Darwin e o Cantos dos Canários Cegos

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Murilo Dias César

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H.M.S. BEAGLE – navio em que Darwin fez sua famosa viagem de pesquisa pelo mundo.

Rota da célebre viagem de pesquisa científica de Charles Darwin, na fragata Beagle (1831 a 1836)

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DARWIN NO BRASIL (1832)

"Dou graças a Deus e espero nunca mais visitar um país de escravos."

CHARLES DARWIN

DADOS BIOGRÁFICOS

Charles Darwin nasceu em Shrewshury, Inglaterra, em 1809, e faleceu em 1882, em Down, condado de Kent. Foi filho de uma família rica, tradicional e culta. Seu pai, Robert Darwin, era médico e seu avô, Erasmus Darwin, foi o primeiro médico a utilizar oxigênio no tratamento de doenças pulmonares.

Em sua juventude, Darwin foi uma espécie de Indiana Jones, tendo viajado durante cinco anos pelo mundo como naturalista, a bordo da fragata Beagle, numa célebre expedição científica. Nos Andes, a mais de 2000 metros de altitude, Darwin descobriu fósseis de animais pré-históricos que se assemelhavam a espécies atuais. Nas Ilhas Galápagos, estudou diversas espécies de plantas, os hábitos das grandes tartarugas terrestres e de pássaros exóticos.

De volta à Inglaterra, Darwin se casou com sua prima Emma Wedgwood Darwin, tendo sido muito feliz em seu casamento. Apesar de ser uma mulher religiosa, Emma deu uma colaboração tão importante a seu marido,

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principalmente intelectual, que é bem provável que, sem essa colaboração, Darwin dificilmente teria escrito e muito menos divulgado sua obra-prima A Origem das Espécies. Emma tinha grande talento para a linguagem escrita, para a música (era pianista), para os esportes (praticava arco e flecha, e o que hoje chamamos “trekking”), para línguas (dominava o espanhol, o italiano, o francês

e o alemão) e até para os negócios (era quem cuidava da fortuna e dos investimentos financeiros da família). Foi uma mulher decidida, corajosa e de forte personalidade e, em muitos aspectos, esteve à frente das mulheres e homens de sua época, inclusive de seu célebre marido.

Como Charles Darwin, Emma Wedgwood Darwin provinha de uma família abastada: os Wedgwoods detinham o monopólio da cerâmica numa das regiões do país. Uniram-se então duas fortunas, o que foi muito proveitoso para a ciência, já que Darwin jamais precisou ganhar a vida para sustentar sua numerosa família (o casal Darwin teve onze filhos) em um emprego

que exigisse dele 12 a 14 horas por dia, tempo que empregou muito melhor trabalhando em seu estúdio, em sua própria casa senhorial, em Down, condado de Kent, um autêntico “solar nobiliárquico, como se dizia então. Nesse solar, que hoje é um famoso museu visitado por milhares de pessoas do mundo todo, Darwin escreveu suas principais obras, inclusive a célebre Teoria da Evolução, em que defende a tese de que a seleção natural e a variação das espécies ocorrem por acaso e que a sobrevivência de qualquer organismo é resultante de sua habilidade em se adaptar ao meio ambiente e enfrentar predadores. Em 1859, publicou “A Origem das Espécies”, livro que é unanimemente considerado um grande e decisivo marco na história da Ciência.

Muitas pessoas julgam que a Teoria da Evolução entra em conflito com suas convicções religiosas. Darwin jamais se considerou um “ateu” e sim um livre-pensador. Nas páginas finais de “A Origem das Espécies”, afirma textualmente: “Não vejo nenhum motivo para que as idéias expostas em minha obra se choquem com as convicções religiosas de quem quer que seja.”

A VIAGEM DO BEAGLE (1831 a 1836)

27 de dezembro de 1831: o Beagle sai do porto de Devonport, Inglaterra, com o objetivo de estudar a geologia de diversas regiões e estabelecer medições de correntes marítimas ao redor do mundo.

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6 de Janeiro: chegada a Tenerife. Toda a tripulação do Beagle é impedida de desembarcar pelas autoridades locais, com receio de que tenha contraído cólera.

16 de Janeiro de 1832: o Beagle chega a Porto Praia, em São Tiago, ilha principal do arquipélago de Cabo Verde.

16 de Fevereiro: avistam a uma pequena distância os rochedos de São Paulo ao atravessarem o Atlântico.

CHEGADA AO BRASIL

FERNANDO DE NORONHA - 20 de Fevereiro de 1832

Darwin permaneceu no arquipélago por poucas horas, observando sua constituição vulcânica. Estudou os rochedos da ilha e co nclui que ela teria sido propelida bruscamente para cima num estado semi-fluído. BAHIA – Salvador - 29 Fevereiro de 1832.

Ao lado, Salvador em gravura do capitão Robert FitzRoy, comandante do Beagle. A cidade, suas praias e seus monumentos históricos encantaram Darwin. Para o grande cientista inglês, a beleza do enorme, elegante e

imponente casario grande, situado no alto de um morro, só perdia em exuberância para a floresta tropical brasileira. Em 18 de março, Charles Darwin coletou Trichadesmium erythracum, certo tipo de alga encontrada também

nas grandes áreas do Mar Vermelho, que produzia uma colocação vermelha pardacenta sobre a água.

RIO DE JANEIRO - 4 de abril a 5 de julho de 1832.

Darwin aceita o convite para se hospedar em uma fazenda de um amigo em Cabo Frio.

8 de abril: Praia Grande (Niterói) e Baía de Guanabara. Observou a mata, clima quente, relevo, etc.

9 de abril: Passou por planície arenosa e estreita admirando aves e plantas, em especial as orquídeas. Abandonou a costa e penetrou na floresta, observando árvores altas e de troncos claros, comparando-as com as existentes na Inglaterra.

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14 de abril: Rio Macaé. Observou a riqueza dos solos. Adentrou na mata logo após uma forte chuva, observando que a evaporação da água pela floresta formava densa neblina. Supôs que era devido à grande superfície de folhagens aquecida pelos raios solares.

18 de abril: Coletou insetos na mata. Observou que as árvores eram altas e de pequeno diâmetro.

19 de abril: comparou colibris com mariposa-esfinge, achando hábitos e movimentos semelhantes. Elogiou o Brasil pela fertilidade de um clima que possibilitava grande diversidade de espécies. O que mais lhe despertou a atenção foram os invertebrados. Durante toda sua permanência no Brasil, Darwin estudou as borboletas, em particular uma espécie que produzia, ao se locomover através das patas, um som estranho, muito semelhante ao de chocalho.

5 de julho de 1832: o Beagle sai do Brasil rumo a Montevidéu, Uruguai.

12 de agosto de 1836: passados quatro anos dando a volta pelo mundo, quando já voltavam com destino à ilha de Cabo Verde, ventos contrários trouxeram o Beagle de volta ao Brasil (Recife).

19 de agosto: o Beagle deixa novamente o Brasil . Darwin registra em seu diário: "Dou graças a Deus e espero nunca mais visitar um país de escravos."

2 de outubro de 1836: o Beagle ancora em Falmouth, Inglaterra, terminando assim a sua célebre viagem de pesquisa de quase cinco anos em volta ao mundo.

Down House, em Down, Inglaterra, solar em que Darwin passou a maior parte de sua vida

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DARWIN e O Canto dos Canários Cegos

PERSONAGENS

• ATRIZ - Emma Darwin, esposa de Charles Darwin

• ATOR I - Charles Darwin, cientista inglês

• ATOR II - Promotor / Orador / Alfred Russel Wallace, Thomas Bell, presidente da Sociedade Linneana de Londres

• ATOR III - Cap. Robert FitzRoy, comandante do Beagle.

CENÁRIOS: Diversos e divididos em planos, de acordo com as necessidades da ação.

ÉPOCAS: 1832 e 1858

LOCAIS: Inglaterra e Brasil.

NOTAS:

1. Como está não é uma peça realista, pelo menos no sentido absoluto do termo, a critério da direção, o papel de Charles Darwin poderá ser representado por um ou dois atores: o Charles Darwin jovem, que fez a viagem de pesquisa pelo mundo, e o Charles Darwin da maturidade, quando descobre ou cria a célebre Teoria da Evolução das Espécies. Se a direção optar pela escolha de “dois Darwins”, o autor sugere – apenas sugere - que o jovem Darwin tenha relativa semelhança com o Darwin maduro, a fim de manter a ilusão cênica.

2. O número dos atores é mencionado a título de sugestão. Fica a critério da direção, ampliar o elenco, colocando um ator para cada papel, utilizar ou não figurantes, etc.

3. Os cenários são simples. Jogos de luzes, projeções, som, música, etc. poderão contribuir para “criar” os diversos ambientes indicados no texto.

4. O texto foi digitado de forma a facilitar ao máximo sua leitura: padrão de letra Times New Roman, n. 14, separação entre as falas dos personagens, etc., o que pode dar a impressão de que a peça seja longa. Na realidade, DARWIN e o Canto… tem a duração de uma peça normal de teatro.

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ATO I

BLACKOUT. GORJEIO SOLO DE UM CANÁRIO QUE, LENTAMENTE, VAI SENDO SUBSTITUÍDO PELO GORJEIO DE MUITOS CANÁRIOS, ATÉ FORMAR UM “CONCERTO”. LUZ EM FOCO SOBRE O CAPITÃO ROBERT FITZROY, QUE SE DIRIGE DIRETAMENTE AO PÚBLICO.

CAPITÃO FITZROY - As coisas são assim... Sempre foram assim... Sempre serão assim... Paciência…

A LUZ SE APAGA SOBRE O CAP. FITZROY. VOLTA POR SEGUNDOS O CANTO DOS CANÁRIOS. UM “LAMENTO”, MURMURADO E DEPOIS CANTADO EM LÍNGUA AFRICANA SE SOBREPÕE AO CANTO SOLO. O SOM DO “LAMENTO” SE DESAPARECE LENTAMENTE. PAUSA.

JUIZ - (VOZ “OFF”, FORMAL) Nesta data, 15 de junho de 1858, em nome de Sua Augusta Majestade, a Rainha, e de acordo com a lei, este tribunal se reúne na cidade de Londres para apreciar a ação criminal movida pela Coroa contra Charles Robert Darwin, cidadão britânico, radicado em Down, condado de Kent, acusado de cegar canários ou de omissão diante desse grave crime.

LUZES EM FOCO SOBRE DARWIN E O PROMOTOR. CENÁRIO QUASE VAZIO TRANSMITE AO PÚBLICO A VAGA E SOMBRIA IDÉIA DE UM TRIBUNAL BRITÂNICO. O PROMOTOR ESTÁ EM ROUPAS TÍPICAS.

PROMOTOR - (ENÉRGICO) Mr. Charles Robert Darwin, o senhor se considera inocente ou culpado do crime de cegar canários?

OUVE-SE, MUITO BAIXO, O CANTO DE UM CANÁRIO, LOGO ENCOBERTO PELO “LAMENTO”, TAMBÉM EM TOM BAIXO. CHARLES DARWIN, MUITO ABATIDO, ESTÁ SENTANDO NUM BANQUINHO DE RÉU.

CHARLES DARWIN - Inocente.

PROMOTOR - Mr. Charles Robert Darwin, o senhor se considera inocente ou culpado de omissão, diante do crime de cegar canários?

CHARLES DARWIN - (EM DÚVIDA) Eu… Eu não sei…

PROMOTOR - (IRÔNICO) Então talvez o senhor possa nos dizer alguma coisa sobre os canários cegos…

O CANTO DOS CANÁRIOS AUMENTA, PERTURBANDO DARWIN.

CHARLES DARWIN - (MUITO PERTURBADO E CONFUSO) Os canários

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cegos… Os canários cegos…

PROMOTOR - Os canários são cegos de nascença?

CHARLES DARWIN - Não. Eles cegam os canários.

PROMOTOR - Quem é que cega os canários?

CHARLES DARWIN - Eles… eles… eles cegam os canários…

O PROMOTOR REFLETE. SOM DO CANTO DOS CANÁRIOS AUMENTA.

PROMOTOR - O senhor está ouvindo agora o canto dos canários cegos?

CHARLES DARWIN - (NUMA DOLORIDA LEMBRANÇA) Estou… estou ouvindo… (O CANTO DOS CANÁRIOS AUMENTA MUITO, DESESPERANDO-O. MUDANÇA DE LUZ. FOCOS SOBRE DARWIN, O PROMOTOR E UM MARINHEIRO QUE, AMARRADO A UM MASTRO DE NAVIO, ESTÁ SENDO AÇOITADO. DARWIN ENTRA NUMA ESPÉCIE DE ALUCINAÇÃO) O cozinheiro Elias David!… Os canários cegos… Cap. FitzRoy... Brasil… (DELIRA. COMEÇA A SENTIR MUITA DOR. SUA VOZ QUASE NÃO SAI) Aiiii... Aiiii... Emma! Emma!… Titty… Titty!… (A LUZ SOBRE O PROMOTOR SE APAGA.*. DARWIN SENTE FORTES CONTRAÇÕES NO ESTÔMAGO. BALBUCIA) Aaaiii! Aaii! Aiii… Titty, apareça!…Venha, pelo amor de Deus!

* NOTA: O público deverá ser surpreendido ao compreender, somente no final da cena inicial, que essa “sessão de julgamento” representa um delírio ou pesadelo de Darwin.

PENUMBRA. GABINETE DE CHARLES DARWIN. POR SEGUNDOS, AINDA SE OUVE, MUITO BAIXO, O CANTO DOS CANÁRIOS. DARWIN DÁ ALGUNS PASSOS E CAI, DERRUBANDO DIVERSOS OBJETOS E UMA CADEIRA. ARRASTA-SE ATÉ UMA SINETA E TOCA ALGUMAS VEZES. RECOSTA-SE EM SUA MESA DE TRABALHO.

NOTA: A transposição do gabinete de Charles Darwin para o palco fica a cargo da cenografia. Dois objetos, porém, são indispensáveis: um microscópio e um grande e antigo mapa do mundo, apontando a rota de viagem do Beagle.

PAUSA. EMMA DARWIN ENTRA, APRESSADA, E ABRE AS JANELAS, ILUMINANDO O AMBIENTE.

EMMA DARWIN - (SOCORRE-O, NERVOSA) De novo, Charles! De novo!

CHARLES DARWIN - (DELIRA) O Cap. FitzRoy… Os canários cegos… O cozinheiro… Brasil…

EMMA DARWIN - (TOCA-LHE A TESTA) Febre! (ENXUGA-LHE ROSTO, DESAPERTA-LHE O COLARINHO, ABANA-O, ETC.) Calma, querido… Calma…

CHARLES DARWIN - (DESESPERADO) Aaaiii! Não agüento mais… Não agüento… Meu estômago, minha úlcera… Minha cabeça vai explodir!… Meus

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olhos! Como ardem!… Está tudo nublado, não estou enxergando quase nada…

EMMA DARWIN - Onde você colocou suas pílulas de bismuto e morfina?

CHARLES DARWIN - (GEMENDO) O tratamento... O tratamento indígena!

EMMA DARWIN - Charles, a receita do Dr. Gully...

CHARLES DARWIN - (CORTA) O tratamento indígena, Titty! (TIRA A “RECEITA” DO BOLSO E ENTREGA À ESPOSA QUE, DESCRENTE, A LÊ) Depressa! Depressa!

EMMA DARWIN - Como é mesmo que se prepara essa “coisa”?

CHARLES DARWIN - Esqueceu de novo?

EMMA DARWIN - (A SI MESMA, LENDO, COM CONTIDA IRRITAÇÃO) “Duas folhas de laranjeira… dois feijões úmidos… cataplasma preta. Pegue uma tira de…” Pura superstição!

CHARLES DARWIN - Superstição coisa nenhuma!… Por favor, vamos logo… (APONTA) Os ingredientes, na segunda gaveta.

