De catro a catro - Manuel António (1926)

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De quatro a quatro DE QUATRO A QUATRO (1926) Manuel António INTENÇÕES ENCHEREMOS AS velas com a luz náufraga da madrugada Pendurando em dous pontos cardinais a randieira esguia do pailebote branco. Com as suas mãos loiras acenam mil adeuses as estrelas. Inventaremos frustradas descobertas a barlavento dos horizontes pra acelerar os abolidos corações dos nossos veleiros defraudados. Alaremos polo chicote de um meridiano inumerado Na ilha anônima de cada singradura esculcaremos o remorso da cidade Ela noctâmbula desfolhará como umha margarida prostibulária a Rosa dos Ventos do nosso coraçom Encadearemos adeuses de escuma pra toda as praias perdidas Juntaremos cadernos em branco da novela errante do vento. 1

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De quatro a quatro

DE QUATRO A QUATRO

(1926)

Manuel António

INTENÇÕES

ENCHEREMOS AS velas

com a luz náufraga da madrugada

Pendurando em dous pontos cardinais

a randieira esguia

do pailebote branco.

Com as suas mãos loiras

acenam mil adeuses as estrelas.

Inventaremos frustradas descobertas

a barlavento dos horizontes

pra acelerar os abolidos corações

dos nossos veleiros defraudados.

Alaremos polo chicote

de um meridiano inumerado

Na ilha anônima

de cada singradura

esculcaremos o remorso da cidade

Ela noctâmbula desfolhará

como umha margarida prostibulária

a Rosa dos Ventos do nosso coraçom

Encadearemos adeuses de escuma

pra toda as praias perdidas

Juntaremos cadernos em branco

da novela errante do vento.

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De quatro a quatro

Pescaremos na rede dos atlas

ronseis de Simbad

E caçaremos a vela

sobre o torso rebelde das tormentas

pra trincar a escota de umha ilusom.

A FRAGATA VELHA

TES OS olhos distantes

decorados de rostos joviais

que os velhos marinheiros

permutarom polos climas antípodas.

Levas no leme

um pulo de braços tensos

que retorcerom os largacios

horizontes do mar

O vento

atortorando

desfolhou dos velames

outonos de mocidades

Mercava colares circunmeridianos

nos bazares das estrelas

Amarravas faros dispersos

com o simblador calabrote do ronsel

Floresce-ches no Mar

primaveras amargas

de foulas e escamalhos

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De quatro a quatro

Ainda que o vento encalme

tremela nas tuas velas

umha rafega de transmigrações

Nesse teu coraçom inumerável

também enchem e devalam

as marés do meu coraçom.

TRAVESSIA

Troqueis reiterados

o relógio e o Sol

acunharom moedas efémeras

que repetiam todas

a mesma cara e a mesma cruz

A costa e o Mar

escamotearom unânimes dorsos

permutadores da mesma

longínqua evasom

Temos um estrangulado diagrama

repassado por todos os novelos do horizonte

que virarom a proa e a Rosa dos Ventos

Na fasquia dos barcos anônimos

postos a flote pola madrugada

extraviados no roteiro do serão

persistirom sempre

a mesma foula e o mesmo ronsel

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De quatro a quatro

Essa inter-troca de radiogramas

que reeditarom os faros e as estrelas

deu-nos a multiplicaçom monótona

das mesmas letras do mesmo morse

Foi a derradeira rafega do vento

quem nos desfolhou de todas as lembranças?

O Mundo

que já nom sabe

mais que repetir umha volta consabida

rachou clandestinamente

as folhas imprevistas dos almanaques

Com as nossas mãos suicidas

espalharemos no carroussel dos ventos

os quatro pontos cardinais

Mentres

o timoneiro

arrombará proa a Nengures

Repetiremos os cansos corações

cronometrando monotonias

Nas velas indecisas

folheia o vento um indelével

álbum de leit-motivs

O minuteiro

(tic-tac)

assumiu o compasso das travessias.

