De Pés e a Ferros

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_________________________________________________________ “De Pés e a Ferros” – Elio Eugenio Müller 1 ˘˟˜ˢʳ˘˨˚˘ˡ˜ˢʳˠ˟˟˘˥ʳ ˗˸ʳˣͼʳ˸ʳ˴ʳ˙˸ʳ Coleção Memórias da Figueira Volume: I Editora – AVBL 2009

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"De Pés e a Ferros" é o primeiro volume da Coleção Memórias da Figueira e aborda a fase inicial da colonização alemã no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Os colonos, imigrantes, ficaram inicialmente acantonados na Vila de Tôrres e em seguida, um grupo, formado por protestantes. foi enviado para o vale do rio Três Forquilhas.O livro abrange o período de 1826 e 27, enfocando a instalação da Colônia Alemã de Três Forquilhas (área onde atualmente temos os municípios de Itati, Três Forquilhas e Terra de Areia).Personagens em destaque: Coronel Francisco de Paula Soares Gusmão, Pastor Carlos Leopoldo Voges, os genearcas Justin, Jacoby, Schmitt, König, Petersen, Schütt, Brehm, Feck, Niederauer, o médico Zinckgraf, Eberhardt, Mittmann, Engel, Helbig, Mauer, Sparremberger, Bobsin, Marlow, Gross, Knewitz, entre outros.As Bíblias da British and Foreign Bible Society solicitadas pelo pastor Voges. As Memórias da Figueira. O pastor Voges estende a mão ao Padre Frei Serrano. O batismo de João Niederauer Sobrinho. Os pioneiros imigrantes e sua coragem.

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Coleção Memórias da Figueira Volume: I

Editora – AVBL

2009

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Índice para catálogo sistemático:

1. Contos: Literatura Brasileira - CDD-869.93

Copyright © - ELIO EUGENIO MÜLLER [email protected] - [email protected]

DE PÉS E A FERROS

ISBN: 978-85-98219-49-3

Direitos reservados segundo legislação em vigor

Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização do autor.

EDITORA AVBL

www.editora.avbl.com.br e-mail: [email protected]

MÜLLER, Elio Eugenio “De Pés e a Ferros – Coleção Memórias da Figueira – Volume: I” – Elio Eugenio Muller -- Curitiba/PR. Editora AVBL, 2009. -- Bauru/SP 150p. il. 14,8 X 21 cm. ISBN: 978-85-98219-49-3

1. Contos: Literatura Brasileira. I. Título.

03-06-09 CDD-869.93

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“De Pés e a Ferros” Coleção Memórias da Figueira - I

O início da Colonização Alemã no vale do rio Três Forquilhas

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ÍNDICE

- AGRADECIMENTOS 6 - PALAVRA AO LEITOR 7 - MEMÓRIAS DA FIGUEIRA 11

- A idade da figueira 13 - A chegada dos colonos alemães 14

- SEMEAR OU PERDER A SEMENTE 16

- Descobrindo o vale do rio Três Forquilhas. 18 - O primeiro Natal na Colônia 20 - Reunião dos Colonos 26 - A Ceia do Natal 32 - Hora de dormir 37

- MELHOR SERIA IR PARA A GUERRA... 40

- Reunião com Paula Soares 44 - O culto do preparo 51

- “DE PÉS E A FERROS...” 58

- Uma casa desocupada vira escola 60 - UM TEMPORAL QUE TRAZ UM PRESENTE VALIOSO 66

- Ficha de proposta para integrar o Eforado 69 - Texto da Carta do Pastor Voges à (...) 72 - Análise da Carta de pastor (...) 77 - Que haja uma esperança enquanto existimos... 78

- O PROGRESSO CHEGOU 83

- Nasce a primeira criança na nova Colônia 86 - A navegação pela Lagoa 91

- O PASTOR ESTENDE A MÃO AO PADRE 95

- Médico, sempre é bom ter mais que um 98

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- “Te amo mais do que tudo no mundo...” 100 - Leite é que não falta... 102

- NASCE O PRIMEIRO HOMEM DA COLÔNIA 107

- O batismo de João Niederauer Sobrinho 109 - A Colônia ganha mais vida 112 - A sensação da solidão e do isolamento 115 - Cada perda é única 124 - Uma história de partos e de sacrifícios 127

- A TERCEIRA LEVA DE COLONOS 132

- Uma Carta ao Imperador 134 - Texto da Carta ao Imperador D. Pedro I 137 - Análise da Carta ao Imperador 138

- CONCLUSÃO 140 - DADOS BIOGRÁFICOS DE JOSÉ FELICIANO (...) 141 - DADOS BIOGRÁFICOS DE FRANCISCO DE (...) 142 - FONTES DE CONSULTA 144 - NOTAS EXPLICATIVAS 145 - FIGURAS em “De pés e a Ferros”. 149 - COLEÇÃO MEMÓRIAS DA FIGUEIRA 150

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AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus fonte da vida e de toda a boa

inspiração, que me permitiu a realização desta obra. Que estas memórias sirvam como um instrumento para a edificação do Seu Reino sobre a terra.

À Doris, minha esposa, pelo permanente

incentivo, como companheira valorosa, ao longo destes 40 anos de pesquisa e trabalho, que me ajudou a localizar e dar vida aos personagens, muitos dos quais parentes dela, que viveram esta saga contada em "Memórias da Figueira".

À Profa. Dra. Solange T. de Lima Guimarães (Sol

Karmel), amiga e conselheira, pela avaliação da obra e orientação final, mediante a criteriosa revisão do texto de "Pés e a Ferros".

Ao publicitário Rodrigo Sounis Saporiti pela

orientação, na fase inicial, para a escolha do formato literário da obra.

À escritora Maria Inês Simões, Presidente da

Academia Virtual Brasileira de Letras - AVBL, pela orientação na fase de publicação do livro.

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PALAVRA AO LEITOR Para início de conversa quero explicar aos leitores

o sentido do termo “De pés e a ferros”. O termo era usado em épocas antigas, para denominar dois tipos de partos difíceis. Havia o parto somente “a ferros”, quando realizado mediante o uso de instrumento de metal (por exemplo, o uso de duas colheres de ferro ou fórceps), para extrair o bebê do útero materno. Havia também o parto “de pés”, ou parto pélvico, quando a posição do bebê era ao contrário, sentado no útero, e nascia pelos pés e, às vezes, também com a ajuda de ferros.

“De pés e a ferros” não foram apenas alguns

partos difíceis, ocorridos nos primórdios da colonização alemã da região de Torres, no Litoral Norte, da então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.

“De pés e a ferros” foi, no meu entender, o

nascer da Colônia Alemã de Três Forquilhas. “De pés e a ferros” foi também este trabalho

de pesquisa, que já vem completando quarenta anos, que permitiu a elaboração desta obra que denomino de “MEMÓRIAS DA FIGUEIRA”, desenvolvido em meu reduto e refúgio do “Sítio da Figueira”, em Itati/RS.

Para a viagem literária, pelas “MEMÓRIAS DA

FIGUEIRA”, no propósito de enfocar aspectos da história do povo onde resido, confesso: - Recebi uma forte influência do grande escritor Carlos Drummond de Andrade. Ele me proporcionou um mundo novo e uma descoberta que transformou o meu universo literário e, por que não dizer, invadiu até o meu mundo real.

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Observem que Drummond (1981) registra, na minha compreensão, um toque de ficção espetacular em “Contos Plausíveis”:

“Não é mistério para os entendidos que há

uma linguagem das plantas, ou, para ser mais exato, que a cada planta corresponde uma linguagem. Como a variedade de plantas é infinita, faz-se impossível ao entendimento, por muito atilado que seja, captar todas as vozes de vegetais. E só os mais perspicazes entre os humanos conseguem entender a conversa entre duas plantas de espécies diferentes: cada uma usa o seu vocabulário, como por exemplo, num diálogo em que A falasse em espanhol e B respondesse em alemão”. Além de Drummond veio à minha mente o

também grande escritor Monteiro Lobato. Ele criou um sabugo falante – Visconde de Sabugosa -, e uma inteligente boneca – Emilia -, perspicaz e não menos falante, dentre outros personagens do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”.

A partir destas influências recebidas, o “Sítio da

Figueira”, que a minha esposa herdou em 1970, no atual município de Itati, no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, foi transformado num espaço criativo. Um espaço que passou a envolver meus planos e minhas propostas, de ação pedagógica e cultural, direcionados para a população local.

Fiquei encantado com antiga figueira que ali vive

há muito mais do que uma centena de anos. Em torno desta figueira começaram a surgir, para mim, personagens reais e fictícios, do mundo natural, de fauna e flora.

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Observei, por exemplo, duas corujas que ali haviam estabelecido habitação. Além do ninho, elas encontraram nessa árvore alimento, que consistia na caça a morcegos que à noite ali circulavam, além dos figuinhos, que amadureciam no outono.

Surgiu a idéia de criar a “Confraria Coruja da

Figueira”, um movimento voltado para uma ação ampla em defesa do meio ambiente. Este movimento foi coroado de sucesso. Hoje, pode ser encontrado até no mundo virtual, em página da Internet http://confrariacoruja.ning.com.

A figueira passou a ter um significado ainda mais

abrangente, para mim, e para o meu universo literário e criativo.

Memórias da Figueira é, portanto, a narrativa

de histórias antigas da Colônia Alemã de Três Forquilhas que tiveram como testemunha silenciosa, a mais que centenária figueira, que ainda hoje se eleva altaneira, em meu Sítio, no município de Itati (RS). Contam os antigos que naquele local, uma vez, existiram três figueiras. Esta, que hoje ali vemos, pode ser uma das três que tenha sobrevivido, ou então, talvez seja a filha de uma delas.

Nas Memórias da Figueira, neste seu primeiro

volume, sob o título “De pés e a ferros” quero falar sobre o nascimento complicado e difícil desta colonização de Torres.

Não fosse a teimosia do Comandante Philipp Peter

Schmitt, não fosse a visão clarividente do Coronel, do Exército Imperial, Francisco de Paula Soares Gusmão, não fosse o dinamismo do pastor Carl Leopold Voges e o

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heroísmo de todos os colonos pioneiros que acreditaram na idéia, esta Colônia não teria nascido.

Através das páginas deste primeiro volume, de

uma série, quero homenagear os colonos pioneiros. Estas páginas foram escritas sob a forma de uma narrativa romanceada, apresentada mediante diálogos fictícios, criados a partir da imaginação do autor, porém sempre tendo por pano de fundo a história ocorrida nesta região, a partir do ano de 1826.

Quero conceder realce para a tocante epopéia

destas famílias e, ao mesmo tempo, lembrar o agora já 180º aniversário de surgimento desta Colônia.

Desejo a todos, leitura prazerosa, com o voto

latino: Lectori salutem! (ao leitor, bom proveito!).

ITATI (RS), 03 de junho de 2007

ELIO EUGENIO MÜLLER Membro da Academia de Letras dos Municípios do Rio Grande do Sul

– ALMURS –

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MEMÓRIAS DA FIGUEIRA

Sentado à sombra da figueira, pensei: - “Esta figueira1 viu muita coisa, neste lugar. A memória dela deve ser captada por alguém... Alguém que tenha a sensibilidade e a persistência, para estabelecer um diálogo”. Lembrei de Drummond e do seu personagem Levindo, o jardineiro, em “Fala Vegetal”:

“Levindo, experiente, chegou a dominar as

linguagens que se entrecruzavam no jardim. Um leigo diria que não se escutava nada, salvo o zumbir de moscas e besouros, mas ele chegava a distinguir o suspiro de uma violeta, e, suas confidências ao amor-perfeito não eram segredo para os ouvidos daquele homem.” (DRUMMOND, 1981, p.). Peguei uma cadeira velha, da cozinha da nossa

casa centenária e com calma e em silêncio sentei-me à sombra da figueira. O tempo foi passando. Não olhei para o meu relógio, pois as árvores não seguem a nossa marcação das horas. Fiquei envolto pelo ambiente vegetal e, sem perceber direito, mergulhei no mundo da figueira.

No princípio ouvi apenas um farfalhar de folhas,

dos galhos, sacudidos pelo vento. Pensei: - “É apenas o vento. A figueira não vai querer conversa comigo. Ela já sofreu muito com os humanos. Com certeza não confia mais na raça humana...”.

Eu estava enganado. A figueira já me conhecia há

quase quarenta anos, pois passara a contar com a minha atenção, para protegê-la contra os vândalos.

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Figura 1: O autor conversando com a figueira (Fotografia de Cristiane Müller Sounis Saporiti, 2008.

Arte final do autor, 2009).

Eu conseguira que a Câmara de Vereadores de Itati aprovasse um decreto, instituindo a figueira como “Símbolo Ecológico do Município” e “Patrimônio Natural da Itati”. Não sei de que forma, mas ela deve ter tomado conhecimento desta conquista, em favor do reconhecimento de seu valor real e simbólico, para a população local.

Eu estava até um pouco distraído, olhando as

borboletas e um colibri que esvoaçavam em torno dela procurando pelas florzinhas de plantas e parasitas, na coleta de alimento. A princípio ouvi um sussurro, macio e melodioso e que se tornou cada vez mais audível.

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Finalmente captei algumas palavras. A figueira dizia: - “Amigo, o que fazes aqui, com esse livro e essa caneta?”.

Olhei, com espanto. Era necessário “espantar”,

sim, o assomo de incredulidade, que anuviou meu pensamento. Fechei os olhos e respondi: - “Amiga figueira, tenho dificuldade para acreditar que aceitaste estabelecer comunicação comigo. Podemos conversar um pouco?”.

Ela respondeu: - “Podemos conversar o tempo

que tiveres. Sei que o teu tempo é bem diferente do meu. Tenho todo o meu tempo disponível, na ocasião que lhe for mais adequada...”.

A idade da figueira. O encanto tomou conta de minha mente. Eu não

podia perder tempo. Era preciso trabalhar, com afinco, aproveitando da melhor forma o contato, que ela estabelecera comigo.

Algo que nunca me saía da mente, era a questão

da idade da figueira, me recordando quantas pessoas já haviam perguntado a esse respeito e não soubera responder. Criei coragem e perguntei: - “Amiga figueira. Qual é a tua idade?”.

Ela respondeu: - “Sou de um tempo muito antigo.

Na nossa realidade não temos nem calendário e nem datas. Temos apenas épocas e acontecimentos”.

- “Qual é a época mais antiga que tens, registrada

em tua memória?” - Eu quis saber.

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Ela continuou: - “Ora. Carrego, registrada em minha memória, a memória de minhas antepassadas. É do tempo quando aqui somente viviam aqueles que vocês chamam de índios. Eles moravam aqui e se entendiam muito bem conosco, procurando a harmonia com as árvores, com o rio... Enfim, com toda a natureza. O entendimento dos índios a nosso respeito, e o nosso sobre eles, era de verdadeira amizade. Depois vieram pessoas de outros lugares. Gente que chegou para logo enxotar os índios. Os habitantes nativos não souberam mais, desde então, qual o lugar que ainda era deles. Os invasores, não só agrediram os índios... Eles agrediram tudo, a floresta, o rio, os bichos e, tudo o mais...”.

A chegada dos colonos alemães

Pedi licença à figueira, para continuarmos em

nosso diálogo: - “Amiga figueira. Ouvi esta história sobre o sofrimento dos índios, desde o meu tempo de infância, na escola. Mas não imaginei que a relação dos chamados brancos, com toda a natureza fora tão drástica... Posso te perguntar outra coisa, que desperta a minha curiosidade há quarenta anos, quando em 1969, pela primeira vez aqui pisei?”.

A figueira sorriu: - “Lembro-me bem daquela

época... Não esqueço quando já em 1970 tu aparecias aqui, só tendo olhos para a Doris. Tu estavas tão apaixonado que quase não conseguias ver a minha presença. Passavas por mim, de passos compridos... Mas fale, pergunte. Sou, toda, ouvidos... O que estiver guardado em minha memória haverei de contar para ti, com todo o prazer.”.

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Acho que fiquei um pouco ruborizado com essa indiscrição. Eu nem imaginava que eu fora tão desatento com a amiga figueira. Mas o que ela dizia, era verdade. Minhas idas ao Sítio da Figueira haviam sido, sempre, em razão de Doris. Estava interessado em cativar o coração dela, com os meus agrados. Eu vinha com rosas e abraços apaixonados...

Continuei o diálogo: - “Bem, amiga figueira.

Desde que aqui cheguei, ouvi histórias, contadas pelas pessoas mais idosas deste lugar... Histórias a respeito da chegada dos imigrantes alemães que aqui se estabeleceram. Colonos que aqui desejavam viver, para buscar um futuro melhor para eles e para seus descendentes... Tens algum registro a esse respeito?”.

- “Oh! Se eu tenho?”. - Disse a figueira. - “É a

época que no calendário de vocês levou o número de 1826. Guardo vivamente este acontecimento. Era a semana que antecedia o dia do Natal. O Natal... Essa festa cristã importante, que vocês comemoram. Eles vieram do acantonamento2 de Torres (RS), onde viviam em agonia, esperando por seus lotes de terra”.

