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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 249
Palestra proferida no Seminário realizado em14.06.2002.1 A autora agradece o gentil convite do DesembargadorSergio Cavalieri e as interessantes reflexões do deba-te, realizado em tão boa hora na EMERJ. A forma oralfoi preservada, con adição de textos e notas.2 Veja, por todos, TEPEDINO, Gustavo (Coord.), Direi-to Civil-Constitucional, Renovar, Rio de Janeiro,2001, p. 11 e 12: �as cláusulas gerais que, previstaspelo legislador contemporâneo, no Código de Defesado Consumidor..., vêm sendo amplamente utilizadaspelos operadores. Recupera-se, então, o papel da ju-risprudência e da doutrina...�3 Veja decisão do TJRS, APC 70000037408, j.18.10.2000, Des. Paulo Augusto Monte Lopes, 16ª Câm.Cível.: �Em qualquer negócio, seja qual for a natureza,seja qual for o regime jurídico aplicável, o direito prote-ge a boa-fé. Proteger a boa-fé significa preservar oscontratantes de artimanhas e subterfúgios. Como o con-trato é lei entre as partes, e uma delas pode � por suavulnerabilidade ou hipossuficiência diante da outra �ter assinado o instrumento sem compreender por com-pleto tudo o que nele se dispôs ou mesmo por vício, odireito ampara os interesses desse contratante fazendoprevalecer sobre a literalidade do contrato os reais obje-tivos pretendidos na contratação.� (p. 4 do original)
A boa-fé (Treu und Glauben)1
deve estar presente em todas as rela-ções contratuais, de consumo, civis eentre empresários. Nesta Escola Supe-rior da Magistratura, gostaria derelembrar que o tema da boa-fé tem ín-tima relação com a sua construção pelaJurisprudência (Richterrecht).2 Assim,antes de que o princípio da boa-fé incidaainda com mais força no Brasil, atravésdo novo Código Civil, gostaria de teceralgumas observações sobre a boa-fé noCódigo de Defesa do consumidor, tendocomo base a pesquisa jurisprudencialque realizamos no TJ/RS sobre o uso doprincípio da boa-fé de 1991 a 2001.3
O Código de Defesa do Consumi-dor (CDC) está em vigor a mais de 10anos no Brasil, com seus princípiosde boa-fé e equilíbrio nas relaçõescontratuais de consumo e pode servir demanancial de jurisprudência, inclusivepara a aplicação do novo Código Civil, Lei10.406/2002 (a seguir CC/2002).
Das Cláusulas Abusivas e o Código Civil
CCCCCLÁUDIALÁUDIALÁUDIALÁUDIALÁUDIA L L L L LIMAIMAIMAIMAIMA M M M M MARQUESARQUESARQUESARQUESARQUES
Professora da Universidade do Rio Grande do Sul
A pesquisa na jurisprudência doTribunal de Justiça do Rio Grande doSul, cujo foco da análise foi a utilizaçãodo princípio da boa-fé, levantou as deci-sões de março de 1991, quando o Códigoentrou em vigor, até agosto de 2001, ana-lisando estes mais de dez anos do Códi-go de Defesa do Consumidor na prática.O resultado da pesquisa foi o seguinte:encontramos 2.779 decisões, que utili-zam o princípio da boa-fé. O mais inte-ressante foi a evolução dessa aplicação�massificada� do princípio da boa-fé. Em1991, apenas cinco decisões usavam oreferido princípio, sendo que dessas cin-co, duas delas utilizavam-no ainda numavisão subjetiva: a má-fé ou a boa-fé doindivíduo naquele contrato específico ounaquela relação da vida.4
Já em 2001, pelo menos até agos-to, encontramos 72 decisões usando oprincípio da boa-fé, sendo que 55 das 72citavam expressamente os princípios eas normas do Código de Defesa do Con-sumidor, demonstrando que o juiz bra-sileiro tem muito mais facilidade quan-do a lei expressamente prevê a possibi-lidade de uma decisão aberta, atravésde uma cláusula geral. As cláusulas ge-rais do CDC permitem que o magistradoutilize a boa-fé ou mesmo, excepcional-mente, a eqüidade, a revisão dos con-tratos por onerosidade excessiva, figu-ras agora presentes no CC/2002.
Em outras palavras, não se digaque o magistrado brasileiro tende aoexagero ou a não aplicação das cláusu-las gerais. Quando a norma e seu man-dato de concretização da justiçacontratual são claros, o juiz brasileirorealmente atende a essa idéia e a apli-
4 Veja detalhes sobre esta pesquisa em meu livro, Con-tratos no Código de Defesa do Consumidor, 4ªed.,RT, São Paulo, 2002, p. 175 e seg.
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ca. Em nosso levantamento, 55 decisõesexpressamente se baseavam nas normasdo Código de Defesa do Consumidor, eem seus princípios. Dentre os princípiosmais citados nestes 55 casos estão: oprincípio da função social do contrato (16casos), o princípio da eqüidade contratual(16 casos). O mais interessante é quedesses cinqüenta e cinco casos que ci-tam o Código de Defesa do Consumidor,em trinta e sete, a decisão foi a favordos consumidores, mas em 17 casos oconsumidor não obteve ganho de causa,a demonstrar que o princípio da boa-fé,ou a valoração através do princípio daboa-fé não significa um ganho de causapara o consumidor em cem por cento doscasos. O importante aqui é a procu-ra da just iça no caso concreto(Vetragsgerechtigkeit). A concretizaçãoda boa-fé é, pois, um instrumento válidoe útil para a procura da Justiça no casoconcreto ou aequitas.
Como ensina o Prof. Paulo NetoLobo, o princípio da boa-fé objetiva vemrefuncionalizado no Direito do Consumi-dor, otimizado na sua dimensão de cláu-sula geral, e assim serve de parâmetrode validade dos contratos de consumo,principalmente para as condições geraisde consumo e os contratos de adesão,hoje também regulados, se puramentecivis ou puramente empresariais no CC/2002, que unifica as regras sobre obriga-ções civis e comerciais.
Parece-me que essa experiênciaque tivemos de dez anos de Código deDefesa do Consumidor pode nos ajudar,agora, a imaginar essa revolução do con-trato, essa sociabilização da teoriacontratual tão mencionada. O uso doCódigo de Defesa do Consumidor comoparâmetro, como oxigenação do DireitoCivil foi muito comum, tendo sido atémesmo mencionado em decisões peloMinistro Ruy Rosado de Aguiar. No REsp.n° 80036, de 25.03.96, ao explicar estasurpreendente �oxigenação� (expressãodo também magistrado Antônio JanyrDall�Agnol), que o CDC pôde realizar noDireito Civil clássico, o Min. Ruy Rosadode Aguiar ensina: �O Código de Defesa
do Consumidor traça regras que prescindem
a situação específica de consumo, além dis-
so define princípios gerais orientadores do
Direito das Obrigações. Na teoria dos siste-
mas, é um caso estranho, a lei do
microssistema enunciar princípios gerais
para o sistema como um todo, mas isto é o
que está acontecendo no caso, por várias
razões, mas principalmente porque a nova
lei incorporou ao ordenamento civil legisla-
do normas que expressam o desenvolvimen-
to do mundo dos negócios e o atual estado
da ciência, introduzindo na relação
obrigacional a idéia de justiça contratual, da
equivalência das prestações e da boa-fé.� 5
Então, de um lado, temos a expe-riência de dez anos de aplicação do CDCe de sua cláusula geral de boa-fé e deoutro lado, essa pergunta: o que mudano Direito civil em matéria de cláusulasabusivas, com a entrada em vigor do Có-digo Civil de 2002, mesmo frente ao pró-prio Código de Defesa do Consumidor?
Para bem responder esta per-gunta gostaria de dividir minha expo-sição em duas partes, uma mais teó-rica analisando o �diálogo� das fonteslegislativas novas e velhas, isto é, os�diálogos� possíveis entre o CDC e o CC/2002, para em uma segunda concen-trar-me em um destes diálogos possí-veis, o de influências recíprocas, ondea jurisprudência brasileira já desen-volvida sobre as funções da boa-fé ob-jetiva, podem nos ajudar a enten-der como se dará este diálogo, artigopor artigo do CC/2002.
I � Os �diálogos� possíveis entre o CDCe o CC/2002: a superação do �conflito�pelo �diálogo� entre fontes
Segundo o § 2.o do art. 2.o da LICC,a lei nova, que estabeleça disposiçõesgerais �a par das já existentes�, como oCC/2002, �não revoga nem modifica alei anterior�, no caso, o CDC. Segundoo § 1.o do art. 2.o da LICC, a lei poste-rior revogará a anterior quando: 1) ex-pressamente o declare; 2) regule in-
5 Assim, Min. Ruy Rosado de Aguiar, in voto no Resp.80.036, Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 25.03.1996.
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teiramente a matéria de que tratava aanterior; 3) seja com ela incompatível.
Os dois primeiros casos não pa-recem ocorrer na prática; nem o CC/2002 revogou expressamente o CDC,nem tratou da relação de consumo ouincorporou normas sobre as �relaçõesde consumo�, e entre as duas leis háuma divergência fundamental de cam-po de aplicação subjetiva. Uma é leiespecial anterior e hierarquicamentesuperior outra, o CC/2002, é lei geralposterior, lei entre iguais. O CDC umalei especial voltada para a equidade(aequitas), já o CC/2002 é uma leivoltada para a igualdade geral(aequalitas),6 tanto que unifica as re-gras sobre obrigações civis e comerci-ais, mas não regula as relações de con-sumo (relações entre diferentes, umexpert, o fornecedor e outro leigo ouvulnerável, o consumidor).
A) A idéia de �diálogo das fontes�legislativas a superar a idéia de �con-flito� entre leis
Em seu curso Geral de Haia de1995, o mestre de Heidelberg, ErikJayme, ensinava que, face ao atual�pluralismo pós-moderno� de um Direitocom fontes legislativas plúrimas, ressur-ge a necessidade de coordenação entreas leis no mesmo ordenamento, comoexigência para um sistema jurídico efi-ciente e justo.7 Efetivamente, cada vezmais se legisla, nacional e internacio-nalmente, sobre temas convergentes. Apluralidade de leis é o primeiro desafiodo aplicador da lei contemporâneo. Aexpressão usada comumente era a deconflitos de leis no tempo8 , a significar quehaveria uma �colisão� ou conflito entre oscampos de aplicação destas leis. Assim, por
exemplo, uma lei anterior, como o Códigode Defesa do Consumidor de 1990 e umalei posterior, como o novo Código Civil Bra-sileiro de 2002, estariam em �conflito�, daía necessária �solução� do �conflito� atravésda prevalência de uma lei sobre a outra ea conseqüente exclusão da outra do siste-ma (ab-rogação, derrogação, revogação).
Em outras palavras, nesta visão�perfeita� ou �moderna�, teríamos a �Tese�(lei antiga), a �antítese� (lei nova) e aconseqüente síntese (a revogação), a tra-zer clareza e certeza ao sistema (jurí-dico). Os critérios para resolver os con-flitos de leis no tempo seriam assim ape-nas três: anterioridade, especialidade ehierarquia, a priorizar-se, segundoBobbio, a hierarquia.9 A doutrina atua-lizada, porém, está a procura hoje maisda harmonia e da coordenação entre asnormas do ordenamento jurídico (con-cebido como sistema),10 do que da ex-clusão. É a denominada �coerência de-rivada ou restaurada� (cohérencedérivée ou restaurée),11 que em ummomento posterior a decodificação, atópica e a micro-recodificação,12 procu-ra uma eficiência não só hierárquica,13
mas funcional14 do sistema plural e com-plexo de nosso direito contemporâneo,15
6 BERTHIAU, Denis, Le principe d�égalité et le droitcivil des contrats, L.G.D.J., Paris, 1999, p. 3 e seg.7 JAYME, Erik, �Identité culturelle et intégration: Le droit
internationale privé postmoderne� - in: Recueil desCours de l� Académie de Droit International de laHaye, 1995, II, p. 60 e p. 251 e seg.8 Preferível é a expressão neutra Direito intertemporal,já usada por FRANÇA, R. Limogi, DireitoIntertemporal Brasileiro, 2. Ed., Revista dos Tribu-nais, São Paulo, 1968, p. 9 e seg.
9 Veja BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurí-dico, Ed. Pollis/Universidade de Brasília, S. Paulo,Brasília, 1990, P. 92 e BOBBIO, Norberto, �Des critèrespour résoudre les antinomies�, in PERELMAN, CH.(Coord.), Les antinomies en Droit, Bruxelas, Ed.Bruylant, 1965, p. 255.10 Veja SAUPHANOR, Nathalie, L�Influence du Droitde la Consommation sur le système juridique, Pa-ris, LGDJ, 2000, p. 23 a 32.11 Expressão de SAUPHANOR, p. 32.12 Mencione-se aqui que a sempre citada obra deCANARIS, Claus-Wilhelm, Pensamento sistemáticoe conceito de Sistema do Direito, Gulbelkian, Lis-boa, 1989, constroi sua idéia de sistema justamentecriticando a tópica, p. 255 e seg. Sobre tópica vejaWIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência, trad.Tércio S. Ferraz Jr., Brasília, Departamento de Impren-sa Nacional, MJ-UnB, 1979.13 Veja sobre a crise ou neutralização do critério da hie-rarquia e a utilização de outros critérios, GANNAGÉ, Léna,La hiérarchie des normes et les méthodes du droitinternational privé, LGDJ, Paris, 2001, p. 25 e 26.14 SAUPHANOR, p. 30.15 Veja sobre a necessidade de �coordinamento con altredisposizioni� do Código Civil e das leis especiais deproteção do consumidor, ALPA, Guido et allii, La dis-ciplina generale dei contratti, 8. ed., GiappichelliEd. Torino, 2001 , p. 613 e seg.
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a evitar a �antinomia�, a �incompatibili-dade� ou a �não-coerência�.16
Costumava-se afirmar, quanto aotipo de conflitos de leis no tempo, quepoderiam existir: �conflitos de princípi-os� (diferentes princípios presentes emdiferentes leis em conflito), �conflitos denormas� (conflitos entre normas de duasleis, conflitos �reais� ou �aparentes�, con-forme o resultado da interpretação queo aplicador das leis retirasse), e�antinomias� (conflitos �pontuais� da con-vergência eventual e parcial do campode aplicação de duas normas no caso con-creto).17
Erik Jayme18 alerta-nos que ostempos pós-modernos, onde apluralidade, a complexidade, a distinçãoimpositiva dos direitos humanos e dodroit à la différence (direito a ser dife-rente e ser tratado diferentemente, semnecessidade mais de ser �igual� aos ou-tros) não mais permitem este tipo de cla-reza ou de �mono-solução�. A solução sis-temática pós-moderna deve ser mais flu-ída, mais flexível, a permitir maior mo-bilidade e fineza de distinções. Nestestempos, a superação de paradigmas ésubstituída pela convivência dos
paradigmas,19 a revogação expressa pelaincerteza da revogação tácita indiretaatravés da incorporação (veja Art. 2.043do novo Código Civil), há por fim a con-vivência de leis com campos de aplica-ção diferentes, campos por vezes con-vergentes e, em geral diferentes, em ummesmo sistema jurídico, que parece seragora um sistema (para sempre) plural,fluído, mutável e complexo.20 Não deixade ser um paradoxo que o �sistema�, otodo construído, seja agora plural... 21
O grande mestre de Heidelbergpropõe então a convivência de uma se-gunda solução ao lado da tradicional: acoordenação destas fontes.22 Uma co-ordenação flexível e útil (effet utile) dasnormas em conflito no sistema a fim derestabelecer a sua coerência, isto é,uma mudança de paradigma: da retira-da simples (revogação) de uma das nor-mas em conflito do sistema jurídico (oudo �monólogo� de uma só norma possívela �comunicar� a solução justa), à convi-vência destas normas, ao diálogo dasnormas para alcançar a sua ratio, afinalidade �narrada� ou �comunicada�em ambas.