ELA RETIRA OS “INGREDIENTES”, AMARRA DUAS FOLHAS DE LARANJEIRA NA CABEÇA DE DARWIN COM UMA TIRA DE PANO, E OUTRA NA TESTA. EM SEGUIDA, PÕE-LHE UM GRÃO DE FEIJÃO ÚMIDO EM CADA OLHO, AJEITA-LHE A CABEÇA PARA QUE OS GRÃOS NÃO CAIAM E APAGA UMA DAS LUZES, DEIXANDO O GABINETE NA PENUMBRA.

EMMA DARWIN - Agora fique bem quietinho…

CHARLES DARWIN - Falta o limão peruano.

EMMA DARWIN - (APANHA O LIMÃO DE UMA FRUTEIRA) Chupar e mastigar esse limão peruano com casca e tudo… Que coisa horrível!

CHARLES DARWIN - (GEMENDO) Esse tratamento, que aprendi com os índios nos Andes, é muito melhor que os remédios do Dr. Gully.

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Claro!… Não se mexa, senão cai tudo… (BREVE PAUSA) O Dr. Gully disse para você trabalhar quatro horas por dia, no máximo, e você trabalha até se arrebentar!

CHARLES DARWIN - Chega daquele curandeiro!

ELA OBSERVA O MARIDO QUE, AOS POUCOS, SE RECUPERA.

CHARLES DARWIN - Está vendo como o tratamento indígena me faz bem?

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Estou vendo... (BREVE PAUSA) Charles, preciso tocar de novo num assunto com você…

CHARLES DARWIN - (PREOCUPADO) Que assunto, Titty?

EMMA DARWIN - O Cap. FitzRoy, o cozinheiro, os canários cegos, o

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Brasil…

CHARLES DARWIN - (CORTA, IRRITADO) Outra hora… Outra hora!… (O.T.) Por favor, leia um pouco de Heráclito para mim…

EMMA DARWIN - Mas, Charles…

CHARLES DARWIN - Por favor… Heráclito!

EMMA, CONTRARIADA, APANHA O LIVRO DE CIMA DA MESA, ACENDE A LUZ QUE HAVIA APAGADO E LÊ. DARWIN PRESTA MUITA ATENÇÃO, PROCURANDO EXTRAIR ALGO DA LEITURA.

EMMA DARWIN - “Não é possível banhar-se duas vezes nas águas do mesmo rio… porque em todas as coisas há um movimento perpétuo: tudo se dissipa e se recompõe, tudo vai e vem, tudo é e não é, na Natureza tudo se transforma”… (PÁRA DE LER E OBSERVA O MARIDO)

CHARLES DARWIN - (REFLETINDO) “Na Natureza tudo se transforma”… (RETIRA OS INGREDIENTES DO CORPO) Sinto a mão de Heráclito conduzindo as minhas pesquisas…(SENTE-SE MELHOR. RETIRA OS “INGREDIENTES”)

EMMA DARWIN - (FECHA O LIVRO, DECIDIDA) Charles, nas suas crises, você sempre fala de um cozinheiro, dos canários cegos, do Cap. FitzRoy e do Brasil… Tenho certeza que existe relação entre tudo isso…

CHARLES DARWIN - (INCOMODADO) Não existe relação nenhuma.

EMMA DARWIN - Você nunca quis me contar essa história. O que é que tem o Cap. FitzRoy a ver com um cozinheiro, com os canários cegos e com o Brasil?

CHARLES DARWIN - Outra hora, Titty… Outra hora… Por favor…

EMMA DARWIN - (FIRME) Agora! (ELE, CONSTRANGIDO, RESISTE. ELA, AFETUOSA, INSISTE) Lembra-se do que eu lhe pedi, quando nos casamos e nos beijamos pela primeira vez? (BEIJA-O NO ROSTO COM CARINHO) “Charles, agora sou sua esposa. Então nunca esconda nada de mim, nem que seja alguma coisa que vá me magoar”.

CHARLES DARWIN - Não estou deixando de contar nada que magoe você…

EMMA DARWIN - Mas está deixando de me contar muita coisa… Estranho: tudo que acontece em sua vida parece estar relacionado com a sua viagem de pesquisa no Beagle.

CHARLES DARWIN - Aquela viagem foi o maior acontecimento da minha vida e…

EMMA DARWIN - (MAGOADA) Charles!

CHARLES DARWIN - (CORRIGE-SE) Depois do nosso casamento, querida... aquela viagem no foi o maior acontecimento de minha vida...

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EMMA DARWIN - (SEM SE CONVENCER, IRRITADA) O capitão FitzRoy, o cozinheiro, os canários cegos, o Brasil! Quero saber tudo agora! (VEEMENTE) Tudo!

CHARLES REFLETE. A LUZ APAGA-SE E A CENA SE TRANSFORMA. FLASHBACK. LUZES, SONS MARÍTIMOS E DIVERSOS ELEMENTOS CÊNICOS DÃO IDÉIA DE CONVÉS DE NAVIO. CHARLES E O CAP. ROBERT FITZROY CONVERSAM.

CAP. ROBERT FITZROY - Que tal o seu primeiro dia de viagem no mar, Filósofo?

CHARLES DARWIN - Muito bom, Cap. FitzRoy.

CAP. ROBERT FITZROY - Espero que tenha apreciado a refeição que mandei preparar especialmente para lhe dar as boas-vindas no Beagle, Filósofo.

CHARLES DARWIN - Obrigado. Costela de carneiro é o meu prato predileto.

CAP. ROBERT FITZROY - O Elias David cozinha muito bem. Ele é meu cozinheiro há muitos anos... (CONSULTA O RELÓGIO DE BOLSO. SUSPIRA) Está na hora. (COM EXPRESSÃO SEVERA, SEGUE PARA A FRENTE DO PALCO. SUBENTENDE-SE QUE O PÚBLICO SEJA A TRIPULAÇÃO. GRITA) Oficiais, suboficiais e oficiais do Beagle, todos ao convés!… Os senhores sabem por que estamos reunidos aqui… (GRITA) Contramestre, traga os homens!

CAP. ROBERT FITZROY - (SOLENE. SOM, EM TOM BAIXO, DE “REPIQUE” DE CAIXA) Como comandante do Beagle e de acordo com o Código Disciplinar da Real Marinha de Sua Majestade (MOSTRA-O), cumpro o dever de condenar estes quatro marinheiros à punição corporal de cinqüenta chibatadas em cada um, por repetida negligência no cumprimento de seus deveres… O cozinheiro Elias David será o primeiro a ser submetido à punição corporal…

VOLTA O SOM DE REPIQUE DE CAIXA. LUZ EM FOCO SOBRE ELIAS DAVID, COM AS MÃOS AMARRADAS. ASSIM QUE SE INICIA A PUNIÇÃO, MÚSICA ESCOCESA MODERADAMENTE ALEGRE SUBSTITUI O REPIQUE. A CADA SOM DE CHIBATADA, O COZINHEIRO GEME DE DOR E DARWIN PARECE SENTI-LA. COMEÇA A SENTIR NÁUSEAS. O CAP. FITZROY APROXIMA-SE DELE QUE, COM MUITO ESFORÇO, CONSEGUE CONTROLAR SEU MAL-ESTAR.

CAP. ROBERT FITZROY - (TRISTE) Aprecia a música escocesa, Filósofo?

SONS MISTURADOS DE MÚSICA, CHIBATADAS, GEMIDOS E GRITOS DE DOR DO MARINHEIRO.

CHARLES DARWIN - (DÚBIO) Quase sempre… E o senhor aprecia música?

CAP. ROBERT FITZROY - (SEM NOTAR A IRONIA) Muito. Aprecio a

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música instrumental. Gosto ainda mais do canto dos pássaros, especialmente o canto dos canários. (TRISTE) Que tal a vida no mar, Filósofo?

CHARLES DARWIN - (TENSO) Ela é um pouco… diferente…

CAP. ROBERT FITZROY - O que você pensa da punição que estou aplicando aos marinheiros indisciplinados?

CHARLES DARWIN - Desculpe, Capitão, mas sou apenas o naturalista do Beagle…

CAP. ROBERT FITZROY - (ABATIDO, MOSTRA O CÓDIGO) Este código disciplinar da nossa marinha tem mais de trezentos anos…

CHARLES DARWIN - (SURPRESO) Trezentos anos?!

CAP. ROBERT FITZROY - (ABRE-O) “Pequena negligência no cumprimento do dever: 50 a 100 chibatadas.” Mandei aplicar a pena mínima nos marinheiros: apenas cinqüenta chibatadas... (PAUSA. ENTREOLHAM-SE. EMBARAÇO) A chibata é uma forma tradicional de punição corporal em quase todas as marinhas do mundo… (REFLETE) As coisas são assim, sempre foram assim e sempre serão assim… Paciência. (O.T.) Pode parecer o contrário, mas amo todos os meus homens… Sou cristão acima de tudo: “Amai-vos uns aos outros”…

CHARLES DARWIN - (IRÔNICO) “Amai-vos uns aos outros…”

CAP. ROBERT FITZROY - (SEM NOTAR A IRONIA) Como oficial da marinha inglesa, apenas cumpro com o meu dever… (AMARGURADO) Na hora, enfrento bem a situação, mas depois… (DEIXA-SE ABATER)

PAUSA. CLIMA EMBARAÇOSO. SONS MARÍTIMOS TÍPICOS.

CHARLES DARWIN - O senhor está se sentindo bem, Capitão?

CAP. ROBERT FITZROY - (SEM OUVI-LO, “OLHANDO O MAR”) Olhe bem para o mar, Filósofo!… O mar tem uma força, um magnetismo e uma estranha energia que me acalmam… Amo imensamente o mar… Ele diz algo à nossa alma… Algo que nem sei o que é… Eu não posso viver sem ele… (NUMA MEDITAÇÃO) O mar… No mar está a chave para todos os mistérios da vida… (SAI)

SONS MARÍTIMOS TÍPICOS AUMENTAM. CHARLES SEGUE PARA OUTRA POSIÇÃO NA FRENTE DO PALCO. VOLTA A PASSAR MAL E ESTÁ PRESTES A VOMITAR.

CHARLES DARWIN - (OLHA PARA O COZINHEIRO SENDO CHICOTEADO) Desculpe, cozinheiro Elias David, mas vou ser obrigado a dispensar a sua saborosa costela de carneiro…

ABAIXA A CABEÇA PARA VOMITAR. A LUZ APAGA-SE SOBRE ELE E, EM FOCO, PERMANECE POR INSTANTES SOBRE O COZINHEIRO

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ELIAS DAVID SENDO AÇOITADO. PASSAGEM DE TEMPO. PROJEÇÃO AO FUNDO DE IMAGENS DE FLORESTA TROPICAL BRASILEIRA. PLATÉIA. SENTADO NUM TRONCO DE ÁRVORE, O CAP. FITZROY LÊ A BÍBLIA. INTERROMPE A LEITURA ALGUMAS VEZES PARA OUVIR O CANTO DOS PÁSSAROS E REFLETIR. DARWIN FAZ ANOTAÇÕES EM SEU DIÁRIO, ENQUANTO OBSERVA O AMBIENTE E, POR ACASO, ENCONTRA-SE COM O CAP. FITZROY. EMBARAÇO.

CAP. ROBERT FITZROY - Estou relendo o “Gênesis”. (LÊ) “O Senhor Deus criou o homem do barro… E expirou-lhe nas narinas o sopro da vida… E o homem se tornou um ser vivente… E O Senhor Deus plantou um jardim no Éden e ali pôs o primeiro homem. Então tomou uma costela do homem e criou a primeira mulher”…

CHARLES DARWIN - (PENSATIVO) O senhor acha que esta explicação para a origem do ser humano está correta?

CAP. ROBERT FITZROY - (APONTA A BÍBLIA) Sem dúvida. Somente a Bíblia consegue explicar esse mistério: o mistério dos mistérios…

CHARLES DARWIN - (INCOMODADO, MUDA DE ASSUNTO) Não sente toda a maravilha desta floresta tropical?

CAP. ROBERT FITZROY - Esta paisagem me faz refletir sobre a infinita grandiosidade de Deus…

CHARLES DARWIN - (DE NOVO, TENTA MUDAR DE ASSUNTO) O que está achando do Brasil, Capitão?

CAP. ROBERT FITZROY - É um belo país que praticamente está nascendo…

OUVE-SE UM BELO TRINADO DE PÁSSAROS. UM “LAMENTO” MUITO TRISTE, CANTADO E / OU MURMURADO POR MUITAS VOZES, EM LÍNGUA AFRICANA, SE SOBREPÕE AO TRINADO.

CHARLES DARWIN - De onde vem esse canto?

O SOM DA MÚSICA ELEVA-SE, IMPEDINDO QUE SE OUÇA A RESPOSTA DO CAP. FITZROY. A LUZ SE APAGA SOBRE CHARLES E PERMANECE EM FOCO SOBRE O CAPITÃO, QUE CONTINUA RESPONDENDO À PERGUNTA. ANTES QUE A LUZ SE APAGUE NESTE PLANO, ELA SE ACENDE SOBRE DARWIN, EM SEU GABINETE. FIM DO FLASHBACK.

GABINETE DE CHARLES. ELE ESTÁ MUITO PERTURBADO. AINDA SE OUVE, MUITO BAIXO, O “LAMENTO”, QUE LOGO DESAPARECE.

EMMA DARWIN - (ANSIOSA) Continue!… Continue!… Pelo amor de Deus, continue!

CHARLES DARWIN - (INCOMODADO, FOGE) Música!… O que eu

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preciso agora é da sua música!… Música!

EMMA DARWIN - (CONTRARIADA) Mas o piano está na sala de música.

CHARLES DARWIN - É só deixar a porta aberta que dá para ouvir daqui.

EMMA DARWIN - O que você quer que eu toque?

CHARLES DARWIN - A música que você tocou no dia do nosso casamento.

EMMA SAI. BREVE PAUSA. OUVE-SE O NOTURNO, OPUS 9, 2, EM MI BEMOL MAIOR, DE CHOPIN ∗, TOCADO AO PIANO. AOS POUCOS, OUVINDO A MÚSICA, CHARLES MELHORA.

CHARLES DARWIN - Chopin é insuperável!… Como você toca bem, Titty!

DEIXA-SE ENVOLVER PELA MÚSICA. LEVANTA-SE, VESTE O GUARDA-PÓ E DIRIGE-SE AO MICROSCÓPIO. FIM DA MÚSICA. JOGO DE LUZES INDICAPASSAGEM DE TEMPO. CHARLES ESTÁ MUITO TENSO. ORA OLHA AO MICROSCÓPIO, ORA FAZ RÁPIDAS ANOTAÇÕES. DE REPENTE, ALGO LHE DESPERTA A ATENÇÃO. REFLETE. O CAPITÃO FITZROY SURGE SOB “LUZ-MEMÓRIA”.

CAPITÃO FITZROY - Amo imensamente o mar… Ele diz algo à nossa alma… Algo que nem sei o que é… (NUMA MEDITAÇÃO) O mar… No mar está a chave para todos os mistérios da vida… (A “LUZ-MEMÓRIA” APAGA-SE SOBRE ELE)

CHARLES DARWIN - (MEDITATIVO, NUMA ESPÉCIE DE VIDÊNCIA) Capitão FitzRoy, talvez o senhor tenha razão… (SENTE TER DESCOBERTO ALGO E, PERTURBADO, OBSERVA O MICROSCÓPIO. FAZ GESTO DE DESISTÊNCIA. COMEÇA A TIRAR O GUARDA-PÓ, MAS DESISTE) Cheguei até aqui, tenho que prosseguir! (VAI VOLTAR À PESQUISA, MAS DETÉM-SE. FICA MAIS PERTURBADO AINDA) Meu Deus! Onde essas cracas marinhas vão me levar? (GRITA) Titty! Titty! Titty! VOLTA AO MICROSCÓPIO. DETÉM-SE. ESTÁ CADA VEZ MAIS TENSO E PERTURBADO. OUVE-SE, EM TOM BAIXO, O CANTO DOS CANÁRIOS QUE LOGO CESSA) Meus olhos!… Justo agora!… Titty! Titty! (RETIRA DOIS GRÃOS ÚMIDOS DE FEIJÃO DE UM FRASCO, SENTA-SE NA POLTRONA E COLOCA UM GRÃO EM CADA OLHO. MESMO SENTINDO DOR, REFLETE) Talvez essa pausa obrigatória tenha sido boa… Preciso pensar, pensar…

EMMA DARWIN ENTRA, APREENSIVA.

