De Ernas Pro Ar a Escola Do Mundo Aos Avessos

196

description

Em De pernas pro ar – A escola do mundo ao avesso, Eduardo Galeano provoca nossas emoções e nossas consciências, como já o fizera no clássico As veias abertas da América Latina no início da década de 70. Nestas páginas, que transitam pela ironia e, não raro pela indignação, desfilam uma enorme quantidade de fatos, eventos históricos e jornalísticos que comprovam que o mundo está, de fato, de pernas pro ar, refletindo a nossa incapacidade de harmonizar justiça e liberdade.

Transcript of De Ernas Pro Ar a Escola Do Mundo Aos Avessos

  • Para Helena, este livro

    que lhe devia.

    De pernas pro ar tem muitos cmplices. um prazer denunci-los.

    Jos Guadalupe Posada, o grande artista mexicano morto em 1913, o nico inocente. As gravuras que acompanham este livro, esta crnica, foram publicadas sem que ele soubesse.

    Em troca, outras pessoas colaboraram sabendo o que faziam, e o fizeram com um entusiasmo digno de melhor causa.

    O autor comea por confessar que no teria podido cometer estas pginas sem o auxlio de Helena Villagra, Karl Hbener, Jorge Marchini e seu ratinho eletrnico.

    Lendo e comentando a primeira tentativa criminosa, tambm participaram da maldade Walter Achugar, Carlos lvarez Insa, Nilo Batista, Roberto Bergalli, Davi Cmpora, Antonio Doate, Gonzalo Fernndez, Mark Fried, Juan Gelman, Susana Iglesias, Carlos Machado, Mariana Mactas, Luis Nio, Raquel Villagra e Daniel Weinberg.

    Certa parte da culpa alguns mais, outros menos cabe a Rafael Balbi, Jos Barrientos, Mauricio Beltrn, Susan Bergholz, Rosa del Olmo, Milton de Ritis, Claudio Durn, Juan Gasparini, Claudio Hughes, Pier Paolo Marchetti, Stella Maris Martnez, Dora Mirn Campos, Norberto Prez, Ruben Prieto, Pilar Royo, ngel Ruocco, Hilary Sandison, Pedro Scaron, Horacio Tubio, Pinio Ungerfeld, Alejandro Valle Baeza, Jorge Ventocilla, Guillermo Waksman, Gaby Weber, Winfried Wolf e Jean Ziegler.

    E num alto grau tambm responsvel Santa Rita, a padroeira das causas impossveis.

    Montevidu, meados de 1998

    Vo passando, senhoras e senhores!

    Vo passando!

  • Entrem na escola do mundo ao avesso!

    Que se alce a lanterna mgica!

    Imagem e som! A iluso da vida!

    Em prol do comum estamos oferecendo!

    Para ilustrao do pblico presente

    e bom exemplo das geraes vindouras!

    Venham ver o rio que cospe fogo!

    O Senhor Sol iluminando a noite!

    A Senhora Lua em pleno dia!

    As Senhoritas Estrelas expulsas do cu!

    O bufo sentado no trono do rei!

    O bafo de Lcifer toldando o universo!

    Os mortos passeando com um espelho na mo!

    Bruxos! Saltimbancos!

    Drages e vampiros!

    A varinha mgica que transforma

    um menino numa moeda!

    O mundo perdido num jogo de dados!

    No confundir com grosseiras imitaes!

    Deus bendiga quem vir!

    Deus perdoe quem no!

    Pessoas sensveis e menores, abster-se.

  • (Baseado nos preges da lanterna mgica, do sculo XVIII)

    Programa de estudos

    A escola do mundo ao avesso

    Educando com o exemplo

    Os alunos

    Curso bsico de injustia

    Curso bsico de racismo e machismo

    Ctedras do medo

    O ensino do medo

    A indstria do medo

    Aulas de corte e costura: como fazer inimigos

    sob medida

    Seminrio de tica

    Trabalhos prticos: como triunfar na vida e

    fazer amigos

    Lies contra os vcios inteis

  • Aulas magistrais de impunidade

    Modelos para estudar

    A impunidade dos caadores de gente

    A impunidade dos exterminadores do planeta

    A impunidade do sagrado motor

    Pedagogia da solido

    Lies da sociedade de consumo

    Curso intensivo de incomunicao

    A contraescola

    Traio e promessa do fim do milnio

    O direito ao delrio

    Mensagem aos pais

    Hoje em dia as pessoas j no respeitam nada. Antes, colocvamos num pedestal a virtude, a honra, a verdade e a lei... A corrupo campeia na vida americana de nossos dias. Onde no se obedece outra lei, a corrupo a nica lei. A corrupo est minando este pas. A virtude, a honra e a lei se evaporaram de nossas vidas.

  • (Declaraes de Al Capone ao jornalista Cornelius Vanderbilt Jr. Entrevista publicada na revista Liberty em 17 de outubro de 1931, dias antes de Al Capone ir para a priso.)

    Se Alice voltasse

    H 130 anos, depois de visitar o pas das maravilhas, Alice entrou num espelho para descobrir o mundo ao avesso. Se Alice renascesse em nossos dias, no precisaria atravessar nenhum espelho: bastaria que chegasse janela.

    Se voc decide treinar seu co, merece

    felicitaes por ter tomado a deciso certa.

    Em pouco tempo, descobrir que os papis

    do amo e do co ficam perfeitamente delineados.

    (Centro Internacional Purina)

    A escola do mundo ao avesso

    Educando com o exemplo

    Os alunos

    Curso bsico de injustia

    Curso bsico de racismo e machismo

  • Educando com o exemplo

    A escola do mundo ao avesso a mais democrtica das instituies educativas. No requer exame de admisso, no cobra matrcula e dita seus cursos, gratuitamente, a todos e em todas as partes, assim na terra como no cu: no por nada que filha do sistema que, pela primeira vez na histria da humanidade, conquistou o poder universal.

    Na escola do mundo ao avesso o chumbo aprende a flutuar e a cortia a afundar. As cobras aprendem a voar e as nuvens a se arrastar pelos caminhos.

    Os modelos do xito

    O mundo ao avesso gratifica o avesso: despreza a honestidade, castiga o trabalho, recompensa a falta de escrpulos e alimenta o canibalismo. Seus mestres caluniam a natureza: a injustia, dizem, lei natural. Milton Friedman, um dos membros mais conceituados do corpo docente, fala da taxa natural de desemprego. Por lei natural, garantem Richard Herrnstein e Charles Murray, os negros esto nos mais baixos degraus da escala social. Para explicar o xito de seus negcios, John Rockefeller costumava dizer que a natureza recompensa os mais aptos e castiga os inteis. Mais de um sculo depois, muitos donos do mundo continuam acreditando que Charles Darwin escreveu seus livros para lhes prenunciar a glria.

    Sobrevivncia dos mais aptos? A aptido mais til para abrir caminho e sobreviver, o killing instinct, o instinto assassino, uma virtude humana quando serve para que as grandes empresas faam a digesto das pequenas empresas e para que os pases fortes devorem os pases fracos, mas prova de bestialidade quando um pobre-diabo sem trabalho sai a buscar comida com uma faca na mo. Os enfermos da patologia antissocial, loucura e perigo de que cada pobre portador, inspiram-se nos modelos de boa sade do xito social. O ladro de ptio aprende o que sabe elevando o olhar rasteiro aos cumes: estuda o exemplo dos vitoriosos e, mal ou bem, faz o que pode para lhes copiar os mritos. Mas os fodidos sempre sero fodidos, como costumava dizer Dom Emlio Azcrraga, que foi amo e senhor da televiso mexicana. As possibilidades de que um banqueiro que depena um banco desfrute em paz o produto de seus golpes so diretamente proporcionais s possibilidades de que um ladro que rouba um banco v para a priso ou para o cemitrio.

    Quando um delinquente mata por dvida no paga, a execuo se chama ajuste de contas; e se chama plano de ajuste a execuo de um pas endividado, quando a tecnocracia internacional resolve liquid-lo. A corja financeira sequestra os pases e os arrasa se no pagam o resgate. Comparado com ela, qualquer bandido mais inofensivo do que Drcula luz do sol. A economia mundial a mais eficiente expresso do crime organizado. Os organismos internacionais que controlam a moeda, o comrcio e o crdito praticam o terrorismo contra os pases pobres e contra ospobres de todos os pases, com uma frieza profissional e uma impunidade que humilham o melhor dos lana-bombas.

  • A arte de enganar o prximo, que os vigaristas praticam caando incautos pelas ruas, chega ao sublime quando alguns polticos de sucesso exercitam seus talentos. Nos subrbios do mundo, chefes de estado vendem saldos e retalhos de seus pases, a preo de liquidao de fim de temporada, como nos subrbios das cidades os delinquentes vendem, a preo vil, o butim de seus assaltos.

    Os pistoleiros de aluguel realizam, num plano menor, a mesma tarefa que cumprem, em grande escala, os generais condecorados por crimes elevados categoria de glrias militares. Os assaltantesque, espreita nas esquinas, atacam a manotaos, so a verso artesanal dos golpes dados pelos grandes especuladores, que lesam multides pelo computador. Os violadores que mais ferozmente violam a natureza e os direitos humanos jamais so presos. Eles tm as chaves das prises. No mundo como ele , mundo ao avesso, os pases responsveis pela paz universal so os que mais armas fabricam e os que mais armas vendem aos demais pases. Os bancos mais conceituados so os que mais narcodlares lavam e mais dinheiro roubado guardam. As indstrias mais exitosas so as que mais envenenam o planeta, e a salvao do meio ambiente o mais brilhante negcio das empresas que o aniquilam. So dignos de impunidade e felicitaes aqueles que matam mais pessoas em menos tempo, aqueles que ganham mais dinheiro com menos trabalho e aqueles que exterminam mais natureza com menos custo.

    Caminhar um perigo e respirar uma faanha nas grandes cidades do mundo ao avesso. Quem no prisioneiro da necessidade prisioneiro do medo: uns no dormem por causa da nsia de ter oque no tm, outros no dormem por causa do pnico de perder o que tm. O mundo ao avesso nos adestra para ver o prximo como uma ameaa e no como uma promessa, nos reduz solido e nos consola com drogas qumicas e amigos cibernticos. Estamos condenados a morrer de fome, a morrer de medo ou a morrer de tdio, isso se uma bala perdida no vier abreviar nossa existncia.

    Ser esta liberdade, a liberdade de escolher entre ameaadores infortnios, nossa nica liberdade possvel? O mundo ao avesso nos ensina a padecer a realidade ao invs de transform-la, a esquecero passado ao invs de escut-lo e a aceitar o futuro ao invs de imagin-lo: assim pratica o crime, assim o recomenda. Em sua escola, escola do crime, so obrigatrias as aulas de impotncia, amnsia e resignao. Mas est visto que no h desgraa sem graa, nem cara que no tenha sua coroa, nem desalento que no busque seu alento. Nem tampouco h escola que no encontre sua contraescola.

    Os alunos

    Dia aps dia nega-se s crianas o direito de ser crianas. Os fatos, que zombam desse direito,

  • ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que no so ricos nem pobres, conserva-os atados mesa do televisor, para que aceitem desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte tm as crianas que conseguem ser crianas.