Na belíssima expressão de ErikJayme, é o atual e necessário �diálogodas fontes� (dialogue de sources),23 apermitir a aplicação simultânea, coeren-te e coordenada das plurímas fonteslegislativas convergentes.24 �Diálogo�porque há influências recíprocas, �diálo-go� porque há aplicação conjunta dasduas normas ao mesmo tempo e ao mes-
16 SAUPHANOR, p. 31.17 Veja detalhes em meu livro, Contratos no Códigode Defesa do Consumidor, RT, São Paulo, 2002, p.515 e seg.18 JAYME, Recueil des Cours, p. 60 e p. 251.19 GANNAGÉ, p. 17.20 Do grande mestre da USP, vem a expressão sistemahiper-complexo, veja AZEVEDO, Antonio Junqueira de,�O Direito pós-moderno e a codificação�, in RevistaDireito do Consumidor, v. 33 (2000), p. 124 e seg.21 Veja a favor do pluralismo jurídico a bela análise deBELLEY, Jean-guy, �Le pluralisme juridique commedoctrine de la science du droit�, in Pour un Droit
22 JAYME, Recueil des Cours, 251 (1995), p. 60.23 JAYME, Recueil des Cours, 251 (1995), p. 259:�Dès lors que l�on évoque la communication en droit
international privé, le phénomène le plus important est le
fait que la solution des conflits de lois émerge comme
résultat d�un dialogue entre les sources le plus
hétérogènes. Les droit de l�homme, les constitutions, les
conventions internationales, les systèmes nationaux:
toutes ces sources ne s�excluent pas mutuellement; elles
�parlent� l�une à l�autre. Les juges sont tenus de coordonner
ces sources en écoutant ce qu�elles disent.�24 Como ensina SAUPHANOR, p. 31, em direito, a au-sência de coerência consiste na constatação de umaantinomia, definida como a existência de uma incom-patibilidade entre as diretivas relativas ao mesmo ob-jeto. No original: �En droit, l�absence de cohérence con-
siste dans la constatation d�une antinomie, définie comme
l�existence d�une incompatilité entre les directives relatives
à un même objet.�
Pluriel-Etudes offertes au professeur Jean-FrançoisPerrin, Helbing & Lichtenhahn, Genbra, 2002, p.135 e seg. O autor constata a pouca tolerância quetemos para o plural e cita expressamente Perrin (�Lesrelations entre la loi et les règles de la bonne foi:collaboration ou conflit internormatif�?, p. 42, nota 4 ),BELLEY, p. 136: La théorie du droit doit assumer souvent
la délicate mission d�exprimer en termes généraux ce qui
se pratique déjà légitimement mais silencieusement. Le
discours pluraliste n�est pas encore maîtrisé. Le dire fait
plus peur que le faire.� No Brasil, veja Fachin, Luiz Ed-son, �Transformações do direito civil brasileiro con-temporâneo�, in Diálogos sobre Direito Civil-Cons-truindo a Racionalidade Contemporânea, Org.. Car-men Lucia Ramos, Gustavo Tepedino et alii, Renovar,Rio de Janeiro, 2002, p. 43.
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mo caso, seja complementariamente,25
seja subsidiariamente,26 seja permitin-do a opção voluntária das partes sobre afonte prevalente (especialmente emmatéria de convenções internacionais eleis modelos)27 ou mesmo permitindouma opção por uma das leis em conflitoabstrato.28 Uma solução flexível e aber-ta, de interpenetração ou mesmo a so-lução mais favorável ao mais fraco darelação (tratamento diferente dos dife-rentes).
Aceitando a definição de sistemade direito, consolidada por NatalieSauphanor, como �um todo estruturado
hierarquicamente�29 e funcionalmente,30
visto hoje como �um complexo de elemen-tos em interação�31 �coerentes� ou �orgâ-nicos�,32 de �normas, princípios e juris-prudência�,33 parece importante frisaresta visão sistemática do ordenamentojurídico, como um �conjunto de elemen-tos diversos cuja organização e interaçãofornece a todo a ordem jurídica positivareconhecida como tal os meios para al-cançar sua coerência e seu funciona-mento�.34
Por fim, repita-se que o novo Có-digo Civil Brasileiro, Lei 10.406 de 10de janeiro de 2002, traz ao direito priva-do brasileiro geral os mesmos princípiosjá presentes no Código de Defesa do Con-sumidor (como a função social dos con-tratos,35 a boa-fé objetiva36 etc.). Real-mente, a convergência de princípios en-tre o CDC e o CC/2002 é a base dainexistência principiológica de conflitospossíveis entre estas duas leis que, comigualdade ou equidade, visam a harmo-nia nas relações, civis em geral e nasde consumo ou especiais. Como ensinaa Min. Eliana Calmon: �O Código de De-fesa do Consumidor é diploma legislativoque já se amolda aos novos postulados,inscritos como princípios éticos, taiscomo, boa-fé, lealdade, cooperação, equi-líbrio e harmonia das relações.�37
B) Os três tipos de diálogos possíveisentre o CDC e o CC/2002 e a aplicaçãosubsidiária do CC/2002 em relação àsrelações de consumo
Seguindo os ensinamentos de meucaro mestre alemão, Erik Jayme, cabe
25 Veja sobre a aplicação simultânea de várias leis, oCC, o CDC e inclusive as leis administrativas sobre oSFH, duas recentes decisões do STJ. Na bela decisãono Resp. 436.815-DF, Min. Nancy Andrighi, j.17.12.2002, DJ 28.10.2002, a ementa ensina: �Pro-cessual. Civil....Contrato de compra e venda de imóvele financiamento. SFH. Aplicação do Código de Defesado Consumidor. empréstimo concedido por associaçãoao associado. Deve ser afastada a aplicação da cláusu-la que prevê foro de eleição diverso do domicílio dodevedor em contrato de compra e venda de imóvel efinanciamento regido pelo Sistema Financeiro da Ha-bitação, quando importar em prejuízo de sua defesa.Há relação de consumo entre o agente financeiro doSFH, que concede empréstimo para aquisição de casaprópria, e o mutuário...� E a igualmente bela decisãodo Resp. 387.581-RS, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j.21.05.2002, cuja ementa ensina: �Cartão de crédito.Prestação de contas. Mandato. A administradora deveprestar contas sobre o modo pelo qual exerce o manda-to que lhe concedeu o usuário para obter financiamen-to no mercado a fim de financiar as vendas a prazo.Código Civil e Código de Defesa do Consumidor.�26 Veja aplicação simultânea e subsidiária do CDC,como lei geral, face à existência de lei especial sobreprêmios, na jurisprudência do STJ: �Publicidade. Con-curso. Prêmio. Numeração ilegível. Código de Defesado Consumidor...O sistema do CDC, que incide nessarelação de consumo, não permite à fornecedora - quese beneficia com a publicidade � exonerar-se do cum-primento da sua promessa apenas porque a numera-ção que ela mesma imprimiu é defeituosa. A regra doArt. 17 do Dec. 70.951/72 apenas regula a hipóteseem que o defeito tiver sido comprovodamente causadopelo consumidor.� (STJ, Resp. 396.943-RJ, Min. RuyRosado de aguiar, j. 02.05.2002, DJ 05.08.2002)27 Veja por exemplo o artigo 1 do Tratado de Olivos doMercosul, o qual prevê a opção possível pelo sistema desolução de controvérsias do Mercosur ou de outro forum
international (como a OMC etc.) e a prevalência da fon-te escolhida pelas partes em conflito. Veja ARAÚJO,Nádia, �Dispute resolution in Mercosur: The Protocolof Las Leñas and the case law of the Brazilian SupremeCourt�,in Inter-american Law Review (University ofMiami), Winter-Spring 2001, v. 32, nr. 1, p. 25-56.28 Veja sobre o tema a obra de BRIERE, Carine, Lesconflits de conventions internationales en droitprivé, LGDJ, Paris, 2001,em especial, p. 266 e seg.
29 SAUPHANOR, p. 23.30 SAUPHANOR, p. 30.31 SAUPHANOR, p. 24.32 SAUPHANOR, p. 27.33 SAUPHANOR, p. 28.34 SAUPHANOR, p. 32.35 Assim o texto aprovado: �Art. 421. A liberdade decontratar será exercida em razão e nos limites da fun-ção social do contrato�.36 Assim o texto aprovado: �Art. 422. Os contratantes sãoobrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, comoem sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.�37 CALMON, Eliana, �As gerações dos direitos e asnovas tendências�, in Revista direito do Cosumidor,v. 39 (jul.-set. 2001), p. 45.
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agora refletir quais seriam os �diálogos�possíveis entre o Código de Defesa doConsumidor-CDC, como lei anterior, es-pecial e hierarquicamente constitucio-nal (veja mandamento expresso sobresua criação no sistema jurídico brasi-leiro no Art. 48 ADCT/CF 1988 e comoincluído entre os direitos fundamentais,Art. 5, XXXII da CF/88)38 e o novo Códi-go Civil, Lei 10.406/2002, que entrou emvigor em janeiro de 2003, como lei pos-terior, geral e hierarquicamente inferi-or, mas trazendo algumas normas deordem pública, que a lei nova mesmaconsidera de aplicação imperativa a con-tratos novos e antigos (veja art. 2035,parágrafo único da Lei 10.406/2002).
Em minha visão atual, três são ostipos de �diálogo� possíveis entre estasduas importantíssimas leis da vida pri-vada:
1) na aplicação simultânea dasduas leis, uma lei pode servir de baseconceitual para a outra (diálogo sistemá-
tico de coerência), especialmente se umalei é geral e a outra especial; se uma éa lei central do sistema39 e a outra ummicrossistema específico,40 não-comple-to materialmente, apenas com com-pletude subjetiva de tutela de um grupoda sociedade. Assim, por exemplo, o queé nulidade, o que é pessoa jurídica, oque é prova, decadência, prescrição eassim por diante, se conceitos não defi-nidos no microssistema (como vêm defi-nidos consumidor, fornecedor, serviço eproduto nos Art. 2,17,29 e 3 do CDC),terão sua definição atualizada pelo en-trada em vigor do CC/2002;
2) na aplicação coordenada dasduas leis, uma lei pode complementar aaplicação da outra, a depender de seu
campo de aplicação no caso concreto (di-
álogo sistemático de complementariedade e
subsidiariedade em antinomias aparen-tes ou reais), a indicar a aplicação com-plementar tanto de suas normas, quan-to de seus princípios, no que couber, noque for necessário ou subsidiariamente.Assim, por exemplo, as cláusulas geraisde uma lei podem encontrar uso subsi-diário ou complementar em caso regu-lado pela outra lei. Subsidiariamente osistema geral de responsabilidade civilsem culpa ou o sistema geral de deca-dência podem ser usados para regularaspectos de casos de consumo, se tra-zem normas mais favoráveis ao consu-midor. Este �diálogo� é exatamente con-traposto, ou no sentido contrário da re-vogação ou ab-rogação clássicas, em queuma lei era �superada� e �retirada� do sis-tema pela outra. Agora há escolha (pelolegislador, veja art. 777,41 72142 e 73243
da Lei 10.406/2002, ou pelo juiz no casoconcreto do favor debilis do Art. 7 doCDC) daquela que vai �complementar� aratio da outra (veja também art. 72944
da Lei 10.406/2002 sobre aplicação con-junta das leis comerciais);
3) há o diálogo das influências re-cíprocas sistemáticas, como no caso deuma possível redefinição do campo deaplicação de uma lei (assim, por exem-plo, as definições de consumidor strictosensu e de consumidor equiparado po-dem sofrer influências finalísticas donovo Código Civil, uma vez que esta leinova vem justamente para regular asrelações entre iguais, dois iguais-con-sumidores ou dois iguais-fornecedores
38 Observe-se que mesmo BRIERE, p. 312 e seg. con-clui que há uma hierarquia de convenções, se de di-reito humanos, o que se pode transpor para o direitoprivado como valorando o critério da hierarquia e ain-da mais a hierarquia constitucional dos direitos fun-damentais, como o direito do consumidor.39 Veja detalhes in PASQUALOTTO, Adalberto, �O Có-digo de Defesa do Consumidor em face do novo CódigoCivil�, Revista Direito do Consumidor, nº 43 (jul-dez..2002), p. 106.40 Veja detalhes sobre o CDC como microssistema, inPASQUALOTTO, p. 106 e seg.
41 O texto é o seguinte : �Art. 777. O disposto no pre-sente Capítulo aplica-se, no que couber, aos segurosregidos por leis próprias.�42 O texto é o seguinte: �Art. 721. Aplicam-se ao con-trato de agência e distribuição, no que couber, as re-gras concernentes ao mandato e à comissão e as cons-tantes de lei especial.�43 O texto é o seguinte: �Art. 732. Aos contratos detransporte, em geral, são aplicáveis, quando couber,desde que não contrariem as disposições deste Códi-go, os preceitos constantes da legislação especial e detratados e convenções internacionais.�44 O texto é o seguinte: �Art. 729. Os preceitos sobrecorretagem constantes deste Código não excluem aaplicação de outras normas da legislação especial.�
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entre si, no caso de dois fornecedorestratam-se de relações empresariais tí-picas, em que o destinatário final fáticoda coisa ou do fazer comercial é um ou-tro empresário ou comerciante), ou comono caso da possível transposição das con-quistas do Richterrecht (Direito dosJuízes) alcançadas em uma lei para aoutra. É a influência do sistema especi-al no geral e do geral no especial, umdiálogo de double sens45 (diálogo de co-
ordenação e adaptação sistemática).Assim, em resumo, haveria o diá-
logo sistemático de coerência, o diálogo sis-
temático de complementariedade e
subsidiariedade em antinomias e o diá-
logo de coordenação e adaptação sistemáti-
ca.Mister refletir aqui, ainda que ra-
pidamente, sobre a noção de igualdadeem direito privado e como esta noção iráinfluenciar a aplicação casuística doCódigo Civil de 2002, um Código para
iguais ! E ainda, como esta visão da igual-
dade e do tratamento igual/desigualpara os iguais/desiguais, no caso con-creto, está intrinsecamente ligada anoção moderna � tão importante emmatéria contratual- da eqüidade (Justiça
para o caso concreto) ! Mister frisar como,em seu espírito e teleologia, o CDC estáligado a um novo paradigma de diferen-ça, de tratamento de grupos ou plural,de interesses difusos e de eqüidade, emuma visão mais nova do moderno ou pós-moderna. Face ao atual pluralismo defontes no direito privado brasileiro, estareflexão pode ser útil para o aplicadorda lei, ao determinar o campo de aplica-ção do CC/2002.
Repita-se aqui o que ensinaBerthiau,46 em sua magnífica obra so-bre o princípio da igualdade e o direitocivil dos contratos: há uma ambigüida-de original entre as expressões/e/ounoções modernas de igualdade e de eqüi-dade. Vejamos. A estrutura moderna danoção de igualdade advém do latim
aequalitas (igualdade, supondo a compa-ração com outro objeto), derivada por suavez da expressão aequalis (igual) e deaetis. A partir das evoluções lingüísticasna Idade Média estas expressões perde-ram, em francês e português, a partícula�qua� (équalité-égalité-égal, equalidade-igualdade-igual). A evolução da expressãoequidade é semelhante, do latim aequitas(também aetis),47 que significava, segun-do pesquisas de Berthiau48, justamenteigualdade e, mais precisamente, �igualda-de de alma, equilíbrio, calma� (égalitéd�âme, calme, équilibre), era derivada porsua vez justamente da expressão aequus(igual-adjetivo).49
Esta proximidade etimológica, e adistinção (distintio) de níveis de pen-samento, levam a conclusão que tratarigualmente os iguais, tratar desigual-mente os desiguais e tratá-los com �equi-líbrio e calma�, é mais do que o princípioda igualdade, é eqüidade, uma soluçãojusta para o caso concreto !
