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eia noite: deita na cama. Vi r a de um lado para o outro. Duas da manhã: olha o relógio e percebe que muito tempo já passou e ainda não conseguiu dormir. Muitos pensa- mentos vêm à cabeça, mas, no fundo, o que se pensa é que é pre- ciso descansar. Conta carneirin- hos, pensa em coisas boas, mas nada adianta. De manhã, o des- pertador toca e há a sensação de ter dormido apenas alguns minu- tos. O dia seguinte será uma luta contra o sono e o cansaço. Se você conhece essa história, saiba que não está sozinho: sete entre dez brasileiros têm problemas com o sono. As crises de insônia são geral- mente causadas por fatores emo- cionais como tristeza, preocu- pação e ansiedade. A incapaci- dade de dormir constitui um dos três grupos em que se dividem os mais de 80 tipos de distúrbios do sono. Completam o quadro as parassonias – da qual fazem parte o sonilóquio (falar dormin- do), os pesadelos, o terror noturno (gritar e chorar), o so- nambulismo, a enurese noturna (o popular “fazer xixi na cama”) – e as hipersonias (vontade de dormir durante o dia, causada por uma noite mal dormida). Todos os distúrbios causam trans- tornos físicos e psicológicos em seus portadores, que, freqüente- mente, demoram para procurar ajuda. Para a psicóloga Ana Lúcia de Mello Franco, o motivo da maio- ria dos distúrbios são problemas psicológicos. Após descobrir o que causa o sentimento de estresse ou angústia, o paciente consegue d o rmir melhor. Mas, para ela, é necessário investigar também as causas físicas: a menopausa e a adolescência, por exemplo, alte- ram hormônios e, conseqüente- mente, os padrões de sono. “Em todos os meus anos de prática, nunca me procuraram unicamente por falta de sono ou qualquer outro problema re l a- cionado a ele. A questão é sem- pre maior: são pessoas que sofrem de estresse ou angústia profundos. É muito comum al- guém com síndrome do pânico, por exemplo, não conseguir dor- mir, porque tem medo de perder o controle e não consegue en- frentar seu inconsciente”, explica a psicóloga. A terapia é fundamental para ajudar a pessoa a entender de onde vem seu problema com o sono. Falar sobre ele e lidar com questões enraizadas no incons- ciente costumam ser libert a d o r a s e acabam ajudando o paciente a dormir. Segundo Ana Lúcia, uma noite mal dormida pode causar desde uma simples irritação durante o dia até sintomas de angústia profunda. O estudante de desenho indus- trial Filipe Aviz costuma ter crises de insônia quando está sob estresse. Equilibrar trabalho, fa- culdade e vida social se tornam fatores que resultam em noites mal dormidas. “Demoro a pegar no sono porque fico muito an- sioso, tentando solucionar pro- Julho/Dezembro de 2003 32 BEATRIZ CAILLAUX, BEATRIZ KISTLER, MARIA VIANNA E PATRÍCIA FADEL Uma boa noite de sono está relacionada à saúde física e mental De olhos bem fechados A terapia é fundamental para ajudar a pessoa a entender de onde vem seu problema com o sono

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eia noite: deitana cama. Vi r ade um lado parao outro. Duas damanhã: olha o

relógio e percebe que muitotempo já passou e ainda nãoconseguiu dormir. Muitos pensa-mentos vêm à cabeça, mas, nofundo, o que se pensa é que é pre-ciso descansar. Conta carneirin-hos, pensa em coisas boas, masnada adianta. De manhã, o des-pertador toca e há a sensação deter dormido apenas alguns minu-tos. O dia seguinte será uma lutacontra o sono e o cansaço. Sevocê conhece essa história, saibaque não está sozinho: sete entredez brasileiros têm pro b l e m a scom o sono.

As crises de insônia são geral-mente causadas por fatores emo-cionais como tristeza, pre o c u-pação e ansiedade. A incapaci-dade de dormir constitui um dostrês grupos em que se dividem osmais de 80 tipos de distúrbios dosono. Completam o quadro asparassonias – da qual fazemparte o sonilóquio (falar dormin-do), os pesadelos, o terro rnoturno (gritar e chorar), o so-nambulismo, a enurese noturna(o popular “fazer xixi na cama”)

– e as hipersonias (vontade dedormir durante o dia, causadapor uma noite mal dorm i d a ) .Todos os distúrbios causam trans-tornos físicos e psicológicos emseus portadores, que, freqüente-mente, demoram para procurarajuda.