    Os de cima, os de baixo e os do meio

    No oceano do desamparo, erguem-se as ilhas do privilgio. So luxuosos campos de concentrao, onde os poderosos s privam com os poderosos e jamais podem esquecer, nem por um timo, que so poderosos. Em algumas das grandes cidades latino-americanas, os sequestros se tornaram um costume e os meninos ricos crescem encerrados dentro da bolha do medo. Moram em manses amuralhadas, grandes casas ou grupos de casas protegidos por cercas eletrificadas e guardas armados, e dia e noite so vigiados por guarda-costas e cmeras de circuito fechado. Os meninos ricos viajam, como o dinheiro, em carros blindados. Apenas de vista conhecem sua cidade. Descobrem o metr em Paris ou Nova York, mas jamais o tomam em So Paulo ou na capital do Mxico.

    Mundo infantil

    preciso ter muito cuidado ao atravessar a rua, explicava o educador colombiano Gustavo Wilches a um grupo de meninos.

    Ainda que abra o sinal verde, jamais atravessem sem olhar para os dois lados.

    Wilches contou aos meninos que certa vez um automvel o atropelara e o deixara cado no meio da rua. Recordando o acidente que quase lhe custara a vida, Wilches franziu o cenho. Mas os meninos perguntaram:

    De que marca era o carro? Tinha ar condicionado? Teto solar eltrico? Tinha faris de neblina? Dequantos cilindros era o motor?

    Eles no vivem na cidade onde vivem. Para eles vedado o vasto inferno que lhes ameaa o minsculo cu privado. Alm das fronteiras, estende-se uma regio de terror onde as pessoas so

  • muitas e feias, sujas, invejosas. Em plena era da globalizao, os meninos j no pertencem a lugar algum, mas os que menos lugar tm so os que mais coisas tm: eles crescem sem razes, despojados de identidade cultural e sem outro sentido social que a certeza da realidade ser um perigo. Sua ptria est nas marcas de prestgio universal, que lhes destacam as roupas e tudo o que usam, e sua linguagem a linguagem dos cdigos eletrnicos internacionais. Nas mais diversas cidades, nos mais distantes lugares do mundo, os filhos do privilgio se parecem entre si, nos costumes e tendncias, como entre si se parecem os shopping centers e os aeroportos, que esto forado tempo e do espao. Educados na realidade virtual, deseducam-se da realidade real, que ignoram ou que to s existe para ser temida ou ser comprada.

    Vitrinas

    Brinquedos para eles: rambos, robocops, ninjas, batmans, monstros, metralhadoras, pistolas, tanques, automveis, motocicletas, caminhes, avies, naves espaciais.

    Brinquedos para elas: barbies, heidis, tbuas de passar, cozinhas, liquidificadores, lava-roupas, televisores, bebs, beros, mamadeiras, batons, rolos, cosmticos, espelhos.

    Fast food, fast cars, fast life: desde que nascem, os meninos ricos so treinados para o consumo e para a fugacidade e passam a infncia acreditando que as mquinas so mais confiveis do que os homens. Chegando a hora do ritual de iniciao, ganharo seu primeiro jipo fora de estrada, comtrao nas quatro rodas, mas durante os anos de espera eles se lanam a toda velocidade nas autopistas cibernticas e confirmam sua identidade devorando imagens e mercadorias, fazendo zapping e fazendo shopping. Os cibermeninos viajam pelo ciberespao com a mesma desenvoltura com que os meninos abandonados perambulam pelas ruas das cidades.

    Muito antes dos meninos ricos deixarem de ser meninos e descobrirem as drogas caras que mascaram a solido e o medo, j esto os meninos pobres aspirando gasolina e cola de sapateiro. Enquanto os meninos ricos brincam de guerra com balas de raios laser, os meninos de rua so ameaados pelas balas de chumbo.

    Na Amrica Latina, crianas e adolescentes somam quase a metade da populao total. A metade dessa metade vive na misria. Sobreviventes: na Amrica Latina, a cada hora, cem crianas morrem de fome ou doena curvel, mas h cada vez mais crianas pobres em ruas e campos dessa regio que fabrica pobres e probe a pobreza. Crianas so, em sua maioria, os pobres; e pobres so, em sua maioria, as crianas. E, entre todos os refns do sistema, so elas que vivem em pior condio. A sociedade as espreme, vigia, castiga e s vezes mata: quase nunca as escuta, jamais as compreende.

  • Esses meninos, filhos de gente que s trabalha de vez em quando ou que no tem trabalho nem lugar no mundo, so obrigados, desde cedo, a aceitar qualquer tipo de ganha-po, extenuando-se emtroca de comida ou de pouco mais, em todos os rinces do mapa do mundo. Depois de aprender a caminhar, aprendem quais so as recompensas que se do aos pobres que se portam bem: eles, e elas, so a mo de obra gratuita das fabriquetas, das lojinhas e das biroscas caseiras, ou so a mo de obra a preo de banana de indstrias de exportao que fabricam trajes esportivos para as grandes empresas internacionais. Trabalham nas lidas agrcolas e nos carregamentos urbanos, ou trabalham em suas casas para quem mande ali. So escravinhos e escravinhas da economia familiar ou do setor informal da economia globalizada, onde ocupam o escalo mais baixo da populao ativa a servio do mercado mundial:

    nos lixes da cidade do Mxico, Manila ou Lagos, juntam garrafas, latas e papis, e disputam restosde comida com os urubus;

    mergulham no Mar de Java em busca de prolas;

    catam diamantes nas minas do Congo;

    so as toupeiras nas galerias das minas do Peru, imprescindveis por causa da pequena estatura, e, quando seus pulmes deixam de funcionar, so enterrados em cemitrios clandestinos;

    colhem caf na Colmbia e na Tanznia e se envenenam com os pesticidas;

    envenenam-se com os pesticidas nas plantaes de algodo da Guatemala e nas bananeiras de Honduras;

    na Malsia recolhem o ltex das rvores do caucho, em jornadas de trabalho que vo de estrela a estrela;

    deitam trilhos ferrovirios na Birmnia;

    ao norte da ndia se derretem nos fornos de vidro e ao sul nos fornos de tijolos;

    em Bangladesh tm mais de trezentas ocupaes diferentes, com salrios que oscilam entre o nada eo quase nada por um dia que nunca acaba;

    correm corridas de camelos para os emires rabes e so ginetes campeiros nas estncias do Rio da Prata;

    A fuga/1

  • Conversando com um enxame de meninos de rua, daqueles que se penduram nos nibus na cidade do Mxico, a jornalista Karina Avils perguntou-lhes sobre as drogas.

    Me sinto muito bem, acabo com os problemas disse um deles.

    Quando volto ao que sou, me sinto engaiolado como um passarinho.

    Esses meninos, habitualmente, so perseguidos pelos seguranas e pelos ces da Central Camioneradel Norte. O gerente-geral da empresa declarou jornalista:

    No desejamos que os meninos morram, pois de algum modo so humanos.

    em Porto Prncipe, Colombo, Jakarta ou Recife servem as refeies do amo, em troca do direito de comer o que cai da mesa;

    vendem frutas nos mercados de Bogot e chicletes nos nibus de So Paulo; limpam para-brisas nasesquinas de Lima, Quito ou So Salvador;

    lustram sapatos nas ruas de Caracas ou Guanajuato;

    costuram roupa na Tailndia e chuteiras no Vietn;

    costuram bolas de futebol no Paquisto e bolas de beisebol em Honduras e no Haiti;

    para pagar as dvidas de seus pais, colhem ch e tabaco nas plantaes do Sri Lanka e jasmins no Egito, destinados perfumaria francesa;

    alugados pelos pais, tecem tapetes no Ir, no Nepal e na ndia, desde antes do amanhecer at depois da meia-noite, e quando algum chega para resgat-los, perguntam: Voc o meu novo amo?;

    vendidos a cem dlares pelos pais, oferecem-se no Sudo para prazeres sexuais ou qualquer trabalho.

    fora recrutam meninos os exrcitos em alguns lugares da frica, Oriente Mdio e Amrica Latina. Nas guerras, os soldadinhos trabalham matando e, sobretudo, trabalham morrendo: eles somam a metade das vtimas nas recentes guerras africanas. Com exceo da guerra, que coisa de machos segundo ensinam a tradio e a realidade, em quase todas as demais tarefas os braos das meninas so to teis quanto os braos dos meninos. Mas o mercado de trabalho, para as meninas, reincide na discriminao que normalmente pratica contra as mulheres: elas, as meninas, sempre ganham menos do que o pouqussimo que eles, os meninos, ganham, isso quando ganham.

    No mundo todo, a prostituio o destino precoce de muitas meninas e, em menor grau, tambm

  • dos meninos. Por incrvel que parea, calcula-se que h pelo menos cem mil prostitutas infantis nos Estados Unidos, segundo o informe da UNICEF de 1997. Mas nos bordis e nas ruas do sul do mundo que trabalha a esmagadora maioria das vtimas infantis do comrcio sexual. Esta multimilionria indstria, vasta rede de traficantes, intermedirios, agentes tursticos e proxenetas, age com escandalosa impunidade. Na Amrica Latina, no h nada de novo: a prostituio infantil existe desde que, em 1536, inaugurou-se a primeira casa de tolerncia em Porto Rico. Atualmente, meio milho de meninas brasileiras trabalham vendendo o corpo, em benefcio de adultos que as exploram: tantas como na Tailndia, no tantas como na ndia. Em algumas praias do Mar do Caribe, a prspera indstria do turismo sexual oferece meninas virgens a quem possa pagar. A cada ano aumenta o nmero de meninas lanadas no mercado de consumo: segundo as estimativas dos organismos internacionais, pelo menos um milho de meninas se acrescentam, anualmente, oferta mundial de corpos.

    A fuga/2

    Nas ruas do Mxico, uma menina cheira tolueno, solventes, cola ou o que seja. Passada a tremedeira, conta:

    Eu alucinei com o Diabo, ele se meteu em mim e, putz, fiquei na beirinha, j ia pular, o edifcio tinha oito andares, mas nisso se foi a alucinao, o Diabo saiu de mim. A alucinao que eu mais gostei foi quando me apareceu a Virgenzinha de Guadalupe. J alucinei duas vezes com ela.

    So incontveis os meninos pobres que trabalham, em suas casas ou fora delas, para a famlia ou para qualquer um. A maioria trabalha ao arrepio da lei e das estatsticas. E os demais meninos pobres? Dos demais, so muitos os que sobram. O mercado no precisa deles, no precisar jamais. No so rentveis, jamais o sero. Do ponto de vista da ordem estabelecida, eles comeam roubando o ar que respiram e depois roubam tudo o que encontram: a fome e as balas costumam lhes abreviar a viagem do bero sepultura. O mesmo sistema produtivo que despreza os velhos, teme os meninos. A velhice um fracasso, a infncia um perigo. H cada vez mais meninos marginalizados que, no dizer de alguns especialistas, nascem com tendncia ao crime. Eles integramo setor mais ameaador dos excedentes populacionais. O menino como perigo pblico, a conduta antissocial do menor na Amrica, tem sido h muitos anos o tema recorrente dos congressos panamericanos sobre a infncia. Os meninos que vm do campo para a cidade e os meninos pobres em geral so de conduta potencialmente antissocial, segundo nos alertam os congressos desde 1963.Essa obsesso a respeito dos meninos doentes de violncia, orientados para o vcio e a perdio, compartilhada pelos governos e alguns entendidos no assunto. Cada nio contm uma possvel corrente do El Nio, e preciso prevenir a devastao que pode provocar. No Primeiro Congresso Policial Sul-Americano, celebrado em Montevidu em 1979, a polcia colombiana explicou que o

  • aumento sempre crescente da populao com menos de dezoito anos induz estimativa de maior populao POTENCIALMENTE DELINQUENTE. (Maisculas no documento original.)

