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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP DANIEL SOUZA SANTIAGO DA SILVA A IRRETROATIVIDADE DAS ALTERAÇÕES JURISPRUDENCIAIS NO ÂMBITO TRIBUTÁRIO MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2011

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  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PUC-SP

    DANIEL SOUZA SANTIAGO DA SILVA

    A IRRETROATIVIDADE DAS ALTERAÇÕES JURISPRUDENCIAIS NO

    ÂMBITO TRIBUTÁRIO

    MESTRADO EM DIREITO

    SÃO PAULO

    2011

  • 2

    PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PUC-SP

    DANIEL SOUZA SANTIAGO DA SILVA

    A IRRETROATIVIDADE DAS ALTERAÇÕES JURISPRUDENCIAIS NO

    ÂMBITO TRIBUTÁRIO

    SÃO PAULO

    2011

    Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção de título de MESTRE em Direito, na área de concentração de Direito do Estado, subárea Direito Tributário, sob a orientação da professora Doutora Regina Helena Costa.

  • 3

    Dedico o presente trabalho aos meus pais,

    que me ensinaram a pensar de forma crítica,

    transmitiram valores e firmaram os alicerces para que

    eu pudesse traçar os caminhos que escolhesse.

    À minha esposa, que me motiva a ir mais longe,

    pelo apoio nas escolhas, pela dedicação e pelo amor.

    Aos meus filhos, que chegaram durante essa caminhada e

    me fizeram compreender o que é o amor incondicional e inesgotável.

  • 4

    Banca Examinadora

    ___________________________________

    ___________________________________

    ___________________________________

  • 5

    Agradeço à minha orientadora,

    Professora Regina Helena Costa, pelo

    apoio, seriedade e colaboração para

    que esse trabalho se concretizasse.

    A Flávio de Sá Munhoz, fundamental na

    minha formação jurídico tributária, que

    me apoiou de forma decisiva e

    contribuiu imensamente com toda a sua

    experiência e seus ensinamentos.

    A Paulo Roberto Lyrio Pimenta, que fez

    despertar o fascínio pelo Direito

    Tributário.

    Aos colegas e aos professores do

    Mestrado, especialmente aos

    Professores Paulo de Barros Carvalho,

    Roque Carrazza, Beth Carrazza e

    Marcelo Neves.

  • 6

    RESUMO

    A presente dissertação tem por objeto o estudo da irretroatividade das

    modificações da jurisprudência consolidada no âmbito tributário, cuja relevância

    evidencia-se diante das recentes reformas constitucionais e da legislação

    processual, que dispensam grande importância aos precedentes, generalizando os

    efeitos de decisões proferidas em processos individuais.

    O trabalho foi dividido em quatro capítulos. No primeiro, analisamos a

    função do direito, a linguagem pela qual se manifesta e a forma de construção da

    norma jurídica, que se distingue do texto legal, concluindo que o Poder Judiciário

    não realiza mera operação de silogismo e dedução, mas verdadeira atividade de

    criação do sentido e do alcance dos enunciados prescritivos, concretizando as

    normas a partir dos conceitos generalizantes empregados pelo legislador.

    No segundo capítulo, estudamos a questão da cristalização do precedente,

    fixando critérios para a caracterização da jurisprudência consolidada, que, a

    despeito de ser capaz de orientar as condutas de forma generalizada, poderá ser

    sempre modificada, como forma de preservação da atualização, adequação e

    aperfeiçoamento do ordenamento jurídico.

    Na sequência, já no terceiro capítulo, verificamos o enquadramento da

    irretroatividade como uma norma a ser aplicada para preservação do princípio da

    segurança jurídica, de observância obrigatória nos casos em que restar

    caracterizada uma alteração material da lei, ou seja, quando houver modificação

    do sentido em que era aplicada, ainda que não haja alteração do texto legal.

    Por fim, o quarto capítulo se destina à análise de situações de direito

    tributário aplicado e da necessária modulação dos efeitos das decisões que

    impliquem modificação das expectativas normativas judiciais.

    Palavras-chave: Irretroatividade. Modulação de efeitos. Expectativas normativas

    judiciais. Boa-fé objetiva. Confiança legítima. Segurança jurídica. Princípio e

    regra.

  • 7

    ABSTRACT

    The aim of the present dissertation is the study of the non-retroactivity of

    modifications of precedents set in the tax sphere, whose relevance is highlighted

    in view of the recent constitutional reforms as well as procedural legislation,

    which award great importance to precedents, generalizing the effects of decisions

    uttered in individual lawsuits.

    The work was divided in four chapters. In the first one, there is an analysis

    of the function of Law, the language through which it is expressed and the way to

    create the legal norm, which is differentiated from legal texts, concluding that the

    Judiciary Branch does not perform a mere operation of syllogism and deduction,

    but a true creation of sense and reach of prescriptive statements, concretizing

    rules from generalizing concepts applied by legislators.

    In the second chapter, there is a study of the issue of setting the precedent,

    determining criteria for the characterization of consolidated precedents, which, in

    spite of being able to orient the conducts in a generalized manner, will always be

    subject to modifications, as a way to preserve modernization, adequacy and

    improvement of the legal system.

    Subsequently, in the third chapter, there is a verification of categorization

    of the non-retroactivity as a rule to be applied in order to preserve the principle of

    legal certainty, of mandatory compliance in cases of characterization of a

    material alteration of law, that is, when there is a modification of the sense it was

    applied, even if there is no alteration of the legal text.

    Finally, the fourth chapter is intended to the analysis of situations of

    applied tax law and the necessary modulation of the effects of decisions that

    imply modification of the normative judicial expectations.

    Key words: Non-retroactivity. Modulation of effects. Normative judicial expectations. Objective good faith. Legitimate trustfulness. Legal certainty. Principle and rule.

  • 8

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

    CAPÍTULO 1 – A DECISÃO JUDICIAL COMO ATO NORMATIVO

    CRIATIVO

    1.1 Função precípua do direito ................................................................................... 15

    1.2 Linguagem jurídica: a imprecisão, os conceitos determinantes e o tipo como

    ordenação do pensamento jurídico ............................................................................. 17

    1.3 Estado Democrático de Direito ............................................................................ 25

    1.3.1 Norma Jurídica ................................................................................................ 27

    1.3.1.1 Conceito de norma jurídica ........................................................................ 27

    1.3.1.2 Texto legal, enunciados prescritivos e norma jurídica .............................. 28

    1.3.1.3 Classificação .............................................................................................. 32

    1.3.1.4 Extensão e compreensão ............................................................................ 36

    1.3.1.5 Princípios jurídicos .................................................................................... 38

    1.3.2 O Poder Judiciário como Poder e não como mera autoridade ....................... 44

    CAPÍTULO 2 – JURISPRUDÊNCIA E AS EXPECTATIVAS NORMATIVAS

    2.1 Fontes do direito .................................................................................................. 47

    2.2 Teoria Estruturante de Müller (interpretação e aplicação)................................... 50

    2.3 Teoria Sistêmica de Luhmann .............................................................................. 53

    2.4 Critérios para caracterização da jurisprudência consolidada ............................. 55

    2.4.1 Decisões do Supremo Tribunal Federal relativas à fixação dos critérios para

    aferição da consolidação da jurisprudência ............................................................. 66

    2.5 Possibilidade de mudança de orientação jurisprudencial ...................................... 72

    CAPÍTULO 3 – IRRETROATIVIDADE

    3.1 Distinção entre regra e princípio .......................................................................... 79

    3.1.1 Distinções na doutrina clássica ........................................................................ 81

    3.1.2 Distinções na doutrina pós-positivista ............................................................. 82

  • 9

    3.1.3 Análise crítica dos critérios apontados pela doutrina clássica e pela doutrina

    pós-positivista ........................................................................................................... 84

    3.1.4 Critérios distintivos baseados na natureza do comportamento prescrito, na

    natureza da justificação exigida e da medida da contribuição para a decisão ..... 88

    3.1.5 Princípios como valores e como limites objetivos .......................................... 91

    3.1.6 O enquadramento da irretroatividade .............................................................. 93

    3.2 Evolução histórica da irretroatividade .................................................................. 96

    3.3 Princípios aglutinadores da igualdade e da segurança jurídica ........................... 99

    3.3.2 Princípio da igualdade ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,............................................................... 100

    3.3.2 Princípio da segurança jurídica ....................................................................... 104

    3.3.2.1 Legalidade .................................................................................................. 105

    3.3.2.2 Anterioridade .............................................................................................. 107

    3.3.2.3 Irretroatividade ........................................................................................... 109

    3.3.3.4 Proteção da boa-fé objetiva e da confiança legítima .................................. 116

    3.4 Irretroatividade da lei ou irretroatividade da norma? ........................................... 121

    CAPÍTULO 4 – A IRRETROATIVIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS QUE

    MODIFIQUEM EXPECTATIVAS NORMATIVAS JUDICIAIS

    4.1 Extensão máxima das decisões judiciais e as expectativas normativas judiciais

    geradas pelos tribunais ................................................................................................ 135

    4.2 Desnecessidade de lei para modulação de efeitos das decisões que impliquem

    alteração de expectativas normativas judiciais ........................................................... 138

    4.3 Análises de direito tributário aplicado .................................................................. 143

    4.3.1 Análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto à eficácia de

    suas decisões ............................................................................................................. 144

    4.3.1.1 A Súmula 276 do STJ e a decisão do STF quanto à isenção de Cofins

    concedida às sociedade civis de profissão regulamentada ..................................... 146

