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DADOS DE COPYRIGHT

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutandopor dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

nível."

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Clarice LispectorA Mulher que

Matou os Peixes

Formatado por: Reliquia

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Para Nicole e Cássio

Para João, Mark e Giancarlo

Para Karin, Letícia, Mônica, Zilda e Azalia

sobretudo para a

Campanha Nacional da Criança

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Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foisem querer. Logo eu! Que não tenho coragem de matar uma coisa viva! Atédeixo de matar uma barata ou outra.

Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce:perto de mim nunca deixo criança ou bicho sofrer.

Pois logo eu matei dois peixinhos vermelhos que não fazem mal a ninguém e quenão são ambiciosos: só querem mesmo é viver.

Pessoas também querem viver, mas infelizmente também aproveitar a vida parafazer alguma coisa de bom.

Não tenho coragem ainda de contar agora mesmo como aconteceu. Masprometo que no fim deste livro contarei e vocês, que vão ler essa história triste,me perdoarão ou não.

Vocês hão de perguntar: por que só no fim do livro?

E eu respondo:

- É porque no começo e no meio vou contar algumas histórias de bichos que eutive, só para vocês verem que eu só poderia ter matado os peixinhos sem querer.

Estou com esperança de que, no fim do livro, vocês já me conheçam melhor eme dêem o perdão que eu peço a propósito da morte de dois “vermelhinhos” –em casa chamávamos os peixes de “vermelhinhos”.

Eu sempre gostei de bichos. Tive uma infância rodeada de gatos. Eu tinha umagata que de vez em quando paria uma ninhada de gatos. E eu não deixava sedesfazerem de nenhum dos gatinhos.

O resultado é que a casa ficou alegre para mim, mas infernal para as pessoasgrandes. Afinal, não agüentando mais os meus gatos, deram escondido de mim agata com sua última ninhada.

Eu fiquei tão infeliz que adoeci com muita febre.

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Então me deram um gato de pano para eu brincar.

Eu não liguei para ele, pois estava habituada a gatos vivos.

A febre só passou muito tempo depois.

Bem, vamos mudar de assunto. Vou contar antes umas coisas muito importantespara vocês não ficarem tristes com meu crime. Se eu tivesse culpa, euconfessava a vocês, porque não minto para menino ou menina. Só minto às vezespara certo tipo de gente grande porque é o único jeito. Tem gente grande que étão chata! Vocês não acham? Elas nem compreendem a alma de uma criança.Criança nunca é chata.

Por enquanto só posso dizer que os peixes morreram de fome porque esqueci delhes dar comida. Depois eu conto, mas em segredo, só vocês e eu vamos saber.

Tenho esperanças de que até o fim do livro vocês possam me perdoar.

Antes de começar, quero que vocês saibam que meu nome é Clarice. E vocês,como se chamam?

Digam baixinho o nome de vocês e meu coração vai ouvir.

Peço que leiam esta história até o fim. Vou contar umas coisas: minha casa tembichos naturais. Bichos naturais são aqueles que a gente não convidou nemcomprou. Por exemplo, nunca convidei uma barata para lanchar comigo.

Minha casa tem muitos bichos naturais, menos rato, graças a Deus, porque tenhomedo e nojo deles.

Quase todas as mães têm medo de rato. Os pais não: até gostam porque sedivertem caçando e matando esse bicho que detesto. Vocês têm pena de rato?

Eu tenho porque não é um bicho bom para a gente amar e fazer carinho. Vocêsfariam carinho num rato? Vai ver vocês nem têm medo e em muitas coisas sãomais corajosos do que eu.

Tenho um amigo que, quando era menino, criou um rato branco. Fiquei comtanto nojo que só quero apertar a mão de meu amigo quando passar o susto. Seurato era, na verdade, uma rata e se chamava Maria de Fátima.

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Maria de Fátima morreu de um jeito horrivelzinho (eu digo horrivelzinho porqueno fundo estou bem contente): um gato comeu ela com a rapidez com quecomemos um sanduíche.

