De Imaginativa - Raimundo Lúlio

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INSTITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIA “RAIMUNDO LÚLIO” (RAMON LLULL) Departamento de E-books São Paulo - 2005

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De Imaginativa

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  • INSTITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA E CINCIA

    RAIMUNDO LLIO (RAMON LLULL) Departamento de E-books

    So Paulo - 2005

  • DA IMAGINATIVA.

    RAIMUNDO LLIO, VIDA E OBRAS, E

    TENTATIVA DE ANLISE E LEITURA

    Dennys Robson Girardi

    FACULDADE DE FILOSOFIA SO BOAVENTURA DISCIPLINA: HISTRIA DA FILOSOFIA MEDIEVAL

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado disciplina de

    Histria da Filosofia Medieval, do Curso de Filosofia da

    Faculdade de Filosofia So Boaventura.

    Curitiba Prof.: Jaime Spengler

  • Dedico, aos mestres de minha

    existncia...

    Ao mestre na f, meu av, Ansenor

    Valentin Girardi, que ainda vive em

    minha memria.

  • Ao mestre na vocao, Frei Valdir Laurentino, simples e sbio.

    AOS CONFRADES DE TURMA, PELA ACOLHIDA, AFETO E FRATERNIDADE.

    Os espritos puros so como centelhas, pelas quais a eterna luz comunica-se

    criao. Grande a distncia e distante o caminho para os seres espirituais, que

    esto imersos em um invlucro material e jorram como uma fonte de uma

    profundidade escondida. Porm, justamente essa obscuridade e esse carter de

    fonte que lhes concede algo de inescrutibilidade do ser divino. Em seu

    destacamento parecem fundados mais fortemente sobre si prprios do que os

    espritos puros sustentados totalmente por Deus. Finalmente, justamente por sua

    ligao material, eles tm uma ligao peculiarmente prxima com Aquele que

    desceu para as profundezas do ser terreno. Nosso esforo deve ser o de descobrir

    algo deste contexto misterioso.

    (Edith Stein)

  • SUMRIO INTRODUO..........................................................................................................11 1 VIDA E OBRAS DE RAIMUNDO LLIO ..............................................................12

    1.1 DADOS BIOGRFICOS .................................................................................12

    1.2 OBRAS E SUAS EDIES ............................................................................18

    1.2.1 Estado atual da investigao das obras lulianas......................................19

    1.2.1.1 ROL (Raimundi Lulli Opera Latina)....................................................20

    1.2.1.2 NEORL (Nova Edici de les Obres de Ramon Llull)..........................23

    1.2.2 Algo sobre o Lulismo no Brasil .................................................................25

    2 O LIVRO: DA LAMENTAO DA FILOSOFIA....................................................27 2.1 O LIVRO DA LAMENTAO DA FILOSOFIA ................................................27

    2.2 MATRIA E FORMA EM LLIO.....................................................................29

    2.2.1 A doutrina do hilemorfismo e sua estruturao na ordenao geral do

    universo..............................................................................................................30

    2.2.2 Na tentativa de compreender alguns termos............................................37

    2.2.2.1 Substncias compostas e substncias simples: ................................37

    2.2.2.2 Excurso: matria e forma como e .............................38

    2.3 COMENTRIO DO TEXTO DE RAIMUNDO LLIO: DA FORMA ...............40

    3 COMENTRIO DE TEXTO: DA IMAGINATIVA ...............................................52 CONCLUSO ...........................................................................................................63 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.........................................................................64 FONTES ELETRNICAS .........................................................................................67 APNDICE I - CATLOGO DAS OBRAS EDITADAS PELO ROL......................68 APNDICE II - A RVORE PORFIRIANA..............................................................74

  • 11

    INTRODUO

    O presente trabalho de concluso do curso de Filosofia, da Faculdade de

    Filosofia So Boaventura, tem por ttulo Da Imaginativa. Da Imaginativa um

    pequeno captulo dentro de uma das obras antiaverrostas de Raimundo Llio,

    denominada O livro da Lamentao da Filosofia.

    O pensamento de Llio, espalhado em inumerveis e multifrias escritas,

    profundas e complexas, simples, no num sentido unidimensional, simplrio, de

    fcil compreenso, mas concentrado e uno, e repetido em mil e mil variantes e

    modalidades, criando estruturaes cada vez mais complexas, bem concentradas.

    Assim, por ser simples nesse sentido, para a expor o pensamento de Llio, exige-se

    muito trabalho, competncia e saber.

    Este pequeno trabalho de concluso do curso de Filosofia no pode nem

    deseja de alguma forma apresentar o prprio pensamento de Llio, por ser iniciante

    e de pouco saber. Espera apenas ser como que o incio de um longo estudo a que

    gostaramos de nos dedicar, na medida da possibilidade a ns concedida. Assim, o

    objetivo principal deste trabalho , como expressamos no seu subttulo, apresentar a

    vida e a obra de Raimundo Llio, e fazer uma tentativa bem breve e, talvez, pouco

    abalizada de entender, a nosso modo, o pequeno captulo do livro Da Lamentao

    da Filosofia.

  • 12

    1 VIDA E OBRAS DE RAIMUNDO LLIO

    De modo sucinto e esquemtico, vamos expor a cronologia da vida de

    Raimundo Llio. Atravs desta pequena cronologia iremos assinalar alguns dados

    importantes acerca da vida deste homem plurivalente. Isso para que conheamos,

    ao menos de relance, quem foi, nas margens da histria, Raimundo Llio.

    1.1 DADOS BIOGRFICOS

    Neste homem, vemos brilhar uma fora, uma luz, com uma intensidade

    extraordinria, que brota de uma deciso existencial. Assim, bem centrado, como

    que afixado em sua existncia, Llio age com uma frenesi incomparvel. Este modo

    de entregar-se existncia, que chamamos de converso, impulsionou-o para sua

    plurivalncia, seu dinamismo, sua incansabilidade. Sua disposio existencial,

    acabou irrompendo numa grande busca pela converso dos infiis, pela divulgao

    da f e pela coroa do martrio. Dessarte, ele se tornou no somente um cristo

    autntico, mas um cientista inigualvel, um pensador singular e um telogo

    surpreendente.

    1232/33 Nasce Raimundo Llio, na ilha de Maiorca, Reino de Arago, hoje Catalunha. Filho de Ramn Amat Llio e Isabel dErill. Os pais eram de

    linhagem nobre e residiam na regio continental. O pai tinha apoiado

    Jaime I na reconquista da Ilha de Maiorca. Quando a ilha foi

    reconquistada, a famlia de Amat Llio renunciou s suas propriedades no

    continente e, juntamente com a famlia real, partiu para a ilha de Maiorca.

    1246/47 Adolescncia de Llio. Logo aos 14 anos atua como pajem do Prncipe Jaime, filho de Jaime I. Mais tarde, Llio torna-se senescal do mesmo

    prncipe.

    1254/55 Casa-se com Blanca Picany. Desta unio nascem 2 filhos: Domingos e Madalena.

  • 13

    1263 Aps uma grande crise espiritual, Llio converte-se1. Neste ano, parte em peregrinaes: ao Santurio de Rocamador e a So

    Tiago de Compostela. Decide dedicar sua vida converso dos infiis e a

    divulgao da f catlica, aspirando a coroa do martrio. Neste ano ele

    toma o habito de penitente2.

    1264-74 Compra um escravo rabe, para ensinar-lhe a lngua dos mouros3. Comea a estudar a filosofia rabe e a filosofia judaica, fazendo uma

    sntese com a escolstica da poca4. Neste trabalho, permaneceu por 10

    anos. Iniciando, ento, sua produo literria. (O Livro do gentio e dos trs

    sbios, O Livro da Contemplao)5

    1274 Retira-se para o monte Randa, onde, por iluminao divina, concebe um mtodo de unificao de todo o conhecimento que chamar de Arte.

    Desse episdio, vem-lhe o ttulo de Doutor Iluminado. (Ars Magna, Ars

    compediosa inveniendi veritatem)6

    Em fins de 1274 , A mando de Jaime I, as obras de Llio so

    investigadas por um telogo Franciscano que as aprova. Llio passa a ser

    conhecido como mestre. Como prmio, o rei concede-lhe um colgio em

    Miramar, onde missionrios poderiam dedicar-se ao estudo das lnguas

    dos infiis e da Arte.

    1 Llio diz ter tido cinco vises do crucificado. A partir de ento percebeu que Cristo no desejava outra coisa seno que deixasse o sculo e se doasse a sua servido (Cf. LLULL, Ramn. Vida Coetnea. Trad. Ricardo Costa. Disponvel em: . Acesso em: 20.10.2002. 4). 2Tudo indica que este habito seja o da Ordem Terceira de So Francisco, pois como o prprio Llio relata, sua deciso partiu de ouvir um bispo que, na festa de So Francisco, falava das virtudes do santo (cf. Vida Coetnia 9-11). 3 Na Vida Coetnea, Llio fala das dificuldades que encontrou na convivncia com este escravo. O fato do escravo ser muulmano e por algumas vezes profanar o nome de Jesus, fez com que, certa vez, Llio se atirasse com grande ira sobre ele e lhe ferisse o corpo. Noutra ocasio, o escravo, movido por vingana, empunhou uma faca e atirou-se contra Raimundo que, depois de muita luta, livrou-se do mouro. Assim, o escravo foi encarcerado e no cativeiro suicidou-se (cf. Vida Coetnia 11-13). 4A inteno primeira de Llio era dirigir-se Paris, para fazer seus estudos na Universidade. Porm, fora desencorajado por seus amigos e familiares principalmente por Ramon de Penyaforte que insistiram para que permanecesse em Maiorca (cf. Vida Coetnia 10). 5 Esto indicadas, entre parnteses, as obras que Raimundo escreveu nos determinados perodos. 6Depois da experincia do Randa, Llio retirou-se, por algum tempo, para o mosteiro cisterciense de La Real, no intuito de preparar-se intelectualmente.

  • 14

    1275 Designa um procurador para cuidar de seus bens. Passa a dedicar-se ao Colgio de Miramar, onde sob sua direo 13 frades franciscanos7

    aprendiam a Arte e as lnguas dos infiis8. (Arte demonstrativa, O Livro do

    Amigo e do Amado)

    1276 Com o consentimento da esposa, para realizar seus projetos, deixa definitivamente a vida matrimonial.

    1280-83 Parte para uma viagem longa, visitando boa parte do mundo conhecido. Percorre: Roma, Alemanha, o norte da Europa, o Oriente, vai s ndias e

    ao Egito. Retornando, ento Espanha.

    1283 Escreve parte de sua novela autobiogrfica, Blanquerna.(Livro da Ordem da Cavalaria)

    1285 Participa do Captulo geral dos dominicanos, em Bolonha, de onde parte para Paris.

    A sede da corte de Jaime I transferida de Maiorca para Montpellier9.