    Nos pases latino-americanos, a hegemonia do mercado est rompendo os laos da solidariedade e fazendo em pedaos o tecido social comunitrio. Que destino tm os joes-ningum, os donos de nada, em pases onde o direito de propriedade j se torna o nico direito? E os filhos dos joes-ningum? Muitos deles, cada vez mais numerosos, so compelidos pela fome ao roubo, mendicidade e prostituio. A sociedade de consumo os insulta oferecendo o que nega. E eles se lanam aos assaltos, bandos de desesperados unidos pela certeza de que a morte os espera: segundo a UNICEF, em 1995 havia oito milhes de meninos abandonados, meninos de rua, nas grandes cidades latino-americanas. Segundo a organizao Human Rights Watch, em 1993 os esquadres parapoliciais assassinaram seis meninos por dia na Colmbia e quatro por dia no Brasil.

    Para que o surdo escute

    Cresce cada vez mais o nmero de crianas desnutridas no mundo. Doze milhes de crianas menores de cinco anos morrem anualmente em consequncia de diarreias, anemia e outros males ligados fome. A UNICEF divulga esses dados em seu informe de 1998 e prope que a luta contra a fome e a morte das crianas torne-se uma prioridade mundial absoluta, recorrendo ao nico argumento que, hoje em dia, pode ser eficaz: As carncias de vitaminas e minerais na alimentao custam a alguns pases o equivalente a mais de 5% de seu produto nacional bruto em vidas perdidas,incapacidades e menos produtividade.

    Entre uma ponta e outra, o meio. Entre os meninos que vivem prisioneiros da opulncia e os que vivem prisioneiros do desamparo, esto aqueles que tm muito mais do que nada, mas muito menos do que tudo. Cada vez so menos livres os meninos de classe mdia. Que te deixem ser ou no te deixem ser: esta a questo, disse Chumy Chmez, humorista espanhol. Dia aps dia a liberdade desses meninos confiscada pela sociedade que sacraliza a ordem ao mesmo tempo em que gera a desordem. O medo do meio: o piso range sob os ps, j no h garantias, a estabilidade instvel, evaporam-se os empregos, esfuma-se o dinheiro, chegar ao fim do ms uma faanha. Bem-vinda, classe mdia, sada um cartaz na entrada de um dos bairros mais miserveis de Buenos Aires. A classe mdia continua vivendo num estado de impostura, fingindo que cumpre as leis e acredita nelas e simulando ter mais do que tem, mas nunca lhe foi to difcil cumprir esta abnegada tradio.Est asfixiada pelas dvidas e paralisada pelo pnico, e no pnico cria seus filhos. Pnico de viver, pnico de empobrecer; pnico de perder o emprego, o carro, a casa, as coisas, pnico de no chegar a ter o que se deve ter para chegar a ser. No clamor coletivo pela segurana pblica, ameaada pelosmonstros do delito que espreitam, a classe mdia que grita mais alto. Defende a ordem como se fosse sua proprietria, embora seja apenas uma inquilina atropelada pelo preo do aluguel e pela

  • ameaa de despejo.

    Apanhados nas armadilhas do pnico, os meninos de classe mdia esto cada vez mais condenados humilhao da recluso perptua. Na cidade do futuro, que j est sendo do presente, os telemeninos, vigiados por babs eletrnicas, contemplaro a rua de alguma janela de suas telecasas: a rua proibida pela violncia ou pelo pnico da violncia, a rua onde ocorre o sempre perigoso e s vezes prodigioso espetculo da vida.

    Fontes consultadas

    BRISSET, Claire. Un monde qui dvore ses enfants. Paris: Liana Levi, 1997.

    CHILDHOPE. Hacia dnde van las nias y adolescentes vctimas de la pobreza. Informe sobre Guatemala, Mxico, Panam, Repblica Dominicana, Nicaragua, Costa Rica, El Salvador y Honduras, em abril de 1990.

    COMEXANI (Colectivo Mexicano de Apoyo a la Niez). IV informe sobre los derechos y la situacin de la infancia. Mxico: 1997.

    DIMENSTEIN, Gilberto. A guerra dos meninos: assassinato de menores no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1990.

    GILBERT, Eva et al. Polticas y niez. Buenos Aires: Losada, 1997.

    IGLESIAS, Susana; VILLAGRA, Helena; BARRIOS, Luis. Un viaje a travs de los espejos de los Congresos Panamericanos del Nio, en el volumen de UNICEF-UNICRI-ILANUD, La condicin jurdica de la infancia en Amrica Latina. Buenos Aires: Galerna, 1992.

    MONANGE/HELLER. Brsil: rapport denqute sur les assassinats denfants. Paris: Fdration Internationale des Droits de lHomme, 1992.

    OIT (Organizacin Internacional del Trabajo). Todava queda mucho por hacer: el trabajo de los nios en el mundo de hoy. Ginebra, 1989.

    PILOTTI, Francisco & RIZZINI, Irene. A arte de governar crianas. Rio de Janeiro: Amais, 1995.

    TRIBUNALE PERMANENTE DEI POPOLI. La violazione dei diritti fondamentali dellinfanzia e dei minori. Roma: Nova Cultura, 1995.

    UNICEF (Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia). Estado mundial de la infancia: 1997.

  • Nueva York, 1997.

    _____. Estado mundial de la infancia: 1998. Nueva York, 1998.

    Curso bsico de injustia

    A publicidade manda consumir e a economia o probe. As ordens de consumo, obrigatrias para todos, mas impossveis para a maioria, so convites ao delito. Sobre as contradies de nosso tempo, as pginas policiais dos jornais ensinam mais do que as pginas de informao poltica e econmica.

    Este mundo, que oferece o banquete a todos e fecha a porta no nariz de tantos, ao mesmo tempo igualador e desigual: igualador nas ideias e nos costumes que impe e desigual nas oportunidades que proporciona.

    A igualao e a desigualdade

    A ditadura da sociedade de consumo exerce um totalitarismo simtrico ao de sua irm gmea, a ditadura da organizao desigual do mundo.

    A maquinaria da igualao compulsiva atua contra a mais bela energia do gnero humano, que se reconhece em suas diferenas e atravs delas se vincula. O melhor que o mundo tem est nos muitosmundos que o mundo contm, as diferentes msicas da vida, suas dores e cores: as mil e uma maneiras de viver e de falar, crer e criar, comer, trabalhar, danar, brincar, amar, sofrer e festejar quetemos descoberto ao longo de milhares e milhares de anos.

    A igualao, que nos uniformiza e nos apalerma, no pode ser medida. No h computador capaz deregistrar os crimes cotidianos que a indstria da cultura de massas comete contra o arco-ris humanoe o humano direito identidade. Mas seus demolidores progressos saltam aos olhos. O tempo vai seesvaziando de histria e o espao j no reconhece a assombrosa diversidade de suas partes. Atravsdos meios massivos de comunicao, os donos do mundo nos comunicam a obrigao que temos todos de nos contemplar num nico espelho, que reflete os valores da cultura de consumo.

    Quem no tem, no : quem no tem carro, no usa sapato de marca ou perfume importado est fingindo existir. Economia de importao, cultura de impostao: no reino da tolice, estamos todos obrigados a embarcar no cruzeiro do consumo, que sulca as agitadas guas do mercado. A maioria dos navegantes est condenada ao naufrgio, mas a dvida externa vai pagando, por conta de todos, as passagens dos que podem viajar. Os emprstimos, que permitem a uma minoria se empanturrar

  • de coisas inteis, atuam a servio do boapintismo de nossas classes mdias e da copiandite de nossas classes altas, e a televiso se encarrega de transformar em necessidades reais, aos olhos de todos, as demandas artificiais que o norte do mundo inventa sem descanso e, exitosamente, projeta sobre o sul. (Norte e Sul, diga-se de passagem, so termos que neste livro designam a partilha da torta mundial e nem sempre coincidem com a geografia.)

    A exceo

    S existe um lugar onde o norte e o sul do mundo se enfrentam em igualdade de condies: um campo de futebol do Brasil, na foz do rio Amazonas. A linha do equador corta pela metade o Estdio Zero, no Amap, de modo que cada equipe joga um tempo no sul e outro tempo no norte.

    Que acontece com os milhes e milhes de meninos latino-americanos que sero jovens condenados ao desemprego ou aos salrios de fome? A publicidade estimula a demanda ou, antes, promove a violncia? A televiso oferece o servio completo: no s ensina a confundir qualidade de vida com quantidade de coisas, como, alm disso, oferece diariamente cursos audiovisuais de violncia, que os videogames complementam. O crime o espetculo de maior sucesso na telinha. Bate tu antes que te batam, aconselham os mestres eletrnicos dos videojogos. Ests s, conta s contigo. Carros que voam, gente que explode: Tu tambm podes matar. E enquanto isso, crescem as cidades, as cidades latino-americanas j esto entre as maiores do mundo. E com as cidades, em ritmo de pnico, cresce o delito.

    A economia mundial exige mercados de consumo em constante expanso para dar sada sua produo crescente e para que no despenquem suas taxas de lucro, mas, ao mesmo tempo, exige braos e matria-prima a preos irrisrios para baratear os custos da produo. O mesmo sistema que precisa vender cada vez mais precisa tambm pagar cada vez menos. Este paradoxo me de outro paradoxo: o norte do mundo dita ordens de consumo cada vez mais imperiosas, dirigidas ao sul e ao leste, para multiplicar os consumidores, mas em muito maior grau multiplica os delinquentes. Ao apoderar-se dos fetiches que do existncia real s pessoas, cada assaltante quer ter o que sua vtima tem, para ser o que sua vtima . Armai-vos uns aos outros: hoje em dia, no manicmio das ruas, qualquer um pode morrer a balaos: o que nasceu para morrer de fome e tambm o que nasceu para morrer de indigesto.

    No se pode reduzir a cifras a igualao cultural imposta pelos moldes da sociedade de consumo.

  • Em troca, a desigualdade econmica pode ser medida. Confessa-a o Banco Mundial, que tanto faz por ela, e a confirmam os diversos organismos das Naes Unidas. Nunca foi to pouco democrtica a economia mundial, nunca foi o mundo to escandalosamente injusto. Em 1960, o vinte por cento mais rico da humanidade possua trinta vezes mais do que o vinte por cento mais pobre. Em 1990, a diferena era de sessenta vezes. De l para c a tesoura continuou se abrindo: no ano 2000 a diferena ser de noventa vezes. Nos extremos dos extremos, entre os ricos riqussimos, que aparecem nas pginas pornofinanceiras das revistas Forbes e Fortune, e os pobres pobrssimos, que aparecem nas ruas e nos campos, o abismo muito mais profundo. Uma mulher grvida corre cem vezes mais risco de vida na frica do que na Europa. O valor dos produtos para animais de estimao que, a cada ano, so vendidos nos Estados Unidos, quatro vezes maior do que o de toda a produo da Etipia. As vendas de apenas dois gigantes, General Motors e Ford, superam largamente o valor da produo de toda a frica negra. Segundo o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento, dez pessoas, os dez ricos mais ricos do planeta, tm uma riqueza equivalente ao valor da produo total de cinquenta pases, e 447 milionrios somam uma fortuna maior do que o que ganha anualmente metade da humanidade.

    O responsvel por este organismo das Naes Unidas, James Gustave Speth, declarou em 1997 que,no ltimo meio sculo, o nmero de ricos dobrara no mundo, mas o nmero de pobres triplicara, e 1,6 bilho de pessoas esto vivendo em piores condies do que h quinze anos.