EMMA DARWIN - O que foi, Charles? Como é que você está?

CHARLES DARWIN - Estou bem… Só a minha vista está nublada e ardendo um pouco. (SENTE-SE MAL, MAS SUA MENTE ESTÁ DISTANTE) ∗ A música pode ser outra, desde que seja de Chopin, compositor e ex-professor de Emma Darwin.

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EMMA DARWIN - (PREOCUPADA) O que posso fazer por você?

CHARLES DARWIN - Heráclito... Heráclito, Titty!

EMMA HESITA, MAS ACEDE, APANHA O LIVRO. ELE CONCENTRA-SE. COMO SEMPRE, PROCURA EXTRAIR ALGO DA LEITURA.

EMMA DARWIN - (LENDO) “Portanto, o homem deve dirigir a pesquisa principalmente para aquilo que o liga aos outros homens…”

CHARLES DARWIN - “… principalmente para aquilo que o liga aos outros homens…”

EMMA, NERVOSA, FECHA O LIVRO.

EMMA DARWIN - Faz mais de vinte anos que você vem trabalhando nessas pesquisas… Já chegou a alguma conclusão?

CHARLES DARWIN - (PENSATIVO) Penso que estou bem perto de algo … muito importante! (PREOCUPADO, FRISA AS PALAVRAS) De uma conclusão que nem eu mesmo sei exatamente qual é… (MERGULHA EM SUAS REFLEXÕES. OUVE-SE, MUITO BAIXO, O CANTO DOS CANÁRIOS) O canto dos canários cegos! Está ouvindo, Titty? (COMEÇA A SE SENTIR MAL, TER FORTES DORES DE CABEÇA / ESTÔMAGO E A ENTRAR NUM ESTADO DE DELÍRIO).

EMMA DARWIN - (IRRITADA E QUASE GRITANDO) Não estou ouvindo nada!… Pare com isso! Pare! (SACODE-O COM FORÇA. OS FEIJÕES CAEM. PAUSA. ELE COMEÇA A VOLTAR AO “NORMAL”) Como você está se sentindo?

CHARLES DARWIN - Desta vez, a crise não veio tão forte… Minha vista ainda está um pouco nublada… (SOM BAIXO DO “LAMENTO”) Psiu! Psiu!… O lamento! Está ouvindo?

EMMA DARWIN - (IRRITADA) Não, não estou ouvindo nada! Não tem lamento nenhum! (NERVOSA, GRITA) Pare com isso, pelo amor de Deus!

CHARLES DARWIN - (ABALADO) Titty, você nunca gritou assim comigo…

ENTREOLHAM-SE. PAUSA. ELA APROXIMA-SE DELE E ABRAÇA-O.

EMMA DARWIN - Desculpe, Charles… me desculpe… (ESTÁ PARA CHORAR, MAS SE CONTROLA) Sua saúde e suas tensões acabam comigo… Faz tempo que eu também não consigo dormir … Não agüento mais! (ENCARA O MARIDO. ENÉRGICA) Pelo amor de Deus, termine de me contar de uma vez por todas essa história do “lamento” e dos canários cegos!

CHARLES DARWIN - Outra hora, Titty… por favor…

EMMA DARWIN - (NERVOSA, DECIDIDA) Agora! Agora! Agora!

DARWIN APROXIMA-SE DA FRENTE DO PALCO E REMEMORA. SOM

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DE GORJEIO DOS CANÁRIOS.

FLASHBACK. PROJEÇÃO AO FUNDO DE IMAGEM DE FLORESTA TROPICAL BRASILEIRA. CHARLES E O CAP. ROBERT FITZROY OUVEM O GORJEIO DOS CANÁRIOS, QUE LOGO É SOBREPOSTO PELO “LAMENTO” DOS ESCRAVOS, CANTADO E / OU MURMURADO POR MUITAS VOZES. UMAVOZ MASCULINA SE DESTACA PELA BELEZA, SENTIMENTO E SUAVIDADE.

CHARLES DARWIN - De onde vem esse canto?

CAP. ROBERT FITZROY - Vem de uma fazenda aqui perto, trazido pelo vento. … Preciso visitar o proprietário, Mr. Roger Hunter, que também é inglês e veio fazer fortuna aqui no Brasil. É um cavalheiro muito gentil e abasteceu o navio de mantimentos. Quer vir comigo?

CHARLES DARWIN - (MENTE) Não sei se vai dar tempo… Já que hoje é nosso último dia no Brasil, preciso colher mais amostras de plantas. (NOTA-SE QUE O CAP. ROBERT FITZROY NÃO ACREDITOU NA DESCULPA. O SOM DO CANTO AUMENTA) Já ouviu esse canto antes, Capitão?

CAP. ROBERT FITZROY - É um “lamento”, cantado pelos escravos, enquanto trabalham na fazenda de Mr. Hunter. Eles cantam a saudade da terra natal, do lar, dos filhos, das mulheres ou dos homens que deixaram para trás…

CHARLES DARWIN - Já notei que o senhor gosta de música…

CAP. ROBERT FITZROY - Muito. Quando estou em Londres, sempre que posso vou assistir a concertos de canários cegos…

CHARLES DARWIN - (CHOCADO) Concerto de canários cegos?!

CAP. ROBERT FITZROY - (ANIMADO) Muitos criadores de pássaros têm apurado gosto musical e por isso cegam os seus canários… Assim, eles cantam muito melhor… Mr. Hunter tem um viveiro de canários cegos… (BREVE PAUSA) Já ouviu o canto de um canário cego?

CHARLES DARWIN - (INDIGNADO) Nunca!

CAP. ROBERT FITZROY - Deslumbrante!… Faz bem à alma da gente!… Na escuridão em que vivem, eles cantam a perda da liberdade, a solidão, as trevas da cegueira… Os machos cantam ainda melhor do que as fêmeas… (INDIFERENTE) O canto dos canários cegos se parece muito com esse “lamento” dos escravos…

CHARLES DARWIN - (ABATIDO) Esse “lamento” é muito bonito, mas ao mesmo tempo é muito triste… Ainda bem que este é o nosso último dia no Brasil. Dou graças a Deus e espero nunca mais visitar um país de escravos…

CAP. ROBERT FITZROY - A escravidão é muito triste, Filósofo…

CHARLES DARWIN - O senhor então é contra a escravidão?

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CAP. ROBERT FITZROY - (ENFÁTICO) Não! Tenho pena dos escravos, mas a escravidão é um mal necessário!… É o trágico preço do progresso da humanidade. Na Inglaterra não temos escravos, graças a Deus… Mas o que será da produção agrícola da maioria dos países, inclusive do Brasil, sem o trabalho dos escravos?

CHARLES DARWIN - (IRÔNICO) “Amai ao próximo como a ti mesmo”…

CAP. ROBERT FITZROY - Perfeito. Um senhor pode perfeitamente amar o seu escravo… Aliás, até Deus é a favor da escravidão!

CHARLES DARWIN - (INDIGNADO) Deus, a favor da escravidão?!

CAP. ROBERT FITZROY - (IRRITADO, ABRE A BÍBLIA) Décimo mandamento da lei de Deus: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, nem sua mulher, nem seu jumento, nem seu escravo.” (TRIUNFANTE) Portanto, a Bíblia diz claramente que Deus não é contra possuir escravo, mas é contra cobiçar o escravo do próximo!

CHARLES DARWIN - (SARCÁSTICO) O senhor está interpretando muito bem a Bíblia!

CAP. ROBERT FITZROY - (SEM NOTAR O SARCASMO, REFLETE) Deus fez a raça branca superior e a raça negra, inferior… Em sua infinita sabedoria, Deus predestinou a raça negra a servir a raça branca como escrava… Ele estava sendo prático: simplesmente pensou no progresso da humanidade… O próprio negro reconhece isso e não quer deixar de ser escravo.

CHARLES DARWIN - (ENFÁTICO) Desculpe, Capitão, mas sou obrigado a discordar do senhor!

CAP. ROBERT FITZROY - (IRRITADO) Sou a favor da total liberdade de pensamento… (O.T.) Quando visitei pela primeira vez a fazenda de Mr. Hunter, ele fez questão de me provar que seus escravos estão satisfeitos em viver como escravos. Reuniu um bando deles e perguntou: “Vocês são infelizes, trabalhando aqui na minha fazenda?” “Não, meu senhor.” “Vocês desejam ser libertados?” “Não, meu senhor.” “Não trato bem todos vocês? “Muito bem, meu senhor.” “Alguém de vocês tem alguma queixa a fazer?” “Nenhuma, meu senhor”… Está vendo só, Filósofo? Os próprios escravos não querem ser libertados e temos que respeitar a vontade deles… Como sempre digo, as coisas são assim, sempre foram assim e sempre serão assim… E nós nada podemos fazer para mudar o mundo. Paciência.

CHARLES DARWIN - (NERVOSO, MAS CONTROLANDO-SE) Posso então expressar a minha opinião sobre o que o senhor acaba de me contar?

CAP. ROBERT FITZROY - Sem dúvida. Já disse que sou a favor da total liberdade de pensamento.

CHARLES DARWIN - (MUITO TENSO) Cap. FitzRoy, enquanto o senhor

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me contava o episódio, eu refletia se os escravos não estavam se sentindo ameaçados… E me fazia esta pergunta: qual é o valor real da resposta de um escravo dada na presença de seu senhor? (ENFÁTICO) Nenhuma! Absolutamente nenhuma!… Somente um escravo muito idiota diria a verdade ao seu senhor, para depois ser chicoteado!

CAP. ROBERT FITZROY - (IRRITADO) Não tenho esse conceito tão baixo sobre os proprietários de escravos! Mr. Roger Hunter, por exemplo, é um perfeito cavalheiro inglês!

CHARLES DARWIN - (ENÉRGICO) Pois o meu conceito sobre essa gente é o pior possível!

CAP. ROBERT FITZROY - (QUASE EXPLODINDO) Mr. Charles Robert Darwin, o senhor está desrespeitando o comandante do Beagle!

CHARLES DARWIN - (CORAJOSO) Cap. Robert FitzRoy, não foi essa a minha intenção. Mas, como cavalheiro, não retiro o que disse!

TENSÃO. ENCARAM-SE EM FRANCO DESAFIO. PAUSA.

CAP. ROBERT FITZROY - (ENFÁTICO) Mr. Charles Robert Darwin, como também sou um cavalheiro, considero suas palavras como uma gravíssima ofensa e sou obrigado a solicitar ao senhor que se retire do Beagle o mais urgente possível!

CHARLES DARWIN - (IDEM) Vou me retirar imediatamente! Preciso apenas de tempo suficiente para retirar meus pertences do navio.

CAP. ROBERT FITZROY - O senhor não é digno de continuar viajando no Beagle comigo e com meus homens! (IRÔNICO) Mas não se preocupe: conseguirá facilmente navio de volta para a Inglaterra… Com sua licença e passe muito bem, Mr. Charles Robert Darwin! (RETIRA-SE IRRITADÍSSIMO)

PAUSA.

CHARLES DARWIN - (ABALADO, ANOTA EM SEU DIÁRIO) “Este é o ponto final de minha viagem no Beagle, pelo mundo… Tinha ainda muito que aprender, muito que pesquisar, mas volto para a minha querida pátria.” (REFLETE, IRÔNICO) Adeus, Cap. FitzRoy. De qualquer modo, obrigado por tudo… (QUEDA-SE PENSATIVO E TRISTE)

O “LAMENTO” VOLTA A SER OUVIDO. FIM DO FLASHBACK.

MUDANÇA DE LUZ. GABINETE DE CHARLES DARWIN. POR INSTANTES, OUVE-SE AINDA CURTO TRECHO DO “LAMENTO”.

CHARLES DARWIN - (ABATIDO) Nunca, em toda minha vida, me senti tão impotente, tão derrotado, tão aniquilado…

EMMA DARWIN - (INDIGNADA) O Cap. FitzRoy era um tirano!

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CHARLES DARWIN - Teve uma coisa que me deixou muito mais abalado que o comportamento despótico do Cap. FitzRoy… No mesmo dia, ele me pediu desculpas pela rudeza e fizemos as pazes… Eu me senti impotente, derrotado, aniquilado por causa dos escravos!… Até o ultimo dia da minha vida, aquele “lamento” ressoará em meus ouvidos, em meu coração, em minha alma… Eu senti que tinha o dever de fazer alguma coisa pelos escravos…(ANGUSTIADO) Sempre me perguntei: o que, como cientista, posso fazer pelos escravos?

PAUSA. REFLETEM.

EMMA DARWIN - Agora entendi tudo…

CHARLES DARWIN - Como “tudo”?

EMMA DARWIN - Essas suas crises cada vez mais fortes e mais freqüentes.

CHARLES DARWIN - Você entendeu quase tudo…

ENTREOLHAM-SE.

EMMA DARWIN - Quase tudo?! (INCISIVA) Charles, o que mais aconteceu nessa sua viagem?

CHARLES DARWIN - (IRRITADO) Chega desse assunto!

EMMA DARWIN - Mas, querido…

CHARLES DARWIN - (AUTORITÁRIO, QUASE GRITANDO) Outra hora! Outra hora, Titty!

EMMA DARWIN - (MAGOADA, RETIRANDO-SE) Se você não precisa mais de mim, tenho muita coisa para fazer na casa!

CHARLES DARWIN - Titty, desculpe… Por favor, fique mais um pouco. (APROXIMA-SE DA ESPOSA E VAI TOCÁ-LA, MAS ELA SE AFASTA.)

EMMA DARWIN - (AINDA MAGOADA) Em que ainda posso ser útil ao senhor, Mr. Charles Robert Darwin?

EMBARAÇO. PAUSA.

CHARLES DARWIN - Estou melhor, mas a minha vista continua nublada. Hoje, de novo, preciso dos seus olhos.

EMMA ACEDE. O CLIMA MELHORA. ELA DIRIGE-SE AO MICROSCÓPIO. NOTA-SE A SUA FAMILIARIDADE COM O APARELHO.

EMMA DARWIN - Esta lâmina está sempre fora de lugar… (AJEITA-A) Pronto, Charles!

CHARLES DARWIN - O que é que você está vendo?

EMMA DARWIN - (AO MICROSCÓPIO) As mesmas cracas marinhas de sempre… Mas, desta vez, estou vendo pequenas diferenças entre elas…

CHARLES DARWIN - Você está ficando com a vista cada vez mais

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treinada… Essas lentes são do mês passado… Hoje chegaram lentes novas, mas não sei onde coloquei…

EMMA DARWIN - (PROCURA E ENCONTRA UM PEQUENO EMBRULHO, ABRE-O E DÁ COM UMA CAIXINHA, NA QUAL ESTÃO AS LENTES) Estavam bem na frente de seu nariz.

EMMA DARWIN - (TROCA AS LENTES. AO MICROSCÓPIO) Até agora, eu pensava que todas as cracas marinhas fossem um pouco diferentes umas das outras. Agora, vejo que elas são muito diferentes… (VOLTA A OLHAR AO MICROSCÓPIO)

NOTA: As observações de Emma Darwin feitas a seguir serão sempre revestidas de um tom irônico e, não, ingênuo. A utilização do tom ingênuo pela atriz poderá comprometer a composição da personagem Emma Darwin, que era uma mulher, inteligente, culta e versada em biologia, dentro da limitação dessa ciência na época.

