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DE ESCOLA PARA MULHERES A MUSEU FEMININO:
O colecionismo de Henriqueta Martins Catharino
Marijara Souza Queiroz1
Resumo
Este trabalho trata da formação da coleção museológica da Fundação Instituto Feminino
da Bahia a partir da Escola Comercial Feminina à consolidação do Museu Henriqueta Catharino
e do Museu do Traje e do Textil. Apresenta considerações sobre as ações de emancipação da
mulher desenvolvidas pela colecionadora, Henriqueta Catharino, que resultou nas coleções que
se distinguem pelo olhar feminino na seleção do acervo. Discute os itens do acervo que são
destacado pelo próprio museu em detrimento de outros, a exemplo da coleção do Museu de
Arte Popular, que não são realçadas de modo a indicar a construção de discurso hierarquizados,
como a própria sociedade, nas exposições de longa duração.
Palavras chave:
Museu feminino – Henriqueta Catharino – Colecionismo – Gênero
Summary
This work deals with the formation of museological collection of Women's Institute of
Bahia Foundation from the Commercial School Women consolidation Museum Henriette
Catharino and the Museum of Costume and Textile. It presents considerations about women's
emancipation actions undertaken by the collector, Henriette Catharino, which resulted in the
collections distinguished by feminine look in decent selection. Discusses the items of the
collection that are highlighted by the museum itself over others, such as the collection of the
Museum of Popular Art, which are not highlighted to indicate the construction of hierarchical
discourse as society itself, in the long term exposures.
Key words:
Women's Museum - Henriqueta Catharino - Collectibles - Gender
1 Professora Assistente do Curso de Museologia da Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de
Brasília. Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Graduada em
Museologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.
“Não nasci para vítima e nem para carpideira”
Essa frase foi a resposta que Henriqueta Martins Catharino (1886-1969)2 deu quando da
sua viuvez precoce após a morte de seu noivo, o suíço Ernerst Richard Hunerwald, em 1919. A
firmeza da resposta revelou mais tarde a decisão de permanecer solteira, já que, antes mesmo
de sucumbir ao insistente pedido de casamento, não demonstrava “em oportunidade alguma
desejo de casar-se”, como observou a historiadora Marieta Alves (1970), amiga pessoal e
parceira intelectual e profissional de Henriqueta até a seu falecimento em 1969.
Filha do português Bernardo Martins Catharino, bem sucedido industriário de têxteis,
casado com Úrsula Martins Catharino,
Henriqueta teve uma formação baseada na
moral cristã católica que se refletiu nas
regras de comportamento feminino, na
beneficência e na veneração pela arte, pela
música e pela poesia como formas de
comunicação com o sagrado. Aos modos da
aristocracia baiana oitocentista sob os efeitos
da Belle Époque3, teve ainda formação
linguística, artística e religiosa que recebeu
em casa de professores particulares, que
somavam-se a viagens à Europa, sobretudo à
França, para ampliar e fortalecer os
2 Henriqueta Martins Catharino nasceu em 1886, em Feira de Santana, BA e faleceu em 1969 em Salvador, BA. 3 A Belle Époque é compreendida como um momento na história francesa que teve início no final do século XIX
e se estendeu até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Não é possível demarcar rigorosamente seus
limites, uma vez que ela é mais um estado de espírito do que algo concreto. No Brasil, este período tem início
em 1889, com a Proclamação da República, e vai até 1922. As revistas brasileiras de moda e comportamento,
entre 1890 e 1920, tinha grande circulação entre as classes abastadas – “A Moda Ilustrada, A Luva, A Aurora,
Bahia Ilustrada, etc. – eram uma espécie de tradução das revistas e magazines franceses” e a principal forma de
difusão do espírito Belle Époque. (SOUZA, 2003, pag. 31).
conhecimentos adquiridos. Nessas oportunidades, adquiria objetos de arte, curiosidades e
aguçava o olhar para tipologias de coleções até então pouco valorizadas no Brasil, como as de
arte popular e de moda feminina.
Figura 1: Henriqueta Catharino em 1909.
Fonte: arquivo da Biblioteca Marieta Alves, FIFB.
Durante o século XIX, segundo Maria Ângela D’Incao (2015: 223) “o estilo de vida da
elite dominante na sociedade brasileira era marcado por influências do imaginário da
aristocracia portuguesa” baseado no sistema rural e escravista, onde a família patriarcal,
“comandada pelo pai detentor de enorme poder sobre seus dependentes, agregados e escravos,
habitava a casa grande e dominava a senzala”. O desenvolvimento das cidades e da vida
burguesa no final do século XIX influencia na modificação da casa que se torna mais acolhedora
para valorização da vida íntima e privatização da família. De outro modo, essa interiorização
da vida doméstica requeria apreciação pública das amplas salas e salões de festas, saraus e
jantares, que se caracterizavam como “espaços intermediários entre o lar e a rua” em nome do
status. Assim, as mulheres de famílias abastadas passam a participar mais de acontecimentos
sociais como cafés, bailes e bazares beneficentes.
Essa mudança comportamental da sociedade burguesa demandou do sistema patriarcal
novas formas de vigilância da mulher quanto à sua conduta em público não apenas pelo pai ou
marido como por toda a sociedade, já que a convivência social libera emoções. Esse sistema
gera ainda a auto vigilância, pois cabia à mãe, como sujeito central da vida doméstica, zelar
pela conduta da família e projetá-la socialmente para cima através da boa educação das filhas
para o casamento que envolvia alianças políticas e econômicas e, por consequência, a
continuidade do “sucesso da família”. Um ciclo em que coloca a mulher na condição de
zeladora da imagem do homem público já que a família era um bem negociado e adquirido.
(D’INCAO, 2015: 228-230).
