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CHRISTOPHER CLARK

Os sonmbulosComo eclodiu a Primeira Guerra Mundial

Traduo

Berilo VargasLaura Teixeira Motta

Para Josef e Alexander

Sumrio

Lista das imagens

Lista dos mapas

Agradecimentos

Introduo PARTE I CAMINHOS PARA SARAJEVO

1. Fantasmas srviosAssassinato em BelgradoElementos irresponsveisMapas mentaisSeparaoEscaladaTrs guerras turcasA conspiraoNikola Paic reage

2. O Imprio sem qualidades

Conflito e equilbrioOs enxadristasMentiras e falsificaesCalma enganosaFalces e pombos

PARTE II UM CONTINENTE DIVIDIDO

3. A polarizao da Europa, 1887-1907Ligao perigosa: a aliana franco-russaO julgamento de ParisO fim da neutralidade britnica

Imprio temporo: AlemanhaO momento decisivo?Engendrando uma inimizade

4. As muitas vozes da poltica externa europeia

Soberanos decisoresQuem governava em So Petersburgo?Quem governava em Paris?Quem governava em Berlim?A atribulada supremacia de Sir Edward GreyA crise de Agadir em 1911Soldados e civisA imprensa e a opinio pblicaA fluidez do poder

5. Complicaes nos Blcs

Ataques areos na LbiaOs Blcs em polvorosaO cambianteA crise do inverno de 1912-3 nos BlcsBulgria ou Srvia?Os apuros da ustriaA balcanizao da aliana franco-russaParis fora a pazPoincar sob presso

6. ltimas chances: dtente e perigo, 1912-4

Os limites da dtenteAgora ou nuncaAlemes no BsforoO cenrio nos BlcsUma crise de masculinidade?At onde o futuro era indeterminado?

PARTE III CRISE

7. Assassinato em SarajevoO assassnioMomentos indelveis

Comea a investigaoReaes srviasO que fazer?

8. O crculo se amplia

Reaes pelo mundoO conde Hoyos vai a BerlimO caminho para o ultimato austracoA estranha morte de Nikolai Hartwig

9. Os franceses em So Petersburgo

O conde De Robien muda de tremMonsieur Poincar navega para a RssiaO jogo de pquer

10. O ultimato

A ustria perguntaA Srvia respondeComea uma guerra local

11. Tiros de advertncia

A firmeza se impeDesta vez guerraRazes russas

12. ltimos dias

Uma estranha luz cai sobre o mapa da EuropaPoincar volta para ParisA Rssia se mobilizaO salto no escuroDeve haver algum mal-entendidoAs tribulaes de Paul CambonA Gr-Bretanha intervmBlgicaCoturnos

Concluso

Notas

Lista das imagens

1. Petar I Karadjordjevic (Corbis)2. Rei Alexandar e rainha Draga, c. 1900 (Getty Images)3. Assassinato dos Obrenovic , em Le Petit Journal, 28 de junho de 19034. O jovem Gavrilo Princip5. Nedeljko abrinovic6. Milan Ciganovic (Roger Violett/Getty Images)7. Conde Leopold Berchtold (Popperfoto/Getty Images)8. Conrad von Htzendorf (Getty Images)9. Francisco Ferdinando, arquiduque da ustria-Este10. Thophile Delcass11. A disputa pela China, por Henri Meyer, Le Petit Journal, 189812. Guilherme II e Nicolau II de uniformes nacionais trocados (Hulton Royals Collection/GettyImages)13. Guilherme II (Bettmann/Corbis)14. Eduardo VII em seu uniforme de coronel do 12o Regimento de Hussardos austracos15. Pyotr Stolypin (Popperfoto/Getty Images)16. Joseph Caillaux (Hulton Archive/Getty Images)17. Paul Cambon18. Sir Edward Grey19. Serguei Sazonov (Cortesia de University of Texas Libraries, Universidade do Texas emAustin)20. Alexander V. Krivoshein21. Conde Vladimir Kokovtsov (Getty Images)22. Helmuth von Moltke em 1914 (DPA/Corbis)23. Ivan Goremykin24. Francisco Ferdinando e Sophie em Sarajevo, 28 de junho (Hulton Royals Collection/GettyImages)25. Leon Bilin ski

26. Os assassinos no tribunal (Getty Images)27. Priso de um suspeito (De Agostini/Getty Images)28. Conde Benckendorff29. Raymond Poincar30. Ren Viviani31. Nikola Paic em 1919 (Harris e Ewing Collection, Library of Congress)32. H. H. Asquith33. Nicolau II e Poincar (Hulton Royals Collection/Getty Images)34. Theobald von Bethmann Hollweg (Hulton Archive/Getty Images)35. Conde Lichnowsky36. Pegadas de Gavrilo Princip, Sarajevo (c.1955) (Hulton Archive/Getty Images)

Lista dos mapas

1. Europa em 19142. Bsnia-Herzegvina em 19143. Sistema europeu em 18874. Sistemas de alianas em 19075. Os Blcs em 19126. Os Blcs: Linhas do cessar-fogo depois da Primeira Guerra dos Blcs7. Os Blcs depois da Segunda Guerra dos Blcs

Agradecimentos

Em 12 de maio de 1916, James Joseph OBrien, invernador em Tallwood Station no norte deNew South Wales, apresentou-se para o alistamento na Fora Imperial Australiana (FIA). Depoisde dois meses de instruo no centro de exposies de Sydney, o praa OBrien foi designadopara o 35o Batalho da 3a Diviso da FIA e embarcou no Benalla para a Inglaterra, onde continuouo treinamento. Por volta de 18 de agosto de 1917, ele se incorporou sua unidade na Frana, atempo de participar da Terceira Batalha de Ypres.

Jim era meu tio-av. J fazia vinte anos que ele tinha morrido quando minha tia Joan Pratt,Joan Munro quando solteira, deu-me o dirio que ele escrevera durante a guerra, um caderninhomarrom com muitas listas de bagagem, endereos, instrues e uma ou outra anotao lacnicasobre o dia a dia. Assim ele comentou sobre a batalha de Broodseinde Ridge de 4 de outubro de1917: Foi uma grande batalha, e no tenho vontade de ver outra. Eis seu relato da batalha dePasschendaele II, datado de 12 de outubro de 1917:

Samos do acampamento (que ficava perto de Ypres) rumo ao setor Passchendaele da linha.Levamos dez horas e no fim da marcha estvamos exaustos. Vinte e cinco minutos depois dechegar (eram 5h25 da manh do dia 12), pulamos a trincheira. Tudo correu bem atencontrarmos um pntano que deu um trabalho enorme para atravessar. Quando finalmenteconseguimos, nossa barragem tinha mudado para cerca de uma milha mais frente, etivemos que nos apressar para alcan-la. Por volta das onze horas da manh chegamos aonosso segundo objetivo, e l permanecemos at as quatro horas, quando precisamos bater emretirada []. S a vontade de Deus me fez escapar, pois voavam balas de metralhadora eestilhaos por toda parte. Jim deixou a ativa s duas da madrugada de 30 de maio de 1918, quando, segundo seu dirio,

barrou uma bomba da terra natal e foi ferido nas duas pernas. O projtil caiu a seus ps,explodiu seu corpo de baixo para cima e matou os homens sua volta.

Quando o conheci, Jim era um idoso frgil e sardnico, de memria fraca. Esquivava-se defalar sobre o que vivenciou na guerra, mas me lembro de uma conversa que tivemos quando eu

tinha uns nove anos. Perguntei se os homens que combateram sentiam medo de lutar ouestavam entusiasmados. Alguns tinham medo, outros estavam entusiasmados, ele respondeu.Perguntei ento se os entusiasmados lutaram melhor que os medrosos. No, disse Jim. Osentusiasmados foram os primeiros a se borrar. Essa resposta me impressionou profundamentee por algum tempo me intrigou, sobretudo a palavra primeiros.

O horror desse conflito remoto ainda absorve nossa ateno. Mas seu mistrio jaz em outraparte, nos obscuros e tortuosos acontecimentos que ensejaram tamanha carnificina. Para estud-los, acumulei mais dvidas intelectuais do que jamais poderei saldar. Ajudaram-me a aguarmeus argumentos as conversas com Daniel Anders, Margaret Lavinia Anderson, Chris Bayly,Tim Blanning, Konstantin Bosch, Richard Bosworth, Annabel Brett, Mark Cornwall, RichardDrayton, Richard Evans, Robert Evans, Niall Ferguson, Isabel V. Hull, Alan Kramer, GntherKronenbitter, Michael Ledger-Lomas, Dominic Lieven, James Mackenzie, Alois Maderspacher,Mark Migotti, Annika Mombauer, Frank Lorenz Mller, William Mulligan, Paul Munro, PaulRobinson, Ulinka Rublack, James Sheenan, Brendan Simms, Robert Tombs e Adam Tooze. IraKatznelson deu-me subsdios sobre a teoria da deciso; Andrew Preston, sobre as estruturasadversrias na elaborao da poltica externa; Holger Afflerbach sobre os dirios de Riezler, aTrplice Aliana e detalhes mais sutis da poltica alem na Crise de Julho; Keith Jeffery sobreHenry Wilson; John Rhl sobre o ciser Guilherme II. Hartmut Pogge von Strandmann chamou-me a ateno para as pouco divulgadas mas informativas memrias de seu parente BasilStrandmann, que era o encarregado dos negcios da Rssia em Belgrado quando a guerracomeou em 1914. Keith Neilson partilhou um estudo no publicado sobre os tomadores dedeciso na cpula do Ministrio das Relaes Exteriores britnico; Bruce Menning permitiu-meler seu importante artigo sobre a Inteligncia militar russa, a ser publicado no Journal of ModernHistory; Thomas Otte enviou-me um arquivo em PDF da pr-publicao de seu magistral novoestudo The Foreign Office Mind [A mente do Ministrio das Relaes Exteriores], e JrgenAngelow fez o mesmo com seu Der Weg in die Urkatastrophe [O caminho para a catstrofe]; JohnKeiger e Gerd Krumeich enviaram-me separatas e referncias sobre a poltica externa francesa;Andreas Rose mandou-me um exemplar recm-impresso de seu livro Zwischen Empire undKontinent [Entre o Imprio e o Ocidente]; Zara Steiner, cujos livros so referncia na rea,generosamente me concedeu seu tempo e seus conhecimentos, e me franqueou um dossi deartigos e anotaes. Nos ltimos cinco anos, Samuel R. Williamson, cujos estudos clssicos sobrea crise internacional e a poltica externa austro-hngara abriram vrias das linhas de estudoexploradas neste livro, enviou captulos no publicados, contatos e referncias, e me permitiuvasculhar seu crebro em busca de conhecimentos raros sobre a poltica austro-hngara. Aamizade por e-mail resultante foi uma das recompensas de trabalhar neste livro.

