Daniel Hachem Princípios Jurídicos

16
Belo Horizonte 2011 DANIEL WUNDER HACHEM Prefácio Romeu Felipe Bacellar Filho PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

description

Direito constitucional

Transcript of Daniel Hachem Princípios Jurídicos

  • Belo Horizonte

    2011

    DANIEL WUNDER HACHEM

    PrefcioRomeu Felipe Bacellar Filho

    PRINCPIO CONSTITUCIONAL DA SUPREMACIA

    DO INTERESSE PBLICO

  • H117p Hachem, Daniel Wunder

    Princpio constitucional da supremacia do interesse pblico / Daniel Wunder Hachem; prefcio de Romeu Felipe Bacellar Filho. Belo Horizonte: Frum, 2011.

    426 p.ISBN 978-85-7700-496-6

    1. Direito administrativo. 2. Direito constitucional. I. Bacellar Filho, Romeu Felipe. II. Ttulo.

    CDD: 341.3CDU: 342.9

    Informao bibliogrfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Associao Brasileira de Normas Tcnicas (ABNT):

    HACHEM, Daniel Wunder. Princpio constitucional da supremacia do interesse pblico. Belo Horizonte: Frum, 2011. 426 p. ISBN 978-85-7700-496-6.

    2011 Editora Frum Ltda.

    proibida a reproduo total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrnico, inclusive por processos xerogrficos, sem autorizao expressa do Editor.

    Conselho Editorial

    Adilson Abreu DallariAndr Ramos Tavares

    Carlos Ayres BrittoCarlos Mrio da Silva Velloso

    Carlos Pinto Coelho Motta (in memoriam)Crmen Lcia Antunes Rocha

    Cesar Augusto Guimares PereiraClovis Beznos

    Cristiana FortiniDinor Adelaide Musetti Grotti

    Diogo de Figueiredo Moreira NetoEgon Bockmann Moreira

    Emerson GabardoFabrcio Motta

    Fernando RossiFlvio Henrique Unes Pereira

    Floriano de Azevedo Marques Neto

    Gustavo Justino de OliveiraIns Virgnia Prado SoaresJorge Ulisses Jacoby FernandesJos Nilo de CastroJuarez FreitasLcia Valle Figueiredo (in memoriam)Luciano FerrazLcio DelfinoMarcia Carla Pereira RibeiroMrcio CammarosanoMaria Sylvia Zanella Di PietroNey Jos de FreitasOswaldo Othon de Pontes Saraiva FilhoPaulo ModestoRomeu Felipe Bacellar FilhoSrgio Guerra

    Lus Cludio Rodrigues FerreiraPresidente e Editor

    Coordenao editorial: Olga M. A. SousaPreparao de originais: Cida Ribeiro

    Indexao: Maria Clarice Lima Batista CRB 1326 6 RegioCapa, projeto grfico e diagramao: Walter Santos

    Av. Afonso Pena, 2770 15/16 andares Funcionrios CEP 30130-007Belo Horizonte Minas Gerais Tel.: (31) 2121.4900 / 2121.4949

    www.editoraforum.com.br [email protected]

  • 131CAPTULO 2A COMPOSTURA JURDICA DO PRINCPIO

    2.1 Conceitos de princpio jurdico e a norma da supremacia do interesse pblico

    O primeiro componente do princpio constitucional da supre-macia do interesse pblico cuja anlise reclama ateno consiste na varie dade de conceitos de princpio jurdico que podem ser adotados, quando a ele se faz referncia. E isso decorre da pluralidade de sentidos que esse termo pode assumir, como bem demonstra Genaro Carri, ao arrolar onze formas distintas de se empregar tal expresso.392 Essa ampla varie dade conceitual pode facilmente provocar confuses,393 como, de fato, tem ocorrido no caso vertente.394

    Sucede que as diversas compreenses acerca do vocbulo princpio variam significativamente conforme o paradigma jusfilo sfico em que se esteja inserido, e, mesmo dentro de cada um deles, ainda que sejam compartilhadas determinadas premissas,395 h uma infi nidade de divergncias tericas entre os modelos. Arrisca-se a dizer que haver tantas concepes de princpio jurdico quanto o nmero de pen sadores que se propuserem a enunci-las. Prova disso so as obras que se ocupam especificamente dessa temtica, cujos autores acabam tendo de expor, separadamente, a viso de cada terico quanto ao tema.396 possvel, todavia, pontuar a traos largos alguns pontos de con senso acolhidos no seio da perspectiva do jusnaturalismo moderno, do positivismo jurdico e do ps-positivismo em relao ao conceito de princpio.

    Sob o prisma jusnaturalista, em seu vis moderno (sculo XVI a meados do sculo XIX),397 os princpios gozam de normatividade nula

    392 CARRI, Genaro. Notas sobre derecho y lenguaje. 5. ed. Buenos Aires: LexisNexis/Abeledo-Perrot, 2006. p. 210-212.

    393 LEGUINA VILLA, Jess. Princpios generales del Derecho y Constitucin. Revista de Administracin Pblica, n 114, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, p. 7-37, sep./dic. 1987. p. 7.

    394 A questo ser explorada, com maiores mincias, na Parte II, Captulo 3 Possibilidade de enquadramento na categoria normativa de princpio.

