DAGIOS, M. Aspectos políticos da tragédia grega

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Mateus Dagios - Aspectos políticos da tragédia grega.

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    Em Tempo de Histrias Publicao do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade de Braslia (PPGHIS/UnB)

    N. 23, Braslia, ago. dez. 2013 ISSN 2316-1191

    Aspectos polticos da tragdia grega:

    a importncia do concurso e do mito* Mateus Dagios

    1

    Resumo: A partir das interpretaes de Jean-Pierre Vernant e Christian Meier sobre o

    espetculo trgico, destacam-se neste artigo os aspectos polticos da tragdia grega,

    mostrando como o texto trgico grego um fenmeno social ligado a uma concepo grega

    sobre o fazer poltico. Assim so evidenciados o teatro como um festa em homenagem ao

    deus Dionisio, congregadora de aspectos identitrios, a importncia do coro e a relao entre

    mito e tragdia.

    Palavras-chave: Tragdia Grega; Mito; Poltica.

    Abstract: Political aspects of Greek tragedy as well as its relation with myth are explored in

    light of Jean-Pierre Vernant's and Christian Meier's interpretations, aiming to characterize

    Greek tragedy as a social phenomenon linked to certain notions about political affairs. Greek

    theather is analyzed as a festival in homage to Dionysus which dealt with identity issues and

    political questions.

    Keywords: Greek Tragedy; Myth; Politics.

    Desde a Potica de Aristteles escrita no sculo IV a.C muito se tem discutido sobre

    os aspectos formais de uma tragdia grega e a partir do romantismo alemo no sculo XVIII

    comeou-se a pensar uma filosofia do trgico. Apesar de levantar importantes problemas, as

    discusses estticas e filosficas esquecem uma outra abordagem do texto trgico grego,

    preocupada em entender a tragdia, ou o teatro trgico, como um fenmeno social grego do

    sculo V a.C.

    O objetivo desse artigo mostrar como a tragdia grega concebida dentro de uma esfera

    social especfica, com o intuito de discutir problemas de ordem pblica na esfera poltica.

    Para isso, so abordadas principalmente as ideias do helenista francs Jean-Pierre Vernant e

    do alemo Christian Meier. Cabe ressaltar aqui a singularidade do texto trgico em seus

    sentidos polticos na relao que a tragdia estabelecia entre autor-plis-cidado.

    Roland Barthes discute no artigo Pouvoir de la tragdie antique (2002) algumas

    * Artigo submetido em 05 de novembro de 2012 e aceito para publicao em 09 de janeiro de 2013. 1 Mestre em Histria pela UFRGS, com a dissertao "Neoptlemo entre a cicatriz e a chaga: lgos sofistico,

    peith e aret na tragdia Filoctetes de Sfocles." Especializao em andamento em Estudos Clssicos pela

    Ctedra UNESCO Archai. Email: [email protected]

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    diferenas entre a tragdia grega e os textos dramticos produzidos na modernidade. Para o

    filsofo francs, atento s sensibilidades do teatro, a diferena mais marcante a dimenso

    cvica do texto grego: quase desnecessrio fazer notar [que] o teatro perde toda dimenso

    cvica. A Cidade est quase sempre ausente da nossa cena. (BARTHES, 2002: 44) Esta

    observao serve como ponto de partida para estabelecer a singularidade da tragdia grega.

    Para compreendermos a relao entre cidado e teatro, deve-se deslocar o antigo problema

    das origens da tragdia para o que Jean-Pierre Vernant chamou de os antecedentes do texto

    trgico. De acordo com o helenista francs, o problema das origens um falso problema, pois

    no ajuda a compreender a tragdia mediante abordagens histricas (VERNANT; VIDAL-

    NAQUET, 1999). Entretanto, certos aspectos das origens ajudam a compreender o espetculo

    trgico.

