadadesdemanhã. Tinha ido atéChãdeAlegria, deixar as crianças de fériascom a tia. Era para aquela cidade que viajava sempre com os filhos. Além da ida aotrabalho,Salindanãopodiasairsó.Osfilhos,semsaber,tinhamsidotransformadosemvigias da mãe. A viagem de regresso, que ela fez sozinha, foi controlada desde omomentoemquedeixouacasadatia.Noprincípio, logoquecomeçouaservigiada,chegouapensarque estivesse sofrendodemaniadeperseguição.Confirmou,porém,que estava sendo seguida, quando, numanoite, omarido, julgando que ela estivessedormindo,falavaaltonasalaaoladoesemquererelaouviutodooteordaconversa.Ele pedia notícias de todos os passos dela. Depois a confirmação foi se dando pelasnotícias que ele trazia. Ela tinha sido vista em tal e tal lugar. Salinda entendeu ocomportamentodomarido.Estavaavigiá-la,masaoinvésdeagiremsilêncio,vinhadeprópriavozalertá-la.Eracomoseelebuscasseretardarumencontrocomaverdade.Aos poucos as ameaças feitas pelo marido, as mais diversificadas e cruéis, foram

surgindo. Tomar as crianças, matá-la ou suicidar-se deixando uma carta culpando-a.Salinda, por isso, vinha há anos adiando um rompimento definitivo com ele. Tinhamedo,sentia-seacuada,emboraàsvezespensassequeelenuncafarianada,casoelaodeixassedevez.Aprendera,desdeentão,certasartimanhas,sondavaterreno,procuravasaídas. Aos poucos foi se fortalecendo, criando defesas, garantindo pelomenos o seuespaçoíntimo.Tia Vandu, em Chã da Alegria, era única pessoa que adivinhou o sofrimento de

Salinda,acolheuseusegredoesetornoucúmplice.Eranacasadatiaqueosencontrosaconteciam.Denoite,depoisdascrianças,desconhecendooquesepassavacomamãe,dormirem,Salinda,noquartodestinadoaela,podiasedar,receber,setereserparaelamesmaeparamaisalguém.TiaVandueraguardiãdonovoesecretoamordeSalinda.SalindadesfaziaamalarelembrandooseuregressodeChãdaAlegria.Voltavapara

casa trazendo lembranças entalhadas namemória. Jogou algumas roupas no tanque;outras, ainda úmidas do desejo que brincava nos corpos amantes, para essas, elainventouumesconderijo.Queriaapreservaçãodotesouro,queaspeçasmofassemsobaaçãodotempoíntimodesuaesperança.Havia dois tempos fundamentais na vida de Salinda: um tempo em que o marido

estava envolvido e cada vez mais se diluía e o tempo em que o novo amor sesolidificava.Daíunsminutos,ohomemchegaria,poderiavir calmo,amigocomonosbonstemposdenamoroeaindadurantealgunsanosdecasada.Sim,tinhasidodele,olugar do cálido amor de adolescente. Foi ele a primeira pessoa, que a tornou apta eávidapara todososdemais amoresque elaveio a ter. Podia chegar tambémamargo,

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agressivo, infeliz, querendo arranhar a face da felicidade dela. Vinha então com asperguntas de sempre: o que ela fizera durante os anos em que, ainda solteiros,terminaramonamoroesesepararam?Quemeraohomem,paidaprimeirafilhadela?Porquedepoisdetantotempoafastada,elaaceitouvoltaresecasarcomele?Eassimaos poucos, Salinda foi percebendo que nunca deveria ter assumido novamente umarelação com ele. Reconhecia, entretanto, que antes, tanto na época do namoro dajuventudecomonadoprópriocasamento,eleshaviamexperimentadotemposfelizes.Amalaiasendodesfeitalentamenteenquantotemposdistintosamalgamavam-seem

suaslembranças.Aimagemdosfilhosvoltouàsuamente.Estavamdeférias,eamelhorcompanhiaparaelesnomomentoera,semdúvida,aTiaVandu.Ummistodetia-avó,mãeeamiga.Acasasemascriançastinhaosilêncioquebrincavamatreiramentenoscômodos. A ausência de qualquer som transportou-a novamente para os poucos diasvividosemChãdeAlegria.Nodiaanteriortinhalevantadocedoguardandonorostoenocorpoasmarcasdoencontrovividonanoite.Feliz,cantou,soltouavozpelasterrasdeChãdeAlegria.Ascriançasacordaramaosomdaave-mãequenãoestavapresanagaiola.Amaisvelha,menina sematurandomulher,olhouSalindanosolhos e sorriu.Ela recolheu o sorriso da filha e percebeu na atitude da menina uma possívelcumplicidade,queesperançosamenteguardoueaguardoupoderrealizarumdia.Distraída em desarrumar a mala e em reviver várias lembranças, Salinda não

percebeuoavançardashoras.Quandodeuporsijáeranoite.Estranhouosilêncioeaausência do marido. Ele não tinha ido buscá-la na rodoviária, mas, assim que elachegou,recebeuumtelefonemadeledizendoqueestavanacasadamãe.Elaadmirada,gostou.Depoisdelongosanos,iapoderficarsozinha.Haviaunscincoanos,desdequeeledesconfioudelacomumcolegadetrabalho,uminfernonarelaçãodosdoishaviaseinstaurado.Das perguntasmaldosas feitas demaneira agressiva surgiuumavigilânciaseveraeconstantequesetransformouemumaquaseprisãodomiciliar.Elarespondeucom um jogo aparentemente passivo. Fingiu ignorar. Era apenas uma estratégia desobrevivência.Ensaiavamaneirasdesedefenderaguardandoascriançascrescessemumpoucomais.Quandofoiiniciadoocárceredoméstico,ameninaqueelehaviaassumidocomofilhadesdeosonzemesestinhatrezeanos.Masporqueomaridoestavademorandotanto?Elacomeçavaaseatormentar.Oque

estavaportrazdaquelaausênciatãosilenciosa?Oquetinhaacontecido?Oqueestavaparaacontecer?Esuavidasecreta?Seráqueosegredohaviasidodescobertodealgumaforma? Salinda tinha viajado com as crianças. Sair com os filhos não levantavasuspeiçãoalguma.Equandoqualquerdesconfiançaacontecia,omaridoaplicavaassuastáticas interrogativas. As crianças eram conclamadas a falar exaustivamente sobre opasseio.Inocentementenarravamtudo,felizesporestaremconversandocomopai.Salinda se lembrou das ameaças do marido. Preferiu desacreditar que ele tivesse

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coragemsuficienteparaqualquerdecisão.Entretanto,nãosetranquilizou,algumacoisaestavaacontecendo.Levantouaflitaprocurandooscigarros.Buscouumacaixafósforosquedeixoucairnochão.Oligeirobarulhodacaixacaindonosoloretumboucomoumabomba atômica, e Chã Feliz se desenhou em suamente. Tinha ido ao circo com ascrianças em umdos dias que ficara na casa da tia. Estavamais entusiasmada do queelas. Bem cedo, quando a manhã ainda estava no nascedouro, ela gozouantecipadamente adoce afliçãoque sentiria à tarde aodeparar-se como equilibrista.Nocirco,omomentoqueSalindamaisgostava,eraodevigiaraacrobaciadobailarinonacordabamba.Naqueledia,quemseapresentavaeraumamulher.Salindavigiouospassos cambaleantes da moça tentando se aprumar sobre um tão fino e quaseimperceptívelfio.Elasabiaque,qualquerpassoemfalso,amulherestariachamandoamorte. Por ummomento pediu para que tudo se rompesse. E, como equilibrista, elamesmasentiuumgostodemortenaboca,maslogoserecuperoumordendonovamenteosabordavida.Seuhálitoaindaestavaimpregnadodoamorvividonanoiteanterior.Levantou-seacompanhandocomgostoojogodadançarinanafugaz linhadavida.Amulher cambaleava, titubeava no espaço. Ia cair? Recuperou-se em seguida, comumpasso-gesto redondo, próprio e justo, no fino fio estendido sob seus pés. O públicoaplaudiu.Vozesinfantisnorteavamaalegriadosdemais.Salindasaiuvitoriosadocirco.A ausência e o silêncio do marido continuavam. O telefone tocou. Levantou

preparada,sabiaqueeraele.Dooutroladodofio,comumavozforçosamentecalma,omarido anunciou que já sabia de tudo. Perguntou se ela havia esquecido de que osolhosdanoitepodemnãosersomenteestrelas.Outrosolhosexistem;humanosvigiam.E riu debochandododescuidodela e da tia.Disse aindaquenãoqueria vê-lanuncamais, mas era bom ela ir se preparando para uma guerra. Não ia matá-la. Não iacometer suicídio.Mas ia disputar ferrenhamente os filhos. Ele queria os filhos, todos.Ah, queria!... Salinda recebeu o golpe com a cabeça erguida. Sua voz não podiademonstrar nenhum temor. Batalhas viriam, piores, mais cruéis que as anteriores.Sentiuporémcertoalívio.Averdadetinhasidoapresentada,porpiorquefosseador.Oque fazer? Que cuidados e providências tomar nomomento? A quem recorrer? E ascrianças?Não,elanãoiadesistirdelas.Seusfilhoseramumaopçãoqueelafizeraparasempre.Sentiu-sedesesperadamentesó.QuisligarparaTiaVandu,ponderouentretantoque seria melhor esperar um pouco. À noite as crianças sempre ligavam para casaquandoestavamporlá.Agoramaisdoquenuncaprecisavadoabrigo-coraçãodavelha.Tentandoseequilibrarsobreadoreosusto,Salindacontemplou-senoespelho.Sabia

quealiencontrariaasuaigual,bastavaogestocontemplativodesimesma.Enolugarde sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto daamiga surgiupara afirmar a forçadeumamor entreduas iguais.Mulheres, ambas separeciam.Altas,negrasecomdezenasdedreadsalhesenfeitaracabeça.Ambasaves

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fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que umamergulhavanaoutra,osuaveencontrodesuasfendas-mulheresengravidavaasduasdeprazer.Eoquepareciapouco,muitosetornava.Oquefinitoera,seeternizava.Eumleve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, setornavaumacerteza,umapresençaincrustadanosporosdapeleedamemória.

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Luamanda

Luamandaconsertouovestidonocorpoobservandoporalgunsinstantesocoloeopescoço.Não,asuapelenãodenunciavaasquasecincodécadasquejáhaviavivido.Asmarcasnorosto,poucas,mesmoquandoobservadasdepertomentiamdescaradamentesobreasuaidade.Nuncaninguémhavialhedadomaisdequatrodécadasdevida.Umdiaolancemaisaltoqueelaorgulhosamenteaceitaraforade35anos.Sorriuaoouviraoferta. É, estava inteirinha, apesar de tantos trambolhões e acidentes depercurso emsuavida-estrada.Lua, Luamanda, companheira, mulher. Havia dias em que era tomada de uma

nostalgia intensa. Era a lua mostrar-se redonda no céu, Luamanda na terra sedesminlinguiatodinha.Eracomosealgoderretessenointeriordelaeficassegotejandobem na altura do coração. Levava a mão ao peito e sentia a pulsação da vidadesenfreada, louca.Taquicardia.Tardioseria,oumesmohaveriaumtempoemqueasnecessidadesdoamorseriamtodassaciadas?Elainiciaracedonabusca,menina,muitomenina ainda. Lembrava-se da primeira paixão. Sentimento esquivo, onde semisturavam revistas em quadrinhos, giz colorido, partilha de pão com salame e umepílogocrueldramatizadopelasurraquelevaradamãe.Oamordói?Naépocapensouqueadordeamoreratanta,porquetinhaonzeanoseumcorpo-coraçãopequeno.Edesejoucrescer.Entreumpeloeoutroquenasciamemsuasaxilasesobreoseupúbisensaioueexperimentousorrisos,acenosdistantes,piscardeolhos, trocadedesenhos,cartas mal-escritas borradas com os dedos trêmulos de amores platônicos. O amor éterramorta?Umdia,aostrezeanos,acamadogozofoiarrumadaemplenoterrenobaldio.Alua

espiavanocéudenunciandocomasualuzumcorpoconfusodeumaquasemenina,deuma quase mulher. Corpo-coração espetado por um falo, também estreante. Ummeninoque se fazia homemali, a inaugurar emLuamanda o primeiro jorro, fora desuasprópriasmasturbantesmãos.Eambosselambuzavamfestivamenteumnocorpodooutro.Luamandachorandodeprazer.Ogozo-dorentreassuaspernaslacrimevaginavanofalointumescidodomachomenino,emsuavezprimeiranocorpodeumamulher.Oamoréterremoto?Depois, em outro tempo, quando já acumulada de várias vivências, ela deparou-se