Henriqueta rompe esse ciclo ao se resignar à viuvez até o fim da vida após a perda do
noivo tendo como consequência a disposição dos seus recursos materiais, incluindo o próprio
dote, a favor da “promoção da mulher baiana”, segundo Elizete Silva Passos (1992: 42), através
dos cursos profissionalizantes da Escola Comercial Feminina por ela fundada. Outros cursos de
formação religiosa e filosófica eram dedicados a afastar as jovens baianas dos “comportamentos
incorretos” e “métodos ilícitos” para a auto sustentação, em referência ao comportamento
sexual feminino. Segundo D’Incao, a virgindade feminina era “um valor ético propriamente
dito” e funcionava como dispositivo de “valor econômico e político sobre o qual se assentaria
o sistema de herança de propriedade que garantia linhagem da parentela” (2015: 235).
Confirma-se assim a eficácia do sistema de vigilância e auto vigilância da mulher mesmo fora
das relações domésticas: De mulher para mulher.
Essa preocupação com a mulher projetou a atuação de Henriqueta, ainda segundo
Passos, à posição de “feminismo especial” exercido através de ações e práticas com dois eixos
de atuação: emancipando a mulher, especialmente as moças solteiras, através da
profissionalização e inserção no mercado de trabalho, de modo a torná-las independentes em
relação ao matrimonio, ainda visto como negócio e única condição “digna” de incluir a mulher
na sociedade; e, possibilitando que as senhoras casadas tivessem uma atividade fora do lar para
fins de socialização, através de “cursos domésticos” – ateliês de culinária, corte e costura,
artesanato – e da mobilização a favor da beneficência cristã.
A origem da instituição que viria a se solidificar mais tarde foi delineada em 1918
quando Henriqueta pôs sua biblioteca particular à disposição de jovens moças dando início ao
que a historiadora Marieta Alves (2003, 17-23) denominou de “seu apostolado na sociedade”,
com a criação da Propaganda das Boas Leituras. “Não satisfeita com esse auspicioso início de
apostolado convidou senhoras e senhorinhas para uma tarde de costuras em sua residência”,
onde se executaram variados trabalhos manuais com agulhas, crochê e tricô. As peças
resultantes desse trabalho eram doadas às mulheres mais necessitadas, em especial às mães que
esperavam bebês, não sem antes observar se estas viviam de acordo com as leis divinas e cristãs,
o que funcionava como um pré-requisito no estabelecimento de prioridades.
Em 1919, Henriqueta organizou um bazar beneficente no Teatro Polytheama Baiano
para levantar fundos que se somassem à quantia já obtida com a venda de suas posses – um anel
de brilhantes e de um colar de pérolas – além do “adiantamento de uma parte da herança que
lhe caberia um dia” (ALVES, 2003: 22), solicitada ao pai, para o início do seu projeto. Em
1923, com a ajuda de Monsenhor Flaviano Osório Pimentel que já acumulava experiências
filantrópicas como diretor da Associação das Senhoras de Caridade, inaugura o Atelier São
José, uma espécie de agencia de colocações e de trabalho que tinha como objetivo
profissionalizar a mulher e ensinar corte e costura como meio de sustento.
No mesmo ano, inaugura a Casa São Vicente no Terreiro de Jesus, nº 15, esquina com
a Rua Saldanha da Gama, que, dois meses depois, viria a se tornar a Escola Comercial Feminina
com os cursos de datilografia, harmônios, francês e inglês. A Escola foi oficializada em 1929
pelo Governo Federal, o que estimulou a abertura de novos cursos como filosofia, tradição e
história da Bahia, braile, religião e contabilidade, além da mudança para uma nova sede à Rua
do Rosário, 215, após breve passagem pela Praça da Piedade.
A Escola estava consolidada, mas Henriqueta alimentava paralelamente interesse
particular pelo colecionismo, estimulado pelas diversas viagens que fazia à Europa, quando
adquiria objetos de arte, curiosidades e aguçava o olhar para tipologias de coleções até então
pouco valorizadas no Brasil, como a de arte popular e moda feminina.
Em busca de melhores acomodações, entre 1937 e 1939, foi construída a atual sede
(2016) no lugar onde funcionou o Teatro Polytheama Bahiano. O espaço foi propício a novas
atividades de modo que, além das salas de aula, algumas áreas foram destinadas às exposições
de “Arte Antiga Feminina”4, embora todo o prédio já dispusesse de mobiliário de época e
objetos de arte decorativa. Segundo Helder Viana (2002: 36) “caberia ao Museu de Arte Antiga
possibilitar a formação da identidade baiana entre as alunas através do “ensino do bom gosto
artístico”. Acredita-se que as coleções também serviam para complementar a formação das
alunas sobre usos e costumes relacionados à aristocracia baiana no espaço doméstico e no
espaço social, pois, conforme observou Ana Lucia Peixoto5, paralelamente à escola a Fundação
realizava periodicamente “cursos de etiqueta”.
4 CATHARINO, Henriqueta Martins. Carta aberta à sociedade baiana. Bahia, 1933. 5 Ana Lucia Uchoa Peixoto foi diretora da Fundação Instituto Feminino da Bahia entre 2002 a 2009 e incluiu no
Plano Diretor de 2005 a retomada dos cursos de etiqueta ministrados até a década de 1980, conforme suas
pesquisas. Entrentanto, durante sua gestão, não aconteceram novos cursos relacionados à etiqueta.
Figuras 2 e 3: Escola Comercial Feminina, Praça da Piedade (C. 1929); e, atual sede da FIFB construída entre
1937 a 1939 (Fonte: arquivo fotográfico da Biblioteca Marieta Alves, FIFB).
O interesse em preservar a ideia de uso dos espaços privados da elite baiana era apenas
uma extensão da exposição dos espaços públicos da casa em reuniões sociais festivas, conforme
prática da família burguesa que, segundo Viana fez-se “dos hábitos domésticos e de
determinados costumes da elite do Segundo Reinado, um elemento importante de sociabilidade
das elites baianas e nacional” (VIANA, 2002: 136). No intento de consolidar o Museu de Arte
Antiga, Henriqueta lançou uma carta aberta à sociedade baiana, em 1934, transcrita por Ana
Lucia Uchoa Peixoto que publicou trechos no catálogo institucional do Museu do Traje e do
Têxtil, em 2003, solicitando doações de,
“peças antigas de vestuário, leques, lenços, pentes, terços, tudo enfim que a moda consagrou em
era distante assim como trabalhos manuais: bordados, flores, pinturas, etc. [...] No sentido de
transmitir às pessoas amigas o ideal do Instituto, deseja conservar tudo quanto de interessante nos
fale do passado”.6 (PEIXOTO, 2003, 11-12).