E então, a figueira começou a fazer o relato de

suas memórias, iniciando pela história do “Semear ou perder as sementes”.

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SEMEAR OU PERDER A SEMENTE O comandante Schmitt falou: - “Ou semeamos ou

perdemos a semente. Não temos outra escolha”. Ele se encontrava diante do Coronel Francisco de

Paula Soares, diretor da Colonização, no Baluarte Ipiranga, em Torres, no Litoral Norte da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. O imigrante estava acompanhado pelo seu intérprete, o pastor Carlos Leopoldo Voges.

Visível era a preocupação estampada no rosto do

Comandante Schmitt. E ele continuou: - “Faz quase um mês que aqui estamos acantonados, aguardando por uma solução, para nos designarem as terras que nos foram prometidas. Trouxemos sementes de trigo, de aveia, e outras mais... Elas são muito valiosas e tendem a se perder, se não forem colocadas na terra, com urgência”.

O Coronel Paula Soares examinava o interlocutor

com muita atenção. Finalmente falou: - “Confesso que encontro dificuldades para a designação das terras para a Colonização Alemã em Torres. Esse problema já vem me tirando o sono. Sei que as terras no vale do Mampituba não estão agradando a ninguém. Com certeza é um terreno que não corresponde ao sonho do Visconde de São Leopoldo, que foi o idealizador de uma Colônia nesta localidade”.

Paula Soares permaneceu pensativo por alguns

instantes. Observou atentamente os dois interlocutores. Finalmente concluiu: - “Hoje terei que fazer algo que irá ferir o projeto original desta colonização, definida pelo então Presidente da nossa Província, Dr. Fernandes

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Pinheiro. Em minhas andanças por esta região eu vi um lugar muito mais propício para receber as vossas lavouras. Trata-se do vale do rio Três Forquilhas. Pretendo assentá-los lá...”.

Figura 2: O Coronel Paula Soares (e pastor Voges traduzindo suas palavras...) Gravura feita pelo autor, 1974.

Depois que pastor Voges traduziu estas palavras,

Paula Soares continuou: - “Apenas peço que, por enquanto, não divulguem esta minha providência entre os colonos. O trabalho terá que andar em surdina. Por isto, solicito que os senhores escolham um grupamento de aproximadamente dezesseis casais jovens, sem filhos, ou solteiros, para que os mesmos nos acompanhem nesta viagem. Um agrimensor nos acompanhará. Permito que alguns dos casais colaborem com o Comandante Schmitt, na abertura de roçados e instalações de lavouras, para a semeadura pretendida. Os demais ficarão à disposição do agrimensor, para realizar um mapeamento do terreno, que permita a futura medição e distribuição de lotes para os colonos do credo protestante”.

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Comandante Schmitt, ao ouvir esta tradução, mostrou-se emocionado. Ele se emocionava facilmente... Aproximou-se da mesa de Paula Soares, para agradecer, com lágrimas nos olhos: - “O senhor é merecedor de minha grande admiração. Com certeza ficaremos lhe devendo a nossa eterna gratidão!”.

Quando apertaram as mãos, Paula Soares notou

algo peculiar no cumprimento e acrescentou: - “Senhor Schmitt. Eu já notei isso, nestes últimos dias, diante da sua insistência por um pedacinho de chão para a semeadura de vossas preciosas sementes trazidas da Europa. Agora me veio a certeza... Estamos irmanados em um mesmo ideal de servir o Arquiteto e Soberano do Universo”.

Descobrindo o vale do rio Três Forquilhas

As dezesseis famílias, de colonos alemães jovens

e voluntários, agora já se encontravam nesta área, fazia cinco dias. Era tempo de verão. Os dias pareciam ser mais longos que na Europa... Dias geralmente ensolarados... Muito sol e muito calor, com muito mormaço, às vezes sufocante... E surgiam aparentemente do nada, ocasionais chuvas... Eram as chamadas chuvas de verão, chuvas passageiras, rápidas. Admirável era o número de borboletas, esvoaçando sobre a relva, em busca de flores, nas muitas clareiras, junto à margem do rio Três Forquilhas. Muitos pássaros, esvoaçando pelo ar e fazendo ouvir seus trinados melodiosos... As águas límpidas jogavam reflexos de luz contra a vegetação, tão abundante e rica, em todo o vale. E a floresta, até então intocada, virgem, lhes parecia assustadora, desafiadora, com suas sombras e ruídos...

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Vemos o jovem pastor Carlos Leopoldo Voges parado numa clareira recentemente aberta. Podem ser vistos troncos de árvores seculares derrubadas, colocados à margem da trilha principal que vem da Lagoa Itapeva e segue na direção da Serra do Pinto.

Uma choupana estava ali, com aparência vistosa.

Fora construída pelos índios caingangues, vindos da aldeia de Três Pinheiros e requisitados especificamente para esta tarefa de apoio aos colonos.

Era, na verdade, um rancho bem simples,

provisório destinado para servir de templo e escola, até que uma edificação mais sólida fosse construída.

Figura 3: Dando uma noção da aparência: Choupana Templo/Escola de Três Forquilhas, de 1826,

coberta com folhas de palmeira. Fotomontagem feita pelo autor. Arte final, 2009.

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A choupana3, com cobertura feita com folhas de palmeira, devia medir em torno de 7 x 5 metros, sendo considerada espaçosa, naquela situação inicial e precária. Aquele era o local escolhido por Voges, para a realização do primeiro culto da colonização alemã luterana, de Três Forquilhas.

O primeiro Natal na Colônia

Pelos cálculos do pastor, o espaço na choupana era pequeno para acomodar todos os convidados. Por este motivo, no dia 24 de dezembro, ele fez construir um altar a céu aberto, diante de um cedro secular que decidira manter no pátio como testemunho4 (para mostrar, no futuro, a todos os visitantes, essa árvore de madeira de lei, preciosa, que ali estavam encontrando em grande profusão).

Diante do altar foram enfileirados alguns troncos

deitados, para servir de banco, para quem desejasse ter um acento, durante a celebração. Ao entardecer do dia 24, começaram a chegar os convidados, todos que integravam a leva de trabalhadores, imigrantes alemães jovens, na maioria recém casados, mais alguns soldados (entre os quais se viam índios missioneiros, fardados) e, finalmente, alguns dos índios da aldeia de Três Pinheiros que os socorreram no difícil trabalho para a edificação de seus ranchos e rústicas moradas, índios que ainda por ali se demoravam.

O pastor e o casal Petersen residiam na choupana

do templo e aguardavam ansiosos, pela chegada dos demais... Apareceram Philipp Peter Schmitt com a esposa Elisabetha Justin Schmitt (grávida de cinco meses) e os filhos Christovam (seis anos) e Elisabetha (quatro anos).

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Philipp Jacob Feck (na época assinava Veeck), com esposa Dorothea Niderauer (grávida de sete meses). Dr. Elias Zinckgraf, médico e solteirão. Jacob Menger e esposa Dorothea Sperling (grávida de três meses). Johann Peter Jacoby, a esposa Bárbara Helbig (grávida de três meses). Jacoby estava acompanhado de filhos de matrimonio anterior: Margarida (nove anos), Johann Peter (sete anos), Ana Cristina (cinco anos), Ana Izabel (quatro anos); Ana Catarina (três anos) e Paulo (onze meses). Paul König estava sozinho, pois deixara a esposa, grávida de oito meses, no acantonamento dos imigrantes no Presídio das Torres, aos cuidados da mulher de Friedrich Eigenbrodt.

Chegaram também Valentim Justin e esposa

Bárbara Knewitz, Friedrich Schütt com sua nova companheira Isabel Brehm e mais os filhos dela Wilhelm e Martin Brehm; Nicolau Helbig, esposa Margarida e filhos Bárbara (vinte e dois anos), Cristina (com vinte anos e casada com Christian Mauer, ali presente), Maria (dezoito anos) Maria Eva (quinze anos) Catharina (treze anos) e Daniel (dois anos). Philip Leonard Niederauer e esposa Catharina Diehl (grávida de cinco meses) acompanhados da filhinha Catharina (dois anos). Chegaram ainda Johann Bobsin e sua esposa Charlota Marlow e mais os pais dela Adam e Maria Marlow. Estava ali também o agrimensor Frederico Carlos Voss encarregado da medição dos lotes, e que contava com a ajuda destes imigrantes voluntários.

Precisavam ser somados a esta relação, os

soldados vindos do destacamento de Torres, chefiados por João Silistrio. Além disso, Paula Soares incluíra no grupamento de apoio aos colonos, o índio missioneiro Esteban dos Santos que conseguira reunir quase duas dezenas de índios caingangues civilizados da aldeia de Três Pinheiros, liderados pelo Cacique Aivuporã. Estes

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caingangues tinham sido decisivos para o trabalho de edificação das choupanas. Somando todos, o culto natalino contara com a participação de mais de setenta pessoas. Algo extraordinário para aquela realidade.

É de se imaginar que os soldados e os índios

observaram tudo com muita curiosidade, pois não lhes era nada familiar um culto luterano, em língua alemã.

Enquanto o pastor se preparava para iniciar o

culto as crianças ainda aproveitavam para correr atrás de pirilampos5. O céu estava muito limpo e estrelado e um leve luar descia sobre a clareira.

Figura 4: Pastor Carlos Leopoldo Voges na Colônia de Três Forquilhas. Fonte: Arquivo da Família Voges.

O ano da foto é desconhecido.

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O pastor trajava casaco e calça de cor escura, bem ao estilo dos clérigos daquele tempo.

Ele trouxera consigo apenas a sua Bíblia e dois hinários. O segundo hinário ele o entregou para Christian Mauer por saber que o mesmo era um ótimo cantor. Desta forma Mauer e esposa puderam acompanhar o pastor durante os cânticos.

Para dar início ao culto, o pastor anunciou o,

então já tradicional hino luterano: “Eu venho a vós dos altos céus”.

Ele avisou: - “A Catharina Diefenthaeler Petersen,

que aprendeu a tocar flauta na Comunidade Luterana de Biebelnheim, atuará conosco, nesta noite santa, com sua flauta encantada”. - Diante do elogio, Catharina sorriu, fazendo uma mesura para todos, de modo encantador.

Elisabetha, esposa do Comandante, sempre muito

loquaz e comunicativa não perdeu o momento e, bem no estilo jocoso dos Justin, falou: - “Pastor, porque você não busca a Elisabetha, irmã da Catharina, para ter uma dupla de flautistas, em nossa Comunidade?”.

Risos ecoaram, em uníssono, pela clareira. O

pastor, surpreso, retrucou: - “Antes, é preciso saber, se ela quer casar comigo. Depois, quem sabe...”.

Catharina, com um largo sorriso, disse: - “Até há

poucos meses, fui a filha mais velha, lá em casa. E, na qualidade de irmã mais velha, digo que, da minha parte, o casamento já está autorizado... Afirmo que o pastor me dará uma grande felicidade se conseguir trazer a minha irmã para cá”.

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Catharina fizera vinte e três anos de idade e, recentemente, casara diante do pastor Voges, em São Leopoldo (RS). Ela se dispusera a acompanhar o marido, no sonho de participar da construção de uma Colônia Alemã na região de Torres, no litoral norte do Rio Grande do Sul. Catharina era uma mulher de traços bem suaves, esbelta e cabelos castanho-claros que lhe caíam até além dos ombros, em cachos naturais. Chamava a atenção a sua extrema palidez, fato que acentuava ainda mais a cor de sua pele, tão branca. Os seus olhos eram marcantemente verdes. Trajava um vestido longo, de cor azul (aliás, todas as mulheres trajavam vestidos longos, pois era o costume da época) e, tomando a flauta para inicialmente dar o tom, conduziu o cântico, onde sobressaía a bela e melodiosa voz do pastor.

A reação mais notória foi entre os índios

caingangues. Pareciam hipnotizados e deslumbrados. Foram se aproximando até a ponta do altar, para ver, de perto, a atuação da flautista.

O pastor, em seguida, desenvolveu uma breve

liturgia e uma oração. Finalmente, chegou o momento mais esperado da noite, quando ele passou a fazer a pregação. Voges leu a história do primeiro Natal, com base no texto do Evangelho de Lucas, Capítulo 2, versículos 1 até 20. Após a leitura, ele comentou o texto, destacando que eles ali se encontravam, em simples choupanas que muito bem poderiam representar o estábulo onde Jesus nasceu. Finalizou, conclamando a todos, para permitirem que se realizasse o verdadeiro Natal também nesta localidade, dizendo: - “Importa que Jesus encontre lugar em cada coração e em cada choupana, nesta nossa Colônia em formação”.

Comandante Schmitt que sofria de graves

problemas de saúde e ali estava com as pernas bastante

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inchadas, em meio a grandes sofrimentos físicos, foi tomado pela emoção. Lágrimas deslizaram pela sua face, pois era muito emotivo, externando com facilidade seus sentimentos, sem nenhum constrangimento.

Ao finalizar a breve celebração, o pastor chamou

todas as crianças presentes para que se postassem diante do altar e explicou: - Quero presenteá-los, como é o costume nas comemorações natalinas do nosso povo germânico. Não tenho guloseimas, mas tenho algo muito valioso para lhes conceder. Venham aqui e recebam a imposição das minhas mãos. Quero abençoar cada uma de vocês, pois é o que de melhor tenho ao meu alcance, para vos oferecer nesta noite santa”.

Até duas crianças indígenas, que estavam em

companhia dos pais, num ponto mais distante, vieram se posicionar diante do pastor, mesmo sem entender o que ali era feito.

O pastor dirigindo-se ao seu rebanho de

imigrantes, falou: - “Não sei se estes que vivem, aqui na selva, já foram batizados. Mas não me nego a impor minhas mãos também sobre suas cabeças, pois os pais deles, tenho certeza, estão sendo uma grande benção para todos nós. Vejam só as choupanas que eles já construíram para cada família! Vejam esta choupana do nosso templo e de nossa escola! Que estes índios tenham sempre um lugar em nossos corações e nesta nossa Igreja que aqui estamos construindo”.

Novamente as lágrimas assomaram nos olhos do

Comandante Schmitt. Livremente elas desciam pela sua face. Agora ele estava rindo e murmurando algo inteligível.

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Christian Mauer levantou-se e pediu permissão ao pastor para cantar um hino natalino que ele aprendera em sua terra natal, na Comunidade Luterana de Bischmisheim, intitulado: “Ao pé da manjedoura”, com a música do grande compositor alemão, Johann Sebastian Bach. Num lindo solo, porém, acompanhado pela flautista, ele cantou de modo muito inspirado, que tocou no fundo do coração de todos os presentes.

Desta vez não foi apenas o Comandante Schmitt,

a revelar emoção. Diversas mulheres também choraram, lembrando parentes e amigos que haviam deixado na distante Europa e que deviam estar comemorando o Natal, talvez cantando este mesmo hino e, quem sabe pensando neles que agora se encontravam tão distantes, no Brasil. Será que lá na Europa, eram capazes de imaginar as experiências que aqui estavam vivendo, em meio a mata, cercados por selvagens e por bichos desconhecidos?

Reunião de colonos

O culto durou cerca de meia hora. Quando

encerrado, o Comandante Schmitt pediu um pouco da atenção de todos. Falou que era oportuno aproveitar este encontro, realizando uma breve reunião, já que todos os voluntários para ajudar na demarcação de lotes, estavam ali presentes.

O Comandante fez um levantamento sobre os

roçados que cada grupo conseguira abrir, na respectiva área. O grupo nordeste, liderado por Bobsin estava com a terra preparada para lavoura. Estavam em condições para semear as preciosas sementes que Schmitt e Justin

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haviam trazido da Europa, entre elas a aveia e o trigo, além de outros cereais.

Bobsin quis saber: - “Pode-se semear estes

cereais neste final do mês de dezembro e no mês de janeiro, aqui neste clima tão diferente, do que conhecemos lá na Europa?”.

O Comandante falou: - “Já expliquei muitas vezes

e volto a repetir. Não temos escolha. Ou semeamos ou perdemos a semente...”.

Isto era verdade. Não havia nada mais urgente,

além da necessidade de semear. E, afinal, todos sabiam que o Comandante Schmitt fizera muita pressão sobre o Coronel Paula Soares, diretor da colonização de Torres, para liberar este grupo de voluntários, com o objetivo, além de ajudar na demarcação de lotes, de também preparar a terra e colocar as sementes no solo, antes que se perdessem. Até já haviam aparecido aqueles que, na chegada ao acantonamento de Torres, desejavam utilizar os sacos de semente como alimento para pessoas e animais, com a desculpa que já não mais vingariam, em solo algum.

Em nome dos colonos do núcleo sudeste, falou

Johann Peter Jacoby:- “Também estamos com roçados, em condições de plantar alguma coisa. No entanto, a nossa área é bem menor que a da gente liderada pelo Bobsin. Tivemos outras dificuldades para enfrentar. Não pudemos contar com o Schütt que, incumbido pelo Coronel Paula Soares, instalou uma ferraria, com equipamento trazido de Torres. E o Justin, o König e eu tivemos que acompanhar o agrimensor, que organizou o plano para a medição dos lotes. Andamos com ele por todo este lugar. Ele quis conhecer bem o terreno, para

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dar aos colonos lotes em condições para neles praticar a agricultura”.