CHARLES DARWIN - Completamente diferentes! (ORGULHOSO) A minha última descoberta, você ainda não viu!… Troque essa lâmina pela de número três. (EMMA TROCA AS LÂMINAS E OBSERVA A DE NÚMERO TRÊS AO MICROSCÓPIO) Minha querida esposa, tenho o prazer de lhe apresentar Mr. Arthrobalanus!

EMMA DARWIN - (IRÔNICA, AO MICROSCÓPIO) Muito prazer, Mr. Arthrobalanus!… Emma Darwin, às suas ordens.

CHARLES DARWIN - Você já o localizou?

EMMA DARWIN - (AO MICROSCÓPIO) Já.

CHARLES DARWIN - No microscópio dá para ver bem, mas, a olho nu, tem o tamanho da cabeça de um alfinete. Mr. Arthrobalanus é a menor craca marinha do mundo.

EMMA DARWIN - (SURPRESA) Mister?! Você não dizia que as cracas marinhas são hermafroditas?

CHARLES DARWIN - Era isso que eu pensava até agora. (FELIZ) Esta é a minha mais recente descoberta: As cracas machos!… Mr. Arthrobalanus pertence à menor e mais estranha espécie de craca marinha do mundo: as cracas Alcippes… Olhe bem para o pênis de Mr. Arthrobalanus… É gigantesco!

EMMA DARWIN - Como “gigantesco”, se Mr. Arthrobalanus é a menor craca do mundo?

CHARLES DARWIN - O pênis é “gigantesco” em relação ao tamanho… Essa espécie de craca macho só tem uma cabeça minúscula, pênis, saco escrotal quase invisível e uma única abertura que serve ao mesmo tempo de boca e cloaca… É um dos mais rudimentares seres da natureza… Já deu para ver o pênis dela, ou melhor, dele?

EMMA DARWIN - (AO MICROSCÓPIO) O pênis ainda não, mas a cabeça

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já… Tem uma espécie de turbante em volta dele.

CHARLES DARWIN - Turbante? É o pênis que fica enrolado em volta da cabeça do macho, quando ele não está excitado.

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) É mesmo gigantesco. Nunca vi um pênis desse tamanho!

CHARLES DARWIN - (SOLENE) Agora você vai ser a primeira mulher do mundo que irá testemunhar um verdadeiro milagre da natureza!… Troque essa lâmina pela de número quatro, que está no escaninho. (ELA TROCA AS LÂMINAS) Observe bem essa outra craca marinha.

EMMA DARWIN - (AO MICROSCÓPIO) Não estou vendo o pênis dele!

CHARLES DARWIN - Claro que não: é uma craca fêmea.

EMMA DARWIN - A craca fêmea é bem maior que a craca macho!

CHARLES DARWIN - Muito maior… Agora pegue a lâmina número cinco, que tem onze cracas machos e, com a pinça de dissecação, ponha essas cracas machos bem perto de Mr. Arthrobalanus…

EMMA DARWIN - Pronto.

CHARLES DARWIN - Ótimo! Ficam então doze cracas machos… Aproxime bem esses doze machos da fêmea… Veja só o que acontece!

EMMA DARWIN - (AO MICROSCÓPIO) Todos eles estão desenrolando os pênis…

CHARLES DARWIN - As cracas marinhas não tem olhos, mas a presença da fêmea deixa os machos excitados, como você pode notar pelo enrijecimento dos…

EMMA DARWIN - (CORTA. AO MICROSCÓPIO) Os turbantes estão se desenrolando… quer dizer, os pênis estão ficando enormes!

CHARLES DARWIN - As cracas machos e fêmeas se atraem por uma quase imperceptível vibração… Observe bem o órgão sexual dela…

EMMA DARWIN - Devagar… devagar… bem devagar ela está abrindo a…

CHARLES DARWIN - Exatamente!… Logo vai começar o grande momento da natureza: a cópula desses espécimes raríssimos de craca marinha!… Começou?

EMMA DARWIN - (AO MICROSCÓPIO) Pelo jeito, ainda não… Quase…

CHARLES DARWIN - (ANSIOSO) Vamos nos revezar ao microscópio.

EMMA DARWIN - Sua visão já está melhor, Charles?

CHARLES DARWIN - (EMPOLGADO) Já. Agora estou muito bem! Com licença, Titty. (TOMA O LUGAR DA ESPOSA)

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EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Você não acha que as cracas marinhas estão num momento muito íntimo e que nós, espiando pelo microscópio a atividade sexual delas, estamos sendo… indiscretos?

CHARLES DARWIN - (COM CONTIDA IRRITAÇÃO) “Espiando”, Titty?! Estamos fazendo uma importantíssima observação científica. (OBSERVA AO MICROSCÓPIO) Está chegando o grande momento! (PASSA O MICROSCÓPIO PARA EMMA) Observe você. Eu já vi várias vezes a cópula das cracas… Elas sempre me dão um extraordinário prazer…

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Quer dizer que você sempre sente um “extraordinário prazer” em observar a cópula das cracas?

CHARLES DARWIN - Um prazer científico, Titty! Científico!… Volte a observar as cracas machos.

EMMA DARWIN - (AO MICROSCÓPIO) Eles estão… cada um deles está… penetrando…

CHARLES DARWIN - A craca macho está penetrando na fêmea e não penetrando a fêmea…

EMMA DARWIN - As cracas machos estão penetrando, quer dizer, entrando dentro do órgão sexual dela!

CHARLES DARWIN - Agora essas doze cracas machos “descarregam” o líquido seminal dentro dela e ficam lá, parasitando o corpo da fêmea pelo resto de suas vidas… (BREVE PAUSA) Você vai assistir agora a uma coisa ainda mais interessante… Eu estava trabalhando com a lâmina número cinco. Pegue a lâmina número seis e ponha no microscópio.

EMMA DARWIN - Pronto. Agora estou vendo apenas uma craca macho.

CHARLES DARWIN - Vamos aproximar bem essa craca macho da fêmea que está com os doze machos dentro dela…

EMMA DARWIN - Lentamente… muito lentamente a craca macho está indo em direção à fêmea… (BREVE PAUSA. COM UM TOQUE DE MALÍCIA) Ele está tendo dificuldade em entrar no órgão sexual dela…

CHARLES DARWIN - Ele não está tendo apenas dificuldade em entrar… Está sendo repelido pelos doze machos que estão lá dentro…

EMMA DARWIN - (AO MICROSCÓPIO) A própria fêmea agora também está repelindo o macho…

CHARLES DARWIN - (REFLETE) Esse macho não vai conseguir entrar no órgão sexual da fêmea e, fora dele, em pouco tempo vai morrer… Mais uma prova da seleção natural: até as cracas marinhas, que são os mais rudimentares seres vivos, lutam pela sobrevivência… (PENSATIVO) Descobrimos hoje a existência de um fato reprodutivo, sem paralelo no reino animal…

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EMMA ABANDONA O MICROSCÓPIO E FIXA O MARIDO. AOS POUCOS, COMEÇA A SE ABALAR POR ALGO QUE ELA PRÓPRIA NÃO CONSEGUE AINDA DEFINIR O QUE É.

EMMA DARWIN - (FELIZ) Acabamos de observar neste microscópio algo que vai levar você muito longe… (PÁRA, ATINGIDA) a um lugar completamente desconhecido pela Ciência…

CHARLES DARWIN - (REFLETE E APANHA UMA LÂMINA E OBSERVA-A CONTRA A LUZ) Essas cracas marinhas são quase invisíveis a olho nu… Estão praticamente entre a matéria e a vida… É justamente por isso que elas são tão importantes…

EMMA DARWIN - (REMOENDO-SE) Uma única fêmea copula com doze machos… Pais copulam com filhas, mães com filhos, irmãos com irmãs… Incesto, poliandria, poligenia, cópulas múltiplas, devassidão, libertinagem total!… A natureza é uma permanente orgia, uma eterna e gigantesca bacanal!… Quem não consegue participar desse bacanal, como aquela craca macho, está condenado à morte. (BREVE PAUSA) Meu Deus, como a natureza é estranha!

CHARLES DARWIN - (IRÔNICO) Estranha?! A natureza é essencialmente depravada! (A SI MESMO) Deus criando cada craca marinha, cada molusco, cada verme…

EMMA DARWIN - (ABATIDA, MEDITA) Deus organizando toda essa orgia... Esse bacanal…

CHARLES DARWIN - (CONVICTO) Você não vê que essa depravação toda da natureza é uma necessidade absoluta da sobrevivência das espécies?... Deus Todo-Poderoso cria vermes, moluscos e cracas e organiza bacanais para preservar a vida... (EMMA ESTÁ PROSTRADA. DARWIN ESTÁ FELIZ COM A DESCOBERTA)... Esse fato vem reforçar as idéias que estou organizando dentro de um sistema de pensamento científico e que eu agora posso sintetizar numa única frase: a vida é obra do acaso!… (PONDERANDO) E o acaso determinou certas leis permanentes na natureza… O acaso cego que criou, cria e coordena tudo… (CONVICTO) Nós todos somos frutos desse acaso…

EMMA DARWIN - (NUMA SOFRIDA MEDITAÇÃO) Eu e você estamos aqui... por acaso... (AMARGA) Nós todos somos frutos desse acaso... (ABALADA) A vida é um acaso cego... (NO AUGE DO CONFLITO CONSIGO MESMA) E Deus?... Onde está Deus?... Em que ponto do universo está Deus? (FICA OLHANDO PARA O INFINITO, EM DESESPERO, SOMENTE AGORA CHARLES NOTA O ESTADO DA ESPOSA.)

CHARLES DARWIN - O que foi, Titty? Você está se sentindo bem? (PREOCUPADO, APROXIMA-SE DELA) Titty, querida... Eu... Eu não quis…

EMMA NÃO O OUVE. MUITO ABALADA, AOS POUCOS, VAI SAINDO

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DE SEU ESTADO DEPRESSIVO.

EMMA DARWIN - Faz um bom tempo que suas descobertas estão abalando as minhas convicções religiosas… Hoje elas foram ainda mais abaladas…

CHARLES DARWIN - (PREOCUPADO) Nunca tive nenhuma intenção de atingir você…

EMMA DARWIN - São suas idéias que sempre me atingem… Se você estiver completamente certo, vou ter que abandonar muita coisa em que sempre acreditei… (MUITO ABATIDA, REFLETE. OCORRE-LHE UMA IDÉIA E ELA SE RECUPERA) Charles, você me considera uma mulher razoavelmente inteligente?

CHARLES DARWIN - (SINCERO) Você é uma mulher muito inteligente, Titty!

EMMA DARWIN - (CONVICTA) Pois a minha inteligência recusa-se a aceitar que a vida seja simplesmente obra do puro e cego acaso que, segundo suas palavras, “criou, cria e coordena tudo”… (IRÔNICA) Em vez de um Deus cristão, temos o cego, todo poderoso e inteligentíssimo Deus-acaso, pairando sobre o universo, sobre todas as coisas, sobre todos nós…

CHARLES DARWIN - Onde você quer chegar?

EMMA DARWIN - (RACIOCINA ALTO) Por uma questão de lógica, somente a vida pode dar origem à vida… Correto?

CHARLES DARWIN - Correto.

EMMA DARWIN - Também, por uma questão de lógica, a matéria somente se transforma em vida se, sobre essa matéria, atuar alguma forma de vida. (REFLETEM. NUM REPENTE) Charles, você nunca se deu ao trabalho de perguntar por que eu acredito em Deus.

ENTREOLHAM-SE.

CHARLES DARWIN - Por que você acredita em Deus?

EMMA DARWIN - (CONVICTA) Eu acredito em Deus porque acredito no absurdo!

CHARLES DARWIN - No absurdo?!

EMMA DARWIN - (ELOQÜENTE) Eu acredito no absurdo, no absurdo primeiro, ou seja, Deus! Creio no Supremo Absurdo porque somente tendo essa crença, consigo raciocinar sobre a existência da vida.

CHARLES DARWIN - Titty, é um absurdo você acreditar no… absurdo!

EMMA DARWIN - Você nunca gostou de matemática… Você duvida da existência de Deus porque não conhece nada de geometria!

CHARLES DARWIN - Geometria!?

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EMMA DARWIN - (COM CRESCENTE ENTUSIASMO) Exatamente!… Diversos teoremas geométricos são provados raciocinando-se por absurdo. Ou seja, toma-se uma hipótese “absurda”, ou melhor, aparentemente absurda, e só ela — e nenhuma outra — explica certos teoremas… Em síntese, Charles, a existência de Deus é uma pura necessidade lógica… Ou seja, Deus é a hipótese absurda que explica tudo o mais, porque se não se admitir a existência de um absurdo primeiro — um infinito absurdo! — aí sim, tudo, absolutamente tudo, fica completamente absurdo!

CHARLES DARWIN - (SORRI IRÔNICO, MAS OBSERVA O ESTADO DA ESPOSA E COMEÇA A “MUDAR DE OPINIÃO”) A Providência Divina age apenas na passagem da matéria para a vida… A partir daí, estabelece regras fixas e imutáveis para a Natureza e deixa a vida correr por si mesma…

EMMA DARWIN - Charles, seja sincero comigo: você realmente acredita no que está dizendo?

CHARLES DARWIN - (MENTE) Acredito, Titty… (AFASTA-SE DA ESPOSA, ENVERGONHADO DE TER CAMUFLADO O SEU PENSAMENTO. REFLETEM. ELE A OLHA DE SOSLAIO) Que dia, hem!

EMMA DARWIN - Dia?! Já é noite… Eu estou me sentindo tão cansada…

CHARLES DARWIN - (SURPRESO) Você também está cansada, Titty?!

EMMA DARWIN - Não acha que tenho muitos motivos para estar cansada? A começar pelas suas pesquisas, elas… (DETÉM-SE)

CHARLES DARWIN - Minhas pesquisas cansam você?

EMMA DARWIN - Cansam… Mas me cansam por um motivo diferente: elas me perturbam…

CHARLES DARWIN - Talvez seja melhor você se afastar das pesquisas.

EMMA DARWIN - Há muita verdade nas suas pesquisas e elas são muito importantes… Mas preciso também ficar com os pés no chão: tenho de manter em dia as nossas contas, cuidar da casa, dos empregados, dos nossos filhos, das nossas aplicações financeiras… Além de me preocupar com a sua saúde e suas crises… Estou esgotada…

CHARLES DARWIN - A ciência torna o homem egoísta… Titty, você é uma mulher de fibra. Nunca pensei que você também se cansasse…

EMMA DARWIN - Você nem notou, mas faz semanas que você avança até a madrugada no trabalho… Sinto uma dolorida solidão… Venha, Charles, pelo menos hoje vamos ficar juntos…

CHARLES DARWIN - (ABRAÇA-A COM CARINHO) Eu prometo que, daqui para frente, vou ser mais atencioso com você…

EMMA DARWIN - (COMPREENSIVA, MAS PENSANDO O CONTRÁRIO

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DO QUE DIZ) Claro que vai... Claro que vai, Charles!

CHARLES DARWIN - Vou tirar algumas horas de folga todo dia, esquecer um pouco meu trabalho e me dedicar mais a você, à nossa família, aos nossos filhos, à nossa casa…

EMMA DARWIN - Lembra-se dos nossos primeiros anos de casados, aqui em Down? Nós passeávamos todas as manhãs pelo pomar e depois íamos cuidar do nosso jardim… Você tinha paixão pelas orquídeas…

CHARLES DARWIN - Ainda tenho. Estou até pensando em escrever uma tratado científico sobre as orquídeas… Aliás, já iniciei as minhas pesquisas…

EMMA DARWIN - (SEM OUVI-LO) Foi você quem plantou todas elas… (BREVE PAUSA) Há quanto tempo não vamos até o nosso jardim?… As nossas orquídeas estão com muita saudade de você…

VÃO SAINDO ABRAÇADOS. A LUZ VAI SE APAGANDO E UM FOCO SE FIXA SOBRE O MICROSCÓPIO.