    395 V. g., no cenrio do ps-positivismo, o pressuposto de que os princpios operam fora normativa. Cf.: BARROSO, Lus Roberto. Fundamentos tericos e filosficos do novo direito constitucional brasileiro (ps-modernidade, teoria crtica e ps-positivismo). Interesse Pblico, n 11, Porto Alegre: Notadez, p. 42-73, jul./ago. 2001, em especial o Captulo III, item III Ps-positivismo e a normatividade dos princpios.

    396 Ver, a ttulo exemplificativo, as obras de Eros Roberto Grau e de Ruy Samuel Espndola, que apresentam em tpicos separados as propostas de diferentes pensadores, em funo das especificidades de cada uma delas. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretao/aplicao do direito. 5. ed. So Paulo: Malheiros, 2009. p. 169-187; ESPNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princpios constitucionais. So Paulo: RT, 1998. p. 105-246.

    397 BARROSO, Lus Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O comeo da histria. A nova interpretao constitucional e o papel dos princpios no direito brasileiro. Revista de Direito Administrativo, n 232, Rio de Janeiro: Renovar, p. 141-176, abr./jun. 2003. p. 146.

  • 132 DANIEL WUNDER HACHEMPRINCPIO CONSTITUCIONAL DA SUPREMACIA DO INTERESSE PBLICO

    e duvidosa,398 situando-se em uma esfera abstrata e metafsica, uma vez que sua natureza ticovalorativa os aproximava de uma ideia inspiradora dos postulados de justia.399 Partindo da distino entre Direito Natural e Direito Positivo, os jusnaturalistas modernos situa vam os princpios no plano do primeiro, que poderia ser conhecido atravs da razo, a qual, por sua vez, derivaria da natureza das coisas, diferen-temente do Direito Positivo, que seria conhecido mediante uma de-clarao de vontade do legislador.400 Seriam, pois, princpios de justia, inscritos em um Direito ideal, de validade universal e imutvel,401 e no normas dedutveis de um ordenamento jurdico especfico, positivado pelo homem.

    Abandonando a diferenciao entre Direito Natural e Direito Posi tivo, por considerar como vlido somente o sistema normativo positi vado pelo legislador,402 o positivismo jurdico reduz todo o Direito ao que dispe a lei.403 De acordo com Clmerson Merlin Clve, trata-se de uma concepo formalista da experincia jurdica, cuja expresso mxima reside na frmula A lei contm todo o direito.404 Por encar-lo como uma cincia, essa corrente filosfica entende que o Direito deve ocupar-se unicamente com juzos de fato, analisando se as normas so vlidas ou invlidas, no cabendo ao operador jurdico exercer juzos de valor, apreciando se uma norma justa ou injusta.405 Afasta-se da premissa jusnaturalista de que a validade de uma regra de Direito posi tivo depende de sua conformidade com os princpios de justia previstos pelo Direito Natural.406

    Ademais, essa vertente abraa como um de seus pressupostos centrais a crena na completude do ordenamento jurdico-positivo: para assegurar a certeza do direito, nega-se a existncia de lacunas no sistema normativo.407 Em razo disso, o juiz, em face da ausncia

    398 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25. ed. So Paulo: Malheiros, 2010. p. 259.399 ESPNDOLA, Ruy Samuel. Op. Cit., p. 58.400 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico: lies de filosofia do Direito. So Paulo: cone,

    2006. p. 22.401 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional... Op. Cit., p. 261.402 Segundo Bobbio, por conta do positivismo jurdico, ocorre a reduo de todo o direito a

    direito positivo, e o direito natural excludo da categoria do direito: o direito positivo direito, e o direito natural no direito. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico Op. Cit., p. 26.

    403 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dctil. Ley, derechos, justicia. Madrid: Trotta, 1999. p. 33.404 CLVE, Clmerson Merlin. A teoria constitucional e o direito alternativo... Op. Cit., p. 35.405 BARROSO, Lus Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O comeo da histria... Op. Cit., p. 146406 NINO, Carlos Santiago. tica y derechos humanos. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2007. p. 16.407 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico... Op. Cit., p. 207.

  • 133CAPTULO 2A COMPOSTURA JURDICA DO PRINCPIO

    de uma regra especfica dedutvel da lei para resolver o caso, dever recorrer analogia e aos princpios gerais do direito. Estes ltimos, embora j situados dentro do Direito positivo, so considerados como fontes secundrias do Direito, subsidirias, aplicveis to somente nos casos em que faltar uma norma aplicvel situao concreta. Para o posi tivismo jurdico os princpios carecem, pois, de normatividade, fun cio nando apenas como vlvulas de segurana para assegurar a com pletude do ordenamento.408

    Esse paradigma filosfico, cujo pice se alcanou no final do sculo XIX,409 responsvel por construir um direito por regras,410 indiferente (in)justia das normas jurdicas e preocupado exclusivamente com a sua validade formal, conferida atravs da obedincia aos procedi mentos previstos para a sua elaborao. O papel das Constituies, nessa con-juntura, era essencialmente poltico e desprovido de fora jur dica. Suas disposies expressavam diretrizes carentes de juridicidade e sub ju gadas ao imprio da lei, fonte por excelncia do Direito, num Estado que mais do que legislativo poderia ser qualificado como lega lista. At meados do sculo XX, as Constituies europeias dirigiam-se em especial ao Poder Legislativo e a Constituio no era tratada como norma jurdica.411 Os direitos fundamentais, por seu turno, eram encarados como meras declaraes que demandavam legislao inte gra tiva para produzir fora normativa.412

    408 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional... Op. Cit., p. 262. a concepo acolhida pelo Cdigo de Processo Civil brasileiro (Lei Federal n 5.869/73), que em seu art. 126 dispe: O juiz no se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe- aplicar as normas legais; no as havendo, recorrer analogia, aos costumes e aos princpios gerais de direito. Se os princpios devem ser aplicados somente quando no houver normas, pressupe-se que lhes falece normatividade. Inteleco similar se infere do art. 4 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil (Decreto-Lei n 4.657/42): Quando a lei for omissa, o juiz decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princpios gerais de direito.