Inúmeras exposições foram realizadas nos espaços da instituição, motivadas pelo
crescimento da coleção, a partir das incessantes doações que atendiam à solicitação em carta
aberta o que deu origem, em 1945, ao “Museu de Arte Antiga” que veio mais tarde a denominar-
se Museu Henriqueta Catharino em homenagem à idealizadora, após seu falecimento em 1969.
Segundo Alves, o Museu de Arte Antiga se projetou a partir da realização de Congressos e de
exposições comemorativas, dentre as quais, “a celebração do centenário da Princesa Isabel em
1946 e a exposição retrospectiva do Segundo Reinado”, pensada pela escritora e poeta baiana
6 A referida carta aberta à sociedade em 1934 foi assinada pela presidenta do Instituto, Henriqueta Martins
Catharino, pela sua irmã e presidenta de honra, Almerinda Martins Catharino e pelas Conselheiras: Sofia Costa
Pinto Gomes de Oliveira, Marieta Pacífico Pereira, Leocádia de Sá Martins Catharino e Marieta Alves.
Amélia Rodrigues, em 1961. Alves destaca ainda a participação política e social de Henriqueta
na Campanha Nacional da Criança, em 1948, que contou com a presença do Presidente
Marechal Eurico Gaspar Dutra, evidenciando sua estreita relação com as instancias de poderes
políticos e governamentais, além do respaldo da Igreja. (ALVES, 2003: 17-23).
Através de um processo de transformação gradual, as salas de aula cederam espaço ao
Museu que hoje tem um acervo formado por, aproximadamente, vinte mil itens. Dada sua
dimensão e características distintas, em 2002, o acervo foi dividido em três coleções: arte
popular, artes decorativas e traje e têxteis, as quais convencionaram-se tratar de Museu de Arte
Popular, Museu Henriqueta Catharino e Museu do Traje e do Têxtil. Localizadas no mesmo
edifício identificado como Fundação Instituto Feminino da Bahia (FIFB)7, com a mesma equipe
técnica e sob os mesmos recursos orçamentários. O acervo formado a partir do olhar feminino
– doadoras e colecionadora – retrata o cotidiano e a estrutura social do período de transição
entre os séculos XIX e XX, e permite a leitura das experiências sociais da mulher, o que não
significa, em termos de exposição, uma subversão de ordem na narrativa ou questionamento de
possíveis modificações estruturais na sociedade patriarcal.
Realces das coleções e seus discursos
Os destaques do acervo são dados a um retábulo que pertenceu à Antiga Sé Primacial
de São Salvador, demolida em 1933 para passagem dos bondes; a uma saia e cauda da Princesa
Isabel, usadas quando esta assumiu como Princesa Regente do Império em 1871; e, trajes de
“crioulas” remanescentes do período de escravidão do Brasil que foram adquiridos em um leilão
na paróquia da Piedade, em 1946.
O retábulo8 se destaca por ser um exemplar da talha barroca baiana do século XVIII que
fez parte dos doze retábulos laterais, seis de cada lado, da Antiga Sé, demolida em 1933. Após
a demolição, Henriqueta solicitou ao Arcebispo da época, Dom Augusto Álvaro da Silva, a
7 Fundação Instituto Feminino da Bahia é uma instituição privada, sem fins lucrativos, declarada de utilidade
pública por desenvolver atividades de interesse social, sobretudo por manter três coleções abertas ao público.
Mantém-se financeiramente com recursos próprios gerados a partir do patrimônio deixado pela sua fundadora,
Henriqueta Martins Catharino e, por vontade declarada por esta, em testamento, está sob a salvaguarda da
Arquidiocese de Salvador. 8 As informações sobre o retábulo foram obtidas num documento datilografado por Marieta Pacífico Pereira, no
arquivo do museu, em armário de gavetas sem identificação de pastas ou sistematização de qualquer informação.
retirada de algumas peças para fins de salvaguarda do patrimônio demolido. São elas: uma trave
de cedro entalhado, duas colunas salomônicas, um baldaquino incompleto e um balaústre em
jacarandá. Após concessão, as peças foram restauradas por Alfredo Sarkis para compor a
Capela do Divino Espírito Santo, no 1º andar da FIFB.
Figura 4: Capela do Divino Espírito Santo, segundo pavimento da FIFB. Foto: Sérgio Benutti. Fonte: Arquivo
FIFB.
O projeto da Capela é do Reverendo Dom Paulo Lachmayor9, da Ordem dos
Beneditinos, que incluiu ao conjunto da Sé: uma mesa de altar e duas sanefas feitas por Emilio
Antônio Black, artista e marceneiro; dois anjos tocheiros esculpidos por Pedro Ferreira,
responsável também pelo douramento das peças da Antiga Sé; dois painéis em azulejos
portugueses com representação da criação do mundo e o batismo de Jesus e quatorze medalhões
com passos da Via Sacra, feito por Adelino na cidade do Porto, Portugal; um lampadário e uma
pomba do Divino Espírito Santo em prata doados pelo pai de Henriqueta; portas almofadadas
em cancela e janelas com cornijas, projetadas por Manoel Martins das Neves e executadas pela
fábrica de móveis Schwarz & Martins. A capela foi inaugurada em 29 de março 1949 em
comemoração ao quarto centenário da cidade de Salvador.
9 Informações obtidas em documento datilografado por Marieta Pacífico Pereira, que compõe o arquivo do
Museu Henriqueta Catharino.