Como eu is dizendo, os bichos naturais de minha casa não foram convidados.Apareceram assim, sem mais nem menos.

Por exemplo: tenho baratas. E são baratas muito feias e muito velhas que nãofazem bem a ninguém. Pelo contrário, elas até roem a minha roupa que está noarmário.

Vocês sabem que eu tive uma guerra danada contra as baratas e quem ganhounessa guerra fui eu?

Eu fiz o seguinte: paguei um dinheiro para um homem que só faz isso na vida:matar baratas.

Esse homem faz uma coisa que se chama dedetização. Ele espalha esse remédiopela casa toda. Esse remédio tem um cheiro muito forte que não faz mal para agente mas deixa as baratas muito tontas até que morrem.

Mas parece que uma barata, antes de morrer, conta baixo às outras baratas queminha casa é perigosa para a raça delas, e assim a notícia se espalha pelo mundodas baratas e elas não voltam para minha casa. Só seis meses depois elas ganhamcoragem de voltar, mas eu chamo de novo o homem dos remédios e elas fogemde novo.

Barata é outro bicho que me causa pena. Ninguém gosta dela, e todos queremmata-la. Às vezes o pai da criança corre pela casa toda com um chinelo na mão,até pegar uma e bate com o chinelo em cima até ela morrer. Tenho pena dasbaratas porque ninguém tem vontade de ser bom com elas. Elas só são amadaspor outras baratas. Não tenho culpa: quem mandou elas virem? Vieram semserem convidadas. Eu só convido os bichos que eu gosto. E, é claro, convidogente grande e gente pequena.

Sabem de uma coisa? Resolvi agora mesmo convidar meninos e meninas parame visitarem em casa. Vou ficar tão feliz que darei a cada criança uma fatia de

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bolo, uma bebida bem gostosa, e um beijo na testa.

Outro bicho natural da minha casa é... adivinhem!

Adivinharam? Se não adivinharam não faz mal, eu digo a vocês. O outro bichonatural de minha casa é a lagartixa pequena. São engraçadas e não fazem malnenhum. Pelo contrário: elas adoram comer moscas e mosquitos, e assimlimpam minha casa toda.

Eu não mato lagartixa mas tem gente que corta elas com o chinelo. Aí éengraçado: cada pedaço solto da lagartixa começa a se mexer sozinho. Porexemplo, uma perna cortada e solta da lagartixa fica se mexendo no chão etremendo o tempo todo. É um mistério mexerem-se os pedaços antes de morrer.

O que eu não entendo também é o paladar horrível que a lagartixa tem pormoscas e mosquitos. Mas é claro: como não sou lagartixa, não gosto de coisasque ela gosta, nem ela gosta do que eu gosto.

Uma vez prendemos um mosquito e olhamos ele bem de perto com uma lenteforte. E vocês não imaginam como é a cara de um mosquito. É muito esquisita.Não tenho medo de mosquito nem de mosca, mas tanto um como o outro meincomodam muito. A lagartixa, que é minha grande amiga, me ajuda com muitaalegria porque mosquito para ela é sobremesa. Nós, gente, gostamos desobremesa com coco, por exemplo, mas a lagartixa até parece ter nojo dessedoce.

A lagartixa não fala, não canta, não dança, não gosta da gente porque tem medodas pessoas. A lagartixa seria um perigo para nós se ela fosse igual em tamanhoao jacaré.

Agora vou falar sobre bichos convidados, igual ao meu convite para vocês. Àsvezes não basta convidar: Tem-se que comprar.

Por exemplo, convidei dois coelhos para morar com a gente e paguei umdinheiro ao dono deles. Coelho tem uma história muito secreta, quero dizer, commuitos segredos.

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Eu até já contei a história de coelho num livro para gente pequena e para gentegrande. Meu livro sobre coelhos se chama assim: “O mistério do coelhopensante”. Gosto muito de escrever história para crianças e gente grande. Ficomuito contente quando os grandes e os pequenos gostam do que escrevi.