CHARLES DARWIN - (SAINDO) Titty, estive pensando: a partir de amanhã, as coisas vão mudar completamente em nossa casa…

EMMA DARWIN - Que bom, Charles!... Muitas coisas precisam mesmo mudar na vida da gente...

SAEM.

CHARLES DARWIN - (VOZ “OFF”. ANIMADO) Pode ter certeza de que vão mudar, sem dúvida!... (BREVE PAUSA) As nossas pesquisas vão tomar outro rumo… Amanhã chegam as lentes francesas para o nosso microscópio…

EMMA DARWIN - (VOZ “OFF”, ALEGRE) Nosso microscópio? Obrigada pelo nosso, Charles…

SILÊNCIO. O FOCO DE LUZ SOBRE O MICROSCÓPIO APAGA-SE LENTAMENTE…

FIM DO I ATO

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ATO II

LUZ. GABINETE DE CHARLES DARWIN VAZIO. PAUSA. DARWIN, TENSO E ANSIOSO, ANDA PELO CENTRO E CORREDORES LATERAIS DA PLATÉIA, REFLETINDO. FALA A SI MESMO, COMO SE SEUS PENSAMENTOS O AJUDASSEM A CHEGAR A UMA IMINENTE DESCOBERTA CIENTÍFICA. POR VEZES, MURMURA PALAVRAS DE FORMA INAUDÍVEL, INCOERENTE E EMOCIONADA.

CHARLES DARWIN - (REFLETINDO, APREENSIVO, COM A RESPIRAÇÃO OPRESSA) “Uma espécie de craca fóssil do período Cambriano tem diferenças com outra craca da mesma espécie do período Devoniano!… Uma craca viva tem pequenas diferenças de outra craca viva da mesma espécie!… A natureza seleciona os seres que melhor se adaptam ao ambiente, como esses tordos… E os mais fortes derrotam os mais fracos na luta pela sobrevivência… Todas essas coisas agora se juntam!… (APREENSIVO, COM A RESPIRAÇÃO OPRESSA) “Na Natureza tudo se transforma.”... Os canários cegos... quem sabe se... (OCORRE-LHE ALGO, ELE APRESSA O PASSO E SOBE AO PALCO (AO SEU GABINETE) E, LESTO, DIRIGE-SE AO MICROSCÓPIO. POR VEZES, SOLTA EXCLAMAÇÕES) Comparo estes espécimes de cracas marinhas fósseis com estes outros espécimes de cracas vivas… (LEVA-AS AO MICROSCÓPIO E EXAMINA-AS COM ATENÇÃO. MUITO TENSO, ALTERNA-SE ENTRE TOMAR RÁPIDAS NOTAS E EXAMINAR LÂMINAS AO MICROSCÓPIO. DARWIN RACIOCINA COM RAPIDEZ. ESTÁ A PONTO DE TER UM “INSIGHT” E “EXPLODIR”, MAS, DE REPENTE, SE DETÉM. OBSERVA POR INSTANTES O ANTIGO MAPA DO MUNDO, EM QUE SE VÊ A ROTA DE VIAGEM DO BEAGLE. APONTA PARA AS ILHAS GALÁPAGOS. EMPOLGADO) Galápagos! Galápagos!… As tartarugas de uma ilha de Galápagos são diferentes das tartarugas de outra ilha… Os tordos!… Os tordos de Galápagos! (QUASE ALUCINADO) As cracas marinhas, as tartarugas e os tordos de Galápagos! Cada tordo tem um bico diferente conforme o tipo de alimento que… SEU SEMBLANTE SE TURVA. PAUSA. SURPREENDE-SE.) Será que…(VOLTA A OBSERVAR LÂMINAS NO MICROSCÓPIO. EMMA ENTRA E, INTRIGADA, OBSERVA O MARIDO) É isso mesmo!

EMMA DARWIN - (APROXIMA-SE DELE) O que foi, Charles? Precisa de minha ajuda?

MERGULHADO EM SEUS PENSAMENTOS, POR INSTANTES DARWIN NÃO NOTA A PRESENÇA DA ESPOSA.

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CHARLES DARWIN - (REMOENDO-SE, ALGO INCOERENTE) Pesquisei durante minha vida inteira com animais, plantas e aves… Acabo de concluir agora minhas pesquisas com as cracas marinhas e… (DETÉM-SE)

EMMA DARWIN - E…?

CHARLES DARWIN - (SEM OUVI-LA, EMOCIONADO) Alguns cientistas diziam que todos os seres vivos passam por transformações ao longo do tempo… “Provas, queremos provas!”, gritavam seus oponentes… Mas os cientistas não conseguiram descobrir as provas… (BREVE PAUSA) Meu Deus! Precisei fazer uma viagem de pesquisa, por cinco anos, em volta ao mundo para descobrir o que estava bem diante do meu nariz… (PREOCUPADO) Agora não existe a menor dúvida!… (REFLETE, EMOCIONADO, FRISANDO CADA PALAVRA) Eu, Charles Robert Darwin, finalmente descobri!… As provas da transmutação dos seres vivos!… As provas científicas!… (EM TOM DE SEGREDO E DE INTENSA EMOÇÃO) As espécies se transmutam, se transformam, evoluem!… Evoluem!

ABATIDO, DEIXA-SE CAIR NUM CADEIRA. CENA MÍMICA. ELE EXPLICA A SUA DESCOBERTA À ESPOSA. DIVERSAS VEZES AMBOS, ALTERNANDO-SE, OLHAM LÂMINAS AO MICROSCÓPIO. EMMA, SORRIDENTE, ALEGRA-SE COM A DESCOBERTA DO MARIDO. MÚSICA E / OU SOM IMPEDE QUE SE OUÇA O QUE DIZEM. DE REPENTE, ELA NOTA O ESTADO DE ABATIMENTO DE DARWIN.

EMMA DARWIN - (ESTRANHANDO) Charles, você pesquisou intensamente durante toda sua vida, estragou sua saúde de tanto trabalhar… Agora, quando você chega ao ponto máximo, tem essa reação estranha, absurda! (BREVE PAUSA) Não consigo entender…

CHARLES DARWIN - (ABALADO) Nem eu mesmo entendo… Esta descoberta me parece ser de uma dimensão tão grande que minha mente não é capaz de avaliar… Algo imenso, gigantesco, que está ameaçando desabar sobre minha cabeça e me esmagar… (REFLETE)

EMMA DARWIN - (ENTUSIASMADA) Bobagem! Anime-se, homem! Você acaba de descobrir as causas da transmutação dos seres vivos! (NOTA QUE ELE CONTINUA ENSIMESMADO E ABALADO. OCORRE-LHE UMA IDÉIA) Charles, meu querido marido, sabia que você tem um cérebro privilegiado?

CHARLES DARWIN - Eu?!

EMMA DARWIN - E é um grande, excepcional cientista?

CHARLES DARWIN - (ANIMANDO-SE) Você acha que…

EMMA DARWIN - Você é o maior cientista vivo da Inglaterra!

CHARLES DARWIN - (ENVAIDECIDO) O maior cientista vivo!

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EMMA DARWIN - (ANIMADÍSSIMA) Talvez o maior cientista do mundo!… Mas o seu problema, Charles, é que você se enfurna nesta casa, não se valoriza, é modesto demais!… Você tem de sair por aí, como Arquimedes, gritando, berrando, para toda a Inglaterra, para o mundo inteiro ouvir: Eureca! Eureca! Eureca! Descobri! Descobri! Descobri! As espécies se transmutam, se transformam, evoluem!… Eu, Charles Robert Darwin, o maior cientista inglês, descobri as causas da transmutação, da evolução dos seres vivos! (CHARLES ESTÁ EMBEVECIDO PELAS PALAVRAS DA ESPOSA. ELA SE APROXIMA DELE E O ABRAÇA) Como é que você vai chamar a sua grande descoberta científica? (SUGERE) “Transmutação dos seres vivos”!

CHARLES DARWIN - Não, não, “transmutação” é uma palavra muito usada… Vou chamar a minha descoberta de… “evolução”… “Evolução dos Seres Vivos”… Não… “Evolução das Espécies”… O que você acha: “Evolução dos Seres Vivos” ou “Evolução das Espécies”?

EMMA DARWIN - (SENTINDO A SONORIDADE) Evolução dos Seres Vivos… Evolução das Espécies… “Evolução das Espécies” soa muito melhor!

CHARLES DARWIN - (MUITO ANIMADO) “Evolução das Espécies”!… Isaac Newton deu o nome de sua grande descoberta de “Teoria da Gravitação Universal”… Então a minha descoberta vai se chamar “Teoria da Evolução das Espécies”… Obrigado, Titty, pelo seu apoio ao meu trabalho durante todos esses anos. (EM DÚVIDA) Você acha que foi mesmo uma vitória?

EMMA DARWIN - (ANIMADA) Uma grande vitória científica! (BEIJA-O COM CARINHO NO ROSTO)

CHARLES DARWIN - Uma grande vitória científica!… (SORRIDENTE) Titty, eu… eu… Eu estou me sentindo forte… forte… forte!

EMMA DARWIN - Você é muito forte, Charles!

CHARLES DARWIN - Nunca me senti tão forte em toda minha vida! (COMO SE PRETENDESSE APANHAR ALGO IMPORTANTE DO AR) Aquelas duas músicas!

EMMA DARWIN - Pelo amor de Deus! Você vai ter uma crise de novo?!

CHARLES DARWIN - (SINAL DE SILÊNCIO) Psiu! Não vou ter crise nenhuma!… Agora eu quero ouvir as duas músicas… Primeiro, o gorjeio dos canários cegos! (COMEÇA A ASSOBIAR, IMITANDO O GORJEIO DOS CANÁRIOS. LOGO SEU ASSOBIO É SOBREPOSTO PELO PRÓPRIO GORJEIO DE UM CANÁRIO E, EM SEGUIDA, DE MUITOS CANÁRIOS) Agora, o “lamento” dos escravos!… (CANTAROLA O “LAMENTO” QUE É LOGO SOBREPOSTO PELO CORO DOS ESCRAVOS, CANTANDO A MESMA MÚSICA) Está ouvindo, está ouvindo, Titty?

EMMA DARWIN - (ESTRANHANDO) Ouvindo o quê, Charles?

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CHARLES DARWIN - Ouça! Ouça! (O SOM DO “LAMENTO” AUMENTA, PARA LOGO ABAIXAR.) O Cap. FitzRoy!… O cozinheiro Elias David!… Os canários cegos!… O “lamento”!… O Brasil!… Sinto que todas essas coisas se ligam… (FORTE) Agora eu sei por que se ligam!

EMMA DARWIN - (FIRME) Charles, já passou da hora de você me contar, de uma vez por todas, essa história dos canários cegos. Senão você nunca vai ter paz na vida.

CHARLES DARWIN - Agora, eu faço questão de contar tudo para você, Titty… Lembra-se que eu lhe contei da minha discussão com o Cap. FitzRoy?… Logo depois, ele me pediu desculpas e fizemos as pazes… (RECORDA, ANIMADO) À tarde, antes do Beagle zarpar, o Cap. FitzRoy me pediu para acompanhá-lo à fazenda de Mr. Roger Hunter… Fiquei sem jeito de negar e fui… Mr. Hunter era apaixonado por música e (IRÔNICO) gostava muito de ouvir o gorjeio de seus canários cegos… (AMARGO) No dia anterior à nossa visita, ele mandou cegar um escravo…

EMMA DARWIN - (HORRORIZADA) Cegar um escravo?!

CHARLES DARWIN - … que tinha uma belíssima voz para que cantasse muito melhor uma música em homenagem ao Cap. FitzRoy…

EMMA DARWIN - (INDIGNADA) O Cap. FitzRoy sabia dessa homenagem?

CHARLES DARWIN - Não, não sabia. (BREVE PAUSA) Foi horrível!… Mas sou obrigado a reconhecer que nunca ouvi voz tão bonita, tão harmoniosa, tão musical… (RECORDA. OUVE-SE UM “LAMENTO”, CANTADO POR UMA BELA VOZ MASCULINA) Está ouvindo a música, Titty?

EMMA DARWIN - Não... Não estou ouvindo nada...

CHARLES PRESTA ATENÇÃO NA MÚSICA. DE REPENTE, O CANTO É INTERROMPIDO. PAUSA.

CHARLES DARWIN - (EMOCIONADO) No melhor momento da música, o escravo parou de cantar, olhou com seus olhos cegos para Mr. Hunter, puxou uma faca escondida na cintura e com ar de desafio… (SENTE DIFICULDADE EM CONTINUAR)

EMMA DARWIN - Esfaqueou Mr. Hunter?

PAUSA.

CHARLES DARWIN - (MUITO INCOMODADO) Diante de todos nós, ele… Ele cortou a sua própria língua!... Foi a pior, a mais macabra, a mais horripilante cena que assisti em toda minha vida... Eu me senti completamente aniquilado…

EMMA DARWIN - Agora eu compreendo tudo…

CHARLES DARWIN - Compreende o quê?

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EMMA DARWIN - Essas suas crises cada vez mais freqüentes... Sua doença... Compreendo tudo... (PAUSA. REFLETEM. IRÕNICA). O Cap. FitzRoy gostou da “homenagem” que Mr. Hunter lhe prestou?

CHARLES DARWIN - Não. Ele também ficou muito abalado… Na volta ao navio, caminhamos um bom tempo em silêncio…

FLASHBACK. LUZ EM FOCO SOBRE O CAP. FITZROY, NUM DETERMINADO PONTO DO PALCO.

CAP. ROBERT FITZROY - (ABATIDO, REFLETINDO) Filósofo, você tem razão: Mr. Hunter não é um cavalheiro e o meu conceito sobre os proprietários dos escravos agora também é o pior possível… Tive vontade de desafiar esse canalha para um duelo, mas depois pensei: não vai adiantar nada, existem milhares de Mr. Hunters espalhados pelo mundo… A vida é assim, sempre foi assim e sempre será assim… Paciência… (A LUZ SE APAGA SOBRE ELE)

FIM DO FLASHBACK. GABINETE DE CHARLES DARWIN.

CHARLES DARWIN - (BREVE PAUSA) De volta ao Beagle, caí numa profunda tristeza e passei muito mal… Pensei que nunca mais conseguiria sair da cama, que ia morrer de angústia… Até que uma manhã, o Cap. FitzRoy entrou na minha cabina e, sem dizer uma única palavra, me ajudou a levantar e me levou para dar uma volta no convés do navio para tomar um pouco de ar puro e sol… Foi o que me salvou… (BREVE PAUSA) Prometi a mim mesmo que, um dia, eu iria fazer alguma coisa pelos escravos… (CONVICTO) Hoje eu consegui, Titty! Consegui!

EMMA DARWIN - Conseguiu o quê?

LUZ EM FOCO SOBRE CHARLES DARWIN.

CHARLES DARWIN - Quando descobri a prova da verdade de minha teoria, fiquei muito abalado nem sabia por que… Bobagem! (MUITO ANIMADO) Minhas pesquisas sobre as cracas marinhas me fizeram voltar a milhões de anos!… (NUMA “VISÃO PREGRESSA”) Volto ao mais primitivo antepassado do homem — até o nosso primeiro ancestral!… Vejo um quadrúpede peludo, um antropóide com as mãos enormes e em garra, habituado a andar trepado nas árvores… Retrocedo ainda mais, a bilhões de anos… Mergulho na profunda escuridão do nosso mais longínquo passado… E vejo a mim mesmo… Vejo o homem!… O homem (IRÔNICO), que considera a si mesmo como o ser supremo da criação, na sua forma mais primitiva, mais rudimentar, mais ínfima!… Ou melhor, vejo um inseto, um molusco acéfalo, hermafrodita, uma minúscula e insignificante larva… (LEMBRA-SE DE ALGO)

LUZ EM FOCO SOBRE O CAPITÃO FITZROY.