    409 TAVARES, Andr Ramos. Teoria da Justia Constitucional. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 29.410 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dctilOp. Cit., p. 109-111. Para uma crtica desse

    modelo, ver DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a srio. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 23-125.

    411 O modelo constitucional norteamericano, por sua vez, j apresentava desde o sculo XIX a Constituio como norma jurdica suprema. Sobre as distines entre o sistema de justia constitucional recepcionado pela Europa no sculo XX e o sistema do judicial review norte-americano, ver GARCA DE ENTERRA, Eduardo. La Constitucin como Norma y el Tribunal Constitucional. 4. ed. Madrid: ThomsonCivitas, 2006. p. 5761 e TAVARES, Andr Ramos. Teoria da Justia Constitucional... Op. Cit., p. 49-56. Ver, ainda, CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 1999, especialmente p. 65-100.

    412 CLVE, Clmerson Merlin. A fiscalizao abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. So Paulo: RT, 2000. p. 22.

  • 134 DANIEL WUNDER HACHEMPRINCPIO CONSTITUCIONAL DA SUPREMACIA DO INTERESSE PBLICO

    O juspositivismo encontra sua decadncia aps os regimes totalitrios do perodo entreguerras, que ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbrie em nome da lei.413 Com o advento do Estado Constitucional, consolidado sobretudo nos pases ocidentais aps a Segunda Guerra Mundial, o Direito deixa de se fundamentar meramente na racionalidade cientfica, que separa os juzos de fato (vlido/invlido) dos juzos de valor (justo/injusto). Comea-se a repudiar a compreenso positivista de um ordena mento jurdico afastado de valores ticos, visto sob o prisma unicamente formal.414 O fenmeno jurdico deixa de se resumir letra de lei e passa a incorporar elementos axiolgicos, como a justia e os direitos hu manos (pretenses subjetivas inviolveis, patrimnio jurdico dos seus titu-lares, vlidas por si mesmas, independentemente da lei).415

    Inicia-se a formao de um novo paradigma, denominado por alguns autores de ps-positivismo.416 Trata-se, consoante Lus Roberto Barroso, de uma designao provisria e genrica de um iderio difuso, no qual se incluem a definio das relaes entre valores, princpios e regras, aspectos da chamada nova hermenutica e da teoria dos direitos fundamentais.417 Nesse cenrio, os valores essenciais compartilhados pela comunidade passam a ser albergados nas Constituies, explcita ou implicitamente, na forma de princpios jurdicos, destinados a infor mar todo o ordenamento, como objetivos que os Poderes Pblicos devem perseguir.418 O Direito passa a ser considerado em sua dimenso tica e axio lgica, de sorte que os principais valores sociais revestem-se de juridi cidade, tornando-se verdadeiras normas imperativas.419

    Assim, se no jusnaturalismo os princpios eram encarados como postulados de justia emanados do Direito Natural, despidos de eficcia jurdico-normativa, e no positivismo jurdico ostentavam natureza residual e subsidiria, eis que incidentes apenas quando inexistisse

    413 BARROSO, Lus Roberto. Fundamentos tericos e filosficos do novo direito constitucional brasileiro... Op. Cit., p. 59.

    414 PIOVESAN, Flvia. Direitos humanos e justia internacional: um estudo comparado dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 1. ed. 2. tir. So Paulo: Saraiva, 2007. p. 9-10.

    415 ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. Cit., p. 47 e 51.416 BARROSO, Lus Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O comeo da histria... Op. Cit., p.

    146-147; BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional... Op. Cit., p. 264.417 BARROSO, Lus Roberto. Interpretao e aplicao da Constituio. 7. ed. So Paulo: Saraiva,

    2009. p. 327.418 ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. Cit., p. 93.419 ROCHA, Crmen Lcia Antunes. Princpios constitucionais da Administrao Pblica. Belo

    Horizonte: Del Rey, 1994. p. 21.

  • 135CAPTULO 2A COMPOSTURA JURDICA DO PRINCPIO

    norma aplicvel ao caso, no ps-positivismo eles so marcados por dois traos distintivos essenciais: (i) detm contedo valorativo; e, prin cipalmente, (ii) desfrutam de plena normatividade. No contexto contem porneo, os princpios, notadamente os constitucionais, adqui-rem centralidade nos ordenamentos,420 convertendo-se em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifcio jurdico dos novos sis-temas constitucionais.421 Sedimenta-se um consenso, segundo o qual as normas jurdicas representam um gnero que comporta duas espcies distintas: os princpios e as regras.