    4.3.1.2 O crédito de IPI na aquisição de insumos não tributados ou tributados à

    alíquota zero ........................................................................................................... 149

  • 10

    4.3.1.3 A autorização legislativa ao Poder Executivo para concessão de anistia e

    remissão de tributos por meio de regulamento ....................................................... 154

    4.3.1.4 A inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/91 e a

    modulação de efeitos em prejuízo do contribuinte ................................................. 158

    4.3.2 “Revogação” da expectativa normativa judicial pela lei: análise da Lei

    Complementar nº 118/2005 ...................................................................................... 161

    4.3.3 Aplicação no âmbito administrativo de julgamento ........................................ 164

    4.3.3.1 Inaplicabilidade de multa àqueles que tenham agido em conformidade

    com decisão de última instância administrativa ..................................................... 164

    4.3.3.2 Desqualificação de multa nos casos de alteração de jurisprudência

    consolidada ............................................................................................................. 166

    CONCLUSÃO ............................................................................................................ 167

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................... 173

  • 11

    INTRODUÇÃO

    O Direito tem como função primordial permitir a relação intersubjetiva

    entre os cidadãos, viabilizando o convívio em sociedade.1 Em um Estado

    Democrático de Direito, como se pretende o Estado brasileiro, a igualdade é

    princípio basilar a ser observado tanto no cumprimento quanto na própria

    elaboração das normas jurídicas. Para alcançar a isonomia não basta que a lei

    seja igual para todos, mas que a sua aplicação seja uniforme em relação a todos

    os que se encontram na mesma situação jurídica.

    O Direito se manifesta por meio de linguagem não formalizada, pelo que

    os vocábulos que integram o texto legal não são unívocos. As leis comportam

    interpretações que, por vezes, levam a conclusões distintas e até mesmo

    contraditórias. No processo de concretização do Direito é que os conceitos legais

    são especificados, e se dá efetivamente a delimitação do alcance e do sentido da

    norma jurídica.

    A constatação de que a norma jurídica tributária não se configura como

    conceito fechado, diante da ambiguidade e vagueza da linguagem utilizada pelo

    texto legal, leva à conclusão de que a preservação da igualdade não se encerra

    com a edição de uma norma geral e abstrata, aplicável a todos. A sua realização

    pressupõe a distribuição igualitária dos provimentos jurisdicionais, de modo a

    estabilizar as relações jurídicas intersubjetivas.

    Ainda que não haja alteração do texto legal, os julgadores podem

    modificar a interpretação e proferir decisão em sentido contrário àquele que foi

    adotado anteriormente. A possibilidade de alteração dos precedentes é

    1 O Professor Paulo de Barros Carvalho destaca que “o direito existe para cumprir o fim específico de regrar os comportamentos humanos nas suas relações de interpessoalidade, implantando os valores que a sociedade almeja alcançar”. Segurança jurídica e modulação de efeitos. Direito Tributário em Questão, Revista da Fundação Escola Superior de Direito Tributário, Porto Alegre, n. 1, 2008.

  • 12

    fundamental para a atualização, adequação e aperfeiçoamento do ordenamento

    jurídico. Como bem destaca Karl Larenz,

    [...] todo juiz que haja de julgar de novo a mesma questão

    pode e deve, em princípio, decidir independentemente,

    segundo a sua convicção formada em consciência, se a

    interpretação expressa no precedente, a concretização da

    norma ou o desenvolvimento judicial do Direito são

    acertados e estão fundados no Direito vigente.2

    Ou seja, mais importante que repetir o precedente, e manter a estabilidade

    do sistema, é proferir a decisão mais adequada para o caso concreto.

    Diante da possibilidade de alteração da jurisprudência consolidada pelos

    tribunais, com a consequente modificação das expectativas normativas de

    comportamento, qual a forma de prestigiar e observar os demais princípios

    constitucionalmente consagrados, como a segurança jurídica, a igualdade, a

    proteção à boa-fé objetiva e à confiança legítima? O presente trabalho aponta a

    irretroatividade como instrumento adequado para a realização de tais princípios.

    Sustentamos que o Poder Judiciário não é mero aplicador de um direito

    que já está posto na lei. As decisões judiciais, na linha do que defende a teoria

    estruturante de Friedrich Müller, é que fazem efetivamente surgir as normas

    jurídicas, imprimindo-lhes conteúdo.

    Assim, as decisões proferidas se projetam para o futuro e podem orientar

    expectativas normativas de comportamento.

    Ao escolher dentre as alternativas possíveis de construção3 de sentido, a

    2 Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 612. 3 Humberto Ávila esclarece que “a atividade do intérprete – quer julgador, quer cientista – não consiste em meramente descrever o significado previamente existente dos dispositivos. Sua atividade consiste em constituir esses significados. Em razão disso, também não é plausível aceitar a ideia de que a aplicação do Direito envolve uma atividade de subsunção entre conceitos prontos antes mesmo do processo de

  • 13

    partir do texto legal, o juiz reduz complexidades e fecha o sistema para as demais

    possibilidades disponíveis, como sustenta Misabel Derzi.4

    A modificação da orientação interpretativa, pelo Poder Judiciário, implica

    criação de nova norma jurídica e se equivale à alteração da lei, pelo que não pode

    produzir efeitos pretéritos.

    A irretroatividade é aplicável tanto nas circunstâncias em que tenha

    havido alteração formal (do texto) quanto nos casos de alteração material (no

    sentido) da lei.

    Assim, a presente dissertação analisará quais os requisitos para

    configuração de jurisprudência consolidada, e a consequente fixação de

    expectativas normativas judiciais, para apontar quais as situações em que se pode

    falar em alterações jurisprudenciais. Essa análise compreende a verificação dos

    julgamentos do Supremo Tribunal Federal a respeito da modulação de efeitos de

    suas decisões, buscando estabelecer os critérios para que se possa falar em

    cristalização de um entendimento.

    As recentes alterações legislativas, dentre as quais o artigo 557, § 1.º-A

    (que outorga poder ao juiz para, monocraticamente, decidir sobre recurso

    interposto que contrarie a jurisprudência consolidada), o artigo 558, § 1.º (que

    estabelece que o juiz pode não receber apelação que contrarie súmula, não

    vinculante, dos tribunais superiores), e o artigo 475, § 3.º (que dispensa o duplo

    grau de jurisdição obrigatório, na hipótese de a sentença estar fundada em

    jurisprudência do Plenário do STF), ampliaram os efeitos das decisões dos

    tribunais (extensão máxima), o que reforça a necessidade de aplicação da

    irretroatividade das decisões que modifiquem jurisprudência consolidada.

    aplicação”. Em seguida, conclui que a atividade do intérprete consiste em reconstrução de sentido, posto que parte do sentido já construído na comunidade do discurso (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 24). 4 Modificações da jurisprudência no direito tributário, p. 227.

  • 14

    A irretroatividade das decisões que impliquem alterações jurisprudenciais

    no âmbito tributário, como pretendemos demonstrar no presente trabalho, é

    medida indispensável para manter o equilíbrio do sistema jurídico e o respeito à

    previsibilidade de suas regras.

  • 15

    CAPÍTULO 1 – A DECISÃO JUDICIAL COMO ATO NORMATIVO

    CRIATIVO

    1.1 Função precípua do Direito

    O Direito tem diversas funções que podem ser destacadas, mas a principal

    delas é a manutenção do equilíbrio (igualdade) entre os sujeitos, na regulação das

    condutas intersubjetivas.

    A origem do vocábulo Direito, como destaca Tércio Sampaio Ferraz

    Júnior,5 com base nos ensinamentos de Sebastião Cruz, tem vinculação direta

    com a sua simbolização. O Direito há muito é simbolizado pela balança; quando

    os dois pratos estiverem perfeitamente retos (rectum), a deusa Diké, para os

    gregos, ou a deusa Iusticia, para os romanos, poderá dizer o direito.

    A simbolização do Direito chama a atenção para a sua função primordial,

    que é assegurar a igualdade entre os sujeitos.

    A distribuição da igualdade e da justiça inicialmente ficou concentrada

    nos monarcas, que, por vezes, em razão de dogmas religiosos, eram considerados

    como aqueles que tinham o poder de estabelecer as condutas que deveriam ser

    obedecidas, instituindo padrões de conduta e obrigações para os cidadãos.

    Posteriormente, o modelo absolutista foi substituído pelo modelo liberal,

    procurando-se assegurar a igualdade (a retidão da balança) por meio de leis

    (normas gerais e abstratas) aprovadas pelos representantes do povo (não há mais

    um indivíduo escolhido por uma divindade). Instituiu-se, então, o Estado de

    Direito.6

    5 Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6 Conforme sustentaremos adiante, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, e não um simples Estado de Direito, que tem como princípio basilar assegurar direitos individuais, conforme disposto no artigo 1.º da Constituição.

  • 16

    Também as normas gerais e abstratas, em uma sociedade complexa, em

    que existem diversos interesses divergentes, e no qual um mesmo indivíduo ou

    grupo de indivíduos têm interesses conflitantes, não se mostraram suficientes

    para realizar a igualdade preconizada pelo Texto Constitucional.

    Para assegurar a igualdade, não basta que a lei seja igual para todos; é

    necessário que a lei seja aplicável de forma igualitária e acessível a todos. Assim,

    ao aplicador da lei compete assegurar uma distribuição igualitária de decisões,

    sem distinções não autorizadas7 pela Constituição.