comumhomemqueviriainaugurarnovosritosemseucorpo.Umasensaçãoestranha,

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algocomoumjorro-d’águaouumtapainesperadocaiusobreorostodeLuamanda,aoavistá-lopelaprimeiravez.Ele sorriu.Ela sentiuo sorrisodesgrudandoda facedeleemordendoládentrodela.OcoraçãodeLuamandacoçouepalpitou,emboraacaradaluanemestivesseescancaradanocéu.Nãofaziamal,a luaviriadepois.Eveio,váriasvezes. Lua cúmplice das barrigas-luas de Luamanda. Vinha para demarcar o tempográvido da mulher e expulsar, em lágrimas amnióticas e sangue, os filhos: cinco.Navegação íntima de seu homem no buraco-céu aberto de seu corpo. O amor é umpoçomisteriosoondeseacumulamáguas-lágrimas?Depois,temposdepois,Luamandaexperimentavaoamorembraçossemelhantesaos

seus. Os bicos dos seios dela roçando em outros intumescidos bicos. No primeiroinstante, sentiu falta do encaixe, do membro que completava. Num ato deesquecimento, sua mão procurou algo ereto no corpo que estava diante do dela.Encontrou um falo ausente. Mas estava tão úmida, tão aquosa aquela superfíciemisteriosamenteplana,tãoabertaeigualasua,queLuamandaafundou-seemumdoceefeminilcarinho.Equandosesentiucobertaporpele,porosepelossemelhantesaosseus, quando a sua igual dançou com leveza a dança-amor com ela, saudade algumasentiu, vazio algum existiu, pois todas as fendas de seu corpo foram fundidas nasfemininas oferendas da outra. O amor se guarda só na ponta de um falo ou nascetambémdoslábiosvaginaisdeumcoraçãodeumamulherparaoutra?Luamanda, um dia, também amazona, montada então sobre um jovem. O moço

encantadoporaquelamulherqueelesabiamadura,masdeimprecisa idade.Ojovemamamentando-senotempovividodela.Luamandaserealimentando,reencontrandoasuajuventudepassadaeencantadapelavirilidadequaseinocentedele.EratãograndeajuvenilforçadomoçoaatravessarocorpodeLuamanda,queensandecida,àsvezes,quandoeleestavaláembaixonoburaco-perna,elapensavaqueointumescidobastãodele iapenetrarnoseucorpo,desde ládebaixoe lhevazarpelabocaafora.Oamornãocabeemumcorpo?Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamavamais um.

Aconteceutambémapaixãoavassaladorapelovelho,pelasrugasqueeletrazianapele,pelocansaçodele,pelacópulaqueelaesperavaeespreitavadurantediasedias.Eratãobomcontemplaraquelefaloadormecido,preguiçoso,sapientedetantocorpos-históriasdopassado.Eracomovivenciarumaduvidosaeinfielfé,sustentadaporumatemerosaesperançadequeomilagrenãoacontecesse.E foinocorpodovelhoqueelamelhorexecutou o ritual do amor. Pacientemente penteava ou ouriçava, com os dentes, osembranquecidospentelhosdocorpodele.Edenoite,depoisdemuitasnoites,quandoapedraenvergonhadae soturnasedesabrochavaemflor,amboscavavamoabismodoabismoencontrandoonadacomorealidadeúnicae,então,équeaconteciamasjurasdeamor.Eovelhovinhalento,calmo,cuidadoso,ciosodofundocaminhoqueeleteria

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deadentrar.Elatambémcalma,apenasretesandosuavementeosfinosvéussanguíneos,bordados nas paredes vaginais. Ele chegava e ela silenciando os gritos se quedavaembevecida diante do quase nada de um átimo de prazer. O amor é um tempo depaciência?SehaviaoamornavidadeLuamanda,tambémumgrandefardodedorcompunhaas

lembrançasdeseucaminho.Avaginaensanguentada,perfurada,violadaporumfinoespeto,armacovardedeumdesesperadohomem,quenãosouberaentenderasolidãoda hora da partida. E durante meses, o sangue menstrual de Luamanda, sangue demulherquenascenaturalmentede seuútero-almavinhamisturar-seaosangueepus,dádivasdolorosasqueelaganharadeumestranhofimamoroso.Epiordoqueadorfoiadormênciadeque foi atacada, em suaparte tãoviva,durantemeses a fio.Logoaliondeavida seentranhaedesentranha.AliondeLuamandahaviaparidoconcretasevitalícias lembrançasdesiedeoutrohomemqueelaamaratanto,nasdocesvisagensdeseusfilhos.Foiumtempoemqueprecisouexercitarapaciênciacomoseuprópriocorpo. Trancada em si, oumelhor, aberta para simesmo, com asmãos espalmadas eleves imaginava lenitivos carinhos. Chorando alisava, bulia, contornava uma cicatrizqueficaradesenhadaemumpontodapele,ondeospelosserarearamparasempre.Eraumpontoúnico,minúsculo,umimpertinentecalombo.Ali,entãoalisavaadore seuscontornos.Eraprecisoconvencer-senasuaflorestaespessaenegradequeoprazererauma via retornável, de que o gozo ainda era possível. O amor comporta variantessentimentos?Entre encontros e desencontros, Luamanda estava em franca aprendizagem. Uma

aprendizagemno,pordentroeforadocorpo.Acadaamorvivido,Luamandapercebiaquealiçãoencompridava,masqueaindafaltavatestes,arguições,sabatinasequeelasabiasóumpouquinhooutalveznemsoubessenadaainda.Haviaos filhos, trêsmulheresedoishomens.Todoseles já inauguradosnomistério

maiordavida.Amaisnovaestavaredondadacabeçaaospésguardandoeaguardandoa velha e nova espécie humana desafiadora do tempo. Estava em vésperas de parir.Luamanda,avó,mãe,amiga,companheira,amante,alma-meninanotempo.Alma-meninano tempo?Não,elanãoseenvergonhavade seunarcisismo.Eracom

ele que ela compunha e recompunha toda a sua dignidade. Encarou novamente oespelhoeselembroudeumpoema,emqueumamulhercontemplandoasuaimagemrefletida,perguntavaangustiadaondeéqueeladeixaraasuaoutraface,aantiga,poisnãosereconhecianaquelaquelheestavasendoapresentadanaquelemomento.Não, não era o caso de Luamanda, que se reconhecia e se descobria sempre.

Pouquíssimos fiosde cabelosbrancos avançavambuscandocriarum territóriopróprioem sua cabeça. Escolheu esses fios, puxou-os querendo destacá-los entre os demais.

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Imaginou-se com os cabelos brancos sobre o rosto negro. Seria bela como a VelhaDomingasládasGerais.Viajando no tempo-evento de sua vida, Luamanda, distraída, esqueceu-se do

compromisso para o qual se preparava no momento. Acordou, para o encontro queestava para acontecer naquela noite, quando ouviu os assobios de alguém queaguardava por ela lá fora. Apressou-se. Podia ser que o amor já não suportasse umtempodelongaespera.

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OcooperdeCida

O sol vinha nascendomolhado na praia de Copacabana. A indecisão do tempo, amanhã vagabunda nos olhos sonolentos dos moradores de rua, o trabalhoinconsequentedasondasemseu fazeredesfazer, tudo istocomprometiaocooperdeCida.Amoçafoidiminuindoopasso.Elaeraumadesportistanatural.Corriaotempotodoquerendotalvezvazarominguadotempodoviver.Eraprecisobuscarsempre.Oque tinha ficado para trás, o agora e o que estava para vir. De manhã, depois dacorrida,iaàpadaria,passavapelabancadejornaletraziaentreosdedosasnotíciasdodiaqueerammallidas.Rapidamente,graçasaocursodeleituradinâmicaquefizeraháunsanosatrás,corriaosolhospelasmanchetestentandoapreenderosacontecimentos.Emcasa,corriaaobanho,aoquarto,àsala,àcozinha.Ferviaoleite,arrumavaamesa,voltava ao quarto, avançava sobre o guarda-roupa e atracava-se ao uniforme detrabalho, logodepois já estavana sala fechandoaporta e indo.Voavapelas escadas,poiso elevador era lento eno constante cooperganhavaa rua.Corria sobre a cordabamba,invisíveleopressoradotempo.Eraprecisoavançarsempreesempre.Elaeravencedoradeoutrasdistâncias.Jásaltaramontanhasedivisasdeumtempo-

espaço que ficara para trás. Como era mesmo a sua cidade natal? Não sabia bem.Lembrava-se,entretanto,queaspessoaseramlentas.Andavam,falavameviviamde-va-gar-zi-nho.Avidaeradeumalerdezatal,quealgumasmulheresesqueciam-sedeparirseus rebentos. A barriga crescia até aos onze meses. As crianças nasciam moles,desesperadamente calmas e adiavam indefinidamente o exercício de crescer. Cidadesde pequena guardava um sentimento de urgência. Seu corpo aos nove anosmaturou-seno sanguemensal demulher.As suas brincadeiras prediletas, aindanessaépoca,eramadeapostarcorridacomascriançaseadedesafiargrandesepequenas,notempogastoparaexecuçãodequalquertarefa.Venciasempre,utilizandoumtempodiminutoemrelaçãoatodos.Aosonzeanos,CidafoipelaprimeiravezaoRiocomamãe,emviagensdenegócios.

Amãereclamavadavelocidadedoscarros,doamontoadoedacorreriadaspessoas,dovaievemdetodos.Cidabebeuenlouquecidaozigue-zaguedoscarros,daspessoas,dospés quase voantes dos pedrestes desafiando, vencendo e encontrando a morte.Descobriunoturbilhãodacidadeumjogodecaleidoscópioformadoporpeças,gente-máquinas se cruzando, entrecortando braços, rodas, cabeças, buzinas,motos, pernas,

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pés e corpos aromatizados pela essência da gasolina. Cida descobriu outras pessoastambémportadorasdaurgênciadevidaqueelatraziaemsi.Enaquelemomentooptouporretornarumdiaparaficarali.Tinhamrazão,acidadeeramaravilhosa.Aosdezesseteanos,umemprego,oprimeiro,arranjadoporumtio,permitiuqueela

viesse para a capital. A vida seguia no ritmo acelerado de seu desejo. Trabalho,trabalho, trabalho.O dia entupido de obrigações. A noite festejada por encontros derápidos gozos.Os amores tinhamde ser breves.Cursos, estudos somente aqueles queproporcionassem efeitos imediatos. Nada de sala de aula durante anos e anos e deleiturasinfinitas.—Aprendainglêsemseismeses.Garantimosasuaaprendizagememcentoeoitentadias.—Nadadegastarotempocurtoeraro.Éprecisocorrer,parachegarantes,conseguiravaga,olugaraosol,pegarafilapequenanobanco,encontraralavanderiaaberta,testemunharametadedamissa.Opadreeralentoeoritualtambém.Assistiaametadeda liturgia,pelomenosnão ficavacomoremorso inteiro.Nãoperderamissaaos domingos foi a única recomendação que amãe fizera. Alguns hábitos ela haviadeixado para trás, outros reforçara e havia adquirido alguns novos. Passou a beberdiariamenteumrefrigerante,comotambémcompravatodososdiasumjornal,quenamaioria das vezes nem lia. Aumentara vertiginosamente o hábito de correr. Todas asmanhãs,ospésdeCidapisavamrápidoocalçadãodapraia. Iamevinhamemtoquesrápidos e furtivos, como se tivessem envergonhados dos carinhos que o solo pudesselhes insinuar no decorrer damarcha. Amoça imprimiamais emais velocidade a sualouca e solitáriamaratona.Corria contra ela própria, não perdendo e não ganhandonunca. Mas naquele dia, a semidesperta manhã inundava Cida de um sentimentopachorrento,deumdesejodequererparar,denãoquerer ir. Semperceber,permitiuumalentidãoaosseuspassosepelaprimeiravezviuomar.Aprincípioexperimentouumaprofundamonotoniaobservandoosmovimentosrepetidosemaníacosdasondas.Comoanaturezarepetiaséculoseséculos,portodoosempre,osmesmosatos?Odiaraiar, a noite cair, o sol, a lua... Omarmagnânimo lavando repetidamente, a curtosintervalosaareiacircundante.Tudomonótono,certoeprevisível.Tãoprevisívelcomoos principais atos dela: levantar, correr, sair, voltar. Contemplou os rostos quepassavam,conheciatodosderelance.Todasasmanhãstopavacomaquelasfacessuadasdiante de si. Assustou-se. Percebeu que não estava correndo. Estava andando emcâmera lenta, quase. Sentiu a planta dos pés,mesmo guardadas nos tênis, tocando osolo.Elaestavaandando,parando,andando,parando,parando.Todososseusmembrosestavam lassos, só o coração batia estonteado. Cida levou a mão ao peito. Sentiu ocoração e os seios. Lembrou-se então que era uma mulher e não uma máquinadesenfreada, louca, programada para corrercorrer. Envergonhou-se dos orgasmospremeditados,cronometradosquevinhacultivandoatéali.Elanãoseentregavanuncaerepudiavaqualquergestodeabandonoquealguémpudesseterdiantedela.Acorda