    Ocorre que mesmo no cenrio contemporneo, do chamado ps-positivismo, por mais que haja um acordo em relao ao carter nor mativo dos princpios e ao fato de estes se distinguirem das regras, os critrios para caracterizar cada uma dessas duas espcies de norma nem sempre so os mesmos. Da segunda metade do sculo XX aos dias atuais vrios autores, em que pese aceitarem tais premissas com certa tranquilidade, apresentaram propostas divergentes quanto ao fundamento de diferenciao entre os princpios e as regras.

    E o problema surge justamente no momento em que essa dis tino vista como um lugarcomum, como se ela, de to bvia, dispensasse maiores aprofundamentos.422 No raro se observa, em tra balhos acadmicos, a referncia diferena entre princpios e regras, sem a explicitao de qual critrio est sendo empregado para estremlos. Ou, o que pior: adotamse teorias incompatveis entre si, como se compatveis fossem.423 Cuida-se do problemtico fen meno denominado por Virglio Afonso da Silva de sincretismo meto dolgico.424

    Sendo assim, no somente pela diversidade de acepes que o termo princpio jurdico pode comportar, como tambm pela hetero geneidade de critrios que a prpria concepo normativa (ps-positivista) de princpios utiliza para apart-los das regras, impe-se, preambu-lar mente, uma breve investigao acerca de duas diferentes noes difundidas na doutrina brasileira sobre essa espcie de norma jurdica

    420 LEGUINA VILLA, Jess. Princpios generales del Derecho y Constitucin... Op. Cit., p. 7.421 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional... Op. Cit., p. 264.422 VILA, Humberto. Teoria dos princpios: da definio aplicao dos princpios jurdicos. 6.

    ed. So Paulo: Malheiros, 2006. p. 26.423 A advertncia feita por SILVA, Virglio Afonso da. Princpios e regras: mitos e equvocos

    acerca de uma distino. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n 1, Belo Horizonte: Del Rey, p. 607-629, jan./jun. 2003. p. 625. No mesmo sentido: CRUZ, lvaro Ricardo de Souza. Regras e princpios: por uma distino normoteortica. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, n 45, Curitiba: SER/UFPR, p. 37-73, 2006. p. 38.

    424 SILVA, Virglio Afonso da. Interpretao constitucional e sincretismo metodolgico. In: ______ (Org.). Interpretao Constitucional. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 115-143.

  • 136 DANIEL WUNDER HACHEMPRINCPIO CONSTITUCIONAL DA SUPREMACIA DO INTERESSE PBLICO

    (2.1.1). Em seguida, sero apresentadas duas formas distintas de compreender o princpio constitucional da supremacia do interesse pblico, conforme o conceito adotado: mandamento nuclear de um sistema (2.1.2) e mandamento de otimizao (2.1.3).

    2.1.1 As distintas compreenses acerca da categoria norma-tiva princpio na doutrina brasileiraDentro da perspectiva ps-positivista, conforme mencionado,

    embora exista uma unanimidade quanto normatividade dos princpios jurdicos, habitam compreenses diversas acerca do seu conceito. H uma verdadeira pliade de autores que prestaram contribuies para a formao desse consenso, havendo, contudo, aguadas dissonncias em torno de suas propostas. o caso, apenas para citar alguns, de Jean Boulanger, Joseph Esser, Karl Larenz, Vezio Crisafulli, Ronald Dworkin e Robert Alexy.425 Exemplo disso a infinidade de critrios sugeridos para estabelecer a diferenciao entre princpios e regras, tais como: (i) contedo; (ii) origem e validade; (iii) compromisso histrico; (iv) funo no ordenamento; (v) estrutura lingustica; (vi) esforo interpretativo exigido; (vii) forma de aplicao.426

    Em razo das inmeras especificidades que as proposies de cada um desses autores detm, seria demasiadamente extensa a explorao minuciosa de cada uma delas, nesta sede. Abdica-se, assim, da verdadeira tentao de iniciar uma exposio sistematizada das mais diversas concepes acerca da distino entre princpios e regras como espcies do gnero norma jurdica, pelo que se faz remisso a estudos especificamente dedicados a esse propsito.427 Basta, para os

    425 BOULANGER, Jean. Prncipes gnraux du droit positif et droit positif. In: Le Droit Priv Franais au Milieu du XXe sicle (tudes Offertes a Georges Ripert). Paris: LGDJ, 1950; ESSER, Josef. Grundsatz und Norm in der richterlichen Fortbildung des Privatrechts. Tbingen: J. C. B. Mohr, 1956; LARENZ, Karl. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. Berlin/Heidelberg: Springer, 1960; CRISAFULLI, Vezio. La Costituzione e le sue Disposizioni de Principio. Milano: Giuffr, 1952; DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977; ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1986.

    426 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficcia jurdica dos princpios constitucionais: o princpio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 47-51.

    427 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretao/aplicao do direito. Op. Cit., p. 141-205; ESPNDOLA, Ruy Samuel. Op. Cit., passim; BONAVIDES, Paulo. Dos princpios gerais de direito aos princpios constitucionais In: ______. Curso de Direito Constitucional... Op. Cit., p. 255-295; CRUZ, lvaro Ricardo de Souza. Regras e princpios: por uma distino normoteortica. Op. Cit., p. 37-73; BARCELLOS, Ana Paula de. A eficcia jurdica dos princpios constitucionais. Op. Cit., p. 40-57.