Igualdade supõe uma comparação,um contexto, uma identificação no caso. 50
A igualdade só pode ser abordada sob oponto de vista de uma comparação. 51 Eisaqui o desafio maior do Direito Civil bra-sileiro atual, face a unificação do regi-me das obrigações civis e comerciais noCódigo Civil de 2002, e face ao manda-mento constitucional de discriminar po-sitivamente e tutelar de forma especialos direitos dos consumidores (art. 5,XXXII da CF/88), também em suas re-lações civis. Assim, em um só tipocontratual (por exemplo, o contrato demandato ou de seguro), podem estar pre-sentes várias naturezas, vários sujeitos de
direito, iguais ou diferentes na compara-
45 Veja a obra de SAUPHANOR, p. 32.46 BERTHIAU, Denis, Le principe d�égalité et le droitcivil des contrats, L.G.D.J., Paris, 1999, p. 3 e seg.
47 Veja STOWASSER, J.M. et alli, Der KleineStowasser, G. Freytag ed., Munique, 1980, p. 18:�aequitas, ätis, aequus - 1 Geduld, Ruhe, Gliechmut,
Gelassenheit, animi. 2. Gleicheheit [vor dem Gesetz],
Gerechtigkeit, Billigkeit...aequitas est iustitia maxime propria.�48 BERTHIAU, p. 3.49 Veja STOWASSER, J.M. et alli, Der KleineStowasser, G. Freytag ed., Munique, 1980, p. 18:�aequus � gleich...Subst. aequum, Recht, Billigkeit: amantior
aequi, aequi cultor, ex aequo bonoque.�50 Assim conclui BERTHIAU, p. 3.51 Frase de BERTHIAU, p. 3.
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ção entre si, comparação necessaria-mente casuística e finalistica, comparaçãono caso, no papel econômico represen-tado por cada um naquele contrato emespecial, a constatar o seu status (em-presários, civis, consumidores) daí deri-vado. Determinar o campo de aplicaçãodo Código Civil de 2002 aos contratos é,pois, tarefa herculana, neste sistemajurídico altamente complexo, micro-co-dificado, plural e fluído, pois os papéisque os sujeitos de direito representamno mercado e na sociedade modificam-se de um ato para outro. Por exemplo, oprofissional liberal é empresário (Art. 966do CC/2002) em um momento e, no pró-ximo, pode ser consumidor de um servi-ço para sua família e um civis perfeito,na sua relação de condomínio...52
O mestre da USP, Antônio Junqueirade Azevedo53 alertou para este problemaantes da aprovação do CC/2002, ponderan-do que introduzir no sistema jurídico brasi-leiro, já hiper-complexo, uma regulamen-tação unitária (igual) para as relações civise comerciais poderia resultar em um retro-cesso. E apontou a solução: a procura deuma igualdade com aequitas, a necessáriadistinção entre o que é igual e o que é dife-rente, na sociedade pós-moderna atual.
Observando-se o mandamentoconstitucional expresso de criação nosistema jurídico brasileiro (Art. 48ADCT/CF 1988) de um CDC e o fato daproteção do consumidor ter sido incluí-da entre os direitos fundamentais (Art.5, XXXII da CF/88),54 não deve surpre-
ender, portanto, que o CDC tenha hierar-quia superior que o CC/2002. Efetivamen-te, todas suas normas civis são de ordempública (ex vi do Art. 1º do CDC), e de leiespecial, a aplicar-se prioritariamente nasrelações de consumo. O CDC está a pro-cura da eqüidade, do tratamentocasuístico/tópico da justiça contratual,com calma e equilíbrio, não voltado para o�igual geral�, mas para o �diferente� a rela-ção civil diferente, entre fracos e fortes,daí sua especialidade.
Por fim, mencione-se que se nãohouve revogação tácita,55 também nãohouve revogação expressa (Art. 2.045),56
nem incorporação do CDC ao CC/2002(Art. 2.043). O novo Código Civil Brasi-leiro menciona em apenas uma normaa expressão �consumidores�, como sinô-nimo de fregueses, 57 e não utiliza a ex-pressão relação de consumo. Nas demais2.045 normas do CC/2002 são mencio-nadas apenas as expressões �consumo�,em seu sentido clássico de destruição,no Art. 86, 307, 1290 e 1392, bens �des-tinados à consumo�, nos Art. 206 e 592 ecrimes �contra as relações de consumo�,no § 1 do Art. 1.011. Sendo assim, pode-mos concluir, com certeza, que ao CDCnão se aplica a norma do Art. 2.043 doCC/2002. Em outras palavras, podemosconcluir que o CDC e o tema de defesa
52 Segundo a jurisprudência majoritária dos Tribunaissuperiores, a relação de condomínio não é de consu-mo: �II - Não é relação de consumo a que se estabeleceentre condôminos para efeitos de pagamento de des-pesas em comum. III - O Código de Defesa do Consu-midor não é aplicável no que se refere à multa peloatraso no pagamento de aluguéis e de quotascondominiais.� (STJ, RESP 239578/SP, 5ª Turma, Rel.Min. Felix Fischer, j. 08/02/2000).53 AZEVEDO, Antônio Junqueira de, �O Direito pós-moderno e a codificação�, in Revista Direito do Con-sumidor, v. 33 (2000), p. 124.54 Observe-se que mesmo BRIERE, p. 312 e seg. con-clui que há uma hierarquia de convenções, se de di-reito humanos, o que se pode transpor para o direitoprivado como valorando o critério da hierarquia e ain-da mais a hierarquia constitucional dos direitos fun-damentais, como o direito do consumidor.
55 Também da história legislativa do projeto podemosretirar esta conclusão. A redação anterior do artigo fi-nal do Código (antigo Art. 2040) era mais abrangente eafirmava que ficariam: �revogados o Código Civil e a Par-
te Primeira do Código Comercial, Lei nº 556, de 25 de junho
de 1850, e toda a legislação civil e mercantil abrangida por
este Código, ou com ele incompatível...� Mas, como expli-ca o relator, Deputado Fiúza, a �boa técnica legislativa�o levou a Câmara a determinar quais as leis que o CC/2002 revogaria. Veja Câmara dos Deputados, Relatóriofinal do Relator Deputado Ricardo Fiuza, Código Civil,Brasília, 2000, p. 115.56 O texto original é: �Art. 2.045. Revogam-se a Lei nº3.071, de 1º de janeiro de 1916 - Código Civil e aParte Primeira do Código Comercial, Lei nº 556, de 25de junho de 1850.�57 Trata-se do inciso I do Art. 1467 que menciona apalavra �consumidores�, como sinônimo de �fregueses�,dos hospedeiros e dos fornecedores de alimentos epousada ao regular o penhor legal. O texto é o seguin-te: �I -os hospedeiros, ou fornecedores de pousada oualimento, sobre as bagagens, móveis, jóias ou dinheiroque os seus consumidores ou fregueses tiverem consi-go nas respectivas casas ou estabelecimentos, pelasdespesas ou consumo que aí tiverem feito;�
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do consumidor não foi �incorporado� aoCC/2002. Ao contrário, é consideradopelo próprio CC/2002 como um tema aser regulado por lei �especial� (como ali-ás expressamente prevê a ConstituiçãoFederal, Art. 48 dos ADCT).
Em resumo, mister preservar aratio de ambas as leis e dar preferên-cia ao tratamento diferenciado dos dife-rentes concretizado nas leis especiais,como no CDC, e assim respeitar a hie-rarquia dos valores constitucionais, so-bretudo coordenando e adaptando o sis-tema para uma convivência coerente! Aconvergência de princípios e cláusulasgerais entre o CDC e o CC/2002 e a égideda Constituição Federal de 1988 garan-tem que haverá diálogo e não retroces-so na proteção dos mais fracos nas rela-ções contratuais. Vejamos o diálogoquanto à cláusula geral de boa-fé objeti-va nos contratos.
II � Das cláusulas abusivas no CC/2002e a cláusula geral de boa-fé
A própria idéia de abuso do di-reito, agora positivada no novo Códi-go Civil de 2002, está relacionada coma boa-fé (Art. 187 do CC/2002). Se-guindo-se esta idéia (e retirando-a docampo extracontratual para utilizá-laanalogicamente no campo contratual),e unindo-a a do Art. 4, III e Art. 51 IVe § 1º do CDC, poderíamos afirmar,sucintamente, que cláusula abusivaé aquela que viola a boa-fé obrigató-ria das relações entre iguais (ex vinovo Código Civil) e entre desiguais(ex vi Código de Defesa do Consumi-dor, que possui este mesmo princípioda boa-fé e quando a relação civil ouempresarial é desequil ibrada pelocontrato de adesão, ex vi Art. 424 doCC/2002).
Portanto, podemos dizer que umacláusula desequilibra um contrato por-que ela viola um dever principal, ine-rente àquele sistema, àquele tipo decontrato (essa idéia está no artigo 51 doCódigo de Defesa do Consumidor), maspodemos também dizer que determina-da cláusula é abusiva, porque viola os
deveres que a própria boa-fé introduziunaquela relação. Como afirmava antes oProf. Arnoldo Wald: a relação não é sómais aquela que as partes determina-ram, havendo também as cláusulas ge-rais da lei. A cláusula geral da boa-féfaz nascer deveres para aqueles indiví-duos, mesmo que tais deveres não este-jam escritos, ou haja uma cláusula ex-pressa exonerando a pessoa do dever deinformar, do dever de cooperar, do de-ver de cuidado. Esses três deveres deconduta, portanto, fazeres, nascem di-retamente do princípio da boa-fé ou dacláusula geral de boa-fé, e estão hojena relação contratual, civil, empresari-al e de consumo. Estes deveres de con-duta de boa-fé vão tornar uma cláusula,uma condição geral contratual, umacláusula do contrato, ilícita ou nula tantono CDC como no CC/2002 justamenteporque há uma violação dos deveres daboa-fé. Boa-fé é um princípio derepersonalização da relação contratual.Como ensina o grande mestre da UFRGS,Clóvis do Couto e Silva: �...o dever quepromana da concreção do princípio daboa-fé é dever de consideração para como �alter�.�58 Efetivamente, boa-fé objetivasignifica uma atuação �refletida�,59 umaatuação refletindo, pensando no outro, noparceiro contratual, respeitando-o, res-peitando seus interesses legítimos, suasexpectativas razoáveis, seus direitos,agindo com lealdade, sem abuso, semobstrução, informando-o, aconselhando-o, cuidando, sem causar lesão ou des-vantagem excessiva, cooperando paraatingir o bom fim das obrigações: o cum-primento do objetivo contratual e a reali-zação dos interesses das partes.60 Boa-fé é cooperação e respeito, é conduta es-perada e leal, tutelada em todas as rela-ções sociais.
58 COUTO E SILVA, Clóvis V. A Obrigação como Pro-cesso, São Paulo, Ed. J. Bushtasky, 1976 p. 29.59 Veja nosso livro, Contratos no Código de Defesado Consumidor, 4. edição, 2002.60 Sobre boa-fé como regra de conduta, como limite àautonomia da vontade e como fonte de novos deveresacessórios, veja a obra de MENEZES CORDEIRO, An-tonio M. da Rocha e, Da Boa-fé no Direito Civil, v. 1,p. 632 e ss.
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Como afirmamos anteriormente,boa-fé é, em resumo, um princípio dematerialização da vontade contratual,agora balizada pelas exigências de con-siderara as expectativas legítimas dooutro. 61 Assim ensina o também grandemestre da UFRGS, Ruy Rosado deAguiar62 : �A boa-fé se constitui numafonte autônoma de deveres, independen-te da vontade, e por isso a extensão e oconteúdo da relação obrigacional já nãose mede somente nela (vontade), e, sim,pelas circunstâncias ou fatos referen-tes ao contrato, permitindo-se construirobjetivamente o regramento do negóciojurídico, com a admissão de um dina-mismo que escapa ao controle das par-tes.� (grifo nosso) Para se ter a impor-tância desta visão renovadora dos con-tratos envolvendo consumidores e for-necedores, afirma Paulo Luiz NetoLôbo: �O princípio da boa-fé objetiva foirefuncionalizado no direito do consumi-dor, otimizando-se sua dimensão decláusula geral, de modo a servir deparâmetro de validade dos contratos deconsumo, principalmente nas condiçõesgerais dos contratos.�63
Os professores Jauernig eVolkommer, 64 na sua edição nova dosComentários ao Código Civil alemão, quesofreu uma grande reforma em 2000 e2001, mencionam que as funções da boa-fé (aquelas clássicas que conhecemos eque foram aqui mencionadas: a de esta-belecer os deveres anexos, interpre-tadora e a limitadora, isto é, a própriaidéia de abuso) devem ser vistas hojecom olhos mais voltados para o futuro.65
Boa-fé é uma medida objetiva (objektive
Masstab), um paradigma de condutadas pessoas, mas ela é, sem dúvidaalguma, uma medida de decisão(Entscheidungsmasstab).
Por vezes, visualiza-se a boa-féapenas como um �standard�, uma medi-da de conduta, uma medida de efeito�preventivo�: como devo eu conduzir-mena sociedade do futuro, como devo euatuar �de acordo� com a boa-fé. O que osreferidos professores alemães estãoquerendo lembrar é que esse é apenasum lado �da moeda�, a boa-fé possui ou-tro �lado� que não podemos esquecer: aboa-fé é sempre também uma valoraçãoda conduta. O Direito valora a atuaçãodo outro como um paradigma, não maissubjetivamente (não temos mais a idéiade �culpa�) mas como um objetivo. Nãopodemos discursar sobre a boa-fé comouma idéia, um paradigma de conduta, edeixar de utilizar a boa-fé na prática comoum instrumento de decisão do Judiciá-rio (é uma medida de decisão).
Neste ponto, gostaria de dividir aminha exposição justamente nesses doismomentos: 1) a boa-fé teórica (comomedida de conduta) e o Novo Código Ci-vil (onde está essa boa-fé, pelo menosna parte voltada para as cláusulasabusivas); 2) e a boa-fé na prática, istoé, a boa-fé como medida valorativa,instrumentário para que o juiz diga seuma cláusula é abusiva de acordo com ocumprimento ou não do paradigma dasexigências de boa-fé.
A) As funções da boa-fé e a experiên-cia de mais de 10 anos do CDC
Essa utilização �forte� da boa-fé podeser dividida em quatro funções, que jáforam muitas delas aqui mencionadaspelo Professor Arnoldo Wald, que meantecedeu. A primeira função é essa defotografia do que é e do que não é rela-ção contratual hoje, chamada de funçãode complementação ou concretização darelação jurídica. Através do princípio daboa-fé objetiva, o julgador visualiza e pre-cisa quais são os deveres das partes. Seé uma relação entre iguais � iguais ci-vis ou entre comerciantes - há o novo
61 Assim CANARIS, in Archiv für die civilistischePraxis (AcP), 200 (2000), p. 277 e seg.62 AGUIAR, Ruy Rosado de, �A Boa-fé na relação deconsumo�, in Direito do Consumidor, v. 14, p. 24.63 LOBO, Paulo Luiz Neto �A informação como direitofundamental do consumidor�, in Direito do Consumi-dor 37, p. 67.64 Veja JAUERNIG, Othomar et alli, BürgerlichesGesetzbuch, 7. ed, Beck, Munique, 1994, p. 172, §242, 1 (Vollkommer).65 Veja citações e detalhes em meu artigo, �Boa-fé nosserviços bancários, financeiros, de crédito e securitáriose o Código de Defesa do Consumidor: informação, co-operação e renegociação ?�, in RDC v. 43 (2002), p.215-257.