    O papel desempenhado pelo direito e pelos seus aplicadores deve ser,

    primordialmente, o de estabilizar de forma congruente as relações jurídicas,

    dando segurança aos indivíduos de quais as consequências de sua conduta.

    A modificação da orientação jurisprudencial é assegurada pelo

    ordenamento e deve ser vista de forma positiva, pois as relações sociais evoluem

    e se modificam, os valores se transformam, pelo que o aplicador deve ter a

    possibilidade de adequar tais alterações ao dizer o direito no caso concreto.

    Assim, mesmo que não haja modificação do texto legislativo, deverá o

    juiz construir o comando concreto considerando a realidade atual, aí

    considerados os valores vigentes.

    Com isso não queremos sustentar que não haja parâmetros e limites à

    atividade judicante, que implica criação de norma, como veremos adiante. O

    sistema oferece as balizas para a decisão judicial, mas resta ao aplicador uma

    gama de possibilidades interpretativas, cabendo ao juiz escolher qual delas

    adotar.

    Como, então, visto que é permitida a alteração do sentido da norma,

    7 O discrímen pode ser autorizado ou mesmo necessário para assegurar a igualdade material.

  • 17

    preservar os princípios que informam o Estado Democrático de Direito? Diante

    da constatação de que o órgão máximo do Poder Judiciário pode alterar a

    interpretação dos preceitos legais e modificar as consequências decorrentes de

    determinado ato, cabe à Dogmática Jurídica apontar outros caminhos para a

    preservação dos ditames constitucionais da segurança, protegendo a boa-fé

    objetiva e assegurando a confiança legítima.

    1.2 Linguagem jurídica: a imprecisão, os conceitos determinantes e o tipo

    como ordenação do pensamento jurídico

    Inicialmente, é importante destacar que, nos tempos atuais, é indiscutível

    que o Direito é linguagem e que somente por meio da linguagem se produz

    conhecimento.

    Como bem destaca o Professor Paulo de Barros Carvalho,8 a linguagem é

    única e exclusiva forma de manifestação do Direito.9

    Tratando-se de um conjunto de enunciados voltados para a regulação das

    condutas intersubjetivas, que deve ser compreensível por todos os seus utentes, o

    Direito se manifesta por meio de linguagem não formalizada, diferentemente do

    que ocorre com as ciências exatas, manifestada por linguagem lógico-formal.

    Vale observar que o texto de direito positivo, exatamente em razão de se

    manifestar por meio de linguagem técnica, cujos vocábulos, em sua maioria, são

    retirados da linguagem comum, é marcado pela imprecisão10 (ambiguidade e

    vagueza). Os vocábulos utilizados pelo legislador não são precisos, posto que não

    8 Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário, linguagem e método, p. 162. 9 Tanto o Direito Positivo quanto a Ciência do Direito se manifestam por meio da linguagem. Advertimos que, no presente trabalho, quando utilizarmos o vocábulo Direito, estaremos nos referindo ao direito positivo. Quando nos referirmos à Ciência, empregaremos o vocábulo Dogmática Jurídica ou Ciência do Direito. 10 O Professor Marcelo Neves (Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil, p. 204) destaca que as características de ambiguidade e a vagueza da linguagem jurídica foram reconhecidas pelas mais diversas tendências da teoria do Direito, chegando-se às mais diversas e contraditórias consequências.

  • 18

    são fruto de uma linguagem artificialmente criada, adotando expressões não

    científicas, com sentidos muitas vezes imprecisos.

    Nicola Abbagnano conceitua o vocábulo vago como aquela palavra cujo

    [...] significado não é suficientemente determinado de tal

    modo que haverá casos em que parecerá impossível decidir

    se ela é aplicável ou não. Assim, a palavra “distante” é

    vaga porque existem casos nos quais é impossível decidir

    se é possível falar de distância ou não; entretanto não é

    vaga a expressão “distante trinta quilômetros”.11

    Ambiguidade, por sua vez, é conceituada como a situação que permite

    interpretações diversas, inclusive excludentes. Ou seja, uma palavra tem mais de

    um significado.

    Com essas considerações iniciais, podemos concluir que não existe texto

    de lei que dispense interpretação. A máxima “in claris cessat interpretatio” não se

    verifica na realidade, pois inexiste texto legal claro a ponto de dispensar

    interpretações, mostrando-se insuficiente o teor literal do texto normativo para a

    construção da norma jurídica.

    Como leciona Gomes Canotilho, citado pela Professora Regina Helena

    Costa,

    [...] as normas constitucionais necessitam de densificação,

    processo que define como “preencher, complementar e

    precisar espaço normativo de um preceito constitucional,

    especialmente carecido de concretização, a fim de tornar

    11 Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia, p. 988.

  • 19

    possível a solução, por esse preceito, dos problemas

    concretos”.12

    Assim, pode-se afirmar que a linguagem jurídica é caracterizada por uma

    tessitura aberta, conforme sustentado por Genaro Carrió, citado por Misabel

    Derzi, que “apontou como característica da linguagem comum, na qual se

    expressa a norma jurídica, a ambiguidade, o sentido vago e a textura aberta, o

    que impossibilitaria a formação de conceitos unívocos”.13

    Diante de tal assertiva, pode-se afirmar que existem conceitos fechados

    no Direito? A adoção da premissa de que o Direito se manifesta por meio de

    linguagem não criada artificialmente (não formalizada), que tem como

    característica inafastável a imprecisão em potencial, é conciliável com o

    princípio da tipicidade fechada, aplicável ao Direito Penal e também ao Direito

    Tributário, que se revela, no âmbito tributário, pela necessidade de que

    [...] na lei tributária há que se conter todos os elementos

    necessários à chamada regra-matriz de incidência, isto é,

    aquele mínimo irredutível, aquela unidade monádica que

    caracteriza a percussão do tributo, vale dizer, a descrição

    de um evento de possível ocorrência para a norma poder

    operar, e a prescrição de uma relação jurídica que vai

    nascer quando ocorrer esse acontecimento?14

    A análise dos questionamentos pressupõe a verificação da distinção entre

    o método de apreensão da realidade conceitual e o tipológico.

    12 J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, apud Regina Helena Costa, Praticabilidade e justiça tributária, p. 29 13 Genaro R. Carrió, Algunas palabras sobre las palabras de la ley, apud Misabel Abreu Machado Derzi, Modificações da jurisprudência no direito tributário, p. 151. 14 Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário, linguagem e método, p. 284.

  • 20

    Uma primeira advertência: tipo é um vocábulo ambíguo. Assim,

    inicialmente deve ser esclarecida qual a acepção em que deve ser compreendido

    no presente trabalho.

    Em profundo estudo sobre o assunto,15 Misabel Derzi esclareceu que a

    indevida tradução da expressão tatbestand como hipótese levou à equivocada

    acepção do vocábulo “tipo” como um conceito fechado. Em sua mais recente

    obra,16 a tributarista mineira revisita o tema, trazendo um histórico do

    pensamento conceitual e tipológico. Esclarece que a forma de pensar conceitual,

    que, inicialmente influenciada pelo jusnaturalismo, sustentava haver um sentido

    único e essencial em cada palavra contida no texto, pelo que a sentença seria

    mera subsunção à lei, evoluiu para uma forma de pensamento tipológica,

    abandonando o modelo dos conceitos abstratos, fechados, determinados e

    classificatórios.

    Reconhecendo que “tipo é ainda um conceito”,17 sustenta que “tipo é o

    nome que se dá à ordem que, comparativamente, ordena objetos, segundo

    características nem rígidas, nem fixas, em sistema aberto, graduável, voltado à

    realidade de valor e de sentido”.18

    A respeito da distinção entre conceito e tipo, vale ainda transcrever os

    ensinamentos da professora mineira de que: (i) tipo “é ainda um conceito, mas

    não individual”;19 (ii) “o tipo é uma abstração, há de colher não o indivíduo

    isolado, em sua ininteligível concretude, mas o que há de comum ou repetitivo

    em um grupo, selecionando as características relevantes, segundo o ponto de

    vista normativo”;20 (iii) “o tipo, ao ser valorado pelo Direito, seleciona e corta

    também a realidade como o conceito, mas de modo muito mais determinado e

    15 A respeito do assunto, Misabel Derzi editou uma das mais importantes obras do Direito Tributário brasileiro, intitulada Direito tributário, direito penal e tipo. 16 Misabel Abreu Machado Derzi, Modificações da jurisprudência no direito tributário. 17 Idem, ibidem, p. 120-121. 18 Idem, p. 121. 19 Idem, p. 121. 20 Idem, p. 121.

  • 21

    especificado, de tal forma que a sua proximidade à realidade, abertura,

    flexibilidade e graduação de notas características decorrem do sistema jurídico e

    não diretamente da complexa e promíscua realidade social que o inspira (tipo

    real/social)”;21 (iv) tipo “não se confunde com princípio indeterminado (pobre de

    conteúdo e de proximidade à realidade); nem tampouco com cláusula geral (vaga

    e fluida em notas características); nem com conceitos obscuros (também carentes

    de conteúdo significativo)”;22 (v) “tipo distingue-se do conceito amplamente

    determinado (que também é rico em notas características), não do ponto de vista

    da proximidade à realidade, mas do ponto de vista de sua flexibilidade,

    graduação e combinação variável de notas e características, enfim de sua abertura

    à realidade”.23

    Adotando-se a distinção entre o pensamento conceitual e tipológico,

    podemos afirmar que, como decorrência da imprecisão dos vocábulos utilizados

    pelo direito positivo, característica da linguagem técnica (comum ou não

    formalizada) utilizada pelo legislador, não existem conceitos fechados capazes de

    determinar um único sentido válido para a “aplicação” do enunciado prescritivo.