  • 137CAPTULO 2A COMPOSTURA JURDICA DO PRINCPIO

    fins a que se destina este item 2.1, explicitar os contornos que, grosso modo, delineiam duas compreenses diversas a respeito da diferena entre princpios e regras que convivem na doutrina brasileira, e que se apoiam, respectivamente, nos seguintes critrios para estremar essas espcies normativas: (a) o grau de fundamentalidade; e (b) a estrutura lgico-normativa.

    (a) O primeiro conceito de princpio que pode ser achado na litera tura jurdica brasileira baseia-se no grau de fundamentalidade da norma para distinguir os princpios das regras. A posio tem sido batizada de concepo tradicional, por autores como Virglio Afonso da Silva e Eneida Desiree Salgado.428 Segundo esse modelo, os princpios so considerados como as normas mais fundamentais de um sistema, que configuram seu embasamento, ao passo que as regras, consubstanciando concretizaes dos primeiros, teriam uma natureza mais instrumental.429 Uma das formulaes mais difundidas dessa ideia tecida por Celso Antnio Bandeira de Mello em 1971, a qual, por conta de sua relevncia para a formao dessa concepo, exige transcrio literal:

    Princpio , pois, por definio, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposio fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondolhes o esprito e servindo de critrio para exata compreenso e inteligncia delas, exatamente porque define a lgica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tnica que lhe d sentido harmnico. (...) violar um princpio muito mais grave que transgredir uma norma. A desateno ao princpio implica ofensa no apenas a um especfico mandamento obrigatrio, mas a todo o sistema de comandos. a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalo do princpio violado, porque representa insurgncia contra todo o sistema, subverso de seus valores fundamentais, contumlia irremissvel a seu arcabouo lgico e corroso de sua estrutura mestra.430

    Vejase que na definio do autor, princpio conceituado como mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,

    428 SILVA, Virglio Afonso da. Princpios e regras: mitos e equvocos acerca de uma distino. Op. Cit., p. 612-613; SALGADO, Eneida Desiree. Princpios constitucionais estruturantes do Direito Eleitoral. Curitiba, 2010. 345 f. Tese (Doutorado em Direito do Estado) Setor de Cincias Jurdicas, Universidade Federal do Paran. f. 11.

    429 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Consideraes em torno dos princpios hermenuticos. Revista de Direito Pblico, n 21, So Paulo: RT, p. 141-147, jul./set. 1972. p. 141.

    430 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Criao de Secretarias Municipais. Revista de Direito Pblico, n 15, So Paulo: RT, p. 284-288, jan./mar. 1971. p. 284.

  • 138 DANIEL WUNDER HACHEMPRINCPIO CONSTITUCIONAL DA SUPREMACIA DO INTERESSE PBLICO

    disposio fundamental. Deduz-se da que para o jurista o elevado grau de fundamentalidade nota caracterstica dessa espcie normativa, porquanto ofender um princpio muito mais grave que transgredir uma norma qualquer.431 O conceito apresentado pelo administrativista acolhido expressamente por Jos Afonso da Silva, ao referirse aos princpios fundamentais do Ttulo I da Constituio brasileira.432

    Posio similar sustentada por Geraldo Ataliba, para quem os princpios so a chave e essncia de todo o direito. No h direito sem princpios. As simples regras jurdicas de nada valem se no estiverem apoiadas em princpios slidos.433 O jurista afirma existir uma hierarquia no sistema normativo, em cujo pice se situariam os princpios mais importantes, fixando diretrizes gerais e condicionando os princpios menores, aos quais, por sua vez, estariam subordinadas as regras. Estas ltimas possuiriam a sua interpretao condicionada pelos princpios.434

    Sob a influncia dessa Escola de pensamento, Carlos Ari Sundfeld corrobora com o entendimento acima esposado, sublinhando que prin-cpio jurdico norma de hierarquia superior das regras, pois determina o sentido e o alcance destas, que no podem contrari-lo, sob pena de pr em risco a globalidade do ordenamento jurdico. Reconhecendo os princpios como a parcela mais importante do direito, indica a sua determinante influncia na interpretao das regras.435

    Na mesma senda, Crmen Lcia Antunes Rocha compreende os princpios como colunas-mestras da grande construo do Direito, salientando em diversas passagens de seu texto a fundamentalidade mxima dessa espcie normativa. Para a autora, os princpios consubstanciam os valores superiores fundamentais partilhados por uma dada sociedade poltica. Os principais valores da comunidade so, portanto, entronizados no sistema sob a forma de princpios jurdicos, razo pela qual a Constituio erige os seus princpios fundamentais em plo central que a anima e vitaliza todas as suas regras e as normas que

    431 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros, 2010. p. 959.

    432 SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32. ed. So Paulo: Malheiros, 2009. p. 91.

    433 ATALIBA, Geraldo. Mudana da Constituio. Revista de Direito Pblico, n 86, So Paulo: RT, p. 181-186, abr./jun. 1988. p. 181.

    434 ATALIBA, Geraldo. Repblica e Constituio. So Paulo: RT, 1985. p. 4-5.435 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Pblico. 4. ed. 9. tir. So Paulo: Malheiros,

    2008. p. 146-148.