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Código Civil e aqueles deveres que es-tão aqui também oriundos da boa-fé. Sea relação é entre consumidores, entredesiguais, um leigo e um profissional,então também o princípio da boa-fé es-tabelece quais são os deveres de infor-mação, de cuidado, de cooperação.
Trata-se da função de comple-mentação ou concretização da relação(Ergänzungsfunktion), podendo oaplicador da lei, através do princípio daboa-fé objetiva, visualizar e precisarquais os deveres e direitos decorrentesdaquela relação em especial (por exem-plo, incluindo as informações veiculadasem publicidade por uma seguradora ougrupo bancário, Art. 30 do CDC), 66 tam-bém chamada de função interpretativa. 67
A expressão alemã é de valorar-se e des-tacar-se, pois bem especifica a funçãoativa do juiz, uma vez que se trata doRichterrecht (Direito dos Juízes), istoé, há uma atividade mais completa ecomplexa68 do que a simples interpre-
tação pelo juiz, há, sim, concreção decláusula geral.69 E como ensina a CorteConstitucional alemã desde 1993, 70 naconcreção das cláusulas gerais de boa-fé e bons costumes (em especial, noscontratos bancários, financeiros e decrédito) as cortes civis devem fazer va-ler os direitos humanos, os direitos fun-damentais recepcionados nas Constitui-ções, 71 impregnando o direito privado deseu espírito de proteção da dignidade dapessoa humana, da privacidade, de pro-teção dos dados, de direito à informa-ção, à escolha livre, de desenvolvimentoda sua personalidade etc.
A expressão atual alemã tambémesclarece de forma pedagógica que aboa-fé é uma nova fonte de deveres (de-veres anexos), �descobertos� nacomplementação, na �fotografia� da re-lação, que realiza o magistrado: infor-mar, cooperar, cuidar com o outro e, nãosó, prestar... Aqui, está, pois, a funçãoprimeira e mais complexa da boa-fé, quevalora o grau de informação, de trans-parência, de lealdade nas condutas ecláusulas dos fornecedores, de forma avisualizar/fotografar que relação jurídi-ca é esta, complexa, conexa, principal
66 Belo exemplo é a decisão do TJ/RS, já citada: �Pro-paganda enganosa. Garantia, incondicional, de finan-ciamento para aquisição de unidade imobiliária.Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor.Propaganda enganosa que garantiu, incondicionalmen-te, financiamento à aquisição de unidade imobiliária.Improvadas as apontadas irregularidades na documen-tação. Com inversão do ônus sucumbencial, condena-ção da incorporadora para suportar, às suas própriasexpensas, o parcelamento da dívida (conforme garan-tido na publicidade).�(AC 598435063,Des. GuintherSpode, j. 22.12.98, in RDC 36/324). Veja também de-cisão e as já citadas decisões do TJ/RS sobre embala-gem prometendo prêmios (AC 596126037, 5ª Câm. Cív.TJ RS, j. em 22.08.96, rel. Des. Araken de Assis) esobre publicidade prometendo carros a quem comple-tasse um �bingo� (AC 596116764, 5ª Câm. Cív. TJ RS,j. em 14.11.96, rel. Des. Araken de Assis), todas cita-das e comentadas no belo artigo de Guinther Spode,�O controle da publicidade à luz do CDC�, in RDC 42(2002), no prelo. Veja também sobre promessa de re-compensa e premiação de tampa de vasilhame de re-frigerante Resp. 289.346/MG, DJ 25.06.2001, min.Nancy Andrighi.67 É o que MARTINS-COSTA, Judith, Boa-fé no Di-reito Privado, RT, São Paulo, 2001, p. 428, denomi-na de �a boa-fé como cânone hermenêutico-integrativo�e à p. 431, citando Larenz, denomina �interpretaçãoda regulação objetiva criada com o contrato�.68 Belo exemplo pode ser a decisão do TJ/RS, em casoenvolvendo seguro de �Condomínio Residencial�, emque cláusula contratual dava direito ao conserto do ele-vador somente após �comunicação� à seguradora e in
APC598002079, j. 03.06.1998, Des. Antônio JanyrDall�Agnol Júnior ensinou: �Seguro de dano. Interpre-tação de cláusula. comunicação imediata, não neces-sariamente prévia. dano em elevador de edifício de
apartamentos residenciais. Segundo interpretação quese ostenta a melhor, a exigência, em casos como odos autos, é de comunicação, sim, e imediata, masnão necessariamente prévia, do dano em elevador deedifício de apartamentos residenciais, poisdesarrazoado que se aguarde providências da segura-dora, para, apenas após, efetivar o conserto, sempreurgente quando se cuida deste meio de transporte depessoas.�69 Assim também no Brasil, TEPEDINO, Gustavo(Coord.), Direito Civil-Constitucional, Renovar, Riode Janeiro, 201, p. 11 e 12: �as cláusulas gerais que,previstas pelo legislador contemporâneo, no Código deDefesa do Consumidor..., vêm sendo amplamente uti-lizadas pelos operadores. Recupera-se, então, o papelda jurisprudência e da doutrina...�70 BVerfG Beschl. v. 19.101993 - 1BvR 567/89 u.la.,in: NJW 1994,36. A ementa original é a seguinte: �Die
Zivilgerichte müssen - insbesondere bei derKonkretisierung und Anwendung von Generalklauseln wie§ 138 und §242 BGB - die grundrechtlcihe Gewährleistungder Privatautonomie in Art. 2,I GG beachten. Daraus ergibtsich ihre Pflicht zur Inhaltskontrole von Verträge, die einender beiden Vertragspartner ungewöhnlich stark belastenund das Egbnis strukturell ungleicher Verhandlungsstärkesind.�71 Veja meu artigo �Os contratos de crédito e a legisla-ção brasileira de proteção do consumidor�, in RDC v.18, p. 53-76.
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ou acessória visando o consumo e se asexigências desta boa-fé foram ou podemser cumpridas. O objetivo é alcançar aigualdade, o reequilibrio entre as par-tes, e a atuação do Juiz conforme a boa-fé é ativa, como ensina o TJ/RS: �Ao ana-lisar o contrato, com suas diversidade, e quese constitui alvo especial do chamado Direi-to do Consumidor, está o juiz nesse alinha-mento bem longe da principiologia clássicado contrato, onde se presumia que as par-tes eram livres para contratar, e eram iguais,sem qualquer distinção de informação, co-nhecimento e poder de cada uma. A atuaçãodo magistrado, frente a uma relação de con-sumo, pode e deve ser mais dinâmica, pre-tendendo assegurar a igualdade das partesao mesmo plano jurídico.� (Ementa da APC197278518, 21ª CC, Des. Francisco JoséMoesch, TJ/RS, j. 17.06.1998).
Destaque-se que o legislador ale-mão, ao reformar o seu Código Civil de1893 em 2002, incluiu uma nova normade interpretação no § 241 do BGB, apli-cável aos contratos de consumo (novo §13 c/c § 241 e § 242), que é a seguinte:�§ 241- Deveres oriundos das relaçõesobrigacionais- (1)...(2) As relaçõesobrigacionais podem, de acordo com seuconteúdo (tipo), obrigar cada uma das par-tes a ter em conta os direitos, as coisas/patrimônio e os interesses da outra parte.�72
Note-se a beleza desta linha que ampliaa visualização da relação, não só faz �apa-recer� os deveres anexos ao contrato,como ajuda a valorar as práticas comer-ciais do fornecedor. �Ter em conta osdireitos...e os interesses da outra par-te� é visualizar o �alter� e valorar a con-duta-conforme a boa-fé- daquele contra-tante mais forte, tanto na formação docontrato (cláusula abusiva), quanto naexecução do contrato (prática comercialabusiva).
Muitos denominam esta função de�interpretativa� ou �interpretadora� , en-tretanto, não quero aqui denominar estafunção de �interpretação�, porque essa é
uma visão mais clássica da boa-fé e,como afirmei, parece-me que essa idéiade concreção, de fotografia mesmo com-pleta da relação é mais atualizada e maisatualizadora. Essa função de interpre-tar pode solucionar muitos dos proble-mas que também podemos fazê-lo atra-vés do uso do instrumentáriosancionatório das cláusulas abusivas.Isto é, o julgador ao interpretar o con-trato ou a cláusula já o faz de acordocom o instrumento valorativo que é aboa-fé (medida de decisão). Então, sepode interpretar o texto de forma que acláusula examinada não viole a boa-fé eque proteja o mais fraco, ou seja favorá-vel a quem simplesmente aderiu ao con-trato de adesão, estarei utilizando to-das as idéias principiológicas que estãono Código Civil de 2002 e também, estãomais fortemente presentes ainda, noartigo 47 do Código de Defesa do Consu-midor. Assim o julgador pode evitar queaquela cláusula, interpretada de outraforma, viole a boa-fé e seja nula. Vejamque dentro dessa função temos dois mo-mentos: a simples interpretação e aidentificação dos deveres que objetiva-mente as partes deveriam cumprir.
A terceira conclusão dos referidosprofessores alemães e que me pareceinteressante, é a da bilateralidade dosdeveres de boa-fé. Geralmente, não men-cionamos muito esta característica emmatéria de Direito do Consumidor por-que o Código de Defesa do Consumidorpositiva que o dever de informar é im-posto ao fornecedor, é um dever do pro-fissional e não do leigo, o consumidor.Mas agora, nesse outro mundo, que é oCódigo Civil de 2002, na relação entreiguais, há bilateralidade dos deveres deboa-fé: um parceiro deve cuidar do ou-tro, um deve informar ao outro. Se sãodois comerciantes, obviamente que odever de informar é bilateral. Há o de-ver de cooperar, e como mencionava oProf. Arnoldo Wald, a idéia da parceria éjustamente bilateral. A idéia de não le-var o outro à ruína, que é uma idéia bas-tante antiga da boa-fé, uma exceção daruína, a qual foi aqui mencionada pelo
72 No original: �§ 241. Pflichten aus dem Schuldverhältnis.(1)...(2) Das Schuldverhältnis kann nach seinem Inhalt jednTeil zur Rücksicht auf die Rechte, Rechstgüter undInteressen des anderen Teils verpflichten.�
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Prof. Arnoldo Wald com a idéia derenegociação dos contratos, é um deverde cooperar para evitar a ruína econô-mica do outro, é um dever bilateral noCódigo Civil de 2002, imposto justamen-te pelo princípio da boa-fé positivado deforma bilateral.
Já no microssistema do Código deDefesa do Consumidor essa bila-teralidade se esmaece, porque a próprianorma impõe, por exemplo, em matériade banco de dados (Art. 43 e seg. doCDC), que um (fornecedores) guarde ecuide da informação que detêm do outro(consumidores), que um (fornecedores)informe ao outro (consumidores). Portan-to, neste caso, o ônus, o peso do cumpri-mento dos deveres de boa-fé foipositivado, foi regulado em norma posi-tiva indisponível (Art. 1º do CDC), e so-mente em poucos momentos existe re-almente uma bilateralidade dos deveresde boa-fé no Código de Defesa do Con-sumidor. Um exemplo que foi dado peloProf. Wald foi justamente o do contratode seguro, em que há uma relação deconsumo, mas em que também os deve-res de informação do consumidor estãopositivados no Código Civil e mesmo as-sim são interpretados sempre favoravel-mente a eles (art. 47 do CDC em diálo-go!). Aqui nessa primeira função da boa-fé, isto é, da concretude, daconcretização da relação, está a maiorpotencialidade para o chamado direitodos juízes, isto é, a verdadeira interpre-tação dos contratos, a visualização datotalidade da relação que não é só con-centrada no cumprimento dos deveresprincipais, mas nesse novo mundo emque os serviços são mais importantes queos dares. É um mundo tão complexo,cheio de riscos, onde há o dever de in-formar, de colocar junto com o produto,por exemplo, um manual de utilizaçãoou de colocar junto com o serviço bancá-rio o verdadeiro preço daquela taxa, da-quele extrato, daquele talão, ou do en-vio do talão pelo correio e as possibilida-des que teria o consumidor de manu-tenção da conta de forma diferenciada,esta informação pode ser até mais im-
portante do que o verdadeiro cumpri-mento da prestação principal, isto é,manter uma escrituração ou de entre-gar-me um bem que não sei usar, se nãotenho um manual de informação. Emoutras palavras, os deveres de boa-fépotencializam-se e ganham em impor-tância nos dias de hoje, e aí está a pos-sibilidade de o direito dos juízes evoluira nossa visão do contrato na prática.
A segunda função da boa-fé, maistípica é a função de controle e de limi-tação das condutas. Aqui está a proibi-ção das cláusulas abusivas. Temos liber-dade de contratar, de estabelecer a li-berdade contratual, portanto, de esta-belecer o conteúdo do contrato, mascomo essa é uma liberdade formal emuitas vezes não material, parareequilibrar a situação em matéria decontratos de adesão - regulados hojepelo Código Civil de 2002 - a lei limitaessa liberdade. Vejamos o que os arti-gos 423 e 424 do novo Código Civil men-cionam sobre isso: �Quando houver nocontrato de adesão cláusulas ambíguasou contraditórias dever-se-á adotar ainterpretação mais favorável ao aderen-te�, primeira idéia, primeira função. Eno Artigo 424: �Nos contratos de adesãosão nulas as cláusulas que estipulem arenúncia antecipada do aderente a di-reito resultante da natureza do negó-cio�. Nesta norma temos dois momentosnormativos, isto é, limita-se a possibili-dade de renúncia por uma das partes,através de cláusulas exonerativas,cláusulas de exoneração de responsa-bilidade. Assim, no contrato de trans-portes, por exemplo, a cláusulaexonerativa de responsabilidade vai serconsiderada nula, vai ser restringida,comple-mentando essa idéia. Em maté-ria de seguros, também, há artigos es-pecificamente prevendo que determina-das cláusulas não são possíveis nessescontratos ou em contratos de prestaçãode serviço (na parte especial). Porém,aqui na parte geral do novo Código Ci-vil, a idéia é que a renúncia, se ela é aoprincipal, se ela é aquela resultante danatureza do negócio, esta renúncia ou
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disposição per se já é nula. Aqui encon-tra-se o maior limitador, a melhor defi-nição do que podem ser essas cláusulasabusivas que o Código Civil de 2002 con-sidera nulas.
O Código de Defesa do Consumi-dor também tem a idéia da cláusulaabusiva, só que ali, para a proteção domais fraco, a potencialização do que éabuso é ainda maior. Considera-se, noartigo 51, parágrafo 1°, como nulas to-das as cláusulas que asseguram umavantagem exagerada para uma das par-tes, que destroem o sistema em que ocontrato está e que, portanto, destroem,em última análise, esse objeto do con-trato, a expectativa legítima do consu-midor.