    A conclusão acima é confirmada pelo fato de ser possível a alteração

    jurisprudencial sem que tenha havido qualquer modificação dos enunciados

    prescritivos; caso o texto legal contivesse conceitos rígidos (especificidade

    conceitual)24 e não típicos, o juiz seria mero aplicador e jamais poderia haver

    uma alteração da compreensão do texto legal.

    Portanto, a despeito da grande influência na doutrina brasileira da obra

    21 Misabel Abreu Machado Derzi, Modificações da jurisprudência no direito tributário, p. 121. 22 Idem, ibidem, p. 121. 23 Idem, p. 121. 24 A Professora Regina Helena Costa esclarece em sua obra Praticabilidade e justiça tributária que prefere a expressão “especificidade conceitual”, como abordada por Andrei Pitten Velloso, em artigo publicado na Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil 77/40, intitulado Princípio da especificidade conceitual, vagueza da linguagem e tributação, à expressão “tipicidade tributária”.

  • 22

    de Alberto Xavier,25 na qual sustenta a tipicidade fechada da norma jurídica

    tributária, lastreada no positivismo formalista, que garante maior segurança

    jurídica, a norma jurídica não é unívoca e não há um único sentido possível a ser

    extraído do texto legal.

    O mestre português sustenta que, no âmbito tributário, é vedada a

    utilização de enunciados tributários vagos. A norma jurídica tributária deve fixar

    de maneira rigorosa o critério e mesmo o conteúdo da norma de decisão do

    “aplicador”. Como bem destaca Andrei Pitten Velloso, grande parte da doutrina

    entende que o legislador deve empregar termos unívocos e precisos,

    [...] de forma a viabilizar uma precisão objetiva da

    existência e do teor da obrigação jurídico-tributária,

    garantindo, assim, a certeza e a segurança jurídica. Imporia,

    ademais, uma atividade completamente passiva por parte

    dos aplicadores do Direito, limitada à dedução da norma

    concreta a partir do claro teor da norma geral e abstrata.26

    Referido autor reconhece que o artigo 146, inciso III, alínea a, da

    Constituição Federal “exige por via reflexa a determinação mais específica dos

    contornos dos fatos com conteúdo econômico que a Constituição selecionou para

    discriminar as competências tributárias em relação aos impostos nominados”,27

    mas não adere à posição de Alberto Xavier de que o mencionado dispositivo

    25 O autor português sustenta que não basta que o tributo seja criado por lei, sendo necessária uma “lei qualificada”. São as suas palavras: “reserva ‘absoluta’ significa a exigência constitucional de que a lei deve conter não só o fundamento da conduta da Administração, mas também o próprio critério de decisão do órgão de aplicação do direito no caso concreto, ao invés do que sucede com a ‘reserva relativa’, em que muito embora seja indispensável a lei como fundamento para as intervenções da Administração nas esferas da liberdade e de propriedade dos cidadãos, ela não tem que fornecer necessariamente o critério de decisão no caso concreto, que o legislador pode confiar à livre valoração do órgão de aplicação do direito, administrador ou juiz. A exigência de ‘reserva absoluta’ transforma a lei tributária em lex stricta (princípio da estrita legalidade), que fornece não apenas o fim, mas também o conteúdo da decisão do caso concreto, o qual se obtém por mera dedução da própria lei, limitando-se o órgão de aplicação a subsumir o fato na norma, independente de qualquer valoração pessoal” (Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva, p. 17-18). 26 Andrei Pitten Velloso, Princípio da especificidade conceitual, vagueza da linguagem e tributação, p. 39. 27 Idem, ibidem, p. 43.

  • 23

    consagra a “proibição constitucional da indeterminação conceitual”.28

    Os adeptos da corrente que sustenta que as normas tributárias têm que

    encerrar tipos fechados (adotando-se a acepção distorcida da tradução de

    tatbestand) reconhecem a inexistência de conceitos rigorosamente determinados

    e fundamentam a tipicidade na segurança jurídica, condenando a utilização de

    conceitos indeterminados nos enunciados prescritivos tributários, mas aceitando

    conceitos “aparentemente indeterminados” desde que “determináveis com

    segurança e sem arbitrariedades”.29

    Conforme leciona Alberto Xavier, “deve entender-se por conceito

    determinado aquele conceito empregado na lei e no qual o órgão de aplicação do

    direito deva descobrir imediata, direta e exclusivamente o conteúdo que, deste

    modo, é lógica e conceitualmente unívoco”,30 sendo vedada a “indeterminação

    conceitual que afastasse a suscetibilidade de previsão objetiva”.31

    Portanto, diante das características da linguagem utilizada pelo Direito e

    da impossibilidade de espancar toda e qualquer imprecisão dos vocábulos que

    compõem os enunciados prescritivos, conforme reconhece a própria doutrina

    adepta do conceitualismo, bastante influenciada pela obra de Karl Engish,32

    cumpre analisar os problemas relativos à atribuição de sentido aos enunciados,

    preservando-se os valores e princípios constitucionalmente consagrados, sem

    permitir qualquer tipo de prevalência entre eles.

    Como bem resume Ricardo Lobo Torres,

    28 Alberto Xavier, Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva, p. 28, nota 14. 29 João Dácio Rolim, Normas antielisivas tributárias, p. 47-48 apud Andrei Pitten Velloso, Princípio da especificidade conceitual, vagueza da linguagem e tributação, p. 54, nota 59. 30 Alberto Xavier, Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação, p. 97 apud Andrei Pitten Velloso, Princípio da especificidade conceitual, vagueza da linguagem e tributação, p. 54. 31 Andrei Pitten Velloso, Princípio da especificidade conceitual, vagueza da linguagem e tributação, p. 54. 32 Karl Engish, em seu Introdução ao pensamento jurídico, dá os fundamentos teóricos principais para a construção da doutrina brasileira a respeito da tipicidade tributária.

  • 24

    [...] do princípio da tipicidade não emana, como imagina o

    positivismo ingênuo, a possibilidade do total fechamento

    das normas tributárias e da adoção de enumerações

    casuísticas e exaustivas dos fatos geradores. A norma do

    Direito Tributário não pode deixar de conter alguma

    indeterminação e imprecisão, posto que se utiliza também

    de cláusulas gerais33 e dos tipos, que são abertos por

    definição.34

    No mesmo sentido, Marco Aurélio Greco adverte que

    [...] as palavras não carregam nelas mesmas um

    determinado conteúdo. A função de um signo não é

    transmitir significado. A rigor, sua função é evocar no

    interlocutor um conteúdo significativo que se espera seja

    idêntico àquele que a palavra evoca no emissor.35

    Diante da conclusão de que é possível atribuir novo sentido ao mesmo

    texto de lei, alterando a orientação jurisprudencial e a expectativa normativa que

    regula a conduta, como preservar o Estado Democrático de Direito, fundado na

    igualdade e na segurança jurídica? Visto que a literalidade da lei não é suficiente

    para assegurar a coerência das decisões e a distribuição igualitária de

    provimentos jurisdicionais, capazes de estabilizar as relações intersubjetivas e

    solucionar os conflitos, fazendo com que o Direito alcance os seus objetivos,

    resta à Dogmática apontar novos caminhos para realizar os princípios

    constitucionalmente expressos ou implícitos, que informam o Estado

    Democrático de Direito.

    No presente trabalho, como veremos adiante, pretende-se apontar a

    33 A respeito de cláusulas gerais, ver o item 1.3.1.4, infra, relativo à extensão e compreensão da norma jurídica. 34 Ricardo Lobo Torres, Normas de interpretação e integração do direito tributário, apud Andrei Pitten Velloso, Princípio da especificidade conceitual, vagueza da linguagem e tributação, p. 58, nota 69. 35 Marco Aurélio Greco, Planejamento tributário, p. 77.

  • 25

    irretroatividade, com a consequente limitação da eficácia temporal das decisões

    que alterem a jurisprudência consolidada, como um meio adequado para

    implementação do Estado Democrático de Direito, preservando-se a boa-fé

    objetiva, a proteção da confiança, a segurança jurídica e a igualdade.

    1.3 Estado Democrático de Direito

    A Constituição brasileira estabelece em seu primeiro artigo que a

    República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito.

    Conforme observamos acima, ainda que não estejam vazados em

    linguagem prescritiva, todos os enunciados, mesmo aqueles aparentemente

    descritivos, devem compor a construção da norma jurídica. Assim, o preceito

    disposto no artigo 1.º da Constituição Federal deve ser observado tanto na

    elaboração de normas gerais e abstratas, pelo legislador, quanto na introdução de

    normas individuais e concretas, primordialmente editadas pelo juiz.

    Mas qual o conteúdo desse dispositivo legal? Qual a implicação concreta

    de a República Federativa do Brasil constituir-se em Estado Democrático de

    Direito?

    Conforme veremos adiante, constituir-se Estado Democrático de Direito

    implica submeter-se a diversos princípios que asseguram sobretudo a igualdade

    entre os cidadãos e a preservação da segurança sobre as consequências de seus

    atos. No âmbito estritamente tributário, significa, entre outras coisas, que o

    contribuinte não poderá ser surpreendido com uma exigência que não estivesse

    previamente prevista na lei, ou mesmo por uma nova interpretação de um

    dispositivo legal.