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bambadotempo,varalnoqualestavaestendidaavida,erafrágil,podendoseromperaqualquerhora.Erapreciso,pois,umconstanteestadodealerta.Omarmovimentou-senovamente num gesto aliciante e convidativo. Cida abandonou o calçadão eencaminhou-separaaareia.Sentiunecessidadedearrancarostênisquelheprendiamospésedeixouaquelascorrentesabandonadasalimesmo.Afundouospésnaareiaecontemploumaisumavezomar.Umnadadorbrincavarepetidasvezescomosbraçoseacabeçanaágua.Cidaaguardoucá foradesejandoansiosaqueele saísse.Elaqueriasaberdotempodele,barganharmomentos,pedirumtempoemprestadotalvez.Comoumapessoa,emplenaterça-feira,àsseisecinquentaecincodamanhã,podiaestartãotranquilamente brincando no mar? Deveria ser extremamente rico. Viver de juros.Lembrou-se dos mendigos que constantemente cruzavam o seu caminho. Eramextremamentepobres.Ouo temponãosemediacommoeda,ouashoras,osdias,osanosnão seriammedidas justas do tempo. Ela estava comvinte enove anos. Pouco?Muito?Medir,comparar,aquilatarosanosemrelaçãoaque?Haveriaumtempooutroamortecidonocoraçãodotempo?Onadadorcontinuavacomasuabrincadeira.Cidadesejouselançarnomaràprocuradealgoqueelanãoencontravacáfora.Dizemqueofundodomarabrigariquezasemistérios.Ela lembrou-seque jápassavadahoradevoltarparacasa.Eraprecisocontinuar suasações rotineiras, incorporar-senovamenteaocotidiano.Àsseteequarentaecinco,Pedroacionariaabuzinadocarroemfrenteaoprédiodela.Jápronta,desceriarapidamenteaescada,eantes,bemantesdasoitoetrinta, se o trânsito estivesse bom, eles aportariam no escritório da Rio Branco. Erapreciso ir, correr mais ainda. Havia maculado o tempo com o olhar e a esperapecaminosa diante do mar. O banhista tranquilo insistia em seu jogo. Cida veiovoltando, entretanto lentamente.Outros corredores cá no calçadão iam e vinham.Omar insistia emsemostrardiantedela. Sóentão,naqueledia, elaperceberaomar.Ecomo tudo era desmesuradamente belo. Atravessou calmamente a rua, não correu.Alguns mendigos saiam dos bares com copos plásticos cheios de café. Tomavam olíquidoetinhamaexpressãoentorpecidadesono,fome,descompromissoeabandono.Qualseriaamedidadetempoparaeles?Emmeioaessespensamentos,Cidachegouàportadeseuprédio.Pedroforadocarropreparava-separaentrareaodeparar-secomela,bradouassustadoolhandoparaamoçadacabeçaaospés:Oqueacontecera?Porqueela estava chegando do cooper naquele instante? Fora assaltada?Levaram-lhe os tênis? Eraprecisosubirrápido,voar,elaestavaatrazadérrima.Cida escutava tudo calada. Pedro gesticulava e falava rápido como se estivesse

irradiandoumapartidadefutebol.Lembrou-sedequequandoeracriança,umadesuasdiversõeseracolaroradinhonoouvidoeficarouvindoanarraçãodofutebol.Tinhaaimpressãodequeafaladolocutoreramaisrápidadoqueabolanospésdosjogadores.Pareciaqueeraapalavradohomemqueempurravaojogo.Pedrobradava,bradava.O

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tempoestavapassandoeelacontinuavaaliapalermada.Oqueestavaacontecendo?SóentãoCidapercebeuomotivode afliçãodo amigo. Ela estava chegando atrasadadocooper.Tinhacomprometido,extrapoladootempo.Oquehaviaacontecido?Não,nãotinhaacontecidonada.Nãotinhasidoassaltada.Apenasdemoraramais,muitomaisdoque o costume. Se distraíra, esquecera das horas. Ele poderia ir, já estava bastanteatrasado.Hojeelanão iria trabalhar,queriapararumpouco,nãofazernadadenadatalvez. E só então falou significativamente uma expressão que tantas vezes usara eescutara.Masfaloutãobaixinho,comosefosseummomentoúnicodeumamisteriosaeprofundaprece.Elaiadarumtempoparaela.

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Zaítaesqueceudeguardarosbrinquedos

Zaíta espalhou as figurinhasno chão.Olhoudemoradamentepara cadaumadelas.Faltavauma,amaisbonita,aqueretratavaumagarotinhacarregandoumabraçadadeflores.Umdoceperfumeparecia exalarda figurinhaajudandoa comporominúsculoquadro. A irmã de Zaíta hámuito tempo desejava o desenho e vivia propondo umatroca. Zaíta não aceitava. A outra, com certeza, pensou Zaíta, havia apanhado afigurinha-flor.Eagora,comofazer?Nãopoderiafalarcomamãe.Sabianoquedariaareclamação.Amãeficariacomraivaebaterianasduas.Depoisrasgariatodasasoutrasfigurinhas,acabandodevezcomacoleção.Ameninarecolheutudomeiosemgraça.Levantou-se e foi lá no outro cômodo da casa voltando com uma caixa de papelão.Passoupelamãe,quechegavacomalgumassacolasdosupermercado.AmãedeZaíta estava cansada.Tinha trinta equatro anos equatro filhos.Osmais

velhos já estavam homens. O primeiro estava no Exército. Queria seguir carreira. Osegundotambém.Asmeninasvierammuitotempodepois,quandoBeníciapensavaquenem engravidaria mais. Entretanto, lá estavam as duas. Gêmeas. Eram iguais,iguaizinhas.Adiferençaestavanamaneirade falar.Zaíta falavabaixoe lento.Naíta,altoerápido.Zaítatinhanosmodosumquêdedoçura,demistériosedesofrimento.Zaíta virou a caixa, e os brinquedos se esparramaram, fazendo barulho. Bonecas

incompletas,chapinhasdegarrafas,latinhasvazias,caixasepalitosdefósforosusados.Mexeu em tudo, sem se deter em brinquedo algum. Buscava insistentemente afigurinha,emborasoubessequenãoaencontrariaali.Nodiaanterior,haviarecusadofazeratrocamaisumavez.Airmãofereciapelafigurinhaaquelabonecanegra,aquesófaltavaumbraçoequeeratãobonita.Davaaindaosdoispedaçosdelápiscera,umvermelho e um amarelo, que a professora lhe dera. Ela não quis. Brigaram. Zaítachorou.Ànoitedormiucomafigurinha-florembaixodotravesseiro.Demanhãforamparaescola.Comooquadrinhodamenina-flortinhasumido?Zaítaolhouosbrinquedoslargadosnochãoeselembroudarecomendaçãodamãe.

Ela ficava brava quando isto acontecia. Batia nas meninas, reclamava do barracopequeno,davidapobre,dosfilhos,principalmentedosegundo.UmdiaZaítaviuqueoirmão,osegundo,tinhaosolhosaflitos.Notouaindaquando

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ele pegou uma arma debaixo da poltrona em que dormia e saiu apressado de casa.Assimqueamãechegou,Zaítaperguntou-lheporqueo irmãoestava tãoaflitoe seaarmaeradeverdade.Amãechamouaoutrameninaeperguntou-lheseelatinhavistoalguma coisa.Não,Naítanão tinhavistonada.Benícia recomendou entãoo silêncio.Que não perguntassem nada ao irmão. Zaíta percebeu que a voz damãe tremia umpouco. De noite julgou ouvir alguns estampidos de bala ali por perto. Logo depoisescutouospassosapressadosdoirmãoqueentrava.Elaseachegoumaisparajuntodamãe. A irmã dormia. Amãe semexeu na cama várias vezes; em um dadomomentosentouassustada,depoissedeitounovamentecobrindo-setoda.Ocalordoscorposdamãeedairmãlhedavamcertoconforto.Entretanto,nãoconseguiudormirmais,tinhamedo,muitomedo,eamãelhepareceuterpassadoanoitetodaacordada.Zaíta levantou e saiu, deixando os brinquedos espalhados, ignorando as

recomendaçõesdamãe.Alguns ficaramdescuidadosamenteexpostospelocaminho.Alinda boneca negra, com seu único braço aberto, parecia sorrir desamparadamentefeliz.Ameninaestavapoucoseimportandocomostapasquepudessereceber.Queriaapenasencontrarafigurinha-florquetinhasumido.Procuroupelairmãnosfundosdacasae,desapontada,sóencontrouovazio.Amãe ainda arrumavaospoucosmantimentosnovelho armáriodemadeira. Zaíta

tevemedo de olhar para ela. Saiu sem amãe perceber e bateu no barraco deDonaFiinha,ao lado.A irmãnãoestavaali também.OndeestavaNaíta?Ondeelahaviasemetido?Zaítasaiudecasaemcasaportodoobeco,perguntandopelairmã.Ninguémsabiaresponder.Acadaausênciadeinformaçãosuamágoacrescia.Foiandandojuntocomadesesperança.Tinhaopressentimentodequeafigurinha-flornãoexistiamais.OirmãodeZaíta,oquenãoestavanoExército,masqueriaseguircarreira,buscava

outraformaelocaldepoder.Tinhaumquererbemfortedentrodopeito.Queriaumavidaquevalesseapena.Umavidafarta,umcaminhomenosárduoeobolsonãovazio.Viaosseustrabalharemeacumularemmisérianodiaadia.Opaideleedoirmãomaisvelhogastavaseupoucotempodevidacomendopoeiradetijolos,areia,cimentoecalnas construções civis. O pai das gêmeas, que durante anos morou com sua mãe,trabalhavamuito e nunca trazia o bolso cheio. Omoço viamulheres, homens e atémesmo crianças, aindameio adormecidos, saírem para o trabalho e voltarem pobrescomo foram, acumulados de cansaço apenas. Queria, pois, arrumar a vida de outraforma.Haviaalgunsquetrabalhavamdeoutromodoeficavamricos.Erasóinsistir,sóter coragem. Sódominar omedo e ir adiante.Desdepequeno ele vinha acumulandoexperiências. Novo, criança ainda, a mãe nem desconfiava e ele já traçava o seucaminho. Corria ágil pelos becos, colhia recados, entregava encomendas, edisplicentemente assobiava uma música infantil, som indicativo de que os homensestavamchegando.

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Zaíta andava de beco em beco à procura da irmã. Chorava. Algumas pessoasconhecidasperguntavamoporquêdeelaestartãolongedecasa.Ameninaselembrouda mãe e da raiva que ela devia estar. Ia apanhar muito quando voltasse. Não seimportoucomaquela lembrança.Naquelemomento,elabuscavanamemóriacomoodesenhodamenina-flortinhanascidoemsuacoleção.Afigurinhapodiatervindoemumdaquelesenvelopesqueoirmão,osegundo,àsvezescompravaparaela.Quemsabevieranomeiodasduplicatasqueamãeganhavadafilhadapatroa,ouaindafrutodealgumatrocaqueelafizeranaescola?Maspodiasertambémpartedeumsegredoqueelanãohaviacontadonemparasuaigual,aNaíta.Afigurinhapodiaserumadaquelasdez,queelahaviacompradoumdiacomumamoedaquetiraradamãe,semqueelapercebesse.Zaítapormaisqueseesforçasse retomandoas lembranças,nãoconseguiaatinarcomoafigurinha-flortinhasetornadosua.AmãedeZaítaguardourapidamenteospoucosmantimentos.Teveasensaçãodeter

perdidoalgumdinheironosupermercado.Impossível,levaraametadedosalárioenãoconseguiria comprarquasenada.Estavacansada,mas tinhadeaumentaroganho. Iaarranjartrabalhoparaosfinaisdesemana.Oprimeirofilhonuncapediadinheiro,masela sabia que ele precisava. E sem que o segundo soubesse, Benícia colocava unstrocadinhos debaixo do travesseiro para ele, quando ele vinha do quartel. Haviatambémoaluguel,ataxadeáguaedeluz.Haviaaindaairmãcomosfilhospequenosecomohomemqueganhavatãopouco.AmãedeZaíta,àsvezes,chegavaapensarqueosegundofilhotinharazão.Vinhaa

vontadedeaceitarodinheiroqueeleofereciasempre,masnãoqueriacompactuarcomaescolhadele.Orgulhosamente,nãoaceitavaqueelecontribuíssecomnadaemcasa.Estava,porém,chegandoàconclusãodequetrabalhocomoodelanãoresolvianada.Masoquefazer?Separasse,afomeviriamaisrápidaevorazainda.Benícia,aodarporfaltadasmeninas,interrompeuospensamentos.Nãoouviaasvozesdasduasháalgumtempo.Deviamestarmetidasemalgumaarte.Sentiucertotemor.Veioandandoaflitadacozinhaetropeçounosbrinquedosesparramadospelochão.Apreocupaçãoanteriorsetransformouemraiva.Quemerda!Todososdiastinhaquefalaramesmacoisa!Ondeasduashaviamsemetido?Porquetinhamdeixadotudoespalhado?Apanhouabonecanegra,amaisbonitinha,aquesófaltavaumbraço,earrancouooutro,depoisacabeçaeaspernas.Empoucosminutosabonecaestavadestruída;cabelosarrancadoseolhosvazados.Aoutramenina,Naíta,queestavanobarracoaolado,escutandoosberrosdamãe, voltou aflita. Foi recebida com tapas e safanões. Saiu chorando para procurarZaíta.Tinhaduas tristezasparacontara sua irmã igual.HaviaperdidoumacoisaqueZaíta gostava muito. De manhã tinha apanhado a figurinha debaixo do travesseiro.Queriasentiroperfumedeperto.Eagoranãosabiamaisondeestavaaflor...Aoutra