Devo agradecer tambm aos que me ajudaram a transpor barreiras lingusticas: a MiroslavDoen pela orientao sobre as fontes impressas srvias e a Srdjan Jovanovic pela assistnciacom os documentos de Belgrado; a Rumen Cholakov pela assessoria nos textos secundrios

blgaros e a Serguei Podbolotov, diligente lavrador das vinhas da histria, cuja sabedoria,inteligncia e humor irnico tornaram minhas pesquisas em Moscou tanto prazerosas eesclarecedoras como produtivas. Minha gratido vai ainda para as almas generosas que lerampartes do trabalho ou todo ele em vrios estgios do processo: Jonathan Steinberg e JohnThompson leram cada palavra e contriburam com perspicazes comentrios e sugestes. DavidReynolds ajudou a vencer barreiras urgentes nos captulos mais difceis. Patrick Higgins fez aleitura crtica do primeiro captulo e alertou sobre armadilhas. Amitar Ghosh deu-me feedback erecomendaes inestimveis. Sobre todos os erros que permanecem, aceito a responsabilidade.

uma grande sorte ter como agente Andrew Wylie, a quem devo muito, e sou imensamentegrato a Simon Winder, da Penguin, por seu incentivo, orientao e entusiasmo, e a RichardDuguid por supervisionar a produo deste livro com amvel eficincia. A incansvel editora detexto Bela Cunha procurou e corrigiu todos os erros, infelicidades, incoerncias e afdeos(aspas suprfluas) que conseguiu encontrar, e permaneceu sorridente por pouco diante dosmeus esforos para enlouquec-la mexendo interminavelmente no texto. Nina Lbbren, cujoav, Julius Lbbren, tambm lutou em Passchendaele em 1917 (do outro lado), tolerou meutrabalho com uma postura de benevolente neutralidade. Este livro dedicado com amor eadmirao aos nossos dois filhos, Josef e Alexander, na esperana de que nunca conheam aguerra.

Introduo

O continente europeu estava em paz na manh de domingo, 28 de junho de 1914, quando oarquiduque Francisco Ferdinando e sua mulher, Sophie Chotek, chegaram estao de trem deSarajevo. Trinta e sete dias depois, estava em guerra. O conflito que comeou naquele veromobilizou 65 milhes de soldados e deixou um saldo de trs Imprios desbaratados, 20 milhesde militares e civis mortos e 21 milhes de feridos. Os horrores do sculo XX na Europa nasceramdessa catstrofe. Essa foi, nas palavras do historiador americano Fritz Stern, a primeiracalamidade do sculo XX, a calamidade da qual brotaram todas as outras.1 O debate sobre suascausas principiou antes de se ouvirem os primeiros tiros e prossegue at hoje. Gerou umaliteratura histrica de tamanho, refinamento e intensidade moral sem precedentes. Para ostericos das relaes internacionais, os acontecimentos de 1914 continuam a representar a crisepoltica par excellence, to complexos que admitem um sem-nmero de hipteses.

O historiador que procura entender a gnese da Primeira Guerra Mundial confronta vriosproblemas. O primeiro e mais bvio a superabundncia de fontes. Cada um dos Estadosbeligerantes produziu edies oficiais em muitos volumes de documentos diplomticos,resultando num vastssimo trabalho arquivstico coletivo. Correntes traioeiras percorrem esseoceano de fontes. A maioria das edies de documentos oficiais produzidas no perodoentreguerras tem um vis escusatrio. A publicao alem Die Grosse Politik [A grande poltica],em 57 volumes, contendo 15889 documentos organizados em trezentas reas temticas, no foipreparada com objetivos puramente acadmicos; esperava-se que a revelao dos registros pr-guerra bastasse para refutar a tese da culpa pela guerra cultuada nos termos do Tratado deVersalhes.2 Tambm para o governo francs a publicao de documentos no ps-guerra foi umainiciativa de carter essencialmente poltico, como declarou em maio de 1934 o ministro dasRelaes Exteriores, Jean Louis Barthou. Pretendia-se contrabalanar a campanha iniciadapelos alemes na esteira do Tratado de Versalhes.3 Em Viena, como salientou em 1926 LudwigBittner, coeditor da coleo em oito volumes sterreich-Ungarns Aussenpolitik [A polticaexterna do Imprio Austro-Hngaro], o objetivo era produzir uma edio prestigiosa a ser usadacomo fonte de consulta, antes que algum organismo internacional a Liga das Naes, talvez? forasse o governo austraco a public-la em circunstncias menos auspiciosas.4 As primeiras

publicaes documentais soviticas foram motivadas, em parte, pelo desejo de provar que aguerra fora iniciada pelo autocrtico tsar e seu parceiro de aliana, o burgus RaymondPoincar, na esperana de tirar a legitimidade das exigncias francesas de quitao deemprstimos pr-guerra.5 Mesmo na Gr-Bretanha, quando a obra British Documents on theOrigins of the War [Documentos britnicos sobre as origens da guerra] foi lanada em meio anobres apelos erudio desinteressada, o registro documental resultante no deixou de teromisses tendenciosas que produziram um quadro um tanto desequilibrado do lugar da Gr-Bretanha nos eventos que precederam a ecloso da guerra em 1914.6 Em suma, apesar de seuinegvel valor para os estudiosos, as grandes edies documentais europeias foram munio emuma guerra mundial de documentos, como observou em 1929 o historiador militar alemoBernhard Schwertfeger em um estudo crtico.7

As memrias de estadistas, comandantes e outros decisores do alto escalo, emboraindispensveis a todo aquele que tenta entender o que ocorreu no caminho para a guerra, noso menos problemticas. Algumas se mostram frustrantemente reticentes em questes deintenso interesse. Para citar exemplos: Reflections on the World War [Reflexes sobre a GuerraMundial], publicado em 1919 pelo chanceler alemo Theobald von Bethmann Hollweg,praticamente nada diz sobre o assunto de suas aes ou das aes de seus colegas durante aCrise de Julho de 1914; as memrias polticas do ministro russo das Relaes Exteriores, SergueiSazonov, so fteis, pomposas, intermitentemente falaciosas e nada informativas com respeitoao papel desse ministro em acontecimentos cruciais; as memrias em dez volumes dopresidente francs Raymond Poincar, que tratam de seus anos no poder, so propagandsticas enada reveladoras, com notveis discrepncias entre suas recordaes de acontecimentosdurante a crise e as anotaes contemporneas em seu dirio no publicado.8 As simpticasmemrias do secretrio britnico do Exterior, Sir Edward Grey, so superficiais na delicadaquesto dos compromissos que ele assumira com as potncias da entente antes de agosto de1914 e do papel que esses comprometimentos tiveram no modo como ele lidou com a crise.9

Quando o historiador americano Bernadotte Everly Schmitt, da Universidade de Chicago,viajou para a Europa em fins dos anos 1920 com cartas de apresentao para entrevistar ex-polticos que influenciaram os acontecimentos, surpreendeu-se com a aparente imunidade deseus interlocutores dvida sobre si mesmos. (A exceo foi Grey, ao comentarespontaneamente que cometera um erro ttico quando procurou negociar com Viena atravsde Berlim durante a Crise de Julho; mas o erro de julgamento a que ele aludiu teve importnciasecundria, e o comentrio refletia o caracterstico estilo dos mandarins ingleses de seautodepreciar, e no uma genuna admisso de responsabilidade.)10 Tambm houve problemasde memria. Schmitt descobriu o paradeiro de Peter Bark, ex-ministro das Finanas da Rssia edepois banqueiro londrino. Em 1914 Bark participara de reunies nas quais foram tomadasdecises de importncia crucial. No entanto, quando Schmitt o entrevistou, Bark asseverou quetinha poucas lembranas dos acontecimentos daquela poca.11 Felizmente as anotaes

contemporneas desse ex-ministro so mais informativas. Quando o pesquisador LucianoMagrini viajou a Belgrado no outono de 1937 para entrevistar todas as personalidadessobreviventes que tinham ligao conhecida com a conspirao de Sarajevo, descobriu quehavia algumas testemunhas que depunham sobre assuntos que no poderiam conhecer, outrasque permaneceram mudas ou fizeram um relato falso do que sabem, e outras ainda queacrescentaram detalhes s suas declaraes ou estavam interessadas sobretudo em sejustificar.12

Alm disso, existem lacunas significativas em nossos conhecimentos. Muitas comunicaesimportantes entre os atores principais foram verbais e ningum as registrou; s podem serreconstitudas a partir de evidncias indiretas ou testemunhos posteriores. As organizaessrvias ligadas ao assassnio em Sarajevo foram reservadas ao extremo e praticamente nodeixaram vestgios escritos. Dragutin Dimitrijevic , chefe da Inteligncia militar srvia e figurafundamental na trama para assassinar o arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo,queimava regularmente seus papis. Ainda se desconhece muita coisa sobre o contedo exatodas primeiras conversas entre Viena e Berlim a respeito do que deveria ser feito em resposta aosassassinatos em Sarajevo. Nunca foram encontradas as atas das reunies de cpula realizadasentre os lderes polticos da Frana e da Rssia de 20 a 23 de junho em So Petersburgo. Elas sodocumentos de importncia potencialmente enorme para entendermos a ltima fase da crise (osprotocolos russos provavelmente se perderam; a equipe francesa incumbida de editar osDocuments Diplomatiques Franais [Documentos diplomticos franceses] no encontrou a versofrancesa). Os bolcheviques publicaram muitos documentos diplomticos essenciais com oobjetivo de aviltar as maquinaes imperialistas das grandes potncias, mas esses documentosvieram luz em intervalos irregulares e sem uma ordem, alm de se concentrarem geralmenteem questes especficas, por exemplo, as intenes russas no Bsforo. Alguns documentos (aindano se sabe exatamente o nmero) perderam-se em trnsito no caos da Guerra Civil, e a UnioSovitica nunca apresentou um registro documental sistematicamente compilado altura dasedies britnicas, francesas, alems e austracas usadas como fontes.13 O registro publicado dolado russo permanece bastante incompleto at hoje.

A estrutura altamente complexa dessa crise outra caracterstica marcante. A crise dosmsseis de Cuba, apesar de bastante intricada, envolveu apenas dois protagonistas (EstadosUnidos e Unio Sovitica), alm de um grupo de participantes intermedirios e subordinados.Em contraste, a histria de como nasceu a Primeira Guerra Mundial precisa explicar asinteraes multilaterais entre cinco participantes autnomos de igual importncia: Alemanha,ustria-Hungria, Frana, Rssia e Gr-Bretanha; seis, se acrescentarmos a Itlia; e ainda vriosoutros participantes soberanos estrategicamente significativos e igualmente autnomos, como oImprio Otomano e os Estados da pennsula balcnica, uma regio de alta tenso e instabilidadepoltica nos anos que precederam a ecloso da guerra.

Um elemento adicional de complexidade o fato de muitos dos processos de elaborao das

polticas dentro de cada Estado enredado na crise no serem nada transparentes. Poderamospensar em julho de 1914 como uma crise internacional, um termo que sugere um conjunto deEstados-naes, concebidos como entidades compactas, autnomas e distintas, como bolas debilhar numa mesa. Mas as estruturas soberanas que geraram as polticas durante a crise eramprofundamente desunificadas. Havia incerteza (e continua a haver at hoje entre oshistoriadores) sobre onde, exatamente, se situava o poder de moldar as polticas entre os vriosExecutivos, e as polticas ou pelo menos diversas iniciativas que impeliam as polticas no necessariamente provinham da cpula do sistema; podiam emanar de localizaes bemperifricas na organizao diplomtica, de comandantes militares, de funcionrios ministeriais eat de embaixadores, que frequentemente as elaboravam eles prprios.