    Assim, por exemplo, restou consagrado no âmbito do Supremo Tribunal

    Federal que a locação de bens móveis não se caracteriza como prestação de

  • 26

    serviços, pelo que não pode sofrer a incidência do Imposto sobre Serviços de

    Qualquer Natureza. Desse modo, havendo uma alteração jurisprudencial,

    fixando-se novo conteúdo ao comando constitucional que atribui a competência

    tributária aos municípios, para que seja preservada a segurança jurídica e o

    Estado Democrático de Direito, deverá ser limitada a eficácia temporal da

    decisão.

    O Estado Democrático de Direito, portanto, é composto por uma gama

    de princípios e de vetores que estabelecem limites à atuação dos poderes

    constituídos e aos particulares. Dentre estes princípios podemos destacar a

    segurança jurídica e a irretroatividade, como uma das técnicas para o seu alcance.

    Importante salientar a distinção apontada por Marco Aurélio Greco36

    entre Estado de Direito e Estado Democrático de Direito. O autor sustenta que

    até a Constituição Federal de 1988 poder-se-ia defender a necessidade de o

    Estado brasileiro atender aos ditames de um Estado de Direito, com enfoque

    principal na garantia dos direitos individuais, como reação ao regime autoritário

    vigente a partir do golpe militar de 1964. No entanto, a Constituição de 1988

    acolheu tanto a ideologia social (Estado Democrático, intervencionista) quanto a

    ideologia liberal (Estado de Direito). O fruto do momento histórico em que foi

    elaborado o texto constitucional são dispositivos protetivos do indivíduo contra o

    Estado e dispositivos voltados a atribuir poderes e mecanismos ao Estado para

    modificar a realidade.

    Diante de um cenário de complexidades, de diversas possibilidades de

    decisão e de um texto constitucional híbrido, que adotou duas ideologias

    supostamente opostas, carregado de dispositivos e princípios que parecem

    encerrar uma contradição, cabe ao aplicador (juiz) escolher qual o sentido a ser

    construído a partir do direito positivo, e dar um comando no caso concreto. A

    Dogmática Jurídica deve ser instrumento para auxiliar o julgador a conciliar os

    36 Planejamento tributário.

  • 27

    diversos vetores (enunciados) e solucionar o caso concreto, dando fim ao litígio,

    estabilizando as relações intersubjetivas.

    1.3.1 Norma jurídica

    Conforme observamos no item precedente, a linguagem por meio da qual

    se manifesta o Direito é uma linguagem não formalizada, razão pela qual os

    enunciados prescritivos não têm um único sentido. Firmada esta primeira

    premissa, imprescindível analisar, ainda que de forma não exauriente, a teoria da

    norma jurídica, para concluir-se a respeito da estabilização de expectativas por

    meio de decisões judiciais.

    1.3.1.1 Conceito de norma jurídica

    Norma jurídica é a significação extraída dos textos normativos, portanto é

    fruto da produção intelectual (interpretação) do operador do direito, que para

    construí-la terá que atentar para os princípios e as regras superiores.

    A norma é um juízo-hipotético-condicional (dado A deve ser B),

    construída por meio de uma operação lógica de um intérprete.

    Assim, um mesmo veículo introdutor pode conter diversas normas e um

    único dispositivo legal pode não ser completo para instituir uma norma, a qual

    deverá ser construída com a combinação de diversos deles.

    Sob esta visão, pode-se afirmar que a norma é uma proposição, uma vez

    que encerra um dever-ser.

  • 28

    Outros juristas concebem a norma como uma prescrição, na qual existe

    uma vontade impositiva. Por fim, como bem destaca Tércio Sampaio Ferraz Jr.,37

    outros juristas entendem norma como fenômeno de comunicação.

    Na conceituação do Professor Robson Maia Lins, “norma jurídica, tomada

    na sua acepção sintática, é uma estrutura bimembre constituída de um

    antecedente e um consequente, capaz, minimamente, de regular condutas”.38 E

    continua: “um conjunto de enunciados prescritivos, desde que hábil a modalizar

    deonticamente uma conduta naquela estrutura hipotético-condicional, compõe o

    que chamamos de norma jurídica em sentido estrito”.39

    Para o Professor Paulo de Barros Carvalho, a norma é o juízo

    implicacional construído pelo intérprete a partir dos suportes comunicacionais,

    composta de um complexo de “significações enunciativas [...] unificadas de

    forma lógica”;40 são “entidades mínimas [...] de manifestação do deôntico, com

    sentido completo”.41

    1.3.1.2 Texto legal, enunciados prescritivos e norma jurídica

    Conforme destacamos acima, a norma jurídica não se confunde com o

    texto legal nem com os enunciados prescritivos.

    O Professor Paulo de Barros Carvalho leciona que toda linguagem é

    formada por um conjunto de signos, e se compõe de um suporte físico (texto),

    uma dimensão ideal que se forma na mente do utente da linguagem (significação)

    e uma dimensão dos objetos referidos pelo signo (significado).

    37 Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 38 Robson Maia Lins, Controle de constitucionalidade da norma tributária, p. 51. 39 Idem. Ibidem. 40 Paulo de Barros Carvalho, O preâmbulo e a prescritividade constitutiva dos textos jurídicos. No prelo. 41 Idem, ibidem.

  • 29

    A decodificação do sistema de signos tem como ponto de partida o texto,

    que pode ser concebido em uma (i) acepção estrita (stricto sensu), em que o texto

    é caracterizado apenas como suporte físico, e (ii) em uma acepção ampla, o texto

    leva em consideração o contexto.

    Assim, o texto pode ser analisado sob um ponto de vista interno, tendo

    como foco a sua estrutura, e sob o ponto de vista externo, que leva em

    consideração a circunstância histórica e sociológica em que foi produzido.

    Os enunciados prescritivos do direito posto não são suficientes para que se

    extraiam o conteúdo, o alcance e o sentido dos comandos jurídicos.

    Aquele que pretende conhecer o direito precisa analisar as formulações

    literais (texto), alcançando o plano das significações dos enunciados e das

    normas, a partir da construção de sua estrutura de implicação, dentro de um

    sistema hierarquizado e coordenado.

    O suporte físico é o próprio texto legal, ou seja, são os signos linguísticos

    emanados pela autoridade competente e dispostos em um determinado lugar.

    Esse suporte físico está relacionado a algo que existe no mundo físico, que é o

    seu significado. O significado, por sua vez, provoca no sujeito uma ideia, que é

    chamada de significação.

    Texto legal, portanto, é apenas a disposição de signos em um papel. Como

    bem destaca Gabriel Ivo,

    [...] norma jurídica não se confunde com textos normativos.

    Estes são apenas suportes físicos. Antes do contato do

    sujeito cognoscente não temos normas jurídicas, e sim

    meros enunciados liguísticos esparramados pelo papel.

    Enunciados postados em silêncio. Em estado de dicionário.

    Aguardando que alguém lhes dê sentido. E enunciados,

  • 30

    conforme a observação de Lênio Streck, plurívocos, pois

    não há uma correspondência biunívoca entre a disposição

    normativa (texto) e a norma jurídica (significação)”.42

    O enunciado prescritivo, por seu turno, não é fruto de uma construção do

    intérprete. Ele tem sentido, visto que decorre dos signos constantes do texto de

    lei, mas não possuem significação deôntica. Ou seja, o enunciado ainda não é

    capaz de modalizar o comportamento humano, sendo este um atributo da norma

    jurídica, decorrente do juízo mental realizado pelo intérprete.

    Isto posto, podemos definir (i) o texto de lei como signos dispostos de

    forma ordenada sintaticamente, também chamado de suporte físico, (ii) o

    enunciado, por seu turno, como uma espécie de “frase solta”,43 com pleno sentido

    (significado), e (iii) a norma jurídica como o resultado da conjugação dos

    enunciados.

    O objeto de estudo da Ciência do Direito é o plexo de normas jurídicas,

    que, por sua vez, são construídas a partir dos enunciados prescritivos, extraídos

    dos textos legais.

    A linguagem prescritiva de condutas, que caracteriza o direito positivo,

    está voltada à emissão de ordens ou de condução do comportamento. Essa

    linguagem se modaliza em uma lógica do dever-ser, aplicando-se a todas as

    condutas possíveis, atribuindo-lhe o modal de permitida, proibida ou obrigatória.

    O seu suporte físico são os próprios textos legais.

    42 Gabriel Ivo, A incidência da norma jurídica: o cerco da linguagem, p. 191. 43 Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 4. ed., p. 63.

  • 31

    Sustentando a prescritividade do preâmbulo da Constituição Federal, o

    professor Paulo de Barros Carvalho44 destaca que a linguagem do direito, ainda

    que esteja manifestada de outra forma, está sempre voltada para a regulação da

    conduta intersubjetiva. Portanto, é irrelevante que a linguagem esteja manifestada

    de forma descritiva, visto que a função das normas jurídicas é prescritiva de

    condutas.

    Na construção da norma jurídica, o intérprete deve congregar os

    enunciados, considerando-os na forma apresentada, convertendo-os,

    posteriormente, em mensagens deônticas. Desse modo, o primeiro contato

    (pesquisa) requer apenas a compreensão isolada dos enunciados.

    Estabelecidas as premissas, o autor45 sustenta que o preâmbulo da

    Constituição é composto de proposições introdutórias que têm caráter prescritivo,

    a despeito do entendimento já manifestado pela Corte Suprema. O preâmbulo

    tem forte carga axiológica, devendo ser observado e “repercutir com intensidade

    controlada em todas as normas do ordenamento”, configurando-se como o

    “contexto” da construção da norma.