    1287 Vai a Roma, a fim de pedir ao Papa Honrio IV (1285-1287) a construo de novos colgios para o estudo das lnguas; porm, ao chegar a Roma, o

    Papa j havia falecido10. Retorna a Paris, onde autorizado a lecionar sua

    Arte na Universidade. (O livro das Maravilhas, O Livro das Bestas)

    7Esta escola foi instituda com a ajuda do ministro provincial, dos frades menores, da provncia de Arago, e aprovada pelo papa Joo XXI (1276-1277) com a bula Laudanda tuorum, de 17 de outubro de 1276. Os treze frades que estudavam no colgio de Miramar pertenciam Provncia de Arago. 8 Llio permaneceu poucos anos na direo do colgio de Miramar. Assim, quando decidiu partir para suas viagens, colocou o colgio nas mos dos franciscanos, pois, diferente dos pregadores, estes no tinham, at ento, nenhum studium linguarum. O colgio permaneceu aberto por 17 anos. Questes internas da Ordem dos Frades Menores levaram ao cerramento do colgio. 9 Desde a conquista da Ilha at este ano, a corte se mantinha na Ilha de Maiorca, por motivos polticos o rei e a nobreza tiveram de migrar para o continente, reconstituindo a corte em Montpellier. 10 De acordo com Salvador Galms, numa fonte mais antiga, In: LLULL, Ramn. Obras Literarias. Madrid: La editorial catolica S.A. 1948. Seo VIII. p.17-18, o papa no s estava vivo, como ordenou ao chanceler da Universidade de Paris que provesse o necessrio aos que ali se matriculassem para aprender o rabe e as lnguas orientais. Segundo Galms, a data deste encontro teria sido em janeiro de 1286. Contudo, Llio, na Vida Coetnia, diz: (...) e como fosse at a corte, encontrou o santo pai que nesse momento tinha acabado de morrer, pela qual coisa, deixada a corte, tornou a via de Paris (...) (cf. Vida Coetnia 18).

  • 15

    1289 Suas idias no foram bem aceitas pelos universitrios, assim sai de Paris. Percebe a dificuldade de lecionar a sua Arte e tenta simplific-la.

    Ruma at o vale do Rieti, onde participa do Captulo geral dos Frades

    Menores. Ento, vai para Montpellier, onde retoma seus trabalhos. (Arte

    inventiva, Arte Amativa, O Livro de Santa Maria)

    1290 Encontra-se com o geral da Ordem dos Frades Menores11, que recomenda Llio a todos os conventos de Roma e da Plia, autorizando-o a ensinar

    sua Arte. (A rvore do desejo da Filosofia12)

    Morre Blanca Picany.

    1291 Dirige-se ao Papa Nicolau IV (1288-1292), com um plano de conquista da Terra Santa, mas o Papa no lhe d ateno.

    1292 Parte para Gnova, no intuito de embarcar para terras sarracenas e pregar aos infiis. Porm, temendo a morte, em meio a uma grande crise

    espiritual, permanece em Gnova ensinando sua Arte pela regio13.

    1293 Refeito de sua crise, parte para a Tunsia. L aprisionado14 e condenado pena capital, por defender publicamente a f catlica. Mas, por

    interveno de um grande mouro15, a pena comutada pelo rei16. Llio

    11 Raimundo Guaufredi (1289-1295). 12 Obra escrita e dedicada em honra a sua esposa, Blanca Picany. 13Na cidade de Gnova, em meio a sua crise, que se tratava do medo de ser morto pelos sarracenos, dirige-se ao convento dos Dominicanos para rezar. Em orao ouve uma voz, acompanhada da viso de uma estrela, que o convidava a entrar para a Ordem dos Pregadores. A locuo se manifestou nestes termos: Nesta ordem deves salvar-te. Porm, Llio percebeu que seu pensamento fora melhor aceito pelos Franciscanos. Convicto de que por sua arte muitos poderiam se salvar, ao passo que se entrasse na Ordem dos Pregadores somente ele seria salvo, decidiu que mais valia ele perder-se do que suas obras. Assim, decidiu entrar na Ordem primeira dos Franciscanos, imediatamente enviou seu pedido ao superior dos Frades Menores. Este frade promete-lhe o habito quando sua morte estivesse mais prxima (cf. Vida Coetnia 21-24). 14 Llio preso na Bugia, territrio pertencente Tunsia. 15 Interessante a argumentao lgica que o grande mouro (como est na Vida Coetnia) utilizou ao livrar Llio da pena capital. Disse o mouro, dirigindo-se ao rei: No convm a um to alto prncipe e rei como tu s, dar tal juzo e sentena a algum que, por exaltar a sua lei, se metesse neste perigo: porque seguir-se-ia que se um dos nossos andasse entre os cristos para convert-los nossa lei, assim o matariam, e, por conseqncia, no se encontrariam mouros que, daqui em diante, ousassem andar para converter infiis nossa lei; isso seria contra nossa lei e em derrogao daquela. (cf. Vida Coetnia 28). 16 A partir deste episdio, houve uma maior harmonia entre Maiorca e Tunsia. Llio passa a tratar o sulto Ibn al-Lihyani, rei que revogou sua sentena de morte, com muita cordialidade, ao ponto de lhe dedicar duas de suas obras.

  • 16

    expulso do pais. Ento, refugiado em um navio genovs, desembarca em

    Npoles.

    1294 Em Npoles, Llio ensina sua Arte. Nesta cidade, residia o Papa Celestino V, a quem, dirige seus pedidos. Celestino V (1294) abdica sem dar

    ouvidos a Raimundo. (Petio a Celestino V, Tbua Geral nova verso

    da Arte)

    Eleio de Bonifcio VIII.

    1295-96 Llio vai a Roma ter com Bonifcio VIII (1294-1303), a quem dirige seus pedidos, mas tambm no ouvido. Decepcionado com a atitude do Papa,

    escreve o Desconsolo.

    Em fins de 1296, vai a Gnova, onde compila suas obras.

    1297-99 Segunda estadia em Paris, onde se insere no acirrado embate com os pensadores averrostas17. (A rvore da filosofia do Amor, A contemplao

    de Raimundo, Declaratio Raymundi per modum dialogi)

    Passa por Barcelona, onde dedica duas obras (Ditos de Raimundo e O

    livro da Orao) a Jaime II. A corte aragonesa emite um documento a

    favor de Llio, que permite a ele divulgar sua Arte naquele pas.

    1300-01 Longa estadia de Llio em sua ilha natal. Com o documento real em mos, ensina sua Arte nas mesquitas e sinagogas da regio.

    1302 Llio vai a Chipre, com a idia de atrair o rei Henrique II18, que havia tomado a Terra Santa dos sarracenos, para seus projetos, porm acaba

    fracassando.

    Llio contra uma grave doena19 e refugia-se na casa do Gro Mestre dos

    Templrios, Jaques du Bourgogne de Molay (1293-1314), em Famagusta

    (Chipre).

    Visita Pequena Armnia.

    Possvel passagem por Jerusalm, retorno a Gnova. (Livro da Natureza,

    Mil Provrbios)

    17 Seu principal adversrio teria sido Joo de Jandun (128?1328), que lecionava na Universidade de Paris. 18 Quando chegou a Chipre, Llio percebeu que os muulmanos j estavam reagindo, lutando para reconquistar a Terra Santa. Ento, aproveitando a ocasio, pediu ao rei que convocasse os hereges que ali viviam para as pregaes de Llio, mas o rei lhe deu pouca ateno (Cf. Vida Coetnia 34). 19 Esta doena, segundo Llio, teria sido uma tentativa, de seus auxiliares (um capelo e um rapaz), de dar cabo a sua vida, por meio de envenenamento (Cf. Vita Coetnia 35).

  • 17

    1303 Em 14 de novembro, assiste coroao do novo Papa, Clemente V (1305-1314), em Lyon, a quem, em vo dirige suas peties.

    Passa a receber uma penso do Rei Jaime II.

    1303-05 Llio alterna viagens entre Maiorca e Gnova, entre Gnova e Montpellier. 1306 Visita a Paris, encontro com Duns Escoto. 1306-07 Permanece em Maiorca. 1307 Segunda misso de Llio, desta vez vai Arglia, levando seus livros, no

    intuito de converter os Sarracenos. Mais uma vez preso e expulso do

    pas. Na viagem de volta, seu navio naufraga prximo a Pisa. Llio salva-

    se, mas perde suas obras que, graas as cpias deixadas por onde ele

    passava, se conservaram.

    Fixa residncia em Pisa.

    Apoiado pela cidade de Pisa, pelos Genoveses e por Jaime II, dirige ao

    Papa Clemente V um novo projeto para uma cruzada, no intuito de tomar a

    Terra Santa. No que no ouvido. (O Livro da aquisio da Terra Santa20)

    1309-11 Quarta estadia de Llio em Paris. Luta acirrada contra o averrosmo. Escreve inmeras obras polmicas, muitas delas dirigidas ao rei da

    Frana, com temas antiverrostas. (O livro da lamentao da Filosofia, O

    livro do Natal do Menino Jesus)

    1311 Com 80 anos, assiste ao Conclio de Vienne. Neste conclio ele ouvido pelo Papa e pelos Cardeais; parte de seus pedidos so atendidos. O

    Conclio promove uma cruzada Terra Santa21, ordena a criao de

    ctedras de grego, rabe, hebraico e caldeu nas Universidades de Paris,

    Bolonha, Oxford e Salamanca.

    Llio retorna a Mairoca, permanece alguns meses, detido por uma

    enfermidade. (Livro da fala dos anjos, Arte das pregaes)

    1312 Fixa residncia em Montpellier.

    1313 Embarca para a Siclia, de l ruma para Messina. (Compendiosa contemplao, Livro da consolao do eremita)

    20 Defende a idia de que antes de tentar chegar a Terra Santa deveria conquistar Constantinopla e juntos, Ocidente e Oriente, tentar conquistar a Terra Santa. 21 Aos cuidados dos Cavaleiros Sanjoanistas.

  • 18

    1314 Retorna a sua ilha natal. Embarca mais uma vez para a Tunsia. Dirige-se a Bugia. (Arte do conselho, De Deus e o mundo)

    1315 Publica seu ltimo opsculo: Liber de maiori fine intellectus, amoris et honoris

    Na cidade de Bugia, apedrejado pela multido alvoroada, deixando-o

    quase morto. Genoveses que rumavam para a Europa, recolheram-no.

    1316 Por volta de janeiro, acaba morrendo, aos 84 anos. Segundo uma lenda, morreu na viagem de volta, prximo s costas de sua ilha natal, Maiorca.

    Foi sepultado em um convento dos Frades Menores, em Palma de

    Maiorca, onde at hoje repousam seus restos mortais.22

    1.2 OBRAS E SUAS EDIES

    A produo literria de Llio muito vasta, o catlogo23 mais recente, de

    Anthony Bonner, conta 265 obras, sendo 244 latinas.

    Em 1325, Le Mysier elaborou a principal sntese do pensamento de Llio,

    ele conseguiu recolher boa parte dos volumes latinos e catales que Llio deixara

    dispersos. O lulismo se estendeu at o sculo XVII, apesar da violenta perseguio

    do inquisidor Nicolau de Eymerich, no sculo XIV e dos receios que deixou nas

    esferas eclesisticas. No Renascimento, tomou dimenses impressionantes, a ponto

    de, nos fins da Idade Mdia, j encontrarmos bibliotecas lulianas em Paris,

    Gnova, Maiorca, Barcelona e Roma. Muitas obras de Llio foram encontradas na

    Alemanha, graas a Nicolau de Cusa, que admirava muito a ontologia funcionalista

    implcita no seu pensamento.