Se vocês gostam de escrever ou desenhar ou dançar ou cantar, façam porque éótimo: enquanto a gente brinca assim, não se sente mais sozinha, e fica decoração quente.

Voltando aos coelhos, tem gente que come coelho. Eu não tenho coragem porqueé como se eu comesse um amigo. Os dois coelhos que tivemos em casa erammeus amigos.

Também tivemos aqui em casa dois patos comprados que andavam o dia inteiroatrás da gente com aquele modo engraçado de andar dos patos.

Outro bicho que pensa que a gente é mãe deles é qualquer pinto. Nesse ponto opinto é igual a gente: fica com saudade do calor da galinha-mãe. O que a gentepode fazer de bom para um pinto que fica piando e chorando de saudade ésegura-lo na mão e esquentar o corpo dele. Quando a gente pega neles a gentesente o seu minúsculo coração batendo dentro do pequeno corpo fofo e mornodeles. Embaixo das penas macias sentem-se os ossos bem finos das costelasdeles. Pinto é sempre magrinho. E, longe da galinha, morre à toa. Já compreimuitos pintos e a maioria morreu. Só continuavam a viver os pintos que tinhamalma mais forte.

Quanto a cachorros, eu já tive dois. O primeiro foi assim: eu estava morandonuma terra que se chama Itália. Um dia, andando pelas ruas da cidade, vi umcachorro vira-lata.

Os vira-latas são tão inteligente que aquele que eu vi sentiu logo que eu era boapara os animais e ficou no mesmo minuto alvoroçado abanando o rabo.

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Quanto a mim, foi só olhar que logo me apaixonei pela cara dele. Apesar de seritaliano, tinha cara de brasileiro e cara de quem se chama Dilermando. Pagueium dinheiro para a dona dele e levei Dilermando para casa. Logo dei comida aele. Ele parecia tão feliz por eu ser dona dele que passou o dia inteiro olhandopara mim e abanando o rabo. Vai ver que a outra dona dele batia nele, de modoque Dilermando estava feliz em mudar de dona.

Dilermando era quase tão inteligente como uma criança de dois anos. Vivia atrásde mim para não se sentir sozinho. E comia tanto de tudo que logo engordou.

Passava o dia cheirando as coisas: cachorro cheira as coisas para compreendê-las; eles não raciocinam muito, são guiados pelo amor do coração dos outros edeles mesmos.

Dilermando gostava tanto de mim que quase endoidecia quando sentia pelo faroo meu cheiro de mulher-mãe e o cheiro do perfume que uso sempre. Esseperfume se chama em francês “Vert et Blanc”, isto é, “Verde e Branco”, e foiinventado por um homem que se chama Carven. Como vocês vêem, existe detudo neste mundo: mulheres que batem em cachorros, outras que nunca batem,homem que ganha dinheiro para matar baratas, homem que faz umas misturas einventa perfume. Isto eu estou dizendo para que vocês se lembrem quandocrescerem que há muito o que fazer na vida.

Bem, mas e o cheiro de Dilermando. Ele detestava tomar banho, pensava queera a gente era ruim quando obrigava ele a esse sacrifício. Como dava muitotrabalho dar banho todos os dias e como ele fugia da banheira todo ensaboado,terminei dando banho só duas vezes por semana. O resultado, é claro, é que eletinha um cheiro muito forte de cachorro e eu logo sentia com o meu faro, porquegente também tem faro. Vocês têm faro? Aposto que sim, porque além desermos gente, somos também animais. O homem é o animal mais importante domundo, porque, além de sentir, o homem pensa resolve e fala. Os bichos falamsem palavras.

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Sabem como tive que me separar de Dilermando? É que eu tinha de ir emborada Itália e ir para um país chamado Suíça. E nesse país os hotéis não deixamentrar cachorros. Então escolhi uma moça muito boa para cuidar dele. Na horade me despedir dele, fiquei tão triste que chorei. E Dilermando também chorou.

Muitos anos depois eu estava morando em outro país que se chama EstadosUnidos da América. E comprei um cachorro americano com o nome de Jack.Não lembro de que raça ele era porque não faço diferenças, eu gosto de todas asraças humanas e de animais.