    Festa e concurso para Dioniso

    Concorda-se que a tragdia surgiu no final do sculo VII a.C. na regio de Corinto ou

    na regio de Scion no Peloponeso. De acordo com a Potica de Aristteles (1449a), a

    tragdia nasceu de improvisaes a partir do ditirambo, em honra ao deus Dioniso. Thespis,

    um poeta lrico, teria introduzido o ditirambo na tica por volta de 550 a.C. em suas

    apresentaes de cidade em cidade. De acordo com Dabdab Trabulsi, a etimologia de

    tragodia, canto dos tragodi, recebeu vrias explicaes: canto de figuras fantasiadas de

    bode, canto num concurso cujo prmio era um bode e canto que acompanha o sacrifcio de um

    bode. Mesmo estas tentativas de explicao colocariam um problema incontornvel das

    origens religiosas, pois verdade que o teatro grego o resultado final da passagem de um

    ritual espetacular a um espetculo ritual. (TRABULSI, 2004: 142)

    As tragdias eram encenadas em um contexto institucional, inserindo-se no calendrio

    festivo da cidade e tendo lugar e pblico especficos. Ocorriam nas trs festas em homenagem

    ao deus Dioniso: as Lenias, que aconteciam no final de janeiro, para as quais se

    interrompiam os trabalhos do campo, do comrcio e da navegao de forma que os cidados

    se dedicassem exclusivamente s festividades; as Grandes Dionisacas, que aconteciam no

    final de maro e traziam grande nmero de viajantes para Atenas; as Dionisacas rurais, que

    aconteciam em dezembro em regies da tica (CUSSET, 1997: 12-3). No edifcio do teatro

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    consagrado a Dioniso, era reservado um lugar para um templo do deus contendo uma imagem

    sua; no centro da orkhstra, havia um altar de pedra em sua homenagem; e nas arquibancadas,

    um trono esculpido era reservado ao sacerdote de Dioniso (VERNANT; VIDAL-NAQUET,

    1999: 158).

    Cabem aqui algumas consideraes sobre Dioniso e o teatro, pois para Vernant o seu

    lugar como patrono do teatro causaria em um primeiro momento um estranhamento que

    exigiria explicaes. Este estranhamento est baseado no problema de um teatro que no

    sculo V dialoga com a assemblia e com questes do direito ter um patrono que o deus do

    esquecimento, da embriaguez e da alienao. preciso ter em mente o que Dioniso

    encarnava: a busca de uma loucura divina, a desmedida, a ausncia de limites, a evaso para

    um horizonte diferente e um desterro radical de si mesmo. A resposta de Vernant parte da

    ideia de que a tragdia abriu, na cultura grega, um novo espao, o do imaginrio, sentido e

    compreendido como tal, isto : como uma obra humana decorrente do puro artifcio

    (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999: 162) um espao delineado pela conscincia da

    fico que permite o distanciamento e a compreenso. Seria esta relao com o ilusrio e com

    o distanciamento que aproximaria a tragdia de um Dioniso que consistiria em misturar

    incessantemente as fronteiras do ilusrio e do real, em fazer surgir bruscamente o Alm aqui

    embaixo, em nos desprender e nos desterrar de ns mesmos. (VERNANT; VIDAL-

    NAQUET, 1999: 162)

    Para Meier, as festividades em honra a Dioniso serviam para conciliar aspectos

    polticos e identitrios da plis:

    Certamente, h tambm razes tticas para a instaurao e o

    desenvolvimento das festas: graas a elas, conciliam-se os favores do povo

    que, quando dos sacrifcios, tem a sua parte dos animais imolados, e

    encontra prazer na beleza dos cortejos e dos espetculos; sem dvida ele

    no insensvel ao esplendor que [...] essas festividades conferiam a Atenas,

    e se felicita por essa ocasio que ela encontra de manifestar o seu poderio.

    (MEIER, 2004: 61)

    Assim as festas dionisacas conciliavam problemas internos, contribuindo para a

    coeso do corpo cvico. Cabe lembrar que os Pisistrtidas (Hiparco e Hpias, 527-514 a.C.)

    multiplicaram durante seu regime essas manifestaes festivas (MEIER, 2004: 60). Meier

    apresenta-nos o seguinte quadro para compreendermos o elemento agregador das festas:

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    As Grandes Dionisacas comeam pelo retorno solene da velha esttua de

    madeira do deus, que foi levada previamente para um bosque sagrado fora

    da cidade; elas prosseguem com uma brilhante procisso, para a qual cada

    uma das cidades da Confederao deve enviar um grande falo de madeira.