CAPITÃO FITZROY - O mar... O mar... No mar está a chave para todos os mistérios da vida...

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A LUZ SOBRE O CAPITÃO FITZROY SE APAGA.

CHARLES DARWIN - (CONTINUANDO) Essa larva veio do mar... De que cor era a pele do homem então? De que cor era a pele daquela larva, daquele molusco, daquele verme, o verdadeiro antepassado do homem?… (BREVE PAUSA) Quem sabe e o que interessa isso hoje? Todos os homens — todos! — brancos, negros, mestiços, amarelos vieram de um ancestral comum!… Logo… Logo…

EMMA DARWIN - (VIBRANTE) Logo, todos os homens são iguais!

CHARLES DARWIN - (IDEM) Exatamente!… Essa história de raça branca pura, eslava, anglo-saxônica, germânica etc., é uma infinita bobagem, uma suprema ignorância!… Todas as raças são iguais!… Melhor ainda, não existe raça nenhuma… Existe apenas o ser humano e ponto final! (IRÔNICO) Podemos nos orgulhar de sermos todos filhos de um molusco, de uma larva, de um verme marinho!… (VITORIOSO) A minha teoria destrói para sempre o falso argumento dos escravocratas e racistas do mundo inteiro que dizem que o negro é uma raça à parte, inferior… Titty, a minha teoria vai ajudar os canários cegos!… Vai dar uma contribuição decisiva para acabar com essa suprema degradação do ser humano que é a escravidão!… (BREVE PAUSA. LEMBRA-SE) E vai mais longe… O cozinheiro Elias David e aqueles pobres marinheiros açoitados por causa de um velho código disciplinar de mais de trezentos anos…

LUZ EM FOCO SOBRE O CAPITÃO FITZROY.

CAPITÃO FITZROY - “As coisas são assim, sempre foram assim e sempre serão assim…Paciência... ”

APAGA-SE A LUZ EM FOCO SOBRE O CAPITÃO FITZROY

CHARLES DARWIN - (COM PROFUNDA CONVICÇÃO) Não, Cap. FitzRoy, as coisas não serão sempre assim… Cientificamente, eu provo que nada... nada é eterno!

EMMA DARWIN - (FELIZ, NO MESMO DIAPASÃO) “Não é possível banhar-se duas vezes nas águas do mesmo rio, porque em toda as coisas há um movimento perpétuo: tudo vai e vem, tudo é e não é, na Natureza tudo se transforma...”

CHARLES DARWIN - “Tudo se transforma” e, portanto, tudo pode mudar neste mundo! Tudo! (PAUSA, SORRI) Agora vou fazer um esboço da minha teoria, que amanhã segue para publicação…

EMMA DARWIN - Mande publicar hoje mesmo!

CHARLES DARWIN - (OLHA O RELÓGIO DE BOLSO) Hoje não dá mais tempo… Amanhã! (SORRIDENTE, BRINCALHÃO E GRANDILOQÜENTE) Titty, amanhã faça sol ou chuva!… Terremotos e furacões abalem a terra!… O

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Sol se apague!... (CLÍMAX) Os astros se entrechoquem no universo!… Os mortos ressuscitem!… Nada, absolutamente nada, impedirá que eu mande publicar o esboço de minha teoria!… (BREVE PAUSA. SÉRIO) Amanhã, a humanidade toda conhecerá a Teoria da Evolução das Espécies ou não me chamo Charles Robert Darwin!… Amanhã!

EMMA DARWIN - (SOLIDÁRIA) Amanhã!

CHARLES DARWIN - Você me ajuda a redigir, agora mesmo, o esboço da minha teoria?

EMMA DARWIN - Com imenso e “heraclítico” prazer!

SENTAM-SE À MESA. O GORJEIO ALEGRE DE CANÁRIOS TORNA O AMBIENTE MUITO AGRADÁVEL. MÍMICA. DARWIN DITA E EMMA ESCREVE OU VICE-VERSA. ÀS TANTAS, O GORJEIO É INTERROMPIDO OU DIMINUI DE VOLUME.

CHARLES DARWIN - (DITA) “Portanto, não vejo motivo algum para que as idéias expostas em minha teoria abalem as convicções religiosas de quem quer que seja.”

EMMA DARWIN - (PÁRA DE ESCREVER) Não vê motivo algum? Charles, a sua teoria já abalou as minhas convicções religiosas…Você está sendo um pouco falso, para não dizer, um pouco…“hipócrita”!

CHARLES DARWIN - (IRÔNICO) Titty, um pouco de prudência e diplomacia vão ajudar muito a Ciência…

OUVE-SE, DISTANTE E VINDO DA PLATÉIA, ALARIDO DE MULTIDÃO QUE SE APROXIMA.

EMMA DARWIN - Que barulho é esse?

EXPECTATIVA. BARULHO E ALARIDO DE VOZES DE MULTIDÃO. PERPLEXIDADE DO CASAL QUE, POR INSTANTES, FICA PARALISADO E, EM SEGUIDA, APROXIMA-SE DA “JANELA” (FRENTE DO PALCO) PARA VER DE QUE SE TRATA. FOCO DE LUZ NO CENTRO DO PALCO, ILUMINANDO UM ORADOR POPULAR QUE DISCURSA EM PÉ, SOBRE UM CAIXOTE.

ORADOR - (VIBRANTE) “Trabalhadores, eles... Eles querem nos condenar à mais torpe miséria, mas não conseguirão!” (DARWIN TROCA OLHARES COM A ESPOSA) “Um representante deles, o pastor Malthus, que defende a guerra, a escravidão e o infanticídio”…

CHARLES DARWIN - (COMENTA) Está atacando Malthus!”

ORADOR - “… mancomunado com a Igreja Anglicana e a Coroa, diz que nós, o povo, somos os grandes culpados da pobreza e da miséria que existem hoje em nosso país!… Nós, o povo, somos os grandes culpas de nossa miséria… E não

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os ricos, e não os nobres, e não o clero parasita, e não a Coroa.”… “Chega de pedir, de implorar, de mendigar!… Temos o sagrado direito de exigir!… Exigir a separação da Igreja Anglicana da Coroa!… Exigir impostos mais altos para a riqueza e as terras dos ricos!”

CHARLES DARWIN - (ATINGIDO) Já pagamos uma fortuna em impostos das nossas terras! Que absurdo!

ORADOR - (CADA VEZ MAIS VIBRANTE) “Vamos exigir aumento de salário para todos nós, trabalhadores!… Vamos exigir o acesso ao ensino e à cultura para todo o povo e não apenas para uma minoria de privilegiados!… Trabalhadores! Conscientes de nossos direitos, unidos e organizados, poderemos ter a certeza absoluta de que o futuro será nosso!…(CLÍMAX) Em nosso país, não haverá mais lugar para a ignorância, para a fome, para a miséria!”

A LUZ APAGA-SE SOBRE O ORADOR POPULAR. DARWIN, MUITO PREOCUPADO, E SUA ESPOSA QUEDAM-SE PENSATIVOS.

CHARLES DARWIN - (IRRITADO) Cambada de agitadores! Corja de arruaceiros!... Não respeitam mais nada!... Afinal, o que é que essa gente quer?

EMMA DARWIN - (COMO SE TENTASSE APREENDER ALGO) Em algumas coisas, talvez tenham razão: há muita ignorância, fome e miséria na Inglaterra…

CHARLES DARWIN - (PENSATIVO) Sempre fui contra a ignorância, a fome, a miséria… Damos esmolas aos pobres, contribuímos para as obras de caridade da paróquia...

EMMA DARWIN - Você acha que Malthus está certo quando diz que o povo é culpado de sua própria miséria?

CHARLES DARWIN - Sem dúvida!… Quando estou em Londres e vejo aquela imensa multidão de pessoas perambulando pelas ruas, eu penso: o povo não faz outra coisa senão ficar o tempo todo se procriando!… É por isso que tem gente em excesso no mundo!… Assim, a pobreza e a miséria vão aumentar sempre… (BREVE PAUSA) A única solução para a pobreza e a miséria é a que Malthus recomenda: a abstinência sexual das classes pobres!

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Abstinência sexual das classes pobres… Charles, em que mundo você vive?

CHARLES DARWIN - Vivo aqui em Down, na Inglaterra, com você, com nossos filhos, nossa família…

EMMA DARWIN - Seu corpo vive aqui, mas sua mente viaja no tempo e no espaço… (IRÔNICA) Você vive no período Devoniano, no Cambriano, na pré-história da humanidade… Eu, sim, vivo aqui em Down, condado de Kent, e com os dois pés no chão… Abstinência sexual das classes pobres!… Que bobagem!

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CHARLES DARWIN - (ALGO IRRITADO) Malthus é um conceituado economista e um grande pensador!… (PREOCUPADO) Na França, os agitadores usaram a teoria de Lamarck para derrubar o governo… Será que a minha teoria não poderá também servir de arma para essa malta de desordeiros, de arruaceiros, de agitadores?

EMMA DARWIN - Você sempre disse que sua matéria de estudo é a ciência e não a política…

CHARLES DARWIN - (CADA VEZ MAIS TENSO) Esses agitadores atacam até a Igreja Anglicana!

EMMA DARWIN - Você sempre se considerou um agnóstico, um livre pensador…

CHARLES DARWIN - Eu não preciso de religião, mas o povo precisa… Senão se degenera, se entrega aos vícios, se revolta contra a lei e a ordem, contra o governo… Como já aconteceu na França, na Espanha, na Alemanha e em outros países…

EMMA DARWIN - (ALGO PREOCUPADA) Você acha que os agitadores poderão usar a sua teoria para provocar uma grande insurreição armada na Inglaterra?

CHARLES FAZ GESTO AFIRMATIVO COM A CABEÇA E, MUITO TENSO, MEDITA.

CHARLES DARWIN - (PONDERANDO CADA PALAVRA) No momento em que descobri as causas da evolução, eu deveria ter ficado muito feliz… Eu tinha certeza de que tinha feito uma grande descoberta científica… Mas alguma coisa me perturbou muito… Alguma coisa que eu não sabia o que era… (MUITO TENSO) Agora eu sei o que é!… Meu Deus!… (BREVE PAUSA) Titty… (DETÉM-SE)

EMMA DARWIN - O que é, Charles?

PAUSA.

CHARLES DARWIN - (ANGUSTIADO) Um crime… Sinto como se tivesse cometido um crime! Um grave crime!

LONGA PAUSA. CHARLES CAI NUMA PUNGENTE REFLEXÃO. “LUZ-IMAGINAÇÃO”. JULGAMENTO. NUM OUTRO PONTO DO PALCO, SOB LUZ EM FOCO, SURGE UM PROMOTOR INGLÊS, COM VESTIMENTA TÍPICA E UM DIÁRIO NA MÃO, QUE ENCARA DARWIN. BURBURINHO DE MULTIDÃO.

JUIZ - (VOZ “OFF”, FORMAL E SEVERA) Silêncio no tribunal!... (SOM DE PANCADAS CARACTERÍSTICAS. SILÊNCIO) Com a palavra, o Exmo. Sr. Promotor.

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PROMOTOR - (IRÔNICO, LENDO O DIÁRIO) “Sinto como se tivesse cometido um crime! Um grave crime!” (OLHA PARA A PLATÉIA, COMO SE ESTA FOSSE O JÚRI) Vamos provar a esta corte de justiça que o senhor já cometeu um crime, um grave crime… Um crime em seus pensamentos, em suas palavras e, principalmente, (MOSTRA O DIÁRIO) em suas anotações! (IRÔNICO) Graças às suas pesquisas, o senhor viajou no tempo, retrocedeu a milhões de anos atrás e chegou até o nosso primeiro ancestral… Por gentileza, Mr. Darwin, descreva essa estranha criatura para a nossa corte…

CHARLES DARWIN - (NERVOSO) Nosso primeiro ancestral era um quadrúpede peludo, um antropóide que tinha cauda, orelhas afuniladas, mãos enormes e em garra… Estava mais habituado a andar trepado nas árvores que…

RISOS INTERROMPEM DARWIN, ABAFANDO A RESPOSTA.

JUIZ - (VOZ “OFF”, ENÉRGICA) Silêncio no tribunal!

PROMOTOR - (DISFARÇANDO O RISO, SEMPRE IRÔNICO, COM UM DIÁRIO NA MÃO) Mr. Darwin, o senhor escreveu em seu diário: “Todos os homens — brancos, negros, amarelos, mestiços — provieram de um ancestral comum e, portanto, são todos iguais”.

CHARLES DARWIN - Minhas pesquisas provam, cientificamente, que, por se originarem de um ancestral comum, todos os homens são iguais.

PROMOTOR - (INDIGNADO) Que absurdo, Mr. Darwin!… O senhor, impatrioticamente, ofendeu a todo o povo inglês afirmando que todos os homens são iguais… (INFLAMADO, DISCURSIVO) Nós, ingleses, somos superiores a todos os povos!… A prova maior disso é que a Inglaterra é hoje a mais poderosa nação da Terra e temos o maior império colonial do mundo! (CLÍMAX) Nós, ingleses, somos Shakespeare! Somos Sir Isaac Newton! Somos o Almirante Nélson e o Duque de Wellington, os vencedores de Napoleão!… E o senhor quer nos nivelar com os negros escravos, os selvagens, os nativos das nossas colônias?! (BREVE PAUSA) Onde está o seu patriotismo, Mr. Charles Robert Darwin?!… (BREVE PAUSA) Vamos adiante para provar a esta corte que o senhor cometeu também todos os outros crimes mencionados pelo Excelentíssimo Senhor Juiz! (BREVE PAUSA) Pior ainda: o senhor escreveu: (ABRE O DIÁRIO E LÊ)“Somos todos filhos de um molusco, de uma larva, de um verme marinho!”… (FECHA O DIÁRIO) Absurdo dos absurdos! (PATRIOTA) Nós, ingleses, somos todos filhos de Deus Pai-Todo-Poderoso!

CONTINUA INFLAMADO. MÚSICA OU SOM IMPEDE QUE SE OUÇA O QUE DIZ. A LUZ-IMAGINAÇÃO SE APAGA SOBRE O PROMOTOR E PERMANECE SOBRE CHARLES.

GABINETE DE CHARLES DARWIN. SEU ESTADO DE TENSÃO DE AUMENTA AINDA MAIS.

CHARLES DARWIN - (AMEDRONTADO) Titty, vou ser condenado!

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EMMA DARWIN - Condenado a quê?

CHARLES DARWIN - Quanta desgraça pode nos acontecer!…

EMMA DARWIN - Você está se sentindo bem, Charles?

CHARLES DARWIN - (SEM OUVI-LA) Vamos perder tudo o que construímos na vida! Nosso lar! Nossas terras! Nossas propriedades!… Nossos investimentos! Nossas ações!… Tudo!

EMMA DARWIN - Pare com isso, Charles!

CHARLES DARWIN - (COMEÇA A DELIRAR) Preciso proteger você, nossos filhos, nossa família!… Vou ser preso!… Preso!… Preso!... (COMEÇA A SENTIR-SE MAL. ESTÁ A PONTO DE TER NOVA CRISE.) Minha cabeça!… Parece que vai estourar!... Meu estômago!… Que dor!

EMMA DARWIN - (NERVOSA, MAS CONTROLANDO-SE) Charles, pelo amor de Deus, reaja! Reaja, homem! REAJA!… Tire essas coisas ruins da sua cabeça!...

CHARLES DARWIN - (DESESPERADO) Todos os meus colegas cientistas são membros da Igreja Anglicana... Acreditam piamente na Bíblia… Eu nunca disse nada para eles sobre as minhas pesquisas… Vou ter de apresentar minha demissão da vice-presidência da Sociedade Britânica de Geologia...