    Assim, refuta o argumento de que o preâmbulo é “meramente retórico”,

    destacando que o aspecto pragmático é indissociável de qualquer linguagem, que

    exige timbre retórico, cujo significado não pode se limitar a expediente

    persuasivo. A lógica da linguagem persuasiva é a lógica da argumentação (da

    interpretação ou lógica dialógica). Esta é a lógica a que se submete o processo de

    decisão judicial ou administrativo (não é a lógica apofântica (verdadeiro/falso)

    nem deôntica (válida/inválida), tampouco das perguntas (pertinentes/

    impertinentes).

    44 Idem, ibidem, p. 63. 45 Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 4. ed., p. 63.

  • 32

    O professor sustenta que preâmbulo, ementa e exposição de motivos

    desempenham o mesmo papel de enunciação enunciada. O preâmbulo reflete o

    momento histórico, fixando “coordenadas relevantíssimas para a interpretação do

    Texto Constitucional”. Destaca a correlação do preâmbulo com o tema das

    fontes, ressaltando que, depois de enunciado, ele passa a integrar o conjunto de

    normas válidas, caracterizando-se como fonte do direito posto.

    Por fim, conclui que o preâmbulo é prescrição sobre prescrição; é um

    preceito de sobrenível que tem como finalidade resumir de forma imperativa os

    dispositivos que compõem o Texto Constitucional.

    Com isso, podemos concluir que a norma jurídica é construída pelo

    intérprete a partir de todos os enunciados de direito positivo, aí incluídos aqueles

    que aparentam não ter conteúdo prescritivo, como o preâmbulo. Conforme

    veremos em tópico a seguir, a construção de sentido da norma jurídica, do

    comando normativo, pelo aplicador do Direito terá que observar dispositivos

    explícitos e implícitos, como se dá em relação a alguns princípios.

    1.3.1.3 Classificação

    Fixada a ideia de que a norma jurídica é construída pelo intérprete a

    partir dos enunciados prescritivos, reforça-se a conclusão de que é possível a

    atribuição de sentidos diversos ao texto legal, especialmente no ato de aplicação

    do direito.

    Para a conclusão do presente trabalho, em que será analisado um

    princípio expresso no texto constitucional, indispensável se faz a classificação

    das normas quanto a dois critérios: (i) a quem se destina a norma jurídica,

    agrupando-as em normas gerais e normas individuais; e (ii) quanto ao efeito

    imediato, se destinado diretamente à regulação do comportamento ou, ao

  • 33

    contrário, se voltada imediatamente para regular a edição ou revisão de outras

    normas.

    A verificação do destinatário da norma jurídica tem consequência no

    presente estudo, tendo em vista que, conforme veremos adiante, as normas

    individuais, em determinadas circunstâncias, podem produzir efeitos gerais. Na

    conjuntura atual, marcada pela generalização de decisões adotadas pelo Poder

    Judiciário em processos individuais,46 certas normas individuais acabam por

    generalizar expectativas. O preenchimento do conteúdo da norma jurídica, por

    meio do processo de concretização, na edição de uma norma individual, pode

    ensejar a definição do sentido e do alcance geral da norma.

    A classificação das normas em gerais e individuais, como bem destaca

    Norberto Bobbio, interessa à Teoria Geral do Direito, por utilizar um critério que

    ele denominou de critério formal, “que se relaciona exclusivamente à estrutura

    lógica das proposições prescritivas”.47

    O jurista italiano, com fundamento nos ensinamentos de lógica, destaca

    que as proposições prescritivas e, como tal, a norma jurídica são compostas pelo

    sujeito (“a quem a norma se dirige”)48 e pelo objeto da prescrição (“a ação

    prescrita”).49 Assim, conclui que são quatro as hipóteses: (i) prescrições com

    destinatário universal; (ii) prescrições com destinatário singular; (iii) prescrições

    com ação universal; e (iv) prescrições com ação singular. Com efeito, são quatro

    as espécies de normas jurídicas: (i) normas gerais e abstratas; (ii) normas gerais e

    concretas; (iii) normas individuais e abstratas; e (iv) normas individuais e

    concretas.

    Bobbio critica a “velha doutrina” da generalidade e abstração das normas

    46 Nesse sentido, podemos destacar os ritos dos processos repetitivos, a repercussão geral e as súmulas vinculantes. 47 Norberto Bobbio, Teoria da norma jurídica, p. 178. 48 Idem, ibidem, p. 178. 49 Idem, p. 178.

  • 34

    jurídicas, que é imprecisa “porque não esclarece com frequência se os dois

    termos, ‘geral’ e ‘abstrato’, são usados como sinônimos (‘as normas gerais são

    gerais ou abstratas’), ou então, como tendo significados diferentes (‘as normas

    gerais são gerais e abstratas’)”.50 Por isso, propõe chamar de “gerais” as normas

    que têm destinatário universal, à qual se contrapõem as normas “individuais”,

    também denominadas de comandos, e de “abstratas” as normas universais quanto

    à ação, em contraposição às normas concretas, também designadas de “ordens”.

    Paulo de Barros Carvalho51 destaca característica distintiva importante

    entre a norma geral e a norma individual, ainda no âmbito da análise da estrutura

    da norma jurídica. Salienta o ilustre professor que as normas gerais têm no seu

    suposto um fato futuro, que ele denomina de hipótese, enquanto na norma

    individual o suposto é um fato passado, intitulado por ele de antecedente.

    Importa ressaltar, ainda, uma observação do professor italiano, que terá

    grande repercussão na análise do presente trabalho: para que se atenda aos

    princípios da igualdade e da certeza, as normas devem ser gerais e abstratas.

    A generalidade da norma quanto ao sujeito destinatário inibe a concessão

    de privilégios, que são veiculados por meio de normas individuais, e não de

    normas gerais. Assim, a norma geral é mais apropriada para a realização da

    igualdade, princípio basilar do Estado Democrático de Direito.

    A abstração da norma, por seu turno, permite a determinação dos efeitos

    e consequências atribuídos pelo ordenamento àquele específico comportamento.

    Como destaca Bobbio,

    [...] esta exigência [segurança] é maximamente satisfeita

    quando o legislador não abandona a regulamentação dos

    comportamentos ao arbítrio do juiz, caso a caso, mas

    50 Norberto Bobbio, Teoria da norma jurídica, p. 180. Destaques no original. 51 Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 4. ed., p. 37.

  • 35

    estabelece com uma norma a regulamentação da ação-tipo,

    de modo que ali adentrem todas as ações concretas inclusas

    naquele tipo. Assim como a generalidade da norma é

    garantia da igualdade, a abstração é garantia da certeza.52

    Portanto, a segurança e a igualdade estão relacionadas à abstração e à

    generalidade da norma jurídica. No entanto, conforme vimos no item supra, a

    linguagem em que se manifesta a norma jurídica sempre implicará certa

    indeterminação do conteúdo da prescrição, ainda que se trate de comando

    abstrato. A norma geral e abstrata, editada pelo legislador, não é capaz de

    determinar qual o sentido em que será aplicada em cada caso concreto. Esta a

    razão de buscarmos alcançar a segurança (objetivo do Direito e princípio

    constitucional aplicável ao Direito Tributário) por outros meios que não a

    literalidade da norma geral e abstrata.

    Além da classificação das normas quanto à generalidade e abstração,

    destacamos como pertinente ao tema a classificação das normas jurídicas em

    normas de estrutura e normas de comportamento.

    As normas de estrutura são aquelas que não são voltadas diretamente para

    a regulação da conduta intersubjetiva como um todo, mas apenas à conduta

    daqueles que criam normas. Portanto, a norma de estrutura é aquela que regula a

    enunciação, ou a forma de criação das normas, tanto no aspecto de competência

    quanto do procedimento.

    Pode-se afirmar que as regras de estrutura são aquelas voltadas para os

    sujeitos que têm legitimidade para realizar a enunciação.

    Normas de conduta, por sua vez, são aquelas voltadas diretamente para a

    regulação da conduta intersubjetiva.

    52 Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 4. ed., p. 182-183.

  • 36

    A doutrina adota essa distinção advertindo para o fato de que toda norma

    jurídica está voltada para o comportamento, mas identifica que parte das normas

    está direcionada diretamente para o comportamento de criação ou revisão das

    normas jurídicas no sistema. Assim, as normas de estrutura não deixam de estar

    voltadas para um comportamento.

    O Professor Robson Maia Lins53 destaca que as normas de estrutura se

    dividem em duas classes: normas de estrutura voltadas para a produção

    normativa e normas de estrutura voltadas para a revisão sistêmica. Adverte que

    tanto a produção normativa quanto a revisão sistêmica são procedidas por meio

    da aplicação de normas.

    Tendo em conta que analisaremos um denominado “princípio” expresso

    na Constituição Federal, a irretroatividade, mostra-se relevante a distinção entre

    normas de estrutura e normas de comportamento para concluirmos que os

    princípios são normas de estrutura, voltados para a regulação tanto da produção

    normativa quanto da revisão sistêmica.