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De quatro a quatro

OS CÔVADOS NO VARANDAL

ATOPAMOS esta madrugada

na gaiola do Mar

umha ilha perdida

Armaremos de novo a gaiola

Vai sair o Sol

improvisado e desorientado

Já temos tantas estrelas

e tantas luas submissas

que nom cabem no barco nem na noite

Juntaremos pássaros sem geografia

pra jogar com as distâncias

das suas asas amplexadoras

E os adeuses das nuvens

mudos e irremediáveis

E armaremos umha rede de ronseis

pra recobrar as saudades

com a sua viagem feita

polos oceanos do nosso coraçom.

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De quatro a quatro

SÓS

FOMOS ficando sós

o Mar o barco e mais nós

Roubarom-nos o Sol

O paquebote esmaltado

que cosia com linhas de fume

ágeis quadros sem marco

Roubarom-nos o vento

Aquele veleiro que se evadiu

pola corda frouxa do horizonte

Este oceano desatracou das costas

e os ventos da Roseta

orientarom-se ao esquecimento

As nossas soidades

vêm de tam longe

como as horas do relógio

Mas também sabemos a manobra

dos navios que fundeiam

a sotavento de umha singradura

No quadrante estantio das estrelas

ficou parada esta hora:

O cadáver do Mar

fijo do barco um cadaleito

Fume de Pipa Saudade

Noite Silêncio Frio

E ficamos nós sós

Sem o mar e sem o barco

nós.

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De quatro a quatro

… AO AFOGADO

JÁ CHE levaram os olhos

relingadores de lonjanias

e pescadores de profundidades

Já che levaram a voz

emalhados na furna giróvaga

por onde escoam as tempestades

Já che levaram os azos

emalhados m a rede sonora

das cordagens erectas

O vento ainda escovava

com as poutas de escuma

na xerfa

mais cadaleitos

Ias juntando soidades

Por um burato do Mar

chopa-ches um dia a buscar-te

A noiva goleta

enlutada de branco

que cose rotas esquecidas

acena no vento as suas velas

como esse pano das despedidas.

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De quatro a quatro

GUARDA DE 12 A 4

Envergada num mastro da Lua

aguarda-nos a meia noite

O sino de proa

comovida voz astral

zarpou vogando despedidas

Extraviarom-se os passos do Mar

nos vieiros do vento desertor

E perdeu-se pola popa

desamarrado

o ronsel

Fomo-nos transbordando

à cabotagem das constelações

Inventores de pseudo continentes

que imos descobrir

esculcamos as rotas

balizadas de luzeiros

Com um faro na mão

cronometramos o pulso das tormentas

que predizem os semáforos astrais

- Prepara-se um naufrágio

com a ausência cúmplice do Sol!

Vente ventinho do mar

Vente ventinho mareiro

Vente ventinho do mar

Vente nosso companheiro

(popular)

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De quatro a quatro

E as horas a sotavento

vam desviando-se de nós

A alba intrusa

bateu as quatro horas

Era o sino de proa

que tornava do Mar

a voz desarvorada

o velame frustrado.

RECALADA

ATOPAREMOS no peirão

as folhas evadidas

do almanaque dos nossos sonhos

As novas ruas de sempre

exibirám o escaparate

das mesmas noivas inéditas

Fumaremos nas pipas despetivas

todas as transeuntes

hostilidades mudas

O copo desbicado noutro porto

remataremo-lo aqui no mesmo bar

cabo do marinheiro desconhecido

que nos repete o mesmo

ubícuo sorriso loiro

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De quatro a quatro

Nos bordeis já sabem

que a nossa moeda

tem o anverso de ouro

e o reverso sentimental

Os ecos imprevistos

do nosso cantar sonâmbulo

apagarám os focos de madrugada

Manhã despertaremos

na ausência desta jornada

Esquivou-se umha folha

do diário efusivo

Éramos os espectadores

na prestidigitaçom

de umha hora artificial.

NAVY BAR

ESTE bar tem balances

E também está listo

pra se fazer à vela

Encherom-nos o copo

com toda a água do Mar

pra compor um cock-tail de horizontes

Pendurados das horas

atlas geográfico de esperantos

estam sem traduçom

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De quatro a quatro

E tatejam as pipas

com o ademám poliglota das bandeiras

Esse cantar improvisado

é o mesmo

que já se improvisou nalgures

Quem chegou avisando-nos

dessa cita nocturna que temos

com o vento ao N.E.

na encruzilhada das estrelas apagadas?