Assim, as fontes sobreviventes oferecem um caos de promessas, ameaas, planos eprognsticos. E isso, por sua vez, ajuda a explicar por que a ecloso dessa guerra mostrou-sesuscetvel a uma variedade to desnorteante de interpretaes. Praticamente no existe nenhumponto de vista sobre suas origens que no possa ser corroborado por uma seleo das fontesdisponveis. E isso, por sua vez, contribui para explicar por que a literatura sobre as origens daPrimeira Guerra Mundial ganhou dimenses to vastas e por que nenhum historiadorisoladamente (nem mesmo um autor imaginrio que fosse fluente em todas as lnguasnecessrias) poderia esperar ler tudo a respeito durante uma vida inteira; vinte anos atrs, umlevantamento da literatura corrente indicou 25 mil livros e artigos.14 Alguns relatosconcentraram-se na culpabilidade de um Estado vilo (a Alemanha tem sido a mais cotada, masnenhuma das grandes potncias escapou de ser apontada como principal responsvel); outrosrepartiram a culpa pelos participantes ou buscaram falhas no sistema. Sempre haviacomplexidade suficiente para alimentar continuamente a discusso. E alm dos debates doshistoriadores, que tendem a enfocar questes de culpabilidade ou da relao entre aoindividual e restrio estrutural, temos um alentado conjunto de interpretaes sobre relaesinternacionais, nas quais ocupam o centro do palco categorias como intimidao, dtente einadvertncia, ou mecanismos universalizveis como equilibrar, barganhar e aderir poroportunismo. Embora o debate sobre esse tema agora beire um sculo de existncia, no hrazo para crer que ele esteja esgotado.15

Entretanto, se o debate antigo, o tema ainda atual. Na verdade, ainda mais atual e maisrelevante agora do que vinte ou trinta anos atrs. As mudanas no mundo alteraram nossaperspectiva sobre os acontecimentos de 1914. Nos anos 1960-80, uma espcie de encanto peloperodo cresceu na percepo popular dos eventos de 1914. Era fcil imaginar o desastre doltimo vero europeu como um drama de costumes eduardiano. Os rituais rebuscados euniformes vistosos, o ornamentalismo de um mundo em grande medida ainda organizado emtorno da monarquia hereditria tinham um efeito de distanciamento sobre a recordaodaqueles tempos. Pareciam indicar que os protagonistas eram gente de outro mundo jdesaparecido. Insinuava-se a suposio de que, se os chapus dos atores tinham berrantes penas

verdes de avestruz, provavelmente os pensamentos e motivaes daquelas figuras tambmtinham.16

Entretanto, o que sem dvida surpreende o leitor do sculo XXI que acompanha os rumos dacrise do vero de 1914 sua gritante modernidade. O processo comeou com um esquadro dehomens-bomba suicidas e um cortejo de automveis. Por trs do ultraje de Sarajevo estava umaorganizao declaradamente terrorista com um culto de sacrifcio, morte e vingana; mas essaorganizao era extraterritorial, sem uma localizao geogrfica ou poltica clara; estavadispersa em clulas que transpunham fronteiras polticas, no tinha como ser chamada responsabilidade, suas ligaes com qualquer governo soberano eram indiretas, ocultas ecertamente dificlimas de discernir de fora da organizao. Podemos at dizer que, hoje, julhode 1914 menos distante de ns menos ilegvel do que era nos anos 1980. Desde o fim daGuerra Fria, um sistema de estabilidade bipolar deu lugar a um conjunto de foras maiscomplexo e imprevisvel, que inclui Imprios em declnio e potncias emergentes umaconjuntura que convida comparao com a Europa de 1914. Essas mudanas de perspectivanos impelem a repensar a histria de como a guerra emergiu na Europa em 1914. Aceitar essedesafio no significa adotar um presentismo vulgar que refaz o passado para se amoldar snecessidades do presente; significa reconhecer as caractersticas do passado que nosso novoponto de vista permite ver com mais clareza.

Entre essas caractersticas est o contexto nos Blcs ao eclodir a guerra. A Srvia um dospontos cegos na historiografia da Crise de Julho. Em muitos estudos, o assassnio em Sarajevo visto como mero pretexto, um evento que pouco influenciou as verdadeiras foras cujainterao provocou o conflito. Em um excelente estudo recente sobre a deflagrao da guerraem 1914, os autores declaram que, em si, as mortes [em Sarajevo] no causaram nada. Foi ouso que se deu a esse acontecimento que levou os pases guerra.17 A marginalizao dossrvios e, com ela, da dimenso mais ampla dos Blcs na histria comeou durante a prpriaCrise de Julho, que surgiu como reao aos assassinatos em Sarajevo, mas depois mudou demarcha e entrou em uma fase geopoltica na qual a Srvia e suas aes ocuparam um lugarsubordinado.

Nossa bssola moral tambm mudou. O fato de a Iugoslvia dominada pela Srvia emergircomo um dos Estados vitoriosos na guerra pareceu justificar implicitamente o ato do homemque puxou o gatilho em 28 de junho decerto foi esse o ngulo das autoridades iugoslavas, quemarcaram o local do ato com pegadas em bronze e uma placa celebrando os primeiros passospara a liberdade da Iugoslvia dados pelo assassino. Em uma era na qual a ideia nacional aindatransbordava de promessas, houve uma simpatia intuitiva com o nacionalismo eslavo do sul epouca com a ponderosa comunidade multinacional do Imprio Habsburgo. As guerrasiugoslavas dos anos 1990 lembraram-nos da letalidade do nacionalismo balcnico. Depois deSrebrenica e do cerco de Sarajevo, ficou mais difcil pensar na Srvia como mero objeto ouvtima da poltica de grandes potncias e mais fcil conceber o nacionalismo srvio como uma

fora histrica por si mesmo. Da perspectiva da Unio Europeia atual, somos inclinados a vercom mais simpatia do que antes ou pelo menos no com tanto desprezo a extinta colcha deretalhos da ustria-Hungria habsburguiana.

Por fim, talvez hoje seja menos bvio se devemos ou no descartar os dois assassinatos emSarajevo como meros reveses, incapaz de realmente pesar como causa. O ataque ao WorldTrade Center em setembro de 2001 exemplificou o modo como um nico acontecimentosimblico, por mais que possa estar enredado em processos histricos mais abrangentes, podemudar irrevogavelmente os rumos das polticas, tornando obsoletas velhas opes e dotandonovas de uma urgncia imprevista. Pr Sarajevo e os Blcs novamente no centro da histriano significa demonizar os srvios ou seus estadistas; tampouco nos exime da obrigao deentender as foras que influenciaram ou impeliram aqueles polticos, autoridades e ativistassrvios cujo comportamento e decises ajudaram a determinar que tipo de consequnciasteriam as mortes em Sarajevo.

Este livro procura, portanto, compreender a Crise de Julho de 1914 como um eventomoderno, o mais complexo dos tempos modernos, talvez de qualquer poca at hoje. Preocupa-se menos com o porqu da guerra e mais com o modo como ela veio a acontecer. As questes doporqu e do como so logicamente inseparveis, mas nos levam em direes diferentes. Aquesto do como nos convida a examinar atentamente as sequncias de interaes queproduziram determinados resultados. Em contraste, a questo do porqu nos convida a ir embusca de causas remotas e categricas: imperialismo, nacionalismo, armamentos, alianas, altasfinanas, ideias de honra nacional, mecnica da mobilizao. A abordagem do porqu trazcerta clareza analtica, mas tambm tem um efeito distorcedor, pois cria a iluso de uma pressocausal a acumular-se constantemente; os fatores empilham-se uns sobre os outros, forando osobrevir dos acontecimentos; os atores polticos tornam-se meros executores de foras fora deseu controle, estabelecidas h muito tempo.

A histria que este livro conta, em contraste, saturada de atos. Os principais decisores reis, imperadores, ministros das Relaes Exteriores, embaixadores, comandantes militares euma multido de autoridades menores caminharam em direo ao perigo em passosvigilantes, calculados. A ecloso da guerra foi a culminncia de cadeias de decises tomadas poragentes polticos com objetivos conscientes, que eram capazes de certo grau de autorreflexo,avaliaram um conjunto de opes e fizeram os melhores julgamentos ao seu alcance com basenas melhores informaes de que dispunham. Nacionalismo, armamentos, alianas e finanasforam, todos, parte da histria, mas s podemos dar-lhes um peso explicativo se for possvelconsiderar que eles moldaram as decises que combinadas fizeram a guerra eclodir.

Um historiador blgaro da Guerra dos Blcs observou recentemente que, assim quefazemos a pergunta por qu, a culpa torna-se o ponto de enfoque.18 Questes de culpa eresponsabilidade na ecloso da guerra entraram nessa histria mesmo antes do conflito terincio. Todo o registro documental est repleto de imputaes de culpa (era um mundo no qual

sempre se atribuam as intenes agressivas aos oponentes e as intenes defensivas a simesmo), e o julgamento no Artigo 231 do Tratado de Versalhes assegurou a contnuaproeminncia da questo da culpa pela guerra. Aqui tambm o enfoque do como sugere umaabordagem alternativa: uma jornada atravs dos acontecimentos que no movida pelanecessidade de traar um grfico de culpa contra este ou aquele Estado ou indivduo, e procura,em vez disso, identificar as decises que acarretaram a guerra e compreender o raciocnio ou asemoes por trs delas. Isso no significa excluir totalmente da discusso as questes deresponsabilidade; o objetivo permitir que as questes do porqu cresam, por assim dizer, dasquestes do como, e no vice-versa.

Este livro conta a histria de como a guerra veio a acontecer na Europa continental.Reconstitui os caminhos para a guerra em uma narrativa de mltiplas camadas que engloba osprincipais centros de deciso em Viena, Berlim, So Petersburgo, Paris, Londres e Belgrado,com breves excurses por Roma, Constantinopla e Sfia. O estudo divide-se em trs partes. Aprimeira enfoca os dois antagonistas, Srvia e ustria-Hungria, cuja desavena acendeu oconflito, acompanhando sua interao at a vspera dos assassinatos em Sarajevo. A segundainterrompe a abordagem narrativa para fazer quatro perguntas em quatro captulos: comosurgiu a polarizao da Europa em blocos opostos? Como os governos dos Estados europeusgeravam a poltica externa? Como os Blcs uma regio perifrica distante dos centros depoder e riqueza europeus veio a ser o teatro de uma crise dessa magnitude? Como umsistema internacional que parecia estar entrando em uma era de dtente produziu uma guerrageral? A terceira parte comea com os assassinatos em Sarajevo e contm uma narrativa daprpria Crise de Julho, examinando as interaes entre os principais centros decisrios etrazendo luz os clculos, equvocos e decises que impeliram a crise de uma fase a outra.

Fundamental neste livro o argumento de que os acontecimentos de julho de 1914 s fazemsentido quando esclarecemos as jornadas dos principais tomadores de deciso. Para isso,precisamos mais do que simplesmente recapitular a sequncia de crises internacionais queprecederam o incio da guerra: precisamos entender como esses acontecimentos foramvivenciados e entremeados em narrativas que estruturaram as percepes e motivaram oscomportamentos. Por que os homens cujas decises levaram a Europa guerra se comportarame viram as coisas daquele modo? Como o receio e o pressentimento expressos em tantas dasfontes se relacionam com a arrogncia e as bravatas que encontramos, muitas vezes nosmesmos indivduos? Por que so to importantes as caractersticas exticas do cenrio pr-guerra, como a Questo Albanesa e o emprstimo blgaro, e como elas se combinaram nacabea dos que exerciam o poder poltico? Quando os decisores falavam sobre a situaointernacional ou as ameaas externas, estariam vendo algo real ou projetando seus medos edesejos sobre seus oponentes? Ou ambas as coisas? O objetivo reconstituir o mais vividamentepossvel as posies de deciso altamente dinmicas ocupadas pelos principais atores antes edurante o vero de 1914.