Para a psicóloga Ana Lúcia deMello Franco, o motivo da maio-ria dos distúrbios são pro b l e m a spsicológicos. Após descobrir o quecausa o sentimento de estresse ouangústia, o paciente consegued o rmir melhor. Mas, para ela, énecessário investigar também ascausas físicas: a menopausa e aadolescência, por exemplo, alte-ram hormônios e, conseqüente-mente, os padrões de sono.

“Em todos os meus anos deprática, nunca me procuraramunicamente por falta de sono ouqualquer outro problema re l a-cionado a ele. A questão é sem-p re maior: são pessoas quesofrem de estresse ou angústiaprofundos. É muito comum al-guém com síndrome do pânico,por exemplo, não conseguir dor-mir, porque tem medo de perdero controle e não consegue en-frentar seu inconsciente”, explicaa psicóloga.

A terapia é fundamental paraajudar a pessoa a entender deonde vem seu problema com osono. Falar sobre ele e lidar comquestões enraizadas no incons-ciente costumam ser libert a d o r a se acabam ajudando o paciente ad o rm i r. Segundo Ana Lúcia, umanoite mal dormida pode causardesde uma simples irr i t a ç ã odurante o dia até sintomas deangústia pro f u n d a .

O estudante de desenho indus-trial Filipe Aviz costuma ter crisesde insônia quando está sobestresse. Equilibrar trabalho, fa-culdade e vida social se tornamfatores que resultam em noitesmal dormidas. “Demoro a pegarno sono porque fico muito an-sioso, tentando solucionar pro-

Julho/Dezembro de 200332

BEATRIZ CAILLAUX, BEATRIZ KISTLER, MARIA VIANNA E PATRÍCIA FADEL

Uma boa noite de sono está relacionada à saúde física e mental

De olhos bemf e c h a d o s

A terapia é fundamental para

ajudar a pessoa a entender

de onde vem seu problema com o sono

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blemas que não consegui resolverdurante o dia. Não consigo re-laxar na hora de deitar na ca-ma”, explica Aviz. Quando o so-no não vem, ele apela para oscalmantes. “Sei que não faz bem,estou tentando aprender a medi-tar para ver se durmo tranqüila-mente”, acrescenta.

Lutar contra o sono faz partedo cotidiano da estudante de psi-cologia Mônica Montone. Desdecriança ela prefere ler, estudar eescrever à noite. Assim, se acostu-mou ao horário e não pretendemudar seus hábitos. Mas issoatrapalha. “Às vezes, não consi-go ir para a faculdade e durmodurante as aulas”, diz Mônica,que estuda pela manhã. Noentanto, em momentos de muitoe s t resse, como quando lançouseu livro Mulher de minutos, elarecorreu a um tratamento alter-nativo. “Tentava não tomarcoca-cola e não fumar à noite,mas não adiantava. Resolvi,então, me tratar com homeopa-tia, o que me estabilizou”, conta.

A homeopatia é apenas um dostratamentos alternativos paratratar dos distúrbios do sono. Háoutros recursos, como a acupun-tura, que estimula pontos docorpo com agulhas, e a cromote-rapia, que busca a cura atravésdas cores do espectro solar, ouseja, do arco-íris, e de suas vi-brações magnéticas. “Cada cam-po celular tem sua vibração ca-racterística e emite do seu núcleouma coloração própria. Quandoesse corpo entra em disfunção, avibração da cor decai, porque alihá uma deficiência. Então faze-mos uma correção, incidindocores diretamente no local”, ex-

plica a terapeuta Vera Lucia Bar-bosa Sobreira.

Para a insônia, a cor mais indi-cada é o azul, que transmite sen-sações de calma e paz. Já paraquem dorme demais, são usadoso vermelho e o amarelo. Vera uti-liza também a cro m o p u n t u r a ,que é a cromoterapia (cromo =c o res) aplicada nos pontos daacupuntura. “Na orelha, um dosdois pontos básicos para cuidardos problemas do sono é o ShenMen, que acalma as ondas docoração e as vibrações. Direcio-namos uma luz colorida nele e oefeito é muito rápido”, explicaVera.