    22 Estes dados biogrficos foram tirados das seguintes fontes: GALMS, Salvador. Introduccion biografica. In: LLULL, Ramn. Obras Literarias. Madrid: La editorial catolica S.A. 1948. Seo VIII. p. 3-39. JAULENT, Esteve. Raimundo Llio: um nico pensamento e um nico amor. Disponvel em:. Acesso em: 21.06.2001. LLIO, Raimundo. Escritos Antiaverrostas. Porto Alegre: Edipucrs. 2001. p.41. (Coleo Pensamento Franciscano, v. 4). Llull, Ramn. Vida Coetnea. Trad. Ricardo Costa. Disponvel em: . Acesso em: 20.10.2002. ROMANO, Marta M. M. Cronologia della vita e delle opere. In: LULLO, Raimondo. Arte Breve. Milano: Bompiani. 2002. p. 77-80. 23 Chamado Catlogo cronolgico das obras de Ramon Llull. Consta in: LLULL, Ramon. Obres selectes de Ramon Llull (1232-1316). Edio de Antony Bonner. Mallorca: Editorial Moll. 1989. v.2. p. 539-589.

  • 19

    Por muitos anos, o estudo do lulismo esteve oculto; mas a partir do sculo

    passado, graas a Ivo Salzinger, ele veio novamente luz. Salzinger editou, em

    incios do sculo XVIII, o Corpus Lullianum Latinum. Salzinger fora atrado para o

    lulismo pelas tentativas empreendidas principalmente por Leibniz, ao renovar a Arte

    universal de Llio. A edio do Corpus Lullianum Latinum reascendeu a paixo

    pelas obras de Llio, principalmente na Alemanha e em Maiorca.

    Em 1906, em Palma de Maiorca, foi iniciada, a edio das obras catals por

    Mateus Obrador e continuada por Salvador Galms. Ento, nos anos trinta, foi

    fundada a Maioricensis Schola Lullistica, que concentrou a edio das obras catals.

    Por esta escola foi publicada a coleo: Obres de Ramon Llull com 21 volumes.

    Atualmente, est sendo publicada pelo Patronat Ramon Llull, em Palma de Maiorca,

    a coleo NEORL Nova Edici de les obres de Ramon Llull, at o momento com

    4 volumes.

    Um cofundador da escola foi Ludwig Klaiber, bibliotecrio da Biblioteca

    Universitria de Friburgo i.Br, Alemanha. Este apaixonado Lulista teve a idia de

    colocar nas mos de Friederich Stengmller, catedrtico de Teologia Sistemtica na

    Universidade de Friburgo i.Br, o projeto da edio das obras latinas. Logo, com o

    apoio do Conselho da Faculdade de Teologia, erigiu um centro de pesquisa luliana,

    o Raimundus-Lullius-Institut, que, oficialmente, comeou a funcionar em 1957. Pelo

    Raimundus-Lullius-Institut, at a presente data, foram publicados 27 volumes da

    coleo ROL Raimundi Lulli Opera Latina. Tambm em Maiorca foram editadas,

    de forma avulsa, algumas obras latinas, principalmente por Salvador Galms.

    Llio escreveu tambm em lngua rabe; destas obras, contudo, no se tem

    o mnimo rastro. Talvez porque algumas se perderam com os anos, outras, porm,

    podem estar nas bibliotecas do Isl, no sendo fcil o acesso dos cristos.24

    1.2.1 Estado atual da investigao das obras lulianas

    Atualmente existem dois grandes centros de estudos Lulianos: um em

    Friburgo i.Br, Alemanha, onde se edita o ROL, e o outro em Palma de Maiorca, onde

    24 Aqui apresentamos apenas um resumo da histria das edies crticas das obras de Llio. Abrimos, assim, a possibilidade de um estudo mais avanado. A Histria completa e detalhada pode ser encontrada no site do INSTITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA E CINCIA RAIMUNDO LLIO (RAMON LLULL) - .

  • 20

    se edita o NEORL. Em Friburgo i.Br est concentrada toda a edio crtica das obras

    latinas. Enquanto que, em Palma de Maiorca concentra-se a das obras catals.

    Como j vimos, Ivo Salzinger comeou a edio crtica das obras latinas de

    Llio, conseguindo publicar somente 48 das 244 obras latinas que constam no

    catlogo de Bonner. Essa edio no considerada de grande valor crtico, pois se

    comparada com outras edies e principalmente com a tradio dos manuscritos,

    percebe-se a presena de inmeras obras de provenincia duvidosa, que hoje so

    consideradas apcrifas, ou simplesmente atribudas a Raimundo.

    Entretanto, qualquer editor, ao aproximar-se das obras latinas de Llio tem a

    necessidade de tomar as obras editadas por Salzinger, no somente como uma

    referncia editorial, mas tambm como inspirao.

    1.2.1.1 ROL (Raimundi Lulli Opera Latina)25

    Ento, em 1957, deu-se o reinicio da edio Latina, agora em Friburgo i.BR,

    sobre os cuidados de Stengmller. Deste trabalho surgiu o ROL, atualmente

    constitudo de 27 volumes, neles esto contidas as obras latinas, compostas em

    todos os perodos da vida de Llio, deste o tempo de estudos em Maiorca at o

    tempo em que estava na Tunsia, onde publicou seu ltimo opsculo. Esta coleo

    conseguiu editar mais de 150 das 265 obras conhecidas de Llio.

    As obras publicadas so:

    - Volume I (1959) Obras: 213-23926: Opera messanensia anno 1313 composita. Editor: Johannes Sthr.

    - Volume II (1960) Obras: 240-250: Opera messanensia. Obras: 251-280: Opera Tuniciana annis 1314-1315 composita. Editor: Johannes Sthr

    25 Cf. Apndice I. 26 Para facilitar o trabalho das edies crticas, as obras de Llio foram numeradas em seqncia de acordo com os anos em que foram compostas.

  • 21

    - Volume III (1961) Obras: 118: Liber de praedicatione (1304). Dist. I / Dist. IIA Editor: Abraham Soria Flores

    - Volume IV (1963) Obra: 118: Liber de praedicatione (1304). Dist. IIIB Centum Sermmones Editor: Abraham Soria Flores

    - Volume V (1967) Obras: 154-155: Parisiis anno 1309 composita. Editor: Helmut Riedlinger

    - Volume VI (1978) Obras: 156-167: Parisiis anno 1310 composita. Editor: Helmut Riedlinger

    - Volume VII (1975) Obras: 168-177: Parisiis anno 1311 composita. Editor: Hermgenes Harada

    - Volume VIII (1980) Obras: 178-189: Parisiis anno 1311 composita. Editor: Hermgenes Harada

    - Volume IX (1981) Obras: 120-122: In monte pessulano anno 1305 composita. Editor: Aloisius Madre - Volume X (1982) Obras: 114-117, 119: In monte pessulano anno 1304 composita. Editor: Louis Sala-Molins - Volume XI (1983) Obras: 135-141: In Monte Pessulano annis 1308-1309 composita. Editor: Charles Lohr

    - Volume XII (1984) Obras: 123-127: Barcinone, in Monte Pessulano, Pisis annis 1305-1308 compositis. Editor: Aloisius Madre

  • 22

    - Volume XIII (1985) Obra: 134: Ars compendiosa Dei in Monte Pessulano anno 1308 composita. Editor: Manuel Bauza Ochogavia

    - Volume XIV (1986) Obra: 128: Ars generalis ultima Lugduni anno 1305 incepta Pisis anno 1308 ad finem perducta. Editor: Aloisius Madre - Volume XV (1987) Obra: 201-207: Summa sermonum in civitate Maioricensi annis 1312-1313 composita. Editores: Fernando Dominguez Reboiras e Abraham Soria Flores - Volume XVI (1988) Obras:190-200: Viennae Allobrogum, in Monte Pessulano et in civitate Maioricensi annis 1311-1312 composita. Editores: Antoni Oliver E Michel Senellart - Volume XVII (1989) Obras: 76-81: Parisiis anno 1297 composita. Editores: Michela Pereira E Theodor Pindl-Bchel

    - Volume XVIII (1991) Obras: 208-212: In Ciuitate Maioricensi anno 1313 composita. Editores: Abraham S. Flores, Fernando D. Reboiras Et Michel Senellart - Volume XIX (1983) Obras: 86-91: Parisiis, Barcinonae et in Ciuitate Maioricensi annis 1299-1300 composita. Editor: Fernando Dominguez Reboiras - Volume XX (1995) Obras: 106-113: In Monte Pessulano et Ianuae annis 1303-1304 composita. Editor: Jordi Gay Estelrich - Volume XXI (2000) Obras: 92-96: In Ciuitate Maioricensi anno 1300 composita. Editor: Fernando Dominguez Reboiras

  • 23

    - Volume XXII (1998) Obras: 130-133: In Monte Pessulano et Pisis anno 1308 composita. Editor: Aloisius Madre

    - Volume XXIII (1998) Obras: 101-105: Ianuae et in Monte Pessulano anno 1303 composita. Editor: Walter Andreas Euler - Volumes XXIV/XXVI (2000) Obra: 65: Arbor scientiae, Romae in festo sancti Michaelis Archangeli anno MCCXCV incepta in ipsa urbe Kalendis Aprilibus anni MCCXCVI ad finem

    perducta. Editor: Pere Villalba Varneda - Volume XXVII (2002) Obra: 53: Tabula generalis Editor: Viola Tenge-Wolf

    Em andamento

    - Volume XXVIII Obras: 49-52: Liber de Sancta Maria in Monte Pessulano anno MCCXC conscriptus, cui opuscula varia adnectuntur. Editores: Blanca Gar e Fernando Domnguez Reborias

    Suplemento Luliano:

    - Volume I (1990) Breviloculum seu Electorium parvum Thomae Migerii (Le Mysier) Editores: Charles Lohr, Theodor Pindl-Bchel e Walburga Bchel

    1.2.1.2 NEORL (Nova Edici de les Obres de Ramon Llull)

    A edio catal, de Mateus Obrador e Salvador Galms, conhecida por ORL

    Obres de Ramon Llull, conseguiu publicar 83 obras de Llio. Sendo 48

    publicadas por Salvador Galms e 35 por Mateus Obrador.

    Atualmente, sobre a direo de Anthony Bonner, deu-se inicio a uma nova

    edio das obras catals. Essa nova edio, chamada NEORL, procura seguir

    minuciosamente os modernos critrios cientficos, para a edio crtica.

  • 24

    O NEORL j conta com quatro volumes publicados e cinco em andamento:

    As obras publicadas so:

    - Volume I Libre de virtuts e de pecats. Editor: Fernando Domngues Reborias

    - Volume II Libre del gentil e deis tres savis Editor: Antony Bonner

    - Volume III: Libre dels articles de la fe. Editor: Antoni Joan Pons

    Libre contra Anticrist. Editor: Gret Schib.

    Qu deu hom creure de Du. Editor: Jord Gay

    - Volume IV Lgica nova. Editor: Antony Bonner

    Edies em andamento:

    - Volume V Comenaments de filosofia. Editor: Fernando Rodrigues Reborias

    - Volume VI Libre d`Evast e Blanquerna. Editor: Albert Soler

    - Volume VII Comenaments de medicina. Editor: Jordi Gay

    Tractat d`astronomia. Editor: Jordi Gay e Lola Badia

  • 25

    - Volume VIII Arte de fer e de soire qesttions. Editor: Joan Carlos Sim

    - Volume IX Libre de contemplaci. Editor: Antoni Ignasi Alomar

    Assim, constituiram dois grandes centros de investigao luliana: um para as

    obras catals e outro para as obras latinas. Muitas obras existem, tanto em catalo

    como em latim, pois o prprio autor as traduzia. Algumas contudo s existem em

    catalo ou em latim. Da que no raras vezes a mesma obra aparece nas duas

    edies.