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coisaeraqueamamãeestavabravaporqueosbrinquedosestavamlargadosnochãoederaivaelahaviaarrebentadoaquelabonequinhanegra,amaislinda...Nosúltimos temposna favela, os tiroteios aconteciamcom frequência e a qualquer

hora. Os componentes dos grupos rivais brigavam para garantir seus espaços efreguesias.Haviaaindaoconfrontoconstantecomospoliciaisqueinvadiamaárea.OirmãodeZaítalideravaogrupomaisnovo,entretanto,omaisarmado.Aáreapertodesuacasaelequeriasóparasi.Obarulhosecodebalassemisturavaàalgazarrainfantil.Ascriançasobedeciamàrecomendaçãodenãobrincaremlongedecasa,masàsvezessedistraíam.E, então,nãoexperimentavamsomente asbalas adocicadas, suaves,quederretiamnaboca,masaindaaquelasquelhesdissolviamavida.Zaítaseguiadistraídaemsuapreocupação.Maisumtiroteiocomeçava.Umacriança,

antesde fecharviolentamentea janela, fezumsinalparaqueela entrasse rápidoemumbarracoqualquer.Umdos contendores, aonotar a presençadamenina, imitouogesto feito pelo garoto, para que Zaíta procurasse abrigo. Ela procurava, entretanto,somente a sua figurinha-flor... Emmeio ao tiroteio amenina ia. Balas, balas e balasdesabrochavamcomofloresmalditas,ervasdaninhassuspensasnoar.Algumasfizeramcírculosnocorpodamenina.Daíumminutotudoacabou.Homensarmadossumirampelosbecossilenciosos,cegosemudos.Cincoouseiscorpos,comoodeZaíta, jaziamnochão.A outra menina seguia aflita à procura da irmã para lhe falar da figurinha-flor

desaparecida.Comofalartambémdabonequinhanegradestruída?Osmoradoresdobecoondehaviaacontecidootiroteioignoravamosoutroscorpose

recolhiam só o da menina. Naíta demorou um pouco para entender o que haviaacontecido. E assim que se aproximou da irmã, gritou entre o desespero, a dor, oespantoeomedo:—Zaíta,vocêesqueceudeguardarosbrinquedos!

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Dilixão

DiLixãoabriuosolhossobamadrugadaclaraquejásetornavadia.Apalpouumladodorosto,sentindoadiferença,mesmosemtocarooutro.Odentelatejouespalhandoadorpor todoo céudaboca.Passou lentamentea línguanocantodagengiva. Sentiuqueaboladepusestavainteira.Ocompanheirodequarto-marquiselevantouumpoucoocorpoeentreosonoolhou

espantado,meioadormecido,paraele.DiLixãoencheurápidoabocadesalivaedeuuma cusparada no rosto domenino. O outro, num sobressalto, acordou de seu sonotodo instinto de defesa. Pulou inesperadamente, acabando de se levantar. Di Lixãoacompanhou o gesto raivoso do menino, levantando também. Numa fração desegundosrecebeuumpontapénassuaspartesbaixas.Abaixoudesesperado,segurandoos ovos-vida. E foi se encolhendo, se enroscando até ganhar a posição de feto. Pelaprimeira vez, depois de tudo, se lembrou damãe. Ainda bem que aquela puta tinhamorrido!Elesabiaquemhaviamatadoamulher.Tinhavistotudodireitinho.Napolícianegouqueestivesseporperto,quesuspeitassedealguém.Depoisdetrêsouquatroidasà delegacia, os policiais acabaram por deixá-lo em paz. Ele sabia quem. Poucoimportava.Quedeixassemohomemsolto.Nãogostavamesmodamãe.Nenhumafaltaela fazia.Nãoaguentavaa falaçãodela.Di,vaiparaa escola!Di,não fala commeushomens!Di,eunasciaqui,vocênasceuaqui,masdáumjeitodemudaroseucaminho!Putasafadaqueviviaquerendoensinaravidaparaele.Depois,poucoadiantava.Zonaporzona,ficavaalimesmo.Láfora,ooutromundotambémeraumazona.Sabiaquemtinhamatadoamãe.Edaí?Oqueeletinhacomisso?AspartesdebaixodeDiLixãodoíam.Odentecontinuavaa latejar.Seráqueele ia

morrer? Será que a dor de cima ia se encontrar com a dor de baixo? Será que oencontroseriaumadorsó?Pensounocolegadequarto-marquise.Omeninohaviasidomaisespertodoqueele.

Fugira.Ganharaomundo.Játinhabastantetempoqueosdoisdividiamaqueleespaço.Dediaperambulavampelarua,cadaqualnoseuganho.Encontravam-sealinomeiodanoite.Àsvezesconversavammuito.Falavamdetudo.Atédeumpai,menosdamãe.DiLixãoachavaqueahistóriadamãedooutrodeviaparecercomadasuamãe.Elenãosabiasegostavaounãodomenino.Tinhamquaseamesmaidade.Omenino,apesarde

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pequeno, tinha quatorze anos. Ele, no mês anterior, num dia qualquer, tinha feitoquinze.OdentedeDiLixãolatejavacompassadamente.Eleeraumadorsó.Asdoreshaviam

seencontrado.Doíaodente.Doíamaspartesdebaixo.Doíaoódio.Sentiu vontade demijar. Quando ele era pequenomijava nas calças. Suamãe lhe

batiasempreporisso.Umdia,ela,numacrisederaiva,aoveromeninotodoensopadodemijo,puxouabimbinhadeleatéquasearrebentar.Ediziaparaeleaosberrosqueaquiloeraparamijar,paramijar,mijar,mijar...AdorqueDiLixãosentiunaquelediavoltavaagora.Oqueeraaquilo?Naquelediaa

mãe havia puxado a bimbinha dele. Agora ele era grande, experimentado na vida.Tinha levadoumchuteno saco,nosovos. Edoíapara cacete.A vontadedemijar seconfundia com a dor. Naquela época, pensava que a bimbinha só servia paramijar,mijar,mijar.Agoranão! Tinha crescido, a bimbinha se transformado empau, cacete.Há muito tempo havia descoberto que bimbinha grande, em pé, tinha outro fazer.Tinhaexperimentadoistonosquartosdaquelasputas.Foitambémnoquartoaoladododesuamãe,comumameninada idadedele,que

comoelehavianascidoali,queexperimentouoprimeiroprazeradois.Quandoacaboutudo, quasemorreu de vergonha. Estava na cama ainda e não conseguia parar. Nãoconseguiapararomijo.Mijou-setodo.Di Lixão estava com vontade de mijar. Queria levantar e não podia. Ia soltar nas

calças. Não podia fazer. A mãe, aquela puta, era bem capaz de viver de novo e vircastigá-lo.Apalpou,meiosemjeitoeenvergonhado,aspartesdoídas.Odente latejoufundo no profundo da boca. Dor de dente matava? Não sabia. Sabia porém que iamorrer.Masistotambém,comoamortedamãe,poucaimportânciatinha.Ondeestavaodesgraçadodooutro?Sónãoqueriamorrertãosozinho.Os primeiros trabalhadores passavam apressados. Di Lixão teve vontade de chamar

um deles, mas silenciou o desejo na garganta. O sol anunciava o dia quente. Ele,entretanto, tremiade frio.Sentiaumvazionacabeça,nopeitoenoestômago.Tinhaumpoucodefome.Haviaumasduassemanasqueaqueletumorzinhonaboca,juntoaodente,doíaqueelenãopodiacomerquasenada.Fez um esforço. Sentou. Pegou a bimbinha dolorida e fez xixi. Assustou-se. Estava

urinando sangue. Passou a línguano cantodaboca.O carocinho latejou.Numgestocoragem-desesperolevouodedoemcimadaboladepuseapertou-acontraagengiva.Cuspiu pus e sangue. Tudo doía. A boca, a bimbinha, a vida... Deitou novamente,retomando a posição de feto. Já eram sete horas damanhã.Um transeunte passou eteve a impressão de que o garoto estavamorto. Um filete de sangue escorria de suaboca entreaberta. Às nove horas o rabecão da polícia veio recolher o cadáver. O

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meninoeraconhecidoalinaárea.Tinhaamaniadechutaroslatõesdelixoeporissoganharaoapelido.Sim!AqueleeraoDiLixão.DiLixãohaviamorrido.

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Lumbiá

Lumbiá trocourapidamentea latadeamendoimpelacaixadechicletescoma irmãBeba. Fazia um bom tempo que estava andando para lá e para cá, e não haviaconseguidovendernada.Quemsabeteriamaissorteseoferecessechicletes?Esenãodessecertotambém,procurariaocolegaGunga.Juntospoderiamvenderflores.Amãenãogostavadaquelaespéciedemercadoria.Diziaqueflorencalhadaeraprejuízocerto.Sempre amanheciammurchas. Amendoim e chicletes não. Lumbiá gostava da floridamercadoriaemseusbraços.Tinhaatéumestiloprópriodevenda.Ficavaobservandooscasais.Omomentopropícioparaempurraroprodutoeraquandoocasalpartiaparaobeijonaboca.Eleassistiaasbocasdescolaremparaofereceraflor.Àsvezesocasalsedesgarrava,masnamesmahora,semrespirar,oparsefundiadenovo.Lumbiáficavaporpertoolhandodesoslaioparaamulher.Equandonotavaqueelaestavatodamolee o homem derretido, o menino se punha quase entre os dois, com a flor em riste,impondoamercadoria.Ocalientenamoradoenfiavaamãonobolso,tiravaodinheiroepegavaarosa,recomeçandoocarinho.Àsvezes,tãodistraídonobeija-beijaestavaocasal que a rosa não era colhida das mãos do menino. E o troco honestamenteoferecido ao freguês cansava de esperar namão do vendedor. Lumbiá calculando olucro da venda sorria feliz. Ás vezes, omenino usava outro ardil para impulsionar avenda.Chegavaelogiandoamulher,diziaqueelaeralindaequeosdoisiamsermuitofelizes.Haviacasaisquerespondiam:

—Será?Estamosterminandoagora!

Omeninonãosedavaporvencido.Muitosériorespondia:

—Nãohágrandeamorsemproblemas!Umaflor,umarosanadespedidadevocês...

Vencia sempre. Feliz, Lumbiá e o amigo Gunga depois riam do beijo babado dohomem e da mulher. Ele sabia também que não era só homem e mulher que sebeijavam.Haviaoscasais,emqueaduplaeraformadaporsemelhantes.Homemcomhomem.Mulhercommulher.Essescasaisnãosebeijavamempúblico.Àsvezesfaziamum carinho rápido nasmãos do outro. Raramente compravam rosas. Asmulheres se

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aventuravammais. Compravam e ofertavam para a amiga presente. Lumbiá gostavamuitodeaproximardoscasaissemelhantes.Gostavadatrocacarinhosaqueeleàsvezesassistia entre esses pares. O beijo era depositado nas mãos, que escorregavamlevementenadireçãodapalmadaoutrapessoa,ousubstituídopelalevezadeumaflor-sorrisoqueseabrianaintençãodeumlábioaoutroLumbiátinhaaindaoutrostruques.Sabiachorar,quandoqueria.Escolhiaumamesa

qualquer, sentava, abaixava a cabeça e se banhava em lágrimas. Sempre começavachorando por safadeza,mas emmeio às lágrimas ensaiadas, o choro real, profundo,magoado se confundia. Nas histórias, que inventava nos momentos de choro paracomoveraspessoas,tinhasempreumadissimuladaverdade.UmdadorealdavidadeleoudoamigoGunga se confundia coma invençãodomenino.E enquantochoravaopranto ensaiado para comover os compradores, contava ora sobre a surra que havialevado da mãe, ora pela mercadoria que estava ficando encalhada (e ele precisavaretornarparacasacomumbomresultadodevenda),ouainda,pelodinheiro,frutodeseutrabalho,quetinhasidotomadoporummeninomaior...Eaospoucos,emmeioàsverdades-mentirasquetinhainventado,Lumbiáiasedescobrindorealmentetriste,tãotriste,profundamentemagoado,atormentadoemseupeito-coraçãomenino.Havia, porém, uma ocasião em que nada ameaçava os dias gozosos domenino: o

adventodoNatal. A cidade se enfeitava com luzes que brotavamde todos os cantos.Lâmpadas como fogueiras incendiárias ateavam um falso fogo iluminário sobre asfachadas dos prédios, sobre as árvores, das ruas, dos jardins públicos e privados.Entretanto, não era esse pirotécnico espetáculo que seduzia Lumbiá. Nem opersonagemPapaiNoelgordoefeliz,comoseusorrisoenvidraçadodentrodasvitrines.Dasárvoresdenatal,nãogostavadospinheiros iluminadosecoloridos.Dospresentesexpostos nas vitrines, principalmente os embrulhados, tinha vontade de apanhá-los eamassá-los.Ficavairritado,sabiaquetudoeramcaixasvazias.SóhaviaumacoisaqueomeninogostavanoNatal.Umúnicosigno:opresépiocomaimagemdeDeus-menino.Todososanos,desdepequeno,emsuasandançaspelacidadecomamãeemaistardesozinho, buscava de loja em loja, de igreja em igreja, a cena natalina. Gostava dafamília, da pobreza de todos, parecia a sua. Da imagem-mulher que era a mãe, daimagem-homem que era o pai. A casinha simples e a caminha de palha do Deus-menino, pobre, só faltava ser negro como ele. Lumbiá ficava extasiado olhando opresépio,buscandoeencontrandooDeus-menino.Houveumanoemqueumanotíciacorreu:alojaCasarãoIluminado,umatradicional

casa especializada em vendas de iluminárias, abajures, etc., ia armar um presépio nointeriordaloja.Seriaomaioreomaisbonitodacidade.Efoi.Lâmpadaspiscas-piscas,estrelas pendentes por fios finos e quase invisíveis iluminavam magicamente apaisagem, como se fosse um céu aberto sobre amanjedoura em que estava o Deus-