  • 139CAPTULO 2A COMPOSTURA JURDICA DO PRINCPIO

    compem o ordenamento jurdico.436 A jurista admite expressamente a distino entre princpios e regras, mencionando que ambos possuem natureza e eficcia distintas e apontando a proeminncia dos primeiros no sistema constitucional.437

    Esse posicionamento pode ser encontrado em alguns dos critrios que so arrolados por Jos Joaquim Gomes Canotilho para apartar as duas espcies normativas sob anlise. Entre eles, esto o carter de fundamentalidade que a norma ostenta no sistema das fontes de direito (princpios so normas de natureza estruturante ou com um papel fundamental no ordenamento jurdico devido sua posio hierrquica no sistema de fontes (...) ou sua importncia estruturante dentro do sistema jurdico), a proximidade da ideia de Direito (os princpios so standards juridicamente vinculantes radicados nas exigncias de justia (...) ou na ideia de direito (...); as regras podem ser normas vinculativas com um contedo meramente funcional) e a natureza normogentica (os princpios so fundamento de regras, isto , so normas que esto na base ou constituem a ratio de regras jurdicas, desempenhando, por isso, uma funo normogentica fundamentante).438

    A compreenso principiolgica ora examinada guarda acentuada aproximao com a proposta de Karl Larenz. Da mesma forma como o faz Celso Antnio Bandeira de Mello, esse autor encara os prin-cpios como alicerces de um sistema.439 Para Larenz, eles possuem um contedo material de justia, podendo ser entendidos como mani festaes e especificaes especiais da ideia de Direito.440 So distintos das regras, e sua aplicao aos casos prticos demanda prvia concretizao, que pode ser efetuada em vrios graus.441 O autor exem-plifica com o princpio do Estado de Direito, cuja incidncia exige um processo de densificao por meio de subprincpios que dele derivam e, reciprocamente, lhe conferem contedo, tais como o da legalidade e o da irretroatividade das leis.442

    436 ROCHA, Crmen Lcia Antunes. Princpios constitucionais da Administrao Pblica... Op. Cit., p. 23-25.

    437 ROCHA, Crmen Lcia Antunes. Idem, p. 22.438 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 7. ed.

    Coimbra: Almedina, 2003. p. 1160-1161.439 LARENZ, Karl. Metodologia da Cincia do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste

    Gulbenkian, 1997. p. 676.440 LARENZ, Karl. Idem, p. 599.441 LARENZ, Karl. Idem, p. 674.442 LARENZ, Karl. Idem, p. 676.

  • 140 DANIEL WUNDER HACHEMPRINCPIO CONSTITUCIONAL DA SUPREMACIA DO INTERESSE PBLICO

    Em suma, essa primeira concepo, bastante tradicional na doutrina brasileira, funda a separao entre princpios e regras no grau de fundamentalidade da norma, que seria mais elevado nos primeiros, por albergarem valores essenciais da sociedade e constiturem as vigas mestras do sistema jurdico, conferindo-lhe organicidade e sen tido lgico, e mais reduzido nas segundas, que possuiriam um carter fun cional e retratariam densificaes dos princpios, os quais condicio nariam a sua interpretao e aplicao. Aqui, os princpios so con-cei tuados como mandamento nuclear de um sistema, em virtude de sua rele vncia axiolgica, que lhe outorga a condio de ncleo central da ordem jurdica.

    Entretanto, tal construo no expende maiores consideraes em relao ao modo de aplicao dessas normas jurdicas, silenciando sobre a existncia ou no de diferena entre a forma de incidncia de um princpio e de uma regra, bem como sobre as tcnicas de soluo de conflitos normativos. esse o foco em torno do qual gravita a outra concepo de princpio vigente na doutrina brasileira, cujos delinea-mentos sero doravante alinhavados.

    (b) A segunda percepo acerca dos princpios jurdicos presente na literatura jurdica nacional radicase no critrio da estrutura lgico-normativa do comando jurdico, para classificlo como princpio ou regra. Cuida-se da compreenso propagada a partir das obras de Ronald Dworkin e Robert Alexy, alcanando difuso no Brasil especialmente aps a incorporao das suas lies obra de Canotilho, publicada em lngua portuguesa.443

    A riqueza terica das propostas dos autores citados exigiria uma extensa digresso para que se pudesse apreender os detalhes a elas inerentes. Por questes metodolgicas, impe-se a confeco de uma brevssima sntese dos pontos cardeais de suas prelees a respeito do tema vertente, o que, invariavelmente, acaba por comprometer em alguma medida a fidelidade de suas formulaes.444

    A premissa utilizada tanto por Dworkin quanto por Alexy a de que, alm de princpios e regras serem espcies do gnero norma, a diferena entre ambos no de grau ou quantitativa, mas sim lgica ou

    443 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Op. Cit., p. 1159 et seq.

    444 Parece ser justamente a leitura apressada desses autores a causa de uma srie de impropriedades tericas reinantes na distino entre princpios e regras. No raro as elaboraes de Dworkin e Alexy so colocadas no mesmo balaio, como se idnticas fossem, o que consiste em grave equvoco, haja vista as divergncias existentes entre as duas teorias.

  • 141CAPTULO 2A COMPOSTURA JURDICA DO PRINCPIO

    qualitativa.445 a forma de aplicao do comando que ir determinar se ele uma regra ou um princpio. As explicaes de cada um desses autores, sem embargo, guardam peculiaridades.