    Pouco antes, na assembleia do Banco Mundial e do Fundo Monetrio Internacional, o presidente do Banco Mundial havia lanado um balde de gua fria no plenrio. Em plena celebrao da boa marcha do governo do planeta, exercido pelos dois organismos, James Wolfensohn advertiu: se as coisas continuarem assim, em trinta anos haver cinco bilhes de pessoas pobres no mundo e a desigualdade explodir, como uma bomba-relgio, no rosto das prximas geraes. Enquanto isso,sem cobrar em dlares, nem em pesos, nem mesmo em mercadorias, uma mo annima propunha num muro de Buenos Aires: Combata a fome e a pobreza! Coma um pobre!

    Para documentar nosso otimismo, como aconselha Carlos Monsivis, o mundo segue sua marcha: dentro de cada pas se reproduz a injustia que rege as relaes entre os pases, e vai-se abrindo mais e mais, ano aps ano, a brecha entre os que tm tudo e os que no tm nada. Bem o sabemos na Amrica. Ao norte, nos Estados Unidos, os mais ricos dispunham, h meio sculo, de vinte por cento da renda nacional. Agora, tm quarenta por cento. E ao sul? A Amrica Latina a regio mais injusta do mundo. Em nenhum outro lugar se distribui to mal os pes e os peixes; em nenhum outro lugar to imensa a distncia que separa os poucos que tm o direito de mandar dos muitos que tm o dever de obedecer.

    A economia latino-americana uma economia escravista que posa de ps-moderna: paga salrios africanos, cobra preos europeus, e a injustia e a violncia so as mercadorias que produz com mais alta eficincia. Cidade do Mxico, 1997, dados oficiais: oitenta por cento de pobres, trs por cento de ricos e, no meio, o resto. E a Cidade do Mxico a capital do pas que, no mundo dos anos90, gerou mais multimilionrios de sbita fortuna: segundo dados das Naes Unidas, um s mexicano ostenta uma riqueza equivalente ao que possuem dezessete milhes de mexicanos pobres.

    No h no mundo nenhum pas to desigual como o Brasil, e alguns analistas j esto falando na brasilizao do planeta para traar um retrato do mundo que est chegando. E ao dizer brasilizao

  • eles no se referem, por certo, difuso internacional do futebol alegre, do carnaval espetacular e da msica que desperta os mortos, maravilhas atravs das quais o Brasil resplandece a grande altura, mas imposio, em escala universal, de um modelo de sociedade fundamentado na injustia social e na discriminao racial. Nesse modelo, o crescimento da economia multiplica a pobreza e a marginalidade. Belndia outro nome do Brasil: assim o economista Edmar Bacha batizou este pas, onde uma minoria consome como os ricos da Blgica, enquanto a maioria vive como os pobres da ndia.

    Pontos de vista/1

    Do ponto de vista da coruja, do morcego, do bomio e do ladro, o crepsculo a hora do caf da manh.

    A chuva uma maldio para o turista e uma boa notcia para o campons.

    Do ponto de vista do nativo, pitoresco o turista.

    Do ponto de vista dos ndios das ilhas do Mar do Caribe, Cristvo Colombo, com seu chapu de penas e sua capa de veludo encarnado, era um papagaio de dimenses nunca vistas.

    Na era das privatizaes e do mercado livre, o dinheiro governa sem intermedirios. Qual a funo que se atribui ao estado? O Estado deve ocupar-se da disciplina da mo de obra barata, condenada a um salrio-ano, e da represso das perigosas legies de braos que no encontram trabalho: um Estado juiz e policial, e pouco mais do que isso. Em muitos pases do mundo, a justia social foi reduzida justia penal. O Estado vela pela segurana pblica: de outros servios j se encarrega o mercado e da pobreza, gente pobre, regies pobres cuidar Deus, se a polcia no puder. Embora aadministrao pblica queira posar de me piedosa, no tem outro remdio seno consagrar suas minguadas energias s funes de vigilncia e castigo. Nestes tempos neoliberais, os direitos pblicos se reduzem a favores do poder, e o poder se ocupa da sade pblica e da educao pblica como se fossem formas de caridade pblica em vspera de eleies.

    A pobreza mata a cada ano, no mundo, mais gente que toda a Segunda Guerra Mundial, que matou muito. Mas, do ponto de vista do poder, o extermnio, afinal, no chega a ser um mal, pois sempre ajuda a regular a populao, que est crescendo alm da conta. Os entendidos denunciam os excedentes populacionais ao sul do mundo, onde as massas ignorantes no sabem fazer nada seno violar, dia e noite, o sexto mandamento: as mulheres sempre querem e os homens sempre podem. Excedentes populacionais no Brasil, onde h dezessete habitantes por quilmetro quadrado, ou na Colmbia, onde h 29? A Holanda tem quatrocentos habitantes por quilmetro quadrado e nenhum

  • holands morre de fome. No Brasil e na Colmbia, um punhado de vorazes fica com tudo. Haiti e El Salvador, os pases mais superpovoados das Amricas, so to superpovoados quanto a Alemanha.

    O poder, que pratica a injustia e vive dela, transpira violncia por todos os poros. Sociedades divididas em bons e maus: nos infernos suburbanos espreitam os condenados de pele escura, culpados de sua pobreza e com tendncia hereditria ao crime. A publicidade lhes d gua na boca ea polcia os expulsa da mesa. O sistema nega o que oferece: objetos mgicos que transformam sonhos em realidade, luxos que a tev promete, as luzes de neon anunciando o paraso nas noites da cidade, esplendores de riqueza virtual. Como sabem os donos da riqueza real, no h valium que possa atenuar tanta ansiedade nem prozac capaz de apagar tanto tormento. A priso e as balas so a terapia dos pobres.

    At vinte ou trinta anos passados, a pobreza era fruto da injustia, denunciada pela esquerda, admitida pelo centro e raras vezes negada pela direita. Mudaram muito os tempos, em to pouco tempo: agora a pobreza o justo castigo que a ineficincia merece. A pobreza sempre pode merecer compaixo, mas j no provoca indignao: h pobres pela lei do jogo ou pela fatalidade do destino.Tampouco a violncia filha da injustia. A linguagem dominante, imagens e palavras produzidas em srie, atua quase sempre a servio de um sistema de recompensas e castigos que concebe a vida como uma impiedosa disputa entre poucos ganhadores e muitos perdedores nascidos para perder. A violncia se manifesta, em geral, como fruto da m conduta de maus perdedores, os numerosos e perigosos inadaptados sociais gerados pelos bairros pobres e pelos pases pobres. A violncia est em sua natureza. Ela corresponde, como a pobreza, ordem natural, ordem biolgica ou, talvez, zoolgica: assim eles so, assim foram e assim sero. A injustia, fonte do direito que a perpetua, hoje mais injusta do que nunca no sul do mundo, no norte tambm, mas tem pouca ou nenhuma existncia para os grandes meios de comunicao que fabricam a opinio pblica em escala universal.

    O cdigo moral do fim do milnio no condena a injustia, condena o fracasso. Robert McNamara, um dos responsveis pela Guerra do Vietn, escreveu um livro onde reconheceu que a guerra foi umerro. Mas essa guerra, que matou mais de trs milhes de vietnamitas e 58 mil norte-americanos, no foi um erro por ter sido injusta, mas porque os Estados Unidos a levaram adiante mesmo sabendo que no a ganhariam. O pecado est na derrota, no na injustia. Segundo McNamara, j em 1965 havia esmagadoras evidncias da impossibilidade do triunfo das foras invasoras, mas o governo norte-americano continuou agindo como se o contrrio fosse possvel. No se questiona o fato de que os Estados Unidos tenham passado quinze anos praticando o terrorismo internacional, tentando impor no Vietn um governo que os vietnamitas no queriam: a primeira potncia militar do mundo descarregou sobre um pequeno pas mais bombas do que todas as bombas lanadas na Segunda Guerra Mundial, mas este um detalhe sem maior importncia.

    Naquele interminvel morticnio, afinal, os Estados Unidos nada fizeram seno exercer o direito dasgrandes potncias de invadir e dobrar qualquer pas. Os militares, os comerciantes, os banqueiros e os fabricantes de opinies e de emoes dos pases dominantes tm o direito de impor aos demais pases ditaduras militares ou governos dceis, podem lhes ditar a poltica econmica e todas as polticas, podem lhes dar ordens de aceitar intercmbios ruinosos e emprstimos extorsivos, podem exigir servido ao seu estilo de vida e determinar suas tendncias de consumo. um direito natural,

  • consagrado pela impunidade com que exercido e pela rapidez com que esquecido.

    A memria do poder no recorda: abenoa. Ela justifica a perpetuao do privilgio por direito de herana, absolve os crimes dos que mandam e proporciona justificativas ao seu discurso. A memriado poder, que os centros de educao e os meios de comunicao difundem como nica memria possvel, s escuta as vozes que repetem a tediosa litania de sua prpria sacralizao. A impunidade exige a desmemria. H pases e pessoas exitosas e h pases e pessoas fracassadas porque os eficientes merecem prmio e os inteis, castigo. Para que as infmias possam ser transformadas em faanhas, a memria do norte se divorcia da memria do sul, a acumulao se desvincula do esvaziamento, a opulncia no tem nada a ver com o penria. A memria rota nos faz crer que a riqueza inocente da pobreza, que a riqueza e a pobreza vm da eternidade e para a eternidade caminham, e que assim so as coisas porque Deus ou o costume querem que sejam.

    Pontos de vista/2

    Do ponto de vista do sul, o vero do norte inverno.

    Do ponto de vista de uma minhoca, um prato de espaguete uma orgia.

    Onde os hindus veem uma vaca sagrada, outros veem um grande hambrguer.

    Do ponto de vista de Hipcrates, Galeno, Maimnides e Paracelso, havia uma enfermidade no mundo chamada indigesto, mas no havia uma enfermidade chamada fome.

    Do ponto de vista de seus vizinhos no povoado de Cardona, o Toto Zaugg, que andava com a mesma roupa no vero e no inverno, era um homem admirvel:

    O Toto nunca tem frio diziam.

    Ele no dizia nada. Frio ele tinha, o que no tinha era agasalho.

    Oitava maravilha do mundo, dcima sinfonia de Beethoven, undcimo mandamento do Senhor: por todas as partes se escutam hinos de louvor ao mercado livre, fonte de prosperidade e garantia de democracia. A liberdade de comrcio vendida como nova, mas tem uma longa histria, e essa histria tem muito a ver com as origens da injustia, que reina em nosso tempo como se tivesse nascido de um repolho ou de uma orelha de cabra:

    h trs ou quatro sculos, Inglaterra, Holanda e Frana exerciam a pirataria, em nome da liberdade

  • de comrcio, atravs dos bons ofcios de Sir Francis Drake, Henry Morgan, Piet Heyn, Franois Lolonois e outros neoliberais da poca;

    a liberdade de comrcio foi a justificativa que toda a Europa usou para enriquecer vendendo carne humana, no trfico de escravos;

    quando os Estados Unidos se tornaram independentes da Inglaterra, a primeira coisa que fizeram foiproibir a liberdade de comrcio, e os tecidos norte-americanos, mais caros e mais feios do que os tecidos ingleses, passaram a ser obrigatrios, desde a fralda do beb at a mortalha do morto;

    depois, claro, os Estados Unidos hastearam a bandeira da liberdade de comrcio para obrigar os pases latino-americanos a consumir suas mercadorias, seus emprstimos e seus ditadores militares;

    envoltos nas pregas desta mesma bandeira, os soldados britnicos impuseram o consumo do pio naChina, a canhonaos, enquanto o filibusteiro William Walker restabelecia a escravido, tambm a canhonaos e tambm em nome da liberdade, na Amrica Central;

    rendendo homenagem liberdade de comrcio, a indstria britnica reduziu a ndia ltima misria, e a banca britnica ajudou a financiar o extermnio do Paraguai, que at 1870 foi o nico pas latino-americano verdadeiramente independente;

    passou o tempo e quis a Guatemala, em 1954, praticar a liberdade de comrcio, comprando petrleoda Unio Sovitica, mas os Estados Unidos organizaram uma fulminante invaso, que ps as coisas no seu devido lugar;

    pouco depois, tambm Cuba ignorou que sua liberdade de comrcio consistia em aceitar os preos que lhe impunham, comprou o proibido petrleo russo e ento se armou uma tremenda confuso, que resultou na invaso de Playa Girn e no embargo interminvel.