    1.2.2 Algo sobre o Lulismo no Brasil

    No Brasil existe uma instituio que se dedica ao estudo do Lulismo, o

    Instituto Brasileiro de Filosofia e Cincia Raimundo Llio, com sede na cidade de

    So Paulo. Por este Instituto, algumas das obras do maiorquino vem sendo

    traduzidas para o portugus. Poucas esto publicadas como livro. Contudo, h

    muitas publicaes disponveis na Internet, principalmente nos sites:

    e . Tambm o IFAN

    Instituto Franciscano de Antropologia, rgo ligado a USF Universidade So

    Francisco Bragana Paulista, em 2001, publicou um volume intitulado Escritos

    Antiaverrostas, composto por duas obras: Do Nascimento do Menino Jesus e o

    Livro da Lamentao da Filosofia. Traduo feita a partir da edio latina.27

    Existem algumas tradues avulsas para o portugus: algumas feitas a partir

    das edies catals e outras a partir das edies latinas. So elas:

    - O Livro da ordem de cavalaria Tradutor: Ricardo da Costa

    Editora: Giordano e Instituto Brasileiro de filosofia e cincia Raimundo Llio

    27 LLULL, Raimundi. Opera Latina. Volume VII (1975), Obras 168-177 Parisiis ano 1311 composita. Obra 170. p. 112-114.

  • 26

    - O Livro do amigo e do amado Tradutor: Esteve Jaulent

    Editora: Loyola e Leopoldianum

    - O Livro das bestas Tradutor: Cludio Giordano

    Editora Giordano e Loyola

    - O Livro do gentio e dos trs sbios Tradutor: Esteve Jaulent

    Editora Vozes

    - O Livro dos anjos Tradutores: Eliane Ventorim e Ricardo da Costa

    Editora: Instituto brasileiro de filosofia e cincia Raimundo Llio

  • 27

    2 O LIVRO: DA LAMENTAO DA FILOSOFIA

    2.1 O LIVRO DA LAMENTAO DA FILOSOFIA

    O texto de nosso interesse um pequeno fragmento, um pequeno captulo

    intitulado Da Imaginativa. O opsculo onde se encontra este texto, Da Imaginativa,

    se chama O Livro da Lamentao da Filosofia, que foi escrito por Llio durante sua

    ltima estadia em Paris (1309-1311). Portanto, trata-se de uma obra antiaverroista.

    Averrostas28 era o ttulo dado aos filsofos que seguiam a doutrina de

    Averris29 (1126-1198). Esta doutrina exposta nos comentrios aos textos de

    Aristteles, constituda por trs pontos principais: a unicidade do intelecto humano,

    chamado tambm de monopsiquismo30, a eternidade do mundo31 e a compreenso

    da dupla verdade uma da razo e a outra da f32.

    A tese contra a qual Llio investe com mais fervor, nesta obra, est

    mencionada logo de chofre no Prlogo: a tese averrosta de duas verdades; as

    demais tambm aparecem, de uma forma bem perspicaz, no decorrer do texto.

    28 Joo de Jandun (128?-1334) teria sido o grande averrosta que Llio, pessoalmente, combateu em Paris. Joo de Jandun, professor na Universidade, defendia que Aristteles e Averris completavam-se na formao de um sistema nico que seria a forma mais requintada de filosofia; portanto, haveria que segui-los fiel e exclusivamente. 29 Abul-I-Walid Muhamad ibn Ahmad Muhamad ibn Rusd (1126-1198). Grande filsofo e jurisconsulto de lngua rabe, nascido em Crdoba, sul da Espanha. Tornou-se famoso, ao ponto de ser considerado o maior filsofo europeu de Lngua rabe. Essa fama provm de seus comentrios aos textos Aristteles. Donde disseminou-se a mxima: Aristteles o filsofo e Averris o comentador. 30 O monopsiquismo combatido por Llio no captulo intitulado: Do Intelecto, do mesmo Livro da Lamentao da Filosofia. De acordo com essa doutrina o intelecto ativo humano um s para toda a humanidade e no est ligado com a matria. Pois, segundo Aristteles, o intelecto separado, simples, impassvel e inaltervel. Se fosse individual, seria individualizado pela matria corpo, portanto incapaz de alcanar o universal, o saber. Assim, o monopsiquismo destri as concepes de personalidade, imortalidade individual e destino eterno do homem. 31 Contraria a tese da criao, pois os motores do universo no so causas eficientes, mas sim causas finais. O movimento do primeiro motor, que assegura a unidade para todo o universo, tem uma relao de finalidade com os outros motores e no de eficincia. Assim, Deus pensado como pensamento de pensamento, ou melhor, atividade necessria e eterna. 32 Segundo Averris a nica verdade a da razo (Filosofia); as verdades inscritas nos textos sagrados so smbolos imperfeitos da verdade nica que a filosofia encerra e sistematiza. Contudo, os averrostas latinos, tomando a doutrina de Averris, falam de uma dupla verdade: a verdade da razo e a verdade da f, que muitas vezes se contradizem.

  • 28

    So muitos os mveis que levaram Llio a escrever esta obra; estes mveis

    esto expostos no Prlogo. O principal, sem dvida, a condenao sutil das teses

    averrostas. Llio parte da diviso que os averrostas, da Faculdade de Artes,

    propunham acerca da concepo da existncia duas verdades, e ainda da

    possibilidade destas se contradizerem. Nesta obra, Llio quer apresentar os erros

    existentes nesta tese, de maneira especial como essa doutrina estava repercutindo

    numa evidente ciso entre a teologia e a filosofia.

    Como j foi dito anteriormente, esse livro teve sua edio crtica latina

    realizada pelas Raimundi Lulli Opera Latina. uma das obras que compem o

    Volume VII da ROL, publicado em 1975, sob o ttulo de Parisiis anno 1311

    composita.

    Este livro contm os seguintes captulos:133.Dedicatria ao Rei Felipe, 2.

    Prlogo, 3. Da Forma, 4. Da Matria, 5. Da Gerao, 6. Da Corrupo, 7. Da

    Elementativa, 8. Da Vegetativa, 9. Da Sensitiva, 10. Da Imaginativa, 11. Do

    Movimento, 12. Do Intelecto, 13. Da Vontade, 14. Da Memria e 15. Do Fim do Livro.

    O contedo doutrinrio do livro est exposto de 3 a 14. Logo primeira vista,

    percebemos que os captulos 3 a 14 seguem a ordem constitutiva do universo, como

    os medievais percebiam a realidade a partir da Criao. Nessa constituio de

    universo os ttulos que caracterizam de 3 a 14 so chamados por Llio de princpios.

    A eles dado o nome de princpios por no se tratarem de coisas, mas sim de

    horizontes ou dimenses a partir e dentro das quais se tornam possveis os

    seguimentos dos entes concretos que povoam o universo em diferentes

    estruturaes de seu ser.

    Dentro desta ordenao dos princpios, podemos perceber que de 3 a 6

    formam um todo especial, ao passo que de 7 a 13 se apresentam como princpios,

    como que resultantes da interao entre 3 e 4 (binmio Matria-Forma) que se

    mostram como princpios estruturantes do chamado de gerao e corrupo (5 e 6),

    por meio dos quais vm presena, realidade, as dimenses 7 a 13. De 7 a 13

    esto expostas as dimenses dos entes que usualmente so denominados de

    diferentes ordenaes das esferas dos entes, ou das substncias compostas. So

    elas: Elementativa (mundo dos entes no vivos: elementos); Vegetativa (mundo dos

    33 Os captulos foram numerados para facilitar a exposio do livro, essa numerao segue a seqncia lgica do texto.

  • 29

    entes orgnico-vivos: plantas); Sensitiva (mundo dos entes sensveis: animais);

    Imaginativa e Movimento. Princpios que apresentam a passagem do mundo dos

    animais para o mundo animal racional, que o homem e sua constituio: Intelecto,

    Vontade e Memria. Assim, nessa escala de ordenaes temos a chamada rvore

    Porfiriana34.

    Toda essa colocao ontolgico-csmica dos entes no seu ser,

    apresentada por Llio numa forma de alegoria, onde se d a explicitao dos

    movimentos constitutivos dos entes no seu todo, atravs do dilogo entre a Filosofia,

    os princpios, Raimundo e as virtudes (Contrio e Satisfao). A filosofia, os

    princpios e as virtudes so personificadas em figuras femininas35. O ambiente em

    que se d este dilogo e encontro um lugar paradisaco. Podemos dizer que se

    trata de um lugar onde ainda se respira o ar puro da verdade originria e no a

    atmosfera poluda, indicando as posies averrostas.

    2.2 MATRIA E FORMA EM LLIO

    Depois da apresentao do Livro da Lamentao da Filosofia, vamos

    prosseguir, explorando como Llio, no captulo 3 (Da Forma) v a dinmica, o

    movimento da estruturao do mundo das substncias compostas cujo pice o

    homem.

    Porm, antes de falar de matria e forma no texto de Llio, vamos expor, de

    um modo geral, a doutrina do hilemorfismo, na qual aparece o pano de fundo, sobre

    o qual poderemos talvez entender melhor a exposio sobre a matria e a forma em

    Raimundo Llio.

    34 Exposta no Apndice II deste trabalho. 35 Exceto o Intelecto, personificado como figura masculina.

  • 30

    2.2.1 A doutrina do hilemorfismo e sua estruturao na ordenao geral do

    universo

    A tradio chamou de hilemorfismo a tentativa de ordenar as diversas

    esferas dos entes do universo em suas diferenciaes de nveis, participao e

    intensidade de ser, usando para tal o princpio-binmio matria-forma. Essa

    compreenso semelhante ao que no extremo Oriente se tentou, e ainda hoje se

    tenta, explicar a complexidade do universo atravs do princpio (binmio) de Yang-

    Yin36. Este modo de compreender a constituio do universo a partir de dois

    princpios parece estar difundido nas mais diversas culturas; possvel encontrar

    uma compreenso semelhante entre os povos africanos sob a imagem do Igb-

    odu37.

    Hilemorfismo uma palavra composta por dois termos gregos: que

    em latim ficou matria e , que ficou forma. Segundo Logos, Enciclopdia

    luso-brasileira de Filosofia, hilemorfismo : Sistema ou doutrina filosfica, segundo

    a qual a estrutura ltima ontolgica dos corpos constituda por dois componentes

    ou princpios radicais de ser: matria primordial () e forma substancial (

    ou )38.