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menino.Animaispastavammansamentesobrea relva, riosamenoscortavamosvales,quecircundavamacabananatalina.OsReisMagos,osdoisbrancos,caminhavamumpouco abaixoda estrela-guia.OReiNegro, aquele queparecia como tio de Lumbiá,caminhava sozinhoumpouco atrás,mas compassosdequem tinha a certezadequeiria chegar. A mãe e o pai de Jesus piedosos resguardando o Deus-menino. Toda acidadecomentavaabelezaeasemelhançadopresépiocomacenabíblicaquenarraonascimento de Jesus. Lumbiá atento ouvia todos os comentários e aguardava aoportunidadedevisitaraBeléminstaladanointeriordalojaCasarãoIluminado.Havia,entretantoumproblema.Estavaproibidaaentradadecriançassozinhaseparaeleeraquaseimpossívelesperarpelodiaemqueamãepudesselevá-lo,acompanhá-loatélá.NasemanaanteriorGunga,Beba,Beta,eoutrosjáhaviamfeitoalgumastentativasvãs.Enquanto isso, o tempo corria. Lumbiá já tinha visto todos os presépios das

redondezas.EmcadaumseucoraçãobatiadescompassadamentequandofitavaoDeus-menino. Tinha feito várias tentativas de entrar no Casarão, o vigilante vinha e oenxotava.Omeninonãodesistia, ficavarondandode longe,adivinhandoabelezadetudo, do outro lado da calçada. Era um entra-e-sai intenso. A televisão e um jornaltinhamfaladosobreopresépio,quetinhasidofeitoporumgrandeartista.Odiacaminhavaparaseisdatarde,vinteetrêsdedezembro.Omeninoaguardava

alidesdeasnovedamanhã.Emsuaviagemcostumeiradosubúrbioparaocentrodacidade,sedistancioudeGungaedairmã.Tinhafloresnasmãos,rosasamarelas.Haviacombinado como amigoquevenderiam flores,mas aquelas eledariaparaoMeninoJesusetambémporiaalgumasnasmãosdoReiBaltasar.Faziafrio,muitofrio,eraumdia chuvoso. Tinha a roupa colada sobre o frágil corpo a tremer de febre. A loja jáestava para fechar. As vendas tinham cessado desde o dia anterior. O CasarãoIluminadoabriranaquelediasóparavisitaçãopúblicaaopresépio.Precisavachegaratélá. Como? Já tinha feito várias tentativas, sendo sempre expulso pelo segurança. Iaarriscar novamente. Em dado momento aproximou-se devagar. Ninguém na porta.Mordeuoslábios,pisoulevee,apressado,entrou.Lá estavaoDeus-meninodebraços abertos.Nu,pobre, vazio e friorento comoele.

Nem as luzes da loja, nem as falsas estrelas conseguiam esconder a sua pobreza esolidão.Lumbiáolhava.Debraçosabertos,oDeus-meninopediaporele.Erêqueriasairdali.Estavanu,sentiafrio.Lumbiátocounaimagem,àsuasemelhança.Deus-menino,Deus-menino! Tomou-a rapidamente em seus braços. Chorava e ria. Era seu. Saiu daloja levando oDeus-menino.O segurança voltou. Tentou agarrar Lumbiá.Omeninoescorregouágil,pulandonarua.O sinal! O carro! Lumbiá! Pivete! Criança! Erê, Jesus Menino. Amassados,

massacrados,quebrados!Deus-menino,Lumbiámorreu!

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OsamoresdeKimbá

Kimbá acordou às cinco e quarenta e nove damanhã. Levantou rápido da cama eolhouotempo.Océujáandavaclaroeumbrutosolameaçavapenetraremtudo.Umdiaensolaradoprometiaacontecer.Sentiu-semaisaliviado.Detestavachuva.Chuvanafavelaerauminferno.Obarroeabostaseconfundiam.Osbecosquecircundavamosbarracosse tornavamescorregadios.Ascriançaseoscachorrossecomprimiamdentrodecasa.AsmãespassavamodiainteirogritandoparaqueosZezinhossesossegassem.Antes,ele fora tambémZezinho.Kimbá foioapelidoqueumamigo rico,viajadoporoutras terras, lhedera.O amigonotou a semelhançadele comalguémque elehaviadeixado na Nigéria. Então, para matar as saudades que sentia do amigo africano,rebatizouZezinho comonomedooutro.Obrasileiro seria oKimbá. Zezinho gostoumais do apelido do que do próprio nome. Sentiu-se mais em casa com a novanomeação.Olhandoesentidoodia,Kimbáporuminstanteteveodesejodedeitarnovamente.

Era preciso, entretanto, movimentar a vida até à morte. Esse pensamento foiacompanhadodeummovimentotãobrusco,queoecodeseusgestosagrediuosonodequemdormianoquarto ao lado, vizinho ao seu.VóLidumira, a velha sentinela, quedurante todaanoite,aflitivamentemurmurourezas, tossiusecoepigarreouumaave-maria. As duas irmãs de Kimbá, que igualmente ali dormiam, semidespertadas peloacordar do rapaz, disputaram mais uma vez o único travesseiro, em que juntasaninhavamacabeça.Suamãee suas tias, tambémcontaminadaspelomovimentardomoço, ládooutro ladodaparede,estremeceram,cadaumaporsuavez,mascomosetivessemsidoatravessadasporumamesmaefinalâminadeaço,dacabeçaaospés.Kimbá olhou comovido para o irmãomais velho que dormia ali nomesmo quarto

com ele. Gostava do mais velho. Coitado do Raimundo! Sempre bêbado e semprequerendomais emais cachaça.Observoua imobilidadedooutro e riude suaprópriaagilidade, de seusmovimentos semdireção, semalvo certo. Levantou, e depé sentiumelhor o seu corpo. Era alto. Espichando o braço, ultrapassava o telhado. Ficou unssegundos gozando o prazer que seu tamanho lhe dava. Sabia-se alto. Sabia-se forte.Sabia-se bonito. As mulheres gostavam dele e os homens também. Aliás, foi umadescoberta que lhe assustou muito. Uma situação perturbadora que ele lutava paraesconder:oshomensgostavamdeletambém.

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Kimbádesceuumporumosdegrausdaescadariadaladeira.Cáembaixosentiudorealívio.Tinhaconseguidosairdobarraco.Deixartudoparatrás.Todososdiaspensavaquenãoconseguiria.Detestavaapobreza,afaltadeconforto,afossaexalandoocheirodemerda.Detestavaorostolavadoláforanotanque,ocafénocopovazioqueantesforadegeléiademocotó,opãocompradoalimesmonatendinha.Detestavaavozaltaefortedamãe,asrezasdeVóLidumira,oscuidadosdastiaseosolharescuriososdasirmãs.Asirmãsviviamperguntandotudo.Aondeeleia?Deondeelevinha?Comquemele

saía?Perguntavamtudoemsilêncio.Olhavamparaeledecimaabaixo,eoolhardelasparavajustamenteali.Umdiaeleestavacomabraguilhaabertaesópercebeuquandoos olhares das duas pararam direto ali, mexendo com o pudor dele. Envergonhado,puxouozíper.Porém,nãotinhanadaatemer,omembrodormiaesquecido,macio.Eledetestava também ter de ser dois, três, vários talvez.Dava trabalhomudar o rosto, ocorpo,mudaratéogosto.Seriatãobomseelepudessesersóele.Masoqueeraserele?EraseroZezinho?EraseroKimbá?Zezinhocresceusoltopelosbecosdomorro.Empinavapipas,vendiapicolé,aprendia

umpoucodascoisasdaescola.Ganhavaunstrocadosdamãeedastias.Brigavacomasirmãs.Provavadevezemquandounsgolesdepingado irmão,que jánaquelaépocabebia muito. Zezinho gostava de jogar capoeira. Vovó Lidumira pegava o rosário eficava rezando-rezando, enquanto ele atacava um inimigo imaginário. Ela rezavapedindoaSenhoradoRosárioqueprotegesseomenino.Estavachegandootempodeguerra,diziaVovóLidumira.Zezinhoria.Jogavacapoeiraatésecansar.Depoisentravanotanqueesebanhava.Saíafrescoecalmo.Desciaomorroeiaencontrarosamigos.Elenãogostavadeseuscolegasvizinhos,gostavadaturmaládebaixo.Nomeiodeles,osládebaixo,ele,Zezinho,eraodiferente.Eraoquejogavacapoeira,oquemoravanomorro,oquecontavaashistórias.Eraouvidosempre.Frequentavaacasadealgunssonhandocomodiaemqueteriatudocomoeles.Kimbá ia se distanciando do morro. Caminhava com passos seguros, tranquilos. A

miséria e tudoquedetestava tinha ficadopara trás. Enfiou amãonobolso, tocounacarteiraqueBethtinhalhetrazidodoexterior.Bethgostavadeleeeleestavagostandotambémdamulher. Foi o amigoque lhebatizara comonome africanoque fizera asapresentações.Elaeraprimadoamigo,talvez.Nanoiteemqueseconheceram,tinhaacontecidoumencontrobom,gostosoecheiodesafadezas.Os dois, ele e o amigo, tinham ido à casa de Beth. O amigo falava sempre dela.

Estavam bebendo na sala, quando a mulher se levantou, pediu licença e foi aobanheiro.Voltou logoapós,nua.Nuazinha!Oamigocomeçouabeijá-laeacariciá-la.Aospoucosfoi tirandoaroupatambém.Ficaramosdoisnaquela loucabrincadeira.Ohomem já estava pronto, prontinho para penetrar na mulher. Kimbá estava louco

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também.Tinhavergonhaedesejospor todoocorpo.Estavaassentado,parado,duro,de tempo em tempo cruzava e descruzava as pernas. O amigo veio caminhandolentamente em suadireção.Abriu a camisa e a calçadele beijando-lhe avidamenteomembroereto.Kimbáseassustou.Depoisoamigopegou-lhepelobraçoeoempurrouemdireçãodamulher.Bethabraçou-lhebuscandooseucorpocomfirmeza.Oamigoregozijou.Riu,riueriu.Kimbáesqueceuooutro,esqueceudesipróprioeselançoudentrodela.Quandose

percebeu novamente, estavam os três deitados no chão. O homem calmo, satisfeitocomoeleeamulher.Esóentão,seviuesentiunu.Comparouonegrumedeseucorpocoma alvura dos corpos dos dois.Achou tudomuito bonito.Queria se vestir, porém.Suasroupasestavamnapoltrona,umpoucodistante.Eagora,comocaminharnafrentedosdois?Queriaselevantarenãosabiacomo.Oamigoeamulherselevantaramporeleeseencaminharamparaobanheiro.Quandovoltaram,Kimbáestavadepé,vestidono meio da sala. Queria ir embora, já era tarde. Precisava subir o morro. Os doisinsistiramparaqueeleficasse.Não,nãopodiaficarmesmo.Oamigoperguntouseelequeriadinheiroparaotáxi.Nãoqueria.Gostavadeandaràpépelamadrugada.Kimbá saiu daquele encontro de corpo leve. Não sabia, porém, se estava feliz ou

infeliz. Já tinhaouvido falardepessoasque transavam juntas,maspensavaque fossecasodecinema.Nãosabiaporquetinhafeitoaquilo.Amulhertinhaumcorpobonito.Cheiravaaperfumesea sabonete.Eoamigo?Oquedeunoamigo?Quandopensouqueoamigofossepenetrarnamulher,eisqueohomemselevanta,vaiatrásdele,abrea roupadele e aindapor cimabeijaomembrodele! Seráqueo amigo era? Seráqueera?Eagora,oqueeleiafazer?Gostavatantodele.Frequentavaacasadele,saíacomeleàsvezes.Conheceraalgumasamigaseamigosdeles.Nuncahaviapercebidonada.Seráqueohomemiadaremcimadele?QuandoKimbáempurrouaportadobarracoemquemorava,jáeramadrugadaalta,

quasemanhã.Podeescutaroressonardaavó,damãe,dastiasedasirmãs.Seuirmão,Raimundo,roncavaalto.Dabocaabertaexalavaumhálitodecachaça.Virouoirmãocomcuidado,oroncodiminuiu.Sentiuemseuprópriocorpoocheirodamulher.Vestiuocalçãoefoiláforanotanque.Pegouumpedaçodesabãodecoco,ligouaborrachaecomeçou a se ensaboar. Tinha se acostumado com o sabão de coco. Não gostava defragrânciadesaboneteemsipróprio.Depoisveioparaacama.Segunda-feira,odiajárompia.Kimbánãoconseguiudormir.Nashorasseguintesnãoselevantou.Nãodesceuomorro.Nãofoiaosupermercadotrabalhar.BethpossuíaKimbáquerendo ter certezadequeohomemera seu. Sabiadele com

Gustavo,aliás,oconhecerapormeiodele.Hámuitoqueoamigonutriaumapaixão,umdesejo intensoporKimbá,masnãotinhatidoacoragemdeabordá-lo.Nodiaemque Gustavo falou que ia apresentá-la a um negro lindo, Beth não se entusiasmou.