Jack era daqueles cachorrões que latem o tempo todo e vigiam a casa para nãodeixar entrar ladrão.

Jack só fazia algumas coisas na vida disciplinada dele: latia, comia, namoravamuito, vigiava a casa, dormia, brincava com a gente.

Ele tinha uma vida muito animada porque ele gostava de tudo o que fazia. Igual amim, porque faço várias coisas na vida e gosto do que faço. Muitas coisas eufaço sem gostar, só por dever. Jack era menos inteligente que Dilermando, masera um cachorro muito corajoso. Ele não tinha medo de nada.

Sabem o que aconteceu? Foi o seguinte: de noite Jack ficava no nosso jardimdefronte de casa e ele era tão metido a importante que passou a vigiar a ruainteira, sem ninguém pedir. Quando uma pessoa passava lá longe na rua, ele latiatanto que acordava toda a vizinhança.

Até que uma madrugada um vizinho veio de pijama para nossa casa e disse queestava cansado de não dormir e que, se Jack ficasse conosco, ele ia dar um tironele.

O vizinho estava muito zangado, e eu vi que ele mataria mesmo. Para salvar avida de Jack, demos ele a uma família muito boa que morava num sítio e ondeJack podia latir à vontade.

Só tive na vida esses dois cachorros felizes. Agora vou contar uma história de

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macacos um pouco alegre e um pouco triste.

Imaginem vocês que tinha saído para fazer compras e quando voltei e entrei emcasa senti que havia alguma coisa esquisita acontecendo. Toas as pessoasestavam no terraço dos fundos e fui olhar o que era que tinha ali.

Vocês não acreditam que eu não esperava jamais o que encontrei: um macaco.Na verdade era um mico tão grande e forte como se fosse um filhote de gorila.Ele estava muito agitado e nervoso porque ainda não conhecia bem a casa. Depura agitação subia de repente pelas roupas estendidas na corda, sujando todas asroupas lavadas. De lá de cima dava gritos que nem marinheiro dando ordensnum navio. E jogava cascas de banana mesmo que caíssem em cima de nós.

Bom, esse mico enorme passou a morar conosco. Sempre que eu ia para a áreade serviço ele ficava alegre que pulava de um canto para outro, sujando tudo.

Vocês sabem muito bem que macaco é bicho que mais se parece com aspessoas. Esse macaco até parecia ter vida humana. Parecia com um homemmaluco. Como ele fazia uma bagunça horrível na casa, resolvi dá-lo às criançasdo morro que adoram micos. Em casa todo mundo ficou triste e zangado comigo.

Passou-se mais um ano. Uma tarde eu estava andando pelas ruas para comprarpresentes de Natal. As ruas estavam muito cheias de pessoas comprandopresentes. No meio daquela gente toda, vi um agrupamento, fui olhar: era umhomem vendendo vários micos, todos vestidos de gente e muito engraçados.Pensei que todas de casa iam ficar adorando o presente de Natal, se fosse ummiquinho. Escolhi uma miquinha suave e linda, que era muito pequena. Estavavestida com saia vermelha, e usava brincos e colares baianos. Era muito delicadaconosco, e dormia o tempo todo.

Foi batizada com o nome de Lisete. Lisete às vezes parecia sorrir pedindodesculpas por dormir tanto. Comer, quase não comia, e ficava parada numcantinho só dela.

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No quinto dia comecei a desconfiar que Lisete não estava bem de saúde. Poisnão era normal o jeito quieto e calado dela.

No sexto dia quase dei um grito quando adivinhei: “Lisete está morrendo! Vamosleva-la a um veterinário!” Veterinário é o médico que só cuida de bichos.