    Ronald Dworkin busca refutar o modelo de regras no qual se funda o positivismo jurdico. Naquele paradigma, a inexistncia de uma regra jurdica clara aplicvel ao caso concreto obriga o juiz a criar discri cionariamente a norma a ser empregada.446 Opondo-se a essa racionalidade, o autor afirma que h outros padres, distintos das regras, que desempenham um importante papel no ordenamento jurdico, os quais ele denomina genericamente de princpios.447 A diferena entre as regras e os princpios estaria na natureza da orientao fornecida por cada uma dessas espcies.

    As regras, segundo Dworkin, aplicam-se conforme a lgica do tudo-ou-nada. Se presente no mundo dos fatos a situao descrita na regra, de duas uma: ou a regra vlida, e aquilo que ela determina deve ser cumprido, ou ela invlida, e, nesse caso, ser irrelevante para a deciso. Havendo conflito entre duas regras, que descrevam a mesma situao ftica e imponham ordens diversas, uma delas ser invlida, de modo que o embate dever ser resolvido pelos mtodos previstos pelo prprio sistema jurdico para resoluo de antinomias (v. g., norma superior derroga a norma inferior, norma posterior derroga a norma anterior, norma especial derroga a norma geral). As regras possuem, portanto, apenas a dimenso de validade.448

    Os princpios, por sua vez, possuem um aspecto que as regras no detm: a dimenso de peso ou importncia. Se dois princpios colidirem num caso concreto, o intrprete que ir resolver a questo dever levar em conta a fora relativa de cada um, isto , o peso que cada princpio deve exercer naquela situao especfica. No obstante, ambos continuam pertencendo ao ordenamento, no havendo a necessidade de declarar a invalidade de nenhum deles. Se um princpio teve impor-tncia maior em uma determinada hiptese, isso pode se dar de forma diversa diante de circunstncias diferentes.449

    445 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a srio. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 39; ALEXY, Robert. Teora de los derechos fundamentales. 2. ed. Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, 2007. p. 67.

    446 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a srio... Op. Cit., p. 49-50.447 Diz-se genericamente porque tais padres podem ser princpios ou polticas. A distino, em

    que pese seja relevante para a adequada compreenso da proposta de Dworkin, no ser analisada nesta sede.

    448 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a srio... Op. Cit., p. 39.449 DWORKIN, Ronald. Idem, p. 42-43.

  • 142 DANIEL WUNDER HACHEMPRINCPIO CONSTITUCIONAL DA SUPREMACIA DO INTERESSE PBLICO

    Robert Alexy, a seu turno, registra que o ponto decisivo para a diferenciao em discusso que os princpios so normas que deter-minam que algo seja realizado na maior medida possvel, dentro das condies fticas e jurdicas presentes no caso concreto. So, por isso, mandamentos de otimizao, caracterizados por poderem ser aplicados em diferentes graus, a depender das circunstncias de cada situao. As regras, por outro lado, so normas que devem ser aplicadas em uma nica medida: se a regra for vlida, deve fazer-se exatamente o que ela exige, nem mais, nem menos.450

    O conflito entre duas regras, para Alexy, resolvese de dois modos: (i) ou se introduz em uma das regras uma clusula de exceo que afasta o conflito; (ii) ou deve ser declarada a invalidade de pelo menos uma delas. Nessa segunda hiptese, o autor sugere tambm que se recorra aos critrios de resoluo de antinomias citados por Dworkin. Sendo assim, as regras, a menos que se tenha criado uma exceo, so razes definitivas para decidir.451

    A coliso entre princpios, de acordo com Alexy, deve ser solucionada mediante a tcnica da ponderao. Se dois princpios, num determinado caso, indicarem caminhos opostos a serem seguidos, no h que se declarar a invalidade de um deles, nem incluir uma clusula de exceo. Um ir ceder passo ao outro, conforme o peso exercido por cada um deles naquelas circunstncias. Atravs da ponderao se determinar qual princpio deve possuir um peso maior na situao especfica, de sorte que o contedo de ambos os princpios colidentes seja realizado na maior medida possvel, produzindo um resultado timo. Da porque os princpios serem conceituados pelo autor como mandamentos de otimizao.452

    Por esse motivo, os princpios, distintamente das regras, no instituem deveres e direitos definitivos, mas apenas prima facie. O comando do princpio, embora imponha uma ordem a ser cumprida, pode ser afastado por razes opostas, diante das possibilidades fticas e jurdicas do caso concreto. Assim, havendo coliso entre dois princpios que determinam, prima facie, que algo seja realizado na maior medida possvel, deve ser estabelecida uma relao de precedncia condicionada. Ou seja: preciso que sejam indicadas quais as condies sob as quais um princpio precede a outro.453

    450 ALEXY, Robert. Teora de los derechos fundamentalesOp. Cit., p. 67-68.451 ALEXY, Robert. Idem, p. 69-70 e 82-84.452 ALEXY, Robert. Idem, p. 70-71.453 ALEXY, Robert. Idem, p. 71e 79-82.