Da coleção de trajes, o destaque é dado à saia e cauda usadas pela Princesa Isabel quando
investida como Princesa Regente do Império. A saia foi feita em tafetá de seda pura com ramos
de café bordados em fios de ouro e prata. A cauda é em veludo verde, cor da nobreza e das
cerimônias de magistratura real, ladeada por ramos de café e com estrelas e coroas imperiais
distribuídas ao centro, também bordadas em ouro e prata. Especula-se se o mesmo traje tenha
sido utilizado pela Princesa quando, na quarta vez em que assumiu como Princesa Regente,
assinou a Lei Aurea, em 13 de maio de 1888.
Figura 5: Saia e cauda da Princesa Isabel. Museu do Traje e do Têxtil, FIFB. Foto: Sérgio Benuti.
Embora essa afirmativa não tenha se confirmado através dos documentos do Museu, é
possível que esteja correta, pois se sabe que mesmo após a Revolução Francesa ter declarado
que “cada pessoa é livre para vestir-se de acordo com seu sexo como lhe convém”, em Portugal
e no Brasil as leis suntuárias10 permaneceriam em vigor durante todo o Império, de modo que
as “Fardas Grandes” utilizadas em cerimônias formais eram repetidamente usadas em tais
ocasiões. (SILVA, 2011: 42-46).
As peças reais foram doadas pelo neto da Princesa Regente, Dom Pedro de Orleans e
Bragança que em 18 de outubro de 1948 escreveu à Henriqueta em agradecimentos à
homenagem prestada através da exposição comemorativa ao centenário da Princesa. A própria
10 As Leis Suntuárias eram uma espécie de código que impunham limitações ao uso de certas roupas, tecido e
cores e regulava o luxo apenas a algumas pessoas. FONTE: SILVA, Camila Borges da. O Símbolo
Indumentário: distinção e Prestígio no Rio de Janeiro (1808-1821). Dissertação de mestrado. PPGH/UERJ: Rio
de Janeiro, 2009.
Henriqueta tinha se ocupado em registrar o feito e participá-lo ao descendente monárquico,
como o trecho da carta demonstra,
“Somente agora teve o nosso amigo Dr. Durval Silva Lima a oportunidade de vir a Petrópolis e
entregar-me o magnífico e tão expressivo álbum, confeccionado sob sua direção, documentando
as comemorações levadas à efeito no Instituto Feminino da Bahia por ocasião do centenário de
nossa Avó, a princesa Isabel”. (PEIXOTO, 2003, pag. 11-13).
E finaliza a carta com expressivos desejos de visita à Bahia para “poder doar ao
Instituto objetos que pertenceram à Princesa Isabel” o que é concretizado cinco anos depois
da carta, em 5 de março de 1953, ato este que, segundo Alves, fez com que o Instituto crescesse
ao olhos de qualquer brasileiro e o nome de sua fundadora se tornasse conhecido e admirado
internacionalmente. (PEIXOTO, 2003: 11-13).
Figura 6: Henriqueta Catharino recebendo de D. João Pedro de Orleans e Bragança a saia e a cauda da Princesa
Isabel, em 1953. Fonte: arquivo da Biblioteca Marieta Alves, coleção FIFB.
Em relação às demais peças inseridas à coleção de trajes e têxteis, fica evidente que as
doações provinham sempre de famílias mais abastadas da sociedade baiana da época11. É
possível delinear esse perfil das famílias representadas no Museu a partir da proveniência e
características técnicas e materiais das peças que formam o acervo, como a doação de um
vestido em cambraia de linho bordado a fita de prata, em estilo império, datado
11 A lista das famílias doadoras consta de aproximadamente mil nomes, na grande maioria, de mulheres. Essa
lista está publicada nas ultimas páginas do Catálogo do Museu do Traje e do Têxtil, lançado em 2003, mas deve
ter aumentado consideravelmente, já que a média de doação anual é entre cem a duzentas peças, de, pelo menos,
dez famílias diferentes, ao ano.
aproximadamente de 1890, que pertenceu à Ana Constança dos Reis Rodrigues e foi doado por
Clotilde Lopes Rodrigues.
Ana Constança foi esposa de Manuel Lopes Rodrigues, um casal de portugueses
imigrantes nascidos na Freguesia de Santa Marinha da Vila Nova de Gaia, Bispado do Porto. O
único filho do casal foi o pintor e educador João Francisco Lopes Rodrigues, auxiliar de Miguel
Navarro e, junto a este, fundador da Antiga Escola Imperial de Belas Artes da Bahia onde
lecionou desenho e pintura entre os anos de 1877 a 1893. A árvore genealógica da família
Lopes Rodrigues evidencia a estratificação social da Bahia oitocentista, pois, segundo Candau,
é na genealogia familiar que o jogo da memória na formação da identidade faz-se perceber mais
facilmente. A partir da escolha dos objetos que integram as coleções dos museus, percebe-se a
opção que se faz entre preservar a memória dos meios populares ou a memória das classes mais
abastadas, bem como o caráter dado às narrativas que subsidiam a preservação dessas
memórias.
“Apesar das diversas tentativas de fixação dessa memória (registros, árvores genealógicas,
brasões, armas, etc.), a busca identitária movimenta e reorganiza, regularmente, as linhagens mais
bem asseguradas, jogando em permanecia com a genealogia naturalizada (relacionada com o
sangue e o solo) e a genealogia simbolizada (constituída a partir de um relato fundador).”
(CANDAU, 2012: 137).
Uma das obras representativas de João Francisco Lopes Rodrigues é o Retrato do
Conselheiro Jonathas Abbott, que faz parte do acervo do Museu de Arte da Bahia, como quase
toda a coleção formada pelo retratado. Segundo Paulo Knauss, Jonathas Abbott pode ser
considerado o mais antigo colecionador sistemático do Brasil que encontrou no fim do estatuto
colonial da ordem social um terreno fértil para o desenvolvimento da prática do colecionismo
da arte europeia e a formação de um mercado de arte com certa autonomia em relação à “arte
religiosa ou da Igreja instrumentalizada pelo poder do Estado ou das instâncias de representação
da monarquia”. (KNAUSS, 2001).