Niederauer falou em nome dos integrantes do

núcleo da igreja: - “Preciso explicar que o pastor Voges, o Petersen e eu não temos afinidade com machados e foices. Já o Hellwig foi lá para o outro lado do rio, ajudar o genro dele, o Mauer. E eu estou ansioso para instalar a minha casa de comércio, assim que tiver a certeza da concessão e definição do meu lote de terras”.

O pastor Voges pediu licença para corrigir as

palavras de Niederauer e explicou: - “Com a ajuda dos soldados e dos índios caingangues gastei a maior parte do meu tempo na escolha da melhor área para a localização de escola e templo. Além disso, já defini o local para a construção do nosso cemitério, pois penso que precisamos estar preparados, para eventuais falecimentos, que não pedem nossa permissão para acontecer”.

Christian Mauer pediu a palavra para dar

explicações sobre os seus planos: - “Nas minhas horas livres, fiquei procurando por uma área bem especial, no lado sudeste, para ali construir meu moinho. Encontrei um ponto bastante apropriado, onde será possível abrir um canal para trazer a água, tão fundamental, para mover a roda e fazer a mó funcionar”.

Petersen também queria se justificar: - “Vim para

cá, muito mais pelo amigo pastor Voges, para fazer-lhe companhia. Neste momento quero também ajudar, no que posso, no trabalho que o agrimensor está realizando, para providenciar a medição dos nossos lotes de terra. Porém, quero deixar bem claro de que não pretendo me fixar no trabalho da lavoura. Nada entendo disso. Quero receber meu terreno, como todos os demais e ser vizinho

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do pastor Voges. Depois irei para Torres, para ver a possibilidade de estabelecer uma navegação e transporte de pessoas e de mercadorias de lá até Três Forquilhas, pelas águas da Lagoa”.

De fato, Petersen era perito em navegação,

profissão que ele exercera na Europa, durante diversos anos e se considerava com experiência suficiente, para lançar um empreendimento de tal envergadura.

König comunicou: - “Estou com o meu retorno a

Torres já definido para amanhã. Vocês devem estar sabendo que estou com a mulher em fase final de gestação, prestes a dar à luz. Estou bem tranqüilo... A mulher do Eigenbrodt ficou ao lado dela, para assisti-la, inclusive no parto, se houver necessidade. Não sei se todos vocês já sabem... Tenho dois filhos, de matrimonio anterior, a Charlotta que está com sete anos e o Peter com quatro. A menina até que já consegue ajudar um pouco, nem que seja para fazer companhia e dar carinho para a minha mulher. Eu só voltarei, para cá, depois do nascimento do meu nenê. Quero ver se consigo segurar também o pastor, em Torres, para logo batizar a minha criança”.

Comandante Schmitt falou em nome do núcleo da

sede: - “Nós, da sede, não conseguimos preparar nenhum roçado, adequado para semeadura. Eu estou num momento difícil, com os males que afligem o meu corpo. Além disso, não sou lavrador. Pretendo seguir nas intenções do Niederauer e do Jacoby, para estabelecer uma casa comercial. Já o meu vizinho Menger está a procura de um ponto favorável para a construção do seu curtume. O Feck está, a maior parte do tempo, ao meu dispor. É como se ele já fosse meu empregado. Ele me acompanha em tudo, para onde quer que eu vá. E, quanto ao médico, afinal, ele está aí para quê? A

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presença dele é de cuidar, exclusivamente, da saúde de todos. E eu tenho sido um paciente constante. Recebo cuidados quase que diários. Foi por este motivo que exigi a vinda dele e ordenei a morada dele nas imediações da minha propriedade”.

Niederauer pediu a palavra e quis saber: -

“Falando em médico, onde fica mesmo o rancho do Dr. Elias? Onde podemos procurá-lo, se necessitarmos dele?”.

O próprio médico respondeu: - “O meu rancho foi

erguido lá no Sítio das Figueiras6, um pouco além do rancho do Comandante Schmitt”.

Continuando na discussão sobre as lavouras para

a semeadura, Bobsin lançou uma proposta: - “Sugiro que a nossa lavoura, no núcleo nordeste, seja considerada, neste momento, uma área comunitária, com a finalidade de fazermos a semeadura, em conjunto, num só local. O Helwig também já veio nos ajudar. Então basta que mais um ou outro do núcleo sudeste se prontifique, para estabelecermos um dia, para o plantio.”

A proposta foi considerada como louvável. Todos

os que tivessem tempo e aptidão, iriam até o núcleo nordeste, tanto na fase da semeadura, bem como, depois, para a colheita, em época a ser determinada.

Comandante Schmitt sugeriu: - “Diante da

proposta do Bobsin, que nós aceitamos, considerando a lavoura do núcleo nordeste como sendo uma lavoura comunitária, sugiro que os demais núcleos assumam o mesmo procedimento. Que fique decidido nesta hora que as nossas lavouras, por enquanto, são todas provisórias. Elas irão servir a todos os que aqui vierem se estabelecer. Na sede, no sudeste e no núcleo da Igreja,

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mesmo em áreas ainda pequenas, façamos lavouras de sementes dos produtos que já chegamos a conhecer aqui no Brasil, sementes de milho, de mandioca, de feijão e cana-de-açúcar, em mutirão. À medida que cada família vier, terá suprimentos disponíveis. Sou de opinião que o milho, a mandioca e cana-de-açúcar são bons alimentos, não só para os animais mas, também para todos nós, conforme hoje ainda nos será dado experimentar, com essa gostosa carne, tendo mandioca e farinha de acompanhamento”.

Todos aplaudiram, aprovando a proposta do

Comandante. Como último assunto da reunião, foi dada a

palavra ao agrimensor Voss. Ele explicou: - “Já estou com o plano de medição dos lotes praticamente concluído. Amanhã estou seguindo para Torres em companhia do pastor, do casal Petersen, do König e mais o Jacoby. Vou fazer a indicação de quatro núcleos, conforme vocês já me ajudaram a definir. Pretendo também oficializar o lote que o pastor escolheu para Templo/Escola e o local para o cemitério. Já fui notificado pelo Coronel Paulo Soares que a primeira edificação a ser feita aqui, será a Igreja/Escola. Acredito que a construção poderá ser neste lugar onde agora nos encontramos. Por isto é muito importante que o pastor esteja lá em Torres, conosco, para vermos com o Coronel os detalhes da obra. Tomei conhecimento que será um trabalho que correrá totalmente por conta de recursos do Governo Imperial. Pretendo ainda, aproveitar para requisitar mais colonos alemães, imigrantes, para nos ajudarem. Para finalizar, quero informá-los, de que defini duas áreas como impróprias para agricultura, sem condições para demarcação de lotes para a colonização. A área maior começa no núcleo sudeste, a partir da trilha do Chapéu, e vai até o núcleo nordeste, a uns 300

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metros do rancho do Bobsin. Todo este trecho de terras não serve para a atividade agrícola. É uma área bem grande pois, em linha reta, é uma extensão de aproximadamente 1.000 a 1.500 metros e, que continuará sendo terra nacional.”

O Comandante Schmitt agradeceu ao agrimensor

Voss pelas valiosas informações e encerrou a reunião, com elogios e agradecimentos para todos.

A Ceia de Natal

Finda a reunião, os colonos alemães, curiosos,

foram ver um braseiro que os soldados haviam preparado, à margem da clareira.

– “Para que é isso?”. - Todos desejavam saber. Um soldado tentou explicar: - “Nossa ceia de

Natal... Vai ser churrasco...” Alguns soldados estavam, nesse momento, espetando carne, para ser assada.

Os índios haviam caçado, ao entardecer, e

também haviam oferecido o resultado do seu abate, para ser incluído ao assado, juntamente com a carne de uma novilha que os soldados haviam carneado a tarde. Os soldados argumentaram entre si, que para a “Noite Santa” de Natal, eles mereciam um jantar diferente, para fugir do costumeiro cardápio de charque com farinha.

Os índios haviam providenciado mandioca que

também já havia sido cozida, por um soldado, num panelão sobre tripé. Agora, o cheiro típico do churrasco gaúcho, já vinha, com a fumaça, atiçando a saliva de todos.

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Enquanto aguardavam o assado, a conversa girou sobre as aventuras e desventuras vividas por eles.

O velho Marlow, um pomerano de pouca conversa,

talvez por só dominar o seu dialeto materno, surpreendeu, sugerindo que o seu genro contasse a peripécia do encontro com o touro selvagem, vivido nos campos de Itapeva, durante a vinda a Três Forquilhas, ocorrida fazia poucos dias, quando o Bobsin mostrou ser um homem mais forte que um touro.

Johann Bobsin levantou-se. A sua figura parecia

agora ainda mais imponente, diante da luz da fogueira, em meio à fumaça azulada que se espalhava por toda a clareira. Parecia um herói saído dos livros de história, das névoas distantes, do mundo lendário da mitologia germânica, de Siegfried e Kriemhild, como é contado nos Nibelungos.

Alto e musculoso, loiro, de olhos muito azuis,

Johann Bobsin encarou os presentes, pronto para o discurso. Ele gostava de contar histórias e começou perguntando: - “Quem de vocês ouviu falar do perigoso touro dos campos de Itapeva?”.

Diversos colonos levantaram a mão. Haviam sido

alertados sobre o perigo, com a orientação de contornar aquela área, dominada por aquele animal feroz. Pelo fato de terem viajado em diferentes grupos de carretas, naquele dia, nem todos haviam vivenciado o encontro de Bobsin com o perigoso animal. Nas duas carretas, lideradas pelo Bobsin, tinham estado o casal Marlow e o Jacoby com mulher e filhos, como retardatários, por causa de algumas ferramentas especiais, machados e foices, que eles quiseram receber do diretor da colonização, visando agilizar a abertura de roçados para uma lavoura, que o Comandante Schmitt tanto desejava

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estabelecer na nova área de colonização em Três Forquilhas.

Bobsin pediu silêncio e passou ao relato: - “Vou

contar primeiro um pouco da minha vida para entenderem do que sou capaz. Sou germânico de sangue puro. Só não sei por que assino Bobsièn. Talvez seja porque os meus antepassados viveram na França. Eles foram Huguenotes7, de confraria calvinista. Agora já nem sei mais se foi o pai do pai de meu bisavô quem escapou, por milagre, da matança da Noite de São Bartolomeu, ocorrida em 23 de agosto de 1572. Ele conseguiu fugir. Veio para a Suécia, onde foi acolhido pelos luteranos. Meu avô me contava essas histórias. Com ele aprendi a trançar couro. Sei fazer artefatos de montaria para cavalos, cordas trançadas em couro, para lidar com gado xucro. Saí de casa cedo. Fui parar na Pomerânia, na propriedade deste ali (ele indicou para o Marlow) que hoje é o meu sogro. Castrei muitos touros no campo dele e domei tantos cavalos, que também já perdi a conta. O que quero lhes dizer é que eu não tenho medo de chifrudos que baixam a cabeça, e babam, e bufam...”.

Figura 5: Assinatura de Johann Bobsin em 1827.

Fonte: Arquivo Nacional, Seção dos Ministérios, Rio de Janeiro. Carta de agradecimento em francês, assinada por 46 chefes de família de Três Forquilhas, entre os quais consta Johann Bobsin.

Data: 31.12.1827.

O Justin interrompeu a narrativa e reclamou: -

“Bobsin, você está fazendo propaganda? Você vai abrir uma casa de comércio, de artefatos de couro? Estamos ansiosos para saber do teu confronto com o tal de Terror da Itapeva...”.

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A história que Bobsin contara, despertara ainda mais a curiosidade de todos. O pastor interveio e disse: - “Bobsin. Acredito que a sua história é muito interessante para todos nós. Não sabemos direito o que ainda poderá estar à nossa espera, nesta nossa nova Pátria. Façamos votos que aqui reine a tolerância religiosa, para um bom entendimento com todos, principalmente com os católicos, que, conforme já nos é dado ver, mandam em todas as coisas, aqui no Brasil. Por este motivo, aproveito para dar-vos um conselho pastoral, com toda a humildade. Isso também vale para o Bobsin, para o Mauer e para outros que, já sabemos, trazem em suas origens espirituais, a marca do evangelismo que sofreu até duramente, com os católicos da Europa. Ou então, lembro aqueles dentre nós, que trazem ascendência judaica que esconderam essas origens no passado, tornando-se luteranos. Aqui ninguém tem um passado de huguenote. Aqui ninguém tem ligação com os legais piedosos8. Não temos nem judeus e nem gentios e, muito menos reclusos, que foram tirados de prisões da Europa. Quero que saibam o que falei ao Coronel Paula Soares, na presença do Imperador D. Pedro, lá em Torres. Eu disse que tanto eu como toda a nossa Comunidade, somos da confraria da fraternidade de cristãos – Fraternité–Egalitè-Liberté. Pude notar que o Imperador ficou muito satisfeito com as minhas declarações. Por isto tenho tanta segurança em vos solicitar, para que todos guardem muito bem o que digo. Somos todos cristãos, da fraternidade e da paz. E você, Bobsin, por favor, continue na sua história, se quiser, pois o assado da carne ainda não está no ponto, para ser servido”.

Os olhos de todos, por instantes, dirigiram-se para

o lado do braseiro, de onde vinha um cheiro forte e apetitoso, do churrasco gaúcho. Mas já retornaram a atenção, para ouvir o relato.

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Bobsin continuou: - “O terror dos campos da Itapeva era, na verdade, um touro xucro. Tratava-se de um animal muito agressivo que costumava atacar os viajantes desprevenidos, conforme fomos avisados. Mesmo os tropeiros ou viajantes mais corajosos, que já andaram por estas paragens, costumavam fazer voltas, para não encontrá-lo outra vez. O animal, no passado, já ferira seriamente diversos cavaleiros e até cavalos, que precisavam fugir à galope, para escapar da morte. Quando vínhamos, minha mulher, na companhia do meu sogro e dos Jacoby que estão aqui e não me deixam mentir, decidi que não devíamos fazer aquela volta, para desviar do touro. Tomamos o caminho que nos conduziu diretamente até os domínios do selvagem animal. E o confronto aconteceu. Quando deparei com o touro, enquanto mulheres e crianças, aos gritos se apinhavam sobre as carretas, me postei bem no caminho do animal. Esperei calmamente. E, o animal veio de cabeça baixa, bufando e babando... Quando estava para me lançar, o agarrei pelos chifres... Com um forte safanão, o derrubei sobre o solo, deixando-o de patas para o ar. Foi aí que os soldados missioneiros, que nos acompanhavam, vieram me ajudar. Manearam o animal com seus laços e, ali mesmo o sangraram. Vejam que não fui eu o matador. Não sou açougueiro. Não tenho vocação para tal profissão. Eles é que acabaram com o terror daqueles campos. E, a fama quem levou? Me chamam agora de imigrante mais forte do que um touro”.

O silêncio foi geral, mostrando que o relato

envolvera totalmente a atenção dos ouvintes. Admirados, olhavam para o contador de histórias, sendo interrompidos pelo pastor que avisou: - “Gente, depois de ouvir sobre a bravura do Bobsin, merecemos comer um bom assado! Façamos de conta que a carne é do animal abatido nos campos da Itapeva. Bom apetite para todos”.

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Eles não tinham pratos e nem talheres disponíveis neste local. Utilizaram folhas de taioba9, colhidas nas margens do rio, que os índios já haviam providenciado com antecedência, a pedido de um soldado que revelara ter experiência com a vida simples das matas. Cada um foi recebendo uma porção de carne e outra de mandioca. Algumas mulheres, para alimentar os filhos menores, cortavam nacos de carne, com as unhas e dedos, e a colocavam na boca dos pequeninos. Uma cena que merece registro, pela singeleza do momento e pela refeição tão solidária, como comunidade em formação.

Hora de dormir

Em certa altura, quase ao final do jantar, Schmitt

reclamou de dores e de cansaço. Pediu desculpas, informando que tinha necessidade de se recolher. Iria retornar até a sua choupana, para descansar e tentar dormir. A sua carroça já estava com os animais encangados. Foi acompanhado pela esposa e filhos, e pelo médico e pelos vizinhos, os casais Feck e Menger, estes dois últimos seguindo a pé. A distância até os ranchos deles devia ser de aproximadamente dois quilômetros.

Christian Mauer também se despediu dizendo que

iria pernoitar na casa da sogra e assim os Hellwig o acompanharam até o rancho que distava uns 200 metros. Nierderauer e esposa também os acompanharam, para unir com eles as luzes de suas lamparinas, pois o rancho dele ficava um pouco adiante do Hellwig.

Johann Bobsin com seu pessoal pediu permissão,

ao pastor, para pernoitarem ali mesmo, junto ao altar,

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próximo do secular cedro, onde, um pouco mais distante, até os índios e os soldados já haviam se acomodado, acendendo uma fogueira. Os Jacoby, Schütt, Justin, o König, o Eigenbrodt e agrimensor Voss também decidiram permanecer no local, para pernoitar. Alegaram que a distância deles, a ser percorrida era dificultada por um passo de rio que teriam que cruzar e não desejavam fazer isto, à noite. Além disso, alguns viajariam já no amanhecer, para Torres e, assim, poderiam sair juntos, deste local.