  • 143CAPTULO 2A COMPOSTURA JURDICA DO PRINCPIO

    Em que pese o pioneirismo de Dworkin na adoo do critrio da estrutura lgico-normativa para diferenciar princpios de regras, a concepo de Alexy de princpio como mandamento de otimizao e as suas propostas para resoluo de conflitos atravs da tcnica da ponderao e do recurso proporcionalidade parecem ter alcanado maior recepo na doutrina brasileira. E isso se deu especialmente pela utilidade da sua frmula em matria de direitos fundamentais. Assim, a forma de diferenciao apresentada por Robert Alexy acolhida por uma srie de autores nacionais, tais como Clmerson Merlin Clve e Alexandre Reis Siqueira Freire, Lus Roberto Barroso, Regina Maria Macedo Nery Ferrari, Ana Paula de Barcellos, Virglio Afonso da Silva, entre tantos outros.454

    Como se pde observar, as duas perspectivas apresentadas (a) princpio como mandamento nuclear de um sistema e (b) princpio como mandado de otimizao no so iguais, enrazamse em critrios diferentes para estremar os princpios das regras (grau de fundamen-talidade na primeira e estrutura lgico-normativa na segunda) e so, em ltima anlise, incompatveis.455 Se adotada a primeira, a norma que estabelece a reserva de lei em matria penal (nullum crimen, nulla poena sine lege)456 ser um princpio, dada a sua mxima importncia para o sistema jurdico penal e para o Estado de Direito. Se empregada a segunda, a mesma norma ser considerada como regra, eis que impe uma razo definitiva para decidir, insuscetvel de ponderao.457

    454 CLVE, Clmerson Merlin; FREIRE, Alexandre Reis Siqueira. Algumas notas sobre coliso de direitos fundamentais. In: Srgio Srvulo da Cunha; Eros Roberto Grau (Orgs.). Estudos de Direito Constitucional em homenagem a Jos Afonso da Silva. So Paulo: Malheiros, 2003. p. 231-243; BARROSO, Lus Roberto. Da falta de efetividade judicializao excessiva: direito sade, fornecimento gratuito de medicamentos e parmetros para a atuao judicial. In: Cludio Pereira de Souza Neto; Daniel Sarmento (Orgs.). Direitos sociais: fundamentos, judicializao e direitos sociais em espcie. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2008. p. 875903; FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. A constitucionalizao do Direito Administrativo e as polticas pblicas. A&C Revista de Direito Administrativo & Constitucional, n 40 (Edio Especial de 10 anos), Belo Horizonte: Frum, p. 271-290, abr./jun. 2010; BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderao, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; SILVA, Virglio Afonso da. Direitos fundamentais: contedo essencial, restries e eficcia. So Paulo: Malheiros, 2009.

    455 SILVA, Virglio Afonso da. Princpios e regras: mitos e equvocos acerca de uma distino. Op. Cit., p. 613 e 625.

    456 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988: art. 5. (...) XXXIX no h crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prvia cominao legal.

    457 O exemplo dado, entre outros, por: SILVA, Virglio Afonso da. Princpios e regras: mitos e equvocos acerca de uma distino. Op. Cit., p. 613-614; SALGADO, Eneida Desiree. Princpios constitucionais estruturantes do Direito Eleitoral... Op. Cit., f. 11.

  • 144 DANIEL WUNDER HACHEMPRINCPIO CONSTITUCIONAL DA SUPREMACIA DO INTERESSE PBLICO

    O fato que ambas persistem no iderio jurdico ptrio, de sorte que preciso esclarecer qual o significado do princpio constitucional da supremacia do interesse pblico conforme o prisma escolhido. importante, pois, ter conscincia da impossibilidade de se mesclar ambos os critrios, fazendose imperativa a opo por um ou por outro modelo. O que se visa a demonstrar, contudo, que independente mente da concepo abraada, a supremacia do interesse pblico pode ser entendida como um princpio jurdico. Passa-se, ento, explanao das duas maneiras possveis de se encarar esse princpio: 2.1.2 como man da mento nuclear do sistema jurdico-administrativo e 2.1.3 como manda mento de otimizao, hiptese em que o comando ostentar um duplo carter normativo (de princpio e de regra).

    2.1.2 Princpio da supremacia do interesse pblico como mandamento nuclear do sistema jurdico-adminis-trativo

    O primeiro e mais disseminado conceito de princpio adotado para explicar a supremacia do interesse pblico o de mandamento nuclear de um sistema. Por ser a acepo construda justamente pelo idealizador do princpio Celso Antnio Bandeira de Mello458 natural que, na maior parte das vezes, seja de acordo com ela que se d a compreenso da norma em comento.

    Sob essa perspectiva, o princpio se caracteriza, primeiramente, por sua elevada importncia axiolgica dentro do Direito Administrativo contemporneo. Como visto, a Administrao Pblica no Estado Social e Democrtico de Direito assume a funo de assegurar a prevalncia de um complexo interesse pblico, que envolve o conjunto de interesses dos indivduos enquanto membros da sociedade em que esto inseridos, a includos os interesses dos setores mais fragilizados da populao que, por terem sido qualificados como pblicos pelo sistema normativo, exigem a interveno do Estado inclusive nas relaes interprivadas, para faz-los prevalecer sobre interesses exclusivamente particulares.459

    Nessa esteira, o princpio constitucional da supremacia do interesse pblico considerado como um mandamento nuclear do sistema

    458 Sobre a origem e desenvolvimento terico do princpio, e a participao decisiva de Celso Antnio Bandeira de Mello nesse processo, ver: Parte I, Captulo 1, item 1.1 Origem e desenvolvimento terico do princpio.

    459 Tais aspectos foram salientados na Parte I, Captulo 1, item 1.2, subitem 1.2.3 Prevalncia do interesse pblico sobre o privado: aportes do Estado Social e Democrtico de Direito.