O excesso de sono tambémpode ser um problema. É o casoda estudante de comunicaçãosocial Nathalie da Cunha Mayor.“Acordava para ir à faculdade e,num determinado momento, euapagava. Não dava nem parasaber se era uma sonolência dealguns segundos ou se demoravamuito tempo, eu ‘saía do ar’ e, derepente, voltava. Não é aquelesono de quem não dormiu, dequem está cansada; é como sefosse um apagão mesmo”, expli-ca Nathalie, que descobriu queeste problema era causado poruma rara anemia.

Um distúrbio menos conhecido

Boas Noites 33

A terapeuta Vera Lucia utiliza um aparelho de cromopuntura para tratar apaciente

Patrícia Fadel

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é a paralisia do sono. A advoga-da Márcia Sampaio só descobriuque tinha este problema quandocomeçou a fazer análise. “Fuiparar na terapia por causa deuma depressão profunda e decrises de pânico. Acordava nomeio da noite sem conseguir memexer, achando que ia morrer.Só depois é que a terapeutaentendeu o que acontecia e meexplicou porque eu tinha essascrises”, diz Márcia. A paralisia émais comum em pacientes comquadro de depressão, já que é oestado de ansiedade intensa queleva uma pessoa às crises.

A fisiologia do sonoO sono é uma alteração norm a l

da consciência e uma fase fisi-ológica necessária do org a n i s m o .Ele se divide em duas fases: umacom movimentos oculares rápi-dos (sono REM – Rapid Eyes Mo-v i m e n t, em inglês) e outra sem(sono não-REM). O sono começana fase não-REM e vai altern a n d ocom a fase REM a cada 70 ou 110minutos, completando de quatroa seis ciclos por noite. No últimoterço do sono se dá a maior quan-tidade do tipo REM.

Na fase não-REM, atividadesfisiológicas como a pressão arte-rial, os movimentos intestinais e

as freqüências cardíaca e respi-ratória são mantidas em umnível de funcionamento mínimo.Essa fase possui quatro estágios,em que o sono vai se aprofun-dando gradativamente – nos últi-mos dois, correspondentes a 10%ou 15% do tempo total, o sono étão profundo que chega a ser difí-cil despertar alguém e, quandoisso acontece, a pessoa pode semostrar confusa ao acordar.

Já a fase REM, que dura de 20 a25% do período, o sono não éleve nem profundo, mas qualita-tivamente diferente. Nela, hávariações na pressão arterial, nofluxo sangüíneo cerebral e nasf reqüências cardíaca e re s p i r a-tória. Ocorre um re l a x a m e n t omuscular profundo e generaliza-do, interrompido às vezes porcontrações de pequenos gruposmusculares.

Dormir bem é uma forma deprevenir o câncer, como mostrampesquisas desenvolvidas pelo pro-fessor David Spiegel, da Uni-versidade de Stanford, nos Es-tados Unidos. De acordo comseus estudos, o sono irre g u l a raltera a produção dos hormônioscortisol e melatonina, fundamen-tais para o equilíbrio do organis-mo. Spiegel conta que alteraçõesno ciclo de cortisol estão pre-

sentes em mulheres com altorisco de terem câncer de mama eque a melatonina, um antioxi-dante fundamental, precisa estarbem regulada para pre v e n i rdanos capazes inclusive de pro-vocar câncer ao DNA.

O sono é pesquisado tambémno Brasil, em lugares comoInstituto do Sono, fundado em2001, no Rio de Janeiro. Emmédia, 20 pessoas por mês bus-cam o diagnóstico através dapolissonografia, técnica em que opaciente passa pelo menos seishoras em um quarto projetadopara atrair o sono, e que contaaté com isolamento acústico. Fiosregistram num computador da-dos como concentração de oxi-gênio no sangue, movimentosdas pernas, respiração, além dosresultados de exames como oeletroencefalograma.