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Estavacansadadosexagerosdele.Mascompoucosencontros,noprimeirotalvez,ficaraapaixonada.Umacoisaestavalhepreocupando.Tinhaderesolverestaquestãosozinha.NãopodiaesquecerqueentreelaeGustavohaviaumacordotácito.Nadadeciúmes,nadadedisputaentreosdois,casoumseenvolvessecomoparceirodooutro.MascomKimbáestava sendodiferente.Não suportavapensarneledeitado recebendoedandocarinhosaalguémquenãofosseela.Eopioréque,elequeantesficavatãosemjeitonasituação,agorapareciatransitar,viver,fazeramornaturalmentecomosdois.Kimbá jogou a água e sabão no chão esfregando violentamente a sujeira como se

estivessecomraiva.Estavamesmo.EstavacansadododiaadianosupermercadoedanoiteanoitecomBetheoamigo.Nãoaguentavamais.OueraoamigooueraBeth.Eles lhedariamtudo,casoelequisesse.Tantoumcomoooutro já lhehaviamfeitoaproposta,paraqueeledeixassedetrabalharefossemoraremcasasdeles.Eratentador.Deixar a favela. Deixar a miséria. Deixar a família. As rezas de Vó Lidumira lheirritavamprofundamente.A velha rezavapor tudo e pornada. E elenão viamilagrealgum.Nãovianadadebomacontecercomelaoucomafamília.Aavónascerademãeedepaiqueforamescravizados.Elajáerafilhado“VentreLivre”,entretantoviveraamaior parte de sua vida entregue aos trabalhos em uma fazenda. A mãe e as tiaspassaramavidasegastandonostanquesenascozinhasdasmadames.Asirmãsiamporessesmesmoscaminhos.Eele,elemesmo,estavaali,naqueleesfrega-esfregadechãodesupermercado.KimbáestavagostandodeBeth.Tinhavergonhadeste sentimento.Não sabiacomo

ajeitaramulherdentroeforadopeito.Nãopoderiadizerparaninguém,muitomenosparaGustavo.Oamigolevavatudonabrincadeira.Atéaamizadedosdoispareciaumabrincadeira.Nãoseriaelequeiriaestragartudodizendoqueestavagostandodamoça.Haviaopiorainda.Elaeradeummundoquediziamnãoserodele.Gustavotambémeradas “altas”, comodizia ele próprio às vezes, quando se referia às desavenças quetinhacomospais.Elenãopodiaesqueceristo.Tinhadetransarnomeiodosdoisetercuidado,muitocuidado.Kimbá achavaBethmuitodiferentedasmulheresque ele conhecera até então. Era

diferentedaavó,damãe,dastiasedas irmãs.Eradiferentedetodasasmulheresqueeleconheceranafavelaenotrabalho.Diferenteemtudo.Desdeamaneiradefazeracoisa,comonadesevestirdepois.Tudonamulherpareciaensaiado.Tinhaposseparasentar, para levantar, para comer, para se sentar no vaso... Um dia ele viu amulhersentadaparafazerxixioucocô.Elaestavacomocorpoereto,comoseestivesseemumtrono. Kimbá às vezes achava que Beth era inventada, fabricada para bulir com ossentimentos,comosdesejosecomavidadele.OamigodeKimbátinhacertezadequeohomemnãoeraseu.SabiadelecomBeth.

Kimbáficavacomeleporamizadeouinteressetalvez.Sabiaqueseeletivessedefazer

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uma escolha, optaria pelamulher. Sentiu ummisto de ciúmes emágoa. Afinal tinhasidoelequehaviaapresentadoKimbáparaaamiga. Sabia tambémquenãoera justoficar magoado com ela e com Kimbá muito menos. Nenhum dos três tinha previstosentimentosquepudessemmudarasituação.JamaishaviapensadoemseapaixonarporKimbáeagoraestavaali,desinteressadodetudoedetodos,pensandosónohomem,talqualnamoradinhoenvolvidopeloprimeiroamor.Eagoraoque fazer?Querumostomar ou dar aquilo tudo? Como falar com Kimbá? Comomostrar ao rapaz no quetinhadadoabrincadeira...Kimbá caminhava firme em direção à casa de Beth. Sabia que ela e Gustavo

esperavamporele.Tinhamcombinadotudonanoiteanterior.Tinhamcolocadoodedona ferida. Beth estava apaixonada por ele. Ele estava apaixonado por Beth.O amigoestava apaixonado por ele. Estavam tentando viver. Beth tinha dinheiro. O amigo,dinheiroefama.Kimbá,anoiteeodia.Adecisãoseria,portanto,deKimbá,quenãotinhanadaaperder.Sóavida.Erasóelequerer.Jáquenãoestavadandoparaviver,porquenãoprocuraramorte?Seriafácil.PrimeiroBeth,depoisoamigoeemseguidaele.Amorteselariaopactodeamorentreeles.Amortepeloamordostrês.Aoacordarascincoequarentaenovedamanhã,Kimbájátinhaavidaacertada.Vó

Lidumira, a velha sentinela, insistia em suas rezas, tinha o rosário nas mãos emurmuravapadre-nossos, ave-marias e salve-rainhas.Kimbánãoqueriamaisnadadocéu, da terra ou do inferno. Ele sabia que o seu dia estava rompendo. Seria precisocoragem,muitacoragem.SeasoraçõesdeVóLidumiranuncavaleramnada,agoraeraoquemenosvalia.Detestou,profundamente,maisumavez,aavó.Kimbá caminhava firme, estava chegando.Parounaportadoprédioolhando tudo.

Sorriupara oporteiro.O elevadordemorou. Subiu a pé até aonono andar. Beth e oamigojáesperavamporele.Estavamosdoisnus.Kimbátiroulentamentearoupaesesentou.Oscoposjáestavampreparados.Ele,comumligeirotremordemãos,ofereceuoprimeiro copo àmulher.O segundoofertou ao amigo.Aopegar o terceiro copo, odele, teve um breve desejo de recuo. Beth eGustavo já estavam deitados no chão àespera domais nada. Kimbá procurou algummotivo de vida. Os amigos estavam naquase morte. Sorveu de uma única vez a sua porção e se deitou ali no meio, paraesperarcomelestambém.

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Ei,Ardoca

ObarulharsecoecortantedotremirritavaosouvidosdeArdoca.Oatritodamáquinanos trilhos ecoava constantementeno fundode seus tímpanos.Aosdomingos,dentrode casa, no silêncio damulher, nas vozes e brincadeiras dos filhos, ele ouvia o gritoarranhado do aço espichado sobre o solo. Grito lancinante e cortante debaixo docomboiopesadãoquepareciamassacraralinhaférreainerte.Ardocanasceraquasequedentrodaquelamáquina.Suamãe,moradoradosubúrbio, faziaaviagemdiária rumoaotrabalho.Elagrávida,eleestufandonabarrigamaternarespondiaaossolavancosdotrem com chutes internos. Depois, cá fora, no mundo, no colo da mãe, acordava echorava durante todo o tempo da viagem. Cresceu em meio aos solavancos, aoempurra-empurra, aos gritos dos camelôs, às rezas dos crentes, às vozes dos bêbados,aos lamentosecochilosdos trabalhadorese trabalhadorascansados.Assistiu inúmerasvezes, como testemunha cega emuda, a assaltos, assassinatos, tráfico e uso de droganos vagões superlotados. A cada viagem, Ardocamais estranhava e desacostumava àvidadotrem.Queriaviajarcomomesmodescuidodealgunsquejogavamporrinhaoudormiam durante o percurso, mas permanecia sempre desesperadamente acordado.Estavasempreatento,tenso,comoseotrem,aqualquermomento,pudesseautocolidir,seautoembarafunhar,fazendocomqueoúltimovagãosefechasseemcírculosobreoprimeiroesoltassetudopelosares.E foi então, que em uma tarde, Ardoca caminhou com passos lentos em direção a

estação. Era sábado. O movimento menor de passageiros não garantiu porém apossibilidade de um lugar vazio. Ele se sentia cansado por todos os dias, todos ostrabalhos, e por toda a vida. Entrou na fila para a compra do bilhete.O funcionáriodeu-lheo troco.Ardocacomumgesto recusou.Olhouo trem,acomposiçãopareceu-lhemaislongaainda.Subiucomdificuldades,encostou-seàparededovagãoedepoislentamente foi escorregando o corpo até chegar ao chão. Algumas pessoas riram.Alguém gritou que o homem estava bêbado. Outro completou a observação dizendoqueodinheirodopobrenãodavaparaoalimento,masdavaparaacachaça.Otremcontinuava parado,mas a barulheira sobre os trilhos alcançava e feria os ouvidos deArdoca. Ele sorria um pouco. Um suor frio escorria sobre a sua face. Um grupo decrentes cantava olhando para ele como se quisesse comovê-lo. Aleluiavam aos altosbrados um Senhor que, segundo eles, falava em silêncio aos homens. Ardoca

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abandonava o corpo, que pendia lentamente para um lado. O passageiro do bancopróximoencolheuopé.Umcamelôquevendiaáguapulouporcimadeleparaatenderumapessoa.Ardocarespiravacomdificuldade,debaixodonegrodesuapele,umtomamarelodesbotadoaparecia.Umamulherlevantou,comprouumcopod’águaedeu-lhedebeber,tentandoreanimá-lo.Oscrentescontinuavambradandoohino.Ovendedordeágua,buscandoumespaçoparafazervalerasuafala,anunciavaoseuprodutoemaltíssima voz. O trem parado continuava mortificando os ouvidos fragilizados deArdoca.Enquantoisso,suavidaiaseaprofudandomaisemaisnodissentirdetudo.Elebuscava a respiração lá no fundo. Amulher que lhe socorreu parecia querer chorar.Neste momento entrou no vagão um passageiro correndo e gritando. Desesperado,empurrou as pessoas buscandopassagememdireção ao rapazdesfalecido, chamandoporele:

—Ei,Ardoca!Ei,Ardoca!

Rapidamenteotomounocolo,desceudotremeodepositounobancodaestação.Acomposição iniciou lentamenteapartida.Cádedentro,amulherquesecondoeradeArdocaealgunsoutrospassageirosaindapuderamver.AquelequeosocorreraestavaameteramãonosbolsosdeArdocaeaarrancar-lheossapatoseorelógioqueeletraziano pulso. Ardoca estava sendo assaltado. A mulher fez menção de descer, mas amáquinaganhouvelocidadeepartiu.Nãoeraprecisoporémnemdor,nemlágrimas.Ooutro podia levar os poucos pertences de Ardoca. Podia tomar-lhe tudo. Ardoca nãotinhamaisnada,nemavida.Naquelatarde,aindanotrabalhoeleresolveratudo.Numgesto desesperado e solitário bebera lentamente um veneno e decidira levantar paramorrerno trem.Ooutro levavaospertences de alguémque já despertencia à vida ejazianobancodaestação.O barulho da máquina sobre os trilhos entoava uma música réquiem de descanso

eternoparaArdoca.Amém.

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Agentecombinamosdenãomorrer

Amorte brinca com balas nos dedos gatilhos dos meninos. Dorvi se lembrou docombinado,ojuramentofeitoemvozuníssona,gritadosobopipocardostiros:

—Agentecombinamosdenãomorrer!

Limpouosolhos.Lágrimasapontavamdiversossentimentos.A fumaçaquesubiadomonturodelixoaolado,justificavaqualquergotaourio-marquesurgisseerolassepelaface abaixo. Era a fumaça, desculpou-se consigomesmo e cantaroloumordiscando ador,acançãodoSeixas:“Quemnãotemcolíriousaóculosescuros.”Amorteincendeiaavida,comoseessaestopafosse.Molamboserigemfumaçanoar.

Nalixeira,corpossãoincinerados.Avidaécapim,mato,lixo,épeleecabelo.Éenãoé.Natelevisãodeu:

—Mataramamulher,puseramocorponalixeiraeatearamfogo!

Dorvi respirou e aspirou fundo.Mas quemerda, pó contaminado, até parece talcoparapôrnabundadeneném.Pois é,meu filhonasceu.Umpingodegente.QuandoBicamemostrounemtivecoragemdeolhardireito.Pequeno,tãopequeno!Deveriaterficado na barriga da mulher, ou melhor, incubado como semente dentro do meucaralho.Quiscutucaroputinhocomapontademinhaescopeta.Bicaseafastoucomoseofilhofossesódela.Nãoseiparaqueomedo.