Alguns dos textos recentes mais interessantes a respeito dessa guerra argumentam que, longede ser inevitvel, ela era, na verdade, improvvel, pelo menos at acontecer.19 Decorreriadessa viso que o conflito no foi consequncia de uma deteriorao de longo prazo, e sim dechoques de curto prazo no sistema internacional. Essa interpretao, aceita ou no, tem omrito de franquear a histria para a contingncia. E certamente verdade que, emboraalgumas das tendncias que examino neste livro paream apontar inequivocamente na direodo que de fato aconteceu em 1914, existem outros vetores da mudana no pr-guerra quesugerem resultados diferentes no concretizados. Tendo isso em mente, o livro procura mostrarcomo as peas de causalidade se combinaram e, uma vez encaixadas, permitiram que a guerraacontecesse mas de modo a no determinar excessivamente o resultado. Tentei permaneceralerta para o fato de que as pessoas, acontecimentos e foras descritos neste livro levavamconsigo as sementes de outros futuros, talvez menos terrveis.

PARTE ICAMINHOS PARA SARAJEVO

1. Fantasmas srvios

ASSASSINATO EM BELGRADO

Pouco depois das duas da manh de 11 de junho de 1903, 28 oficiais do Exrcito srvio

aproximaram-se da entrada principal do palcio real em Belgrado.* Depois de uma troca detiros, as sentinelas porta foram detidas e desarmadas. Com as chaves tomadas do capito emservio, os conspiradores entraram no saguo da recepo e seguiram para o dormitrio real,correndo pelas escadas e passagens. Encontraram os apartamentos do rei barrados por duaspesadas portas de carvalho. Explodiram-nas com uma caixa de dinamite. A carga fortssimaarrancou as portas dos gonzos e as arremessou para dentro da antecmara, matando o ajudantereal que estava atrs delas. A exploso queimou os fusveis do palcio, que mergulhou naescurido. Impassveis, os intrusos descobriram velas em um aposento prximo e entraram noapartamento real. Quando chegaram ao quarto de dormir, o rei Alexandar e a rainha Draga jno estavam l. Mas um romance francs jazia aberto com a capa para cima na mesinha decabeceira da rainha. Algum notou que a cama ainda estava quente: pelo jeito, tinham sadofazia pouco tempo. Depois de vasculharem o quarto em vo, os intrusos esquadrinharam opalcio luz de velas, de revlver em punho.

Enquanto os oficiais irrompiam em cmodo aps cmodo atirando nos armrios, tapearias,sofs e outros possveis esconderijos, o rei Alexandar e a rainha Draga comprimiam-se no andarsuperior, em um minsculo anexo contguo ao quarto de dormir onde as criadas da rainhapassavam e cerziam roupas. Por quase duas horas a busca prosseguiu. O rei aproveitou esseintervalo para vestir o mais silenciosamente possvel calas e uma camisa de seda vermelha.No queria que os inimigos o encontrassem nu. A rainha deu um jeito de se cobrir com umaangua, um espartilho de seda branca e um p de meia amarela.

Em vrias partes de Belgrado, outras vtimas acabaram por ser encontradas e mortas: os doisirmos da rainha, suspeitos de cobiar o trono srvio, foram induzidos a deixar a casa da irmem Belgrado e levados para uma casa da guarda prxima do palcio, onde foram insultados ebarbaramente apunhalados.1 Os assassinos tambm invadiram os aposentos do primeiro-

ministro, Dimitrije Cincar-Markovic , e do ministro da Guerra, Milovan Pavlovic . Executaramambos; Pavlovic , que se escondera num ba de madeira, com 25 tiros. O ministro do Interior,Belimir Theodorovic , foi baleado e tido por morto, mas depois se recuperou dos ferimentos.Outros ministros foram detidos.

No palcio, o leal primeiro ajudante do rei, Lazar Petrovic , que tinha sido desarmado edetido depois de uma troca de tiros, foi levado por corredores escuros e forado a chamar pelorei em cada porta. Os conspiradores retornaram cmara real para uma segunda busca e porfim encontraram uma entrada oculta atrs das cortinas. Quando um dos atacantes props abrir aparede com um machado, Petrovic viu que o jogo tinha terminado e concordou em pedir ao reipara sair. Por trs do painel, o rei indagou quem estava chamando, e o ajudante respondeu: Soueu, o seu Laza, abra a porta para seus oficiais!. O rei replicou: Posso confiar no juramento dosmeus oficiais?. Os conspiradores responderam que sim. Segundo um relato, o rei, descado, deculos e com sua incongruente camisa vermelha de seda, apareceu abraando a rainha. O casalfoi abatido por uma saraivada de tiros queima-roupa. Petrovic sacou um revlver que traziaescondido, em uma tentativa desesperada de proteger seu senhor (ou pelo menos isso foialegado mais tarde), mas tambm foi morto. Seguiu-se uma orgia de violncia gratuita. Oscorpos foram golpeados por espadas, dilacerados por baionetas, parcialmente estripados eesquartejados com machados at ficarem irreconhecveis, segundo o testemunho posterior dotraumatizado barbeiro italiano do rei, que recebeu ordens de recolher os corpos e vesti-los parao sepultamento. O corpo da rainha foi iado at o parapeito da janela do quarto e jogado nojardim, praticamente despido e viscoso de sangue. Relatou-se que, quando os assassinostentaram fazer o mesmo com Alexandar, uma das mos do rei fechou-se momentaneamente aoredor do parapeito. Um oficial golpeou o punho com um sabre, e o corpo despencou e seestatelou l embaixo, espalhando dedos decepados. Quando os assassinos se reuniram no jardimpara fumar e inspecionar os resultados de sua obra, tinha comeado a chover.2

1. Petar I Karadjordjevic.

Os acontecimentos de 11 de junho de 1903 marcaram uma guinada na histria poltica da

Srvia. A dinastia Obrenovic , que governara por boa parte da breve vida do pas como umEstado independente moderno, no existia mais. Horas depois do assassnio, os conspiradoresanunciaram o fim da linhagem Obrenovic e a sucesso no trono por Petar Karadjordjevic , entoexilado na Sua.

Por que um ajuste de contas to brutal com a dinastia Obrenovic ? A monarquia nuncaestabelecera uma existncia institucional estvel na Srvia. A raiz do problema estava, emparte, na coexistncia de famlias dinsticas rivais. Dois grandes cls, os Obrenovic e osKaradjordjevic , tinham se destacado na luta para libertar a Srvia do controle otomano. O ex-pastor de vacas Jorge Negro (em srvio, Kara Djordje) Petrovic , fundador da linhagemKaradjordjevic , liderou um levante em 1804 que conseguiu expulsar os otomanos da Srvia poralguns anos. Mas ele fugiu para o exlio na ustria em 1813, quando os otomanos armaram umacontraofensiva. Dois anos depois, um segundo levante contou com a liderana de MiloObrenovic , um flexvel maquinador poltico que conseguiu negociar com as autoridadesotomanas o reconhecimento do principado srvio. Quando Karadjordjevic voltou do exlio paraa Srvia, foi assassinado por ordem de Obrenovic , com a conivncia dos otomanos. Depois dese livrar de seu principal rival poltico, Obrenovic recebeu o ttulo de prncipe da Srvia.

Membros do cl Obrenovic governaram a Srvia durante a maior parte da existncia doprincipado no Imprio Otomano (1817-78).

O enfrentamento de dinastias rivais, a localizao exposta no meio dos Imprios Otomanoe Austraco e uma cultura poltica acentuadamente irreverenciosa dominada por pequenoscamponeses foram os fatores que se combinaram e asseguraram que a monarquia permanecesseuma instituio em p de guerra. notvel que poucos dos regentes srvios do sculo XIXtenham morrido no trono de causas naturais. O fundador do principado, prncipe MiloObrenovic , foi um autocrata brutal com um reinado marcado por rebelies frequentes. Novero de 1839, Milo abdicou em favor de seu filho mais velho, Milan; o novo rei, combalidopelo sarampo, nem chegou a tomar conscincia de sua ascenso ao trono, e morreu treze diasdepois. O reinado do filho mais novo, Mihailo, encerrou-se prematuramente quando ele foideposto por uma rebelio em 1842, abrindo caminho para a ascenso de um Karadjordjevic nada menos do que Alexandar, filho do Negro Jorge. Mas em 1858, Alexandar tambm foiforado a abdicar, para ser sucedido novamente por Mihailo, que voltou ao trono em 1860.Mihailo no foi mais popular nesse segundo reinado do que havia sido no primeiro; oito anosdepois, acabou assassinado, juntamente com uma prima, em uma conspirao que pode tercontado com o apoio do cl Karadjordjevic .

O longo reinado do sucessor de Mihailo, o prncipe Milan Obrenovic (1868-89), proporcionoualguma continuidade poltica. Em 1882, quatro anos depois que o Congresso de Berlim concedeu Srvia a condio de Estado independente, Milan proclamou-a reino e a si mesmo, rei. Noentanto, nveis elevados de turbulncia poltica continuaram a ser um problema. Em 1883, oempenho do governo para tirar de circulao as armas de fogo de milcias camponesas nonoroeste da Srvia desencadeou uma grande rebelio provinciana, a revolta de Timok. Milanreagiu com represlias brutais aos rebeldes e uma caa s bruxas contra figuras do alto escalopoltico em Belgrado, suspeitas de ter fomentado a insurgncia.

A cultura poltica srvia transformou-se no comeo dos anos 1880 com o surgimento departidos polticos do tipo moderno, com jornais, assembleias, manifestos, estratgias decampanha e comits regionais. A essa formidvel nova fora na vida pblica o rei respondeucom medidas autocrticas. Quando as eleies de 1883 resultaram em uma maioria hostil noParlamento srvio (conhecido como Skuptina), o rei se recusou a nomear um governorecrutado no Partido Radical, dominante, e escolheu, em vez disso, formar um gabinete deburocratas. A Skuptina foi aberta por decreto e ento fechada por decreto dez minutos depois.Uma desastrosa guerra contra a Bulgria em 1885, resultado de decises executivas do reitomadas sem consultar ministros nem Parlamento, e um amargo e escandaloso divrcio de suamulher, a rainha Nathalie, solaparam ainda mais a posio do monarca. Quando Milan abdicouem 1889 (na esperana, entre outras coisas, de desposar a bela e jovem esposa de seu secretriopessoal), no deixou saudade.

A regncia incumbida de gerir os assuntos da Srvia durante a menoridade do filho de Milan,

o prncipe herdeiro Alexandar, durou quatro anos. Em 1893, com apenas dezesseis anos,Alexandar derrubou a regncia em um esdrxulo golpe de Estado: os ministros do gabineteforam convidados para um jantar e cordialmente informados durante um brinde de que estavamtodos presos; o jovem rei anunciou que pretendia assumir todo o poder real; os principaisprdios ministeriais e a administrao do telgrafo j estavam ocupados pelas Foras Armadas.3

Os cidados de Belgrado acordaram na manh seguinte com a cidade coberta de cartazesavisando que Alexandar tomara o poder.

Na verdade, o ex-rei Milan ainda controlava os acontecimentos nos bastidores. Ele prpriohavia formado a regncia e engendrado o golpe em benefcio do filho. Em uma grotescamanobra de famlia para a qual difcil encontrar paralelo na Europa contempornea, o pai queabdicou serviu de principal conselheiro do filho real. Entre 1897 e 1900, essa combinao foiformalizada na duarquia Milan-Alexandar. O rei-pai Milan foi nomeado supremocomandante do Exrcito srvio, o primeiro civil a exercer esse cargo.