    1.3.1.4 Extensão e compreensão

    A norma geral e abstrata, cujo exemplo mais adequado é a lei em sentido

    estrito, tem grande abrangência de aplicação, podendo englobar um número

    indeterminado de sujeitos e de objetos. Na medida em que as normas vão se

    concretizando, por meio do escalonamento da incidência, vão sendo atribuídos

    sentidos ao texto legal, e a norma abrangente (geral e abstrata) vai se tornando

    específica (individual e concreta), por meio do processo de subsunção ou de

    incidência.

    Como bem destaca o Professor Paulo de Barros Carvalho,54 a incidência

    53 Robson Maia Lins, Controle de constitucionalidade da norma tributária, p. 58. 54 Direito tributário, linguagem e método, p. 152.

  • 37

    é uma operação lógica realizada pelo intérprete que parte de conceitos

    conotativos (norma geral e abstrata) para conceitos denotativos (norma individual

    e concreta), aplicando àquele fato ocorrido efetivamente a consequência prevista

    hipoteticamente.

    Uma lei, por ser norma geral e abstrata, tem uma extensão máxima

    (aplicação a todos), mas uma compreensão mínima (definição do sentido do

    comando). À medida que descemos a pirâmide hierárquica das normas, reduz-se

    a abrangência de sua aplicação (extensão) e aumenta-se a definição do comando

    (compreensão). Assim, em um dos extremos da escala encontra-se a lei, com

    extensão máxima e compreensão mínima; na outra extremidade da escala,

    encontra-se a sentença, aplicável apenas entre as partes (extensão mínima) e com

    comando plenamente determinado (compreensão máxima).55

    Como destacamos anteriormente, com base nos ensinamentos de

    Bobbio,56 para assegurar um dos princípios basilares do Estado Democrático de

    Direito, consubstanciado nos princípios da igualdade e da segurança, devem

    prevalecer normas gerais e abstratas e evitar atribuir ao juiz o poder de definir

    caso a caso qual o sentido da lei.

    Vimos que a norma jurídica se manifesta por meio de linguagem não

    formalizada e está sujeita à imprecisão dos vocábulos, pelo que sempre caberá ao

    intérprete e ao aplicador atribuir o sentido aos dispositivos legais.

    Não é possível assegurar a aplicação igualitária dos comandos em cada

    caso, partindo-se apenas das normas gerais (leis), posto que a aplicação da norma

    ao fato se dá por meio de um processo de escalonamento da incidência. Assim, é

    necessário estabelecer mecanismos que deem segurança aos indivíduos quanto ao

    sentido da norma jurídica. Nos casos em que ocorra modificação no sentido da

    55 Neste sentido, v. Misabel Derzi, Modificações da jurisprudência no direito tributário, p. 50. 56 Norberto Bobbio, Teoria da norma jurídica.

  • 38

    norma jurídica (alteração de jurisprudência sedimentada), o aplicador deve

    buscar preservar todos os princípios constitucionais expressos ou implícitos.

    1.3.1.5 Princípios jurídicos

    A análise do tema requer uma breve reflexão de alguns conceitos para que

    se determine o sentido em que serão abordados no presente trabalho, o que é

    fundamental para que as conclusões alcançadas guardem lógica com seus

    pressupostos.

    Portanto, cabe precipuamente o destaque do sistema de referências sob o

    qual irá se firmar o presente trabalho, tornando-se indispensável a abordagem do

    tema, ainda que breve, no campo da Teoria Geral do Direito.

    Tendo em vista que o tema a ser tratado é decorrente de um princípio que

    compõe o sistema tributário brasileiro, indispensável se torna a determinação do

    significado do vocábulo princípio, ou, pelo menos, como será considerado ao

    longo deste trabalho.

    O vocábulo princípio quer dizer “início”, “origem”, começo. Este

    vocábulo é plurissignificativo, pelo que se faz necessário fixar qual o seu

    significado, alcance e sentido. No âmbito do discurso descritivo da Ciência do

    Direito deve-se buscar espancar as imprecisões da linguagem técnica do direito

    positivo, pelo que se mostra necessário estabelecer qual o seu significado para o

    discurso científico.

    A análise do tema será feita a partir do direito posto, verificando os

    enunciados constitucionais e infraconstitucionais que integram o ordenamento

    jurídico vigente.

  • 39

    A primeira questão a ser enfrentada é se os princípios são normas

    jurídicas, e, assim, se são de observância obrigatória (coercitividade).

    Vale ressaltar que os princípios jurídicos não se enquadram no conceito de

    norma jurídica como “significação organizada em uma estrutura lógica

    hipotético-condicional (juízo implicacional), construída pelo intérprete a partir do

    direito positivo, seu suporte físico, e dotada de bilateralidade e coercitividade”,

    no conceito bem lançado de Maria Rita Ferragut,57 visto que eles são enunciados

    que concorrem para a construção mental da norma jurídica.

    Princípios são enunciados prescritivos que devem ser observados de forma

    obrigatória.

    Os princípios constitucionais são normas jurídicas fundantes, que servem

    de marco inicial da hermenêutica jurídica, haja vista que são enunciados que se

    encontram no topo do ordenamento jurídico. São imperativos e devem ser

    respeitados sempre que se pretenda aplicar uma norma que componha o

    ordenamento jurídico.

    Com base nos ensinamentos de Eduardo Couture, Roque Antônio

    Carrazza58 definiu princípio da seguinte forma:

    Princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou

    explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição

    de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por

    isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento

    e a aplicação das normas jurídicas que com ele se

    conectam.

    57 Maria Rita Ferragut, Presunções no direito tributário, p. 19. 58 Roque Antonio Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p. 39.

  • 40

    Celso Antônio Bandeira de Mello, citado por Roque Antônio Carrazza,

    ensina que

    Princípio [...] é, por definição, mandamento nuclear de um

    sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental

    que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o

    espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão

    e inteligência, exatamente por definir a lógica e a

    racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a

    tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos

    princípios que preside a intelecção das diferentes partes

    componentes do todo unitário que há por nome sistema

    jurídico positivo.59

    Não se podem deixar de destacar aqui as lições de Paulo de Barros

    Carvalho, que traz novos elementos para a conceituação, ressaltando que

    [...] os princípios aparecem como linhas diretivas que

    iluminam a compreensão de setores normativos,

    imprimindo-lhes caráter de unidade relativa e servindo de

    fator de agregação num dado feixe de normas. Exercem

    eles uma reação centrípeta, atraindo em torno de si regras

    jurídicas que caem sob seu raio de influência e manifestam

    a força de sua presença. Algumas vezes constam de

    preceito expresso, logrando o legislador constitucional

    enunciá-los com clareza e determinação. Noutras, porém,

    ficam subjacentes à dicção do produto legislado, suscitando

    um esforço de feitio indutivo para recebê-los e isolá-los.

    São os princípios implícitos. Entre eles e os expressos não

    se pode falar em supremacia, a não ser pelo conteúdo

    intrínseco que representam para a ideologia do intérprete,

    59 Idem, ibidem, p. 39.

  • 41

    momento em que surge a oportunidade de cogitar-se de

    princípios e de sobreprincípios.60

    Assim, pode-se concluir que (i) os princípios são normas, e, como tal, têm

    caráter imperativo, não se limitando a indicar, mas a determinar, o sentido da

    interpretação normativa; (ii) considerando-se a existência de hierarquia entre as

    normas, ainda que situadas em um mesmo patamar hierárquico, por exemplo, a

    Constituição, podemos afirmar que existem sobreprincípios; (iii) a hierarquia

    entre os princípios situados no mesmo patamar hierárquico será determinada pelo

    seu grau de generalidade; (iv) princípios são normas jurídicas indispensáveis ao

    funcionamento de um sistema jurídico, servindo-lhe como alicerce; (v) os

    princípios podem ser implícitos ou explícitos; e (vi) princípio é uma norma muito

    arraigada de valores, conferindo lógica, racionalidade e harmonia ao sistema.

    Vale ressaltar, dada a sua importância, que os princípios podem revelar

    tanto um caráter de norma quanto de valor, ou de limite objetivo, que informa o

    trabalho tanto do intérprete quanto do legislador. Assim, conforme ensina Paulo

    de Barros, os princípios podem ser vistos sob quatro acepções:

    a) como norma jurídica de posição privilegiada e

    prestadora de valor expressivo; b) como norma jurídica de

    posição privilegiada que estipula limites objetivos; c) como

    os valores insertos em regras jurídicas de posição

    privilegiada, mas considerados independentemente das

    estruturas normativas; e d) como o limite objetivo

    estipulado em regra de forte hierarquia, tomado, porém,

    sem levar em conta a estrutura da norma. Nos dois

    primeiros, temos “princípio” como “norma”; enquanto os

    dois últimos, “princípio” como “valor” ou como “critério

    objetivo”.61

    60 Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p. 148. 61 Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p. 145.

  • 42

    A principal função dos princípios é dar unidade ao sistema, evitando a

    presença de qualquer tipo de lacuna ou antinomia, que podem ser identificadas de

    forma aparente.

    Os princípios devem ser a fonte primordial do intérprete quando da

    construção das normas jurídicas, orientando a atividade hermenêutica de forma a

    conduzir a criação da regra concreta aplicável à espécie.

    Conforme asseverado anteriormente, convém lembrar, não é somente a

    atividade do intérprete da norma jurídica que terá que atentar para os princípios

    dispostos no ordenamento, mas, principalmente, o legislador infraconstitucional

    terá que atentar para os princípios quando da elaboração de novos enunciados,

    que deverão estar sempre em consonância com os preceitos basilares do

    ordenamento.