É a função de controle e del i mitação das condutas (Schran-kenfunktion), pois o princípio, de for-ma imanente, está a limitar as �posi-ções� jurídicas dos contraentes e o exer-cício de seus direitos, dai, por exemplo,a proibição de cláusulas e práticasabusivas (Art. 39 e 51 do CDC). Comoafirmamos, a boa-fé objetiva é umstandard, um parâmetro objetivo, gené-rico, um patamar geral de atuação, dohomem médio, do bom pai de família queagiria de maneira normal e razoável na-quela situação analisada.73 O julgadorvalora a atuação, decidindo se esta ul-trapassou ou não a razoabilidade, os li-mites impostos por esta boa-fé objetivaqualificada, que é a de consumo. Abusivaé a conduta ou a cláusula que viola aboa-fé, os deveres impostos pela boa-fé
aos agentes na sociedade, como ensinao STJ, no Resp. 219184/RJ, j.26.10.1999, Min. Ruy Rosado de Aguiar:�SERASA. Dano moral. - A inscrição do nomeda contratante na Serasa depois de propos-ta ação para revisar o modo irregular peloqual o banco estava cumprindo o contrato definanciamento, ação que acabou sendojulgada procedente, constitui exercícioindevido do direito e enseja indenização pelograve dano moral que decorre da inscriçãoem cadastro de inadimplentes. Recurso co-nhecido e provido.�
A pergunta atual é como vamosrealizar a interpretação desse artigo 424do Código Civil de 2002. A doutrina, emespecial os comentaristas começam afornecer idéias sobre a interpretaçãodesse artigo. Normalmente, porém, cos-tumam concentrar-se não na cláusulageral de boa-fé do Código de Defesa doConsumidor, mas no primeiro inciso doartigo 51. O Art. 51 do CDC, caput dis-põe: �São nulas de pleno direito, entreoutras, as cláusulas contratuais relati-vas ao fornecimento de produtos e ser-viços que: I - impossibilitem, exoneremou atenuem a responsabilidade do for-necedor por vícios de qualquer naturezados produtos e serviços ou impliquemrenúncia ou disposição de direitos...�.Esse inciso I, há que se mencionar, nãotermina assim, mas possui uma segun-da frase que permite, nos contratos en-tre pessoas jurídicas, em plenomicrossistema do Código de Defesa doConsumidor, a limitação da responsabi-lidade.
Por que menciar isso? Porque meparece importante para estabelecermosa diferença entre o que é a �qualidade�da boa-fé ou a potencialidade de aplica-ção da boa-fé no Código de Defesa doConsumidor e a potencialidade de suaaplicação no Código Civil de 2002. OCódigo Civil de 2002 é um Código paraiguais, relação entre civis e relação en-tre comerciantes. O próprio Código deDefesa do Consumidor, que possui am-plas definições de quem é consumidor(veja a linha interpretativa dosmaximalistas e dos finalistas, à qual me
73 Neste sentido, veja-se exemplar decisão do Min.Carlos Alberto Menezes Direito, in Resp. 158.728-RJ,16.03.1999, cuja ementa ensina: �Plano de saúde. Li-mite temporal da internação. Cláusula abusiva. 2. Oconsumidor não é senhor do prazo de sua recuperação,que, como é curial, depende de muitos fatores, que nemmesmo os médicos são capazes de controlar. Se a enfer-midade está coberta pelo seguro, não é possível, sobpena de grave abuso, impor ao segurado que se retire daunidade de tratamento intensivo, com o risco severo demorte, porque está fora do limite temporal estabelecidoem uma determinada cláusula. Não pode a estipulaçãocontratual ofender o princípio da razoabilidade, e se ofaz, comete abusividade vedada pelo art. 51, IV, do Có-digo de Defesa do Consumidor. Anote-se que a regraprotetiva, expressamente, refere-se a uma desvantagemexagerada do consumidor e, ainda, a obrigações incom-patíveis com a boa-fé e a eqüidade.�
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filio), já pensando nisso e antes do ad-vento do Código Civil de 2002, previa queem matéria de relacionamentointercomerciantes, portanto, consumido-res pessoas jurídicas, era permitida acláusula de limitação da responsabili-dade, se ela não atingia a natureza docontrato, o objeto do contrato, se real-mente não violava a boa-fé entre comer-ciantes, isto é, a cláusula geral do arti-go 51, IV do Código de Defesa do Consu-midor. Como podemos interpretar essaexceção à regra? Podemos interpretaratravés de uma visão de força, de �quali-ficação�. É claro que o princípio da boa-fé atinge tanto o microssistema do Có-digo de Defesa do Consumidor como oCódigo Civil de 2002, mas aqui, em umarelação entre iguais, a idéia do que éabusivo, do que atinge a natureza do con-trato é, de qualquer maneira, de umavaloração mais concreta; porém, para aproteção obrigatória, ex vi lege, de umadas partes do contrato, realmente nes-te caso a boa-fé se �ilumina�/qualifica,sendo portanto muito mais exigente epor isso muito mais utilizada.
A terceira função é a função decorreção e adaptação em caso de mu-dança das circunstâncias, que tambémjá foi mencionada aqui pelo ProfessorArnoldo Wald. Hoje, essa função é aidéia de que há um direito a uma ma-nutenção do vínculo (pelo menos um di-reito à tentativa da manutenção do vín-culo). Por isso há, dentro da moção deboa-fé, a idéia de um dever derenegociação geral dos contratos comer-ciais. Este dever não nasceu no direitodo consumidor. Essa idéia nasceu nosgrandes tratados internacionais, veja-seos princípios do UNIDROIT, na chamadaLex Mercatoria, isto é, nos contratos in-ternacionais entre comerciantes.74 E,
foi trazida para o Direito Civil interno apartir daquela idéia antiga da boa-fé, queé a exceção da ruína: no cumprimentoconforme a boa-fé dos contratos há deevitar-se a conduta que leve à ruína dooutro, do parceiro contratual.
O nossa visão atual do contrato éde uma parceria, contrato é um momentode cooperação. Porque o outro me esco-lheu e porque eu o escolhi - (repita-seque boa-fé é um pensar refletido), nãoposso eu permitir que a minhavinculação a uma determinada cláusu-la contratual leve o outro a ruína, como,por exemplo, no sistema financeiro dahabitação. Se eu credor não permito queo indivíduo me devolva o imóvel, se eunão permito que o indivíduo venda-o ouque passe o imóvel e a dívida a uma ou-tra pessoa, se o indivíduo perde a possi-bilidade concreta de saldar, se há umaimpossibilidade subjetiva de pagar (se elefica desempregado ou doente, por exem-plo) e eu o mantenho �preso� como meudevedor, sei que o estou levando à ruína !Eu não renegocio, porque eu credor �te-nho� o contrato, �tenho� aquela cláusula,tenho o �direito�. Não preciso eu �adap-tar�, renegociar, mas será que estouagindo conforme a boa-fé? Obviamente,todos sabemos que o paradigma da boa-fé é pensar no outro, nas suas expecta-tivas legítimas, no fato de que ele real-mente entrou no Sistema Financeiro deHabitação porque não podia compraratravés de outros financiamentos. Tra-ta-se de um contrato massificado, parapessoas mais pobres, para classe médiada sociedade (se ele fosse da classe altacompraria à vista ou faria um financia-mento direto bancário). O dever derenegociação nasceu nos contratos in-ternacionais do Direito Comercial e agoraestá chegando nesse direito entreiguais, ou direito entre diferentes, o Di-reito do Consumidor, e aqui está tam-bém - em minha opinião - na noção deboa-fé do Código Civil de 2002.
É a função de correção e de adap-tação em caso de mudança das cir-cunstâncias (Korrekturfunktion), apermitir que o julgador adapte e modifi-
74 Veja o estudo de MARTINEK, Michael, �Die Lehrevon de Neuverhandlungspflichten- Bestandaufnahme,Kritik...und Ablehnung�, in Archiv für diecivilistische Praxis, 198 (1998), p. 330 e seg. , oqual apesar de negar a existência deste dever geral derenegociação (Neuverhandlungspflicht) em todos oscontratos de longa duração, concorda que a doutrinamajoritária o identifica em muitíssimo deles, em espe-cial os de longa duração de consumo, p. 356 e seg.
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que o conteúdos dos contratos para que ovínculo permaneça (manutenção do vínculo)apesar da quebra da base objetiva do negó-cio, por exemplo, com a desvalorização dodólar em contratos de leasing,75 ou imponhadeveres de renegociação76 face à quebrasubjetiva da base do negócio, por exemplo,quando o consumidor perde seu emprego. Adecisão aqui é casuística, como ensina o STJ,no mencionado Resp. 200.019/SP j.17.05.2001, DJ 27.08.2001, Min. AriPargendler:�Civil. Promessa de compra e ven-da. Rescisão. Ação de rescisão de compromissode compra e venda ajuizada pelo promitente com-prador que ficou sem condições de cumprir o con-trato. Procedência do pedido, à vista das circuns-tâncias do caso concreto.. .� 77
A quarta função, e com isso ter-mino essa parte teórica, é de autoriza-ção para decisão por eqüidade. No Bra-sil, costumamos dizer que a decisão poreqüidade tem que ser autorizada ex vilege. O Código de Defesa do Consumi-dor é um sistema, um microssistema,que permite a decisão por eqüidade emseu artigo 7º. Porém, geralmente nãoconcordamos com a idéia alemã de quedentro da boa-fé está uma decisãocasuística, uma decisão fora do siste-ma, uma decisão inovadora. Aqui, real-mente, não consegui encontrar nenhu-ma decisão do Judiciário, do SuperiorTribunal de Justiça, para apoiar essa úl-tima função da boa-fé. Minha experiên-cia é que realmente essas teoriasgermânicas, mais dia menos dia, come-çam a ser aceitas entre nós. Assim comoa terceira, que é o dever de renegociação
geral, foi aqui mencionado pelo Prof.Arnoldo Wald, parece-me que em brevenós teremos essa idéia de abertura dosistema para uma decisão casuísticacom base não só na função social do con-trato, que seria outra possibilidade, mascom base no princípio geral da boa-fé.
É a função de autorização para adecisão por eqüidade (Ermächtigüngs-funktion), pois como cláusula geral suaconcreção passa pela ativa participaçãodo julgador e não pode escapar à tópicae à procura da eqüidade contratual, ori-ginando assim um direito de eqüidade(Billigkeitsrecht) adaptado à socieda-de e às necessidades atuais. Comorelembra Hattenhauer,78 a fórmula �boa-fé� exige uma concretização no caso con-creto, logo, casuística e com base naeqüidade (Billigkeit).
B) Cláusulas abusivas no Código Civilde 2002 e no CDC: uma visão práticado diálogo das fontes
Iniciando esta segunda sub-parte, aparte concreta, cabe perguntar o que signi-fica essa visão de diálogo e de funções daboa-fé para a prática do Código Civil de 2002?
Em 1993, a Corte ConstitucionalAlemã, em um contrato bancário, deci-diu que a concretização da cláusula ge-ral de boa-fé deveria ser feita de acordocom os direitos fundamentais das pes-soas.79 A decisão de 1993 abriu uma cri-
75 Veja, por todos, Resp. 361.694/RS, j. 26.02.2002,Min. Nancy Andrighi, DJ 25.03.2002.76 A doutrina atual está estudando fortemente os deve-res de renegociação, tanto na Alemanha (Norbert Horn,Jürgen Baur, Herbert Kronke, Ersnt Steindorff, GabrielleFecht, Andreas Nelle etc.), na Itália (Giovanni deCristofaro, Giuseppe Gandolfi, Franco Anelli, todos so-bre cessão dos contratos), nos Estados Unidos (seja nosteóricos da Lw and Economics � renegotiation-, seja nosinternacionalistas, em virtude dos Principíos daUNIDROIT para os contratos internacionais de 1994),assim relata em detalhes MARTINEK, Michael, �Die Lehrevon de Neuverhandlungspflichten- Bestandaufnahme,Kritik...und Ablehnung�, in Archiv für die civilistischePraxis (AcP), 198 (1998), p. 330 a 398.
trato, que não aproveitou e a devolução das parcelaspagas, mesmo se a outra parte se opunha, citandocomo precedentes os Resp. 132.903-SP, Min. RuyRosado de Aguiar, DJ 19/12/97, Resp. 109.960-RSP,Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 24/03/97, Resp.79.489-DF, Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 22/04/97 e o já citado in Resp. 109.331-SP, DJ 31/03/97.78 HATTENHAUER, Hans, Grundbegriffe desBürgerlichen Rechts, Beck, Munique, 1982, p.93.79 BVerfG Beschl. v. 19.101993 - 1BvR 567/89 u.la.,in: NJW 1994,36-39. A ementa original é a seguinte:�Die Zivilgerichte müssen - insbesondere bei derKonkretisierung und Anwendung von Generalklauselnwie § 138 und §242 BGB - die grundrechtlciheGewährleistung der Privatautonomie in Art. 2,I GGbeachten. Daraus ergibt sich ihre Pflicht zurInhaltskontrole von Verträge, die einen der beidenVertragspartner ungewöhnlich stark belasten und dasEgbnis strukturell ungleicher Verhandlungsstärkesind.�
77 Neste caso o STJ permitiu ao devedor (inadimplente),que perdera seu emprego, requerer a rescisão do con-
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se no sistema alemão e levou à modifi-cação do Código Civil, que era de 1896.80
Nesse caso concreto de um contra-to bancário - que era de milhares demarcos - entre um empresário e um ban-co, o problema todo se deu com relaçãoao garantidor, o filho desse empresário,que já era maior, e garantiu (assinandoa garantia) num valor absolutamente ex-traordinário em relação à potencialidadedele (ele, inclusive, era estudante demedicina). O banco na época argumen-tou que precisava evitar a �circulação� dariqueza na família, isto é, que se ele nãofosse fiador ou garantidor do pai, o paipoderia transferir aqueles valores paraele e com isso fugir à pressão do banco.
No final, no caso concreto, o paivai à falência, e porque é um comerci-ante com todas os privilégios de falido, obanco prefere acionar o filho, então jáum médico. Só que o valor do emprésti-mo, que ele obviamente garantiu de li-vre vontade, era tão grande que ele le-varia o resto da vida pagando. O �filho�perdeu em primeiro grau, sob o argu-mento da pacta sunt servanda; perdeuem segundo grau � pacta suntservanda- e chegou à Corte Federal Ci-vil alemã (BGH) e esta novamente afir-mou: não, o senhor é maior, o senhorobrigou-se e não temos como reverteressa situação agora, a não ser pelos exa-mes de fato. O filho-garantidor recorre,então, à Corte Constitucional alemã(BVerFG) que faz emite esta decisão queficou clássica: �as cortes civis, quandoda concretização das cláusulas gerais deboa-fé e bons costumes, deverão consi-derar os direitos fundamentais do cida-dão, inclusive o direito de desenvolvi-mento da sua personalidade (art. 2°,inciso I da Lei Fundamental de Bonn).�
O que quero aqui destacar é quea Constituição brasileira fundamentourealmente o Código de Defesa do Con-sumidor, sua origem, no artigo 5°, incisoXXXII, que cria um direito fundamentaldo consumidor à proteção pelo Estado
(Estado-juiz, Estado-legislador, Estado-administrador). A Constituição tambémdeterminou a realização de um Códigode Defesa do Consumidor, no artigo 48dos atos das Disposições Transitórias.Essa Constituição, que privilegia o con-sumidor, o diferente, o mais fraco, ago-ra deve ser utilizada para guiar a nossainterpretação das cláusulas gerais doCódigo Civil de 2002. Não é que não co-nheçamos como aplicar essas cláusulasgerais. O princípio da boa-fé já é muitoaplicado na prática, o princípio da fun-ção social do contrato é um pouco me-nos conhecido mas, de qualquer manei-ra, sua prática existe. Da mesma for-ma, temos já imbuída entre nós a idéiado Direito Civil Constitucional, que aquino Estado do Rio de Janeiro a Escola daUERJ, sob a liderança do Prof. GustavoTepedino, tem frisado muito: a Consti-tuição, a dignidade da pessoa humanacomo idéia guia, a diferenciação nosvalores da ordem econômica e financei-ra, a idéia da defesa do consumidor, dadefesa do meio-ambiente, da defesa dotrabalhador, mas principalmente idéiade que o nosso mercado deve levar aodesenvolvimento e, ao mesmo tempo, nãoexcluir pessoas (idéia da solidariedadesocial). Todas essas noções encontram-se na Constituição brasileira e podemser usadas para concretizar (con-cretude), para essa fotografia que nósvamos fazer do que é realmente a boa-féna prática contratual.