Ficamos muito assustados porque já amávamos Lisete e sua carinha de mulher.Ah, meu Deus, como nós gostávamos de Lisete! Enrolei Lisete num guardanapoe fomos de táxi correndo para um hospital de bichos. Lá deram-lheimediatamente uma injeção para ela não morrer logo. A injeção foi tão boa queaté parecia que ela estava curada para sempre, porque de repente ficou tãoalegre que pulava de um canto para outro, dava guinchos de felicidade, faziacaretinhas de macaco mesmo, estava doida para agradar a gente. Descobrimos,então, que ela nos amava muito e que não demonstrara antes porque estava tãodoente que não tinha força.

Mas, quando passou o efeito da injeção, ela, de repente, parou de novo e ficoutoda quieta e triste na minha mão. O médico então disse uma coisa horrível: queLisete ia morrer.

Aí compreendemos que Lisete já estava muito doente quando eu a comprei. Omédico disse que não se compram macacos na rua porque às vezes estão muitodoentes. Nós perguntamos muito nervosos:

- E agora? Que é que o senhor vai fazer?

Ele respondeu assim:

- Vou tentar salvar a vida de Lisete, mas ela tem que passar a noite no hospital.

Voltamos para casa com o guardanapo vazio e o coração vazio também. Antesde dormir, eu pedi a Deus para salvar Lisete.

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No dia seguinte o veterinário telefonou avisando que Lisete tinha morrido durantea noite. Compreendi então que Deus queria leva-la. Fiquei com os olhos cheios delágrimas e não tinha coragem de dar esta notícia ao pessoal de casa. Afinalavisei, e todos ficaram muito, muito tristes.

De pura saudade, um de meus filhos perguntou:

- “Você acha que ela morreu de brincos e colar?”

Eu disse que tinha certeza que sim, e que, mesmo morta, ela continuaria linda.

Também de pura saudade, o outro filho olhou para mim e disse com muitocarinho:

- “Você sabe, mamãe, que você se parece muito com Lisete?”

Se vocês pensam que eu me ofendi porque pareci com Lisete, estão enganados.Primeiro, porque a gente se parece mesmo com um macaquinho; segundo,porque Lisete era cheia de graça e muito bonita.

- Obrigada meu filho – foi isso que eu disse a ele e dei-lhe um beijo no rosto.

-

Um dia desses vou comprar um miquinho com saúde. Mas esquecer Lisete?Nunca.

Bem, agora descansem um pouco porque vou contar uma história tão horrívelque até parece filme de mocinho e bandido. É uma história de amor e ódiomisturados num só coração.

Já descansaram? Bem, então prestem bastante atenção porque essa história decachorro é terrível mesmo. Não pensem que estou inventando as minhashistórias. Dou minha palavra de honra que minhas histórias não são de mentira:aconteceram mesmo.

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Bem, preparem-se que eu vou começar.

Um amigo meu, chamado Roberto, tinha um cachorro que se chamava: BrunoBarberini de Monteverdi. É um nome comprido para um cão, mas era assim queele se chamava. Quando a gente queria falar com ele só chamava Bruno, porquesenão seu nome ficava enorme.

Bruno tinha um amigo, cachorro também, que vigiava a casa de um vizinho. Esseamigo-cachorro de Bruno chamava-se Max.

Eles eram tão amigos que um chamava o outro, convidando para almoçar ebotavam os dois focinhos no mesmo prato de comida. É claro que Bruno nemMax falavam, só latiam. E os convites para um almoçar na casa do outro eramtransmitidos assim: latindo um pouquinho, abanando o rabo, ficando parado umdiante do outro, e de repente andando. Então o cachorro entendia que era paraseguir o outro e almoçarem juntos.

Esqueci de dizer que Bruno Barberini Monteverdi tinha paixão pelo dono,Roberto. E era muito fiel. Bruno não deixava ninguém se aproximar demais dodono pensando que iam ataca-lo. Todas as noites esperava acordado que o donovoltasse e só ia dormir quando esse chegava. Isso eu estou contando para vocêsentenderem a tragédia que aconteceu.

Um dia, Max estava almoçando na casa de Bruno, quando o dono entrou nacozinha. Não se sabe por que Max resolveu fazer festinhas no dono de Bruno. Epara fazer a festinha aproximou-se do dono e se encostou na sua perna.