    Corroborando o acima afirmado, Miguel Reale leciona que

    [...] princípios gerais de direito são enunciações normativas

    de valor genérico, que condicionam e orientam a

    compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua

    aplicação e integração, quer para a elaboração de novas

    normas. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa

    pura do Direito quanto o de sua atualização prática.62

    Outra função exercida pelos princípios no ordenamento é permitir que

    haja coerência entre as normas jurídicas, haja vista que a aplicação de uma norma

    contida no sistema é a aplicação de todo o sistema, conforme afirmado por

    Kelsen.

    62 Miguel Reale, Fundamentos do direito, p. 204.

  • 43

    Em seu curso Sistema constitucional tributário brasileiro, Geraldo

    Ataliba, citado por Roque Antônio Carrazza, fornece precisa definição para

    sistema, afirmando que

    [...] o caráter orgânico das realidades componentes do

    mundo que nos cerca e o caráter lógico do pensamento

    humano conduzem o homem a abordar as realidades que

    pretende estudar, sob critérios unitários, de alta utilidade

    científica e conveniência pedagógica, em tentativa de

    reconhecimento coerente e harmônico da composição de

    diversos elementos em um todo unitário, integrado numa

    realidade maior. A esta composição de elementos, sob

    perspectiva unitária, se denomina sistema. Sistema, pois, é

    a reunião ordenada de várias partes que formam um todo,

    de tal sorte que eles se sustentam mutuamente e as últimas

    explicam-se pelas primeiras. As que dão razão às outras

    chamam-se princípios, e o sistema é tanto mais perfeito,

    quanto em menor número existam.63

    Lourival Vilanova, em sua festejada obra Estruturas lógicas e o sistema

    no direito positivo, estabelece que “falamos de sistema onde se encontrem

    elementos e relações e uma forma dentro de cujo âmbito, elementos e relações se

    verifiquem”.64

    Assim, tem-se que sistema pressupõe diversidade de partes e inter-relação

    entre elas. Desse modo é que se tornará indispensável a existência de princípios

    que consigam manter as características primordiais do sistema.

    As normas que compõem o ordenamento jurídico estão dispostas de forma

    organizada, sendo que o enunciado inferior tem como fundamento de validade o

    63 Geraldo Ataliba, Sistema constitucional tributário brasileiro, 1. ed., São Paulo: RT, 1966, p. 4, apud Roque Antonio Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p. 37. 64 Lourival Vilanova, Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo, p. 168.

  • 44

    enunciado superior, até atingir a Constituição Federal, que é o fundamento de

    validade de todos eles. É por essa razão, ou seja, a disposição organizada das

    normas com um mesmo fundamento de validade, que se pode afirmar que o

    sistema jurídico é marcado pela unidade e pela coerência. Além disso, o sistema

    jurídico é caracterizado pela plenitude, não permitindo a existência de lacunas,

    sendo indistintamente aplicado a todos, valendo sobre todas as condutas.

    As regras de Direito Tributário formam um subsistema dentro do

    ordenamento jurídico, o “Sistema Tributário Brasileiro”. Esse é o subsistema que

    interessará para o estudo do tema.

    Somente se pode falar em existência de um subsistema quando houver

    princípios próprios a regê-lo. Com efeito, no direito positivo existem princípios

    especialmente aplicados à área tributária.

    Alguns desses princípios65 serão objeto de estudo deste trabalho, sobre os

    quais serão tecidos comentários e reflexões com a finalidade de alcançar a

    melhor interpretação da irretroatividade.

    1.3.2 O Poder Judiciário como Poder e não como mera autoridade

    Partindo do pressuposto anteriormente fixado, de que a norma jurídica é

    construída pelo operador do Direito, tem-se que verificar como se dá a sua

    concretização.

    O primeiro aspecto a ser esclarecido é que a concretização não se limita ao

    texto normativo, tendo como dado de entrada também o caso a ser construído, a

    partir dos fatos, que representam uma das dimensões do caso.

    65 Em tópico adiante analisaremos criticamente o conceito de princípio, para concluirmos quais os critérios para enquadramento de uma determinada norma na classe dos princípios. Conforme sustentaremos em tópico desta dissertação, com base nos ensinamentos de Humberto Ávila, a irretroatividade não se caracteriza como princípio, mas, com outras regras, compõe o princípio da segurança jurídica.

  • 45

    Como bem destaca Friedrich Müller,66 cuja teoria será melhor analisada

    em tópico infra, a concretização vai além de mera aplicação ou de uma simples

    subsunção do fato à norma (ou vice-versa, visto que se trata de uma operação

    lógica). Para o referido filósofo alemão, enquanto não há concretização não há

    sequer norma jurídica, sendo indispensável a sua aplicação nos casos concretos

    para que ela seja efetivamente construída.

    O Professor Paulo de Barros Carvalho67 leciona que

    [...] as normas gerais e abstratas, principalmente as contidas

    na Lei Fundamental, exercem um papel relevantíssimo,

    pois são o fundamento de validade de todas as demais

    indicam os rumos e os caminhos que as regras inferiores

    haverão de seguir. Porém, é nas normas individuais e

    concretas que o direito se efetiva, se concretiza, se mostra

    como realidade normada, produto final do intenso e penoso

    trabalho de positivação. É o preciso instante em que a

    linguagem do direito toca o tecido social, ferindo a

    possibilidade da conduta intersubjetiva.

    .

    A função primária do direito é resolver conflitos intersubjetivos e permitir

    uma relação ordenada entre os sujeitos. Essa função é exercida por meio da

    concretização da norma, aplicada pelo juiz.

    Para os positivistas legalistas, o juiz é mero dedutor do comando expedido

    pela lei; na sua atividade não haveria qualquer tipo de criação, de valoração ou de

    discricionariedade. O agente responsável por decidir os casos concretos não

    representaria um poder, mas uma mera autoridade. A lei seria, sob essa ingênua

    concepção, a única fonte das decisões judiciais.

    66 Friedrich Müller, Esboço de uma metódica do direito constitucional, p. 50-70. 67 Segurança jurídica e modulação de efeitos.

  • 46

    A concepção tradicional dessa orientação positivista implica sobreposição

    hierárquica do Poder Legislativo sobre os demais poderes. Para aqueles que

    entendem que o juiz é mera autoridade, aplicando ao caso concreto a norma geral

    e abstrata, sem qualquer possibilidade de escolha entre alternativas decisórias, o

    Poder Judiciário não representa um verdadeiro poder, mas um executor dos

    comandos legais preestabelecidos.

    As modernas teorias que serão analisadas em tópico específico,

    capitaneadas por Luhmann e por Müller, ultrapassam a clássica separação de

    poderes e negam a hierarquia e a submissão do juiz à lei, reconhecendo atividade

    criativa no ato jurisdicional.68 Isso decorre especialmente da constatação de que,

    mesmo sem modificação do texto legal, a orientação jurisprudencial pode se

    alterar.

    Como bem destaca Misabel Derzi,

    [...] a escolha de uma das alternativas de interpretação, a

    solução de conflitos entre normas e a integração – se

    compatíveis com os enunciados linguísticos postos pelo

    legislador – não configuram nenhum excesso no exercício

    das funções judicantes. São a própria natureza do Poder

    Judiciário que é, de fato, um Poder e não uma singela

    autoridade.69

    Pelo exposto, não resta dúvida de que o Poder Judiciário pode atribuir

    sentidos diversos ao texto legal, construindo normas diferentes ao analisar cada

    caso. Para evitar a insegurança e a incongruência, cabe à Dogmática Jurídica

    orientar quais mecanismos do sistema de direito positivo podem e devem ser

    utilizados para preservação de princípios consagrados no sistema, especialmente

    no âmbito tributário. 68 Humberto Ávila adverte que “importa deixar de lado a opinião de que o Poder Judiciário só exerce a função de legislador negativo, para compreender que ele concretiza o ordenamento jurídico diante do caso concreto” (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 25-26). 69 Misabel Derzi, Modificações da jurisprudência no direito tributário, p. 49.

  • 47

    CAPÍTULO 2 – JURISPRUDÊNCIA E AS EXPECTATIVAS

    NORMATIVAS

    2.1 Fontes do direito

    O tema em apreço e as premissas até então firmadas impõem a

    explicitação da concepção dada às decisões judiciais, que constroem a norma

    jurídica ao lhe atribuírem o conteúdo, alcance e sentido. Tais decisões podem ser

    consideradas como fonte do direito?

    O estudo das chamadas fontes do direito sempre foi relegado a segundo

    plano pela doutrina. Como bem ressalta o Professor Tárek Moysés Moussallem,70

    destacando os ensinamentos de Alfredo Augusto Becker, os juristas reduziram o

    estudo das fontes à lei, ao costume, à doutrina e à jurisprudência, criando

    distinções “inúteis” em fontes primárias e fontes secundárias e fonte formal e

    material.

    Com fundamento na doutrina do Professor Paulo de Barros Carvalho,

    Tárek Moussallem sustenta, em aprofundada obra, que é necessário distinguir os

    planos do direito positivo e da Ciência do Direito, distinção esta fundamental

    para evitar a confusão na acepção do termo fontes do direito. Destaca que Kelsen

    emprega a locução fontes no sentido de fundamento de validade, pelo que a

    norma superior é a fonte da norma inferior e a Constituição é a fonte primordial

    do ordenamento jurídico. Ressalta, ainda, que Lourival Vilanova concebe fonte

    como o modo de produção normativo estabelecido pelo próprio ordenamento

    (autopoiese).

    70 Fontes do direito tributário.