Na parte prática é de grande im-portância a interpretação das cláusulasabusivas. Por que a interpretação? Não sóporque o artigo 421 do Código Civil come-ça o capítulo impondo que: �A liberdadede contratar será exercida em razão e noslimites da função social do contrato� e o422 afirma: �Os contratantes são obriga-dos a guardar, assim na conclusão do con-trato, como em sua execução, os princípi-os de probidade e boa-fé�, mas tambémporque a idéia que está no artigo 113 é deque a boa-fé é a maneira, o instrumentoda interpretação dos contratos hoje.
Assim impõe o artigo 47 do Códigode Defesa do Consumidor: a interpreta-
80 Veja a obra de REINICKE, Dietrich e TIEDTKE,Klaus, Bürgschaftsrecht, Berlim, Luchterhand, 1995.
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ção é a favor do mais fraco, a interpre-tação é de acordo com a boa-fé. Mas qualseria a diferença entre o que impõe oCódigo de Defesa do Consumidor e o queafirma o Código Civil de 2002? A dife-rença pode estar no artigo 423, o qualafirma: �Quando houver no contrato deadesão cláusulas ambíguas ou contra-ditórias dever-se-á adotar a interpreta-ção mais favorável ao aderente�. Tal nor-ma não deixa de ter o espírito de prote-ção do aderente, aquele que não redigeas cláusulas, mas o texto exige três de-talhes que o Código de Defesa do Con-sumidor não exige. Primeiro que seja umcontrato de adesão. Nas relações entreiguais, entre dois comerciantes ou en-tre dois civis, como, por exemplo, o con-domínio (o próprio Superior Tribunal deJustiça já afirmou que não considera estauma relação de consumo) ou seja, nes-sas relações puramente civis e puramen-te comerciais (parece-me que haveráuma modificação da interpretação doCódigo de Defesa do Consumidor quan-do esse código entrar em vigor), voltare-mos a uma discussão que era muito co-mum no Judiciário: se é ou não é umcontrato de adesão. Só em caso de con-trato de adesão, permite o Art. 423 o con-trole do conteúdo do contrato e a nuli-dade da cláusula. Onde encontraremosa definição de contrato de adesão?
Não está no Código Civil de 2002,porém, tal definição pode ser retiradaanalogicamente do Código de Defesa doConsumidor, do artigo 54. Destaque-seque o Supremo Tribunal Federal negou-se a definir contrato de adesão entrecomerciantes com base no Art. 54 doCDC. No caso que eu comento na Revis-ta de Direito do Consumidor, o Tekaversus Aiglon, 81 o Supremo Tribunal Fe-deral, em um contrato de importaçãoentre comerciantes, apesar de ter sidousado um formulário, isto é, condiçõesgerais de venda de algodão da Irlandapara essa tecelagem brasileira, consi-
derou que não se tratava de um contra-to de adesão em virtude da igualdadeeconômica e da possibilidade de recu-sar e modificar efetivamente as cláusu-las. 82Já na definição ampla do artigo 54do Código de Defesa do Consumidor qua-se tudo é contrato de adesão. A juris-prudência do Superior Tribunal de Jus-tiça e do Supremo Tribunal Federal, pelomenos nesse caso Teka versus Aiglon,ao contrário, possibilita o renascimentoda discussão do que é um contrato deadesão entre comerciantes.83 O segun-do exemplo é de um caso de São Paulo,de um conflito de competência decididono STJ.84 Discutida é a cláusula de elei-ção de foro, também uma cláusula co-mum em qualquer formulário de contra-to comercial, que poderíamos denomi-nar de �contrato de adesão�. Nesse casoque envolve a empresa Panamá Inter-national e uma unidade cardiotoráxicade Sergipe, tanto o II Tribunal de Alçadade São Paulo, quanto o Superior Tribunalde Justiça (relator Ministro AriPargendler), consideraram que aqui nãose tratava realmente de contrato de ade-são, apesar de ser um contrato-formulá-rio, porque havia uma certa igualdadeentre as partes e não aplicaram o Códigode Defesa do Consumidor e possibilita-ram a eleição do foro nessa relação en-tre comerciantes.
Parece-me, pois, que nasce aquiuma grande discussão sobre a naturezae talvez a impossibilidade de se usar o
81 STF, Pleno, SEC (Sentença Estrangeira Contestada)5.847-1, Rel. Min. Maurício Corrêa, 01/12/99, veja aintegra da descião in Revista Direito do Consumi-dor, nº 34 (abr.-jun.2000), p. 253-263.
82 Veja nossos comentários, MARQUES, Cláudia Lima;TURKIENICZ, Eduardo. �Caso Teka vs. Aiglon: emdefesa da teoria finalista de interpretação do art. 2º doCDC� in Revista de Direito do Consumidor, n. 36(out.-dez. 2000), p. 221-240.83 Destaca a importância desta decisão para o diálogoentre o CC/2002 e o CDC, PASQUALOTTO, Adalberto,�O Código de Defesa do Consumidor em face do novoCódigo Civil�, Revista de Direito do Consumidor, nº43 (jul-dez..2002), p. 10484 Conflito de Competência nr. 32.270-SP, j.10.10.2001, Min. Ari Pargendler, p. 3 (voto), cujaementa é: �Conflito de Competência. Foro de Eleição.Prevalência. Na compra e venda de sofisticadíssimoequipamento destinado a realização de exames médi-cos � levada a efeito por pessoa jurídica nacional epessoa jurídica estrangeira � prevalece o foro de elei-ção, seja ou não uma relação de consumo. Conflito co-nhecido para declarar competente o MM. Juiz de Di-reito da 16ª Vara Cível de São Paulo.�
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artigo 54, como estão sugerindo os pri-meiros comentaristas ao Código Civil, comoparadigma do que é um contrato de ade-são no país, tendo em vista que o artigo54 do Código de Defesa do Consumidor éum artigo somente para uso nessemicrossistema, isto é, frente a um leigo,um consumidor trata-se de um �contratode adesão�, mas o mesmo contrato frentea dois comerciantes (no caso, frente a doiscomerciantes num contrato internacio-nal), talvez não seja considerado como tal.
A segunda diferença é a menção acláusulas ambíguas ou contraditórias.Na interpretação, obviamente de acordocom a boa-fé, que se faz com força noartigo 47 do Código de Defesa do Consu-midor não se exige que a cláusula sejaambígua ou não clara. No CDC não utili-za-se o brocado: interpretatio cessat inclaris, isto é, se há clareza, não há ne-cessidade de interpretação. Ao contrário,a visão do Código de Defesa do Consumi-dor é de incluir todas as informações eque a interpretação geral de todas as clá-usulas, as claras e as ambíguas seja afavor do consumidor. A idéia aqui defen-dida pelo Prof. Arnoldo Wald, da neces-sária proteção da confiança despertadaatravés dos atos do fornecedor. Segundoo CDC, todas as informações e mesmo apublicidade, ex vi artigo 30, serão incluí-das no contrato celebrado, como �cláusu-las� extras deste contrato. A publicidade,como informação ou promessa que des-pertou a confiança do consumidor, podeestar em contradição com uma cláusulaclara do contrato.
Não existem cláusulas mais cla-ras do que as cláusulas abusivas. Se,por exemplo, o contrato exclui uma de-terminada doença, AIDS, trata-se deuma cláusula clara, se o contrato intro-duz uma cláusula penal pesadíssima,uma cláusula quase de decaimento, tra-ta-se de uma cláusula clara, se estipu-la o preço de uma taxa de administra-ção de 48%, trata-se de uma cláusulaclara. Mesmo assim essas cláusulas �cla-ras� podem e devem sofrer alguma in-terpretação para evitar que elas sejamcláusulas abusivas, isso segundo o Có-
digo de Defesa do Consumidor. A per-gunta é: se no sistema das relações en-tre iguais, entre comerciantes, vai serpermitida ao juiz a utilização da boa-fé,com toda essa potencialidade que o Judi-ciário brasileiro utiliza no microssistemado Código de Defesa do Consumidor parabeneficiar um dos aderentes, isto é, nocaso do contrato inter-comerciantes,beneficiar um dos comerciantes.... Pa-rece-me, a primeira vista, que o artigo423 não permite esta linha de conclu-são. Volta-se ao sistema antigo de in-terpretação, que exige uma contradiçãoou uma falta de clareza e, sim, um con-trato de adesão, isto é, um contrato ondea liberdade contratual esteja de tal for-ma reduzida pela simples adesão de umde forma a permitir essa interpretaçãoa favor do aderente. Caso contrário, ainterpretação é somente de acordo como princípio geral de boa-fé e, como afir-ma o artigo 421, através da função soci-al do contrato. Pode ser que, havendointeresse público (imaginem um contra-to de licitação, um contrato de energiaelétrica), e não sendo um contrato deconsumo, ainda persista a possibilidadede criação do juiz nesse Código, parece-me que, porém, mais reduzida. Além dis-so, o artigo 112 do Código Civil novo resta-belece aquela velha regra do artigo 85 doCC/1916, quanto à intenção das partes.Portanto, não evolui quanto à teoria. Tra-ta-se da teoria da vontade e não a teoriada declaração. No Código de Defesa doConsumidor, a idéia é de expectativas le-gítimas, de proteção da confiança, que le-vava à utilização da teoria da declaração,mais especificamente da Teoria da Confi-ança: declarou, mesmo que na publicida-de, deve cumprir.
Os pré-contratos (artigo 48 do Có-digo de Defesa do Consumidor), os avi-sos, os recibos, qualquer documento, aspromessas (artigo 34) dos representan-tes autônomos, todas essas declaraçõestêm uma importância fortíssima nomicrossistema do Código de Defesa doConsumidor. Já no Código Civil novo -porque é um código entre iguais, repi-to -, essa importância diminui. E o pon-
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to de maior colisão, entre um sistema e ooutro é o artigo 111 do Código Civil segun-do o qual o silêncio das partes pode signi-ficar aceitação, segundo os usos e costu-mes locais. Essa norma é uma norma per-feita para uma relação entre iguais, rela-ção entre civis e relação entre empresá-rios, portanto experts ou igualmente lei-gos, mas não pode ser transportada parao microssistema do Código de Defesa doConsumidor. Portanto (e aí eu retorno aminha idéia inicial), parece que se as nor-mas são semelhantes, se o princípio é omesmo, isto é, o princípio da boa-fé, aautorização dada ao Judiciário para inter-pretar o princípio da boa-fé no Código Civilde 2002, através das suas várias normas,é menor e está menos guiada ou indicadado que no Código de Defesa do Consumi-dor, onde a atuação de controle do con-teúdo do contrato, pela própria naturezadeste, em uma relação entre diferentes,é maior.
O último ponto a tratar, antes depassarmos à jurisprudência, é o do arti-go 424 do Código Civil de 2002, que esta-beleceu: �Nos contratos de adesão sãonulas as cláusulas que estipulem a re-núncia antecipada do aderente a direitoresultante da natureza do negócio.� Aquidestaco a nulidade absoluta. Muito sediscutiu, inclusive no Código de Defesado Consumidor, se as cláusulas abusivaseram nulas de forma relativa, tendo emvista que a nulidade de forma relativapode ser sanada. O Código Civil, e nessesentido ele é bastante coerente, trans-formou algumas nulidades relativas emnulidades absolutas, porque hoje interes-sa à sociedade como um todo que essascláusulas abusivas sejam consideradasilícitas, pelo menos que haja uma san-ção - a própria nulidade. Não há apenasum interesse pessoal, individual, das par-tes que está sendo atingido, mas há tam-bém um interesse da coletividade. Essaidéia já estava no Código de Defesa doConsumidor e agora foi repetida no Códi-go Civil. Nesse sentido, a sanção nulida-de é a mesma, apesar de o Código Civilnovo dar menor possibilidade, na minhaopinião, de atuação do Judiciário.
Por fim, o artigo 425, o último quedevo mencionar, afirma o seguinte: �Élícito às partes estipular contratosatípicos, observadas as normas geraisfixadas neste Código�. É claro que esseartigo nada menciona sobre cláusulasabusivas, mas permite tratar da idéiada �criação� pelo Judiciário, da identifi-cação do que é �de acordo� com a boa-féou contrário a ela, através daconcretização que faz caso a caso. Ve-jamos, a idéia do contrato atípico ou tí-pico na noção de arrendamento mer-cantil, contrato que por muito tempo nãoteve lei especial. Quando veio a lei, foio próprio Judiciário que, não direta-mente, mas na prática, fez a referidavaloração. Por exemplo, um artigo da Leido Arrendamento Mercantil permitia atransformação da natureza do contratoe, hoje, após a atuação do Judiciárioestá mais ou menos consolidada a idéiade que a antecipação do VRG transfor-ma a natureza do contrato. Transfor-ma, porque isso já estava previsto maisou menos indiretamente na própria lei,mas a potencialização veio através doJudiciário, através da criação e da in-terpretação judicial.
Para finalizar, veremos como a ju-risprudência tem interpretado esta idéiade que a boa-fé é o instrumento valorativodo que é de acordo ou contra, isto é, doque é abusivo ou do que é permitido emmatéria contratual. Os deveres de boa-fé principais são: o dever de informar, odever de cooperar e o dever de cuidado.
No Resp. nº 264562 o Ministro AriPargendler, em decisão de 12.06.2001,afirma o seguinte: �Civil. Seguro de as-sistência médico-hospitalar - plano de assis-tência integral (cobertura total), assimnominado no contrato. As expressões �assis-tência integral� e �cobertura total� são expres-sões que têm significado unívoco na compre-ensão comum, e não podem ser referidasnum contrato de seguro, esvaziadas do seuconteúdo próprio, sem que isso afronte oprincípio da boa-fé nos negócios. Recursonão conhecido�. Aqui a idéia de que onome do contrato (não é nem uma cláu-sula, mas sim o título do contrato) já
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desperta uma expectativa, já informa.Então, se realmente o contrato se cha-ma �assistência integral�, �cobertura to-tal�, ele não pode ser uma assistência�não-integral�, uma cobertura �não-total�,nas cláusulas do contrato de adesão. Acontradição, se fôssemos identificar,estaria entre o título e as cláusulas. Odever de informar é um dever de condu-ta, um paradigma de conduta leal nasociedade, como mencionava o Prof.Arnoldo Wald, há pouco. Assim como ocontrato, a cláusula é um instrumentode informação, que despertará expecta-tivas e a cláusula será abusiva ou o nomeviolará o princípio da boa-fé, justamentequando a cláusula não informar, o nomenão informar. Ao contrário da idéia dodolus malus ou bonus, a idéia aqui é ade levar o outro a uma falsa visão darealidade, que passa a confiar que essecontrato realmente assegura uma cober-tura total, uma assistência integral. Porque essa cláusula foi declarada abusiva,ou por que essa informação do título foiassim considerada? Justamente pelavaloração que se fez de uma condutaleal, de um paradigma na sociedade.