    A linguagem/1

    As empresas multinacionais so assim chamadas porque operam em muitos pases ao mesmo tempo, mas pertencem a poucos pases que monopolizam a riqueza, o poder poltico, militar e cultural, o conhecimento cientfico e a alta tecnologia. As dez maiores multinacionais somam atualmente uma receita maior do que a de cem pases juntos.

    Pases em desenvolvimento o nome pelo qual os entendidos designam os pases subordinados ao desenvolvimento alheio. Segundo as Naes Unidas, os pases em desenvolvimento enviam aos pases desenvolvidos, atravs das desiguais relaes comerciais e financeiras, dez vezes mais dinheiro do que aquele que recebem atravs da ajuda externa.

    Ajuda externa o nome do impostinho que o vcio paga virtude nas relaes internacionais. A

  • ajuda externa distribuda de tal maneira que, em regra, confirma a injustia, raramente a contradiz.A frica negra, em 1995, acumulava 75 por cento dos casos de Aids no mundo, mas recebia s trs por cento dos fundos distribudos pelos organismos internacionais para a preveno da peste.

    Todos os antecedentes histricos ensinam que a liberdade de comrcio e demais liberdades do dinheiro se parecem com a liberdade dos pases como Jack, o Estripador se parecia com So Francisco de Assis. O mercado livre transformou nossos pases em bazares repletos de bagulhos importados, que a maioria das pessoas pode olhar mas no pode tocar. Assim tem sido desde os tempos longnquos em que os comerciantes e latifundirios usurparam a independncia, conquistadapor nossos soldados descalos, e a colocaram venda. Foram aniquiladas as oficinas artesanais que podiam ter gerado a indstria nacional, e os portos e as grandes cidades, que despovoam o interior, escolheram os delrios do consumo em lugar dos desafios da criao. Passaram-se os anos e em supermercados da Venezuela vi saquinhos de gua da Esccia para acompanhar o usque. Em cidades centro-americanas, onde at as pedras transpiram copiosamente, vi estolas de pele para as damas presunosas. No Peru, enceradeiras eltricas alems para casas de cho batido que no dispunham de eletricidade.

    Pontos de vista/3

    Do ponto de vista das estatsticas, se uma pessoa recebe mil dlares e outra no recebe nada, cada uma dessas duas pessoas aparece recebendo quinhentos dlares no clculo da receita per capita.

    Do ponto de vista da luta contra a inflao, as medidas de ajuste so um bom remdio. Do ponto de vista de quem as padece, as medidas de ajuste multiplicam o clera, o tifo, a turberculose e outras maldies.

    Outro caminho, o inverso, percorreram os pases desenvolvidos. Eles nunca deixaram Herodes entrar em suas festinhas infantis de aniversrio. O mercado livre a nica mercadoria que fabricam sem subsdios, mas to s para fins de exportao. Eles a vendem, ns a compramos. Continua sendo muito generosa a ajuda que seus estados do produo agrcola nacional, que apesar de seuscustos altssimos pode ser despejada sobre nossos pases a preos baratssimos, condenando runa os pequenos produtores do sul do mundo. Cada produtor rural dos Estados Unidos recebe, em mdia, subsdios estatais cem vezes maiores do que a receita de um agricultor das Filipinas, segundo dados das Naes Unidas. Isso sem falar no feroz protecionismo das potncias

  • desenvolvidas na custdia do que mais lhes importa: o monoplio das tecnologias de ponta, da biotecnologia e das indstrias do conhecimento e da comunicao, privilgios defendidos com unhas e dentes para que o norte permanea sabendo e o sul permanea copiando e que assim seja pelos sculos dos sculos.

    Continuam sendo altas muitas das barreiras econmicas e mais altas do que nunca todas as barreirashumanas. Basta dar uma olhada nas novas leis de imigrao dos

    A linguagem/2

    Em 1995, a imprensa argentina revelou que alguns diretores do Banco da Nao tinham recebido 37milhes de dlares da empresa norte-americana IBM, em troca de uma contratao de servios cotados 120 milhes de dlares acima do preo normal.

    Trs anos depois, esses diretores do banco estatal reconheceram ter embolsado e depositado na Sua tais vintns, mas tiveram o bom gosto de evitar a palavra suborno ou a grosseira expresso popular coima: um deles usou a palavra gratificao, outro disse que era uma gentileza e o mais delicado explicou que se tratava de um reconhecimento da alegria da IBM.

    pases europeus ou no muro de ao que os Estados Unidos esto construindo ao longo da fronteira com o Mxico: no uma homenagem queles que tombaram no muro de Berlim, mas uma porta fechada, mais uma, nos narizes dos trabalhadores mexicanos que insistem em ignorar que a liberdade de trocar de pas um privilgio do dinheiro. (Para que o muro no parea opressivo, anuncia-se que ser pintado de cor de salmo, ter azulejos decorados com arte infantil e buraquinhos para que se enxergue o outro lado.)

    A cada vez que se renem, e se renem com intil frequncia, os presidentes das Amricas emitem comunicados repetindo que o mercado livre contribuir para a prosperidade. Para a prosperidade de quem algo que no fica muito claro. A realidade, que tambm existe embora s vezes no se note, e que fala embora s vezes se faa de muda, nos informa que o livre fluxo de capitais est engordando cada dia mais os narcotraficantes e os banqueiros que acoitam seus narcodlares. O desmoronamento dos controles pblicos, nas finanas e na economia, facilita-lhes o trabalho: proporciona-lhes boas mscaras e lhes permite organizar, com maior eficincia, os circuitos de distribuio de droga e a lavagem do dinheiro sujo. Diz tambm a realidade que esse sinal verde est servindo para que o norte do mundo possa dar rdea solta sua generosidade, instalando no sul e no leste suas indstrias mais poluidoras, pagando salrios simblicos, presenteando-nos com seus lixos nucleares e outros lixos.

  • A linguagem/3

    Na era vitoriana, era proibido fazer meno s calas na presena de uma senhorita. Hoje em dia, no fica bem dizer certas coisas perante a opinio pblica:

    o capitalismo exibe o nome artstico de economia de mercado;

    o imperialismo se chama globalizao;

    as vtimas do imperialismo se chamam pases em vias de desenvolvimento, que como chamar meninos aos anes;

    o oportunismo se chama pragmatismo;

    a traio se chama realismo;

    os pobres se chamam carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos;

    a expulso dos meninos pobres do sistema educativo conhecida pelo nome de desero escolar;

    o direito do patro de despedir o trabalhador sem indenizao nem explicao se chama flexibilizao do mercado de trabalho;

    a linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidade fosse a maioria;

    em lugar de ditadura militar, diz-se processo;

    as torturas so chamadas constrangimentos ilegais ou tambm presses fsicas e psicolgicas;

    quando os ladres so de boa famlia, no so ladres, so cleptomanacos;

    o saque dos fundos pblicos pelos polticos corruptos atende ao nome de enriquecimento ilcito;

    chamam-se acidentes os crimes cometidos pelos motoristas de automveis;

    em vez de cego, diz-se deficiente visual;

  • um negro um homem de cor;

    onde se diz longa e penosa enfermidade, deve-se ler cncer ou Aids;

    mal sbito significa infarto;

    nunca se diz morte, mas desaparecimento fsico;

    tampouco so mortos os seres humanos aniquilados nas operaes militares: os mortos em batalha so baixas, e os civis, que nada tm a ver com o peixe e sempre pagam o pato, so danos colaterais;

    em 1995, quando das exploses nucleares da Frana no Pacfico sul, o embaixador francs na Nova Zelndia declarou: No gosto da palavra bomba. No so bombas. So artefatos que explodem;

    chamam-se Conviver alguns dos bandos assassinos da Colmbia, que agem sob a proteo militar;

    Dignidade era o nome de um dos campos de concentrao da ditadura chilena e Liberdade o maior presdio da ditadura uruguaia;

    chama-se Paz e Justia o grupo paramilitar que, em 1997, matou pelas costas 45 camponeses, quase todos mulheres e crianas, que rezavam numa igreja do povoado de Acteal, em Chiapas.

    Fontes consultadas

    VILA CURIEL, Abelardo. Hambre, desnutricin y sociedad. La investigacin epidemiolgica de la desnutricin en Mxico. Guadalajara: Universidad, 1990.

    BARNET, Richard Jr.; CAVANAGH, John. Global dreams: imperial corporations and the New World Order. New York: Simons & Schuster, 1994.

    CHESNAIS, Franois. La mondialization du capital. Paris: Syros, 1997.

    GOLDSMITH, Edward; MANDER, Jerry. The case against the global economy. San Francisco: Sierra Club, 1997.

    FAO (Food and Agriculture Organization). Production yearbook. Roma, 1996.

    HOBSBAWN, Eric. Age of extremes. The short twentieth century: 1914/1991. New York: Pantheon, 1994.

  • IMF (International Monetary Fund). International financial statistics yearbook. Washington, 1997.

    INSTITUTO DEL TERCER MUNDO. Gua del mundo/1998. Montevideo: Mosca, 1998.

    MCNAMARA, Robert. In retrospect. New York: Times Books, 1995.

    PNUD (Programa de las Naciones Unidas para el Desarollo). Informe sobre desarollo humano/1995. Nueva York/Madrid/Mxico, 1995.

    _____. Informe sobre desarollo humano/1996. Nueva York/Madrid/Mxico, 1996.

    _____. Informe sobre desarollo humano/1997. Nueva York/Madrid/Mxico, 1997.

    RAMONET, Ignacio. Gopolitique du chaos. Paris: Galile, 1997.

    WORLD BANK. World development report/1995. Oxford: University Press, 1996.

    _____. World Bank atlas. Washington, 1997.

    _____. World developtment indicators. Washington, 1997.

    Curso bsico de racismo e machismo

    Os subordinados devem obedincia eterna a seus superiores, assim como as mulheres devem obedincia aos homens. Uns nascem para mandar, outros para obedecer.

    O racismo, como o machismo, justifica-se pela herana gentica: no so os pobres uns fodidos por culpa da histria e sim por obra da biologia. Levam no sangue o seu destino e, pior, os cromossomos da inferioridade costumam misturar-se com as perversas sementes do crime. E quando se aproxima um pobre de pele escura, o perigmetro acende a luz vermelha. E dispara o alarme.

    Os mitos, os ritos e os fitos

    Nas Amricas e tambm na Europa a polcia caa esteretipos, imputveis do delito de trazer uma cara. Cada suspeito que no branco confirma a regra escrita, com tinta invisvel, nas profundidades da conscincia coletiva: o crime preto, talvez marrom ou, ao menos, amarelo.