    Depois h os sacrifcios, em que abundam a carne e o vinho; aps, desfila

    um cortejo alegre e turbulento. (MEIER, 2004: 70)

    A plis ento se congregava para o espetculo trgico. As tragdias eram apresentadas

    em trs dias em cada um deles se apresentavam trs tragdias e um drama satrico de um

    mesmo poeta. O quarto dia era dedicado s comdias. As peas eram escolhidas mediante um

    concurso dirigido pelo Arconte Epnimo, o qual era responsvel tambm por escolher os

    atores e recrutar os membros (coreutos) dos trs coros, que seriam dirigidos e sustentados pelo

    chefe do coro, o corifeu, o qual tinha um grande prestgio poltico e compartilhava da glria

    do poeta em caso de vitria da tragdia em que participava.

    O concurso trgico revela um outro aspecto da tragdia como elemento agregador da

    comunidade ateniense, por meio do seu apelo competitividade, to caracterstica da cultura

    grega. John Gould ressalta a analogia com as grandes competies do mundo grego, as

    Olimpadas e os Jogos Pticos realizados em Delfos:

    Em ambas, a competitividade endmica e potencialmente divisora da

    sociedade grega antiga era validada e santificada atravs da dedicao ao

    culto dos deuses de conspcuas mostras de feitos competitivos. As

    performances dramticas de Atenas, como os concursos atlticos, extraam

    muito do seu significado para aqueles que a assistiam do fato de serem

    competies de feitos perante os olhos da comunidade. Dramaturgos, atores

    e choregoi (atenienses que exibiam a sua fortuna pagando sumptuosamente

    pelos custos da performance) estavam todos tomando parte em uma

    competio uns com os outros e as vitrias de cada um eram tanto

    proclamadas publicamente e atestadas nos registros da plis ateniense

    quanto em conspcuos monumentos privados. (GOULD, 2001: 177)

    Assim, a competitividade, mediada pelo pblico e pelo culto aos deuses, administrava

    as tenses internas da plis e se convertia em um elemento agregador marcado pela

    festividade e pela distribuio do mrito.

    Faz-se necessrio lembrar a advertncia de Nicole Loraux: destacar os aspectos

    cvicos e polticos da tragdia no pode significar a identificao do teatro com a assemblia.

    Loraux ressalta a diferente relao com as paixes:

    O teatro no assemblia, embora sejam os mesmos homens que ocupem as

    arquibancadas da Pnix e assistam as Grandes Dionisacas, a tragdia libera

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    por certo no espectador paixes s quais o cidado digno desse nome no

    poderia abandonar-se, mas ela os liberta, por assim dizer, sob controle,

    autorizando qualquer um a imergir no humano apenas pelo instante

    limitado de um parntese institucional. (LORAUX, 1997: 29)

    Com relao ao coro, cabe tambm notar que ele se distingue inicialmente dos outros

    personagens por seu carter de grupo e a sua unidade mantida por uma voz coletiva que

    canta de forma unssona uma reflexo compartilhada pelo grupo. A personagem do coro em

    alguns momentos pode simbolizar a prpria cidade, ou uma faceta da mesma. Para Battezzato,

    a importncia do coro reside na sua marginalidade com relao ao da pea e na sua

    distncia com relao aos heris no palco, que seriam registradas na prpria estrutura dos seus

    dilogos lricos: os membros do coro oferecem uma resposta para parte do texto que ela

    mesma uma parte do texto. Desta forma eles so leitores/espectadores empricos localizados

    no interior do texto. [] Os membros do coro lem a ao, mas eles oferecem dela uma

    reao emprica, no ideal. De fato a sua reao tanto menos correta e mais profunda do que

    aquela de um espectador ideal. (BATTEZZATO, 2005: 154) Esta interpretao pode ser

    aproximada daquela de John Gould acerca do papel que o coro pode desempenhar no

    desenvolvimento e na construo do significado trgico na pea, criando relaes de

    alteridade com o pblico. Ao passo que os personagens hericos possuem um nome que

    central sua identidade, o coro, apesar de articular a experincia:

    em termos de eu muito mais freqentemente do que como ns, o fazem sem ter um nome. O seu eu uma primeira pessoa coletiva, no a voz de um indivduo definindo o seu auto-entendimento em termos de diferena.