Um outro bom exemplo da juris-prudência é o REsp. n° 23.4219/SP, doMinistro Ruy Rosado, de 15.05.2001,com a seguinte ementa: �Seguro saúde.Doença preexistente. AIDS. Omissa a segu-radora tocante à sua obrigação de efetuar oprévio exame de admissão do segurado,cabe-lhe responder pela integralidade dasdespesas médico-hospitalares havidas coma internação do paciente, sendo inoperantea cláusula restritiva inserta no contrato deseguro-saúde. Recurso conhecido em partee parcialmente provido�. Aqui observamosuma idéia ainda mais interessante paraa prática dos magistrados: de que ascláusulas abusivas são abstratas, intrín-secas, estando no contrato desde o iní-cio, obviamente. Mas o importante, àsvezes, não é a cláusula, mas a prática,que são atos violadores do princípio daboa-fé, do dever; por exemplo, do deverde cooperar, de bem informar as pesso-as de que esse plano não cobre a AIDS,ou, como no caso concreto, os vendedo-
res ainda informavam que era o únicoplano que cobria a AIDS, o que induziu aerro estas várias pessoas. De qualquermaneira, a prática de não exigir examesprévios persiste até hoje e, nos contra-tos coletivos, quem preenche aquelesformulários, às vezes, é o empregadorou então o corretor, e não a pessoa con-sumidor beneficária. Depois afirma-seque houve �omissão� de informação porparte do indivíduo. A cláusula sempreesteve no contrato, a prática comercialé que vai �tirá-la� daquela inércia em queela se encontra. E cabe ao Judiciárioafirmar se esta cláusula é violadora doprincípio da boa-fé, da idéia de que aspartes devem cooperar e não deixar den-tro dos contratos verdadeiras �armadi-lhas� para os seus parceiros contratuais.É dever informar quais são ou não osriscos cobertos pelas seguradoras - eaqui o Ministro menciona o dever de as-segurar-se que realmente aqueles in-divíduos são saudáveis.
Por fim, um exemplo do dever decuidado. É o REsp. n° 255065/RS, Mi-nistro Carlos Alberto Menezes Direito,de 05.04.2001. O tema é o mesmo: �Se-guro saúde. Cobertura. Cirrose provocadapor vírus �C�. Exclusão. Precedentes. 1. Ad-quirida a doença muito tempo após a assi-natura do contrato, desconhecida do autorque, em outras oportunidades, obteve trata-mento com reembolso, diante de situaçãosemelhante, não há fundamento para a re-cusa da cobertura, ainda mais sendo depossível contaminação em decorrência dotratamento hospitalar, ocorrendo ainternação diante de manifestação aguda,inesperada. 2. Recurso Especial conhecidoe provido�. Aqui essa cláusula de exclu-são de doença, que no caso erapreexistente, estava no contrato, genéri-ca, absoluta, e o indivíduo não sabia queera doente, ou pelo menos, na práticacomercial ele recebia esse tratamento.
Gostaria de mencionar, nessa li-nha do seguro-saúde, uma outra deci-são que me parece importante, a do Respn° 229078, do Ministro Ruy Rosado, de09.11.90, que expressamente consideraque as cláusulas podem ser abusivas
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mesmo que autorizadas por agências,hoje em dia, ou antigamente por outrosórgãos do governo. Conhecemos em ma-téria de consórcio, o fato das cláusulasserem consideradas abusivas mesmo seprevistas em portarias ministeriais. Nareferida ementa, ensina o ministro:�Seguro saúde. Exclusão da proteção. Faltade prévio exame. A empresa que explora pla-no de seguro-saúde e recebe contribuiçõesde associado sem submetê-lo a exame, nãopode escusar-se ao pagamento da suacontraprestação, alegando omissão nas infor-mações do segurado. O fato de ter sido apro-vada a cláusula abusiva pelo órgão estatal...�(no caso era a SUNAB ainda), �...instituí-do para fiscalizar a atividade da seguradora,não impede a apreciação da sua invalidade�.
Outro detalhe importante nessafotografia da boa-fé é o da cadeia de for-necimento, que foi mencionado aqui peloProf. Arnoldo Wald, isto é, quando eu vouconcretizar quais são as condutas de acor-do com a boa-fé, devo concretizar comoum todo, em conjunto. Porfessor Waldusou a figura de linguagem segundo a qualos contratos são como gêmeos siameses,mas a verdade é que as cadeias de produ-ção são muitas e essa complexidade temque ser vista sob os olhos da boa-fé. Umbom exemplo é de seguro-saúde, assimdestaque-se o REsp. n° 138059/MG, de2001, Ministro Ari Pargendler, sobre a so-lidariedade. �Civil. Responsabilidade civil.Prestação de serviços médicos. Quem se com-promete a prestar assistência médica por meiode profissionais que indica é responsável pe-los serviços que estes prestam. Recurso Es-pecial não conhecido�. Esse leading casesobre o que é realmente essa fotografiade acordo com a boa-fé, das relações en-tre comerciantes, vai ser cada vez maisimportante em um mundo em que prati-camente tudo é oriundo de franquias, desistemas de distribuição. Então, esses sis-temas, esses modos de relacionamento en-tre comerciantes e entre a cadeia de co-merciantes e dos consumidores devem servisualizados de acordo com a boa-fé, istoé, uma solidariedade oriunda dessa vi-são, dessa interpretação da relação in-terna entre eles.
Por fim, gostaria de focalizar ascláusulas econômicas dos contratos.Como podemos usar o princípio da boa-fé para esta que é uma obrigação princi-pal, isto é, prestar e pagar. Só que estasobrigações principais (não aqueles de-veres anexos de informação, cooperaçãoe cuidado, que são deveres de condutaoriundos diretamente da boa-fé) na fi-gura de Karl Larenz, são como um edifí-cio, mas apenas o primeiro edifício. Todoedifício tem uma sombra, na figura deKarl Larenz, isto é, a obrigação primeira(Schuld) tem uma sombra (Haftung),que é o respondere, a responsabilidade,garantia, a obrigação secundária. O queocorre no contrato, é que geralmente acláusula abusiva não ataca a primeiraobrigação, isto é, a obrigação de prestar(ou raramente). Ela geralmente ataca a�sombra�, isto é, a responsabilidade oua garantia em matéria contratual. En-tão, o indivíduo que tem a primeira obri-gação e que não nega que tem a primei-ra obrigação, diminui a sombra, restrin-ge a sombra ou, por vezes, chega mesmoa acabar com a sombra através de cláu-sulas de desoneração, ou de cláusulaspenais, que também relacionam-se coma responsabilidade, ao preverem perdase danos. Estas cláusulas abusivas, ascláusulas exonerativas ou limitativas,que atingem a natureza do contrato, nãoatacam a primeira obrigação, mas elasatacam a sombra. Trouxe, então, algunsexemplos para os senhores: EDREsp.225136/AM, de 2001, Ministra FátimaNancy Andrighi � �(...)É indevida a reten-ção de percentual das parcelas pagas, ain-da que a título de compensação pelas des-pesas cartorárias e de publicidade, quandohá reconhecimento de inadimplemento daincorporadora, para o qual não contribuiu oconsumidor�. E assim também vários outrosrecursos especiais que, valorando, reduzema cláusula penal, seja pelo Código Civil anti-go (hoje essa permissão existe também noCódigo Civil novo), seja pelo artigo 53 doCódigo de Defesa do Consumidor.� Inte-ressante nesse momento é a existênciado inadimplemento do consumidor. En-tão vejam: a primeira obrigação do for-
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necedor foi cumprida, houve a sombra,isto é, a responsabilidade, e oinadimplemento do consumidor ou dooutro. Nós temos três exemplos impor-tantes em matéria de consumidor, queeu queria mencionar para os senhores,e que podem ser usados no que nós po-deríamos chamar: �as futuras cláusu-las abusivas entre comerciantes�.
O primeiro exemplo é quanto àpenhora, às garantias. É o do REsp. nº209410 de 99, relator Ministro Ruy Ro-sado, mas também seguido no REsp. nº235410/99, do Ministro Sálvio deFigueiredo. Bem, aqui, se impõe um de-ver de boa-fé quando o credor utiliza oseu direito, por exemplo, de colocar obem em penhora para leilão, ou hastapública. Enfim, cada um tem um direi-to, e a idéia do STJ é assegurar que odireito de ser informado e o dever de infor-mar, o direito de ser previamente comuni-cado, a fim de que o credor possa acompa-nhar a venda e exercer eventual defesados seus interesses, é intrínseco no casoda penhora. Uma interpretação, uma cria-ção do juiz. O devedor é inadimplente, elejá não tem mais nada o que fazer, mas aí,mesmo aí, há uma pós-eficácia do direitode ser informado, da idéia da atuação leal,no sentido de que ele tem que ser chama-do, e ele tem de poder pelo menos dimi-nuir as suas perdas.
Um caso interessante, tambémrelatado pelo Ministro Ruy Rosado, queme parece mais claro, é o REsp. 250523/00, sobre uma nova espécie de cláusu-la-mandato ou cláusula de autorização.A ementa afirma: �Conta-corrente. Apro-priação do saldo pelo banco credor. Nume-rário destinado ao pagamento de salários.Abuso de direito. Boa-fé. Age com abuso dedireito e viola a boa-fé o banco que, invocan-do cláusula contratual constante do contratode financiamento, cobra-se lançando mão donumerário depositado pela correntista que éuma empresa, em conta destinada a paga-mento dos salários de seus empregados, cujonumerário teria sido obtido junto ao BNDES.A cláusula que permite esse procedimento émais abusiva do que a cláusula-mandato,pois enquanto esta autoriza apenas a consti-
tuição do título, aquela permite a cobrançapelos próprios meios do credor nos valorese no momento por ele escolhidos�.
E para terminar, eu destaco tam-bém em virtude do princípio da boa-fé, aidéia do adimplemento substancial, istoé, quando o devedor fez vários pagamen-tos, mas ao final, ele não consegue fazero último; geralmente, mesmo nas rela-ções frente a fornecedores, ele acaba per-dendo esta última possibilidade de sanar,de suprir a sua mora. Mencionem-se duasdecisões: uma é do Ministro Ruy Rosadoe outra do Ministro Sálvio de Figueiredo.São dois casos envolvendo seguro, em quea última prestação é que não foi paga. Pa-rece-me que esse é um exemplo de coo-peração, do dever de cooperar para evitarque o outro frustre as suas expectativas,legítimas no caso do consumidor.
ConclusãoConcluindo, qual seria a diferença
entre o sistema que temos hoje e o quevamos começar a receber? Vamos rece-ber um sistema muito mais ético, muitomais social, ou pelo menos com cláusu-las gerais claras, com princípiosbelíssimos, como a função social do con-trato, a boa-fé. A diferença realmenteestá na possibilidade do desenvolvimen-to do Judiciário, deste sistema genéricoque é o Código Civil de 2002. Para rela-ções entre iguais, entre comerciantes eentre civis, parece-me um sistema mui-to positivo, uma evolução, ou uma revo-lução, como mencionou o professorArnoldo Wald. Comparando com omicrossistema do Código de Defesa doConsumidor, que já era preparado parauma relação entre diferentes, e que semdúvida não vai ser afetado pelo CódigoCivil, mas com o qual dialogará pois estalhe dá base fundamental, essa linha decláusulas abusivas do Código Civil é in-suficiente, e não deve ser transportadapara ser aplicada no microssistema doCódigo de Defesa do Consumidor.
O que pode haver (o que acho queseria salutar), é que essas conquistas,exemplificadas na jurisprudência que eutrouxe aqui, a maioria delas utilizando
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o Código de Defesa do Consumidor, pos-sam sim, ser transportadas para escla-recer toda a potencialidade do princípioda boa-fé, mesmo nas relações entreiguais. Os alemães, agora em 2000 e2001, introduziram no Código Civil de1896 a figura do consumidor, parágrafo13. Imaginam possível um direito civilgeral e social, em que uma das partesenvolvidas é o consumidor. Na presençade um consumidor haverão normas ain-da mais protetivas, mas esta proteçãodo consumidor está integrada no CódigoCivil, nessa idéia nova de um direito ci-vil constitucional. A opção brasileira foidiferente: temos um Código de Defesado Consumidor e um novo Código Civil.Eu espero que se possa colaborar com aexperiência do Código de Defesa do Con-sumidor para interpretar essas normasdo Código Civil Brasileiro, e que não sejao contrário, isto é, que não se usem asnormas do Código Civil Brasileiro paradiminuir a proteção dos consumidores,assegurada no Código de Defesa do Con-sumidor e na Constituição Brasileira.
DEBATES
Dr. Werson RêgoProfessora Cláudia Lima Marques,
a sua palestra foi por demais abrangente;veio da doutrina à prática, e desaguouna questão jurisprudencial, e a cadapergunta que eu pretendia formular, logoem seguida vinha a resposta. Nósestamos numa Escola de Magistratura,uma Escola de Magistrados, e é impor-tante termos a visão de umadoutrinadora do seu peso, que tanto con-tribui para as relações de consumo, quefez um estudo bastante detalhado daevolução jurisprudencial nos últimos dezanos, até para a 4ª edição do seu livroespecífico sobre essa questão dos con-tratos, e me vem então a seguinte for-mulação: Durante a sua exposição foicolocada uma questão que talvez nãotenha passado tão atentamente pela pla-téia, que foi a revolução do sistema jurí-dico brasileiro, com a entrada em vigordo CDC, isto é, o CDC como um instru-
mento, um parâmetro de oxigenação doordenamento jurídico como um todo, elembrava esses princípios que estãoinsertos no Código de Defesa do Consu-midor, de justiça contratual, de equiva-lência das prestações, de boa-fé comomedida de valoração de conduta, isto é,como medida de decisão. Em diversostrabalhos que o Professor ThomasWilhemson já fez publicar na Revista deDireito do Consumidor que, antes detudo é referência necessária na maté-ria, ele faz uma distinção entre a teoriaclássica dos contratos prevista nas le-gislações civis de maneira ordinária eaquilo que ele vislumbrava como o novofenômeno da contratação. Ele diz quepelo sistema tradicional, a legislação fazuma abordagem estática do contrato. Ea nova sistemática adotada pelo Códigodo Consumidor procede a uma aborda-gem dinâmica, que já está reconhecidano novo Código Civil. Diz também que ateoria tradicional procede a uma abor-dagem atomística, uma abordagem vol-tada para o indivíduo, ao passo que sedeve, hoje, conferir uma interpretação,uma abordagem voltada para o interes-se público, para o interesse social e, por-tanto, mais abrangente.
Ele também vislumbrava no con-trato esse instrumento de antagonis-mo para a relação tradicional, ao passoque, modernamente se vê o contratocomo instrumento de cooperação, paraque se alcance o resultado útil, ou asua função social. Pois bem, lembravatambém Robespierre, que diz que nãose faz uma revolução sem uma revolu-ção, e o Código de Defesa do Consumi-dor opera esta revolução, muito embo-ra ela não se tenha feito sentir na prá-tica por uma certa resistência inicialdos aplicadores do direito, que, com opassar dos anos, veio a ser vencida.
Diante desta premissa, desta pon-deração introdutória, à luz do artigo 29do Código de Defesa do Consumidor, queseria uma norma de extensão daabrangência inicial, da incidência inici-al do Código, eu gostaria de ponderar:como ficam os avanços que foram obti-
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dos a partir da aplicação dos princípiosinformadores da teoria dos contratos como Código de Defesa do Consumidor, di-ante de alguns retrocessos que foramreconhecidos pela nova legislação civil?Se são normas de ordem pública, à luzdo artigo 425 do Código Civil, estaria oEstado, autorizado a intervir numa re-lação privada, para assegurar e resga-tar o equilíbrio eventualmente rompido?E como deve, no seu entendimento, seposicionar a Magistratura de uma ma-neira geral em relação à aplicação des-ses princípios do Código de Defesa doConsumidor, à luz desse novoparadigma, estabelecido pelo novo Códi-go Civil, que nos traz os princípios daeticidade, da socialidade e mais impor-tante do que esses dois, o daoperabilidade, um caráter pragmático eútil à nova legislação civil?