  • Esta demonizao ignora a experincia histrica do mundo. Ainda que se focalizem to s os ltimos cinco sculos, seria preciso reconhecer que no foram nada escassos os crimes de cor branca. No tempo do Renascimento, os brancos constituam apenas a quinta parte da populao mundial, mas j se diziam portadores da vontade divina. Em nome de Deus, exterminaram sabe-se l quantos milhes de ndios nas Amricas e arrancaram sabe-se l quantos milhes de negros da frica. Brancos foram os reis, os vampiros de ndios e os traficantes negreiros que fundaram a escravido hereditria na Amrica e na frica, para que os filhos dos escravos nascessem escravos nas minas e nas plantaes. Brancos foram os autores dos incontveis atos de barbrie que a Civilizao cometeu, nos sculos seguintes, para impor, a ferro e fogo, seu branco poder imperial sobre os quatro pontos cardeais do planeta. Brancos foram os chefes de estado e os chefes guerreiros que organizaram e executaram, com a ajuda dos japoneses, as duas guerras mundiais que,no sculo XX, mataram 64 milhes de pessoas, na maioria civis. E brancos foram os que planejaram e realizaram o holocausto dos judeus, que tambm incluiu vermelhos, ciganos e homossexuais, nos campos nazistas de extermnio.

    A certeza de que alguns povos nascem para ser livres e outros para ser escravos guiou os passos de todos os imprios que existiram no mundo. Mas foi a partir do Renascimento e da conquista da Amrica que o racismo se articulou como um sistema de absolvio moral a servio da voracidade europeia. Desde ento, o racismo impera: no mundo colonizado, deprecia as maiorias; no mundo colonizador, marginaliza as minorias. A era colonial precisou do racismo tanto quanto da plvora, e de Roma os papas caluniavam Deus, atribuindo-lhe a ordem de arrasamento. O direito internacionalnasceu para dar valor legal invaso e ao saque, ao mesmo tempo em que o racismo outorgava salvo-condutos s atrocidades militares e dava justificativas impiedosa explorao dos povos e dasterras submetidas.

    A identidade

    Onde esto meus ancestrais? A quem devo celebrar? Onde encontrarei minha matria-prima? Meu primeiro antepassado americano... foi um ndio, um ndio dos tempos primevos. Os antepassados devocs o esfolaram vivo e eu sou seu rfo.

    (Mark Twain, que era branco, em The New York Times, 26 de dezembro de 1881)

    Na Amrica hispnica, um novo vocabulrio ajudou a determinar o lugar de cada pessoa na escala social, segundo a degradao sofrida pela mistura de sangues. Mulato era, e , o mestio de branco com negra, numa bvia aluso mula, filha estril do burro e da gua, enquanto muitos outros termos foram inventados para classificar as mil cores geradas pelas sucessivas mancebias de europeus, americanos e africanos no Novo Mundo. Nomes simples como castizo, cuartern,

  • quintern, morisco, cholo, albino, lobo, zambaigo, cambujo, albarazado, barcino, coyote, chamiso, zambo, jbaro, tresalbo, jarocho, lunarejo e rayado, e tambm nomes compostos como torna atrs, ah te ests, tente en el aire e no te entiendo, batizavam os frutos das saladas tropicais e definiam a maior ou menor gravidade da maldio hereditria.[1]

    De todos os nomes, no te entendo o mais revelador. Desde aquilo que se costuma chamar descobrimento da Amrica, temos cinco sculos de no te entendos. Cristvo Colombo acreditouque os ndios eram ndios da ndia, que os cubanos habitavam a China e os haitianos o Japo. Seu irmo Bartolomeu inaugurou a pena de morte nas Amricas, queimando vivos seis indgenas pelo delito de sacrilgio: os culpados tinham enterrado estampinhas catlicas para que os novos deuses tornassem fecundas as colheitas. Quando os conquistadores chegaram s costas do leste do Mxico, perguntaram: Como se chama este lugar? Os nativos responderam: No entendemos nada, que na lngua maia soava parecido com yucatn, e desde ento aquela regio se chama Yucatn. Quando os conquistadores se internaram at o corao da Amrica do Sul, perguntaram: Como se chama esta lagoa? Os nativos contestaram: A gua, senhor?, que na lngua guarani soava parecido com ypacara, e desde ento se chama Ypacara aquela lagoa nas cercanias de Assuno do Paraguai. Os ndios sempre foram imberbes, mas em 1694, em seu Dictionnaire universel, Antoine Furetire os descreveu como barbados e cobertos de pelos, porque a tradio iconogrfica europeia mandava que os selvagens fossem peludos como os macacos. Em 1774, o frade doutrinador do povoado de San Andrs Itzapan, na Guatemala, descobriu que os ndios no adoravam a Virgem Maria, mas a serpente esmagada sob seu p, por ser a serpente uma velha amiga, divindade dos maias, e descobriu tambm que os ndios veneravam a cruz porque a cruz tinha a forma do encontro da chuva com a terra. Ao mesmo tempo, na cidade alem de Krnigsberg,o filsofo Immanuel Kant, que nunca tinha estado na Amrica, sentenciou que os ndios eram incapazes de civilizao e estavam destinados ao extermnio. E de fato era nisso que os ndios andavam ocupados, embora no por mritos prprios: no eram muitos os que tinham sobrevivido aos disparos do arcabuz e do canho, aos ataques das bactrias e dos vrus desconhecidos na Amrica e s jornadas sem fim de trabalho forado nos campos e nas minas de ouro e prata. E muitos tinham sido condenados ao aoite, fogueira ou forca pelo pecado da idolatria: os incapazes de civilizao viviam em comunho com a natureza e acreditavam, como muitos de seus netos ainda acreditam, que sagrada a terra e sagrado tudo o que na terra anda ou da terra brota.

    Para a ctedra de direito penal

    Em 1986, um deputado mexicano visitou o presdio de Cerro Huego, em Chiapas. Ali encontrou umndio tzotzil que degolara seu pai e fora condenado a trinta anos de priso. O deputado descobriu que, todo o santo meio-dia, o defunto pai trazia tortilhas e feijo para o filho encarcerado.

    Aquele detento tzotzil fora interrogado e julgado em lngua castelhada, que ele entendia pouco ou nada, e abaixo de pancada havia confessado ser o autor de um crime chamado parricdio.

  • natureza e acreditavam, como muitos de seus netos ainda acreditam, que sagrada a terra e sagrado tudo o que na terra anda ou da terra brota.

    E continuaram os equvocos, sculo aps sculo. Na Argentina, no fim do sculo XIX, chamou-se conquista do deserto s campanhas militares que aniquilaram os ndios do sul, embora a Patagnia, naquela poca, estivesse menos deserta do que agora. At pouco tempo atrs, o Registro Civil argentino no aceitava nomes indgenas, por serem estrangeiros. A antroploga Catalina Buliubasich descobriu que o Registro Civil tinha resolvido documentar os ndios no documentadosdo planalto de Salta, ao norte do pas. Os nomes aborgines tinham sido trocados por nomes to pouco estrangeiros como Chevroleta, Ford, Veintisiete, Ocho, Trece, e at havia indgenas rebatizados com o nome de Domingo Faustino Sarmiento, assim completinho, em memria de um figuro que at sentia asco pela populao nativa.

    Hoje em dia, os ndios so considerados um peso morto para a economia de pases que, em grande medida, dependem de seus braos, e um lastro para a cultura do plstico que esses pases tm por modelo.

    Na Guatemala, um dos poucos pases onde puderam recuperar-se da catstrofe demogrfica, os ndios sofrem de maus-tratos como a mais marginalizada das minorias, embora constituam a maioria da populao: os mestios e os brancos, ou os que dizem ser brancos, se vestem e vivem, ougostariam de se vestir ou viver, moda de Miami, para no parecer ndios, e enquanto isso milhares de estrangeiros vm em peregrinao ao mercado de Chichicastenango, um dos baluartes da beleza no mundo, onde a arte indgena oferece seus tecidos de assombrosa imaginao criadora. O coronel Carlos Castillo Armas, que em 1954 usurpou o poder, sonhava em transformar a Guatemala numa Disneylndia. Para salvar os ndios da ignorncia e do atraso, o coronel se props a lhes despertar o gosto esttico, como explicou num folheto de propaganda, ensinando-lhes a tecer, a bordar e outros trabalhos. A morte o surpreendeu no meio da tarefa.

    Ests igual a um ndio, ou fedes como um negro, dizem algumas mes aos filhos que no querem tomar banho, nos pases de mais forte presena indgena ou negra. Mas os cronistas do antigo Reinodas ndias registraram o assombro dos conquistadores diante da frequncia com que os ndios se banhavam, e desde ento foram os ndios, e mais tarde os escravos africanos, que tiveram a gentileza de transmitir aos demais latino-americanos seus hbitos de higiene.

    A f crist desconfiava do banho, parecido com o pecado porque dava prazer. Na Espanha, nos tempos da Inquisio, quem se banhava com alguma frequncia estava confessando sua heresia muulmana e podia acabar seus dias na fogueira. Na Espanha de hoje, o rabe rabe se veraneia em Marbella. O rabe pobre apenas um mouro e, para os racistas, mouro hediondo. No entanto, como h de saber qualquer um que tenha visitado aquela festa da gua que a Alhambra de Granada, a cultura muulmana uma cultura da gua desde os tempos em que a cultura crist negava toda a gua que no fosse de beber. Na verdade, o chuveiro se popularizou na Europa com grande atraso, mais ou menos ao mesmo tempo que a televiso.

  • Os indgenas so covardes e os negros assustadios, mas eles sempre foram boa carne de canho nas guerras de conquista, nas guerras da independncia, nas guerras civis e nas guerras de fronteirasna Amrica Latina. ndios eram os soldados que os espanhis usaram para massacrar ndios na poca da conquista. No sculo XIX, a guerra da independncia foi uma hecatombe para os negros argentinos,

    A deusa

    Na noite de Iemanj, toda a costa uma festa. Bahia, Rio de Janeiro, Montevidu e outros litorais celebram a deusa do mar. A multido acende na areia um esplendor de velas e lana s guas um jardim de flores brancas e tambm perfumes, colares, tortas, caramelos e outros coqueterias e guloseimas que agradam deusa.

    Os crentes, ento, fazem um pedido:

    o mapa do tesouro escondido,

    a chave do amor proibido,

    o reencontro dos perdidos,

    a ressurreio dos queridos.

    Enquanto os crentes pedem, seus desejos se realizam. Talvez o milagre no dure mais do que as palavras que o nomeiam, mas, enquanto ocorre essa fugaz conquista do impossvel, os crentes so luminosos e brilham na noite.

    Quando as ondas levam as oferendas, eles retrocedem, sempre olhando o horizonte para no dar as costas deusa. E, a passos vagarosos, regressam cidade.

    sempre colocados na primeira linha de fogo. Na guerra contra o Paraguai, os cadveres dos negros brasileiros juncaram os campos de batalha. Os ndios formavam as tropas do Peru e da Bolvia na guerra contra o Chile: essa raa abjeta e degradada, como a chamava o escritor peruano Ricardo Palma, foi enviada ao matadouro, enquanto os oficiais fugiam gritando Viva a ptria! Em tempos recentes, ndios foram os mortos na guerra entre Equador e Peru; e s havia soldados ndios nos exrcitos que arrasaram as comunidades ndias nas montanhas da Guatemala: os oficiais, mestios, cumpriam em cada crime uma feroz cerimnia de exorcismo contra a metade de seu prprio sangue.

  • Trabalha como um negro, dizem aqueles que tambm dizem que os negros so vadios. Diz-se: o branco corre, o negro foge. O branco que corre homem roubado, o negro que foge ladro. At Martn Fierro, o personagem que encarnou os gachos pobres e perseguidos, opinava que os negros eram ladres, feitos pelo Diabo para servir de tio no inferno. E tambm os ndios: El indio es indio y no quiere / apiar de su condicin / ha nacido indio ladrn / y como indio ladrn muere. Negro ladro, ndio ladro: a tradio do equvoco manda que os ladres sejam os mais roubados.