Bruno ficou espantado por um segundo: pensou que Max ia atacar Roberto ecorreu em defesa do dono.

Para defender o dono, atirou-se em cima de Max, que não tinha culpa nenhuma.Mas Max, vendo-se ferozmente atacado reagiu. E o resultado foi uma lutasangrenta.

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Max tinha mais força que Bruno. Bruno estava sendo estraçalhado. Finalmente,Roberto conseguiu separar os dois.

Bruno estava gravemente ferido e já quase morrendo. Seu coração quase nãobatia mais. Roberto levou Bruno depressa para o hospital de bicho. Lá deramuma injeção para reanimar o seu coração, que estava quase parando. Cuidaramdos ferimentos do corpo e da cabeça, e Bruno ficou muitos dias no hospital. Atéque ficou bom e pôde voltar para casa.

Agora pergunto a vocês: que é que Bruno fez?

Bruno era tão corajoso que, curado dos ferimentos, foi atacar Max. Este deu-lheentão a maior surra que se posso imaginar. E dessa vez os ferimentos foram tãograves que até as orelhas de Bruno ficaram inteiramente rasgadas. Robertolevou-o de novo para o hospital, onde dessa vez, Bruno ficou dois meses. Quandoficou curado, voltou para casa.

E agora me respondam: que é que vocês acham que Bruno fez?

Acertaram. Bruno foi vingar-se e atacar Max.

Mas dessa vez ele estava com tanta, mas tanta raiva que sua força aumentou eficou diabólica.

E ele, enfim, matou Max.

É, mas no mundo dos cachorros é diferente. Não há polícia para eles irem sequeixar. Então os cachorros mesmos resolvem entre si as brigas, fazem o papelde juiz e de polícia, e muitas vezes agem como bandidos armados. Os cachorrosnão se perdoam.

O que aconteceu foi que os cachorros da vizinhança ficaram contra Bruno e nãoperdoaram a morte horrível de Max.

Então, para vingarem-se, começaram a cercar Bruno. Bruno já tinha até medode sair para a rua. Quando saía, ficava muito desconfiado, olhando de um lado

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para outro.

Afinal, vendo que não acontecia nada de ruim, começou tranqüilamente a sair denovo. E foi esse o grande erro de Bruno.

Uma tarde ele estava passando todo sozinho e até lamentando a morte de Maxque era o seu único amigo. Estava com muita saudade. Amigo bom não seencontra todos os dias. Os cachorros têm uma alma bem grande, eles atéentendem a gente. O mundo dos cães é cheio de amor para dar, e eles dão degraça. Bruno estava triste demais sentindo falta daquele que matara por amor aRoberto.

Nessa tarde tão triste, quando não havia prazer em ao menos cheirar as coisas,apareceu de repente na esquina um cachorro.

E de repente na outra esquina mais um cachorro. E depois, saíram das casas davizinhança três cachorros.

Bruno percebeu logo que estava cercado por vários cachorros enormes e fortes.Bruno sabia que a lei dos cachorros é a vingança. Ele quis fugir mas não podiaquebrar o cerco. Os cachorros formavam uma espécie de círculo em torno deBruno.

E o círculo ia ficando cada vez mais apertado. Até que os cachorros conseguiramencurralar Bruno junto de uma árvore.

Os cachorros então de repente atacaram de uma só vez Bruno, fazendo elesmesmos justiça, porque, como eu disse, no mundo dos cães eles próprios seencarregam de ser juiz e polícia. Eram cinco cachorrões contra Bruno. Brunoainda tentou se defender mas não tinha força contra eles.

E aconteceu o que era de se esperar: o pior. Os cinco cachorros castigaramBruno até ele morrer.

E assim é que Bruno Barberini de Monteverdi morreu para todo o sempre.

Vocês ficaram com saudade do Bruno? Eu também. A história da vida e da

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morte de Bruno Barberini de Monteverdi é uma história de grande amor:

Bruno amava tanto Roberto que não permitia nenhum outro cachorro fazercarinho no dono ou ataca-lo.