Segundo o coordenador do cen-t ro, o neurologista Márcio Be-z e rra, os distúrbios podem sercurados ou atenuados, com trata-mentos que variam de aparelhosorais às cirurgias, passando porremédios. “É importante estudaros transtornos do sono até porcausa do impacto social e e-conômico que causam. Quemtem apnéia do sono (interrupçãoda respiração) corre um risco sete

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• Use a cama apenas para dormir: não coma, nãoleia, não assista televisão e não fume;• Não permaneça na cama se estiver sem sono;• Tenha rituais agradáveis na hora de deitar:medite, ore ou adote uma técnica de relaxamento;• Não lute contra os pensamentos, apenas penseque o dia seguinte trará uma nova oportunidadede resolver problemas;• Evite frio ou calor excessivos;

• Não durma comfome, mas evite re-feições pesadas ealimentos com tira-mina, como tomate, batata e espinafre;• Não tome bebidas alcoólicas ou com cafeína;• Não pratique atividades estimulantes perto dahora de deitar;• Não olhe para o relógio toda vez que acordar.

Dicas para uma noite bem dormida

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vezes maior de sofrer um aci-dente automobilístico, e quemtem insônia, corre um risco deduas a três vezes maior que umapessoa normal. A catástrofe deChernobyll foi causada por umproblema de sono”, diz o médico.

O sonho Os laboratórios de sono mos-

traram que sonhar não é algor a ro, ao contrário do que se pen-sava no passado. Os sonhos sãovivências visuais, raramente o-c o rrendo percepções auditivas,olfativas ou táteis, e segundo apsicóloga Ana Lúcia, eles são fun-damentais para manter a saúdemental. É durante a fase REM queo c o rre a maior parte deles e, em60 a 90% dos casos, os indivíduosconseguem se lembrar do queestavam sonhando se despert a-dos. A maioria das pessoas sonhavárias vezes durante a noite, masse acord a rem depois de 8 minutosde sono REM, não se lembrarãomais de seu conteúdo.

Ao longo dos tempos, os sonhosforam interpretados das maisdiversas formas. Ainda hoje, ossignificados são contro v e rt i d o s ,pois cada cultura tende a buscar

uma interpretação a partir deseus símbolos, crenças e valore s .No século XIX, o sonho foi toma-do como modelo de insanidade,quando o francês Moreau deTours afirmou que “a loucura é osonho do homem acordado”. Osonho já foi considerado a origemde todas as religiões devido àssuas visões arrebatadoras, con-f o rme defendeu o antro p ó l o g oinglês Edward Burnett Ty l o r. Hoje,ambas as teorias foram abando-nadas, mas outra idéia da épocaresiste: segundo o escritor Gerardde Nerval, o sonho é um modelof é rtil para a compreensão dacondição humana.

O próprio Sigmund Freud viunos sonhos uma chance de en-tender melhor a mente. No livroA interpretação dos sonhos, de1900, o psicanalista austríacodefende que o sonho não é umproduto aleatório e sem sentido,tampouco um “mensageiro doalém”. Ele é um fenômeno psí-quico extremamente revelador dedesejos e temores, ainda que deforma indireta e disfarçada.

Segundo seus estudos, o sonhopode mascarar um desejo atravésde três recursos: da condensação

(fusão de duas ou mais re p re s e n-tações), do deslocamento (pas-sagem da energia de uma re p re-sentação à outra) e da figurabili-dade (desejos transformam-se emimagens visuais). É desta maneiraque um desejo reprimido podepassar à consciência. Assim, Fre u dconclui que o sonho é o re s u l t a d ode uma negociação entre o incon-sciente – que quer expulsar os dese-jos para a consciência – e o cons-ciente, que busca impedir isso.

• D o rmir de três a sete horas por noite,durante uma semana: alteração no estadode alerta e nas funções motoras;• Somar 8 horas a menos de sono em umasemana: sintomas de estresse, raiva, tris-teza, angústia e problemas de memória;• Uma noite em claro: tempo de reaçãomais lento e problemas para ler e escrever;• Dormir menos de 6 horas por noite:reações lentas, o dobro de tempo para

cumprir tarefas simples, exaustão, queda dosistema imunológico, queda na produção

de insulina e envelhecimento precoce.Obs: especialistas recomendam que pes-soas que não conseguem dormir o sufi-ciente durante a noite tirem “sonecas”c ronometradas de 20 a 90 minutos.

Acordar em meio a esse tempo interrompeum ciclo REM, causando mais sono, cansaço,

irritação e uma leve desorient a ç ã o .

Os efeitos das horas a menos

Boas Noites 35

Um dos quartos do Instituto do Sono,com o equipamento usado pararealizar a polissonografia

Patrícia Fadel