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Ótimo! Você sempre disse que a Sociedade de Geologia é um clube de velhinhos aposentados que vão lá só para tomar chá...

CHARLES DARWIN - (REMOENDO-SE) Levamos uma vida tão tranqüila e, de repente, tudo desaba… Vamos ser repudiados por todo mundo!…

EMMA DARWIN - (IRRITADA) Pensa que essas suas crises não me abalam? Elas acabam comigo também! Pare de resmungar, homem!

CHARLES DARWIN - Se eu ficar em silêncio, vou explodir! Estou com os nervos em frangalhos…

SILÊNCIO. EMMA TAMBÉM DEIXA-SE INFLUENCIAR. CHARLES SENTA-SE À SUA MESA, DÁ UMA RÁPIDA VISTA DE OLHOS NO ESBOÇO DA TEORIA, INTRODUZ OS PAPÉIS NO ENVELOPE SOBRE O QUAL ESCREVE ALGUMAS PALAVRAS, ASSINA, LEVANTA-SE E ENTREGA-O À ESPOSA.

EMMA DARWIN - (LÊ) “À minha esposa Emma Darwin, para somente ser aberto após a minha morte, conforme o meu mais solene e último desejo.” (PREOCUPADA) Credo! Está pretendendo morrer, Charles?

CHARLES DARWIN - (MUITO ABATIDO) Se eu morrer de repente, quero que esse esboço de minha teoria seja publicado com o título“A Origem das Espécies”.

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EMMA DARWIN - (NERVOSA) Pelo amor de Deus! Você fala como se estivesse morrendo. Tudo por causa daquele agitador que atacou Malthus, a Igreja Anglicana, o governo… É nisso que dá você ficar o tempo todo trancado neste gabinete com suas cracas e não sair pra rua!… Na Inglaterra de hoje, panfletos, comícios e passeatas estão virando rotina…

CHARLES DARWIN MEDITA POR ALGUM TEMPO.

CHARLES DARWIN - (COMO SE O PESO DE SUAS PRÓPRIAS PALAVRAS O ATINGISSE PROFUNDAMENTE) Aquele agitador me fez compreender a real abrangência da minha teoria… Sem dúvida, ela vai colaborar com a abolição dos escravos… Mas vai além, muito além do problema da escravidão… (IRÔNICO, “REMEMORA”, GESTICULANDO O MOMENTO DA CRIAÇÃO DIVINA DO HOMEM) Os canários cegos!… Por milhares de anos, a humanidade acreditou cegamente que Deus criou o homem do barro tal como ele é hoje… Sobre essa crença se assentou toda a base da nossa civilização: a religião, o estado, a ciência, a política, tudo ou quase tudo… Aí aparece um modesto cientista que diz ter as provas de que não é nada disso, que a Providência Divina não intervém na Natureza, que o homem não passa de um verme marinho evoluído, que pode provar cientificamente que todos os seres vivos passam por mutações, evoluem, se transformam… (MUITO TENSO, NUMA ANTEVISÃO) Sinto que a minha teoria revoluciona todo o conhecimento humano…

BREVE PAUSA.

EMMA DARWIN - Charles, você acha que sua teoria vai mudar o mundo?

CHARLES DARWIN - (PENSATIVO) A minha teoria não vai mudar o mundo… Mas vai mudar a forma que o homem vê a si mesmo e ao mundo… E é por isso que ela é perigosa e me preocupa muito…

PAUSA. EMMA OBSERVA O ESTADO DE ESPÍRITO DO MARIDO.

EMMA DARWIN - Do jeito que você fala, assim que a sua teoria for publicada, a rainha Vitória, todas as religiões, o Papa, o Império Britânico, o mundo inteiro vai parar e se voltar contra você…

CHARLES DARWIN - E não vai, Titty?

EMMA DARWIN - Deixe de ser pretensioso, homem!… Você é um grande cientista, mas a sua imaginação é simplesmente prodigiosa!

CHARLES DARWIN - (ABATIDO) Por favor, releia a minha teoria. Se tiver mais alguma observação ou crítica a fazer, depois você me diz…

EMMA DARWIN - (FIRME) Afinal, você vai ou não vai mandar publicar o esboço da sua teoria?

CHARLES DARWIN - (DECIDIDO) Não vou! Ela será publicada somente depois de minha morte… Não posso colocar em risco você e nossa família…

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EMMA DARWIN - (NERVOSA) E quando você pretende morrer? Daqui a uns vinte, trinta anos? (ENTREOLHAM-SE. CONSTRANGIMENTO) E como fica a sua “verdade científica”, Charles? (ELE NÃO RESPONDE) Estou muito decepcionada com o senhor, Mr. Charles Robert Darwin…

CHARLES DARWIN - (ABATIDO) Você tem coragem de dizer uma coisa dessa para mim, Titty?

EMMA DARWIN - (IMITA-O, SARCÁSTICA) “Nada, absolutamente nada, impedirá que eu mande publicar o esboço da minha teoria! Amanhã, o mundo conhecerá a Teoria da Evolução das Espécies ou não me chamo Charles Robert Darwin!… Meu querido marido, como é mesmo o seu nome?

CHARLES DARWIN - Por favor, pare com isso!

BREVE PAUSA.

EMMA DARWIN - Não se preocupe, Charles: amanhã os astros não vão se entrechocar no universo, o mundo não vai se acabar, os mortos não vão ressuscitar… (DESAPONTADA) Amanhã, não vai acontecer nada disso, apenas o meu querido marido, Mr. Charles Robert Darwin, o grande cientista, não irá enviar o esboço de sua teoria das espécies para publicação…

ENTREOLHAM-SE. ELE, ENVERGONHADO, DESVIA O OLHAR.

CHARLES DARWIN - Titty, na sua opinião, a minha teoria está cientificamente correta?

BREVE PAUSA.

EMMA DARWIN - Quase…

A PALAVRA “QUASE” CAUSA-LHE FORTE IMPACTO E, POR UM MOMENTO, CHARLES FICA PARALISADO.

CHARLES DARWIN - (BALBUCIA) Você disse qua… “quase”?

EMMA DARWIN - (SEGURA DE SI) Eu disse que, na minha opinião, a sua teoria está quase cientificamente correta.

CHARLES DARWIN - (RECUPERANDO-SE) Por que “quase”?

EMMA DARWIN - Talvez você tenha resolvido o problema de nossa origem… Mas eu pergunto: para onde vamos? Para o nada?… Existe o nada, Charles? … (DARWIN ESBOÇA RESPONDER) Em outras palavras, você não incluiu Deus atuando na Natureza, pelo menos no momento entre a matéria e a vida… A partir daí, eu posso aceitar toda a sua teoria…

CHARLES DARWIN - Sou um cientista, trabalho com a ciência, não com a religião…

EMMA DARWIN - (ZANGADA) Nem com a política!… Você não pode deixar a política esconder a sua verdade científica!

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CHARLES DARWIN - Se você acha que minha teoria está “quase” cientificamente correta, por que quer que eu a publique?

EMMA DARWIN - Se eu achasse que a sua teoria está completamente errada, eu também iria querer que você a publicasse… Eu poderia perfeitamente estar errada — e prejudicar a Ciência… Pior ainda: eu iria prejudicar a causa da igualdade das raças!… A Teoria da Evolução das Espécies pode até não ser toda a minha verdade, mas ela é a sua verdade científica…

CHARLES DARWIN - (MUITO ABATIDO) Você tem razão… Uma verdade científica não pode ser escondida por nada, muito menos por… por covardia!

EMMA DARWIN - Covardia, Charles?!

CHARLES DARWIN - (CONDOENDO-SE)) Uma “covardia científica”…

EMMA DARWIN - (NERVOSA) Pelo amor de Deus! Você não é nenhum covarde!

DARWIN OBSERVA O MICROSCÓPIO, AS PLANTAS, OS LIVROS, TODO O SEU MUNDO — COMO SE ESTIVESSE A PONTO DE PERDÊ-LO. REFLETEM. CLIMA TENSO.

EMMA DARWN - Eu sei em que, ou melhor, em quem você está pensando...

CHARLES DARWIN - Em quem?

EMMA DARWIN - Em Galileo, que quase morreu queimado pela Inquisição…

CHARLES DARWIN - (IRÓNICO) Você quase acertou, Titty.

EMMA DARWIN - Quase?

CHARLES DARWIN - Eu pensei no grande cientista Leibniz, que condenou a Teoria da Gravitação Universal de Isaac Newton como anti-religiosa e falsa, só prestando para incitar desordens e rebeliões... (REFLETE. CLIMA TENSO. DE REPENTE, ALGO LHE OCORRE. ANIMADO) Eu disse “amanhã”!

EMMA DARWIN - Como “amanhã”?

CHARLES DARWIN - Amanhã!… Eu tenho prazo até amanhã para decidir se mando ou não publicar a minha teoria, se esqueceu? Amanhã!

EMMA DARWIN - Você quer dizer que…

CHARLES DARWIN - Amanhã!... (PAUSA) Agora, mais do que nunca, preciso ouvir um pouco de música…

EMMA DARWIN - Claro, Charles. (ASSOBIA, IMITANDO O CANTO DOS CANÁRIOS)

CHARLES DARWIN - (IRRITADO) Não é dessa música que eu preciso! Pare com isso!

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EMMA DARWIN - Ah, desculpe… Me enganei, meu querido marido!

CHARLES DARWIN - Eu acompanho você até a sala de música.

SAEM. PAUSA. A LUZ GERAL É SUBSTITUÍDA PELA LUZ EM FOCO SOBRE O MICROSCÓPIO, QUE VAI SE APAGANDO LENTAMENTE, ENQUANTO SE OUVE O NOTURNO, OP. 9, 2, EM MI BEMOL MAIOR, DE CHOPIN, TOCADO AO PIANO (COMO JÁ FOI OBSERVADO, A MÚSICA PODE SER OUTRA, DESDE QUE SEJA DE CHOPIN). ANTES QUE A LUZ SE APAGUE NESTE PLANO, ACENDE-SE NO OUTRO.

PEQUENO E POBRE QUARTO. LIVROS ESPALHADOS POR TODA PARTE. UM VELHO E DESBOTADO MICROSCÓPIO SOBRE UMA MESA TOSCA. BARULHO DE TEMPESTADE. LUZ DE VELA. ALFRED RUSSEL WALLACE ESTÁ PESQUISANDO AO MICROSCÓPIO. BARBA POR FAZER E AGASALHADO COM UM SURRADO COBERTOR, SOFRE SINTOMAS DE MALÁRIA: TREME, SUA MUITO E ARFA. MESMO ASSIM, COM MUITA DIFICULDADE, CONTINUA A PESQUISA. PAUSA. SÚBITO, TEM UM “INSIGHT”.

ALFRED R. WALLACE - Exatamente como eu pensava… (OLHA PARA SUAS MÃOS TRÊMULAS E TENTA CONTROLÁ-LAS. IRÔNICO) Vinho... Onde está o vinho? (CAMBALEANTE, APANHA UMA GARRAFA. VAI BEBER NO GARGALO, MAS NOTA QUE ESTÁ VAZIA) Vou comemorar com o quê?… Quinino! (ERGUE O FRASCO DO REMÉDIO E “CONVERSA” COM ELE) Parabéns pela sua grande descoberta científica, Mr. Alfred Russel Wallace!… Obrigado, Dr. Quinino. (IRÔNICO) Por favor, fique à vontade para matar a minha querida amiga malária. (TOMA O REMÉDIO. DEIXA-SE ABATER. ACODE-LHE UMA IDÉIA. VAI À MESA TOSCA E ESCREVE COM DIFICULDADE) “Ternate, Ilhas Molucas, 28 de fevereiro de 1858. Prezado Mr. Charles Robert Darwin”… (SENTE GRANDE RESPEITO POR CHARLES, O QUE DIFICULTA AINDA MAIS O INÍCIO DA CARTA. AMASSA ALGUMAS PÁGINAS) “Desde que iniciamos nossa troca de correspondência, o senhor tem sido muito gentil comigo…”

LUZ NO GABINETE DE DARWIN. O CASAL LÊ A MESMA CARTA.

ALFRED R. WALLACE - (A DARWIN) “Permita-me, então, solicitar o seu especial obséquio de ler o manuscrito em anexo que acabo de escrever… (REFLETE) Trata-se do esboço de uma teoria científica completamente nova, sobre a evolução dos seres vivos… Por isso mesmo, dei ao manuscrito o título de ‘Da Tendência das Variedades se Afastarem Indefinidamente do Tipo Original’… (CHARLES E EMMA ENTREOLHAM-SE, MUITO TENSOS) Se o senhor julgar meu trabalho de algum valor, peço-lhe que o envie a um editor ou a uma revista científica, para sua publicação… Aceite meus humildes agradecimentos. Sinceramente. Alfred Russel Wallace.” (REFLETE. RECOMEÇA A PASSAR MAL. NÃO SE AGÜENTA EM PÉ E SENTA-SE

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NA CADEIRA. A SI MESMO) Será que, pelo menos, ele vai ler?… Será que o meu trabalho realmente tem algum valor? Será que o grande cientista Charles Darwin vai ter algum interesse em meu trabalho? (OBSERVA DARWIN POR INSTANTES)

CHARLES DARWIN - (OLHANDO A CARTA) Todas as minhas pesquisas, a minha carreira, o meu nome, a minha honra… Tudo perdido!

EMMA DARWIN - Calma, Charles, calma…

ALFRED R. WALLACE REFLETE. BARULHO DA TEMPESTADE AUMENTA. A LUZ APAGA-SE NESTE PLANO. O SOM DA TEMPESTADE DIMINUI ATÉ DESAPARECER. EM SEU GABINETE, DARWIN, ATERRADO, OBSERVA A CARTA NA MESA. EMMA, EMBORA TAMBÉM TENSA, CONTROLA-SE.

EMMA DARWIN - Hoje é 18 de junho… A carta é de (LÊ) 28 de fevereiro de 1858… Onde fica Ternate?

CHARLES DARWIN - No outro lado do mundo, na Indonésia… (NUM IMPOTENTE DESESPERO) O que eu faço, Titty? Toda a obra de minha vida está completamente perdida!

EMMA DARWIN - Quem é esse Wallace?

CHARLES DARWIN -(COM CERTO DESPREZO) Não conheço pessoalmente… É um pesquisador inglês que está fazendo pesquisas em Ternate… Recebi algumas cartas de Wallace, muito maçantes… Numa delas, ele escreveu que se considera um “modesto naturalista autodidata”…

EMMA DARWIN - Um naturalista autodidata… como você…

CHARLES DARWIN - (ABATIDO) Se Wallace tivesse lido toda a minha teoria, não teria feito um resumo melhor… Que coincidência incrível! A teoria dele é praticamente igual a minha!… Estou completamente perdido: se eu publicar o meu trabalho agora, vou ser acusado de plágio; se não publicar, Wallace publica e fica com as glórias…

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) As glórias!… São as glórias que te interessam, Charles?

CHARLES DARWIN - (VEEMENTE) Você está me interpretando mal!… Prefiro queimar todos os meus livros que Wallace ou qualquer outra pessoa suspeite ou diga por aí que eu agi como um canalha, como um ladrão de descobertas alheias!… Que desgraça, Titty!…

EMMA DARWIN - Não entendo você, Charles. (IMITA-O) “Minha teoria vai contribuir muito para acabar com essa suprema degradação do ser humano, que é a escravidão… E vai muito além do problema da escravidão… Por milhares de anos, a humanidade acreditou cegamente que…”. Não foi o que você me disse ontem?

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CHARLES DARWIN - (DESAPONTADO) Foi, Titty…Foi…

EMMA DARWIN - (SINCERA) Aí eu achei que você era um… “herói científico”.