O pastor e mais sua futura cunhada e o Petersen,

recolheram-se para a choupana do templo. Havia um pequeno compartimento, nos fundos, que o pastor chamava de sacristia, onde ele se acomodou, com os seus escassos pertences. As camas eram improvisadas e consistiam de folhas de palmeira e capim, colocados sobre um trançado de galhos, que os soldados haviam confeccionado.

O pastor demorou a pegar no sono. Ficou

meditando sobre o projeto de colonização que o Governo da Província planejara. Na verdade, o Coronel Paula Soares quebrara o plano original que o Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, José Feliciano Fernandes Pinheiro fixara em 1825, conforme o qual todos os colonos, independente de credo, seriam fixados no vale do rio Mampituba. Quando o Coronel Paula Soares permitiu, que, de modo clandestino, estas famílias protestantes, sob o comando de Peter Philipp Schmitt se deslocassem para o vale do rio Três Forquilhas, ele interferira, com uma cartada de mestre, para modificar o rumo de todo o projeto da colonização alemã de Torres. Ao enviar, junto com estes colonos, o agrimensor Voss para realizar um estudo da viabilidade para estabelecer colonos em Três Forquilhas, já se pudera antever qual seria o resultado.

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Até pegar no sono, Voges se manteve entretido neste pensamento: - “Deve-se à visão do Coronel Paula Soares e a sua coragem, de decidir por algo novo e diferente, que o surgimento da Colônia Alemã de Três Forquilhas vai se concretizando. Ele quebrou, quase no sigilo completo, um projeto oficial do Governo da Província. Paula Soares merece ter o seu nome gravado com letras douradas, como o artífice e o verdadeiro criador desta nossa Colônia Alemã Protestante de Três Forquilhas”.

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MELHOR SERIA IR PARA A GUERRA...

- “Seria preferível ir para a guerra do que alguém ficar afundado na ociosidade, neste acantonamento”. - Disse o pastor ao abrir uma reunião com algumas das lideranças de colonos alemães, acantonados em Torres.

Estavam ali Paul König, Johann Peter Jacoby,

Johann Nicolaus Mittmann, Pedro Frederico Petersen, Martin Schneider, Professor Jorge Godofredo Engel e Felipe Pedro Gross.

Johann Nicolaus Mittmann pediu a palavra: - “Sou

de opinião que nós precisamos fixar um regulamento de conduta para todas as famílias de imigrantes alemães que aqui estão neste campo de espera. Essa gente não tem nada para fazer. Vivem causando brigas e discussões, alguns andam embriagados e outros dormem o dia todo. Se isso continuar assim por muitos meses, ainda vamos ter feridos e mortos, pois temos entre nós até homens que saíram das prisões de Mecklemburgo e Rostock...”.

Voges respondeu: - “Sugiro que não façamos mais

referências sobre homens que saíram de prisões. Aqui será a oportunidade de iniciar uma vida nova, para todos... E outra coisa... Foi por causa da situação, em que a nossa gente vive neste acantonamento, que eu afirmei ter sido preferível que eles tivessem ido para a guerra em companhia do nosso Imperador, quando no início de dezembro, ele por aqui passou, do que ficarem na ociosidade...”. - O pastor fez referência aos jovens que acompanharam D. Pedro I como voluntários para combater em a favor da nova Pátria, na área conflagrada da Guerra Cisplatina. Haviam seguido com Sua Majestade: João Miguel Eberhardt, Carlos Becker, João

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Beck, Valentim Becker, João Wolff, Ernst Friedrich Hildebrandt, João Jorge Lorey, João Jacob Müller, Henrique Berghahn, Hans Thron Stollenberg e Nicolau Schmitt.

Voges continuou falando: - “Constato que já

começou a fazer falta, aqui, a autoridade do Comandante Schmitt. Ele não manteve ordem, enquanto aqui o tivemos? No entanto, ele acreditou que a tarefa dele é de apressar a posse da terra. Nós que o acompanhamos somos testemunhas que ele está certo. E digo mais, lá não existe o perigo da ociosidade para alguém. O trabalho em Três Forquilhas, para a abertura de picadas para a medição dos lotes de terra, a abertura de roçados e a organização dos ranchos deixa todos bastante ocupados, desde o raiar da madrugada até a escuridão chegar. Lá não vimos discussões , nem brigas, nem bebedeiras. Todos gastam as energias com o trabalho...”.

Mittmann voltou a insistir: - “Vamos redigir um

regulamento para a conduta das famílias que estão nesta espera...”.

- “Já não pesa sobre todos o regulamento que o

Coronel apresentou?”. - Quis saber Voges. Mittmann mostrou-se incisivo e retrucou: - “Eu

falo das regras do Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. Não me refiro as regras das autoridades brasileiras. Nossa gente precisa ser colocada no rumo da Palavra de Deus. Mas o que eles pensam? Vou lhes contar o que aconteceu durante a ausência do pastor. Eu me prontifiquei a realizar um culto para eles, na noite de Natal. Não sou pastor, mas sei dirigir um culto simples. Adivinha o que me disseram...”.

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- “O que disseram?”. - Quiseram saber König, Jacoby e o pastor, pois que estiveram ausentes de Torres.

Mittmann continuou: - “Eles me responderam -

você não é um pastor. O nosso pastor é o Voges. Mas, onde anda ele? Acompanhando meia dúzia de pessoas, lá em Três Forquilhas, enquanto aqui, nós que somos centenas de pessoas, ficamos sem ele”.

Paul König pediu a palavra e falou: - “Estivemos

com o pastor em Três Forquilhas. Realmente, ele realizou um culto na noite santa do Natal. Mas é preciso deixar claro que não foi para meia dúzia de pessoas. Entre nossa gente, mais os soldados e ainda contando os bugres da localidade, garanto que foram quase cem pessoas. Foi um culto para nunca mais esquecer”.

Jacoby também pediu a palavra: - “Sou de

opinião que não é de mais regulamentos que essa nossa gente precisa, aqui, nesta espera que deve estar corroendo a alma deles. Precisamos fazer reuniões. Precisamos contar para eles o que já vimos em Três Forquilhas. Já existe lá, agora, uma igreja. Mesmo que ela seja só um rancho de palha, mas é a nossa igreja. A maioria dos colonos que foram ajudar o agrimensor também já recebeu seus ranchinhos de palha, nos quatro núcleos previstos. São pequenos ranchinhos, mas eles dão abrigo contra chuva e contra animais”.

Voges propôs então: - “Além de reuniões com

pequenos grupos, aqui e ali, podemos marcar um culto para a noite da passagem de ano. Alguns de nós fomos convocados pelo Coronel para uma reunião no dia 28 de dezembro. Posso apresentar a proposta para que ele nos autorize o culto”.

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Mittmann quis saber: - “O que este coronel tem a ver com a nossa prática religiosa? Não nos foi dito que temos liberdade de crença? Não bastaria marcar o culto, como algo que nós queremos e nós realizamos?”.

Voges explicou então: - “Ele é a autoridade maior

deste lugar. É bom que sempre conversemos com ele sobre as coisas que pretendemos realizar. Afinal, não temos nada a esconder das nossas autoridades. Recordem do Comandante Schmitt, como ele foi até Paula Soares. Ele insistiu durante muitos dias, para receber a autorização de seguir até Três Forquilhas, na companhia do agrimensor. Ele jamais pensou em sair sem ter a concordância do Diretor da Colonização. E agora, agradeçamos a Deus, que o Comandante Schmitt teve esta idéia e sejamos agradecidos que o Coronel Paula Soares autorizou a ida de nossos voluntários para a área da nossa colonização”.

Paul König pediu novamente a palavra: - “A todos

vocês que não tiveram a felicidade de estar conosco em Três Forquilhas, quero dizer que podem confiar na orientação que o pastor Voges vem nos concedendo. Eu mesmo sou testemunha dos bons conselhos que ele já concedeu para o Bobsin e para o Mauer. Penso que o Jacoby concorda comigo, que Bobsin e Mauer receberam o conselho com toda a humildade e até com um sorriso no rosto...”.

Mittmann mostrou-se curioso e quis saber: - “Que

conselho foi este?”. O pastor resolveu contemporizar, e contornou a

questão, dizendo: - “Deixemos isto para outra ocasião. Vamos ao que hoje nos preocupa. Creio que o Mittmann está certo quando levanta a preocupação com a conduta inadequada de diversos colonos. Precisamos estar

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atentos. Sabemos que ainda teremos diante de nós muitos problemas, até que cada família esteja instalada em sua terra e tenha finalmente a sua própria casa”. - O pastor voltou-se então a Paul König e falou como se estivesse confidenciando um segredo, mas falou alto, para todos ouvirem: - “Estou muito seguro de que Mittmann é um homem de fé e de grande valor, pela sua firmeza e convicção. Vocês ainda haverão de constatar, nos próximos anos, o papel que ele poderá e deverá desempenhar em favor da manutenção da fé evangélica em nossa igreja, que está surgindo em Três Forquilhas”.

Mittmann sorriu diante do elogio recebido. A

reunião foi chegou ao final, num clima bastante cordial. Reunião com Paula Soares

No dia 28 de dezembro de 1826, ocorreu a

esperada reunião, convocada pelo diretor da colonização de Torres, realizada no Baluarte Ipiranga. O Baluarte Ipiranga, era ainda conhecido como Presídio de Torres, na verdade, um forte militar, restaurado pelo Coronel Paula Soares. Além de Baluarte Ipiranga era também conhecido por Presídio das Torres (que não significava prisão, mas um posto de guarda militar).

Os soldados diziam: - “Este é o nosso Fortim de

Torres”. Independente de qual a sua legítima

denominação, se forte, se baluarte ou se presídio, ele passou a servir de aquartelamento para a guarnição militar e, logo também, como sede administrativa da colonização alemã em Torres.

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Os colonos, enquanto aguardavam, olhavam admirados para os dois enormes canhões, postados, apontando para o mar. Recordavam ainda do dia 5 de dezembro, quando os mesmos haviam sido ativados, para saudar a chegada do Imperador D. Pedro I. Haviam sido tantos tiros que ninguém conseguira contá-los.

Um soldado garantiu: - “Foram cento e um tiros,

para dar as honras ao nosso Imperador”. Naquela oportunidade, os colonos alemães

também haviam sido reunidos, para recepcionar D. Pedro com vivas e hurras. A liderança dos colonos, dentre os quais se destacavam o Comandante Schmitt, Johann Jasper e o pastor Voges, que na ocasião, puderam cumprimentar Sua Majestade, pessoalmente. Para o pastor fora a segunda oportunidade, na primeira, no Rio de Janeiro, ele beijara a mão do Imperador. Desta vez Sua Majestade não aceitara o beija mão, ficando tudo num simples aperto de mãos.

A reunião convocada pelo Coronel Paula Soares,

visava tratar da instalação da Colônia Alemã de Três Forquilhas. Por isto, solicitara a presença de agrimensor Voss, do pastor Voges, do barqueiro Petersen, do carpinteiro Gross, e ainda do Jacoby e do König, Fato que chamou a atenção é que o piloto10 oficial João José Ferreira não fora incluído para participar deste encontro.

Paula Soares contava sempre com a presença de

um intérprete, para se fazer entender com os imigrantes. Ele se dirigiu ao pastor, comentando: - “Pastor, notei que o senhor domina além da língua alemã, também o francês, o latim e os rudimentos do português. Isso tem ajudado muito para ambos nos entendermos sem o intérprete que, aliás, é fraco. Sugiro que aproveitemos sua presença em Torres, para que me ensine o básico da

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língua alemã. Em contrapartida receberá aula da língua nacional”.

O pastor se interessou e respondeu: - “Coronel

Franz Paul, a sua idéia é boa. Podemos começar na hora que lhe for aprazada”.

- “Pois comecemos aqui e agora”. - Disse o

Coronel. - “Vamos aproveitar as palavras chave dos assuntos que aqui vamos tratar. Eu escrevo a palavra em português e o senhor anota o termo no idioma alemão”. - Paula Soares escreveu: - medir - lotes e Voges acrescentou: messen – Grundstück.

O agrimensor Voss foi então convidado a expor

aos presentes, a situação em Três Forquilhas, no tocante ao trabalho de medição dos lotes de terra a serem distribuídos para cada família.

Voss abriu dois rolos de papel. Explicou,

mostrando indicações feitas em seus mapas: - “Trago aqui rascunhado o mapa de cada lado do rio. Defini as áreas próprias para agricultura, prontas para a medição. Iniciei no ponto mais extremo, no norte do núcleo da igreja, onde será instalado o cemitério. Depois vem vindo até aqui, onde sinalizei o terreno que o pastor escolheu para a construção da igreja/escola”.

Paula Soares escreveu: Igreja - Escola e, Voges

acrescentou: Kirche – Schule. - “Que assim seja ou, amém”. - Falou Paula Soares. - “Vou determinar agora mesmo as providências necessárias. Como o pastor prefere que seja a construção? Eu proponho o estilo enxaimel”.

Voges argumentou: - “Eu dou preferência para

que o templo seja erguido com blocos de pedra. Será

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mais resistente ao tempo”. Voges escreveu: Stein e o coronel acrescentou: Pedra.

Figura 6: Croqui da região do vale de Três Forquilhas. Fonte: Mapa feito pelo autor, publicado no livro: “Três

Forquilhas – 1826 -1899”, p. 22.

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Paula Soares alertou então, dizendo: - “Pedras não são indicadas para uma construção que deve ser feita em curto prazo. Por isto proponho o estilo enxaimel, onde precisamos madeira, que existe em profusão na floresta de Três Forquilhas, além de tijolos e telhas, disponíveis aqui no nosso destacamento em Torres”.

Estava ali presente o carpinteiro Gross que

declarara ser construtor de casas. Com a ajuda do intérprete, Paula Soares quis saber: - “Carpinteiro Gross, quanto tempo leva a construção de uma igreja/escola no estilo enxaimel?”

Gross respondeu: - “Lamento muito, mas não sou

pedreiro. Nunca mexi com tijolos. Na propriedade de meus pais, na Europa, ajudei a construir uma casa e alguns galpões, porém, exclusivamente com madeira. Para fazer uma construção dessas, no tamanho solicitado, penso serem necessários apenas dois meses, se não ocorrer nenhum tempo chuvoso, que dure muitos dias. Tenho até experiência para fazer um telhado com folhas de madeira. A casa dos meus pais, lá na Europa foi assim. O telhado resistiu muito bem ao peso da neve por ser bem mais leve”.

Paula Soares sorriu: - “Aqui não temos o

problema do peso da neve. Vejamos o que o pastor pensa sobre uma igreja de madeira...”. - Paula Soares escreveu: Madeira e o pastor escreveu: Holz.

Voges estava muito pensativo e um pouco

contrariado. Perguntou então: - “Não existe pedreiro entre os seus militares, coronel?”.

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- “Para casa no estilo enxaimel, não. Aqui eles costumam fazer muita casa de pau-a-pique, ou taipa de barro...”. - Respondeu ele.

- “Pau-a-pique não. Então prefiro uma igreja de

madeira, já que o Gross fala que em dois meses a construção poderá estar concluída”.

Paula Soares decidiu a questão, dizendo: - “Está

resolvido. A construção será toda de madeira. Poderá ser aproveitada madeira de lei, da própria propriedade do pastor. Eu soube que lá temos cedro, louro e canela da melhor qualidade. Estou expedindo agora, ordens para que o carpinteiro Gross receba o auxílio de alguns serradores, que comecem a fazer tábuas, lá no local da construção. Ainda no primeiro mês do próximo ano, os meus trabalhadores deverão seguir até a Colônia de Três Forquilhas em companhia do carpinteiro Gross”. Paula Soares escreveu então: Cemitério e Voges acrescentou: Friedhof. O Coronel explicou: - “O cemitério será uma obra bem simples e bem rápida. Enviarei entendidos em construção de taipa de pedra. Tenho gente bem experiente para isto. Acredito que basta a cerca, de pedra comum, como proteção. O carpinteiro aproveita a ida dele e já prepara uma cruz de madeira, para ser colocada, no ponto que o pastor determinar”. - Paula Soares escreveu: Cruz e Voges colocou: Kreuz.

Paula Soares escreveu: Pedreiro e Voges

acrescentou: Maurer. O Coronel dirigindo-se ao pastor falou: - “Pastor, quando o senhor viajar até São Leopoldo sugiro que procure com as autoridades de imigração por algum pedreiro qualificado, em particular, que saiba trabalhar com o estilo enxaimel. Tenha interesse também por outros profissionais que sejam mestres em seus ofícios. Mesmo que não forem necessários na Colônia de

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Três Forquilhas, tenho colocação para eles aqui em Torres, junto ao meu destacamento militar.

O pastor escreveu: Messe e acrescentou: Missa.

Paula Soares o encarou curioso. Voges então disse: - “Estou com o plano de realizar uma Missa protestante na noite da passagem para o ano novo. Solicito a sua permissão e a designação de um local que o senhor considerar apropriado”.