Ainda na coleção de trajes e têxteis, outros exemplos podem ser identificados a partir
da doação de peças como um traje de passeio em tecido de algodão cru tingido de marrom,
usado com anquinha12 em finais do século XIX, que pertenceu à Sofia Costa Pinto Gomes, irmã
12 Estrutura feita em penas (tipo almofadinha) amarrada à cintura para dar volume à parte traseira da roupa, na
altura das nádegas para dar à silhueta da mulher vista de perfil o formato de S.
mais velha de Carlos Costa Pinto, também colecionador, cuja coleção particular,
predominantemente de ourivesaria, deu origem ao Museu Carlos Costa Pinto. O traje foi doado
em 1958, pela filha da proprietária, Annie Costa Pinto Gomes Wildberger, esposa de Arnold
Wildberger. Da mesma proprietária, foi o vestido de noiva em seda bege de 1892.
Figuras 7 e 8: Traje de Passeio do final do século XIX (Foto: Sérgio Benutti, arquivo digital FIFB).; e, vestido de
noiva de 1892 (Foto: Davi Santana, arquivo pessoal). Ambas pertenceram a Sofia Costa Pinto.
Além das doações das senhoras da aristocracia baiana, as aquisições que formaram a
coleção de trajes contavam ainda com compras em bazares beneficentes como é o caso do
vestido de baile em tafetá de seda brocada, furta-cor, costurado à mão, que pertenceu à Maria
Conceição Pinho, adquirido em 1934 em um bazar do Asilo da Ordem Terceira da Piedade, do
qual a proprietária do vestido foi Terceira e benfeitora.
No mesmo bazar, foi adquirido também um vestido em seda bordada datado de 1895,
doado por Mariana Cerqueira de Magalhães também Terceira da Piedade que deixou em
testamento sua casa à Avenida Araújo Pinho, 19, hoje Escola de Belas Artes da Universidade
Federal da Bahia, para que nela fosse fundado um abrigo para “as irmãs Terceiras que estiverem
na indigência e para aquelas que precisem de um asilo para conforto de seu estado de velhice”.13
Até aqui é possível perceber como aristocracia, colecionadores, artistas, Igreja e Estado
fazem parte da mesma engrenagem que move a sociedade baiana oitocentista formadora das
coleções dos museus. Outra análise possível diz respeito ao “feminismo conservador” praticado
pelas senhoras da aristocracia baiana, e não apenas por Henriqueta, o qual segundo Passos, não
propunha modificações profundas na situação da mulher, pois era desenvolvido com base em
participações assistenciais, promovidas pela fé cristã.
Figuras 9 e 10: Vestido de Baile que pertenceu à Maria Conceição Pinho; e, vestido de passeio que pertenceu à
Mariana Magalhães. Ambos do século XIX. (Foto: Sérgio Benutti, arquivo digital FIFB).
A coleção de trajes de “crioula”14 remanescentes do período de escravidão do Brasil,
composta por vinte peças, dentre as quais doze saias que foram adquiridas por Henriqueta em
13 Documento encontrado no arquivo da FIFB e publicado parcialmente no Catálogo do Museu do Traje e do
Têxtil em 2003. Em 1960 o abrigo foi desapropriado pelo Governo do Estado e o Asilo Mariana Magalhães foi
transferido para a Rua do Salete, depois para a Ladeira dos Barris, 4, onde permanece até os dias atuais. 14 Termo usado pela historiografia do século XIX para se referir às roupas usadas pelas negras, escravas ou não.
O mesmo termo foi adotado na documentação da FIFB referente às peças. Segundo dados documentais, as peças
pertenceram à Florinda Anna do Nascimento, conhecida como “Preta Folô” Desse grupo de peças, quatro trajes
leilão beneficente, também na Igreja da Piedade, em 1946. Quando inseridos à coleção da FIFB
esses trajes figuravam nas exposições de arte popular onde, por duas vezes, a primeira em 1923
e segunda provavelmente em 1933, durante a exposição “Arte e Lavores”15, foram apresentados
em exposições, tendo como manequim uma boneca de pano preta em tamanho natural, sentada
a um tabuleiro de baiana de acarajé16 em representação ao traje de baiana, separadas da coleção
de indumentária feminina que já era expressiva desde a carta aberta solicitando doações.
A categorização anterior desses trajes como arte popular está relacionada à compreensão
de que os objetos pertencentes a grupos adversos ao universo aristocrático tinham uma posição
diferenciada na coleção. Segundo Viana, desde a denominação de Museu de Arte Antiga e
Museu de Arte Popular na década de 1950, “a divisão da coleção e a separação dos museus
parecem denotar uma certa dificuldade de seus organizadores” em reunir as coleções num
mesmo princípio ordenador, logo a opção tem sido “oferecer uma visão hierarquizada delas”,
de modo a constituir os valores dos grupos sociais dominantes no processo de formação da
identidade baiana. (VIANA, 2002: 133).
Os trajes de crioula foram elevados ao patamar de indumentária do século XIX digna
de estudos, pesquisa e exposição, a partir de 2002, com a idealização do Museu do Traje e do
Têxtil, por Ana Lucia Uchoa Peixoto, diretora da FIFB até 2009. Entretanto, outras peças
relacionadas ao universo afro-baiano permanecem como parte da coleção de arte popular, no
subsolo da FIFB, sem visitação pública regular até os dias atuais (2016).
completos de crioula estão expostos no pavilhão da FIFB, 3º andar do prédio, que recebeu o nome de Almerinda
Martins Catharino, irmã de Henriqueta Catharino, e está reservado ao Museu do Traje e do Têxtil. Os trajes estão
acompanhados por joias de crioulas e compõem a galeria do século XIX, que aborda as formas de vestir das
senhoras baianas “Entre o público e o privado” numa narrativa que apresenta as crioulas como símbolo de poder
e status social de suas proprietárias, ao acompanhá-las nas compras ou nas missas dominicais. 15 Essa exposição foi organizada por ocasião do I Congresso Eucarístico Nacional em Salvador, em 1933. 16 Informações obtidas através no caderno número 1, dentre os 18 cadernos que registravam a entrada de peças
no acervo de 1923 até a década de 1980, o que nos conduziu à localização, em 2008, de uma fotografia que
confirmou a cena descrita, na Biblioteca Marieta Alves. No retorno à campo para reprodução da imagem, em
2012, a fotografia não mais foi localizada.