No reinado de Alexandar, a histria da dinastia Obrenovic entrou na sua fase terminal.Apoiado dos bastidores pelo pai, Alexandar rapidamente desperdiou a esperanosa boavontade que costuma acompanhar o incio de um novo regime. Desconsiderou as clusulasrelativamente liberais da Constituio srvia e imps uma espcie de governo absolutista:eliminou o voto secreto, revogou a liberdade de imprensa, fechou jornais. Quando a lideranado Partido Radical protestou, foi excluda do poder. Alexandar aboliu, imps e suspendeuConstituies como um ditador barato. No mostrou respeito pela independncia do Judicirioe chegou at a tramar contra a vida de polticos veteranos. O espetculo do rei e do rei-paiacionando levianamente as alavancas do Estado lado a lado sem falar na rainha-me,Nathalie, que continuava a ser uma figura importante nos bastidores, apesar do fim de seucasamento com Milan teve um impacto devastador sobre o prestgio da dinastia.

A deciso de Alexandar de desposar a malfalada viva de um obscuro engenheiro nofavoreceu a situao. Ele conhecera Draga Main em 1897, quando ela era dama de honra dame dele. Draga tinha dez anos a mais do que o rei e era malquista na sociedade belgradina;muitos a julgavam infrtil e a reputavam protagonista de numerosos amores ilcitos. Duranteuma acalorada reunio do Conselho da Coroa, quando os ministros tentaram em vo dissuadir orei de se casar com Main, o ministro do Interior, Djordje Genc ic , ofereceu um argumentoeloquente: Meu senhor, no pode se casar com ela. Ela j foi amante de todo mundo inclusive minha. A recompensa do ministro pela franqueza foi uma estrondosa bofetada.Genc ic mais tarde aderiria s fileiras da conspirao regicida.4 Entreveros semelhantesocorreram com outras autoridades.5 Em uma turbulenta reunio de gabinete, o primeiro-ministro em exerccio chegou a propor que pusessem o rei em priso domiciliar ou o tirassem fora do pas, a fim de impedir a celebrao do casamento.6 Tamanha era a oposio a Mainentre as classes polticas que, durante algum tempo, o rei no conseguiu recrutar candidatosadequados a cargos elevados; a notcia do noivado de Alexandar com Draga bastou para causar

a renncia de todo o gabinete, e o rei foi obrigado a se virar com um ecltico gabinete denpcias formado por figuras desconhecidas.

2. Rei Alexandar e rainha Draga, c. 1900.

A polmica sobre o casamento tambm perturbou as relaes do rei com seu pai. De to

indignado com a perspectiva de ter Draga como nora, Milan renunciou ao cargo de comandante-chefe do Exrcito. Em carta ao filho escrita em junho de 1900, ele declarou que Alexandar estavaempurrando a Srvia para um abismo e encerrou sem rodeios com um alerta: Serei oprimeiro a dar vivas ao governo que expulsar voc do pas, depois de tamanha insensatez desua parte.7 Alexandar ainda assim levou seu plano adiante (casou-se com Draga em 23 de junhode 1900 em Belgrado) e aproveitou a oportunidade criada pela renncia do pai para fortalecerseu controle sobre a oficialidade. Expurgou os amigos de Milan (e inimigos de Draga) dos altoscargos militares e civis; o rei-pai foi mantido sob vigilncia constante, incitado a deixar a Srvia edepois impedido de retornar. Foi um alvio para o casal real quando Milan, que tinha ido morarna ustria, morreu, em janeiro de 1901.

A popularidade da monarquia reviveu brevemente em fins de 1900, com uma onda desimpatia do pblico quando o palcio anunciou que a rainha esperava um filho. Mas aindignao foi correspondentemente grande em abril de 1901, ao saberem que a gravidez deDraga tinha sido um logro destinado a aplacar a opinio pblica (espalharam-se pela capitalboatos sobre um plano frustrado de estabelecer um falso infante como herdeiro do tronosrvio). Sem fazer caso desses maus pressgios, Alexandar iniciou um culto propagandstico sua rainha, celebrando o aniversrio dela com suntuosos eventos pblicos e batizandoregimentos, escolas e at povoaes com seu nome. Ao mesmo tempo, suas contnuasmanipulaes constitucionais ganhavam em ousadia. Numa famosa ocasio em maro de 1903,o rei suspendeu a Constituio srvia na calada da noite, enquanto novas leis repressivas deimprensa e associao eram inserida s pressas nos estatutos, e ento a restaurou 45 minutosdepois.

Na primavera de 1903, Alexandar e Draga tinham conseguido unir a maior parte da sociedadesrvia contra eles. O Partido Radical, que conquistara a maioria absoluta de cadeiras naSkuptina nas eleies de 1901, ressentia-se das manipulaes autocrticas do rei. Entre aspoderosas famlias de comerciantes e banqueiros (especialmente as envolvidas na exportao degado e alimentos), muitos diziam que a parcialidade de Obrenovic por Viena na poltica externaestava transformando a economia srvia em um monoplio austraco e privando os capitalistasdo pas do acesso a mercados mundiais.8 Em 6 de abril de 1903, um protesto em Belgrado contraas manipulaes constitucionais do rei foi brutalmente dispersado pela polcia e pelosgendarmes, que mataram dezoito manifestantes e feriram cerca de cinquenta.9 Mais de cempessoas, entre elas vrios oficiais do Exrcito, foram detidas e encarceradas, embora a maioriatenha sido libertada depois de alguns dias.

No epicentro da oposio sempre crescente Coroa estava o Exrcito, que era uma das maisdinmicas instituies da sociedade srvia na virada do sculo xx. Em uma economia aindaacentuadamente rural e atrasada, onde era raro encontrar carreiras que permitissem a ascensosocial, uma patente de oficial constitua um caminho privilegiado para o status e a influncia.Essa preeminncia fora reforada pelo rei Milan, que prodigalizou verbas s Foras Armadas eexpandiu a oficialidade ao mesmo tempo que cortava os j mseros gastos do Estado com aeducao superior. Mas os anos de vacas gordas chegaram abruptamente ao fim com a partidado rei-pai em 1900. Alexandar tornou a podar o oramento das Foras Armadas, permitiu umatraso de meses nos salrios dos oficiais e, com uma poltica de favoritismo na corte, assegurouque amigos ou parentes do rei e da rainha fossem promovidos a cargos importantes emdetrimento de seus colegas. Esses ressentimentos aguaram-se com a convico disseminada apesar de desmentidos oficiais de que o rei, no tendo conseguido gerar um herdeiro desangue, estava planejando nomear para suced-lo no trono srvio o irmo da rainha Draga,Nikodije Lunjevica.10

No vero de 1901, uma conspirao militar cristalizou-se em torno de um talentoso jovem

tenente do Exrcito srvio que teria um papel importante nos acontecimentos de julho de 1914.Conhecido mais tarde como pis, porque seu fsico robusto lembrava seus admiradores dotroncudo deus touro do Antigo Egito, Dragutin Dimitrijevic tinha sido nomeado para um cargono Estado-Maior imediatamente aps sua formatura na Academia Militar da Srvia, um sinalseguro da grande estima que lhe tinham seus superiores. Dimitrijevic era feito para o mundo daconspirao poltica. Obsessivamente reservado, cem por cento dedicado ao seu trabalhomilitar e poltico, de mtodos implacveis e de uma impassibilidade glacial em momentos decrise, pis no era um homem capaz de manejar as rdeas de um grande movimento popular.Mas possua em abundncia a capacidade de, em pequenos grupos e crculos privados,conquistar e preparar discpulos, incutir um sentimento de importncia em seus seguidores,silenciar dvidas e motivar aes extremas.11 Um colaborador descreveu-o como uma forasecreta qual tenho de me pr disposio, embora minha razo no me d justificativas parafaz-lo. Outro dos regicidas no entendia o porqu da influncia de pis: nem sua inteligncianem sua eloquncia ou a fora de suas ideias pareciam suficientes para explic-la. No entantoele era o nico entre ns que, s com sua presena, podia direcionar meus pensamentos para suacorrente e, com algumas palavras ditas da maneira mais corriqueira, me tornar um obedienteexecutor de sua vontade.12 O meio em que Dimitrijevic empregava esses dons eramarcantemente masculino. As mulheres eram presena marginal na vida desse oficial, e elenunca demonstrou interesse sexual por nenhuma. Seu hbitat natural, e o cenrio de suasintrigas, era o mundo enfumaado e exclusivamente masculino dos cafs de Belgrado, umespao ao mesmo tempo privado e pblico onde as conversas podiam ser vistas semnecessariamente ser ouvidas. A mais conhecida fotografia dele que restou mostra um corpulentomaquinador bigodudo com dois companheiros em uma pose caracteristicamente conspiratria.

De incio, Dimitrijevic planejara matar o casal real em um baile no centro de Belgrado em 11de setembro (aniversrio da rainha). Em um plano que parece tirado das pginas de umaaventura de James Bond, dois oficiais atacariam uma usina de energia no Danbio que forneciaeletricidade a Belgrado, enquanto outro inutilizaria a usina menor que gerava energia para oprdio onde estava acontecendo o baile. Assim que as luzes se apagassem, os quatro assassinosde planto no baile pretendiam pr fogo nas cortinas, acionar os alarmes de incndio e liquidar orei e sua mulher forando-os a ingerir veneno (mtodo escolhido para escapar a uma possvelrevista em busca de armas de fogo). O veneno foi testado com xito em um gato, mas em todosos outros aspectos o plano malogrou. Descobriram que a usina de energia estava fortementeguardada e, de qualquer modo, a rainha tinha decidido no ir ao baile.13

Sem se desencorajar com esse e outros fiascos, os conspiradores trabalharam duro nos doisanos seguintes para ampliar o alcance do golpe. Recrutaram mais de cem oficiais, incluindomuitos militares mais jovens. Em fins de 1901 tambm tinham feito contato com lderes polticoscivis, entre eles o ex-ministro do Interior, Djordje Genc ic , aquele que tinha sido esbofeteadopor suas francas objees ao plano de casamento do rei. No outono de 1902, a conspirao

ganhou expresso formal com um juramento secreto. Redigido por Dimitrijevic -pis, elerecapitulava sem rodeios o objetivo da empreitada: Prevendo certo colapso do Estado [] eculpando fundamentalmente por isso o rei e sua amsia Draga Main, juramos mat-los e, assimajustados, assinamos abaixo.14

Na primavera de 1903, quando a trama envolvia entre 120 e 150 conspiradores, o plano paramatar o casal real dentro do palcio j estava maduro. Execut-lo, porm, requeria muitospreparativos, pois o rei e sua mulher, acometidos por uma paranoia mais do que justificada,tinham intensificado suas medidas de segurana. O rei s aparecia na cidade em companhia deum grande squito; Draga tinha tanto pavor de ser atacada que chegara a se confinar no palciopor seis semanas seguidas. Os destacamentos de guardas dentro e fora do prdio foramduplicados. To disseminados eram os rumores de um golpe iminente que em 27 de abril de1903 o Times londrino informou, citando uma fonte confidencial de Belgrado: Existe umaconspirao militar de tal magnitude contra o trono que nem o rei nem o governo ousam tomarprovidncias para esmag-la.15

O recrutamento de asseclas cruciais que tinham acesso ao interior do palcio, entre elesoficiais da Guarda do Palcio e o prprio ajudante de ordens do rei, deu aos assassinos um modode abrir caminho pelas sucessivas linhas de sentinelas at chegarem aos aposentos reais. A datado ataque foi escolhida apenas trs dias antes, quando se soube que todos os principaisconspiradores estariam em seus lugares e de prontido nos respectivos postos. Ficou acertadoque a coisa teria de ser feita o mais depressa possvel e divulgada imediatamente, a fim deprevenir uma interveno da polcia e dos regimentos que permaneciam leais ao rei.16 O desejode anunciar o sucesso da iniciativa assim que executada talvez ajude a explicar a deciso deatirar os corpos reais da sacada do quarto. pis juntou-se ao esquadro de execuo que invadiuo palcio, mas perdeu o ltimo ato do drama: foi baleado e seriamente ferido numa troca detiros com guardas na entrada principal. Ali ele caiu, perdeu a conscincia e s por pouco escapouda morte por hemorragia.