Paula Soares respondeu prontamente: - “Concedo

a autorização. Vos digo que podem contar com a garantia da liberdade para a prática da vossa fé protestante. Sugiro que realizem a Missa no campo da tropa, que fica bem próximo do vosso acantonamento, na direção da lagoa. É um lugar bem protegido. E, se o pastor aceitar, mando os meus soldados da Cantoria dos Reis, para ajudar e para dar ânimo para o povo”.

Voges aceitou a oferta. Considerou que tal

integração, de um grupo de cantoria do destacamento militar, só poderia ser benéfica para estabelecer um maior entendimento com o povo local.

Paula Soares encerrou a reunião, dispensando

todos, menos o agrimensor. Em reunião reservada ordenou: - “Senhor Voss, organize tudo de tal forma para que em abril de 1827 o piloto (agrimensor) João José Ferreira possa se deslocar até Três Forquilhas para dar início à medição oficial de todos os lotes. Conceda preferência para que os colonos voluntários que o auxiliam no trabalho, sejam os primeiros na escolha de seus respectivos lotes. Os demais terão que se satisfazer com a terra que lhes for atribuída por sorteio, com exceção para a concessão de lotes especiais para os moinhos, os curtumes e para as duas cervejarias. As

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empresas devem receber preferência por um local apropriado, junto às águas do rio”.

O Culto do Preparo

Pastor Voges orientou para que um aviso verbal fosse difundido a todos: - “VENHAM ASSISTIR O CULTO DO PREPARO. É a preparação para entrar no ano novo. É a preparação para entrar na terra prometida, de Três Forquilhas”.

O efeito do anúncio foi muito bom. A

movimentação e a agitação entre os colonos protestantes do acantonamento de Torres foram intensos, na noite de 31 de dezembro de 1826. Eram homens, mulheres e crianças, vestidos com as melhores roupas, procurando o lugar mais favorável para assistir o culto. As mulheres e crianças de um lado. Os homens do outro lado. Era um costume arraigado e antigo, trazido da Europa.

A esposa de Paul Konig, em fase final de

gestação, não pudera vir ao culto. Ela estava muito perto de dar à luz. Seria a primeira criança dos imigrantes alemães protestantes, a nascer em Torres.

König se lastimava, dizendo: - “Eu quis tanto que

a minha criança viesse a ser a primeira a nascer em Três Forquilhas. No entanto, minha mulher teve complicações na vinda de São Leopoldo e, por isto, não foi aconselhável uma nova viagem de carroça”. No entanto, Paul König estava ali, bem diante do altar, ao lado de Johann Peter Jacoby, mais o casal Petersen e Nicolaus Mittmann.

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O altar estava montado sobre um tablado de madeira, sendo visível para todos. Uma cruz de madeira fora erguida no lado direito do altar. Sete archotes estavam acessos, três em cada lateral e um logo atrás do altar, fixados em postes, iluminando o cenário. Quando o pastor se postou atrás do altar, para dar início ao culto, fez-se um silêncio profundo. Os olhos de todos estavam como que pregados no pastor e no altar.

Voges solicitou que Catharina Petersen,

juntamente com seus acompanhantes, subisse também no tablado. Ele iniciou o culto com palavras de praxe, dizendo: - “Vamos realizar este culto do preparo, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, Amém. Convido a Catharina Diefenthaeler Petersen, que aprendeu a tocar flauta na Comunidade Luterana de Biebelnheim, para que ela nos acompanhe no canto, com sua flauta”. - Apenas uma flauta era pouco para dar um fundo musical para cantar ao ar livre. Mesmo assim, Catharina postou-se resoluta, para entrar em ação.

Voges anunciou o hino natalino: - “Eu venho a vós

dos altos céus”. - Um hino antigo, criado pelo próprio reformador Martim Luther e muito conhecido e apreciado por todos. Como momento litúrgico o pastor declamou o Salmo 23, que ele havia memorizado. Falou de modo pausado e com entonação poética. A sua voz forte a agradável, prendeu a atenção dos presentes, que davam a impressão de estarem sorvendo cada palavra.

Agora o ambiente estava preparado para a

mensagem do pastor. Ficou patente que todos estavam ansiosos para saber o que Voges teria para dizer sobre o preparo para o ano novo e sobre o preparo para entrar em Três Forquilhas. Porém o pastor anunciou mais um hino: - “Vamos cantar o hino Castelo Forte é nosso Deus, acompanhados por Catharina com sua flauta”. Este hino

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era ainda bem mais conhecido que o anterior e muitos dos presentes, mesmo sem hinário, acompanharam, cantando com voz firme e forte. O hino ecoou pelo espaço...

Nicolaus Mittmann mostrava-se entusiasmado,

ouvindo-se a sua voz firme e forte, somando com a do pastor, concedendo um destaque muito especial para o louvor da comunidade de fé reunida diante do altar. Finalizado o cântico, os olhos de todos dirigiam-se ao pastor, notando-se a forte expectativa de todas as pessoas querendo ouvir boas notícias.

Voges falou: - “Querida Comunidade de Cristo

nosso Senhor, que o primeiro hino cantado seja a nossa forte esperança, sempre na confiança de que Jesus veio até nós, dos altos céus, trazendo-nos socorro e encaminhamento. Nesta noite iluminada pela luz dos archotes, estamos no limiar de um novo ano. Um ano que nos promete a entrada na nossa terra prometida, quando todas as famílias haverão de encontrar o seu novo lar e uma terra que mana leite e mel”.

O silêncio era absoluto. Velhos, jovens e crianças,

de olhos bem abertos e atentos, pareciam despertar para uma visão ou um sonho, alimentado dia após dia, desde a saída da casa dos pais ou parentes, lá da Europa agora já tão distante.

Voges continuou: - “Deus quer preparar o seu

povo para cada nova etapa da caminhada. Nesta noite trata-se uma vez do preparo para entrar no novo ano, de número 1827 de nosso Senhor Jesus Cristo. Faltam poucas horas para isto. Entretanto, Deus quer também preparar o seu povo para, neste novo ano de 1827, poderem tomar posse da terra que lhes está prometida”.

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Estava aí a boa notícia que eles esperavam escutar. Diversas mães e crianças seguraram firmemente uns as mãos dos outros. Parecia uma corrente de fé e oração. E o pastor continuou: - “O povo de Deus não teve permissão para vir e avançar direto para alcançar a terra prometida. Foi uma jornada que durou quarenta anos. Tempo de preparação... Tempo de enfrentar o deserto, tempo de enfrentar duras provas, enfrentar desânimo, impaciência e até a incredulidade. Por isto peço que ouçam com muita atenção a palavra de Deus que vos trago nesta noite. Ouçam o texto de Josué, capítulo 1 versículos 1 a 18”.

Voges leu, pausadamente, com voz clara e forte,

o texto anunciado. Depois, teceu considerações sobre o texto, destacando: - “Semelhante aos israelitas, nós que nos encontramos neste limiar de entrada para o ano de 1827, temos nosso sonho, nosso alvo e nossos objetivos, que nos são importantes, para o nosso futuro e para as nossas vidas, seja como pessoa, seja como família ou como comunidade. Estamos diante de um ano decisivo, quando nos será dado tomar posse da terra prometida, que concretamente, leva o nome de Três Forquilhas. Lendo os primeiros capítulos do Livro de Josué, encontrei muitas lições da palavra de Deus, que nos querem orientar nesta jornada. Primeiro: Deus exigiu estrita obediência às suas ordenações. Segundo: A obediência não vem sozinha. É necessária a perseverança. Perseverar é manter a fé. Perseverar é estar disposto a lutar e trabalhar. Perseverar é manter a união e o respeito mútuo. Perseverar é ter esperança. São qualidades que precisam estar presentes já aqui em nosso acampamento, que se denomina tempo de espera e tempo de preparação, para a chegada do grande dia, da nossa entrada plena para formarmos a Colônia de Três Forquilhas. Quem quiser ser ou ter alguma coisa lá, naquela oportunidade de vida nova, terá que perseverar,

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já agora e sempre. No Evangelho de Lucas 18, Jesus manda < orar sempre e nunca desfalecer >. Isto também é perseverar. A oração é como uma alavanca poderosa. A oração é capaz de mover montanhas, falo das montanhas que, nesta hora, se acumulam em vossos pensamentos, as montanhas do desânimo, as montanhas da impaciência ou mesmo a pior de todas, que é a montanha da incredulidade. Por isto realizamos este culto, para orar pedindo que Deus nos mostre o modo correto de perseverar. Finalizo com as palavras que Deus falou a Josué quando disse < Não te mandei eu? Esforça-te e tem bom ânimo; não pasmes nem te espantes, porque o Senhor teu Deus é contigo, por onde quer que andares > ”.

Finda a pregação, o pastor fez a oração final e

depois dirigiu um Pai Nosso comunitário. Convidou, em seguida, o tal de “cantoria dos Reis” que Coronel Paula Soares havia gentilmente concedido. Tratava-se de um grupo de doze integrantes, na maioria trajando o uniforme militar e portando instrumentos de corda que os imigrantes desconheciam.

A presença dos cantores agradou a alguns, e

ouvia-se vozes de desacordo. Mittmann sussurrou ao pastor: - “Essa gente é católica e certamente vão trazer uma palavra cantada que não é do nosso costume luterano. Por que o Coronel Paula Soares os mandou para cá?”.

Voges tentou tranqüilizar Mittmann: - “Fui eu que

aceitei a oferta. O Paula Soares não impôs a presença deles em nosso meio. Imaginei que isto seria bom, para nós e para eles. E, afinal, com certeza eles só irão cantar sobre algum assunto relacionado com o Natal, ou seja, sobre o nascimento de Jesus”.

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Nisto, os primeiros acordes das rabecas11

começaram a soar. As vozes dos cantores iniciaram numa espécie de louvação sobre o nascimento de Jesus e sobre a visita dos Reis Magos. Os colonos alemães nada entendiam, mas o canto era envolvente.

Finda a apresentação, os rabequeiros saíram em

fila, noite adentro, afastando-se do local. Novamente sobreveio um momento de silêncio,

todos com a atenção voltada para o pastor Voges. Ele falou: - “Nosso encontro ainda não terminou. Quero aproveitar a ocasião para vos fazer um relato sobre o que vimos e o que fizemos em Três Forquilhas, durante aquela semana, até a noite do Natal. Convido que Paul König, Johann Peter Jacoby e o casal Petersen para que fiquem ao meu lado, aqui na frente do altar e me ajudem no relato. Alguns já me ouviram falar sobre este assunto, nestes últimos dias. Para eles apenas será repetição. Mas tem gente que ainda não puderam ouvir a respeito da situação que, agora, lá existe. Estou muito feliz com o que me foi dado ver e com aquilo que já foi feito. Para mim a maior alegria foi a construção da nossa igreja, feita com a ajuda de índios daquela região e de soldados que Paula Soares nos concedeu. É uma simples choupana de palha, mas é o nosso templo, em Três Forquilhas, esperando por vocês”.

Voges falou sobre os quatro núcleos previstos,

para a localização dos colonizadores. Deu detalhes sobre a paisagem, sobre fauna e flora e sobre a terra muito fértil. Descreveu as aves, os animais, os peixes e os índios. Em seguida pediu que König e Jacoby também falassem. König explanou sobre os roçados e da terra pronta para receber a semeadura. Enfatizou que as primeiras lavouras serão comunitárias, o que significa que todos ali também terão a possibilidade de receber

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desses mantimentos, em caso de uma colheita bem sucedida. Jacoby falou sobre a ferraria já em funcionamento, sobre a saúde do Comandante Schmitt e a presença do médico, Dr. Elias. Finalmente Catharina pediu a palavra e falou sobre a maravilhosa noite de Natal que ela tinha vivenciado, bem junto à floresta, rodeada de índios, que pareciam encantados pelo som da flauta. Falou então sobre a forte saudade que lhe ia no fundo da alma, saudade da mãe, saudade da irmã Elisabeth, elas que pareciam inseparáveis. Catharina não conseguiu se dominar e começou a chorar. Diversas das mulheres presentes também se contagiaram com o choro e a acompanharam com soluços e pranto.

Mittmann foi até onde o pastor se encontrava e

aos cochichos pediu: - “Por favor, pastor, anuncie aquele hino de Natal que cantamos hoje. Creio que isso ajudará a romper este momento de tristeza”. - Voges agradeceu pela sugestão e anunciou que cantariam mais uma vez “Eu venho a vós dos altos céus”.

Catharina, como por encanto, se recompôs, pegou

a flauta e se postou ao lado de Voges e Mittmann, para acompanhar o cântico. Um clima envolvente cobriu todo o ambiente, tocados pela brisa suave do mar e das lagoas, com um cântico que agora lhes chegava até o fundo da alma. Muitos testemunharam, mais tarde, que uma grande paz passara a tomar conta deles. Ficaram ali, reunidos, conversando em pequenos grupos, até a entrada do novo ano.

Alguém deu então deu um forte, viva, seguido por

muitas outras vozes. Outra pessoa tinha trazido uma lata de metal e passou a bater nela com um pedaço de pau, hábito antiqüíssimo de algumas regiões da Europa. Aos poucos foram se dispersando, retornando até as suas moradas, no acantonamento.

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“DE PÉS E A FERROS...”

No dia 3 de janeiro de 1827 nasceu, finalmente, o

tão esperado filho de Paul König. Era a primeira criança de imigrantes alemães protestantes, a nascer em Torres.

Foi um parto difícil. A parteira constatara que a

criança estava em posição errada, no útero. Não ocorrera aquela virada normal, que deixa a cabeça da criança na posição adequada, pronta para sair. Diante dessa complicação a parteira declarou, com desânimo: - “Não sei mais o que fazer. Temo pela vida tanto da mãe bem como da criança”.

Às pressas, Paul selou seu cavalo e seguiu até o

destacamento militar, torcendo que o médico do quartel estivesse em condições de dar atendimento emergencial. Encontrou o médico, que felizmente estava com um cavalo pronto. Apressado, este acompanhou o pai desesperado, tentando transmitir-lhe um pouco de tranqüilidade. Ele disse: - “Haverá de dar tudo certo. Confie em Deus...”.

Chegando na casinha simples, de um só cômodo,

o médico entrou e foi direto até a cama para examinar a parturiente. Constatou a gravidade da situação e disse à parteira: - “Prepare meus instrumentos, que estão naquela bolsa. Vai ser preciso fazer um nascimento ‘de pés e a ferros’ ”.

Logo que a criança nasceu, o médico a trouxe

para perto do pai, que agora já estava bem mais calmo. O médico recomendou: - “Todo o cuidado será pouco. A criança nasceu fragilizada, pela demora no parto”.

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König foi procurar, imediatamente, o pastor: - “Pastor Voges, a criança nasceu. O médico disse que ela está fraca. Será que precisamos batizá-la agora?”.

- “Sugiro que aguardem. Só por estar fraca, não

significa que tenha que ser ministrado um batismo de emergência. Aguarde. Caso constatarem qualquer problema com ela, então sim, me chame que vou até lá para batizá-la”. - Respondeu Voges.

A criança recuperou-se bem nos dias posteriores e

passou a mamar normalmente. König então falou com sua esposa: - “Emilia, precisamos escolher um nome para o menino. Você já o chamou de Hannes. O primeiro nome até poderá ser este, mas eu gostaria mais outro, talvez mais um nome bíblico... Vou olhar no Novo Testamento para ver se encontro o nome de algum outro apóstolo de Jesus e que combine com Johannes”.

König pegou a Bíblia ficou durante um bom tempo

lendo e examinando a relação dos doze discípulos. Finalmente voltou até perto de sua mulher e disse: - “Encontrei. Aqui está um nome que eu acho ser muito bonito e que soa forte e diferente”. – E disse, pausadamente: - “Bartolomeus”. - Colocando o dedo naquele versículo da Bíblia.

- “Se você gostou, para mim também está bom”. -

Disse Emilia. Quatro dias depois, no dia 7 de janeiro, realizou-

se o batismo de Johannes Bartolomeus König. O pai do pequeno explicou ao pastor: - “Escolhemos para padrinho o meu amigo e que será meu futuro vizinho em Três Forquilhas, o Johannes Peter Jacoby. Será que posso escolher mais outro padrinho? Porém, preciso dizer que o

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mesmo seguiu com o Imperador para a guerra da fronteira? O que se faz com um padrinho ausente?”.

Voges explicou: - “Você pode escolher mais outro

padrinho, se quiser, mesmo que seja alguém ausente. Apenas pedirei que coloque uma pessoa que o possa representar, na hora do batismo. Quem é o escolhido?”.

- “Quero o Viking, o Hans Thron Stollenberg. Que

ele seja um dos padrinhos do meu Bartolomeus. Faço votos que Deus proteja o Viking, para que ele volte com saúde e possa ver este novo afilhado, que ele passa a ter a partir de agora”.

A realização do sacramento do batismo ocorreu ali

no próprio casebre de König em uma cerimônia bem simples. Nicolaus Mittmann também marcou presença. Postado próximo ao pastor, ele observou cada detalhe do ato, como um discípulo desejoso de aprender com o mestre.