Também era grande o amor fraterno que ligava Bruno e Max. Mas o primeiroamor era para Roberto.

Vocês ficaram tristes com a história? Vou fazer um pedido para vocês: todas asvezes que vocês sentirem solitários, isto é, sozinhos, procurem uma pessoa paraconversar. Escolham uma pessoa grande que seja muito boa para crianças e queentenda que às vezes um menino ou uma menina estão sofrendo. Às vezes depura saudade, como os periquitos australianos. Conheço uma moça que tocapiano muito bem nos teatros. Essa moça ganhou de presente no dia do seuaniversário um periquito australiano. Só ganhou a fêmea. O pior é que as pessoasque dão um periquito australiano têm que comprar dois: um macho e uma fêmeaque, por causa da raça deles, são tão amorosos que passam o dia se beijando enão podem ser separados. A periquita até adoeceu de tanta saudade do machodela.

Bom, depois de contar uma história um pouco triste sobre a saudade da periquita,quero ficar alegre e alegrar vocês com outra história.

Falarei sobre uma coisa muito boa: sobre uma ilha.

Vocês gostariam de ter uma ilha só para cada um de vocês e para os seusamigos? Eu gostaria muito e não tenho.

Mas uma amiga minha comprou uma ilha só para ela e os amigos descansarem.Vocês sabem bem como é uma ilha? E um pedaço de terra cercado de água portodos os lados.

Eu queria que vocês fossem fazer uma visita comigo à ilha de minha amiga.Vocês poderiam tomar banho de mar, caçar bichos, e de noite iam dormir numarede. Vocês não iam ter medo porque eu ia dormir no mesmo quarto, protegendocada menino e cada menina.

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No mar dessa ilha tem de tudo: todas as espécies de peixes. Até cavalo-marinhotem. Ver um cavalo-marinho nadar é lindo: parece até com homens e mulheresdançando devagar.

Essa ilha é um pouco encantada.

Por quê? Pelo ar sempre novo, pelo capim chamado sapê que parece cantar aovento, pela cidade das borboletas. Minha amiga e um grupo de amigos delaestavam explorando a ilha, e no meio de um bambual encontraram a cidade dasborboletas. Nessa clareira elas vivem, voam alto, voam baixo, voam ao redor denós. Pequenas, grandes, azuis, amarelas e de todas as cores. Parecia um bailadode borboletas naquele silêncio que só uma ilha tem.

O silêncio da ilha é um silêncio diferente: é atravessado pelos sons característicosdos habitantes animais e vegetai. Planta, se a gente pegar com jeito, as folhasdelas parecem cantar. E falam com a gente. O quê? Depende de a gente estartriste ou alegre, com fome de beleza e de conversa.

Minha amiga comprou a ilha para lá morarem durante um tempo crianças umpouco tristes que ainda não tinham conversado com plantas e animais. Umcavalo-marinho recebeu minha amiga no banho de mar.

No fundo do mar lá é azul e de todas as outras cores também por causa dosouriços coloridos e das estrelas-do-mar e pelas algas que se movem dando essecolorido ondulante.

Vocês pensam que estou inventando?

Mas, se eu jurar por Deus que tudo o que contei neste livro é verdade, vocêsacreditam? Pois juro por Deus que tudo o que contei é a pura verdade eaconteceu mesmo. Eu tenho respeito por meninos e meninas e por isso nãoengano nenhum deles.

Bem, obrigada por terem acreditado em mim. Não gosto de passar pormentirosa.

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Além dos cardumes de peixes pequenos e grandes, no mar da ilha também temcardumes de botos ou delfins: parecem com uma baleia pequena.

Os bichos da terra são pássaros de todas as cores e tamanhos. Também tem nailha muita cobra e muito lagarto. A casa da ilha fica de portas e janelas fechadascontra mosquitos, lagartos e cobras. Tem também manadas de antas.

A ilha é tão grande que a dona dela ainda não conheceu tudo. E tem uma parteselvagem que nunca foi explorada.