ELEMENTOS IRRESPONSVEIS O pacato povo da cidade parece generalizadamente indiferente, observou Sir George

Bonham, o ministro britnico em Belgrado, em um lapidar comunicado a Londres na noite de 11de junho.17 A revoluo srvia, relatou Bonham, tinha sido saudada com franca satisfaopelos habitantes da capital; o dia seguinte ao dos assassinatos foi vivido como um feriado, e asruas, decoradas com bandeiras. Foi total a ausncia de um pesar decoroso.18 A caractersticamais extraordinria da tragdia srvia, declarou Sir Francis Plunkett, colega de Bonham emViena, foi a extraordinria calma com que se aceitou um crime to atroz.19

3. Assassinato dos Obrenovic, em Le Petit Journal, 28 de junho de 1903.

Observadores hostis viram nessa fleuma indcios da impiedade de uma nao acostumada

por longa tradio violncia e ao regicdio. Na realidade, os cidados de Belgrado tinham boasrazes para aclamar os assassnios. Os conspiradores imediatamente entregaram o poder a umgoverno provisrio formado por todos os partidos. O Parlamento foi logo reconstitudo. Oexilado Petar Karadjordjevic foi chamado de volta ao pas e eleito rei pelo Parlamento. Aenfaticamente democrtica Constituio de 1888, agora renomeada Constituio de 1903, foireinstaurada com algumas modificaes de pouca monta. O antigo problema da rivalidade entreduas dinastias srvias subitamente virara coisa do passado. O fato de Karadjordjevic , quepassara boa parte da vida na Frana e na Sua, ser um entusiasta de John Stuart Mill najuventude, chegara a traduzir seu ensaio Sobre a liberdade para o srvio era alentador para ossditos de instinto liberal.

Ainda mais tranquilizadora foi a proclamao de Petar ao povo, pouco depois de seu retornodo exlio: ele declarou que tencionava reinar como o verdadeiro rei constitucional da Srvia.20

Agora o reino se tornava um Estado genuinamente parlamentar no qual o monarca reinava masno governava. O assassinato, durante o golpe, do repressor primeiro-ministro Cincar-Markovic

, um protegido de Alexandar, foi um sinal claro de que dali por diante o poder polticodependeria do apoio popular e de redes partidrias, e no da boa vontade da Coroa. Os partidospolticos poderiam fazer seu trabalho sem medo de represlia. A imprensa finalmente estavalivre da censura que fora a regra sob os governantes Obrenovic . Surgia a perspectiva de umavida poltica nacional sensvel s necessidades do povo e mais sintonizada com a opiniopblica. A Srvia estava no limar de uma nova era de sua existncia poltica.21

Entretanto, se o golpe de 1903 resolveu algumas questes antigas, tambm criou novosproblemas que teriam grande peso nos acontecimentos de 1914. Acima de tudo, a redeconspiratria que se juntara para assassinar a famlia real no se dissolveu, e permaneceu comouma fora importante na poltica e na vida pblica da Srvia. O governo revolucionrio

provisrio formado no dia seguinte ao dos assassinatos inclua quatro conspiradores (entre elesos ministros da Guerra, de Obras Pblicas e da Economia) e seis polticos com filiaopartidria. pis, ainda se recuperando de seus ferimentos, recebeu da Skuptina osagradecimentos formais pelo que havia feito e se tornou heri nacional. O fato de a existncia donovo regime depender do sangrento trabalho dos conspiradores, combinado ao medo do que arede ainda poderia ser capaz, dificultava a crtica aberta. Um ministro do novo governoconfidenciou ao correspondente de um jornal dez dias depois do acontecimento que achavadeplorveis os atos dos assassinos, mas no podia caracteriz-los abertamente nesses termosdevido ao sentimento que isso poderia gerar no Exrcito, de cujo apoio dependiam o trono e ogoverno.22

A rede regicida era especialmente influente na corte. At agora, informou de Belgrado oenviado britnico Wilfred Thesiger em novembro de 1905, os oficiais conspiradores formam omais importante e mesmo o nico apoio de sua Majestade; sua remoo deixaria a Coroa semnenhum partidrio cuja devoo e amizade sejam confiveis.23 Assim, no foi de surpreenderque, no inverno de 1905, quando o rei Petar procurou algum para acompanhar seu herdeiroDjordjie em uma viagem pela Europa, escolhesse justamente pis, recm-sado de uma longaconvalescena e ainda carregando trs das balas que haviam entrado em seu corpo na noite dosassassinatos. O principal arquiteto do regicdio, portanto, ficou incumbido de acompanhar oprximo rei Karadjordjevic at a concluso de sua educao principesca. No fim, Djordjie nuncase tornou rei; perdeu o direito sucesso no trono srvio em 1909 por matar seu criado pessoal achutes.24

O ministro austraco em Belgrado pde, assim, informar com apenas um pouco de exageroque o rei, mesmo depois de eleito pelo Parlamento, permanecia prisioneiro dos que o haviamlevado ao poder.25 O rei uma nulidade, concluiu um alto funcionrio do Ministrio dasRelaes Exteriores da ustria no fim de novembro. O show todo dirigido pelo pessoal do 11de junho.26 Os conspiradores usaram essa influncia para se apossar dos cargos militares egovernamentais mais desejveis. Os ajudantes reais recm-nomeados eram todosconspiradores, assim como os oficiais de armamentos e o chefe do Departamento Postal doMinistrio da Guerra, e desse modo os conspiradores podiam influenciar nomeaes demilitares, inclusive para o alto escalo. Usavam seu acesso privilegiado ao monarca para exercerinfluncia tambm sobre questes polticas de importncia nacional.27

As maquinaes dos regicidas no ficaram sem oposio. Houve presso externa para que onovo governo se afastasse da rede. A presso veio especialmente da Gr-Bretanha, que retirouseu ministro plenipotencirio e deixou a legao nas mos do encarregado de negcios,Thesiger. Ainda no outono de 1905, muitas funes de importncia simblica em Belgrado sobretudo eventos na corte continavam a ser boicotadas por representantes de grandespotncias europeias. No prprio Exrcito surgiu uma contraconspirao militar concentradana praa-forte de Ni, sob a liderana do capito Milan Novakovic , que elaborou um manifesto

exigindo a exonerao de 68 destacados regicidas. Novakovic foi logo preso e, depois de umaardorosa defesa de suas aes, ele e seus cmplices foram julgados, considerados culpados esentenciados por uma corte militar a diversas temporadas na priso. Solto dois anos depois,Novakovic retomou suas crticas pblicas aos regicidas e tornou a ser encarcerado. Emsetembro de 1907, ele e um parente morreram em circunstncias misteriosas durante umaalegada tentativa de fuga, e o escndalo causou indignao no Parlamento e na imprensaliberal.28 Portanto, a questo do relacionamento entre o Exrcito e as autoridades civispermaneceu irresoluta depois dos assassinatos de 1903, e esse estado de coisas moldaria o modocomo a Srvia lidou com os eventos de 1914.

Quem arcou com a maior parte do trabalho de gerir essa complicada constelao foi o lderdo Partido Radical, Nikola Paic . Formado em engenharia com especializao em Zurique, Paic

foi o estadista dominante do reino aps o regicdio. Entre 1904 e 1918, ele chefiou dez gabinetesem um total de nove anos. Como o homem que se situou no pice da poltica srvia antes,durante e depois dos assassnios de Sarajevo em 1914, Paic seria um dos principais atores nacrise que precedeu a ecloso da Primeira Guerra Mundial.

Paic teve inquestionavelmente uma das mais notveis carreiras polticas da histria daEuropa moderna, no s pela longevidade (foi ativo na poltica srvia por mais de quarentaanos), mas tambm pela alternncia de momentos de inebriante triunfo com situaes de perigoextremo. Embora nominalmente fosse um engenheiro, a poltica consumiu toda a sua existncia.Em parte foi por isso que permaneceu solteiro at os 45 anos.29 Desde o princpio, ele seempenhou intensamente na luta para libertar a Srvia da soberania estrangeira. Em 1875,quando ocorreu uma revolta contra o domnio turco na Bsnia, o jovem Paic viajou para lcomo correspondente do jornal irredentista Narodno Oslobodjenje [Libertao Nacional], com amisso de enviar comunicados da linha de frente da luta nacional srvia. No comeo dos anos1880, ele supervisionou a modernizao do Partido Radical, que permaneceria como a maispoderosa fora individual na poltica srvia at o comeo da Primeira Guerra Mundial.

Os radicais encarnavam uma poltica ecltica que combinava ideias constitucionais liberaiscom clamores pela expanso srvia e pela unificao territorial de todos os srvios da pennsulabalcnica. A base popular do partido e a chave para seu duradouro sucesso eleitoral eramos pequenos camponeses que compunham o grosso da populao do pas. Como um partidocampons, os radicais recorriam a uma variedade do populismo que os ligava a grupos pan-eslavistas da Rssia. Desconfiavam do Exrcito profissional, no s porque se ressentiam dascargas fiscais impostas para mant-lo, mas tambm porque permaneciam fiis ideia da milciacamponesa como a melhor e mais natural forma de organizao armada. Durante a rebelio deTimok em 1883, os radicais ficaram do lado dos camponeses que pegaram em armas contra ogoverno, e a supresso da revolta foi seguida por represlias contra lderes radicais. Paic estavaentre os suspeitos; fugiu para o exlio bem a tempo de escapar de ser preso e foi sentenciado morte in absentia. Durante seus anos de exlio, ele estabeleceu duradouros contatos em So

Petersburgo e se tornou queridinho dos crculos pan-eslvicos; a partir de ento, suas polticassempre andaram estreitamente ligadas poltica russa.30 Depois da abdicao de Milan em1889, Paic , cujo exlio fizera dele um heri do movimento radical, foi perdoado. Voltou paraBelgrado em meio adulao popular e foi eleito presidente da Skuptina, e em seguida prefeitoda capital. Mas seu primeiro mandato como primeiro-ministro (fevereiro de 1891-agosto de1892) terminou com sua renncia em protesto pelas contnuas manipulaesextraconstitucionais de Milan e dos regentes.