    Eles tm apenas uma identidade coletiva e um nome coletivo, se que podemos cham-lo assim. Este nome usualmente derivativo, normalmente de um lugar (Persas, Mulheres da Trquia, Mulheres

    Troianas), de um papel (suplicantes, bacantes), ou de uma linhagem coletiva

    (Danaides, Nereidas). Eles tm tambm uma memria social coletiva. As suas vozes mltiplas do assim em sua cano uma expresso unvoca sua

    conscincia de grupo e experincia e memria daquele grupo. (GOULD,

    2001: 386-7)

    Assim, o papel do coro estava ligado expresso de uma experincia coletiva oposta

    experincia singular do heri trgico.

    Para Vernant, a institucionalizao da tragdia com o concurso, com a figura do

    arconte, com o corifeu e o coro fazia com que a cidade se tomasse como objeto de

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    representao e se desempenhasse a si prpria diante do pblico (VERNANT; VIDAL-

    NAQUET, 1999: 10).

    Tragdia e mito

    A tragdia est intimamente ligada ascenso da polis, a qual marcou a crise do

    sistema arcaico de construo da verdade. Como desenvolveu Marcel Detienne, a verdade na

    Grcia arcaica s era possvel dentro de um sistema de representaes religiosas: o discurso

    estava ligado ao sagrado e a verdade era privilgio do poeta, do adivinho e do rei da justia

    (DETIENNE, 2006). J a plis marca a conquista do lgos como ferramenta poltica e uma

    nova relao com a verdade. A deciso na assemblia ou o discurso na gora esto

    relacionados com um bom orador a Peith, divindade da persuaso, passa a ser cada vez

    mais lembrada pelos cidados.

    Assim, para compreendermos a questo dos antecedentes do texto trgico, devemos

    atentar para o que Vernant chama de contexto mental, ou seja, um universo humano de

    significaes homlogo ao prprio texto, um conjunto de instrumentos verbais e intelectuais,

    categorias de pensamento e um sistema de representaes (VERNANT; VIDAL-NAQUET,

    1999: 08). Neste contexto mental especfico da tragdia grega se destacaria o pensamento

    social da cidade e o pensamento jurdico. No que concerne ao pensamento jurdico

    necessrio pensar que os gregos no possuam uma ideia de um direito absoluto, com cdigos

    e leis estabelecidos, mas potncias sagradas ligadas justia e ordem. Configura-se na

    tragdia um mundo de dualidade de justia, de vises contrrias de mundo e de cidade que se

    embatem constantemente. Segundo Vernant, os poetas expandem essa dualidade para o

    vocabulrio da tragdia:

    Os poetas trgicos utilizaram esse vocabulrio do direito jogando

    deliberadamente com suas incertezas, com suas flutuaes, com sua falta de

    acabamento: impreciso de termos, mudanas de sentido, incoerncias e

    oposies que revelam discordncia no prprio seio do pensamento

    jurdico, traduzem igualmente seus conflitos com uma tradio religiosa,

    com uma reflexo moral de que o direito j se distinguira, mas cujos

    domnios no esto claramente delimitados em relao ao dele. (VERNANT;

    VIDAL-NAQUET, 1999: 03)

    Nesse sentido, as personagens da tragdia esto plenas de contradies que refletem a

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    condio jurdica e poltica da tragdia. Nesse universo de significados altamente ambguo

    criado por discursos multifacetados, os personagens constroem um pequeno espao de

    consenso e uma grande rea de conflitos. Tal descompasso na comunicao um elemento

    essencial para o efeito trgico, para construo do mundo de ao dos personagens:

    As palavras trocadas no espao cnico tm, portanto, menos a funo de

    estabelecer a comunicao entre as diversas personagens que a de marcar

    os bloqueios, as barreiras, a impermeabilidade dos espritos, a de discernir

    os pontos de conflito. Para cada protagonista, fechado no universo que lhe

    prprio, o vocabulrio utilizado permanece em grande parte opaco; ele tem

    um nico sentido. Contra essa unilateralidade se choca violentamente uma

    outra unilateralidade. (VERNANT, VIDAL-NAQUET, 1999: 19-20)

    Se o prprio dilogo da tragdia carrega esses elementos de incomunicabilidade, a

    ao dos personagens se revela turva e confusa aos seus prprios olhos. Vernant destaca que o

    agir tem um duplo carter, de deliberar consigo mesmo analisando prs e contras e

    organizando os meios e os fins e de contar com o desconhecido (VERNANT; VIDAL-

    NAQUET, 1999: 21).

    Outro elemento importante para compreender os antecedentes da tragdia, como j

    mencionado, a relao que o texto trgico mantm com o mito. A tragdia reinterpreta o

    mito, revestindo-o com um problema ou conflito vivido na cidade pelos cidados. De acordo

    com Loraux, os mitos desempenham um papel importante para a coletividade, para esta

    identidade cvica que o espetculo trgico congrega:

    O mito desempenha o seu papel na plis, face a ela mesma, face s outras

    poleis. Ele adquire na plis uma histria, [...] uma histria no entanto que

    no sem interferncias com aquela, poltica, social, ideolgica, da

    coletividade. Ele torna-se a, sobretudo, porque ele contm um discurso

    cidade e para a cidade, uma das vozes interiores do imaginrio poltico:

    sempre j presentes mas tambm sempre reatualizados, os esquemas mticos

    legitimam e modelam a experincia cvica. A plis utiliza-os, mas talvez

    tambm cedesse persuaso dos seus ditos muito antigos. (LORAUX, 1990:

    35)

    J Charles Segal defende que o distanciamento do mito nas tragdias tornou possvel

    novas sensibilidades dentro da sociedade grega:

    Na tragdia, a organizao do material narrativo dos mitos por um texto

    escrito torna possvel um relato visual de um poder novo e mistura voz e

    viso em relaes novas e complexas. Graas a esta mudana de nfase, as

    metforas do espetculo ou do teatro podem descrever a experincia

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    humana em geral. (SEGAL, 2000: 304)

    O texto trgico marca um grande momento na histria do pensamento ocidental pois

    ele a demonstrao de um distanciamento em relao ao mito. A inspirao para os poetas

    trgicos era a grande tradio de textos e relatos que contavam as histrias dos deuses e

    heris, sendo que a maioria destas histrias est presente nas picas de Homero. Os autores

    das tragdias reinterpretavam o mito e revestiam-no de uma originalidade marcada pelo

    momento da plis e pela autoria de cada poeta. Assim, quando os cidados assistiam a dipo

    Tirano de Sfocles, eles no se surpreendiam com o incesto ou com o parricdio do heri, pois

    eram elementos j conhecidos do mito, mas sim com questes da sabedoria do governante e

    os modos de agir frente aos problemas . Os heris mticos como Odisseu so problematizados,

    assumindo posies ambguas e se distanciando de antigas representaes religiosas.

    Sentidos polticos do texto trgico

    Para entender o carter cvico da tragdia, a qual dialoga com as instituies sociais da

    plis, a partir da mxima de Meier que trata o espetculo trgico como uma arte poltica,

    preciso atentar resumidamente para como era compreendida a ao poltica pelos gregos e

    tambm para dois momentos da histria de Atenas a isonomia de Clstenes e o apogeu da

    democracia pericleana que ajudam a entender a singularidade da identidade do cidado

    ateniense.