    O inferno

    Nos tempos coloniais, Palenque foi o santurio de liberdade que, selva adentro, escondia os escravos negros fugitivos de Cartagena das ndias e das plantaes da costa colombiana.

    Passaram-se os anos, os sculos. Palenque sobreviveu. Os palenqueiros continuam acreditando que a terra, sua terra, um corpo, feito de montes, selvas, ares, gentes, que respira pelas rvores e chora pelos arroios. E tambm seguem acreditando que, no paraso, so recompensados aqueles que desfrutaram a vida, e no inferno so castigados aqueles que no obedeceram a ordem divina: no inferno ardem, condenados ao fogo eterno, as mulheres frias e os homens frios, que desobedeceram as sagradas vozes que mandam viver com alegria e com paixo.

    tradio do equvoco manda que os ladres sejam os mais roubados.

    Desde os tempos da conquista e da escravido, aos ndios e aos negros foram roubados os braos e as terras, a fora de trabalho e a riqueza; e tambm a palavra e a memria. No Rio da Prata, quilombo significa bordel, caos, desordem, degradao, mas esta expresso africana, no idioma banto, quer dizer campo de iniciao. No Brasil, quilombos foram os espaos de liberdade fundadosselva adentro pelos escravos fugitivos. Alguns desses santurios resistiram durante muito tempo. Um sculo inteiro durou o reino livre de Palmares, no interior de Alagoas, que resistiu a mais de trinta expedies militares dos exrcitos da Holanda e de Portugal. A histria real da conquista e da colonizao das Amricas uma histria da dignidade incessante. No houve nenhum dia sem rebelio em todos os anos daqueles sculos, mas a histria oficial apagou quase todas essas revoltas,com o desprezo que merecem os atos de m conduta da mo de obra. Afinal, quando os negros e os ndios se negavam a aceitar a escravido e o trabalho forado como destino, estavam cometendo delitos de subverso contra a organizao do universo. Entre a ameba e Deus, a ordem universal se organiza numa longa cadeia de subordinaes sucessivas. Assim como os planetas giram em torno

  • do sol, devem girar os servos ao redor dos senhores. A desigualdade social e a discriminao racial integram a harmonia do cosmo desde os tempos coloniais. E assim continua sendo, e no s nas Amricas. Em 1995, Pietro Ingrao fazia tal constatao na Itlia: Tenho uma empregada filipina em casa. Que estranho. difcil aceitar a ideia de que uma famlia filipina tenha em sua casa uma empregada branca.

    Nunca faltaram pensadores capazes de elevar a categoria cientfica os preconceitos da classe dominante, mas o sculo XIX foi prdigo na Europa. O filsofo Auguste Comte, um dos fundadoresda sociologia moderna, acreditava na superioridade da raa branca e na perptua infncia da mulher.Como quase todos os seus colegas, Comte no tinha dvidas sobre este princpio universal: so brancos os homens aptos a exercer o mando sobre os condenados s posies subalternas.

    Os heris e os malditos

    Dentro de alguns atletas habita uma multido. Nos anos 40, quando os negros norte-americanos nopodiam partilhar com os brancos nem mesmo o cemitrio, Jack Robinson se imps no beisebol. Milhes de negros pisoteados recuperaram sua dignidade atravs desse atleta que, como nenhum outro, brilhava num esporte que era exclusivo dos brancos. O pblico o insultava, atirava-lhe amendoim, os rivais cuspiam nele e, em casa, Robinson recebia ameaas de morte.

    Em 1994, enquanto o mundo aclamava Nelson Mandela e sua longa luta contra o racismo, o atleta Josiah Thugwane se tornava o primeiro negro sul-africano a vencer numa olimpada. Nos ltimos anos, passou a ser normal que trofus olmpicos sejam conquistados por atletas de pases como Qunia, Etipia, Somlia, Burundi ou frica do Sul. Tiger Woods, chamado o Mozart do golfe, vemtriunfando num esporte de brancos ricos. E j faz muitos anos que so negros os astros do basquete e do boxe. So negros, ou mulatos, os jogadores que mais alegria e beleza do ao futebol.

    Segundo o dplice discurso racista, perfeitamente possvel aplaudir os negros de sucesso e maldizer os demais. Na Copa do Mundo de 1998, vencida pela Frana, eram imigrantes quase todosos jogadores que vestiam a camisa azul e iniciavam as partidas ao som da Marselhesa. Uma pesquisa realizada na poca confirmou que, de cada dez franceses, quatro tm preconceitos raciais, mas todos os franceses comemoraram o triunfo como se os negros e os rabes fossem filhos de Joana dArc.

    Cesare Lombroso tornou o racismo uma questo policial. Este professor italiano, que era judeu, quisdemonstrar a periculosidade dos selvagens primitivos atravs de um mtodo muito semelhante ao que Hitler utilizou, meio sculo depois, para justificar o antissemitismo. Segundo Lombroso, os delinquentes nasciam delinquentes, e os sinais de animalidade que os denunciavam eram os mesmos

  • sinais peculiares aos negros africanos e aos ndios americanos descendentes da raa mongoloide. Oshomicidas tinham pmulos largos, cabelo crespo e escuro, pouca barba, grandes caninos; os ladres tinham nariz achatado; os violadores, plpebras e lbios grossos. Como os selvagens, os criminosos no ruborizavam, o que lhes permitia mentir descaradamente. As mulheres, sim, ruborizavam, mas Lombroso descobriu que at as mulheres consideradas normais tm sinais criminaloides. Tambmos revolucionrios: Nunca vi um anarquista de rosto simtrico.

    Herbert Spencer situava no imprio da razo as desigualdades que, hoje em dia, so leis do mercado. Embora passado mais de um sculo, algumas de suas certezas parecem atuais em nossa era neoliberal. Segundo Spencer, o Estado devia colocar-se entre parnteses, para no interferir nos processos de seleo natural que do o poder aos homens mais fortes e mais bem dotados. A proteo social s servia para aumentar o enxame de desocupados e a escola pblica procriava descontentes. O estado devia limitar-se a instruir as raas inferiores em ofcios manuais e a mant-las longe do lcool.

    Como costuma ocorrer com a polcia em suas batidas, o racismo encontra o que ele mesmo pe. Atos primeiros anos do sculo XX ainda estava na moda pesar crebros para medir a inteligncia. Essemtodo cientfico, sobre proporcionar obscena exibio de massas enceflicas, demonstrou que os ndios, os negros e as mulheres tinham crebros bem menos pesadinhos. Gabriel Ren Moreno, a grande figura intelectual do sculo passado na Bolvia, j havia constatado, balana na mo, que o crebro indgena e o crebro mestio pesavam entre cinco, sete e dez onas menos do que o crebro de raa branca. Na relao com a inteligncia, o peso do crebro tem a mesma importncia que o tamanho do pnis na relao com o desempenho sexual, ou seja: nenhuma. Mas os homens da cincia andavam caa de crnios famosos e no se abatiam, apesar dos resultados desconcertantes de suas operaes. O crebro de Anatole France, por exemplo, pesou a metade do que pesou o de Ivan Turgueniev, embora os mrito literrios de ambos fossem considerados parelhos...

    Nomes

    O maratonista Doroteo Guamuch, ndio quchua, foi o atleta mais importante de toda a histria da Guatemala. Por ser uma glria nacional, teve de abrir mo do nome maia e passou a chamar-se Mateo Flores.

    Em homenagem s suas proezas, foi batizado com o nome de Mateo Flores o maior estdio de futebol do pas, enquanto ele ganhava a vida como caddy, carregando tacos e recolhendo bolinhas nos campos do Mayan Golf Club.

    H um sculo, Alfred Binet inventou em Paris o primeiro teste de coeficiente intelectual, com o

  • saudvel propsito de identificar as crianas que, nas escolas, precisassem de maior auxlio do professor. O prprio inventor foi o primeiro a advertir que tal instrumento no servia para medir a inteligncia, que no pode ser medida, e que no devia ser usado para desqualificar ningum. Mas, j em 1913, as autoridades norte-americanas impuseram o teste de Binet s portas de Nova York, bem perto da Esttua da Liberdade, aos recm-chegados imigrantes judeus, hngaros, italianos e russos, concluindo que, em cada dez imigrantes, oito tinham uma mente infantil. Trs anos depois, as autoridades bolivianas aplicaram o mesmo teste nas escolas pblicas de Potos: oito de cada dez crianas eram anormais. E desde ento, at nossos dias, o desprezo racial e social continua invocando o valor cientfico das aferies do coeficiente intelectual, que tratam as pessoas como se fossem nmeros. Em 1994, o livro The bell curve teve um espetacular sucesso de vendas nos Estados Unidos. A obra, escrita por dois professores universitrios, proclamava sem papas na lnguao que muitos pensam mas no se atrevem a dizer, ou dizem em voz baixa: os negros e os pobres temum coeficiente intelectual inevitavelmente menor do que os brancos e os ricos, por herana gentica, e portanto o dinheiro empregado em sua educao e em assistncia social dinheiro jogado pela janela. Os pobres, e sobretudo os pobres de pele negra, so burros, e no so burros porque so pobres, mas pobres porque so burros.

    O racismo s reconhece a fora de evidncia de seus prprios preconceitos. Est provado que, para os pintores e escultores mais famosos do sculo XX, a arte africana foi fonte primordial de inspirao e muitas vezes objeto de plgio descarado. Tambm parece indubitvel que os ritmos de origem africana esto salvando o mundo de morrer de tristeza ou de tdio. O que seria de ns sem a msica que veio da frica e gerou novas magias no Brasil, nos Estados Unidos e nas costas do Mar do Caribe? No entanto, para Jorge Luis Borges, para Arnold Toynbee e para muitos outros importantes intelectuais contemporneos, era evidente a esterilidade cultural dos negros.

    Nas Amricas, a cultura real filha de vrias mes. Nossa identidade, que mltipla, realiza sua vitalidade criadora a partir da fecunda contradio das partes que a integram. Mas temos sido adestrados para no nos enxergarmos. O racismo, que mutilador, impede que a condio humana resplandea plenamente com todas as suas cores. A Amrica continua doente de racismo: de norte a sul, continua cega de si mesma. Ns, os latino-americanos da minha gerao, fomos educados por Hollywood. Os ndios eram uns tipos de catadura amargurada, emplumados e pintados, mareados detanto dar voltas ao redor das diligncias. Da frica, s sabemos o que nos ensinou o professor Tarzan, inventado por um romancista que nunca esteve l.

    As culturas de origem no europeia no so culturas, mas ignorncias, teis, no melhor dos casos, para comprovar a impotncia das raas inferiores, atrair turistas e dar a nota tpica nas festas de fim de curso ou nas datas ptrias. Na verdade, a raiz indgena ou a raiz africana, e em alguns pases as duas ao mesmo tempo, florescem com tanta fora como a raiz europeia nos jardins da cultura mestia. So evidentes seus frutos prodigiosos, nas artes de alto prestgio e tambm nas artes que o desprezo chama de artesanato, nas culturas reduzidas ao folclore e nas religies depreciadas como superstio. Essas razes, ignoradas mas no ignorantes, nutrem a vida cotidiana de gente de carne eosso, embora muitas vezes as pessoas no saibam ou prefiram no saber, e esto vivas nas linguagens que a cada dia revelam o que somos atravs do que falamos e do que calamos, em nossas maneiras de comer e de cozinhar o que comemos, nas msicas que danamos, nos jogos que jogamos e nos mil e um rituais, secretos ou compartilhados, que nos ajudam a viver.