Nãosei porque omedo, pensou Bica. Se aomenos omedome fizesse recuar, pelocontrário, avançomais emais namesma proporção dessemedo. É como se omedofosseumacoragemaocontrário.Medo,coragem,medo,coragemedo,coragemedodedor epânico.A festa está sedando.Balas enfeitamocoraçãodanoite.Nãogostodefilmesda tevê.Morre ematadementira.Aqui,não.Às vezes amorte é leve comoapoeira. E a vida se confunde com um pó branco qualquer. Às vezes é uma fumaçaadocicada enchendoopulmãodagente.Um tapa,dois tapas, três tiros...Minhamãe

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brincava assimcoma gente: “Umelefante amolaa gente,amola!Dois elefantes amola agente,amola,amola!Trêselefantesamolaagente,amola,amola,amola,quatroelefantes”...Avidaétantaamolação.Aminhamãeiaeia.Seguiaamolandoagentecomaquela

cantiga besta, mas que me fazia feliz. Idago, meu irmão, não. Ele ficava puto emandavaavelhacalaraboca.Putaficavaamãe.Eramesmoofinaldostempos!Ondejá seviu, filhomandaramãecalar?Elanãocalava,cantavamaisaltoainda.Umdia,com tanta raiva, cantou tão alto, que quandoparou estava rouca e soluçando. Idagoolhouparaeladesoslaio,pediuabençãoesaiu.Nemdesceuomorro.Vacilou,dançou.Minhamãe recebeuanotíciaque ela já esperava. Foi lá, acendeuumavelapertodocorpo.Umafumacinha-meninadançavaaopédeIdago.Sóela,afumacinha,amãeeeu ali velamoso corpodemeu irmão.Um tapa, dois tapas, elefantes, patas pisamnagente. Escopetas, como facas afiadas, brincam tatuagens, cravam fendasnanossa tãoesburacada vida. Balas cortam e recortam o corpo da noite.Mais um corpo tombou.Penso em Dorvi. Apalpo o meu. Peito, barriga, pernas... Estou de pé. Meu nenémdorme.Aindamerestoearrastoaquiloquesou.

Saraivadas de balas, de instantes em instantes, retumbam no interior da casa,ameaçandoadiversãodamãedeBica ede Idago.DonaEsterlinda levanta irritada emudadecanaldetelevisão.Láfora,balasebalas,independentedodesejodamulher,executamcontinuadamenteamesmaesecasonata.Umaprogramaçãomaisamenavaientorpecendoossentidosdamulher.Oquemais gostona televisão é denovela. Acho amaior bobeira futebol, política,

carnaval e show. Bobagem também reportagem, campanha contra a fome, contra overde,contraavida,contra-contra.Contraouafavor?Seilá,confunditudo.Achoqueécontramesmo.Contraenão.Contra-mão.Andosentindodoresnaspernas.Também!“Latad’águanacabeça, lávaiMaria”. Sobeomorro,desceomorroe se cansadessadança. Filhos?Não souboba, sódois.Cuspi foraunsquatroou cinco.Provoquei. “Euconfessor,meconfessoaDeus,meuzelosoguardador,benditosoisvós,queolhepormim”Nanoveladasoito,LidianeerababádomeninoCarlosRodriguesMagnânimo.Elaensinouacriançaarezar.TudoeragrandenacasadosRodriguesMagnânimo.Acasa,ocarro,amesa, o guarda-roupa, o tapete, tudo.O vestido de noiva da tia deCarlos Rodriguesvestiatodoocaminhodoaltar.Atravessavadepontaapontaocorredordeumagrandeigreja.Étãobomvernovela.Nãogostodeveroscrimes,roubosenemnoticiáriosdeguerra.Novelamealivia,éaminhacachaça.Hoje,melembroqueexatamentehoje,hácincoanos,meufilhodesceuomorroecaiu.Idagoeratãobonito!Podiatrabalharnatelevisão, feito aquele negro que é ator. Podia ser cantor também. Tinha o dom.Cantava e assobiava tão bem quando eramenino. Foi crescendo e ficando cada vezmaiscalado,irritado,brigandosemprecomigoecomairmãBica.TudoamolavaIdago.

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Lembreidamusiquinhaqueaprendicomaminhamãeeachoqueelaaprendeucomamãe dela. Um dia Idago cantou assim paramim: “umamãe amola a gente, uma irmãamola a gente,um inimigo amola a gente,um policial amola a gente” e foi dizendo umaporção de coisa que amolava a vida dele. Acho que para Idago, o mundo era sóamolação.

Eu,Bica, sei umpoucodo segredo.Umpoucodo saber basta.O saber compromete,pensoeu.Idagosabia,falou,dançou.Morreu.Feriuocódigodehonra,apalavradada.A palavra que não se escreve, pois escrita está na palma e na alma de cada um. Éprecisotrazersempreamãoaberta.Ojogoélimpo.Traiu,caiu.Idagomereceu.Aliás,era traidor desdemenino.Umbundão, safado.Na escola, era todomundo, ou quasetodos a destelhar a cantina para pegar a merenda armazenada. Uns subiam, outrosvigiavam.Sóqueríamososbiscoitos,comercomantecedência,oqueeranosso.Premiaranossafomeanterior,adomomentoeaposterior.Sei láseeraumjogoinocenteoumaldoso.Nooutrodiadebochávamosdacaradosprofessores.Adiretorasedescabelavatoda. Ela sabia que era armação dos alunos. Sabia tambémque alguns tinhamoutrasartimanhas.Traziamacoisaescondidapordentrodosapato,lánocantinhodameia.Edepois tudo transitava de mãos emmãos feito aquela brincadeira inocente de passaanel.UmdiaIdagobrigoucomumdaturma.Aímelou.Deucomalínguanosdentes.Vomitoutudo.Faloudotelhado,dosbiscoitos,doincensoproibidoque,lánofundodaescola ou até nos banheiros, adocicava o ar e também do talco mágico nos pés dealguns.Osgrandesficaramputoscomele.Mandaramdizerparamãe,quecuidassedabocatraidoradofilhodela.Línguacortadanãofala.Logodepoischegaramepediramparaqueamãechamasseopeste.Ummeninomaior,quemancavadevidoaumabalaperdida,seguravacomasmãosabocadeIdago.Eoutroderramouumvidrodepimentapelagoela adentrodaqueleque cultivavaa línguavenenosamente solta. Pimentanosolhosdosoutrosnãoarde.Aquelaardeunosolhosdemãeeaténosmeus.ElaeIdagochoravam.Euquase.Pimentatalvez.Afinalmeuirmãojánãoeratãoinocente.Estavacomonzeanos;eutinhadoze.Elejásabiaoalcancedesuaspalavras.Sabiadoalcancede falas como aquelas. As palavras, às vezes, feriam segredos e escorregavam pelaladeiraabaixoparandolánadelegacia.

Alguémcantouapedraeosegredofoirompido.Adesgraçavazadosporosdaterra.Omundoexplode.Seresdemilmãosagarramtudo.Nadaescapa.Tudosetornaobjetosagarráveis:gente,coisa,bicho...Àsvezesmepegoassustadodiantedatevê.Omundoexplodeéaquimesmo.Quemderramouopóhádejuntartodaapoeira.Facaamoladacortaepodeserumjogolento,ótimatortura.Arrancoosbagosdofilhodaputaquemetraiu.Acertoascontas,asminhas.Levooconcluídoeentregoaobacana.Nuncafalhei.

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Eleretiraoqueédeleedevolveoqueémeu.Hojenãoterádevoluçãoalguma.Devo.Falta.Adívidadooutroéminhadívida.É?Oapartamentodachefiaébonito.Olhandoparabaixovêomar.Queroamortelentaecalma.Queroboiarnoprofundofundodomar.Queroofundodomar-amor,ondedevereinarcalmaria.Élánoprofundofundoque vou construir um castelo para amorada demeu filho. Bica, prediletaminha, vaitambém. Ela sabe que da ponta da escopeta também sai carinho. No fundo domar,mundo algum explode. Bica, diletaminha, a vida explode. Explode, ode, ode, ode...Mar-amor.Omeudesejoéumcastelodeareia?Nemsei...Umdia,copodeuísquenamão, de lá de cima olhei omar. Eu era grande, no alto de tudo. Omar lá embaixoabrindotodo,todo.Grandeéomar.Quandonãoestoucomminhaarmaporperto,meborrodemedo.Tenhovontadedechorar.Olhandoomarládecima,viquepequenosoueu.Ooutro,oqueme fornece, estavana sala comos amigos emechamouparadentro.Éumpessoalzinhomeiobesta.Nãotenhoilusão.Oquetemosemcomuméopó do qual somos feitos. É o pó que nos faz, mais nada. Mas o meu pó corre maisperigo. Meu pó vira cinza rápido. Quem incendeia? Pode ser a polícia, pode serqualquer umde nósmesmo, grupos rivais.Quero o fundo domar.Quero a prediletaminhaeomeuputinhoquenasceu.Umdiavousernavegante.Voucomprarumbarco-estrelacomtrêslugares.Toudoido,viagemlegal.Aterravaiexplodirnomundo-canaldatelevisão.Aquiforajáexplode,malandro!Aprimeiravezeunãosabiaaspirartudo.Os desejos, os sonhos, a viagem, tudo se atracou na minha garganta. Nem falar eupodia. Um dia vou ser navegante. Quero fazer uma viagem profunda, pro fundo domar-amor.Prediletaminha,oputinhomeueeu,ostrês...Aviagemfundaqueafunda.A vida vale? A dívida é minha? Com quem dividir essa dívida? Essa dúvida? Diletaminha,putinhomeu...

AbabáLidiane,danoveladasoito,acabousozinha.Nãogosteidofinal.Assistioutranovelaemqueababácasoucomofilhodopatrão.Bonito,tudomuitobonito.Choreide emoção. Quando choro diante de novela, choro também por outras coisas e pelavida ser tão diferente. Choro por coisas que não gosto nem de pensar. Dorvi écompanheirodeBica,minhafilha.Fizeramumfilho,meuprimeironetinho.Achoquenão terei tantos.NãovoudeixarBicavirarmulherparideira. Issode termuitos filhosera do meu tempo. Nem eu virei. Que Deus me perdoe! Será que minha alma vaipadecer no fogo do inferno? Outro diame contaram que Dorvi está complicado. Eupenseioutrofuturoparaosmeusfilhos. Idago,poisé,acabaramcomogaroto.Bicaétão inteligente. Na escola sempre se saiu bem, conseguiu estudar até a oitava série.Gosta de televisão,mas temamania de implicar comasminhasnovelas.Diz que euvivonomundodalua.Enganodela.EuseiqueDorviestácomplicado.Nãotemculpa.Outem?Conseguiuestabelecerumponto,arriscouapeleemantémopróprionegócio,

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masconfiounapessoaerrada.EagoraopessoaldoBaependi,otalfornecedor,querapaga.Disseramque,seDorvilevouumbanho,eleséquenãovãosebanharnamesmaágua.EusempregosteideDorvi,meninoqueeuvicrescer.RegulaidadecomBica,masnãoéocompanheiroqueeuqueriaparaela.Eachoquenemela.Eutenhoesperançasde que Bica, a minha menina, não sei quando e como, terá outro destino. Desdepequenaeraatentaa tudo. Já teveoutrosnamorados, inclusiveumrapazinhocrente.Bommenino,masBicanãogostoudele.Diziaqueeleeraumbanana.Eunãoentendiaporque.Ummeninotãobomeaindacomagarantiadeestarlongedasdrogas.Foiaíqueelaencrespou.Bicadissequeeleeradrogadosim.DrogadopelaBíblia,pelopastor,pela igreja, enfim. Que nem vontade própria tinha. Não entendi nada,mas passei aobservaromenino.Elerealmentepareceumapessoasemsustância,semacoragemdeDorvi.Essadiferençaeunoto,masnãoseiexplicar.AchoqueseDorvifossecrente,eledariaumbomcristão.Peçoavidaparadarumbomtempoparaele.Dorviestápresoporumfio.Puxooassuntocomminhafilha.Bicaéescorregadiafeitobabadequiabo.