Aqui bebe de incógnito

o Marinheiro Desconhecido

- sem geografia nem literatura -

A noite dos naufrágios

com o seu braço salva-vidas

aferrará connosco umha vela de chuvascos

O copo derradeiro

estava cheio de despedidas

Polas ruas dispersas

iamo-nos fechando

cada um dentro da sua alta-mar

No repouso de algum copo

todas as noites naufraga o Bar.

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De quatro a quatro

BALADA DO PAILEBOTE BRANCO

ESCUITAVAMOS o vento

rindo-se malévolo

debaixo do seu disfarce

E também contou o barco

a história do piloto

e do gavieiro e a do rapaz

Vós já sabeis todo

Isso que dizem as estampas

do livro de Simbad

Mas ele contou-nos o resto

'Estreava o horizonte

umha largacia audaz'...

O barco foi percorrendo

as cicatrizes sentimentais

que lhe deixarom velhos navegantes

E os adeuses que leva na vela

gravados por miradas

tristes definitivas e distantes

Um dia fijo-se ao mar

com a parola ceifada nos lábios

E já nunca volveu

Agora eu busco um velho marinheiro

ou umha história do pailebote branco

ou qualquer outra cousa...

¿que sei eu!

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De quatro a quatro

Escuitávamos o vento

rindo-se malévolo

debaixo do seu disfarce

Mas a história do pailebote branco

nom a sabia o piloto

nem o gavieiro

nem o rapaz.

O CARTAFOL DO VENTO

O VENTO perdeu as folhas

do seu cartafol

- essas que os chuvascos

mecanógrafos

teclam no manual dos mastros?

As gaviotas nom têm quitassol

mas fam raudos equilíbrios

polo arame transparente

de todas as ortodrómicas do céu

O pailebote sem velas

- Serám essas que o vento

levou no seu cartafol?

também fai equilíbrios no ronsel

Com a boca aberta

- cai-lhe a baba -

está mirando-nos o babiom do Sol.

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De quatro a quatro

LIED OHNE WORTE

ABOIA um esbardar de marusias

tentando os céus sem atopar a Lua

Mas a Lua esta noite

desertou dos almanaques

Murcha entre duas folhas

- violetas pensamentos -

do manual póstumo

- outono de madrigais -

que versifiquei eu

Mansas vagas unânimes

reorganizam-se detrás do vento

Quando passe a rafega derradeira

dirá-nos adeus

com o pano branco do gaf-tope

Alude a um fracasso

de folhas amarelas

e renova-se o sorriso dos mastros

sempre com as pólas novas e joviais

Noiva minha

vestida de lua

que romantizas

tam cursi

polo jardim!

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De quatro a quatro

Sentei-me a proa

fumando a minha pipa

Mas outra noite pensarei em ti.

A ESTRELA DESCONHECIDA

EU VIN-TE decote acovadada

naquela fenestra

- tam a trasmão!

que pendura-ches de umha constelaçom

O horizonte arrincava cada dia

pra ti

a folha de almanaque de umha vela

Mas nunca se emalhou

na falsa rede dos mapas celestes

a tua loira virginidade

Cúmplice a noite

engaiolava o sextante dos marinhos

ingênuas perversões catalogadas

Viúva reiterada de todos os vinte anos

que os marinheiros repetem

cada volta que afogam

Endejamais souberom os cadáveres sem rumo

que ti os amortalhavas com o teu olhar

Emproáramos a meia noite

A sotavento da nossa singradura

vai decote umha nuvem desarvorada

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De quatro a quatro

Com a sua esponja de sombra

apagou pra sempre o teu mudo perfil

A alba nova surpreendeu-me

cacheando entre os luzeiros

umha despedida que se me perdeu.