    36 Nas bases do pensamento oriental, mais propriamente do pensamento chins, encontra-se o conceito de que tudo constantemente criado a partir da correlao entre YIN (feminino, pesado, terra, passivo) e YANG (masculino, leve, cu, ativo). O interessante que tanto em YIN, como em YANG, existe a semente para seu oposto. Se observarmos a figura, vemos a perfeita relao entre os dois princpios e, onde a fora de um se concentra, irrompe a semente para a outra. (Cf. CLARK, Mary. I ching. So Paulo: Avatar. 1999. p. 6.) 37 O Igb-odu uma cabaa, smbolo que demonstra a compreenso de universo no candombl. Nessa crena, h dois modos de existncia: o orum o aiy (formal e material). Nada existe que esteja fora desta dimenso, tudo criado a partir da unio de orum e aiy. Orum diz toda realidade imaterial, impalpvel, no limitado, podemos assim fazer uma analogia com a concepo medieval de forma. Aiy diz toda realidade material, finita, palpvel, podemos ver nele uma semelhana com a matria. Para representar este smbolo, o candombl cunhou a imagem do Igb-odu a cabaa da existncia. O Igb-odu representada por uma cabaa formada de duas metades unidas, a metade inferior representa aiy, a metade superior o orum. Segundo a crena, no interior da cabaa est contido todo o universo. Portanto, a existncia considerada como una, pois a cabaa uma s, porm cindida em duas partes inseparveis, pois se tirarmos uma delas a cabaa se desfaz. Podemos, destarte, ver neste mito, uma analogia da compreenso de constituio do universo a partir de matria e forma, ou como no extremo Oriente de Yang-Yin (Cf. BERKENBROCK, Volney J. Elementos para uma Teologia da Criao nas religies afro-brasileiras. In: MLLER, Ivo. Perspectivas para uma nova Teologia da Criao. Petrpolis: Vozes. 2003. p. 251.) 38 ALVES, Victorino de Souza. Hilemorfismo. In: VV.AA. Logos Enciclopdia Luso-brasileira de Filosofia. v.2. Lisboa: Verbo. 1990. p. 1130.

  • 31

    Este modo de compreender a constituio universal a partir do hilemorfismo

    era muito vivo entre os medievais. Hoje, no conseguimos acompanhar esta

    compreenso, visto que a desgastamos demais, no a tratando com sua dignidade

    prpria. Assim, tentamos explicar esse princpio-binmio de um modo simplrio,

    dizemos matria como algo material (em oposio a tudo que no material), e

    forma como se dissssemos frma, a modo de construo, configurao,

    beneficiamento, modelao, produo39. Dizemos, ainda, que a concepo deste

    princpio ordenativo da complexidade dos entes na constituio do universo vem da

    maneira artesanal com que os medievais encaravam a vida e o ente no seu todo.

    Pronto, a doutrina do hilemorfismo perdeu praticamente toda sua fora, passando a

    ser considerada como uma maneira primitiva e ingnua de conceber toda a

    estruturao do universo a partir de um modo artesanal, da mundividncia de uma

    humanidade que vivia e pensava dentro e a partir de uma existncia artesanal, que

    pensava a partir da fabricao de artefatos.

    Isso certamente no est de todo errado, porm diz apenas parte daquela

    complexa explicao ordenativa que era dada para a estruturao do universo, a

    partir da doutrina do hilemorfismo.

    Essa doutrina comea a se encaminhar melhor, se seguirmos um fio

    condutor que denomina forma e matria como causa material e causa formal. Ento,

    devemos encarar forma e matria dentro do conjunto das causas, pelas quais os

    medievais dinamizavam e estruturavam uma compreenso ordenada do universo.

    Assim, as palavras chaves dessa doutrina so: forma, matria e causa.

    Estas trs no esto como trs realidades dispostas estaticamente uma ao lado da

    outra, mas formam momentos dinmicos de uma constituio. A dinmica de matria

    mais forma constitui a causa. Dessarte, causa o princpio dinmico que rege,

    caracteriza e estrutura as diferentes esferas ou regies do ser.

    Nem a forma nem a matria so por si; ambas so a partir de outro, ou seja

    ab alio. A matria no poderia ser se de algum modo no fosse in-formada; por

    mais provisrio que seja, s h matria mediante a ao da forma. A forma, todavia,

    necessita da matria para poder ser factual, real, para que em in-formando a matria

    possa se manter e permanecer.

    39No caso de um artefato de argila, um prato, dizemos que argila a matria, enquanto a configurao de prato entende-se por forma.

  • 32

    Numa ordenao, entre ambas existe uma acentuao preferencial na

    forma, pois seu modo de ser exerce uma prioridade em relao matria. Porque

    nos diversos nveis de participao do ser est mais prxima ao ser, a forma, tem

    maior comunicao do ser do que a matria. Isto , quanto mais forma, tanto mais

    ser. a forma que nos diz o que cada ente dentro da constituio do universo.

    A forma o ente que d o ser coisa40. Em sua relao com a matria, a

    forma se torna dinmica, princpio, causa para a atualidade, para a realidade, para o

    ser dos entes. A princpio, a forma tem a possibilidade de determinao como

    propriedade das coisas materiais. Contudo, como princpio determinante da matria,

    a forma vai aos poucos constituindo nveis diferentes, cada vez mais altos. Nesse

    sentido que os medievais diferenciavam nveis da forma, por meio da causa.

    Ento, compreendiam vrios nveis formais: causa formal, causa final e causa

    eficiente. De um lado temos a matria (o princpio passivo causa material) e de

    outro lado os trs nveis formais: causa formal, causa final e causa eficiente

    (princpios ativos).

    A tradio filosfica remete essa doutrina das causas a Aristteles, que teria

    apresentado 4 causas divididas em: causa material, causa formal, causa final e

    causa eficiente. Como j dissemos, nossa tendncia, hodierna, ver a relao das

    quatro causas como uma relao produtiva, no sentido de fabricao de um

    determinado artefato. Nesse sentido, a doutrina do hilemorfismo passou a ser

    considerada como ingnua e primitiva. Acabamos por compreender toda a doutrina

    hilemrfica numa relao de causas, ao modo de trabalho numa oficina, como a

    fabricao de um vaso de barro. Tendo: causa material = Barro; causa formal = o

    molde, configurao, de vaso; causa final = finalidade do vaso; e causa eficiente = o

    oleiro que modela o vaso. Ento, diz-se que o universo era constitudo deste modo:

    Deus a causa eficiente, que age sobre a matria (causa material), impondo-lhe

    uma forma (causa formal) em vista de um determinado fim (causa final). Ou seja, o

    universo visto como uma relao de causa e efeito, ou melhor, de causao. Esse

    modelo de compreender a relao de causas diz apenas parte da constituio do

    40 LLIO, Raimundo. Escritos Antiaverrostas (1309-1311) Do nascimento do Menino Jesus / Livro da Lamentao da Filosofia. Trad. Braslia Bernardete Rosson, Srgio Alcides e Ronald Polito. Vol IV. Porto Alegre: Edipucrs. 2001. p.125. (Coleo Pensamento Franciscano).

  • 33

    universo, sendo vlida somente para o nvel mais nfimo dos entes, o nvel de ser

    enquanto no vivo, enquanto fsico-material.

    Estaremos mais prximo ao modo originrio de compreender causa se nos

    colocarmos a ouvir causa, no num sentido de causao, mas na sua forma latina

    res, isto , coisa, a saber, realidade. Assim, percebemos que a causa diz coisa, isto

    , realidade, ente, ser. Portanto, temos: realidade material, realidade formal,

    realidade final e realidade eficiente. Estas realidades dizem diferentes nveis de

    crescimento da intensidade, da autonomia e da mtua dependncia entre os

    diferentes graus de participao do ser.

    Da ao de cada uma dessas variantes: causa material, causa formal, causa

    final e causa eficiente, surgem diferentes intensidades de compreenso de ser, que

    formam regies ou esferas dos entes41. Assim, essas causas no se colocam,

    fixadas, uma ao lado da outra, mas constituem degraus de intensidade e

    qualificao dos entes no seu ser. Sendo deste modo:

    Causa material + forma a modo de causa formal = Os entes que irrompem neste nvel caracterizam-se pelo fato de a forma no passar de causa

    formal. Aqui forma somente a determinao de uma coisa material, ser assim, ter

    esta ou aquela propriedade, indica um estado de ente, enquanto coisa. Na

    constituio de um ente, deste nvel, a forma como que extrnseca a ele,

    necessitando de uma forma externa que imponha uma nova forma para dentro da

    matria. Estes entes dependem continuamente de uma fora externa a eles. Neles

    h somente uma forma, de certo modo imposta, sem que eles tenham a

    possibilidade de mudana a partir de si.

    Os entes desse reino so pura presena, seu ser estar a, apenas

    durao, o tempo exterior a eles; estes entes no tm temporalidade prpria,

    interior, eles no possuem uma interioridade. A ausncia de uma interioridade faz

    com que os chamemem de mortos.

    Dentro dessa escalao, h mltiplas e inmeras graduaes a partir da

    matria pura. Este nvel constitui o ente fsico do mundo material, constitui o ente

    sem vida. Mesmo que sua complexidade v cada vez sendo aumentada pela in-

    41A mesma compreenso dita de outro modo na rvore Porfiriana, porm o binmio-princpio usado no o de forma-matria, mas o de gnero-espcie. Nela, porm, cada ao de um novo modo de ser da forma chamado de diferena especfica.(cf. Apndice II)

  • 34

    formao da matria, que neste caso se d de fora para dentro, este ente nunca ter

    vida. Assim, os entes constitudos no degrau de causa material + causa formal, por

    mais complexa que seja a sua composio, nunca surgem como vivos; por mais que

    se aumente sua complexidade constituinte, estes entes, permanecero fsicos,

    materiais, pertencentes ao reino das coisas, ao reino dos minerais. Ento, matria e

    forma, neste nvel, constitui a esfera dos elementos nfimos, dos entes sem vida42.

    De acordo com os medievais esta a esfera mais baixa na participao do ser.

    Para que surja vida, entes vivos, necessrio que os princpios matria +

    forma (causa material e causa formal) recebam um toque qualitativo da intensidade

    do ser. Recebido esse toque qualitativo, advm uma nova forma que os qualifica

    para um outro nvel de constituio no ser. Surge um nvel de entes que tm em si

    uma finalizao, os seres vivos, os seres do reino vegetal. A partir de ento, est

    atuando a forma a modo de causa final. A forma deixa de ser uma forma digamos

    esttica, configurativa, modeladora, simplesmente imposta, para se tornar uma

    constituio que d autonomia ao ente43.

    Causa material + forma a modo de causa final = Aparece, ento, uma outra esfera de constituio dos entes, mais elevada e mais intensa. Nesta, a forma

    tem a dinmica de causa final. Isso quer dizer que nestes entes est contida uma

    intencionalidade: uma dinmica que gera finalizaes, pois, dirige estes entes para

    um determinado fim. O ente, aqui, tende para um futuro, no esttico, no est

    simplesmente ali, esperando ser acordado por uma forma externa; mas sim um

    ente que est se assumido, em outras palavras, um ente vivo. Surge, ento o reino

    das plantas, o reino dos vegetais.

    42 Mesmo neste nvel existem diversos graus de excelncia, de perfeio. Porm entre eles no irrompe a vida. Podemos perceber nitidamente esta graduao entre os minerais, ao depararmo-nos com uma pedra comum, dessas que utilizamos para fazer calamentos, no lhe damos a mesma qualificao que damos a um diamante, a uma esmeralda. Notamos que em diamante e em esmeralda h mais excelncia do que noutras pedras. O mesmo pode ser visto na argila. Ao escolher a argila para seu trabalho, um ceramista no sai e recolhe qualquer barro; mas escolhe, procura, busca o mais excelente, aquele sob o qual a forma se adeqe de maneira perfeita. Ento no basta, muitas vezes, simplesmente escolher o barro, necessrio in-form-lo. Ento o ceramista o desmancha, amassa, acrescenta-lhe gua, d um polimento, vai lhe impondo forma. At que, num dado momento percebe que o simples barro tem qualidade, excelncia de argila. A est argila, o ceramista desce a forma que o movera ao encontro da mesma. O ceramista faz dela uma xcara. 43 Na rvore Porfiriana esse toque considerado uma diferena especfica sobre um determinado gnero. Ou seja, o gnero dos entes sem vida, recebe uma qualificao do ser, uma diferena especfica, a vida, irrompendo-se numa nova e totalmente distinta esfera de participao no ser, a esfera dos entes vivos. (cf. Apndice II).