Figura 11: “Trajes de crioula” do final do século XIX, em exposição no Museu do Traje e do Têxtil, FIFB.
(Foto: Marijara Queiroz).
Este é o caso de “uma Boneca de pano, preta com olhos de contas, medindo 32 cm.
Vestida de 3 saias brancas (bico valenciennes com fita verde cana como chale). Vestimenta
pobre e inadequada. Doação: Dra. Margarida Ribeiro Diniz” de número 6087. Nos cadernos
antigos, que funcionavam como inventário de entrada de peças no acervo, pelo menos mais seis
bonecas são identificadas com descrições aproximadas a esta, diferenciando-se apenas pela cor
da roupa e por algumas insígnias agregadas às peças, essas, mal descritas. Na observação das
bonecas, constata-se, sem muita dificuldade, que são representações de Orixás e Caboclos, logo,
representam religiões de matrizes africanas ou afro-brasileiras.
Além dessas peças que não conseguiram, ainda que a partir de narrativas hegemônicas,
como o caso dos trajes de crioula, a inserção na exposição de longa duração, existem outras que
foram deslocadas para a coleção de arte popular, após avaliação mais criteriosa. Por exemplo,
“as peças de números 3906 a [3]911 foram para o Museu de Arte Popular em julho de 1957”
que se refere a “01 rosário de contas brancas e pretas com medalha de N. S. das Graças (usado
pelas pretas). Bahia, 1900”. Identificaram-se outros cinco rosários também utilizados pelas
pretas na lista que seguia abaixo, todos transferidos da coleção do Museu Henriqueta Catharino
para o Museu de Arte Popular, no subsolo do edifício.
Até a 2011 a coleção de arte popular não estava inventariada, nem ao menos arrolada.
Entretanto, sabe-se que em maio de 1956 “o Sr. Hans Geissler tirou fotos do Museu de Arte
Antiga e de Arte Popular”17. Essas fotos foram localizadas e foi a partir delas que se soube
também de uma coleção de trinta objetos religiosos afro-brasileiros, em estado de deterioração
avançada já que as peças são, na maioria, em madeira e outros materiais orgânicos como
cabaças e cocos. Na comparação entre as fotos e os objetos encontrados em um armário do
subsolo constata-se a perda ou extravio de algumas peças não localizadas.
Segundo Maria Paula Adinolfi, que pesquisa esta e outras coleções da mesma natureza
no Brasil, as peças foram resultantes de apreensões policiais a partir das invasões nos Terreiros
de Candomblé nas primeiras décadas do século XX18.
“As invasões incluíam “a prisão de líderes religiosos, a profanação de santuários e apreensão de
objetos religiosos, tais como atabaques e outros instrumentos musicais, ferramentas de orixás,
indumentária religiosa e mesmo objetos que compunham o assentamento das divindades, como
quartinhas, igbás, e até mesmo os próprios otás, pedras que materializam o próprio orixá”.
(ADINOLFI, M. P. 2011)
Não há registro de como essas peças integraram a coleção da FIFB, se através de doação
ou compra, como a maioria das formas de aquisição encontradas no Inventário. Mas, acredita-
se que, como as demais coleções estudadas por Adinolfi, a presença dessas peças no museu era
um atestado da condição “primitiva” dos negros e de suas práticas “fetichistas”, o testemunho
material do atraso, da barbárie e da idolatria praticada pelos negros, “pautadas por uma
ideologia evolucionista, racialista e eugenista, que pressupunha a inferioridade de negros e
indígenas e que desprezava e discriminava tudo que fosse relacionado à cultura destes grupos”.
(ADINOLFI. 2011).
17 Esta informação foi encontrada nos cadernos antigos da FIFB que serviam como inventário para registro de
entrada de peças, mas também registravam a movimentação dessas peças e outras observações consideradas
relevantes para histórico do objeto. N maioria das vezes essas observações interrompem o numero de ordem do
que poderia ser considerado inventário e causa certa desordem nas informações. 18 Essas práticas eram apoiadas pelo artigo 157 do Código Penal de 1890, que criminalizava as práticas religiosas
afro-brasileiras. Estas eram consideradas prática de charlatanismo e, portanto, condenadas. Esta disposição
jurídica estava calcada no pensamento racista que orientava as práticas do Estado e que criminalizava diversas
práticas culturais afro-brasileiras: candomblé, batuques, sambas, capoeira. (ADINOLFI, M.P.F. 2011.)
Segundo Viana, a presença dessas peças no museu “vinha demonstrar a subjugação
desses grupos sociais, considerados supersticiosos e avessos à ordem e o progresso trazidos
pelos ideais da República”. (VIANA, 2005: 39).
Figuras 12, 13, 14 e 15: Insígnia de Oxumaré; Xequerê (instrumento musical); Oxè de Xangô; e, Abebê de Oxum.
(Fotos: Maria Paula Fernandes Adinolfi. Acervo FIFB).
A coleção de arte popular, de grande representatividade da cultura material, foi formada
pela própria Henriqueta como um recorte cultural de outros grupos sociais e étnicos. Fazem
parte desse universo outras peças como cerâmicas, cestarias, esculturas em madeira, bonecas
de pano, conchas, rochas e minerais, provenientes de várias partes Brasil e do mundo,
predominando o Nordeste brasileiro e o Recôncavo Baiano.