    Os gregos chamavam de poltica aquilo que era prprio da plis. Nesta definio

    especfica, poltica refere-se cidade como um conjunto de cidados que a constitui e

    fundamenta. Meier defende que a poltica para os gregos pode ser compreendida como um

    campo de ao, delimitado por uma constituio, colocado dentro de uma esfera que

    alcanava e congregava todos os cidados (politia). Principalmente no sculo V a.C., a

    poltica fundamentava-se primeiramente em uma noo de unidade: desta unidade enraizada

    na comunidade de cidados emergia a autoridade poltica (MEIER, 1996: 34).

    As reformas de Clstenes (508 a.C.) foram basilares na construo deste campo de

    ao, pois possibilitaram o engajamento e a mobilizao. Clstenes dividiu os atenienses em

    dez tribos, no lugar das quatro anteriores este aumento visava que mais pessoas pudessem

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    participar da politia. Alm disso, ele dividiu cada uma destas dez tribos em trs partes

    chamadas de Trtias, uma no litoral, uma na cidade e arredores e uma no interior, atribuindo

    por sorteio um representante para cada trtia ou seja, trs representantes para cada tribo. A

    criao das Trtias buscava evitar o desenvolvimento de alianas regionais. Clstenes tambm

    aumentou a Boul de quatrocentos para quinhentos membros, pois cada uma das ento dez

    tribos designava cinquenta representantes para a Boul. Assim, toda a organizao das

    instituies cvicas e do calendrio foi determinada pelo sistema das dez tribos. Claude Moss

    acredita que esta diviso podia ser uma influncia do esprito geomtrico e da filosofia jnica

    (MOSS, 1982: 22).

    A principal novidade inserida pelas reformas de Clstenes para o campo de ao

    defendido por Meier a noo de isonomia, de que todos os cidados eram iguais em direitos

    perante a lei. A isonomia permitia que os cidados, independentemente do critrio de renda,

    pudessem interferir regularmente na poltica. Moss afirma que esta isonomia que traduz

    concretamente a reforma de espao cvico e, mais simplesmente, o fato de que, doravante, um

    ateniense no mais se nomearia pelo nome do pai, mas pelo seu dems de origem. (MOSS,

    1982: 23).

    Vernant acredita que a isonomia uma herana de uma tradio igualitria antiga no

    pensamento grego, que pode ser vista inclusive nas picas de Homero. De acordo com o

    helenista francs, vrios testemunhos mostram que os termos isonomia, isocracia serviram,

    em crculos aristocrticos, para definir, por oposio ao poder absoluto de um s [...], um

    regime oligrquico em que a arch reservada a um pequeno nmero, excetuando-se a massa,

    mas partilhada de maneira igual entre todos os membros dessa elite. (VERNANT, 2004:

    65-66)

    As mudanas de Clstenes, alm de moldar as origens da democracia, geraram uma

    transformao que unificou os cidados, criando uma identidade cvica enraizada na

    participao. Nesse contexto se forma um pensamento poltico independente, que no ligado

    a tendncias particulares, mas aos interesses da plis. Meier apresenta as mudanas ocorridas

    com a isonomia da seguinte forma:

    assim que a isonomia se torna a palavra de ordem; e da se apreende uma

    grande fora mobilizadora. Como a vida cvica ganha uma importncia to

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    pouco comum, em relao a ela, antes de tudo, que se determina o status,

    o valor de um homem. H poucas possibilidades srias de fazer fortuna; na

    atividade econmica, setores inteiros marcados pelo descrdito. s na

    poltica que algum pode melhorar o seu estado, a que se abre para

    muitas pessoas uma chance de ascender. (MEIER, 2004: 26)

    Neste contexto, forma-se um campo de ao que possibilita no s a participao

    efetiva nos assuntos da cidade, mas a possibilidade de desenvolvimento de outra esfera, na

    qual a igualdade de responsabilidades permite interagir alm do mundo privado e religioso.