Em 1893, em seguida a seu golpe contra a regncia, Alexandar despachou Paic para So

Petersburgo como enviado extraordinrio da Srvia. O objetivo era aplacar a ambio polticade Paic e ao mesmo tempo tir-lo de Belgrado. Paic se esforou para aprofundar as relaesentre a Rssia e a Srvia, no fazendo segredo de sua convico de que a futura emancipaonacional dependeria essencialmente da ajuda russa.31 Mas seu trabalho foi interrompido peloretorno do rei-pai Milan cena poltica de Belgrado. Os radicais foram perseguidos e expurgadosdo servio civil, e Paic foi chamado de volta. Nos anos do reinado Milan-Alexandar, Paic foivigiado de perto e mantido longe do poder. Em 1898 sentenciaram-no a nove meses de prisosob o pretexto de ter insultado Milan em uma publicao do partido. Paic continuava preso em1889 quando o pas sofreu uma comoo com um malogrado atentado contra a vida do rei-pai.Mais uma vez, os radicais eram suspeitos de cumplicidade na trama, embora sua ligao com ojovem bsnio que atirou continue desconhecida. O rei Alexandar exigiu que Paic fosseexecutado por suspeita de cumplicidade na tentativa de assassinato, mas a vida do lder radicalfoi salva ironicamente, tendo em vista o que aconteceria mais tarde por exortaes

urgentes do governo austro-hngaro. Em artimanha caracterstica do reinado de Alexandar,Paic foi informado de que seria executado em companhia de uma dzia de colegas radicais, amenos que assinasse uma admisso de corresponsabilidade moral pela tentativa de assassinato.Ignorando que sua vida j fora salva pela interveno de Viena, Paic aquiesceu; o documentofoi publicado e ele saiu da priso sob a suspeita popular de ter incriminado seu partido parasalvar a prpria pele. Estava biologicamente vivo, mas, pelo menos por ora, politicamentemorto. Durante os conturbados ltimos anos do reinado de Alexandar, ele se retirou quaseinteiramente da vida pblica.

A mudana de regime inaugurou uma era dourada na carreira poltica de Paic . Ele e seupartido eram agora a fora dominante na vida pblica srvia. O poder condizia com aquelehomem que por tanto tempo lutara para obt-lo, e ele logo assumiu o papel de pai da nao.Paic era malquisto pela elite intelectual de Belgrado, mas imensamente popular entre oscamponeses. Falava no carregado e rstico dialeto de Zajec ar, que os belgradinos estranhavam.Sua dico era hesitante, cheia de apartes e interjeies que se prestavam a caoadas. Quandolhe disseram que o famoso autor satrico Branislav Nuic havia protestado contra a anexao daBsnia-Herzegvina em 1908 liderando uma passeata pela cidade e depois entrando a cavalo noMinistrio das Relaes Exteriores, Paic teria respondido: H pois eu sabia que ele erabom em escrever livros, mas, h que cavalgava to bem, isso eu no sabia.32 Paic eramau orador, mas um excelente comunicador, especialmente para os camponeses que formavama esmagadora maioria do eleitorado srvio. Aos olhos deles, o modo de falar simples de Paic ,sua agudeza pachorrenta, sem falar na sua luxuriante barba patriarcal, eram marcas de umaprudncia, prescincia e sabedoria quase sobrenaturais. Entre os amigos e partidrios, ele tinhao apelido de Baja palavra que denota um homem de prestgio que no s respeitado, mastambm amado por seus contemporneos.33

Uma sentana de morte, longos anos no exlio, a paranoia de uma vida sob constantevigilncia, tudo isso deixou marcas profundas na prtica e na mentalidade de Paic comopoltico. Ele se tornou por hbito um homem cauteloso, reservado e evasivo. Muitos anosdepois, um ex-secretrio recordou que ele no costumava registrar ideias e decises no papel,nem mesmo verbalmente. Tinha o hbito de queimar seus papis, tanto os oficiais como osprivados. Adquiriu a tendncia de fingir passividade em situaes de potencial conflito, umaaverso a mostrar suas cartas at o ltimo momento. Era pragmtico a ponto de parecertotalmente destitudo de princpios aos olhos de seus oponentes. Tudo isso vinha entremeadocom imensa sensibilidade opinio pblica, com a necessidade de sentir-se em sintonia com anao srvia pela qual ele sofrera e trabalhara.34 Paic foi informado de antemo sobre aconspirao regicida e manteve segredo, mas recusou se envolver na ao. Quando os detalhesda operao planejada lhe foram informados na vspera do ataque ao palcio, sua reao, bemcaracterstica, foi levar a famlia de trem at a costa do Adritico, adentrar os domniosaustracos e l aguardar as consequncias.

Paic entendia que seu xito dependeria de obter a independncia para ele e para o governo,estabelecendo ao mesmo tempo uma relao estvel e durvel com o Exrcito e a rede regicidanele infriltrada. No era simplesmente uma questo dos cento e tantos homens que haviamparticipado da trama, mas dos muitos oficiais mais jovens e cada vez mais numerosos queviam nos conspiradores a encarnao de uma vontade nacional srvia. A situao complicava-sepelo fato de que os mais formidveis adversrios polticos de Paic , os radicais independentes,uma faco dissidente que se desligara de seu partido em 1901, estavam dispostos a colaborarcom os regicidas se isso os ajudasse a arruinar o governo de Paic .

Paic enfrentou essa situao delicada com inteligncia. Pessoalmente, fez propostas aconspiradores individuais, procurando tolher a formao de uma coalizo antigoverno. Apesarde protestos de colegas do Partido Radical, ele apoiou uma generosa alocao de verbas para oExrcito que ressarcia parte dos recursos perdidos desde a sada do rei-pai Milan; reconheceupublicamente a legitimidade do golpe de 1903 (uma questo de grande importncia simblicapara os conspiradores) e se ops a tentativas de levar os regicidas a julgamento. Ao mesmotempo, contudo, ele se empenhou para restringir a presena deles na vida pblica. Quando sesoube que os conspiradores planejavam dar um baile em comemorao do primeiro aniversriodos assassinatos, Paic (ento ministro das Relaes Exteriores) interveio para que asfestividades fossem adiadas para 15 de junho, o aniversrio da eleio do novo rei. Em 1905,quando a influncia poltica dos regicidas era um assunto mencionado com frequncia naimprensa e no Parlamento, Paic alertou a Skuptina da ameaa ordem democrtica poragentes no responsveis que operam fora das estruturas da autoridade constitucional. Essaera uma postura bem-vista pelas massas radicais, que detestavam o que identificavam como oesprito pretoriano da oficialidade. Em 1906 ele aproveitou astuciosamente a renovao dasrelaes normais com a Gr-Bretanha para assegurar a aposentadoria de vrios oficiais regicidasveteranos.35

Essas hbeis manobras tiveram efeito ambivalente. Os regicidas mais proeminentes foramremovidos de posies de grande visibilidade, e a influncia de sua rede sobre a poltica nacionalacabou reduzida no curto prazo. Por outro lado, Paic pouco pde fazer para barrar ocrescimento da rede no seio do Exrcito e entre civis simpatizantes, os chamados zaveritelji convertidos depois do ato causa da conspirao , dados a atitudes mais extremistas do que oscmplices originais.36 Acima de tudo, tirar os regicidas mais antigos da vida pblica deixou oinfatigvel pis em posio de incontestvel dominncia na rede. Ele sempre era uma figura dedestaque nas celebraes de aniversrio do regicdio, quando oficiais conspiradores se reuniampara beber cerveja e festejar no restaurante Kolarac, em um pequeno parque prximo do TeatroNacional, no centro de Belgrado. E se empenhava mais do que qualquer outro conspirador pararecrutar um ncleo de oficiais ultranacionalistas dispostos a apoiar a luta pela unio de todos ossrvios por quaisquer meios possveis.

MAPAS MENTAIS

Na base da ideia da unificao de todos os srvios estava uma imagem mental da Srvia

desvinculada do mapa poltico dos Blcs na virada do sculo XX. Sua expresso poltica maisinfluente era um memorando secreto redigido em 1844 pelo ministro do Interior da Srvia, IlijaGaraanin, para o prncipe Alexandar Karadjordjevic . Conhecida a partir de sua publicao em1906 como Nac ertanije (do srvio antigo nc rt, esboo), a proposta de Garaanin delineava umPrograma para a Poltica Nacional e Externa da Srvia. difcil exagerar a influncia dessedocumento sobre geraes de polticos e patriotas srvios; com o tempo, ele se tornou a CartaMagna de seu nacionalismo.** Garaanin iniciou seu memorando com a observao de que aSrvia pequena, mas no deve permanecer nessa condio.37 O primeiro mandamento dapoltica srvia, ele argumentou, deve ser o princpio da unidade nacional, e com isso ele queriadizer a unificao de todos os srvios dentro das fronteiras de um Estado srvio: Onde moraum srvio a Srvia. O padro histrico para essa viso expansiva de um Estado srvio era oImprio medieval de Stepan Duan, uma vasta faixa de territrio que englobava boa parte daatual Repblica da Srvia, toda a Albnia atual, a maior parte da Macednia e todo o centro e onorte da Grcia, mas, curiosamente, no a Bsnia.

O Imprio do tsar Duan supostamente rura aps uma derrota para os turcos no Campo deKosovo em 28 de junho de 1389. Mas esse revs, afirmou Garaanin, no solapara a legitimidadedo Estado srvio; apenas interrompera sua existncia histrica. Portanto, a restaurao deuma Grande Srvia que unificasse todos os srvios no era uma inovao, mas a expresso deum direito histrico antigo.

No podem [nos] acusar de buscar algo novo, infundado, de constituir uma revoluo ou uma insurgncia; todos devem

reconhecer que isso politicamente necessrio, que se fundamenta em tempos muito antigos e tem razes na vida poltica e

nacional anterior dos srvios.38

O argumento de Garaanin, portanto, representa aquela dramtica condensao do tempohistrico que s vezes observamos nos discursos do nacionalismo integrador; alm disso,baseava-se na fico de que o Estado concebido pelo tsar Duan medieval, composto,multitnico e disperso podia ser combinado com a ideia moderna de um Estado-naocultural e linguisticamente homogneo. Os patriotas srvios no viam nisso uma incoerncia,pois para eles praticamente todos os habitantes daquelas terras eram, em essncia, srvios. VukKaradic, o arquiteto da linguagem literria servo-croata moderna e autor de um clebre tratadonacionalista, Srbi svi i svuda [Srvios todos e de toda parte, publicado em 1836], discorreusobre uma nao de 5 milhes de srvios falando a lngua srvia e espalhados desde a Bsnia-Herzegvina at o Banato de Temesvar (leste da Hungria, atual oeste da Romnia), a Bac ka(uma regio que vai do norte da Srvia at o sul da Hungria), a Crocia, a Dalmcia e a costa do

Adritico de Trieste ao norte da Albnia. Obviamente havia alguns nessas terras, admitiuKaradic (ele se referia especialmente aos croatas), que ainda acham difcil chamar a si mesmosde srvios, mas parece provvel que gradualmente se acostumem com isso.39

O programa de unificao comprometia o Estado srvio, como Garaanin o concebia, comuma longa luta contra os dois grandes Imprios terrestres, o otomano e o austraco, cujosdomnios invadiam a Grande Srvia da imaginao nacionalista. Em 1844, o Imprio Otomanoainda controlava a maior parte da pennsula balcnica.

A Srvia deve se empenhar constantemente para quebrar pedra aps pedra da fachada do Estado turco e absorv-las, de modo

a poder usar esse bom material nas boas e velhas fundaes do Imprio Srvio e assim construir e estabelecer um grande e

novo Estado srvio.40

A ustria tambm estava destinada a ser um inimigo.41 Na Hungria, Crocia-Eslavnia e Istria-Dalmcia havia srvios (sem falar nos muitos croatas que ainda no se consideravam includosna nao srvia) que supostamente aguardavam ser libertados do domnio habsburguiano eunificados sob o Estado de Belgrado.