O pensamento cientificista que motivou os colecionadores entre os séculos XVII e XIX
formaram coleções que, classificadas e catalogadas, eram instrumentos de erudição e
consolidação de instrumentos enciclopédicos. Ou seja, quanto maior a diversidade de objetos,
maior o conhecimento (e domínio) sobre a cultura do outro. De outro modo, no Brasil, entre
1940 a 1960, havia uma conjuntura favorável para criação de museus de arte popular devido à
“grande ascensão do movimento folclorista no país” no ímpeto de formação da identidade
nacional, como observado anteriormente. Assim o museu de Arte popular da FIFB não foi um
fato isolado no nordeste, no período. (VIANA, 2005: 137).
A coleção de artes decorativas, que hoje compõe o que se convencionou tratar de Museu
Henriqueta Catharino, é formada por mobiliário, cristais, porcelanas, opalinas, prataria,
pinturas, gravuras e, sobretudo, por uma diversidade de peças artesanais denominadas, segundo
Machado, “artes menores”19. Essas são elaboradas com penas, conchas, tecido, papel, folhas
secas e cabelos colocados em redomas ou molduras ovais com vidros abaulados20. A partir
dessa classificação, a coleção de quadros de cabelos retirados de defuntos ilustres para a
ornamentação da peça é inserida nas artes decorativas do Museu Henriqueta Catharino, pois
embora avaliados como “trabalhos artesanais”, considerados de menor valor artístico à época,
simbolizam a memória dos mortos da mesma aristocracia tão bem representada nos amplos
salões e salas do Museu.
No cerne da discussão, os quadros de cabelos, sobretudo os que apresentam
monogramas como principais motivos ornamentais estariam simbolicamente relacionados à
submissão da mulher em relação ao homem? O monograma, conforme interpretado, é sempre
composto pelas iniciais do nome do homem e está associado à relação de poder que este exercia
sobre a mulher.
De acordo com os nossos conhecimentos sobre o acervo da FIFB21, em sua totalidade,
podemos considerar que os monogramas são encontrados em quase todas as peças que
compõem os enxovais de casamentos, sejam nas fronhas, lençóis, toalhas e roupas íntimas,
predominantemente brancos em representação à pureza da noiva, ou nas baixelas em porcelana
e objetos decorativos que compunham os aparelhos e salas de jantar do século XIX até as
primeiras décadas do século XX.
Na coleção formada por 40 quadros de cabelos, verificou-se que algumas peças
continham cabelos retirados da esposa e dos filhos para homenagear o patriarca falecido,
externando uma renúncia da família órfã à vida social. Por outro lado, verificou-se também que
as peças produzidas na Bahia, tanto em Salvador como em Santo Amaro da Purificação,
19 Na historiografia da arte do século XIX/XX convencionou-se tratar como “artes menores” a produção
artesanal eclética que invadiu os Salões do Segundo Reinado Brasileiro, numa referencia clara aos modos
vitorianos, copiado da Rainha Vitória (1837-1901) que exerciam forte influência sobre o reinado de Luís XVI da
França e sobre 1/3 do mundo ocidental ou ocidentalizado. Segundo definição de Argan, eram classificados como
“artes maiores” a arquitetura, escultura e a pintura que exigiam um momento indutivo ou intuitivo na produção,
enquanto as “artes menores” referiam-se a todos os gêneros de artesanato, que exigia apenas um momento
executivo, mecânico. In. ARGAN, Giulio Carlo. Guia da História da Arte. Europa: Lisboa, 1992. 20 Convexos. In. MAGALHÃES, Paulo A. C. 21 A autora foi coordenadora técnica dos museus da Fundação Instituto Feminino da Bahia de 2005 a 2010.
contaram de fato com as mãos femininas na feitura, bem como a maioria das peças produzidas
no Rio de Janeiro.
Figura 16 e 17: Quadros de cabelos da coleção da FIFB, o segundo com monograma “A.S”, 1885, 10,0 x 8,2cm,
doação de Henriqueta Martins Catharino. Fotos: Péricles Mendes.
Segundo o texto sem autoria, em exposição junto aos quadros de cabelos até 2005 na
FIFB, “a escumilha é um atestado eloquente da perícia dos dedos femininos e da veneração
tributada aos mortos no final do século XIX, mimos que falam de ternura e saudade”. Poder-
se-ia afirmar que à mulher cabia o manuseio e produção das “artes menores”22? Segundo Zanini,
até meados do século XIX, as “artes menores” se referiam à produção artesanal e às artes
decorativas, para a qual bastava possuir habilidades manuais, enquanto as “artes maiores”
estavam relacionadas à pintura, escultura e arquitetura que exigiam pensamento intelectual para
o processo criativo.
A discussão referente a “artesanato” versos “arte” foi travada por Jancileide Santos
(2013: 30-36) que nos esclarece que “o valor que é dado aos objetos artesanais está relacionado
com a organização social do lugar em que ele é produzido [...] de maneira que a produção de
arte e artesanato vai ser definida como bela, feia, utilitária ou ruim pela imposição de grupos
22 ZANINI, Walter. História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983. 2 v., Il.
sociais na luta pela dominação cultural”. Poder-se-ia aqui considerar também uma imposição
pela dominação de gênero? Por ora importa-nos considerar a relevância da existência de uma
coleção inteira, como é a da FIFB, formada a partir do olhar feminino, em uma sociedade onde
prevaleciam os símbolos de poder masculino.
A coleção de artes decorativas certamente é aquela considerada nobre pela FIFB, desde
a inauguração do museu até gestões museológicas atuais, ocupando a maior parte dos halls,
salões e salas do térreo e 1º andar, já que foi à esta coleção, e não à de arte popular ou trajes e
têxteis, que coube manter a homenagem em memória da fundadora. Contudo, percebe-se uma
hierarquização de acervo dentro dela mesma. As “artes menores”, passada a era vitoriana, são
peças de menor visibilidade do que o mobiliário em jacarandá, os cristais bacarrat e as
porcelanas francesas ou inglesas.