    Desenvolvem-se novas concepes e dinmicas de compreenso do mundo, entre elas um tipo

    especfico de solidariedade entre os cidados, como descrito por Meier:

    Uma tal identificao da coisa pblica com a comunidade dos cidados

    pressupunha uma solidaridade particular, a qual, para alm das

    divergncias dos interesses particulares, devia enraizar-se em um interesse

    geral da comunidade. Este interesse tornou-se to predominante que, neste

    novo domnio da vida pblica, os cidados determinavam a poltica tanto

    quanto ela os determinava. Outros interesses ficaram, por outro lado, ou

    relativamente negligenciados, ou mantidos, em grande medida, distantes do

    campo poltico. Para politizar a si mesmos, os cidados no podiam ento

    politizar os seus interesses particulares. (MEIER, 1996: 35)

    Tal qual Meier, Vernant defende que o ideal de isonomia transformou radicalmente a

    ordem dentro da plis. Segundo ele, a ideia de igualdade permitira aos cidados tomarem-se

    como idnticos apesar das diferenas sociais, mantendo relaes simtricas de reciprocidade

    (VERNANT, 2004: 107). A plis associada ideia de simetria construa assim um universo

    homogneo, sem hierarquia, sem planos diversos.

    Contudo, por mais que a isonomia e posteriormente os anos dourados da democracia

    de Pricles tornassem a poltica um campo de ao denso e ativo, preciso ter cuidado com

    idealizaes em relao ao cidado grego. Para um grande grupo de cidados, a poltica era

    apenas uma esfera do mundo concreto que ultrapassava as relaes da esfera privada, das

    trocas parentais e de vizinhana (MEIER, 1984: 14).

    Outro momento importante para a compreenso da identidade poltica ateniense, to

    significativa para a viso do texto trgico aqui defendida, a democracia pericleana. A poca

    de Pricles descrita como a era de ouro de Atenas, e teria o seu apogeu entre as Guerras

    Mdicas (499-449 a.C.) e a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.).

    Para compreendermos a singularidade desta democracia, podemos recorrer a pequenos

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    trechos da Orao Fnebre que Tucdides atribuiu a Pricles no primeiro ano da Guerra do

    Peloponeso. Pricles reivindica na palavra democracia a principal caracterstica de Atenas:

    Nosso regime poltico (politia) no se prope tomar como modelo as leis de outros: antes

    somos modelo que imitadores. Como tudo nesse regime depende no de poucos, mas da

    maioria, seu nome democracia. (Tucdides, II, 37, 2) De acordo com Moss, a palavra

    democracia era relativamente recente no momento em que Pricles a usa no discurso. Ela

    tambm carrega consigo uma ambigidade. O termo democracia composto de duas palavras,

    dmos e o verbo kratin. Dmos podia designar todo o conjunto dos cidados, sem distines

    de nascimento e riqueza, ou podia designar apenas os cidados de menores posses. Assim, o

    regime chamado democracia tinha um sentido dbio: seria um sistema poltico em que a

    soberania residia no conjunto do corpo cvico ou ento um sistema em que a camada social

    mais baixa controlava a cidade. Pricles exalta as decises que dependem da maioria (plein),

    pois ela representaria a soberania do conjunto dos cidados.

    Esta soberania do dmos fundamentava-se nas assemblias, na participao popular

    das camadas mais baixas. Para ter sucesso nas assemblias era necessrio ter um bom domnio

    das artes da persuaso por isso, os sofistas foram fundamentais para a educao ateniense.

    Na continuao da Orao Fnebre, Pricles complementa: [Na democracia], enquanto no

    tocante s leis todos so iguais para a soluo de suas divergncias particulares, no que se

    refere atribuio de honrarias o critrio se baseia no mrito e no na categoria a que se

    pertence; inversamente, o fato de um homem ser pobre e de condio humilde no o impede

    de prestar servio cidade, desde que tenha capacidade para tanto. (Tucdides, II, 37, 2)

    Neste trecho, so apresentadas outras duas caractersticas da democracia pericleana, a

    igualdade dos cidados perante a lei e o mrito, que substitui outras distines.