At 1918, quando muitos de seus objetivos foram atingidos, o memorando de Garaanincontinuou a ser a principal diretriz das polticas dos governantes da Srvia, enquanto seuspreceitos eram incutidos a conta-gotas na populao atravs de uma propaganda nacionalistacoordenada de Belgrado e parcialmente veiculada por redes patriticas infiltradas naimprensa.42 Mas a viso da Grande Srvia no era s uma questo de poltica governamental,ou mesmo de propaganda. Ela estava fortemente imbricada na cultura e na identidade dossrvios. A memria do grande Imprio de Duan ecoava na extraordinariamente vvida tradiodas canes picas srvias: longas baladas, muitas delas cantadas com o melanclicoacompanhamento da gusla, um instrumento musical de uma s corda, nas quais os cantores e osouvintes reviviam os grandes momentos arquetpicos da histria srvia. Em vilarejos emercados por todas as terras srvias, essas canes estabeleciam uma ligao notavelmententima entre poesia, histria e identidade. Um dos primeiros a observar esse fato foi ohistoriador alemo Leopold von Ranke. Ele comentou em sua histria da Srvia, publicada em1829, que a histria da nao, narrada por sua poesia, converteu-se atravs dela empropriedade nacional, e assim se preserva na memria do povo.43

O que principalmente se preservou nessa tradio foi a memria da luta srvia contra odomnio estrangeiro. Uma obsesso recorrente era a derrota dos srvios para os turcos noCampo de Kosovo em 28 de junho de 1389. Enfeitada no decorrer dos sculos, essa batalhamedieval bastante inconclusiva adquiriu vulto como uma simblica operao militar planejadaentre a nao srvia e seu inimigo infiel. Em torno dela entrelaou-se uma crnica povoada nos por garbosos heris que haviam unido os srvios em tempos difceis, mas tambm portraioeiros viles que tinham negado apoio causa comum ou trado os srvios em favor do

inimigo. O panteo mtico inclua o decantado assassino Milo Obilic , que nas canes infiltra-seno quartel-general dos turcos no dia da batalha e corta a garganta do sulto, antes de sercapturado e decapitado pelos guardas otomanos. Assassnio, martrio, imolao e sede devingana em nome dos mortos eram temas centrais.44

Uma Srvia imaginria, projetada sobre um passado mtico, ganhou uma vida brilhante nessacultura musical. Observando apresentaes de canes picas entre os srvios da Bsnia duranteo levante de 1875 contra os turcos, o arquelogo britnico Sir Arthur Evans admirou-se com acapacidade daquelas composies de fazer o servo-bsnio esquecer as tradies mais restritasde seu [] reino por essas lendas mais gloriosas, de fundir suas experincias com a de seusirmos de todas as terras srvias e assim no fazer caso da discurseira de gegrafos ediplomatas.45 verdade que essa cultura de epopeias orais entrou numa era de declnio gradualno sculo XIX, quando comeou a ser substituda pela imprensa popular. Mas o diplomatabritnico Sir Charles Eliot ouviu as epopeias cantadas por msicos itinerantes nos mercados dovale do rio Drina quando viajou pela Srvia em 1897. Essas rapsdias, ele observou, soapresentadas em uma entoao montona com o acompanhamento de um violo de uma scorda, mas com tanto sentimento genuno e com tanta expresso que o efeito geral no desagradvel.46 De qualquer modo, as coletneas impressas imensamente influentes de poesiapica srvia compiladas e publicadas por Vuk Karadic asseguraram que as rapsdiascontinuassem em circulao entre a crescente elite literria. Alm disso, o corpus picocontinuou a se avolumar. A grinalda da montanha, um clssico do gnero publicado em 1847 peloprncipe-bispo de Montenegro, Petar II Petrovic -Njegos, glorificava o mtico matador de tirano emrtir nacional Milo Obilic e clamava pelo reavivamento da luta contra o domnioestrangeiro. A grinalda da montanha entrou para o cnone nacional srvio e dele no saiu athoje.47

O comprometimento com a redeno das terras srvias perdidas combinado s agruras deuma localizao exposta em meio a dois Imprios terrestres dotou a poltica externa do Estadosrvio de vrias caractersticas notveis. A primeira foi a indeterminao do foco geogrfico.Comprometer-se em princpio com uma Grande Srvia era uma coisa, mas onde exatamentedeveria comear esse processo de redeno? Na Vojvodina, dentro do reino da Hungria? NaKosovo otomana, conhecida como Velha Srvia? Na Bsnia, que nunca fizera parte doImprio de Duan, mas continha uma substancial populao de srvios? Ou na Macednia, aosul, ainda sob domnio otomano? Diante do descompasso entre o visionrio objetivo daunificao e dos parcos recursos financeiros e militares disponveis para o Estado srvio, osdirigentes em Belgrado no tiveram escolha; precisaram responder com oportunismo s rpidasmudanas nas condies da pennsula balcnica. Em consequncia, a orientao da polticaexterna srvia entre 1844 e 1914 oscilou como uma agulha de bssola de um ponto a outro daperiferia do Estado. A lgica dessas oscilaes, o mais das vezes, foi reativa. Em 1848, quando ossrvios da Vojvodina se insurgiram contra as polticas magiarizantes do governo revolucionrio

hngaro, Garaanin ajudou-os com suprimentos e foras voluntrias do principado da Srvia.Em 1875 todos os olhos se voltaram para a Herzegvina, onde os srvios se sublevavam contraos otomanos. Entre os que acorreram ao local da luta estavam Paic e o comandante militar efuturo rei Petar Karadjordjevic , que lutou sob pseudnimo. Depois de 1903, em seguida a umarebelio local fracassada contra os turcos, intensificou-se o interesse pela libertao dos srviosda Macednia otomana. Em 1908, quando os austracos anexaram formalmente a Bsnia e aHerzegvina (que ocupavam militarmente desde 1878), as reas anexadas foram para o topo dalista. Em 1912-3, porm, a Macednia era de novo a prioridade.

A poltica externa srvia tinha de lutar com a discrepncia entre o nacionalismo visionrioque permeava a cultura poltica do pas e as complexas realidades etnopolticas dos Blcs.Kosovo era o centro da mtica terra srvia, mas no aspecto tnico no era inequivocamenteterritrio srvio. Muulmanos falantes do albans compunham a maioria na regio no mnimodesde o sculo XVIII.48 Muitos dos srvios que Vuk Karadic computou na Dalmcia e striaeram, na verdade, croatas, que no desejavam ser parte de um grande Estado srvio. A Bsnia,que historicamente nunca fora parte da Srvia, continha muitos srvios (eles compunham 43%da populao da Bsnia-Herzegvina em 1878, quando as duas provncias foram ocupadas pelaustria-Hungria), mas tambm croatas catlicos (cerca de 20%) e bsnios muulmanos (porvolta de 33%). (A sobrevivncia de uma substancial minoria muulmana foi uma dascaractersticas distintivas da Bsnia; na Srvia propriamente dita, boa parte das comunidadesmuulmanas tinham sido perseguidas at emigrarem, deportadas ou mortas durante a longa lutapela independncia.)49

Mais complicado ainda era o caso da Macednia. Sobreposta ao mapa poltico atual dosBlcs, a regio geogrfica conhecida como Macednia abrange, alm da ex-Repblica Iugoslavade mesmo nome, reas fronteirias na orla sul da Srvia e leste da Albnia, uma grande porodo sudoeste da Bulgria e uma grande faixa do norte da Grcia.50 As fronteiras histricas exatasda Macednia at hoje so polmicas (veja-se o ainda latente conflito entre Atenas e Skopje pelouso do nome Macednia para a Repblica de Skopje), e o mesmo se pode dizer sobre se essaregio possuir ou no, e em que grau, uma identidade cultural, lingustica ou nacional (at hoje aexistncia de uma lngua macednia reconhecida por linguistas de todo o mundo, exceto naSrvia, Bulgria e Grcia).51 Em 1897, quando Sir Charles Eliot viajou pela Srvia, descobriusurpreso que seus companheiros srvios no admitiam que existissem blgaros na Macedniae garantiam que os habitantes eslavnicos daquela regio eram todos srvios.52 Dezesseisanos depois, quando a Fundao Carnegie enviou uma comisso para a rea com a misso deinvestigar as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra dos Blcs, os comissriosdescobriram que era impossvel chegar a um consenso entre os moradores sobre a etnia daspessoas que viviam na Macednia, tamanha a polarizao da atmosfera em que essas questeseram debatidas, inclusive nas universidades. O relatrio publicado naquele ano pela comissoinclua no um, mas dois mapas tnicos da regio, refletindo respectivamente a perspectiva de

Belgrado e a de Sfia. Em um, o oeste e o norte da Macednia pululavam de srvios nolibertados aguardando a unificao com sua ptria; do outro, a regio aparecia como o coraoda zona de colonizao blgara.53 Nas ltimas dcadas do sculo XIX, srvios, gregos e blgarostinham ativas agncias de propaganda na Macednia, com o fito de fazer proselitismo de suasrespectivas causas nacionais junto aos eslavos locais.

A discrepncia entre as vises nacionais e as realidades tnicas tornava muito provvel que arealizao dos objetivos srvios viesse a ser um processo violento, no s no mbito regional,onde potncias maiores e menores se empenhavam por seus interesses, mas tambm nascidades e vilarejos das reas contestadas. Alguns estadistas defrontaram esse desafio tentandoembalar os objetivos nacionais srvios em uma viso poltica servo-croata mais generosa queenglobasse a ideia da colaborao multitnica. Entre eles estava Nikola Paic , que nos anos 1890escreveu extensivamente sobre a necessidade de servos e croatas se unirem em um mundo ondeas naes pequenas estavam fadadas ao jugo. No entanto, na base dessa teoria havia duashipteses. A primeira, de que srvios e croatas eram em essncia o mesmo povo; a segunda, deque os srvios teriam de liderar o processo porque eram um povo mais autenticamente eslavodo que os catlicos croatas, que por tanto tempo tinham ficado expostos influncia de culturaestrangeira.54

A Srvia no podia dar-se ao luxo de se empenhar por seus objetivos vista do resto domundo. Por isso, um grau de clandestinidade estava pr-programado na luta pela liberdadedos srvios que ainda eram sditos de Estados ou Imprios vizinhos. Garaanin articulou esseimperativo em 1848 durante a revolta da Vojvodina. Os srvios da Vojvodina, ele escreveu,esperam de todo o mundo srvio uma mo amiga, para que possam triunfar sobre seu inimigotradicional. [] Mas devido a fatores polticos, no podemos ajud-los publicamente. S nosresta ajud-los em segredo.55 A preferncia por operaes ocultas tambm pode ser observadana Macednia. Depois de uma insurreio abortada contra os turcos em agosto de 1903, o novoregime de Karadjordjevic comeou a dedicar-se ativamente poltica na regio. Estabeleceram-se comits para promover a guerrilha srvia na Macednia, e organizaram-se reunies emBelgrado para recrutar e abastecer bandos de combatentes. Interpelado pelo ministro otomanoem Belgrado, o ministro das Relaes Exteriores srvio, Kaljevic , negou qualquer envolvimentodo governo e argumentou que, de qualquer modo, as reunies no eram ilegais, pois haviamsido convocadas no para formar bandos, mas para angariar fundos e expressar simpatia porcorreligionrios alm da fronteira.56

Os regicidas estavam profundamente envolvidos nessa atividade transfronteiria. Os oficiaisconspiradores e seus simpatizantes no Exrcito formaram um comit nacional informal emBelgrado, coordenaram a campanha e comandaram muitas das unidades voluntrias. Estas noeram, rigorosamente falando, unidades do Exrcito srvio, mas o fato de oficiais voluntriosreceberem imediatamente licena do servio sugere um generoso grau de respaldo oficial.57 Aatividade da milcia expandiu-se constantemente, e houve numerosas escaramuas violentas

entre os