  • 35

    Deste toque de intensidade surge o reino dos vegetais, da vigncia, nestes

    entes o princpio de ser a causa final. o nvel dos entes que se fazem e se

    desenvolvem para um determinado fim. A esse modo, de ordenao final, o

    medieval chamava de anima, para ns, alma. Alma no significa uma realidade espiritual dentro de outra material, significa um princpio constitutivo, um ser dos

    entes na sua totalidade, no uma parte, mas uma concepo do ser: alma diz vida.

    Estes, portanto so os entes viventes44.

    Quando o princpio dos entes vivos, enquanto reino vegetal, recebe um

    toque qualificativo da intensidade de ser, comea a participar da causa eficiente.

    Ento, surge a vida enquanto sensibilidade, surge ento o reino dos entes sensveis.

    Irrompe ento o nvel do reino animal.

    Causa material + forma enquanto causa eficiente = Estes princpios indicam uma nova esfera dos entes, mais intensa e elevada no seu ser. Onde a

    forma tomou o modo dinmico de causa eficiente. O ente tem agora um novo

    princpio, o princpio produtivo de auto-constituio. Neste nvel, o ente no somente

    se faz, mas cuida de si, gera as prprias condies do processo de auto-formao.

    Ele tem a capacidade de buscar seu prprio alimento. A esse ente d-se o nome de

    animal. Sua principal caracterstica a auto-moo.

    Esse ente, tem a sensibilidade como meio para sua busca. Tem uma fora

    de percepo, de sondagem, de valorizao e de escolha, de acordo com aquilo que

    lhe prprio, ou aquilo que lhe convm. Estes entes tm o tempo como algo interior

    a eles, vivem a temporalidade, eles esto no cuidado do que j foi (passado), do que

    (presente) e do que ser (futuro).

    Nesse sentido, tender para um fim no como os entes da esfera da causa

    final45. Trata-se de uma relao do presente com a recordao do passado, o que os

    medievais conheciam por distenso da alma46 (distensio animae). Esse espao de

    interioridade chamado de memria, imaginativa. Este modo de ser o do sentido,

    44 Podemos ver claramente nestes entes a presena de um tender. Eles tendem para um fim. Eles tm possibilidades maiores, assimilam os alimentos e se constituem. No esto esperando que uma forma externa os acorde, mas esto numa vigncia, tm a capacidade de distender suas razes em busca de alimento, tm a capacidade de esticar seus galhos na direo da luz. Contudo, por mais perfeitos que estes sejam, falta-lhes a sensibilidade. Entres estes entes h diversos nveis de perfeio, porm mesmo em inmeras escalaes, entre eles no irrompe a sensibilidade. 45 Uma tendncia, de certa forma, cega para um fim. 46Cf. SANTO AGOSTINHO. Confisses. So Paulo: Nova Cultural. 1996. p. 322-327.

  • 36

    do sentimento, da sensibilidade. Destarte, esse ente, o animal, est constantemente

    a caminho para si mesmo, para tornar-se o que sempre j foi.

    Dentro deste nvel de entes irrompem, a partir de toques de intensidade do

    ser, diversas variaes da forma eficiente, de modo que vo sendo gerados degraus

    de entes, surgindo dentre eles o animal-racional, ou seja, entes humanos. A partir do

    homem, por meio das escalaes da causa eficiente, surgem seres com, cada vez

    mais intensidade de autonomia como os anjos, e assim at chegar a Deus, ente por

    excelncia no seu ser, pura forma, pura autonomia.

    Os entes que se configuram em sua vigncia a partir do homem, criando

    esferas de intensidade de ser, at chegar a Deus, a suprema vigncia, so

    caracterizados pela criativa e imensa potncia de liberdade, que, muitas vezes,

    recebe o nome de esprito. Esprito diz autonomia do ser, que tem seu cume em Deus, o ens a se.

    Os medievais expressavam pelos termos ens a se47 e ens ab alio48 um

    crescimento de autonomia, na medida em que crescia a participao no ser, e de

    mtua dependncia entre estes graus de intensidade do ser. Essa dependncia se

    dava no sentido de que acima de uma esfera de ser existe outra, mais perfeita e

    mais prxima ao ser, que est como que sustentando, comunicando o ser esfera

    seguinte. Dependncia no sentido de que pelo modo mais elevado de ser que o

    mais nfimo est participando da intensidade do ser. Quanto mais os entes vo, na

    ordenao do universo, se tornando autnomos, mais vo participando do ser; e em

    participando do ser vo tornando-se livres. Deus o ser livre por excelncia, por isso

    ens a se, de nada depende, isto , ser pleno, ab-soluto.

    Essa participao dos entes, criaturas, no ser, aseidade de Deus, recebe o

    nome de filiao divina. Assim, o inter-relacionamento criador entre Deus e as criaturas no pode ser encarado como causao, ou melhor num mbito de causa e

    efeito; mas por meio da categoria dita filiao divina. Esta filiao acontece em diversos nveis e modos descendentes at chegar ausncia da forma, dissipao

    total da luz divina, isto , na pura matria prima. Onde no dizemos mais filiao, mas sim causao. Dito de outro modo, s conseguimos compreender bem o

    47 Ente ou realidade a partir de si mesma = liberdade de ser = Deus de quem tudo depende. 48 Ente a partir do outro = os entes na escalao crescente da participao do ser, que se encaminha a partir de coisa material/formal, eleva-se coisa final e por fim coisa eficiente.

  • 37

    princpio-binmio forma-matria se olharmos a partir da perspectiva de que Deus

    pura difuso da sua liberdade, de sua bondade, que se comunica gratuitamente e

    sem medidas num relacionamento de filiao constitudo o universo em multifares nveis de sua comunicao.

    Podemos notar, ento, que o princpio-binmio matria-forma utilizado de

    dois modos: primeiro para indicar o princpio constitutivo do reino dos entes sem

    vida. Segundo, para indicar o movimento para a constituio das diferentes esferas

    dos entes enquanto: reino mineral, reino vegetal, reino animal, reino humano e ainda

    esferas mais elevadas dos entes espirituais. Causa (coisa = realidade), ento,

    aponta-nos para uma abertura, dimenso na qual e a partir da qual surgem os entes

    nos seus mais distintos nveis de ser.

    2.2.2 Na tentativa de compreender alguns termos

    Tendo, de um modo simples, tentado expor toda a problemtica que se

    apresenta sob o nome de hilemorfismo, faz-se necessrio apresentar, de forma

    breve, a compreenso que damos a alguns termos utilizados no somente por Llio,

    mas por diversos medievais, na explicao da constituio do universo.

    2.2.2.1 Substncias compostas e substncias simples:

    Para ente podemos usar tambm a palavra substncia. Usamos substncia

    para indicar um ente j constitudo, concreto. No podemos observar o ente sem

    distinguirmos nele momentos que subsistem, que sempre permanecem e so

    idnticos, como um ncleo, como algo que subjaz, constante e consistente em si. E

    outros momentos passageiros, que vm e vo, como que transitrios. A esse

    momento nuclear, consistente e bem afixado, imutvel, chamamos de substncia. Os momentos em que a transitoriedade a sua caracterstica, onde suas

    determinncias vm e vo, chamamos de acidente. A partir destas consideraes percebemos que substncia diz algo essencial; diz o ente enquanto sua essncia.

    Desse modo, substncia chamado tambm de essncia. H dois modos de ser da substncia. Um deles diz a substncia composta,

    ou entes compostos, so entes que fazem parte dos reinos: mineral, vegetal, animal,

    humano. So chamados de entes compostos pelo modo com que matria e forma

    esto atuando nestes entes. Neles possvel perceber a ciso do binmio matria

  • 38

    (passivo) e forma (ativo), tendo um modo prprio de constituir-se: o modo da

    materialidade.

    O outro modo de dar-se da constituio da substncia o chamado simples,

    muitas vezes chamado de forma separada. Enquanto na substncia composta

    podamos perceber uma certa ciso entre matria e forma, na substncia simples,

    forma separada, no h distino entre matria e forma. Ento, constitui-se a

    realidade dos entes mais elevados, nestes o princpio receptivo no se apresenta

    como matria. Estes entes no pertencem aos entes que esto na disposio da

    materialidade, mas constituem-se como que da pura e simples forma, da que so

    simples49.

    Desse modo, o universo est assentado em diferentes degraus de elevao,

    conforme a intensidade do ser e sua qualificao, distinguindo essencialmente duas

    reas: a regio (rea) dos entes ou substncias compostas e a regio (rea) das

    substncias simples. Na regio das substncias compostas, o princpio-binmio

    matria-forma, dinamizador da escalao dos entes, continua sendo chamado de

    matria e forma. Porm, na regio das substncias simples (entes simples, forma

    separada, forma pura) o princpio-binmio passa a ser chamado de potncia e ato. Quando a forma comea a ser considerada como princpio ativo que, de

    acordo com as ondulaes dos entes e suas qualificaes, vai se tornando cada vez

    mais eficiente, autnoma: a se, considerada como forma absoluta ou substancial. Porm, quando considerada como princpio ativo, atuante, que vai formando os entes em suas diferentes escalaes de intensidade e qualificao do

    ser chamada de forma particular ou acidental.

    2.2.2.2 Excurso: matria e forma como e

    Como j mencionamos anteriormente, essa doutrina de matria e forma,

    considerada no somente no nvel de causa formal e causa material, mas como

    dinmica de constituio do ser que aos poucos vai se qualificando e graduando

    como causa formal, causa final e como causa eficiente, em inmeras escalaes dos

    entes simples chamada de hilemorfismo. A traduo latina do termo grego

    49 Essa regio de entes recebe, muitas vezes, o nome de forma separada. Pois, como j vimos, tratam-se de entes que no tem o receptivo como matria, porm possuem muito do modo de ser formal.

  • 39

    matria e do termo , forma. Contudo essa traduo dos termos pode manter

    obscuro um significado vigoroso, pelo qual os medievais compreendiam a doutrina

    do hilemorfismo.

    Ns podemos compreender melhor o que significava matria e forma para

    os medievais, se considerarmos os termos e , no seu sentido

    originrio, grego. Neste contexto, significa mais do que simplesmente matria,

    significa mais do que simplesmente o material a partir do qual se faz algo50. Esse

    modo de ver est bem encaminhado, porm trata-se de uma concepo

    derivada, no originria. Em seu vigor primeiro significa floresta, mata, cerrado.

    Depois significa a parte dura do tronco da rvore. Somente quando extramos a

    madeira da mata para fabricarmos algo que passa a ser considerada como

    material para fazer algo.