  • Justia

    Em 1997, um automvel de placa oficial trafegava em velocidade normal por uma avenida de So Paulo. No carro, que era novo e caro, iam trs homens. Num cruzamento, um policial mandou o carro parar. Fez com que os trs desembarcassem e os manteve durante uma hora de mos para cima, e de costas, enquanto os interrogava insistentemente, querendo saber onde tinham furtado o veculo.

    Os trs homens eram negros. Um deles, Edivaldo Brito, era o Secretrio de Justia do governo de So Paulo. Os outros dois eram funcionrios da Secretaria. Para Brito, aquilo no era uma novidade.Em menos de um ano, j lhe acontecera cinco vezes a mesma coisa.

    O policial que os deteve tambm era negro.

    Durante sculos estiveram proibidas as divindades oriundas do passado americano e das costas da frica. Hoje em dia j no vivem na clandestinidade e embora sejam ainda objeto de desprezo, usualmente so louvadas por numerosos brancos e mestios que acreditam nelas, ou ao menos as invocam e lhes pedem favores. Nos pases andinos, j no so s os ndios que viram o copo e deixam cair o primeiro gole para que o beba Pachamama, a deusa da terra. Nas ilhas do Caribe e nascostas atlnticas da Amrica do Sul, j no so s os negros que oferecem flores e guloseimas a Iemanj, a deusa do mar. Ficaram para trs os tempos em que os deuses negros e indgenas precisavam disfarar-se de santos cristos para existir. J no sofrem perseguies ou castigos, mas so vistos com desdm pela cultura oficial. Em nossas sociedades, alienadas, adestradas durante sculos para cuspir no espelho, no fcil aceitar que as religies originrias da Amrica e as que vieram da frica nos navios negreiros meream tanto respeito quanto as religies crists dominantes. No mais, mas nem um pouquinho menos. Religies? Religies, esses engodos? Essas exaltaes pags da natureza, essas perigosas celebraes da paixo humana? Podem parecer pitorescas e at simpticas na forma, mas, no fundo, so meras expresses da ignorncia e do atraso.

    H uma longa tradio de identificao das pessoas de pele escura, e de seus smbolos de identidade, com a ignorncia e com o atraso. Para abrir o caminho do progresso na Repblica Dominicana, o generalssimo Lenidas Trujillo mandou esquartejar a faco, em 1937, 25 mil negroshaitianos. O generalssimo, mulato, neto de av haitiana, branqueava o rosto com p de arroz e ambicionava branquear o pas. A ttulo de indenizao, a Repblica Dominicana pagou 29 dlares por morto ao governo do Haiti. Ao fim de prolongadas negociaes, Trujillo admitiu dezoito mil mortos, elevando a soma total para 522 mil dlares.

  • Pontos de vista/4

    Do ponto de vista do oriente do mundo, o dia do ocidente noite.

    Na ndia, quem est de luto se veste de branco.

    Na Europa antiga, o negro, cor da terra frtil, era a cor da vida, e o branco, cor dos ossos, era a cor da morte.

    Segundo os velhos sbios da regio colombiana do Choc, Ado e Eva eram negros e negros eram seus filhos Caim e Abel. Quando Caim matou seu irmo com uma bordoada, trovejaram as iras de Deus. Diante da fria do Senhor, o assassino empalideceu de culpa e medo, e tanto empalideceu quebranco se tornou at o fim dos seus dias. Os brancos somos, todos ns, filhos de Caim.

    Enquanto isso, longe dali, Adolf Hitler estava esterilizando os ciganos e os mulatos filhos de soldados negros do Senegal, que anos antes tinham vindo para a Alemanha com uniforme francs. O plano nazista de limpeza da raa ariana havia comeado com a esterilizao dos doentes hereditrios e dos criminosos, e continuou, depois, com os judeus.

    A primeira lei de eugenia foi aprovada, em 1901, no estado norte-americano de Indiana. Trs dcadas mais tarde, j eram trinta os estados norte-americanos onde a lei permitia a esterilizao dos deficientes mentais, dos assassinos perigosos, dos estupradores e dos membros de categorias tonebulosas como os pervertidos sociais, os aficcionados do lcool e das drogas e as pessoas doentes e degeneradas. Em sua maioria, por certo, os esterilizados eram negros. Na Europa, a Alemanha no foi o nico pas que teve leis inspiradas em razes de higiene social e de pureza racial. Houve outros. Por exemplo: na Sucia, fontes oficiais h pouco reconheceram que mais de sessenta mil pessoas tinham sido esterilizadas com base numa lei dos anos 30 que s foi derrogada em 1976.

    Nos anos 20 e 30 era normal que os educadores mais conceituados das Amricas mencionassem a necessidade de regenerar a raa, melhorar a espcie, mudar a qualidade biolgica das crianas. Ao inaugurar o sexto Congresso Pan-Americano da Criana, em 1930, o ditador peruano Augusto Legua deu nfase ao melhoramento tnico, fazendo eco Conferncia Nacional sobre a Criana do Peru, que lanara um alarme a respeito da infncia retardada, degenerada e criminosa. Seis anos antes, no Congresso Pan-Americano da Criana celebrado no Chile, tinham sido numerosas as vozes que exigiam selecionar as sementes que se semeiam, para evitar crianas impuras, enquantoo jornal argentino La Nacin, em editorial, falava na necessidade de zelar pelo futuro da raa, e o jornal chileno El Mercurio advertia que a herana indgena dificulta, por seus hbitos e ignorncia,a adoo de certos costumes e conceitos modernos.

  • Um dos protagonistas desse congresso no Chile, o mdico socialista Jos Ingenieros, escrevera em 1905 que os negros, abjeta escria, mereciam a escravido por motivos de realidade puramente biolgica. Os direitos do homem no podiam viger para estes seres simiescos, que parecem mais prximos dos macacos antropoides do que dos brancos civilizados. Segundo Ingenieros, mestre da juventude, estas amostras de carne humana tampouco deviam ambicionar a cidadania, porque no podiam se considerar pessoas no conceito jurdico. Em termos menos insolentes, anos antes, expressara-se outro mdico, Raymundo Nina Rodrigues: este pioneiro da antropologia brasileira comprovara que o estudo das raas inferiores tem fornecido cincia exemplos bem observados dessa incapacidade orgnica, cerebral.

    Assim se prova que os ndios so inferiores

    (Segundo os conquistadores dos sculos XVI e XVII)

    Suicidam-se os ndios das ilhas do Mar do Caribe? Porque so vadios e no querem trabalhar.

    Andam desnudos, como se o corpo todo fosse a cara? Porque os selvagens no tm pudor.

    Ignoram o direito de propriedade, tudo compartilham e no tm ambio de riqueza? Porque so mais parentes do macaco do que do homem.

    Banham-se com suspeitosa frequncia? Porque se parecem com os hereges da seita de Maom, que com justia ardem nas fogueiras da Inquisio.

    Acreditam nos sonhos e lhes obedecem as vozes? Por influncia de Sat ou por crassa ignorncia.

    livre o homossexualismo? A virgindade no tem importncia alguma? Porque so promscuos e vivem na antessala do inferno.

    Jamais batem nas crianas e as deixam viver livremente? Porque so incapazes de castigar e de ensinar.

    Comem quando tm fome e no quando hora de comer? Porque so incapazes de dominar seus instintos.

    Adoram a natureza, considerando-a me, e acreditam que ela sagrada? Porque so incapazes de terreligio e s podem professar a idolatria.

  • A maioria dos intelectuais das Amricas tinha certeza de que as raas inferiores bloqueavam o caminho do progresso. O mesmo opinavam quase todos os governos: no sul dos Estados Unidos, eram proibidos os casamentos mistos, e os negros no podiam entrar nas escolas, nos banheiros e tampouco nos cemitrios reservados aos brancos. Os negros da Costa Rica no podiam entrar na cidade de San Jos sem salvo-conduto. Nenhum negro podia cruzar a fronteira de El Salvador, e aosndios era vedado andar pelas caladas da cidade mexicana de San Cristbal de Las Casas.

    certo que na Amrica Latina no houve leis de eugenia, talvez porque, na poca, a fome e a polcia se encarregaram do assunto. Atualmente, continuam morrendo como moscas, de fome ou de doenas curveis, as crianas indgenas da Guatemala, da Bolvia e do Peru, e so negros oito de cada dez meninos de rua assassinados pelos esquadres da morte nas cidades do Brasil. A ltima lei norte-americana de eugenia foi derrogada na Virgnia, em 1972, mas nos Estados Unidos a mortalidade dos bebs negros duas vezes maior do que a dos brancos, e so negros quatro de cada dez adultos executados na cadeira eltrica, ou por injeo, comprimidos, fuzilamento ou forca.

    Assim se prova que os negros so inferiores

    (Segundo os pensadores dos sculos XVIII e XIX)

    Baro de Montesquieu, pai da democracia moderna: impensvel que Deus, que sbio, tenha posto uma alma, sobretudo uma alma boa, num corpo negro.

    Karl von Linneo, classificador de plantas e animais: O negro vagabundo, preguioso, negligente, indolente e de costumes dissolutos.

    David Hume, entendido em entendimento humano: O negro pode desenvolver certas habilidades prprias das pessoas, assim como o papagaio consegue articular certas palavras.

    Etienne Serres, sbio em anatomia: Os negros esto condenados ao primitivismo porque tm pouca distncia entre o umbigo e o pnis.

    Francis Galton, pai da eugenia, mtodo cientfico para impedir a propagao dos ineptos: Assim como um crocodilo jamais poder chegar a ser uma gazela, um negro jamais poder chegar a ser ummembro da classe mdia.

    Louis Agassiz, eminente zologo: O crebro de um negro adulto equivale ao de um feto branco de sete meses: o desenvolvimento do crebro bloqueado porque o crnio do negro se fecha muito antes do que o crnio do branco.

  • No tempo da Segunda Guerra Mundial, muitos negros norte-americanos morreram nos campos de batalha da Europa. Enquanto isso, a Cruz Vermelha dos Estados Unidos proibia o uso de sangue dosnegros nos bancos de sangue, para que no se materializasse, pela transfuso, a mistura de sangues proibida na cama. O pnico da contaminao, que se expressou em algumas maravilhas literrias de William Faulkner e em numerosos horrores dos encapuados da Ku Klux Klan, um fantasma que ainda no desapareceu dos pesadelos norte-americanos. Ningum poderia negar as conquistas dos movimentos pelos direitos civis, que nas ltimas dcadas tiveram xitos espetaculares contra os costumes racistas da nao. Melhorou muito a situao dos negros. No entanto, padecem o dobro dedesemprego em relao aos brancos e frequentam mais as prises do que as universidades. De cada quatro negros norte-americanos, um j passou pela priso ou nela est. Na capital, Washington, trs de cada quatro j estiveram presos ao menos uma vez. Em Los Angeles, os negros que conduzem automveis caros so sistematicamente detidos pela polcia, que em regra os humilha e, no raro, bate neles, como ocorreu com Rodney King, caso que em 1991 desencadeou uma exploso de fria coletiva, fazendo a cidade tremer. Em 1995, o embaixador norte-americano na Argentina, James Cheek, criticou a lei nacional de patentes, um tmido gesto de independncia, declarando: digna do Burundi. E ningum moveu uma palha, nem na Argentina, nem nos Estados Unidos, nem no Burundi. Diga-se de passagem que, na poca, havia guerra no Burundi e tambm na Iu