A parte encantada são os brinquedos no mar de noite: desde a pesca com luz delanterna até o mergulho todo iluminado pela fosforescência das plantas do mar.Peçam à gente grande para explicar o que é fosforescência.

As frutas são jaca, caju, cajá, graviola, bananas. E dos coqueiros altíssimoscaem cocos à beca, até em cima da gente se não se toma cuidado. Tem tambémgoiabas das brancas e vermelhas, e pitangas escarlates.

A água para beber foi canalizada com os bambus enormes da ilha.

É uma ilha tão encantada que eu teria medo de ficar sozinha de noite na minharede. Nessa ilha tem todas as espécies de árvores, plantas, frutas e flores.

Morar numa ilha para sempre é triste porque a gente não quer se separar dafamília e dos amigos. Mas não precisamos morar lá. Basta passar sábado edomingo.

Bem, vamos deixar a ilha em paz, e voltar para os bichos. Eu tenho uma amigaque tem um cachorro que late tanto e tão alto que já me deu vontade de latir devolta.

Eu fico muito ofendida quando um bicho tem medo de mim, pois sou corajosa eprotejo os animais. Quem de vocês tiver medo, eu cuido e consolo. Porque sei oque é o medo que as crianças têm porque já fui criança. Até hoje ainda tenho

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medo de certas coisas.

Outra amiga tinha uma cadela chamada Bolinha. Ela era muito normal, maisnormal que muita gente humana e que muitos cachorros. Era uma mãe perfeita.Cuidava sozinha dos filhotes e lambia eles em lugar de dar banho. Quando minhaamiga chegava perto, empurrava os filhotes com o focinho para apresenta-los.Bolinha ensinava os filhos a correr e a brincar.

Era muito sensível e um pouco nervosa. Percebia longe a chegada de pessoas.Quando as pessoas estavam zangadas, ou ela fazia alguma coisa errada,encostava-se contra a parede e ficava de lá olhando muito sem jeito.

De cavalo não tenho nenhuma história para contar, e é uma pena, porque cavaloé um animal de grande beleza.

Bem, agora chegou a hora de falar sobre o meu crime: matei dois peixinhos. Juroque não foi de propósito. Juro que não foi muito culpa minha. Se fosse, eu dizia.

Meu filho foi viajar por um mês e mandou-me tomar conta de dois peixinhosvermelhos dentro do aquário.

Mas era tempo demais para deixarem os peixes comigo. Não é que eu não sejade confiança. Mas é que sou muito ocupada, porque também escrevo históriaspara gente grande.

E assim como a mãe ou a empregada esquecem uma panela no fogo, e quandovão ver já se queimou toda a comida – eu estava também ocupada escrevendohistória. E simplesmente fiz uma coisa parecida co deixar a comida queimar nofogo: esqueci três dias de dar comida aos peixes! Logo aqueles que eram tãocomilões, coitados.

Além de dar comida, eu devia sempre trocar a água do aquário, para elesnadarem em água limpa.

E a comida não era qualquer uma: era comprada em lojas especiais. A comida

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parecia um pozinho horrível, mas devia ser gostoso para peixe porque elescomiam tudo.

Devem ter passado fome, igual gente. Mas nós falamos e reclamamos, ocachorro late, o gato mia, todos os animais falam por sons. Mas peixe é tão mudocomo uma árvore e não tinha voz para reclamar e me chamar. E, quando fuiver, estavam parados, magros, vermelhinhos – e infelizmente já mortos de fome.

Vocês ficaram muito zangados comigo porque eu fiz isso? Então me dêemperdão. Eu também fiquei muito zangada com a minha distração. Mas era tardedemais para eu lamentar.

Eu peço muito que vocês me desculpem. Dagora em diante nunca mais ficareidistraída.

Vocês me perdoam?

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A partir de histórias de bichos – um cachorro tem alma bem grande, um coelhotem histórias secretas... – até a revelação de seu “crime” de ter matado os peixes,Clarice Lispector transmite neste livro uma rica mensagem de compreensão, afetoe solidariedade para as crianças, que lêem com o coração.