Porra,ocaramedeuumbanhoeeuestouescorregandonaáguadele,comsabãodelavarcachorro.Oprazodeleestáterminandoeomeutambém.Buscoaqueleputonoinferno,poisseiqueoshomensdeBaependivãomebuscar também.Elesmecatarãodebaixoda saiadaminhamãe, sepreciso for.E agente combinamosdenãomorrer.Quemerda, selamos agora a própriamorte. E omeuputinho e a diletaminha, ondeestão? Bica é menina esperta. É mulher de muita visão. Penso no risco que estoucorrendo.Risconão,tudojáécerto.Asoluçãoestádefinida.Odestinotraçado.Nãohárecuo.Nãoestouaflito.Nãoestoudesesperado.Nãoestoucalmo.Nãoestouinocenteouculpado. Apenas estou sabendo que daqui a pouco, questão de um dia e meio, nãoestareimais.Nemeu,nemele.Acabocomele,mas istonão resolve.Outrosacabarãocomigo. Nosso trato de vida virou às avessas. Morremos nós, apesar de que a gentecombinamosdenãomorrer.Amorteàsvezes temumgostodegozo?Ouogozotemum gosto de morte? Não esqueço o gozo vivido no perigo de meu primeiro mortaltrabalho,naminhaprimeiravez.Umdiaoshomenssubiramomorro.Ocombinadoerao enfrentamento. Até então eu só tinha feito trabalho pequeno. Vigiar, passar obagulho, empunhar armasnosbecos, garantindo aproteçãodospontosna caladadanoite.Naquelediamandaramqueeufosseenfrentartambém.Eutinhatrezeanos.Nomeio do tiroteio, esporrei, gozei. E juro que não era de medo, foi de prazer. Umaalegria tomava conta de meu corpo inteiro. Senti quando o meu pau cresceu ereto,firme,durofeitoaarmaqueeuseguravanasmãos.Atirei,gozei,atirei,gozei,gozei...Gozei dor e alegria, feitooutromomentode gozoqueme aconteceuna infância. Euestavacomseisparaseteanosearranqueicomasminhasprópriasmãos,umdentinhode leite que dançava em minha boca. Minha mãe me chamou de homem. Cuspi

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sangue. Limpei a baba com as costas da mão, ainda tremendo um pouco, mascorrespondiaoelogio.Eueraumhomem.Tiveumprazerintensoquebrincounomeucorpotodo.Tiveatéumprincípiodeereção.Hojeoutroprazeroudesprazerformigaomeu corpo por dentro e por fora. Voumatar, voumorrer. É lá nomar que vou sermorrente.Mar-amor,mar-amar,mar-morrente.Énoprofundodofundo,queguardareiparasempreaslembrançasdemeuputinhoedadiletaminha.

AcasadeNeocaiu.Aprontou,dançou!Maisum,quenãoseráoúltimo,outrosvirão.Ele,Dorvi,Idago,Crispim,Antônia,Cleuza,Bernadete,Lidinha,Biunda,Neide,Adãoeeutemosoutínhamos(algunsjáseforam)amesmaidade.Umanoeàsvezessómesesvariavam o tempo entre a data de nascimento de um e de outro. Alguns morreramtambémemdatasbempróximas.Apalpoomeucorpo,aquiestoueu.Entreasmulheresquase todas ficaram menstruadas juntas, pela primeira vez. Brincávamos que íamosmisturarasnossasregraseselarmosanossairmandadecomonossoíntimosangue.Osmeninos não sei que juras fraternas fizeram. Ah, sei!Dorvi repetia sempre que entreeleshavia opactodenãomorrer. EntretantoDorvi sumiu eNeo também.DeNeo játemosnotícia.Dançou ao somdamúsicada escopetadeDorvi. EDorvi?Nemamãedelesabe,nemeuquesousuamulher,sóadivinhosó.Oquedizerparaonossofilhoàmedidaqueelecrescer.Querooutrofuturoparaele.Seráqueaindahádorporvir?EDorvi?Nãosei.Esófaçoescrever,desdepequena.Adoroinventarumaescrita.Umdiana escola, com meus sete ou oito anos, a professora passou um exercício. Era o dedividiraspalavrasemsílabaseapartirdaíformarnovaspalavras.Eujáestavadesacocheio (forçade expressãoquemeninanão tem saco). Paradesconsertar amoça,pediparairaoquadroescreverasqueeutinhaformado.Eescrevipó,zoeira,maconha.Efuiescrevendo mais e mais. Craque, tiro, comando leste, oeste, norte, sul, vermelho everdetambém.Naverdade,naquelemomento,eujáestavaarrependidaequeriavoltarparaomeu lugar.Seéquetenhoalgum.Masescrever funcionaparamimcomoumafebreincontrolável,quearde,arde,arde...Aprofessoraolhavaquerendosernatural,aturmariaeeuescrevia.Gostodeescreverpalavrasinteiras,cortadas,compostas,frases,não frases. Gosto de ver as palavras plenas de sentido ou carregadas de vaziodependuradas no varal da linha. Palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas nacorda bamba da vida. Outro dia, tarde da noite, ouvi um escritor dizer que ficavaperplexo diante da fome do mundo. Perplexo! Eu pedi para ele ter a bondade, acaridadecristãeque incluísseali todosos tiposde fome, inclusiveaminha,quepodeserdiferentedafomedosmeus.Falei,maspelomenosnaquelemomento,mepareceuqueelefaziaouvidosmoucos.QuemsabeosnossosOrixásquesãoHumanoseDeusesdescrevamparaesseescritor

outras eoutras fomes, aumentandoassim,mais ainda, aperplexidadedele. Penso em

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Dorvia todoomomento.Eleéparamimumpresente incompletoeumfuturovazio.ProvavelmenteDorvinãovirámais.Elequetinhaumtratodeviverfincadonessafaladesejo:

—Agentecombinamosdenãomorrer.—Devehaverumamaneiradenãomorrertãocedoedeviverumavidamenoscruel.

Vivoimplicandocomasnovelasdeminhamãe.Entretanto,seiqueelaseparaeseparacomviolênciaosdoismundos.Elasabequeaverdadedatelinhaéadaficção.Minhamãesemprecosturouavidacomfiosdeferro.Tenhofome,outrafome.Meuleitejorraparaoalimentodemeufilhoedefilhosalheios.Querocontagiardeesperançasoutrasbocas. Lidinha eBiunda tiveram filhos também,meninas.Biunda temo leite escasso,Lidinha trabalha o dia inteiro. Elas trazem as menininhas para eu alimentar. EntreDorvieoscompanheirosdelehaviaopactodenãomorrer.Euseiquenãomorrer,nemsempreéviver.Devehaveroutroscaminhos,saídasmaisamenas.Meufilhodorme.Láforaasonatasecacontinuaexplodindobalas.Nestemomento,corposcaídosnochão,devemestaresvaindoemsangue.Euaquiescrevoerelembroumversoqueliumdia.“Escreveréumamaneiradesangrar”.Acrescento:edemuitosangrar,muitoemuito...

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Ayoluwa,aalegriadonossopovo

QuandoameninaAyoluwa, a alegriadonossopovo,nasceu, foi emboahoraparatodos.Hámuitoqueemnossavidatudopitimbava.Osnossosdiaspassavamcomoumcafé sambango, ralo, frio e sem gosto. Cada dia era sem quê nem porquê. E nós aliamolecidos, sem sustância algumapara aprumaronosso corpo.Repito: tudo eraumapitimbasó.Escassezde tudo.Atéanaturezaminguavaenosconfundia.Oraapareciaumsoldesensolaradoequemais seassemelhavaaumabolamurcha, lánanascente.Umfriointeriornospossuíaentão,enósmalenfrentávamosodiasobanulaaçãodaestrela desfeita. Ora gotejava uma chuva de pinguitos tão ralos e escassos que malmolhavaaspontasdenossosdedos.Eentãodeudefaltartudo:mãosparaotrabalho,alimentos,água,matériaparaosnossospensamentosesonhos,palavrasparaasnossasbocas,cantosparaasnossasvozes,movimento,dança,desejosparaosnossoscorpos.Os mais velhos, acumulados de tanto sofrimento, olhavam para trás e do passado

nadareconheciamnopresente.Suaslutas,seufazeresaber,tudopareciaterseperdidonotempo.Oque fizeram,então?Deramdeclamarpelamorte.Ea todo instanteelespartiam. E, com a tristeza da falta de lugar em um mundo em que eles não sereconheciamenemreconheciammais,muitosseforam.Dentreeles,melembrodevôMoyo,oque traziaboa saúde,de tioMasud,oafortunado,ovelhoAbede,ohomemabençoado,eoutroseoutros.Todosestavamenfraquecidoseesquecidosdaforçaquetraziamnosignificadode seusprópriosnomes.Asvelhasmulheres também.Elas,quesempre inventavam formas de enfrentar e vencer a dor, não acreditavam mais naeficácia delas próprias. Como os homens, deslembravam a potência que se achavaresguardada partir de suas denominações. E pediam veementemente à vida queesquecesse delas e que as deixasse partir. Foi com esse estado de ânimo quemuitasdelas empreenderam a derradeira viagem: vovó Amina, a pacífica, tia Sele, amulherforte como um elefante, mãe Asantewaa, a mulher de guerra, a guerreira, e aindaMalika,arainha.Comaidadenossosmaisvelhosficamosmaisdesamparadosainda.Eoquedizerparaosnossosjovens,anãoserasnossastristezas?Eatéeles,osmoços, começarama seencafuardentrodelesmesmos,a se tornarem

infelizes. Puseram-se a matar uns aos outros, e a tentarem contra a própria vida,bebendolíquidosmaléficosouaspirandoumtipodeareiafininhaqueempoucosdiasacumulava e endurecia dentro de seus pulmões. Ou então se deixavam morrer aos

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poucos,cadadiaumpouquinho,descrentesquepudesseexistiroutravidasenãoaquela,para viverem. As mães, dias e noites, choravam no centro do povoado. A visão doscorposjovensdilaceradoseraapaisagemmaiorecorriqueiradiantedenossosolhos.Omilagre da vida deixou de acontecer também, nenhuma criança nascia e, sem a

chegada dos pequenos, tudo piorou. As velhas parteiras do povoado, cansadas deesperar por novos nascimentos, sem função, haviam desistido igualmente de viver.Tinhampercebidonaescassezdospartos,quesuasmãosnãotinhammaisa serventiade aparar a vida. Nenhuma família mais festejava a esperança que renascia nosurgimento da prole. As crianças foram esquecidas, ficando longe do coração dosgrandes. E os pequenos, os que já existiam, comoMandisa, a doce,Kizzi, a que veiopara ficar, Zola, a produtiva,Nyame, o criador, Lutalo, o guerreiro, Bwerani, o bem-vindo,eosbemnovinhos,algunssempalavrasaindanaboca,sófaziamchorar.Prantoem vão, já que os pais, entregues às suas próprias tristezas, desprezavam as de seusrebentos.Onossopovoadoinfértilmorriaàmínguaemaisemaisanossavidapassouadeseperançar...Ànoite,quandoreuníamosemvoltadeumafogueiramaisdecinzasdoquedefogo,

acombustãomaiorvinhadenossoslamentos.Eemumadessasnoitesdemacambúziafala,deumestadotaldebanzo,comoseadornuncamaisfosseseapartardenós,umamulher,amaisjovemdadesfalcadaroda,trouxeumaboafala.Bamidele,aesperança,anunciouqueiaterumfilho.A partir daquele momento, não houve quem não fosse fecundado pela esperança,

dom que Bamidele trazia no sentido de seu nome. Toda a comunidade, mulheres,homens, os poucos velhos que ainda persistiam vivos, alguns mais jovens queescolheram nãomorrer, os pequenininhos que ainda não tinham sido contaminadostotalmentepelatristeza,todosseengravidaramdacriançanossa,doserqueiachegar.E antes,muito antes de sabermos , a vida dele já estava escrita na linha circular denossotempo.Láestavamaisumanossadescendênciasendolançadaàvidapelasmãosdenossosancestrais.Ficamosplenosdeesperança,masnãocegosdiantede todasasnossasdificuldades.

Sabíamos que tínhamos várias questões a enfrentar. Amaior era a nossa dificuldadeinterior de acreditar novamente no valor da vida... Mas sempre inventamos a nossasobrevivência. Entrenós, ainda estava a experienteOmolara, aquehavianascidonotempo certo. Parteira que repetia com sucesso a história de seu próprio nascimento,Omolarahaviaserecusadoasedeixarmorrer.E no momento exato em que a vida milagrou no ventre de Bamidele, Omolara,

aquelaquetinhaodomdefazerviraspessoasaomundo,aconhecedoradetodoritualdonascimento,acolheuacriançadeBamidele.Umameninaquebuscavacaminhoemmeioàcorrentezadaságuasintimasdesuamãe.Etodasnóssentimos,noinstanteem

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que Ayoluwa nascia, todas nós sentimos algo se contorcer em nossos ventres, oshomens também. Ninguém se assustou. Sabíamos que estávamos parindo em nósmesmoumanova vida. E foi bonitooprimeiro chorodaquelaque veiopara trazer aalegriaparaonossopovo.O seu inicialgrito, comprovandoquenasciaviva, acordoutodosnós.Epartirdaítudomudou.Tomamosnovamenteavidacomasnossasmãos.Ayoluwa,alegriadenossopovo,continuaentrenós,elaveionãocomapromessada

salvação, mas também não veio para morrer na cruz. Não digo que esse mundodesconsertado já se consertou. Mas Ayoluwa, alegria de nosso povo, e sua mãe,Bamidele, a esperança, continuamfermentandoopãonossodecadadia.Equandoadorvemencostar-seanós,enquantoumolhochora,ooutroespiaotempoprocurandoasolução.

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pelaguerra,sejanamanchadesanguedosescravos,quetingiuosoceanosnotempodaescravidãoecontinuaapermearaslembrançasdosseusdescendentesemAngola,Guiné-BissauounoBrasil.

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AluatristedescambaLopes,Nei

9788534705820

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OcaldeirãodamagiaamazônicaCals,Suely

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OcandomblébemexplicadoMaurício,George

9788534705769

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