    O que permitia a participao efetiva dos cidados mais pobres era a mistoforia. De

    acordo com a Constituio de Atenas (XXVII), foi Pricles, em uma medida popular, quem

    estabeleceu o salrio para os tribunais, principalmente para os membros da Boul. De fato, a

    atribuio deste misths (remunerao) possibilitava estar livre do trabalho cotidiano e

    dedicar-se ao tribunal, de forma que a mistoforia (c.454-450 a.C.), assim, possibilitava a

    efetivao da participao das camadas mais baixas (MOSS, 1982: 37).

    O princpio da igualdade perante a lei, ou seja, a isonomia, no pode ser pensado

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    separadamente de um contexto de desigualdades sociais e de desigualdades polticas que eram

    constantemente combatidas pelo dmos. A desigualdade poltica, como lembra Moss, era

    limitada e combatida por meio de um jogo de fora presente na democracia pericleana

    embora os mais pobres no pudessem subir s mais altas funes no controle da cidade, eles

    eram a maioria no dmos, restabelecendo assim um equilbrio. Quanto ao equilbrio social,

    ele era garantido no apenas pela mistoforia, mas tambm, e talvez sobretudo, pelos

    encargos financeiros que os mais ricos assumiam em nome da cidade e de que os mais pobres,

    em parte, se beneficiavam. (MOSS, 2008: 80)

    Para compreender a relao entre texto trgico e a identidade poltica, necessrio

    tambm atentar para outro trecho da Orao Fnebre em que Pricles diz: temos concursos e

    festas religiosas durante todo o ano. (Tucdides, II, 38) Entre estes concursos e festas est a

    celebrao das Grandes Dionisacas. Neste momento preciso retomar a tragdia no seu papel

    de coeso do corpo cvico para estabelecer o seu vis identitrio.

    A identidade de uma sociedade est fundamentada em diversos aspectos da realidade;

    ela constituda na medida em que os membros de uma sociedade partilham e constroem

    sensibilidades comuns. No caso dos cidados atenienses do sculo V a.C., a poltica era fora

    central para a definio dessas sensibilidades formadoras da identidade. O espetculo trgico

    como produo cultural de dimenses religiosas em sua origem e carter cvico e congregador

    para os cidados atenienses no deixa de compartilhar deste vis poltico, formador da

    identidade do cidado. A tragdia, como exposto anteriormente, possui dia, lugar e pblico

    especfico e como instituio cultural prpria da cidade colocava em perspectiva problemas

    prprios da cidade.

    Assim, a arte poltica constitui-se no texto trgico medida que o poeta constri o

    texto em discusso com a identidade da plis, aproximando os personagens do drama das

    discusses que permeiam a cidade. Como nos aponta Meier:

    a experincia e a problemtica poltica podiam ento justamente determinar

    uma nova interpretao do mito. Os problemas da atualidade podiam ento

    ser abordados, de maneira mais ou menos direta, e o mito era ilustrao

    deles. nestes momentos que a tragdia reflete para ns um aspecto do

    pensamento poltico da poca; ela exerce ento verdadeiramente a sua

    funo educativa essencial: instncia globalmente neutra, ela atualiza os

    problema ou as realizaes da plis; traz conscincia a essncia mesma

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    do poltico e exprime talvez certas advertncias de ordem geral. (MEIER,

    1996: 144)

    Meier discute desta forma a velha mxima do fillogo Walter Nestle, to citada e

    difundida por Vernant e por Vidal-Naquet, de que a tragdia nasce quando se comea a ver o

    mito com o olhar do cidado. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999: 10)

    Consideraes finais

    Assim, o espetculo trgico constitui-se em uma arte poltica por colocar problemas de

    ordem cvica e questionar os limites da ao humana atravs de temas como poder, tradio e

    sabedoria. A apropriao do mito revestida pela originalidade de cada autor colocou nos

    textos trgicos uma capacidade de reflexo sobre os problemas da plis ainda no conhecida

    no mundo grego. O espetculo do teatro na Grcia colocava a plis em momento de

    congregao para a reflexo acerca de problemas internos cidade. O teatro faz-se poltica na

    Grcia Antiga medida em que os problemas colocados em cena pelas tragdias transcendem

    o mito e discutem as aes dos cidados e os limites da ao humana frente ao poder.

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