CHARLES DARWIN - Eu nunca pretendi ser um herói…

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Mas, depois de ouvir aquele agitador, você ficou aterrorizado com o perigo da sua teoria: ela iria servir de arma para os revolucionários, você iria ser preso, repudiado pelo mundo, nossa família e nossas propriedades estavam em perigo… (VEEMENTE) Agora, essa carta de Wallace fez você esquecer completamente do perigo que imaginou que estava correndo, da escravidão, dos canários cegos, de Heráclito, da Ciência, dos agitadores, da sua doença, do diabo! CHARLES DARWIN - (TRISTE) Titty, eu não me esqueci…

EMMA DARWIN - (INCISIVA) Charles, qual vai ser o resultado dessa tempestade que está aí dentro da sua cabeça?

CHARLES DARWIN - O que eu faço?… Me ajude, pelo amor de Deus!

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Nessa hora você apela para Deus, senhor livre pensador…

CHARLES DARWIN - (EM DESESPERO) Não comece de novo… Você não está notando o meu estado? (AGARRA-SE AO BRAÇO DA ESPOSA) Me ajude!… Nos piores momentos de minha vida, é você quem sempre me socorre… Me ajude, Titty!

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Sou uma dona de casa, uma modesta pianista amadora, como posso salvar o grande Charles Robert Darwin, o maior cientista vivo da Inglaterra?

CHARLES DARWIN - (SINCERO) Você é tudo para mim… Sem a minha Titty, eu não sou nada… nada!

EMMA DARWIN - (COM CONTIDA IRRITAÇÃO) Não gosto de exageros!… Deixe-me pensar, pensar, pensar… Tem de haver uma saída…

CHARLES DARWIN - (DESESPERADO, RUMINANDO) Um dia, a minha descoberta será conhecida no mundo inteiro… As gerações presentes e futuras, de quase todas as nações, estudarão a minha teoria nos livros, nas universidades, nos congressos científicos… Depois de mais de vinte anos de muito trabalho, você acha justo que o meu nome - Darwin! - não seja ligado para sempre à minha teoria?

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Você sempre disse que uma descoberta científica não pertence a ninguém: é um patrimônio da humanidade.

CHARLES DARWIN - Sou absolutamente a favor de que minha teoria se torne um patrimônio da humanidade... desde que o meu nome - DARWIN - seja para

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sempre ligado à minha teoria... Afinal, sou eu, Charles Roberto Darwin, quem está doando este patrimônio científico à humanidade!

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Entendi!... Não precisa explicar mais nada... (O.T.) Me deixe pensar, pensar, pensar... (TENSÃO. DE REPENTE, ELA “EXPLODE”) Achei, Charles! Achei! ACHEI!

CHARLES DARWIN - Achou o quê? O quê?

EMMA DARWIN - (MUITO ANIMADA) A sua saída!… A solução!

CHARLES DARWIN - (ANSIOSO) A solução! Qual é a solução, Titty?

EMMA DARWIN - (SEGURA DE SI) Charles, meu querido marido, você pega o esboço da sua teoria e… (OCORRE-LHE UMA IDÉIA. DETÉM-SE)

CHARLES DARWIN - (NO AUGE DA ANSIEDADE) E?… E?… Diga logo, Titty!

ELA, COM UM QUÊ DE SADISMO, NÃO RESPONDE DE IMEDIATO.

EMMA DARWIN - (MALDOSA) Meu querido marido, só vou dizer qual é a solução do seu problema, se você me responder, com absoluta sinceridade, a duas perguntas…

CHARLES DARWIN - (NERVOSO) É claro que respondo. Vamos logo, Titty!

EMMA DARWIN - (SÉRIA) Jura que você me responderá a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade?

CHARLES DARWIN - (AFLITO) Juro!… Juro!

EMMA DARWIN - Jura por tudo que você acredita de mais sagrado?

CHARLES DARWIN - (SINCERO, SOLENE) Juro pela Ciência!

PAUSA. TENSÃO.

EMMA DARWIN - Charles, o que é mais importante para você: a descoberta científica ou o autor dessa descoberta científica?

CHARLES DARWIN - A descoberta científica, lógico.

EMMA DARWIN - Mr. Charles Robert Darwin, meu querido marido, você está realmente preocupado com a Ciência, com o que a sua teoria representa para a humanidade ou… ou com a sua vaidade em ser o pioneiro, em ter a primazia na criação da “Teoria da Evolução das Espécies”?

ELE, ATINGIDO, NÃO CONSEGUE RESPONDER DE IMEDIATO.

CHARLES DARWIN - (JUSTIFICANDO-SE) Eu… Eu pesquisei muito, trabalhei tanto… mais de vinte anos…

EMMA DARWIN - (IMPLACÁVEL) Com o que você está realmente preocupado? Diga a verdade, Charles!

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CHARLES DARWIN - (FAZENDO ESFORÇO PARA RESPONDER) Estou preocupado com… com a minha vaidade… científica!

DARWIN ELE FICA MUITO DESAPONTADO CONSIGO MESMO.

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) “Vaidade científica”… (CITATIVA) “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Eclesiastes.” (A SI MESMA, NUMA REFLEXÃO, OBSERVANDO O MARIDO) “Tudo é vaidade e vento que passa”... Meu Deus! A vaidade humana supera tudo neste mundo… Tudo!

CHARLES DARWIN - O que você disse, Titty?

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Eu disse que você nunca foi tão sincero em toda a sua vida… (ANIMADA) Você ainda tem aquela carta que o Prof. Asa Gray escreveu para você há uns três anos?

CHARLES DARWIN - Que carta?

EMMA DARWIN - Aquela carta em que o Prof. Gray comentava as primeiras idéias que você estava tendo sobre a evolução, que, naquela época, você chamava de “transmutação”?

CHARLES DARWIN - Você sabe que guardo toda a minha correspondência.

EMMA DARWIN - Ótimo! A Sociedade Linneana de Londres registra todas as descobertas científicas aqui, na Inglaterra... Então você pega os dois esboços da teoria, o seu e o de Wallace, e envia os dois à Sociedade Linneana para leitura e registro — e pronto! Se houver qualquer dúvida sobre a primazia da descoberta, você apresenta publicamente essa carta do Prof. Asa Gray, que é o maior botânico da Inglaterra e tem grande autoridade científica e moral…

CHARLES DARWIN - (SORRI, ALIVIADO) Excelente idéia! Titty, você é a voz do bom senso! (SINCERO) E também é uma esposa maravilhosa! (APROXIMA-SE DELA E A ABRAÇA, AGRADECIDO) A solução é muito simples… Como é que eu não pensei nisso antes? Mandamos os dois trabalhos em conjunto, mais a carta do Prof. Gray e pronto. (O.T.) Sabe, Titty, acho que eu mesmo teria encontrado essa solução…

EMMA DARWIN - (SORRI, IRÔNICA) Ah! Claro que teria… Finalmente descobri qual é a sua maior doença, Charles: a vaidade!

CHARLES DARWIN - (FOGE) As minhas pesquisas estão atrasadas… (VAI AO MICROSCÓPIO. OLHA-A DE SOSLAIO, ENVERGONHADO. TROCAM SORRISOS. SINCERO) Obrigado por tudo, Titty… Você é a rocha em que, nos momentos mais difíceis de minha vida, sempre me apoiei…

EMMA SORRI. DARWIN SIMULA PREPARAR LÂMINAS.

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Charles, quando você enviar os dois esboços da teoria da evolução para a Sociedade Linneana mais a carta do Prof. Gray, não se esqueça de pôr o seu esboço por cima do esboço de Wallace…

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CHARLES DARWIN - (FALSO DESDÉM) Tanto faz o meu esboço em cima do esboço de Wallace, o esboço dele em cima do meu…

EMMA DARWIN - (IRÔNICA) Claro que tanto faz… (SORRI)

DARWIN CONTINUA A PREPARAR AS LÂMINAS. OCORRE-LHE UMA IDÉIA. ELE APROXIMA-SE DELA, ABRAÇANDO-A DISCRETA E AFETUOSAMENTE.

CHARLES DARWIN - (TOMANDO A MÃO DA ESPOSA) Vamos, Titty... Vamos dar um passeio.

EMMA DARWIN - (SURPRESA) Passeio?!… Para onde?

CHARLES DARWIN - Vamos ao nosso jardim, visitar as nossas flores...

EMMA E CHARLES TROCAM AFETUOSO SORRISO. VÃO SAINDO. A LUZ, LENTAMENTE, ACENDE-SE NO OUTRO PLANO.

CHARLES DARWIN - Nunca me senti tão bem em toda minha vida... (OFF) Você não disse que as nossas orquídeas estão com saudades de mim, Titty?

EMMA DARWIN - (OFF) As nossas orquídeas estão com saudades de nós, Charles... de nós...

A LUZ APAGA-SE NESTE PLANO E ACENDE-SE NO OUTRO. QUARTO DE ALFRED WALLACE, AGORA UM POUCO ARRUMADO. VESTE UM TERNO SURRADO, MAS DE CERTA DIGNIDADE. SUA APARÊNCIA É RAZOÁVEL. HÁ UMA MALA DE VIAGEM NO CHÃO.

ALFRED R. WALLACE - (TÍMIDO, CHAMANDO) Mr. Charles Robert Darwin…

CHARLES DARWIN - (SEM NENHUMA SURPRESA, OLHANDO PARA ALFRED R. WALLACE) Pois não, Mr. Alfred Russel Wallace.

ALFRED R. WALLACE - Não se preocupe. Reconheço plenamente a sua primazia na criação da Teoria da Evolução das Espécies.

CHARLES DARWIN - Sou grato pelo seu reconhecimento. Ainda não nos conhecemos pessoalmente, mas vejo que o senhor é uma pessoa generosa.

ALFRED R. WALLACE - Desculpe, Mr. Darwin: não se trata de nenhuma generosidade. Sempre pensei que o mais importante numa descoberta científica é o progresso da Ciência e não o nome de quem faz essa descoberta.

CHARLES DARWIN - (EMBARAÇADO, MENTE) A minha opinião coincide exatamente com a sua, Mr. Wallace.

ALFRED R. WALLACE - (SINCERO) Confesso que me considero um homem “cientificamente muito vaidoso”. Vou sempre ter a vaidade de poder dizer a mim mesmo: “Sou o segundo violino da Teoria da Evolução das Espécies!” Ninguém mais no mundo poderá se orgulhar disso… (A SI MESMO,

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ORGULHOSO) No futuro, muita gente vai conhecer a teoria como “Teoria da Evolução das Espécies Darwin-Wallace”…

CHARLES DARWIN - (INCOMODADO, MAS DISFARÇANDO) Teoria da Evolução das Espécies Darwin-Wallace… Um belo título para a ... nossa teoria...

ALFRED R. WALLACE - (SEM NOTAR) Estou voltando hoje para a Inglaterra. Gostaria muito de conhecê-lo pessoalmente. (HESITA) Será que o senhor poderá me receber em sua casa em Down, para uma breve visita, quando eu voltar à Inglaterra daqui a um mês?

CHARLES DARWIN - (SINCERO) Será uma grande honra, Mr. Wallace.

ALFRED R. WALLACE - A honra será minha, Mr. Darwin.

TROCAM EDUCADO ACENO. COMEÇAM A SE APRONTAR, FAZENDO QUASE AS MESMAS COISAS. APRESSAM-SE. ALFRED WALLACE OLHA-SE NUM ESPELHO QUEBRADO, PENTEIA-SE E AJEITA A GRAVATA, APANHA A MALA E SEGUE PARA O OUTRO PLANO.

CHARLES DARWIN - Seja bem-vindo. Mr. Alfred Russel Wallace, eu presumo?

ALFRED R.WALLACE - É uma honra conhecer o senhor pessoalmente, Mr. Charles Robert Darwin.

CHARLES DARWIN - A honra é minha. Por favor, fique à vontade. Esta modesta casa é sua…

TROCAM SORRISOS, ESTENDEM A MÃO E “CONGELAM-SE”. TRECHO DO NOTURNO DE CHOPIN, AO PIANO. A LUZ ACENDE-SE SOBRE O PRESIDENTE THOMAS BELL QUE SE DIRIGE-SE AO PÚBLICO, COMO SE ESTE FOSSE O CORPO ASSOCIATIVO DA ENTIDADE.

THOMAS BELL - Senhores e senhoras, a Real Sociedade Linneana de Londres, neste ano da graça de 1858, acaba de registrar dois esboços de uma mesma teoria científica: o primeiro esboço, de Mr. Charles Robert Darwin, e o segundo, de Mr. Alfred Russel Wallace. Como Presidente desta Real Sociedade, eu, Thomas Bell, lamento informar aos nossos associados e ao público em geral que esses dois esboços, embora muito bem elaborados, não podem ser incluídos entre as descobertas admiráveis que revolucionam a Ciência ou que, pelo menos, tenham algum real interesse científico.

A LUZ SE APAGA SOBRE ELE E ACENDE-SE NO GABINETE DE CHARLES, QUE PESQUISA AO MICROSCÓPIO.

EMMA DARWIN - (ENTRA COM UMA CARTA ABERTA E UM PACOTINHO NAS MÃOS) Chegou, Charles!… Finalmente, chegou!

CHARLES DARWIN - Chegou o quê, Titty?

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EMMA DARWIN - O comunicado oficial da Sociedade Linneana. (PASSA-LHE ENVELOPE). Também chegaram as lentes suecas… (ABRE O PACOTINHO E VAI TROCAR AS LENTES) Como é que você consegue pesquisar neste microscópio todo empoeirado? (COMEÇA A LIMPÁ-LO)

CHARLES DARWIN - (LENDO) “… lamento informar aos nossos associados e ao público em geral que esses dois esboços, embora muito bem elaborados, não podem ser incluídos… (SUSPIRA PENSATIVO. EMMA PÁRA DE LIMPAR O MICROSCÓPIO E OBSERVA O MARIDO COM CARINHO.)

CHARLES DARWIN - Que mentalidade atrasada! Às vezes, penso que estamos em plena Idade Média… (NUMA REFLETIDA PREVISÃO) Num futuro não muito distante, o mundo será governado pela Ciência… (COM CRESCENTE ENTUSIASMO) Não haverá limites para o conhecimento… A Ciência dará resposta a todos os grandes enigmas da natureza e da vida…

EMMA DARWIN - (EM DÚVIDA) A Ciência dará resposta a todos os grandes enigmas da natureza e da vida… (EM TOM BAIXO, A SI MESMA, REFLETINDO) Quem somos afinal? De onde viemos? Para onde vamos?

CHARLES DARWIN - (COM PROFUNDA CONVICÇÃO) A Ciência trará extraordinário progresso material, intelectual e espiritual para a humanidade… Será um mundo maravilhoso de compreensão, harmonia e paz entre os povos… (NUMA PROFISSÃO DE FÉ) Sou profundamente otimista e não tenho nenhuma dúvida de que a Ciência proporcionará felicidade ao ser humano…

EMMA DARWIN - (SORRI. COM UM QUÊ DE CETICISMO) Será um mundo maravilhoso de compreensão, harmonia e paz entre os povos... A Ciência proporcionará felicidade ao ser humano…

CHARLES DARWIN - Tenho absoluta certeza disso!

REFLETEM. OUVE-SE MÚSICA DE CHOPIN, TOCADA AO PIANO OU O ALEGRE CANTO DOS CANÁRIOS, ENQUANTO AS LUZES SE APAGAM LENTAMENTE.

EMMA DARWIN - (VOZ “OFF”, CÉTICA) A Ciência proporcionará felicidade ao ser humano... (VOZ OFF, REFLEXIVA) Quem somos afinal?… De onde viemos?… Para onde vamos?... (NUM TOM MAIS BAIXO) Quem somos afinal?... De onde viemos?... Para onde...

A VOZ DE EMMA DARWIN RESSOA EM ECO DIVERSAS VEZES ATÉ DESAPARECER...

F I M

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MURILO DIAS CÉSAR

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