Uma casa desocupada vira escola Horas mais tarde, vemos o professor Georg

Gottfried Engel sentado na soleira de seu casebre provisório, no acantonamento de Torres. O ar estava mormacento. Ele estava pensativo.

Sentia que havia um vazio, que se fizera na vida

dele e de Sofia Margaretha, sua mulher. Durante a viagem de navio, rumo ao Brasil, haviam perdido um casal de filhos, a Catarina com quatro anos e o Georg Michel com dois. Eles sentiam a falta dos pequeninos. E o vazio e a dor eram aumentados no coração dele, ao tomar conhecimento do nascimento do filhinho dos König

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Figura 7: Professor pensativo. Fonte: Fotomontagem do autor, 2009.

e, mais ainda, ao observar as crianças, de seus compatriotas colonos alemães, que ali corriam em torno das casas, em algazarra. Essas crianças não tinham o que fazer e gastavam os dias, na procura por fazer alguma coisa.

O professor disse para os seus botões: - “Sou

professor e aqui estou sentado, faz horas, curtindo o meu tédio, a minha dor e desilusão. E ao meu redor estão crianças, querendo encontrar uma forma de preencher as horas, com algo interessante. Que professor sou? Por que não tenho uma sala e reúno essa meninada para que aprendam a ler e escrever, se ainda não sabem. Ou então, que aprendam lições novas, para prosseguir na escolarização?”.

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Engel levantou-se e foi a procura do pastor Voges. Chegando perto da casa onde Voges e o casal Petersen moravam, perguntou a um vizinho, igualmente sentado na soleira da porta, sem fazer nada: - “Me diga. Você viu o Voges por aí? A casa parece que está fechada!”.

- “Ele foi até o ancoradouro da Lagoa com o

Petersen”. - Foi a resposta. Já que não tinha nada para fazer, Engel também

foi para o local indicado. Chegando próximo do ancoradouro, viu Petersen e esposa, mais o pastor em animada conversa. Aproximou-se e perguntou: - “Estou atrapalhando?”.

- “O que é isso, professor Engel”. - Respondeu

Voges. - “Você não incomoda jamais. É bem vindo, junte-se a nós. Eu estava aqui conversando com o Petersen que anda ansioso para construir uma balsa ou uma barca simples, para incrementar a navegação daqui até Três Forquilhas. Parece que a idéia é interessante e importante, mas não é oportuna”.

Engel quis saber: - “Por que não é oportuna? Não

temos aqui material de construção, telhas e tijolos, a serem levados até a nossa Colônia?”.

- “Deste ponto de vista, sim, seria bem possível

de se estabelecer um meio de transporte. Contudo, o Petersen quer receber um lote de terra lá em Três Forquilhas. Creio que ele terá que escolher entre um ou outro. O Coronel Paula Soares não vai concordar em dar terras para alguém que se estabeleça aqui em Torres, no ramo de transporte”.

- “Isso é verdade”. - Disse Engel, dirigindo o olhar

para Petersen.

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Voges examinou o professor, curioso, imaginando que este homem certamente viera por algum motivo muito importante, e perguntou: - “Professor Engel, aconteceu alguma coisa lá no nosso acantonamento?”.

- “Sim e não, disse Engel. Eu estava sentado na

soleira da porta do meu casebre, quando um grupo de crianças, correndo e fazendo algazarra, chamou a minha atenção. Eu ali sem nada para fazer. Elas em torno, procurando uma maneira de se entreter e de gastar as energias. Então perguntei para os meus botões, porque um professor sem nada ter para fazer, não aproveita o tempo para ensinar algo útil para aquelas crianças?”.

O pastor ficou visivelmente impressionado com o

depoimento de Engel. Encarou-o com grande admiração e falou: - “Professor Engel. Você merece nossos cumprimentos. Também sou um professor, além de pastor. Lá em São Leopoldo estive envolvido com a escolarização das crianças. Mas aqui, me descuidei desta realidade. Meu pensamento ficou por demais, direcionado para tudo o que tem a ver com a instalação da Colônia de Três Forquilhas e não consigo mais ter olhos para ver os problemas daqui. Vamos agora até o destacamento do Coronel Paula Soares. Se ele tiver algum tempo disponível, vamos já ver o que ele tem a dizer a respeito deste teu plano. Vamos indo...”.

Eles seguiram rumo à sede de Torres, trocando

idéias a respeito da possibilidade de haver uma ocupação mais proveitosa, para as crianças. O grupo foi de sorte, pois o Coronel estava diante da sede da administração, dando ordens a soldados, na faina de carregar algumas carretas, com provisões destinadas para os colonos.

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Paula Soares quando viu o pastor perguntou: - “Pastor, veio para as nossas aulas de alemão e português?”.

- “Até que pode ser”. - Respondeu Voges. - “Na

verdade estou aqui com um professor e que tem um plano bastante interessante para lhe ser apresentado”.

- “Venham comigo”. - Disse Paula Soares,

mostrando a porta de entrada do seu prédio. Sentando em torno da mesa, o pastor tomou a

pena de tinteiro, da mesa do coronel, e escreveu sobre uma folha: Kinder e acrescentou: Crianças. Depois escreveu: Schule.

Paula Soares olhou e disse: - “Esta última palavra

eu já conheço. O que está acontecendo com a escola das crianças?”.

Voges explicou então sobre a situação vivenciada

pelo professor Engel, nessa tarde. Esclareceu que Engel, não tendo nada para fazer, sentia-se mal. Ele desejava ver as crianças, aproveitando o tempo de forma útil.

Paula Soares olhou para o professor com

admiração e disse: - “Louvo a visão e a boa vontade deste professor. É certo que autorizo um atendimento escolar para estas crianças, até que elas possam seguir para Três Forquilhas. Já anotei aqui, ordenando providências para o meu oficial administrativo. Ele transformará uma das casas desocupadas do acantonamento, para que sirva de escola. O professor recebe a total liberdade para estabelecer o conteúdo de ensino, seja na alfabetização ou para o segmento seguinte de escolarização. Aguardo que ele apresente a

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lista do material que ele necessita, para o trabalho com as crianças”.

Na segunda semana do mês de janeiro de 1827, o

professor Georg Gottfried Engel deu início às aulas, em sua escola improvisada. Ele conseguiu organizar duas turmas, uma de crianças para alfabetização e outra para ampliar os conhecimentos.

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UM TEMPORAL QUE TRAZ UM PRESENTE VALIOSO No dia 27 de janeiro de 1827, um forte temporal

se abateu sobre a região de Torres. O vento fustigava as casas precárias dos colonos, parecendo querer varrê-las do cenário. Os ventos mais fortes, no entanto, sopraram distantes, na direção do alto mar. Foram poucas horas de fortes ventos, porém, o susto fora muito grande para todos.

Quando o temporal amainou, pessoas estranhas

desembarcaram de uma frágil embarcação, na altura da Guarita. Vinham em busca de socorro, pois que o navio no qual viajavam, fora seriamente danificado.

Figura 8: Náufragos em busca de socorro. Fonte: Gravura elaborada pelo autor, 1974.

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Os curiosos se reuniram na praia, para ver o navio distante. Podia-se ver que um dos mastros estava danificado, com algumas velas sem amarras. O Coronel Paula Soares se dispôs a socorrê-los, no que lhe fosse possível. Um grupo de soldados saiu em direção da floresta, distante, para cortar a madeira que se fazia necessária para a substituição do mastro danificado.

No dia 31, Paula Soares enviou um estafeta para

chamar o pastor Voges. Assim que Voges chegou ao Baluarte Ipiranga, o coronel informou: - “Temos um navio danificado pelo temporal, ancorado em alto mar, diante de Torres. Descobri agora de que se trata de uma missão de protestantes procedentes do Rio de Janeiro, que tencionavam navegar para Porto Alegre...”.

- “Será possível conversar com eles”. - Quis saber

Voges, muito interessado em ter contato com estas pessoas.

- “Certamente que sim. Venha comigo...”. Paula Soares seguiu, em companhia do pastor, até

uma casa isolada que ficava no caminho que leva até a Guarita. Diversos tripulantes do navio estavam ali, envolvidos no trabalho, preparando um novo mastro para o navio. Um deles dominava também a língua alemã e Voges conseguiu comunicar-se com ele. Apresentou-se como pastor evangélico, nesta localidade. O tripulante anotou o nome do pastor, combinando então um encontro para a manhã do dia 2 de fevereiro, nesse mesmo local, quando um dos responsáveis da Missão Inglesa viria à terra.

No dia e hora marcados, o pastor Voges

compareceu ao local. Agora mais outro passageiro do navio também ali se encontrava e que se identificou: -

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“Sou o reverendo Mathias Main. Estou concedendo apoio para a British and Foreign Bible Society que contratou esta embarcação. O nosso objetivo é o de conhecer algumas comunidades evangélicas do Brasil e oferecer-lhes o nosso serviço de difusão da Bíblia Sagrada e da tradução para as mais diversas línguas faladas no mundo”.

O reverendo repassou para Voges dez Bíblias em

língua alemã e dois Novos Testamentos em português, editados pela Sociedade Bíblica Britânica. O pastor olhou para esta preciosidade com espanto, admiração e grande interesse, e, finalmente, pegou o presente.

O reverendo Main continuou: - “Estávamos

seguindo para conhecer Porto Alegre, onde deve haver um grande número de evangélicos, todavia, com as avarias verificadas em nosso navio e o conseqüente atraso na viagem, decidimos retornar para o Rio de Janeiro. O fato é que alguns missionários britânicos, embarcados neste navio, precisam voltar, em breve, ao Reino da Grã-Bretanha...”.

- “Posso ser vosso colaborador na Sociedade

Bíblica, para os assuntos do Sul do Brasil, área que agora já conheço bem! Por exemplo, posso lhes assegurar que em Porto Alegre os senhores não encontrariam nenhuma Comunidade Evangélica. Ela fica distante, quase 200 quilômetros, para o interior, numa localidade que leva o nome de São Leopoldo, onde trabalhei como pastor, até poucos meses atrás...”.

- “O Senhor pode colaborar, sim, com a British

and Foreign Bible Society. Vou lhe explicar a maneira como funciona a nossa missão. O pagamento das Bíblias é feito mediante ofertas voluntárias. É a maneira que concedemos para que pessoas que tem condições

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possam colaborar com este serviço missionário, de levar a luz da palavra divina para quem não tem recursos ou para quem ainda não conhece a Bíblia Sagrada”.

- “A chegada dos senhores até Torres foi

providencial” - Explicou Voges. - “Posso vos mostrar a situação difícil em que atualmente vivem a maioria destes nossos colonos evangélicos que cá vieram, para construir a nossa igreja”.

Pastor Voges continuou: - “O que devo fazer para

me habilitar como colaborador da Sociedade Bíblica?”. Reverendo Main abriu uma mala, que estava nas

proximidades, de onde tirou papéis, pena e tinta de escrever e disse: - “Em primeiro lugar, o senhor deve preencher esta ficha”.

- “Agora?”. - “Sim, pode ser agora...”. Voges preencheu os dados solicitados:

British and Foreign Bible Society

Designação de cinco Éforos no Brasil

Ficha de proposta para integrar o Eforado

Nome: Carl Leopold Voges Nascimento: 01/10/1801 Origem: Hildesheim, do Reino de Hannover Pai: Ferdinand Voges Mãe: Anastácia Hammerstein Voges Formação: Hannover

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Residência: Colônia Alemã Protestante de São Pedro de Alcântara das Três Forquilhas – Torres – Província de São Pedro do Rio Grande do Sul – Brasil Informações adicionais: Chegada ao Brasil: 11/10/1824, no Rio de Janeiro 27/12/1824, naufrágio em Mostardas 11/02/1825, chegada a São Leopoldo 17/11/1826, chegada a Torres Cargo que exerce na Igreja: Pregador e pastor evangélico. Cargo na British and Foreign Bible Society: - Éforo para o Sul do Brasil Fonte: AFV

Reverendo Main entregou ao pastor uma fatura,

atestando a concessão de cem exemplares da Bíblia Sagrada, e duzentos e cinqüenta exemplares do Novo Testamento, todos em língua alemã. Na fatura constava a observação: < O material será da edição de 1827 e será enviado pelo escritório da Sociedade Bíblica, no Rio de Janeiro >.

Voges guardou o documento com muito cuidado. O reverendo se despediu do pastor, dizendo que

precisava retornar ao navio para o momento devocional da tripulação e o almoço. Antes de ser levado ao navio, solicitou ainda: - “Sei que será um trabalho penoso e

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demorado... Mas é importante que o senhor escreva uma carta, agora, para a British and Foreign Bible Society descrevendo a situação que o senhor vive no Brasil. Vou lhe dar alguns tópicos”:

1 – Informe que recebeu a correspondência

da Sociedade Bíblica Britânica e que preencheu a ficha de colaborador.

2 – Mencione que já recebeu a nossa fatura de concessão de Bíblias e que aguarda a remessa das mesmas.

3 – Se tiver dados disponíveis, faça um relato da situação dos evangélicos, no Brasil e na sua área de trabalho.

4 – Conceda informações sobre as Comunidades Evangélicas localizados em sua área de trabalho.

5 – Descreva um pouco sobre a situação na qual vivem os evangélicos, informando se existem pessoas que podem colaborar com a Sociedade Bíblica. Pastor Voges levou mais de duas horas para

redigir a carta e para, depois, novamente passá-la a limpo. Mesmo assim não estava satisfeito com as palavras iniciais da carta. Afinal, o texto foi escrito às pressas. Ele tivera o desejo de fazer perguntas ao reverendo Main sobre o modo de dizer determinadas coisas. Mas o reverendo já fora embora, para o navio.

Voges enviou a correspondência através de um

dos tripulantes, que ainda se encontravam em terra trabalhando na conclusão do novo mastro para o navio.

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Texto da Carta do P. Voges à Sociedade Bíblica - (Traduzida do alemão)

Vossa Excelência: Recebi corretamente os vossos papéis de

27 de janeiro de 1827 e a fatura referente a 100 Bíblias e 250 Novos Testamentos, encadernados, que a mui respeitável British and Foreign Bible Society se digna a doar para o bem da Comunidade Evangélica de São Leopoldo e que serão a mim enviados através de Mathias Main, do Rio de Janeiro. Mas visto que ainda não recebi essa doação à qual me inscrevi com o Sr. Main, sabendo que estas Bíblias chegarão ao Rio de Janeiro. Mandarei notícias sobre o correto recebimento assim que a doação chegar.

V. Exa. Bem como a mui respeitável

Sociedade tem manifestado o desejo de saber a respeito do número de membros da minha comunidade e o número de suíços no Brasil. Por isso passo a relatar, em seguida, o número conforme consta em meus registros.

No RIO DE JANEIRO existem 2.500

militares alemães dos quais 2.000 são evangélicos. Não conheço o número de habitantes evangélicos que residem no Rio de Janeiro.

Em Pernambuco existem 600 pessoas

alemãs, das quais 581 professam a religião evangélica. Este número está aumentando pelo número de novos colonos que estão imigrando. Os militares demitidos são enviados às colônias alemãs.

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A COLÔNIA DE SÃO LEOPOLDO, na Província do Rio Grande do Sul, de 12 léguas quadradas, tem 308 famílias, 1130 almas. Destas, apenas 52 famílias, 230 almas professam a religião católico romana.

A segunda na mesma Província, a COLÔNIA

DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA, de 28 léguas quadradas, conta agora com apenas 96 famílias, 448 almas, das quais 8 famílias, 27 almas, professam a religião católico romana.

Ao norte da missão, imigraram no final do

ano, 12 famílias e alguns solteiros, naturais do Grão Ducado de Mecklemburgo. Já tinham chegado à capital do Rio de Janeiro, como tinha sido acertado. Mas, para assegurar aos colonos o urgente estabelecimento em suas propriedades, o governo os enviou para o interior, em terras que estavam habitadas por índios convertidos.

Na Província da BAHIA, a Colônia Alemã de

Leopoldina, denominada segundo o nome de Sua Majestade, a saudosa Imperatriz do Brasil, teve a 8 de agosto de 1825, data em que me foi enviada a lista constando 80 famílias, 345 almas, em parte suíços reformados, em parte menonitas e protestantes alemães.

A COLÔNIA SUIÇA DE NOVA FRIBURGO, na

Província do Rio de Janeiro, no distrito de Cantagalo, tem agora 130 famílias, 430 almas, de reformados da suíça francesa e 96 alemães, 237 almas, protestantes.

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Para os REGIMENTOS ALEMÃES, por falta de pregadores evangélicos não está contratado um pregador (capelão).

As Colônias Alemãs do Brasil recebem um

pregador, um professor, um médico e uma farmácia.

O ministério de pregador evangélico, em

São Leopoldo, está sendo atendido pelo Sr. EHLERS, do Reino de Hannover (anteriormente sacristão-mor em Hamburgo. O professor da Colônia de São Leopoldo é o Sr. GEORG HEINRICH MOOTZ, do Reino da Prússia, Província de Hessen Renano (formado na Escola Normal do Ducado de Hesse, em Friedberg).