A contextualização das salas com esse acervo em exposição remonta a um solar de
família baiana do período de transição entre os séculos XIX e XX, apesar da FIFB ter sido
escola para moças e nunca residência de família baiana. Segundo Suely Cerávolo (2011), “no
fluxo da modernização do século XIX e do início do XX, a elite baiana empenhou-se em criar
instituições representativas da cultura” e, com essa narrativa, aproxima-se do “culto à tradição”,
“no sentido de enaltecimento de pessoas e eventos exemplares no contexto de uma certa ideia
de imortalidade conferida a eles pelos museus, muitas vezes, através das coleções doadas”.
O enaltecimento “suprapessoal”, segundo Rosane Pasione (2011), depende sempre de
uma escolha de insistir no indivíduo que residiu ou dedicou parte de sua vida à casa, em
detrimento da construção de narrativas voltadas para temas sociais ou culturais de determinados
períodos históricos ou de reflexões sobre categorias profissionais ou identidades locais.
Segundo as categorias estabelecidas para tipologização dos Museus Casas23, o Museu
Henriqueta Catharino poderia se enquadrar como “casas de colecionadores”, ou “casas
dedicadas a pessoas ilustres”, ou “casas testemunhas de histórias familiares”, ou “casas
dedicadas a história de determinados grupos sociais”. Uma diversidade de leituras possíveis.
23 O Comitê Internacional de Museus - Cenas Históricas foi criado em São Petersburgo em 1999 para o projeto
de classificação das tipologias de museus-casas. A proposta surgiu antes, em 1997, na Conferência Internacional
de Gênova chamada “Morar na História”. (PASIONE, R. 2011).
O diferencial da formação da coleção da FIFB pode estar na peculiaridade dos objetos
eleitos para o acervo, a maioria deles através de doações feitas pelas senhoras baianas,
estimuladas por Henriqueta para atuar socialmente, enquanto os museus e espaços dedicados à
memória criados na Bahia e também em outros locais no Brasil, no mesmo período, enfocavam
os grandes feitos históricos representados por bandeiras, troféus, numismática, moedas, armas,
medalhas, fardões, condecorações, títulos e comendas, como é o caso do Museu do Estado da
Bahia. (CERÁVOLO, 2011).
Esses objetos representativos de fatos históricos, na maioria das vezes evidenciando
guerras e política, estão fortemente relacionados ao universo masculino, como o próprio ato de
colecionar que, neste caso, tem sentido de acúmulo de bens do que de cuidar, preservar. Nesse
sentido, talvez a FIFB tenha sido vanguardista no que se refere ao olhar feminino sobre a cultura
material a ser preservada pelos museus e sobre a formação de uma coleção, o que não significa
que a leitura sobre essa cultura material proponha uma subversão de ordem ou modificações
estruturais na sociedade baiana. Preferimos manter a noção de que é um museu feito por
mulheres, para mulheres e de mulheres, uma vez que o universo feminino é colocado como
questão central de suas ações, da Escola ao Museu.
Considerações finais
A discussão sobre gênero permeia esse trabalho, sobretudo pela procedência da coleção
inserida no acervo da FIFB que, na sua trajetória histórica, está associado à promoção da mulher
baiana através da educação formal e formação profissional e espiritual, na perspectiva de
emancipação feminina. Ademais, a especificidade do olhar feminino sobre a sociedade que
elegeu os itens a serem preservados na coleção da FIFB objetivava a formação da identidade
baiana que neste caso inclui a possibilidade de leitura da experiência social da mulher naquela
(e como resquícios nesta) sociedade.
Cabe ainda um aprofundamento sobre a figura de Henriqueta Martins Catharino e o seu
papel no processo de emancipação feminina, uma vez que suas formas de atuação a favor da
mulher se davam por vias adversas, já que, como observou Viana, cabia à Escola, através do
Museu e de suas exposições, proporcionar às alunas experiências para a “formação como
mulher, esposa e cristã”, dentre as quais, aprender “maneiras apropriadas ao seu comportamento
no espaço público e privado”. (VIANA, 2002: 136). Essas diretrizes se configuram de fato
como feminismo, à época?
Vale lembrar que o movimento de emancipação da mulher já estava em curso, sobretudo
na Europa, desde finais do século XIX, acentuando-se significativamente durante a Primeira
Guerra Mundial, quando a mulher passa a assumir posições no mercado de trabalho em
substituição aos homens. Dessa forma, a escola para mulheres não seria uma maneira de aderir
a um processo inevitável de forma mais contida ou mantenedora da estruturação social que
impunha hábitos domésticos e cristãos como parte da boa conduta feminina? Ainda segundo
Viana, o Museu de Arte Antiga, “procurava destacar o espaço privado das classes superiores: o
espaço do lazer, dos passatempos, das festas e das devoções religiosas”, de modo a representar
o “antigo” e não o “presente” o que fica evidente nas palavras da própria Henriqueta em sua
carta aberta que invocava a conservação de objetos relacionados ao universo feminino do
passado. (VIANA, 2002: 134).
Desde os princípios de criação da FIFB, Henriqueta Catharino tinha em mente a criação
de um museu no espaço da escola como uma complementação educacional na formação das
alunas. Embora o museu tenha se expandido e tomado todo o edifício que abriga a FIFB, a
perspectiva educacional sempre esteve presente nas missões institucionais caracterizadas ao
longo da sua existência. Em 2006, Peixoto24 redefiniu sinteticamente a missão institucional para
“educar e instruir sobre todos os aspectos”, inclusive os artísticos, através do museu, e os
espirituais, através do Centro de Fé e Cultura, mantido até os dias atuais como pilar religioso
da Fundação, que realiza cursos livres de filosofia e artes.
24 A informação foi adquirida através do Plano Diretor da FIFB de 2009, elaborado por Ana Lucia Uchoa
Peixoto, diretora da FIFB no período em tela. O Plano Diretor da FIFB é revisado de quatro em quatro anos e é
submetido à aprovação do Conselho Curador formado por sete membros da sociedade civil e presidido pelo
Arcebispo de Salvador.
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