Dra. Cláudia Lima MarquesPrimeiro, quero destacar a idéia
de que o Código de Defesa do Consumi-dor foi muito importante no sistema ju-rídico brasileiro, uma revolução, menci-onada pelo Dr. Rêgo. Realmente foi umarevolução, uma socialização, enfim, ummomento novo da teoria contratual, quehoje é consolidado, de certa maneira,por esse Código Civil de 2002. Este, naverdade, vem dos estudos em 69, 73, 75,portanto numa época muito maisintervencionista do Estado nas relaçõesentre pessoas. Eu, particularmente, achoque se esse Código tivesse sido redigidonos últimos cinco anos, ele não seria oque é hoje, porque o espírito atual é umespírito muito mais liberal do que o queestá no Código. Basta ler com olhos �ou-tros� o artigo 421, que afirma o seguin-te: �A liberdade será exercida em razãoda função social do contrato.�. Liberda-de é poder, poder é direito. Então, odireito do indivíduo será exercido emrazão da função do contrato! O professorAntônio Junqueira de Azevedo criticaesta norma, pois considera sua premis-sa exagerada, uma vez que a liberdade,esta sim, é o poder, é direito, e não po-deria estar baseada numa �função soci-
al� de uma instituição. Mas a instituiçãoé considerada tão importante, que a li-berdade, aqui no caso, de contratar, sópoderá ser exercida com base na funçãosocial do contrato, como afirma o artigo421. Realmente, a época eraintervencionista. O Código de Defesa doConsumidor já é de outra época, ele édos anos 80; foi aprovado nos noventa,mas suas teorias vêem dos anos 80, emque se imaginava um Estado Social, istoé, intervencionista, mas ao mesmo tem-po flexível e plural. Por isso, consideroque o Código de Defesa do Consumidorregula as duas crises na sociedade: acrise da massificação, que é essa doCódigo de Defesa do Consumidor e doCódigo Civil de 2002, mas também regu-la a outra crise, que é a da des-materialização, a crise da pós-modernidade. Nós hoje já não mais �de-sejamos� apenas bens móveis materiais(automóveis, geladeiras, televisões etc.);nem imóveis (como na Idade Média), napós-modernidade, o que nós queremossão os serviços e, data maxima venia,eu ainda considero que o Código Civil de2002 não está plenamente preparadopara esta realidade. A sorte é que amaioria dos serviços é regulada pelo Có-digo de Defesa do Consumidor, mas vaificar bastante complicado atualizar esseCódigo para o mundo que está advindo,no qual o que realmente importa é a in-formação, educação, segurança, saúde,seguros, crédito, financiamento, tudo oque é tratado no Código Civil com umavisão ainda moderna.
O Código de Defesa do Consumi-dor em 90 preparou o Brasil, o mercado,para a virada do século XXI, já o CódigoCivil (seguindo analogicamente Pontesde Miranda, que afirmou que o CódigoCivil de 1916 �fechou� o século XIX, semabrir o século XX), teria �fechado� o sé-culo XX, e que o Código de defesa doconsumidor, sim, de certa maneira, ape-sar de seu limitado campo de aplicação,teria aberto o século XXI. Dai minha pri-meira resposta: particularmente, acre-dito que, pela grande contribuição quetraz em relação ao de 1916, o Código Ci-
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vil de 2002 será bem aplicado nas rela-ções intercomerciantes e relações civis,poucas existentes, como a de condomí-nio e o transporte. Na parte dos contra-tos de transporte, o Código Civil afirmaquerer se aplicar antes mesmo dos tra-tados internacionais e das leis especi-ais (Art. 732). Normalmente, o CC/2002�quer� se aplicar depois das leis especi-ais, sob reserva as leis especiais (a nãoser aquelas mencionadas pelo colegaRêgo), que foram incorporadas ao Códi-go Civil, e estão revogadas. Então, nãoexiste revogação tácita no Código CivilNovo, só revogação expressa; isso é umamodificação legislativa, ele revoga ex-pressamente só o Código Civil de 1916 euma parte do Código Comercial, e as leisque ele incorpora, e preserva segundo oartigo 2.043, que foi mencionado, as nor-mas de natureza processual, administra-tiva, ou penal das leis especiais incorpo-radas. Ora, se o Código de Defesa do Con-sumidor não foi incorporado, não temnenhuma menção de revogação expres-sa, então ele continua em vigor. Porém,em matéria de transporte, o artigo espe-cífico do contrato de transporte (art. 732)prevê aplicação do CC/2002 na frente dasleis especiais, o que quebra um pouco osistema normalmente de aplicação sub-sidiária do CC/2002.
Acredito e espero que o CódigoCivil de 2002 possa dar respostas eqüi-tativas às relações interempresariais. Oexemplo dado pelo professor ArnoldoWald serve para contrapor-se ao Direitodo Consumidor: o artigo 6º do CDC - que-bra da base do contrato - não exigeimprevisão, não exige vantagem exces-siva, exige apenas onerosidade excessi-va para a parte vulnerável, ou consumi-dor. Já o artigo correspondente no Códi-go Civil, Art. 478 exige imprevisão, exigevantagem da outra parte. No caso doleasing em dólar, não me parece que asempresas tiveram vantagem excessiva,os fornecedores queriam era transferirum risco profissional seu (a variação dodólar) para os consumidores. Mas, se ti-véssemos que procurar a imprevisão,seria bastante difícil, e se a comprovás-
semos, mesmo assim, teríamos - no sis-tema do CC/2002 - de procurar a vanta-gem excessiva, provar o enriquecimentodessas empresas por terem feito esseleasing em dólar, o que também seriauma prova difícil. Entre comerciantes,parece-me que a possibilidade de revi-são é menor, como no Código Civil novo,onde a possibilidade maior é de resci-são dos contratos; já o Código de Defesado Consumidor assegura tanto a possi-bilidade de modificação, ou de rescisão,se for de interesse do consumidor. Ge-ralmente o que deseja o consumidor é amodificação para reequilíbrio do contra-to e sua manutenção.
Então, respondendo à última per-gunta, parece-me que hoje temos de vero artigo 29 do Código de Defesa do Con-sumidor com olhos de 2002; nesse sen-tido, eu trago aqui uma citação sobre anecessidade de visualização nova. Afir-ma a Desembargadora Elaine HarzheimMacedo, do Tribunal de Justiça do RioGrande do Sul, em um voto em 1999: �Arelação jurídica consortil reclama abor-dagem sob a égide das regras de consu-mo, em face da nova realidade, denomi-nada de pós-moderna, reflexiva daglobalização e acúmulo de riquezas ebens intangíveis...�. �... conquanto reser-vadas ao princípio da boa-fé objetiva asfunções de modificação, adaptação àprestação contratual e mesmo à resolu-ção do contrato...�, e conclui , �... se con-tinuarmos a olhar o novo...� - ou seja, oCódigo de Defesa do Consumidor, na épo-ca - �...com os olhos do velho, seja do Có-digo Civil Brasileiro, vamos passar a sermerecedores da crítica que Pontes deMiranda já fazia: �O Brasil se especializouem fazer reformas que nada mudam�.�
Gostaria de terminar assim a pa-lestra, isto é, considero que o artigo 29deve ser interpretado, hoje, com outrosolhos, e olhos finalistas, olhos de prote-ção dos vulneráveis, especialmente daspessoas físicas. Nas relaçõesinterempresariais, em que o Código deDefesa do Consumidor foi de aplicaçãomuito importante nos últimos dez oudoze anos, ele é hoje menos importan-
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te: aos comerciantes, o Código Comer-cial, agora, aos comerciantes, o CódigoCivil! O CC/2002 traz o princípio da boa-fé, da lesão enorme, da onerosidade ex-cessiva, mas com aquela luz tênue,que tentei mostrar para os senhores,reservando esse �holofote�, que é o Có-digo de Defesa do Consumidor, essa luzfortíssima, para as relações efetivamen-te desequilibradas. Se um dos comerci-antes conseguir provar concretamenteque ele está exposto a uma prática co-mercial abusiva, portanto, que ele é oufoi vulnerável, como os exemplos o STJdemonstram (agricultores, cooperativas,clubes sem fins lucrativos), então, apli-ca-se o artigo 29 do CDC. Não deve ha-ver generalização, porque hoje ele não émais necessário. Preserva-se, assim, omicrossistema do Código de Defesa doConsumidor. Essa, particularmente, é aminha idéia, a idéia de que o CódigoCivil de 2002 vai permitir umareinterpretação do campo de aplicaçãodo Código de Defesa do Consumidor, enão das normas do Código de Defesa doConsumidor, essas sim, mantêm-seiguais, absolutas e imperativas nas re-lações de consumo stricto sensu, mas ocampo de aplicação do CDC tendea diminuir, porque as relaçõesinterempresariais terão respostas, acho,justas, eqüitativas e éticas, no próprioCódigo Civil de 2002.
Des. Luiz Roldão de F. Gomes Os juízes, a partir do dia 11 de ja-
neiro de 2003, terão diante de si o Códi-go Civil e o Código de Defesa do Consu-midor. Quase todos os contratos que hojerecebem a incidência do Código de De-fesa do Consumidor, em vários aspectos(oferta ao público, proposta, vinculação,resolução por onerosidade excessiva) es-tão, praticamente todos, no Código Ci-vil. Evidentemente, haverá um proble-ma de eventual superposição,duplicidade de regimes jurídicos.
Então eu faria a V. Exa. a seguinteindagação: É certo que o âmbito de inci-dência do Código Civil é maior do que o doCódigo de Defesa do Consumidor, no to-
cante, sobretudo, ao princípio da boa-fé, ede cláusulas abusivas, mas não há dúvi-da alguma de que, de um modo geral, asdiretrizes caminham no mesmo sentido:vinculação da proposta, preservação davalidade do contrato sempre que puder,pelo juiz, a própria expectativa da boa-fée, sobretudo, o sistema de cláusulas aber-tas. V. Exa. admitiria que o Código de De-fesa do Consumidor teria sido apenas umafluorescência antecipada de toda umaestrutura jurídica que agora emerge, valedizer, ele é a ponta do iceberg de umaestrutura que agora emerge com o CódigoCivil e que não estaria absorvendo, masse adaptaria a essas novas diretrizes, oque facilitaria, e muito, a aplicação pelosjuízes do direito vigente?
Dra. Cláudia Lima MarquesParece-me que a figura de lingua-
gem utilizada é muito boa, isto é, o Códi-go de Defesa do Consumidor foi a pontado iceberg. Eu tenderia a discordar, nosentido de que - infelizmente - o icebergdo Código de Defesa do Consumidor não éo mesmo do Código de 2002. Apesar damesma linha ideológica, parece-me que aidéia básica do Código Civil é a idéia daigualdade. Em pouquíssimos momentos,ele preocupa-se com a proteção do maisfraco, e eu tentei dar esse exemplo atra-vés do Código Civil Alemão, que é até maisantigo do que o nosso - é de 1896 - emque foram sendo feitas modificações pon-tuais, até essa modificação revolucioná-ria de introduzir a figura do consumidordentro do Código Civil, o que para nós jánão é mais possível, porque, por ordemconstitucional, deveríamos elaborar umCódigo, logo, um todo construído e visan-do somente a proteção dos consumidores.
O resultado concreto é que houveuma espécie de divórcio entre a prote-ção do mais fraco e a proteção dos iguais.Apesar das belíssimas palavras do Pro-fessor Miguel Reale, em Direito de Fa-mília realmente poder haver a proteçãodas crianças, se compararmos o Estatu-to da Criança e do Adolescente - que, sópela idéia de estatuto, é uma lista dedireitos focados na criança - constata-
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remos que o Direito de Família do novoCódigo não está focado na criança, nãoestá focado no mais fraco, mas sim numacerta institucionalização das entidades.Infelizmente, a parte de Direito de Fa-mília do novo Código também não estámuito unitária, em virtude das váriasmodificações. E, na parte de contratos,o iceberg que sustentou o Código Civilsão teorias dos anos 70 onde, de certaforma, se imaginava que a intervençãose daria de forma igual, no direito civile no direito comercial.
O Código de Defesa do Consumi-dor já traz um outro pensamento, que jánão mais depende do Direito Comercial.O iceberg do Código de Defesa do Con-sumidor é a idéia da resposta à chama-da Teoria dos Atos Mistos: se temos umcomerciante e um civil, a relação domeio não é comercial; a relação tem queser sui generis, é direito do consumi-dor. Se temos um comerciante e outrocomerciante, a relação é comercial. Setemos um civil e outro civil, a relação domeio é civil. Mas se nós temos um co-merciante e um civil, a relação do meioé de consumo, de proteção do mais fra-co. Por isso que essa linha de proteçãodos mais fracos que realmente foi de-senvolvida, pelos menos na Alemanha,na década de 80, data maxima venia,não foi mais incorporada ao Código Civilde 2002. O que nele foi incorporado - eque vai trazer uma contribuição enormepara a eticidade das relações - foram asteorias da boa-fé da década de 70, teori-as essas que imaginavam uma interven-ção no Direito Civil e Comercial.
O exemplo maior dessa década éa lei alemã de 1976 sobre cláusulasabusivas, que prevê o princípio da boa-fésendo aplicado nas relações frente aconsumidores e nas relações interco-merciantes; o mesmo princípio aplicadoaí com duas ênfases: uma ênfase mai-or, se trata-se de consumidor, e umamenor, se trata-se de relações entre co-merciantes. Ou, por exemplo, a lei por-tuguesa, também da década de 70, sobrecondições gerais contratuais, que apre-senta uma lista de cláusulas abusivas,
se a relação é entre consumidores e co-merciantes, e uma outra lista de cláu-sulas abusivas, se a relação é entre doiscomerciantes. Aqui é uma visão aindamuito forte do direito comercial, atra-vés do qual ocorre a proteção dos consu-midores. Mas, infelizmente, apesar daatualização dos eminentes professores(muitos deles germanistas, como o Mi-nistro Moreira Alves, o próprio ProfessorReale), autores do novo Código Civil, elesnão incorporaram as teorias dos anos 80e só o Código de Defesa do Consumidoras incorporou. Sendo assim, realmentesão dois sistemas estanques, cujo diá-logo das fontes, como diz o meu mestre,Erik Jayme, terá de ser construído pelajurisprudência, pois o legislador não ofez.
A pergunta foi no sentido de o Có-digo do Consumidor ter ou não usado ateoria do Código Civil de 2002. Infeliz-mente não foi verdade, e posso dizer issode certa forma por interpretação autên-tica, porque discuti este tema com o sau-doso mestre da UFRGS, o Professor Cló-vis do Couto Silva, que inclusive critica-va o Código de Defesa do Consumidor,afirmando que essas teorias da décadade 80 não estavam suficientemente pro-vadas como boas, e que o importanteeram as teorias da década de 70 e o prin-cípio da boa-fé. Ele considerava que todoo Código de Defesa do Consumidor nãoera necessário, se fosse aprovado o prin-cípio da boa-fé. Parece-me que, realmen-te, houve no que se refere aos autoresdo Código Civil de 2002, uma certa aver-são ao Código de Defesa do Consumi-dor, às teorias que ele representa, quesão teorias de uma outra década. O con-trário também é verdadeiro, isto é, oCódigo de Defesa do Consumidor nãobebeu das boas fontes do Código Civil. Eesse diálogo, isto é, esta construção, oCódigo novo como base do Código de De-fesa do Consumidor, como conceitos fun-damentais, terá de ser construído pelajurisprudência pois, infelizmente, não foirealizada pelo legislador. Na minha opi-nião são dois icebergs flutuando lado alado, infelizmente..