A segunda Colônia Alemã no Brasil, SÃO

PEDRO DE ALCÂNTARA, onde eu estou atualmente como pregador, construiu o primeiro templo evangélico no Brasil, com 66 pés de comprimento, 24 pés de largura, tudo feito na mais bonita madeira de cedro, mas no interior ainda inacabado porque minha comunidade e eu somos ainda por demais pobres para completar a igreja adequadamente. Esperamos por novos imigrantes para com a ajuda deles, arrumá-la completamente. O professor da Colônia é PETER PAUL MÜLLER, do Reino da Prússia, Província da Renânia, formado na Escola Normal real Prussiana de Neuwied (um moço erudito, do qual tenho as melhores esperanças de que irá semear boa semente nos corações de seus alunos, semente esta que trará bons frutos também nos anos posteriores de suas vidas).

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V. Exa. E mui respeitável British and Foreign Bible Society se dignam a me oferecer um número maior de Bíblias para as Comunidades Alemãs no Brasil, se delas eu necessitar. Aceito a oferta benévola, pedindo mais 800 Bíblias e 800 Novos Testamentos.

Nos corações de todos os alemães,

protestantes e católicos, se faz sentir a falta de livros de edificação espiritual. Na família que possui uma Bíblia, as Sagradas Escrituras estão sendo lidas muito mais. E, está lhes sendo atribuído um valor muito maior do que na Alemanha. O pai de família, o qual possui uma Bíblia, lê aos seus familiares um capítulo da Sagrada Escritura aos domingos e feriados, e, eles cantam alguns hinos que aprenderam em sua juventude, ou hinos de edificação espiritual que as crianças aprendem na escola. Nisto consiste seu culto, pois é impossível assistir as prédicas todos os domingos, em parte por causa da distância da casa do Pastor, e em parte também por causa do tempo frequentemente chuvoso e, desta maneira a religião de JESUS está se alastrando mesmo em face dos maiores impedimentos.

V. Exa. e mui respeitável Sociedade Bíblica

querem também saber se houvesse porventura alguns membros da Comunidade Alemã que se pudessem pagar uma certa quantia para uma Bíblia ou Novo testamento, em língua portuguesa. Notifico a V. Exa. e a mui respeitável Sociedade Bíblica de que a maioria dos colonos pode pagar uma certa quantia para uma Bíblia ou Novo Testamento. Peço remeter-me algumas Bíblias, sobretudo 200 Novos Testamentos em língua portuguesa, visando acender a verdadeira luz das

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Sagradas Escrituras também nos pobres portugueses. É que na cadeira dos apóstolos e dos profetas estão assentados líderes cegos que não possuem a maneira de pensar dos apóstolos. Entre a grande maioria dos sacerdotes, no Brasil, raras vezes se consegue um Novo Testamento e muito menos ainda uma Bíblia inteira. Entre os leigos nem se acha um Novo Testamento nem uma Bíblia inteira. Só um rosário. Existe pois, muito mais é ignorância e superstição.

Tomo também a liberdade de notificar a V.

Exa. e mui respeitável Sociedade Bíblica, de como estão sendo tratados os colonos alemães aqui no Brasil:

1º - Eles são subsidiados por Sua

Majestade, o Imperador. Durante dois anos recebem subsídios: 8 vinténs por cabeça e por dia. Um pai de família que tem uma família numerosa, vive em melhores condições do que alguém que tem a família pequena. Daí um pai de família que vivia na miséria na Alemanha, é um abastado aqui.

2º - Os colonos recebem os instrumentos para a lavoura.

3º - Os colonos recebem a roupa mais indispensável.

4º - Durante 10 anos recebem médico e remédios gratuitos.

5º - Durante 10 anos estão livres de impostos estatais.

6 – Cada colono recebe 600 jugadas alemãs12 de terra

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7º Cada colono recebe 3 cavalos, 1 vaca com bezerro, 2 bois de canga, porcos, gansos e galinhas. Os colonos também recebem suas casas,

construídas em estilo brasileiro. O clima aqui, é moderado. Há duas estações, a chuvosa e a seca. E, uma primavera perpétua. Medram aqui todas as plantas e frutas européias.

Recomendamos à futura estima de V. Exa.

E da mui respeitável Sociedade, tenho a honra de chamar-me o mais atencioso servidor de V. Exa.

CARL LEOPOLD VOGES Pregador da Colônia de São Pedro de Alcântara (Três Forquilhas). Éforo das Comunidades Protestantes no Brasil.

Colônia de São Pedro de Alcântara, 02 de fevereiro de 1827.

Fonte: do livro do autor: “Três Forquilhas 1826 – 1899”. p. 40 a 43.

Análise da Carta de pastor Voges à Sociedade Bíblica. A carta do Pastor Voges, escrita às pressas, em

Torres, para a British and Foreign Bible Society revela alguns aspectos curiosos. Em particular chama a atenção que o pastor concede uma tênue referência que indica para a presença do grupo de colonos em Três Forquilhas. Fala de doze famílias e alguns solteiros. Ele não cita o nome do local, mas esclarece que é mata

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virgem, ocupada por índios. Ele fala também sobre a construção do templo evangélico de sua Comunidade. Ele descreve aquilo que é o seu grande sonho. Cita que a obra é feita com a mais bonita madeira de cedro. Naquela data, ao redigir a carta, o templo de madeira era ainda um projeto, apenas autorizado por Paula Soares, sem o início das obras. O que, na verdade, existia, era uma rústica choupana de palha de palmeira.

Fica evidente que pastor Voges inseriu no teor da

carta o seu maior sonho, além de expor as suas idéias e preocupações sobre a presença dos imigrantes protestantes em solo brasileiro.

Que haja uma esperança, enquanto existimos...

O Coronel Paula Soares e pastor Voges estavam diante de duas carretas. O carpinteiro Gross e duas duplas de serradores sendo dois negros escravos de Torres acomodavam uma serra, ferramenta preciosa para o trabalho que teriam pela frente. Seguiam ainda, no grupo, dois carpinteiros, soldados do destacamento, em condições de apoiar o trabalho de Gross. Paula Soares comentou com Voges: - “A sua obra de igreja-escola será uma empreitada simples, pois todo o material para a construção poderá ser encontrado na nova Colônia. O que me preocupa é um problema que teremos em junho ou julho quando as primeiras famílias serão assentadas em seus lotes de terra já definitivos. Pretendo mandar telhas daqui, para que se comece a construir as casas daqueles que lá estão, a começar pelo Comandante Schmitt e, em seguida, o médico Dr. Elias. O transporte de telhas será bastante pesado para os nossos

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carreteiros. Precisaríamos de um transporte alternativo e prático”.

Voges muito atento opinou: - “Coronel, ouvindo as

suas palavras sobre um transporte alternativo, preciso dizer que o meu futuro concunhado, o barqueiro Peter Friedrich Petersen, está sonhando desde que aqui chegamos. Ele fica olhando para as águas da Lagoa e sonha em ter uma balsa ou barca para estabelecer um transporte de pessoas e de carga, entre Torres e Três Forquilhas”.

- “Pastor Voges, por que não me falou antes,

desse sonho do barqueiro? É evidente que o assunto me interessa...” - Disse o Coronel.

Voges em tom de pedido de desculpas falou: - “O

problema é que Petersen não quer perder a oportunidade de receber um lote de terra em Três Forquilhas”.

- “Mas isto se resolve”. - Disse Paula Soares. -

“Ele poderá ser contemplado com terra, e ter, além disso, uma balsa ou barca para transporte, no objetivo de ligar Três Forquilhas com Torres. Deixa este homem aqui comigo. Ele não poderá ir contigo, agora. Preciso resolver esta questão do transporte mais pesado, com urgência, para aliviar a situação dos meus carreteiros”.

Petersen e esposa estavam ali prontos, para

acompanhar Voges até Três Forquilhas. Quando ele soube do parecer de Paula Soares, se emocionou muito. Abraçou longamente a esposa, e falou: - “Catharina, você vê? Estive certo o tempo todo, com o meu sonho? A navegação pelas lagoas é viável. Vou ter a minha barca. Eu sei que alguns sonhos se desfazem, pois nem tudo em nossa vida pode se concretizar. Mas sei também que a esperança não deve acabar, enquanto existimos... O

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Voges não pregou no ano novo, com tanta ênfase, sobre o perseverar? Pois é... Acredito agora que perseverar é também manter a minha esperança”.

Petersen retirou suas coisas de uma das carretas

e Voges passou a se despedir das pessoas que haviam se reunido diante da sede administrativa de Torres. Vendo a presença de Mittmann perguntou: - “Você não quer enviar algum recado ao seu concunhado, o Justin?”.

Mittmann meneou a cabeça negativamente e

respondeu: - “Não tenho nada especial para meu concunhado. Além disso, considero que ele é muito jocoso, com coisas sérias. Não gosto quando ele me chama de Dickkopf (cabeçudo). Nunca sei se ele fala isso porque a minha cabeça é maior que a dele ou se é para deboche. Não quero nem pensar em receber a alcunha de Dickkopf. Gosto quando me chamam de Biebelmann (homem da Bíblia). Justin e eu somos concunhados, é verdade. Mas o que significa isto? Eles levam a vida deles e eu e minha mulher precisamos levar a nossa vida”.

Voges não conseguiu segurar um sorriso. Depois,

dirigindo-se a outras famílias, quis saber: - “Alguém mais tem parentes lá?”.

Johannes Niederauer se apresentou então e falou:

- “Diga para a minha querida prima Dorothea, a esposa do Feck, que precisa colocar um pouco de juízo na cabeça do marido. O Feck vive correndo para tudo que é lado, fazendo todas as vontades do Comandante Schmitt. Se o Feck não começar a trabalhar para si mesmo, amanhã será um homem pobre, como tanta gente que vive lá na Europa, dependendo dos donos das terras e trabalhando para a riqueza deles”.

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As palavras de Niederauer estabeleceram um breve silêncio. Voges quis saber: - “Para o seu irmão Philipp Niederauer, algum recado?”.

- “Ah sim. Um bom parto para a minha cunhada e

que o meu irmão aproveite para escolher um bom local para a nossa casa comercial...”.

König aproximou-se e lamentou: - “Pastor, você

não imagina a vontade que eu tenho para acompanhá-los. Mas eu preciso demorar mais algumas semanas ao lado de minha mulher, para que ela se restabeleça totalmente e possa cuidar bem do Bartolomeus. Informe o Comandante Schmitt, e aos demais, da minha alegria”.

- “Jacoby está voltando conosco. Sei que ele fará

o que você pede, pois vai querer dizer, com orgulho, que ele tornou-se padrinho de batismo de Johann Bartoleus König”.

- “É certo que sim”. - Disse Jacoby. Nisto chega a esposa de Eigenbrodt, apressada: -

“Que bom. Vocês ainda não saíram. Digam ao meu marido, que ele poderia voltar para cá por alguns dias. Já estou morrendo de saudade... O meu amor por ele é muito grande... Meu marido que não permita que nossa criança cresça sem poder dizer papa (papai)...” - Diversas pessoas riram imaginado que fora uma tirada de humor da senhora Eigenbrodt.

- “Mais alguém...”. - Perguntou Voges. Mittmann aproximou-se outra vez e quis saber: -

“Pastor, como fica o atendimento religioso das pessoas aqui em Torres, durante a sua ausência. Você esqueceu

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de falar a respeito disso durante o culto, na noite de 31 de dezembro?”.

- “Mittmann, você está aqui com eles. Para

qualquer emergência que surgir, tenho certeza que irão te buscar...”. - Disse Voges.

As carretas estavam prontas para a viagem.

Pastor Voges subiu para a sela do seu cavalo e seguiu ao lado das carroças, em meio aos soldados. Agora não havia mais a necessidade de contornar a área que estivera sob o domínio do terror dos campos da Itapeva. E Voges, virando o corpo, sobre o dorso do cavalo, ainda recomendou: - “König, esquecemos de falar aqui, sobre a bravura do Bobsin. É um bom assunto para entreter o povo, contando-lhes uma boa história, e que é verdadeira”.

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O PROGRESSO CHEGOU... Em Três Forquilhas, grande foi a satisfação com o

retorno de Voges e do grupo de trabalhadores. O agrimensor Voss já viera antes do ano novo e não soubera dar muitas novidades, além da reunião que ele tivera com Paula Soares.

Voges decidiu então passar pelos quatro núcleos,

em companhia de Jacoby, para relatarem as novidades e também para dar notícias sobre parentes, amigos ou conhecidos que alguém tivesse deixado em Torres.

Ainda na primeira semana do mês de fevereiro,

iniciou a construção da igreja/escola, de madeira, e a construção do cemitério. O pastor indicou o local exato onde queria o templo, dando as medidas e a localização de portas e janelas.

O trabalho das duas duplas de serradores passou

a ser a grande novidade. - “O progresso chegou até aqui”. - Disse

Niederauer satisfeito. Até então toda e qualquer madeira para

construção tivera que ser faquejada, a machado, com a ajuda de soldados e dos índios caingangues.

- “Para onde foram os índios?”. - Quis saber

Voges, quando em visita ao Comandante Schmitt. - “Eles foram dispensados, pois não havia mais

nenhum rancho a ser construído. Além disso, eles começaram a ficar impacientes e queriam voltar à vida deles, de caça, pesca e liberdade”.

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- “Que gente estranha!”. - Disse Elisabeth, a mulher do Comandante. - “Eles tomam banho todos os dias. Será que não ficam doentes com isto?”.

Dr. Elias Zinckgraf, ali presente, riu muito e falou:

- “Pelo contrário, isso deve ser muito bom para a saúde deles, mais ainda neste mormaço que se faz aqui, nesta época do ano”.

O assunto da conversa, por um bom tempo foi a

respeito do costume dos índios, dos alimentos que eles traziam, colhidos na margem do rio e na floresta.

Elisabeth Schmitt comentou: - “Descobri agora

que aquela folha grande que foi usada na ceia de natal, para sobre ela colocarmos a nossa comida, é, na verdade, um alimento dos índios. Comem a raiz dessa tal de taioba e até as folhas eles mastigam. Vendo isso pensei que não poderá fazer mal para nós e preparei um pouco. Apenas precisamos nos acostumar com o gosto que é diferente de tudo que já utilizei como alimento”.

O Comandante Schmitt chamou o pastor para um

lado. De modo sigiloso, confidenciou ao pastor, ser um integrante da maçonaria alemã. Por isto conseguira um entendimento reservado com o Coronel Paula Soares, também integrante da maçonaria, aqui no Brasil. A verdade é que Comandante Schmitt não se agradara, nem um pouco, com a situação geográfica do vale do rio Mampituba e por nenhuma hipótese ali desejara morar. Isto o levara a apelar para a compreensão do Coronel, solicitando a possibilidade de ser deslocado, juntamente com as famílias protestantes que o quisessem acompanhar, para um novo ponto, com a desculpa de ir cultivar as sementes trazidas da Europa. Paula Soares então se dispusera a enviá-los para a mata virgem do vale do rio Três Forquilhas, que poderia ser desbravada.

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O pastor Voges ouviu, compreensivo, e respondeu: - “Eu já sabia da sua ligação especial com o Coronel Paula Soares. Bem compreendo que a nossa presença aqui, pode ser considerada como sendo privilegiada...”.

Comandante Schmitt fez um sinal ao pastor e eles

retornaram para o meio do grupo reunido. O Comandante falou então sobre a satisfação de saber que Paula Soares iria a Porto Alegre para conseguir, a oficialização da Colônia Alemã de Três Forquilhas, para dar início à construção de casas para os colonos. Perguntou ao pastor, algo que ele já sabia: - “Pastor Voges, então, depois da igreja a minha casa será a primeira a ser construída?”.

- “Sim, ele estabeleceu que a sua casa será a

próxima construção, pois será a sede administrativa na Colônia. Em seguida virá a casa do médico. Depois chegará a vez daqueles que já estão aqui, trabalhando nos quatro núcleos, ajudando na medição dos lotes de terra”. - Explicou Voges.

O médico falou: - “Nossas choupanas são muito

precárias. Tenho medo de ficar sozinho, à noite, em meu rancho, imaginando que uma cobra ou um animal feroz possam vir e me molestar. À noite venho aqui, com a licença do Comandante. Já tenho agora o meu cantinho particular, para conseguir dormir sossegado”.

Feck entrou na conversa: - “Temos por aqui um

animal parecido com um gato grande, todo pintado. À noite ele vem rondar a nossa choupana. Os soldados disseram que o bicho se chama onça e que ele come crianças. Precisamos, portanto, ter cuidado...”.

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Elisabeth Schmitt olhou para a barriga da Dorothea, esposa do Feck e falou: - “Olhem para a Dorothea. Ela deve estar bem perto de dar a luz. E o que faz o marido? Ele fica aí assustando a mulher com histórias de bichos que comem crianças...”.

Comandante Schmitt concordou com a esposa: -

“Temos que aprender a lidar com todas as coisas que nos são novidade. Até com os animais daqui... Nossa vida será muito diferente daquilo que até aqui estivemos acostumados.”.

Nasce a primeira criança na nova Colônia No dia 10 de fevereiro de 1827, ao entardecer, o

médico Dr. Elias Zinckgraf está mais uma vez visitando Dorothea Feck. Ele é recebido por Margarida, esposa de Nicolau Hellwig que, há diversos dias, está prestando cuidados à parturiente.