    Assim, se voltarmos ao sentido originrio de matria, em , percebemos

    que se trata, acima de qualquer outra compreenso, de uma paisagem, que

    podemos intuir quando falamos de imensido, de vastido, de profundidade obscura

    da floresta, da mata, do cerrado. Trata-se, portanto, da sensao de um caos, de

    uma vastido profunda e indeterminada, de um pulsar vigoroso da . Diante da

    qual, admirados, dizemos: Que fora! Que presena! Que potncia!

    assim que nos sentimos diante de uma floresta na sua mais vigorosa

    pujana, quando ela ainda est em seu primeiro acordar, na semi-escurido da

    manh, que pouco a pouco vai se iluminando e nos chamando apreciao daquele

    dar-se, irrompendo diante de ns como paisagem. Na medida em que a nvoa da

    manh se dispersa e o sol ilumina toda a concreo, a mata comea a brilhar,

    comea a mostrar-se em sua presena, comea a aparecer em sua imensido uma

    enorme diversidade de cores, formas, como que num oceano de ondulaes em

    formas e cores diversas. Assim, os verdes vo se contrastando vindo fala toda a

    imensido catica da floresta, de modo cada vez mais esplendido, luminoso,

    definido, ntido e claro, de modo que no diminui em nada aquela intensidade da

    imensido e da profundidade quando a floresta estava obscurecida

    50 O material para fazer mesa madeira, para fazer pano algodo.

  • 40

    Para a mata em sua imensa obscuridade, silncio e caos dizemos .

    Onde toda a mata aparece na sua pujana e total fora de possibilidade. Porm,

    quando a luminosidade perpassa a concreo, quando um cosmos comea a

    pulular, as delineaes comeam a aparecer, dizemos que est se dando a

    concreo de . Destarte, forma, no no sentido de simples

    modelao, de frma, mas sim como um perfil ntido e claro de configurao, por

    meio da qual se apresenta a nitidez da presena do ser. Podemos dizer que daquele

    caos vigoroso, intenso e imenso da floresta, lentamente, como que num parto, veio

    surgindo o cosmos, no menos vigoroso, intenso e imenso.

    Da imensa possibilidade de irrompe, surge, nasce, pulula, .

    Como da imensa possibilidade de uma rocha, comea a pulular, a irromper, em

    configuraes diversas de braos, pernas, olhos, uma Piet de Michelangelo. Assim,

    do bronze comea a surgir em movimento e xtase de um Pensador de Rodin. Nesta

    compreenso, significa graciosidade, limpidez, iluminao, beleza.

    Os gregos percebiam a beleza como translucidez, como incandescncia do

    ser que se desvela, que vem fala, a partir da profunda e imensa possibilidade do

    ser, que se d na concreo de matria pura e forma. Forma no seu sentido prprio

    de pique do ser, de fora, de dar-se em seu melhor modo.

    2.3 COMENTRIO DO TEXTO DE RAIMUNDO LLIO: DA FORMA

    Tendo apresentado o contexto geral da doutrina do hilemorfismo, queremos,

    neste espao, ater-nos ao que prprio de Raimundo Llio. Para tal, vamos, a

    nosso modo, expor um breve comentrio do captulo 3 do Livro da Lamentao da

    Filosofia, intitulado Da Forma. O comentrio deste texto nos serve como que para

    lanar as bases de uma interpretao do captulo intitulado Da Imaginativa, texto

    que constitui o centro de nosso trabalho.

    Neste comentrio no nos ateremos matria, porm em comentando a

    forma, comentamos ao mesmo tempo a matria. Tudo isso, a fim de compreender o

    princpio-binmio forma-matria como paisagem em que se apresenta a imaginativa.

    .

  • 41

    Texto:

    DA FORMA51

    Disse a Forma: Sou o ente que dou o ser coisa. E sou absoluta e primitiva, pois que

    com a matria-prima constituo uma s substncia geral de todo o universo. Disse a Forma: Sou a composio absoluta pela forma da bondade, da grandeza, da

    durao, do poder, do instinto, do apetite, da virtude, da verdade, do prazer e da perfeio. Provindo de todos os princpios inatos, sou ativamente uma nica forma absoluta; ativando, existo pela bondade, pela grandeza e assim por todos os outros princpios inatos, dos quais sou constituda; e assim sou absoluta.

    Sou duplamente forma, a saber: substancialmente e acidentalmente. E sou ente em potncia para todas as formas particulares que surgem, existindo eu em ato e elas e os agentes substanciais provindo de minha essncia. De mim e deles provm as formas acidentais, que em mim e neles so sustentadas e permanecem. Por isso, sou forma absoluta.

    Disse a Forma: Sou substncia em potncia, porque com a matria constituo a substncia. Por isso, as formas particulares, segundo a via da gerao, existem primeiro em potncia, e depois existem em ato; e isso, ativando.

    Disse a Forma: No sou privao, visto que sou um ente existindo em ato. Mas pela razo da gerao e da corrupo minhas formas particulares, por vezes, so antigas, por vezes, so novas, porque, se eu fosse privao, pela razo da transmutao passaria ao no-ser; o que, segundo minha natureza, impossvel, porque no sou composta pelos contrrios, mas pelos concordantes, como acima foi referido. O ser absoluto, porm, no pode ser privado por alguma parte contrria.

    Disse a Forma: Pelo contrrio, enquanto sou ao absoluta, sou despida de todo o ser material, de outra forma no seria ao absoluta. Minhas formas particulares, porm, nas quais sou difusa e extensa por todos os indivduos, so distintas das matrias particulares, visto que, em existindo e agindo, so ativas. Do contrrio, a matria de algum modo teria ao e eu passividade sob a mesma; o que impossvel.

    Disse a Forma: Eu estou toda na matria e a matria atuando toda em mim apassivando. E, por isso, sou conexa com a mesma na substncia e os meus acidentes e os seus so conexos. De outra forma no seramos uma s substncia extensa e contnua; o que impossvel.

    Disse a Forma: porque estou na primeira matria e em todas as matrias particulares e assim atuando a partir de minhas particulares formas, surge de mim uma ao substancial e uma verdadeira ao predicamental, com a qual ajo na matria prima e em todas as matrias particulares. E da matria prima nasce a passividade predicamental. E de ambas nasce o movimento geral ativado pela minha natureza e apassivado pela sua. Com esse movimento so movidas para o ser atual, novo e gerado as substncias,

    51Extrado de: LLIO, Raimundo. Escritos Antiaverrostas (1309-1311) Do nascimento do Menino Jesus / Livro da Lamentao da Filosofia. Traduo para o portugus: Braslia Bernardete Rosson, Srgio Alcides e Ronald Polito,. Vol IV. Porto Alegre: Edipucrs. 2001. p.125-130. (Coleo Pensamento Franciscano).

  • 42

    existentes em potncia com seus acidentes. E devido corrupo a privao se torna antiga, e a posio se renova e isto incessantemente.

    Disse a Forma: Eu e a matria constitumos uma analogia; eu, contudo, primitivamente, e a prpria matria por conseqncia. A razo disso que no movimento eu sou incoativa, devido ao, e a matria consecutiva, devido passividade. De onde segue que sou o fim dela, porque sou por causa de mim e ela no por causa de si, mas por causa de mim. E por isso, antes que eu falhe, ela falha nos particulares, pois no capaz de receber toda a minha ao com relao ao que inferior, no, porm, quanto superior, visto que ela prpria a passividade absoluta por natureza.

    Disse mais a Forma: Eu sou a semelhana de Deus e a matria sua dessemelhante, j que Deus forma e no matria. Ao que segue que sou melhor, maior, mais durvel e potente, mais inteligvel, mais amvel, mais virtuosa, mais verdadeira, mais perfeita e gloriosa do que a matria. E da segue que posso agir mais na matria do que a matria pode suportar. Mas, tal agir mais est em mim em potncia e no posso reduzi-lo ao ato, porque a matria no pode suportar tanto. Ao que segue que minha essncia intensa pela bondade, magnitude, etc., e a matria extensa e que na corrupo a matria comea a falhar antes de mim. Na gerao sou primitiva e a matria consecutiva. E, por isso, sou mais profunda do que a matria, visto que sou semelhante forma divina, que profunda quanto a seus correlativos, por exemplo, quanto s pessoas divinas; e assim da bondade divina, etc., que profunda quanto a seus correlativos. Em razo disso, minha bondade, etc., mais profunda do que a bondade da matria.

    Disse a Forma: Sou uma em nmero, privativamente, isto , corrompida uma forma do indivduo, restaura-se ela em outro indivduo gerado e isso de forma absoluta. E, por isso, posto que todos os indivduos fossem corruptos, eu seria restaurada no meu nmero singular e natureza. E isso evidente por este exemplo: posto que de uma massa de prata se fizessem uma tijela e um pires e depois fossem postos na fornalha; corrompidas as figuras, no se corromperia a prata e estariam nela em potncia outra tijela, outro pires e outra colher e assim por diante.

    Disse a Forma: Eu sou aquela que conserva a substncia ativando, e isso, porque sou fim e a matria conserva a substncia apassivando, visto que se relaciona a mim. E, por isso, na prpria conservao absoluta sou primitiva, a matria, porm, consecutiva. Segue-se a isso que, assim como a gerao existe primitivamente atravs de mim, sua corrupo primitivamente d-se pela matria e de tal modo que eu no seria privada da conservao e da ao, se a matria pudesse sustentar a prpria conservao somente apassivando. Logo, nas substncias corruptveis a matria mais prxima da privao do que eu.

    Mais uma vez disse a Forma: aquilo que foi dito da conservao substancial, o mesmo, a seu modo, pode ser entendido da conservao acidental, por exemplo, a brancura contrada no branco e a negritude no negro, etc., porque a brancura forma acidental, no matria e, por isso, como forma substancial, compete-me a conservao da forma acidental, no porm da matria. E corrompida a brancura no branco, a corrupo em primeiro lugar de parte da matria.

    Disse a Forma: Eu e a matria constitumos intrinsecamente a substncia individuada e a mesma comea por mim, como foi dito; e recebe aumento e extenso por mim, ativando, e pela matria, apassivando; e o aumento a tanto se estende quanto pode ser apassivada a extenso da matria.

    Donde segue a quantidade comum intensa e extensa: intensa por mim, extensa pela matria.

  • 43

    Disse a Forma: Eu sou recebida ativando nos particulares, e a matria como recipiente e sustinente. E isso fica claro pelo seguinte exemplo: o fogo esquenta o ar e, enquanto o esquenta, ativando, faz-se recebido; e apassivando, torna o ar recipiente do calor; e o ar apetece a prpria passividade pela matria, e o fogo apetece a ao por sua forma.

    Disse a Forma: Eu sou ente comparativamente ao ato, e a matria ente em potncia, como aparece claro pelo seguinte exemplo: no ovo est o animal em potncia e no ferro a espada. E isso por parte da matria, que espera a minha ao. E isso assim, porque naturalmente sou primitiva pela ao e a matria consecutiva pela passividade, como foi dito acima. E assim, compete a mim ser em ato e matria ser em potncia.

    Disse a Forma: Eu sou ente determinado, visto que sou ativa; a matria, entretanto, ente confuso, j que passiva. Por causa dessa passividade, existe a confuso na potncia, em razo da matria, no, porm, em razo de mim.

    Disse a Forma: Eu sou ente perfeito e por isso sou apetecvel pela matria. Em razo dessa apetecibilidade comum, apeteo agir na matria e a matria apetece apassivar. Do que segue que a matria aperfeioada por mim, no por si.