CALMA DE 6 A 8

NA XERFA esvara o sol

trás das ausentes marulhadas

As velas frouxas

póstumo quebra-mar dos chuvascos

cosem os farrapos com fios de sol morno

Umha gaviota ventríloqua

peteirando no ouro imorredoiro

que os afogados deixarom aboiando

O sol-pôr fechara-se

dentro do mais intacto disco

As nossas pipas atentas

acovadadas ao lazer

Um intre o vapor intruso

coseu de presa a relinga do horizonte

Além do mundo

está o castelo de proa

Há um marinheiro velho

que vem de volta de todos os naufrágios

E trai o fio das aventuras

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De quatro a quatro

- nom se sabe o remate-

que as dársenas estantias

virom evadir-se a bardo das bric-barcas

- O capitam Pardeiro

nom afogou

'Perdeu-se' quand'o bergantim-

Ajustou-se a surdina

largacia como umha nossa olhada

à buzina do Mar

Tremela na mareta leviana

um remorso ou pesadelo

O navio

as mãos trincadas

vai borrando com os pés o ronsel

Já nom virá o vento

por que a noite fechou todas as portas

- Essa luz desvelada

na fenestra da Lua-

Ao bater a hora imprevista do relevo

coseu as adoas soltas

do toque das Trindades

O céu foi-se abuado e friorento

Todo finou

Oh milagre!

As mesmas estrelas

ainda estam

ainda estam ali.

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De quatro a quatro

DESCOBERTA

QUEM fechou esta noite

a fenestra azul do Mar?

Este Mar fugitivo

de todas as ribeiras

Náufrago do nevoeiro

que desviou o rumo

dos pontos cardinais

Ficarom as gaviotas

três singraduras a sotavento

Desorientarom-se os arroazes

intrusos e impunes

Hoje ninguém dá com a relinga

pra aferrar os panos do horizonte

E este serão tam-pouco

engaiolaremos o Sol

O Sol era um pássaro triste

que se pousava no penol.

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LAZER

GAVIOTAS que levam no peteiro

as cartas dos marinheiros namorados

Vapores burgueses

que nos oferecem o remborque do seu fume

Mas as nossas velas encalmadas

espantam a bandaços

as horas como moscas

Vigo está tam longe

que se desorientarom as cartas marinhas

Umha pipa mais

de vagar

deica ver a hora que dá o relógio

Entra umha fria de vento?

– mui bem!

Enrolara-se a pausa

nas suas espirais

E nom sabemos

(abonda já de parênteses)

acrescentar-nos outra volta

a todo isso que se nos esqueceu.

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De quatro a quatro

S.O.S.

TODOS pressentíamos que a noite

preparava algum sofisma

E o faro extraviado

dava o S-O-S

no morse

- clave Orion -

das estrelas

Esses braços abertos da vela

som os mesmos do vento

que se despreguiçou

Na mão do Mar esquecediço

os luzeiros peteiram a bicada

A estrela dos cabarets

com um cigarro nos lábios

pede lume aos quatro pontos cardinais

Pola Galáxia cheia de seixos

um astro velho vai com o seu farol

Que dam os almanaques

pra esta meia-noite?

Mas ainda nom sabemos

de que banda vai chegar a meia-noite

E o faro extraviado

vai esgotar o seu stock de S-O-S.

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AO REVERSO DA NOITE

LUZEIROS degolados

dessangram-se de ouro no Mar

De par de nós

a Lua

fai ronseis infecundos

Entanto sonea a mareta

vai folheando no libro das velas

Irredentos velames exaustos

resignados a pendurar da cruz

Estrelas inconscientes

mecanizam o obsesso tic-tac

A água toda dos oceanos

ensumiu-se numha bágoa

E o pano branco do novo dia

enjugará os olhos do céu.

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De quatro a quatro

ADEUS

Entre a calima

transpondo o meu olhar

esquivou-se o velame

Deixou-nos a baia

cheia da sua ausência

e a manhã sem perspectiva

Agora em terra

arredado de mim mesmo

por um oceano de singraduras

o vento da Ria

vai virando a folha de cada emoçom

- O Sol indiferente

Sereia aguardentosa dos vapores

um retraio de fume

no quebra-mar da paisagem

As engrenagens da grua

esmoem a manhã morna -

Debaixo dos meus passos

surge o ronsel da Vila natal

Ela com os braços cheios de sono

teima salvar-me de um naufrágio antigo

E os meus ouvidos incautos

querem dormir no colo

das cantigas velhas

Eu cacheava todos os segredos

das minhas mãos valdeiras

por que algo foi que se me perdeu no Mar

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De quatro a quatro

… alguém que chora dentro de mim

por aquele outro eu

que se vai no veleiro

pra sempre

como um morto

com o peso eterno de todos os adeuses.

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