    Disse a Forma: Sou movida pelas formas particulares, sendo uma forma particular gerada de outra sob meus princpios inatos supraditos, movidos pelos princpios divinos, como, por exemplo, minha bondade movida pela bondade divina, minha magnitude movida pela magnitude divina e assim dos outros princpios. E isso, efetivamente, pois quanto mais subsisto sob eles, tanto mais sou alta e sublime.

    Disse a Forma: Sou movida pela oitava esfera que me move em Saturno, etc. Sou movida pelos elementos e pelos elementados; pelos corpos celestes, sou celestiada; pelos elementados, sou elementada; pelos vegetados, vegetada; sensvel pelos sensveis; pelos imaginados sou imaginada. Na gua fria sou movida, enquanto sou potncia para ser aquecida, na brancura sou embranquecida pelo branco. Sou movida na gerao e na corrupo, mas no sou movida pela privao, como foi dito acima.

    De novo disse a Forma: No sou ente existindo entre o ser e o no-ser; se fosse assim, o no-ente j seria ente, o que uma contradio. No obstante, por acidente estou perto do no-ente em substncia, existindo em potncia e no em ato, e estou a caminho da corrupo quanto ao seu nmero renovado.

    Novamente disse a Forma: De mim se originam todas as formas particulares e uma vem de outra segundo a via da gerao. De outro modo, uma forma no apeteceria outra para multiplicar a sua espcie; nem haveria sujeito no qual houvesse um movimento sucessivo; e todas essas coisas seriam contra a minha natureza.

    De novo disse a Forma: Sou finita; e todas as minhas partes so individuadas e finitas. Sou naturalmente potente, mas impotente respectivamente ao primeiro, que tem poder infinito e pode agir sobre mim miraculosamente a seu bel-prazer.

    Muitas outras coisas a Forma teria dito de si mesma, mas desistiu por causa da brevidade, dizendo que todas as coisas esto implcitas nisso que foi dito dela mesma. E isso deixamos ao intelecto cientfico, que intui sutilmente.

    Comentrio:

    A maneira que a forma fala, personificada, falando como gente, num dilogo

    tu-a-tu, parece para Llio ser uma forma literria, mas tambm uma intuio quanto

    ao modo de relao entre Deus e as criaturas e as criaturas entre si. Parece tratar-

  • 44

    se de um dilogo csmico e vibrante que se origina na compreenso de Criao

    como filiao divina. Portanto, cada vez, a forma se dirige a Raimundo, Filosofia e

    s Virtudes, para expor a eles sua substncia, o ente que ela na escalao de

    participao dos entes no ser.

    Neste ponto, importante apontar para o fato de que muitos pensadores

    escolsticos, da poca de Llio, mesmo sendo extremamente secos e formais,

    sempre comeavam seus tratados com uma espcie de orao e a partir dela

    decorriam todo o trabalho como uma orao dialogal, como que demonstrando que

    a realidade bsica do ente na participao do ser nada menos que encontro de

    dilogo ressonante com Deus.52

    Quando comeamos a ler este breve texto Da Forma, imediatamente a

    forma se apresenta a modo de definio: Sou o ente que dou o ser coisa. E sou

    absoluta e primitiva, pois que com a matria-prima constituo uma s substncia geral

    de todo o universo.

    Notemos como Raimundo se utiliza de termos como ente, ser, substncia e

    coisa em diferentes tonncias. Ente vem do latim ens, -tis e particpio ativo do

    verbo esse, isto , do verbo ser. Ento, ente (ens) significa em sendo. Ao nosso

    entender corriqueiro ente diz algo esttico, parado, como algo que est ali sem vigor,

    objeto. Ento, acabamos transformando o ente em substantivo, enquanto sua

    origem est numa atuao, numa atualizao, num vigor para o constante vir ao ato,

    portanto, a traduo mais pura ens seria: em sendo. Ente diz tudo aquilo que se refere ao verbo ser, em seu sentido mais geral e

    mais indeterminado. A generalidade e a indeterminao no significa um vazio

    abstrato, como que formal, mas sim uma profunda imensido, uma grandiosa

    vastido, e ao mesmo tempo uma fora, um constante vigor de ser em todos os seus

    detalhes e concretizaes.

    Para melhor perceber o ser como imensido, como profunda vastido,

    donde o em sendo irrompe em todas as suas manifestaes, imaginemos o

    52 Os textos de Santo Anselmo de Canturia so exemplos desse modo medieval de expor a concreo de universo a partir de uma orao dialogal, numa relao entre os entes e entre os entes e o Ser. Busca, por um momento, a Deus, e descansa um pouco nele. Entra no esconderijo de tua mente, aparta-te de tudo, exceto de Deus e daquilo que pode levar-te a Ele, e, fechada a porta, procura-o. (...) dize-lhe: Quero teu rosto, busco com ardor teu rosto, Senhor. (Cf. CANTURIA, SANTO ANSELMO DE, Proslgio. Trad. Angelo Ricci. So Paulo: Abril Cultural. 1973. p 105. (Coleo Os Pensadores, v.4)

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    universo como um imenso mar de constantes pulsaes, de fora vigorosa, em

    inmeras constelaes e diversidades qualitativas e quantitativas. Dessa pulsao

    do bojo-universo irrompem, qual rebento de graciosidade, como ecloses, milhares e

    milhares de entes que surgem, crescem e consumam-se, como isso ou aquilo. Como

    um mar donde vo e vm, surgem e subsomem diversas ondas de diferentes

    tamanhos e fora, qual formaes vivas do todo do mar.

    Outra imagem que nos pode mostrar o modo como Llio compreende a

    dinmica do princpio-binmio matria-forma enquanto formadora da substncia

    nica de todo o universo, uma grande sinfonia csmica, que parte de um imenso

    silncio universal, em que cada acorde, nota, grupos de notas, percusso e

    repercusso, um constante vir fala do abismo de possibilidades do silncio, que

    por muitas vezes permanece obscurecido, mas atuante, em toda a sinfonia. Assim,

    no ser podemos perceber inmeros momentos do mesmo. Primeiro silncio abissal,

    imensido sem limites; depois a mesma imensido e silncio, porm como atuao e

    expanso, e ao mesmo tempo como vazio de passivao e recepo, que

    participante do todo est sempre presente em todas as pulsaes, que indo e vindo

    constituem cada pulsao, vibrao como concreo deste ou daquele ente.

    Se entendermos cada ente como uma irrupo dessa imensido, ento nos

    aproximamos da compreenso do ser como vazio indeterminado, vivo e dinmico.

    Da que a forma se manifesta dizendo: Sou o ente que dou o ser coisa. Ente

    deve ser a coisa como presena de tudo e nada. Tudo e nada numa total e

    simultnea relao de presena e ausncia, como total doao e recepo do ser,

    isto matria e forma. esta dinmica simultnea do todo e do nada que constitui

    como ente, em sendo, que Llio chama de coisa, sendo est ou aquela. A partir

    desta relao de pura passivao do nada e ativao do tudo vo surgindo

    agregaes de coisas como concrees do universo.

    Essa dinmica de pura passividade e pura ativao do todo absoluta e

    primitiva, pois trata-se do primeiro, mais elementar, abrir-se do todo do ser como

    constituindo o uno. Ou seja, uma s substncia como todo, uma s substncia de

    todo o universo. Diz-se substncia pois ele acentua o momento da pregnncia,

    atuao do tudo, no fundo abissal do nada.

    Abismo do nada, gratuidade do ser matria prima ou primeira, isto ,

    potncia receptiva (potencia obediencialis). Forma absoluta diz, por sua vez,

    plenitude absoluta como doao gratuita do ser. Porm, tanto uma como outra se

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    do simultaneamente, desencadeando inmeras pulsaes de percusso e

    repercusso, em doao e recepo, como uma exploso, difuso, expanso,

    deslanchando o movimento criacional.

    Esse modo de dar-se do todo em percusso e repercusso, isto , presena

    absoluta, solta, livre, na difuso do universo, constitui matria e forma como a

    substncia geral de todo o universo. Geral, aqui, significa no somente universal,

    mas tambm genertico, ou seja, generativo, que faz nascer.

    Parece que Llio participava dessa concepo de criao onde o Criador,

    cria o nada, como passividade, plena recepo, gratuidade, como potencia

    obediencialis, como generosidade de recepo, como matria e no mesmo instante

    cria a difuso, a doao de si, como forma. Temos a impresso que este o pano

    de fundo que os medievais tinham quando diziam que Deus criou o universo ex

    nihilo sui et subiecti, que criou o universo a partir do nada, do nada de si, da sua

    liberdade e gratuidade.

    Esse movimento vigoroso generativo-creacional, como toque de doao e

    recepo divina, como ignio de exploso, pode ser o que Llio chama de

    composio absoluta, ou seja, total liberdade no instante do toque.

    Para ns, torna-se difcil compreender composio como percusso e

    repercusso do todo, como na msica, onde cada nota composio do todo em

    sua percusso e repercusso, pois compreendemos composio como ajuntamento,

    disso mais aquilo, como sobreposio de algo mais algo. Llio nos remete para a

    compreenso de composio como efervescncia do ser em pulsaes do todo, em

    percusso e repercusso, que cada vez diz o todo em seu bojo estrutural.

    Nessa composio genertica h um ictus (golpe) inicial que perpassa por

    todas as constelaes de entes, por todos os entes, que acabamos chamando

    estaticamente de bondade, grandeza, durao, poder, instinto, apetite, vontade,

    verdade, prazer e perfeio. Que parecem ser repeties constantes do ictus, em

    inmeras cadeias de repercusses. A isto Llio chamou de princpios inatos, pois

    so anteriores na dinmica da ignio a tudo o que vem fala como percusso e

    repercusso.

    Essa anterioridade de princpios no anterioridade esttica a modo de

    causa e efeito, mas numa relao, diria Llio, da correlatividade concordante, de

    modo que no h um anterior e um posterior. Sendo tudo uma relao de percusso

    e repercusso do ictus inicial, o anterior e o posterior se apresentam como

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    concomitncia de interao, abrindo-se como mundo, como paisagem. Da que nos

    diz a forma: Provindo de todos os princpios inatos, sou ativamente uma nica forma

    absoluta; ativando, existo pela bondade, pela grandeza e assim por todos os outros

    princpios inatos, dos quais sou constituda; e assim sou absoluta.

    Por a percebemos que a forma deve ser vista sob duas perspectivas. Tendo

    em vista o universo como irradiao do ser, onde matria e forma so princpio, meio

    e fim do ictus inicial, lanando-se para a concretizao de todo o universo, como

    primeiro toque para toda a sinfonia genertica do universo; ento a forma e a

    matria so consideradas como substancial, substancialmente. Porm, se essa

    doao e recepo comeam a ser tematizadas, irrompendo neste e naquele ente,

    como pululao vital do bojo-universo, ento forma e matria passam a ser

    consideradas como acidental, acidentalmente. Assim, a possibilidade doadora da

    forma substancial se d como ato; assim sendo, possibilidade doadora, potncia,

    poder para todas as formas particulares ou acidentais, que atuam em instantes da

    concreo de cada ente; como para a doao dada a matria como instante

    receptivo, formam-se, ento, cada vez agentes concretos, substanciais. Assim a

    forma diz: Sou duplamente forma, a saber: substancialmente e acidentalmente. E

    sou en