Dorothea, assim que vê o médico, queixa-se: -

“Doutor. Estou preocupada. O bebê parece estar com problemas. Ele não se mexe mais tanto como há dias atrás. O que pode ter acontecido?”.

- “Está tudo normal”. - Respondeu ele. - “O caso é

que o espaço dele, no útero, ficou menor, pois ele cresceu. É sinal de que está ficando pronto, para nascer”.

- “E o que o senhor me diz das câimbras nas

pernas. Veja os meus tornozelos. Eles estão inchados. Além disso, aumentou a minha azia”.

- “Isto também é normal. Não constato nenhum

problema na senhora. A sua aparência é muito boa”.

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Dr. Elias Zinckgraf continuou fazendo uma

observação cuidadosa da paciente e falou: - “O parto está próximo. Poderá ocorrer ainda durante esta noite. Sem tardar, amanhã cedo, a senhora já terá a criança nos braços”.

Em seguida o médico dirigiu-se, como de

costume, até o rancho do Comandante Schmitt, onde a sua janta como sempre estava à espera. Ele falou para Elisabeth Schmitt: - “Vou me recolher mais cedo. Creio que nesta noite ou amanhã terei serviço a fazer lá nos Feck”.

Deviam ser três horas da madrugada quando o

Feck chamou pelo médico: - “Doutor. É bom que o senhor levante. Minha mulher vai ter o bebê...”. - Rapidamente Dr. Elias se aprontou e seguiu à casa dos Feck.

Elisabeth Schmitt também já se encontrava ali e

disse: - “Doutor, sei que a minha ajuda pode ser necessária. Felizmente o Feck deixou o fogo aceso. Vou já colocar uma água para ferver”.

Dr. Elias tomou o pulso de Dorothea e depois

perguntou pelas contrações. Ela respondeu: - “Doutor. Eu não sei, pois esta é a minha primeira gravidez”.

O médico, observando atentamente a paciente

falou: - “O processo de parto está em andamento”. Ele pegou uma vela da valise e orientou: - “Puxe

ar para seus pulmões. Ponha o ar para fora. E, agora, faça de conta que esta vela está acesa. Sopre como se quisesse apagá-la”.

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Dorothea seguiu as instruções. Ele ordenou a repetição do mesmo procedimento, por uma dezena de vezes. Quando o médico constatou que as contrações de Dorothea aumentavam, ele pediu: - “A senhora não está disposta para cantar um pouco ou assobiar?”.

Elisabeth Schmitt olhou com ar divertido para o

médico e reclamou: - “O que é isso doutor? O senhor pede que essa pobre mulher cante ou assovie, numa hora destas?”.

Dr. Elias respondeu: - “Dorothea não é nenhuma

pobre mulher. Ela é rica. Daqui a pouco todos veremos o tesouro que ela guardou durante nove meses. O bebê que ela vai gerar é único. Não existem duas pessoas iguais no mundo, mesmo que aqui tivéssemos hoje gêmeas e que fossem idênticas. Frau Schmitt, não existem duas pessoas iguais... Não é isto uma maravilha da natureza!”.

Elisabeth silenciou. De repente o pensamento dela

vagou para o passado e vieram à sua lembrança as cenas no navio, durante a viagem ao Brasil. A Sra. Schmitt perdera duas de suas crianças, que foram sepultadas no mar.

Dr. Elias perguntou novamente à Dorothea: -

“Queres cantar ou assoviar?”. - “Não” - Disse ela. - “Então grite... Vá gritando Ai! Ai! Ai! Muitas

vezes. Grite bem alto, sem receio”. Dorothea correspondeu ao pedido do médico.

Alguns minutos mais tarde ela reclamou: - “Doutor,

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estou ficando cansada. Está me dando sono... O que significa isso?”.

- “Não é nada”. - Disse ele. - “O bebê está vindo...

faça força agora... Força... Isso. Mais um pouquinho de força... Ótimo. Nasceu! Aqui está o bebê”.

O médico cortou o cordão umbilical, limpou a

criança e falou: - “É uma menina! Parabéns para a mãe! Parabéns ao pai! O parto foi perfeito...”. - Eram quatro horas da madrugada do dia 11 de fevereiro de 1827. Nascera a primeira criança da Colônia Alemã de Três Forquilhas.

Quando o pastor, de manhã cedo, recebeu a

notícia do nascimento da menina dos Feck, foi imediatamente até o rancho deles para uma visita.

O casal Feck logo quis saber: - “Pastor. Quando

poderá ser o batismo da menina?”. - “Dia 14 estarei seguindo para Torres. Sugiro que

realizemos o batismo depois do meu retorno”. - “Mas se o senhor demorar muito para retornar?

Não pode ser antes de sua viagem?”. - “Pode. Mas terá que ser, sem tardar até o dia

13, à tarde”. - “Lá na nossa igrejinha?”. - Perguntou Dorothea. O pastor pediu desculpas: - “Não será possível,

pois o carpinteiro Gross tomou conta da nossa igrejinha. Lá estão espalhadas as ferramentas dele e material para a construção da nossa nova igreja de madeira. Ele pediu o espaço para deixar todas as coisas dele protegidas de

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chuvas eventuais. Sobrou apenas um cantinho para mim, onde durmo à noite”.

- “Que seja aqui em casa”. - Disse Feck. - “Venha

no dia 13 à tarde que estaremos esperando pelo senhor”. No dia 13 vieram, para presenciar o batismo,

Philipp Niederauer, primo de Dorothea, e esposa. O próprio Comandante Schmitt com esposa e filhinha também compareceram. Eles mostravam ansiedade para ver o primeiro batismo da Colônia Alemã em Três Forquilhas.

O pastor pediu: - “Qual é o nome da criança? E

quais os nomes dos padrinhos?”. Dorothea explicou: - “Escolhemos somente uma

madrinha, uma amiga muito querida lá de São Leopoldo. Antes da viagem para cá, ainda conversei com ela. Prometi que, se eu tivesse uma menina, ela se chamaria Catharina, pois que a madrinha é Catharina Neumann”.

O pastor orientou então que alguém

representasse a madrinha. Apresentou-se Elisabeth Schmitt, que agilmente tomou a criança nos braços e se postou diante do pastor, dizendo: - “Façamos de conta que também sou madrinha. Prometo que sempre estarei atenta com esta pequena Catharina Feck, a primeira filha de Três Forquilhas”.

Após a realização do sacramento, o pastor

declamou: - “Olhem aqui para a criança, vejam nela uma semente do amanhã... Não se desesperem, nem parem de sonhar. Não se entreguem, mas se renovem com as manhãs! Deixem a luz do sol brilhar, no céu do vosso olhar. Tenham fé na vida, tenham fé no amor e tenham fé no que virá!”.

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A navegação pela Lagoa O pastor chegou ao acantonamento de

Torres acompanhado de Eigenbrodt. Este estava decidido para levar a sua família ao ranchinho, que já contava como sendo seu, no núcleo nordeste da Colônia. Ocorreram muitas demonstrações de alegria com a chegada dos dois. Eles estavam trazendo alguns cachos de butiás13 colhidos na planície da Itapeva. De Três Forquilhas eles trouxeram também um cacho de pacova14. A curiosidade era muito grande. O que era a pacova?

O pastor explicou então: - “Comandante Schmitt

mandou este cacho de frutas que os índios lhe trouxeram da mata. Parece ser um figo brasileiro...”. Mais tarde os colonos descobriram que a fruta não era nenhum figo. Era conhecida, entre os brasileiros, como sendo a banana, alimento preferido dos macacos, dos pássaros e dos índios.

Muitos rodeavam o pastor, fazendo perguntas,

desejosos de outras novidades, tais como o andamento da medição de lotes e a construção da igreja. Quando a curiosidade amainou e a calma se restabeleceu, Petersen se aproximou do pastor cheio de entusiasmo: - “Meu futuro concunhado, fiquei esperando que essa gente largasse do seu pescoço. Tenho ótimas notícias para lhe dar. Estive em diversos encontros com o Coronel Paula Soares. Ele deu ordens e a construção da minha balsa já teve início. Ficará pronta dentro de algumas semanas. Por isto tenho pressa de ir mais uma vez contigo até Três Forquilhas, pois é certo que depois terei que iniciar com meu trabalho de navegação e transporte”.

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- “Você já teve contato com a navegação pela Lagoa?”. - Quis saber Voges.

- “Sim, o destacamento militar possui um velho

barco à velas, pequeno e em estado precário. Mas ainda dá para navegar. Criei coragem e aceitei o convite de Paula Soares para que eu o levasse até o outro extremo da Lagoa, onde existe um velho depósito deles. Escolhemos um dia de bons ventos para partir. A nossa aventura levou dois dias. Passamos perto da foz do rio Três Forquilhas e alcançamos aquele depósito que agora vai ser nosso, dos colonos alemães. A idéia do Coronel é de que transportemos até pertences dos colonos, que quiserem confiar em nosso trabalho. O percurso principal será do Porto do Estácio até o depósito dos Alemães”.

Petersen continuou o relato: - “Vai ser instalado

um porto no rio Três Forquilhas no ponto mais no alto que eu puder alcançar. As cargas para os colonos que residirem no lado esquerdo, dos núcleos da sede e da igreja, vão receber suas cargas no depósito dos alemães. Os colonos que residem no lado direito do rio, nos núcleos nordeste e sudeste, receberão as cargas no porto do Três Forquilhas. O Coronel me garantiu que posso continuar morando na minha terra em Três Forquilhas, pois no começo, a atividade no transporte, no começo, somente acontecerá em épocas determinadas, para fazer uma experiência”.

O pastor Voges interrompeu o relato e perguntou:

- “Você e Catharina ficarão residindo aqui em Torres?” Petersen reagiu rápido: - “De jeito algum!

Catharina conversou muito comigo sobre os nossos planos futuros, e não quer saber de morar aqui. Sonha com a vinda da irmã Elisabeth, casada contigo, para serem vizinhas na nossa nova Colônia”.

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Figura 09: Voges e Petersen em Três Forquilhas. Fonte: Gravura elaborada pelo autor, 1974.

- “Pretendo casar somente no próximo ano, talvez

em março de 1828, conforme os planos da minha querida Elisabeth. Até lá minha cunhada Catharina terá que se contentar com as outras vizinhas”. - Disse Voges.

Petersen continuou: - “Isso também já está

definido. Minha Catharina decidiu que vamos agora contigo, para Três Forquilhas. Preciso voltar logo a Torres, mas ela ficará no rancho do Philipp Niederauer, cuidando da Catharina dele, que está grávida. Você sabia

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que a minha Catarina é parente da Catharina do Niederauer: Aquela é uma Diehl...”.

- “Sei sim”. - Respondeu Voges. - “Pelo que me

contaram são primas... Portanto, é também uma prima de minha futura esposa”.

- “Pois é! Ficou acertado entre elas que a minha

Catharina vai para cuidar da Catharina Niederauer. Depois aquela cuidará da minha Catarina. Também decidimos que o nosso nenê vai nascer na nossa nova Colônia de Três Forquilhas, aos cuidados do Dr. Elias”.

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O PASTOR ESTENDE A MÃO AO PADRE

Paula Soares propiciou um encontro do pastor

Voges com o Frei Joaquim Serrano, Capelão de São Domingos das Torres.

O coronel explicou: - “O nosso frei anda

preocupado com a presença de tanto povo protestante, em Torres. Ele já quis saber, por diversas vezes, se todos estes protestantes ficam aqui. Já o tranqüilizei, de modo reservado, informando que a idéia é para que todos eles sejam designados para compor a Colônia Alemã Protestante de Três Forquilhas. Ouvi com satisfação, que Frei Serrano considera este plano providencial, para ter o rebanho católico nas proximidades dele e distante dos protestantes”.

Pastor Voges sorriu, aproximou-se de Frei Serrano

e lhe estendeu a mão, dizendo: - “Sou o guia espiritual do povo protestante desta área. Sou um pastor da confraria da fraternidade e da paz, conforme já tive a oportunidade de dizer para o nosso Imperador D. Pedro I e também para o nosso amigo Coronel Paula Soares”.

Frei Serrano falava em um português bem

carregado de espanhol. Não fazia muito tempo que ele viera se refugiar no Brasil, para escapar de perseguições que lhe haviam sido movidas no Uruguai. Apertou a mão do pastor e respondeu: - “Muchas gracias! Folgo em saber que a sua Ordem Religiosa Protestante, é da Fraternidade e da Paz. Neste caso tenho certeza que o nosso relacionamento será amistoso”.

Frei Serrano teve um acesso de tosse. Paula

Soares explicou: - “O nosso frei está acometido de um mal crônico da tosse de bronquite. Espero que o clima de

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Torres seja salutar e o ajude na melhoria da saúde. Além disso, na minha botica, que funciona aqui no Baluarte Ipiranga, temos bons medicamentos e um bom boticário, para tratar do mal do frei”.

O encontro de Voges com Frei Serrano não foi

demorado. O frei explicou rapidamente ser da Ordem dos Franciscanos, mas com a expectativa de passar a ser um padre, para não mais retornar ao convento.

Quando o frei se afastou, o Coronel Paula Soares

falou: - “Quero confidenciar-lhe que Frei Serrano insiste para que os protestantes não permaneçam nas proximidades de Torres. Ele se dispõe a me acompanhar até Porto Alegre, para também interceder junto ao Governo, com a solicitação de colocar os protestantes em outro lugar”.

Pastor Voges nada falou, apenas dando sinal de

estar muito interessado no assunto. Paula Soares continuou: - “Fiz questão de propiciar este encontro. Notei que Frei Serrano, quando soube que estou aprendendo a língua alemã, quis saber a respeito do meu mestre. Quando soube que se tratava de um pastor protestante, ele ficou muito preocupado e com ciúmes. Espero que agora ele fique mais tranqüilo...”.

Pastor Voges sorriu e agora comentou: - “A minha

explicação sobre a posição religiosa que eu adoto, de ser da confraria da fraternidade e da paz, tem ajudado, um pouco, a derrubar barreiras. Em São Leopoldo, também tive encontro com sacerdotes católicos. Lá, também estão mostrando preocupação com a vinda de tanta gente protestante, para viver no meio deles. Em São Leopoldo, os católicos e os protestantes estão misturados num só lugar. Acredito que aqui será menos conflitante.

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Se estamos indo para uma Colônia distante de Torres, é certo que ficaremos bastante isolados e longe deles...”.

Voges enfatizou ainda o fato da comunidade

protestante estar entrando em forte isolamento, sem este contato constante e diário que, até ali vinha ocorrendo, com os católicos de Torres. Voges pediu licença, seguindo até a mesa de trabalho do Coronel. Puxou um papel em branco que ali se encontrava e escreveu: Kuh.

Paula Soares encarou o pastor com seriedade e

quis saber: - “O que ocorre? Não entendo? Algo que falei sobre a posição de Frei Serrano com relação aos protestantes, lhe incomodou?”.

O pastor tomou novamente a caneta e

acrescentou: Vaca. - “Precisamos de mais algumas vacas em Três Forquilhas... Já nasceu a primeira criança na Colônia e, outras estão para chegar... Depois de amamentadas pelas mães, estas crianças vão precisar do leite de vaca...”.

Coronel Paula Soares deu uma sonora gargalhada,

divertido com a situação que se estabelecera. - “Eu já sabia que Vaca, na língua alemã, é Kuh.

Mas preciso confessar que fui surpreendido, sem ligar esta palavra escrita com as nossas aulas de línguas. No tocante ao seu pedido, posso tranqüilizá-lo, já estão selecionadas algumas vacas de leite, que servirão neste propósito. No seu retorno para Três Forquilhas um peão o acompanhará, para conduzi-las...”.

Voges agradeceu por mais este sinal de atenção,

tão grande e especial, que Paula Soares vinha dedicando aos imigrantes colonizadores. Despediu-se para tomar o

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rumo do acantonamento, onde desejava resolver mais algumas coisas, antes de voltar para Três Forquilhas.

Médico, sempre é bom ter mais que um... Quando o pastor saía do Baluarte Ipiranga, foi

abordado por Johann Jasper. Voges imaginara, até então, que Jasper, que, ocasionalmente, fazia a vez de médico entre os colonos, fosse um imigrante católico.

Jasper falou: - “Pastor Voges. Precisamos

conversar... Talvez o senhor possa me ajudar... Estou com um problema... Preciso sair deste lugar... Sou um enfermeiro militar... Estive a serviço do exército francês... Vim para servir o Imperador D. Pedro, do Brasil, mas agora estou dispensado em virtude de problemas de saúde. Pretendo permanecer nesta região para estabelecer um ponto que seja bom para a minha prática da medicina... Um lugar onde eu possa ser mais útil para todos e, acima de tudo, para garantir o sustento para minha esposa Anne Marie, para minhas filhas e para meus filhos. Se eu for designado para o vale do Mampituba, entre os colonos, como se um agricultor eu fosse, morreremos de fome, eu e a minha família”.

- “Em que posso ajudá-lo?”. - “Ouvi o senhor dizendo para nosso Imperador D.

Pedro, do seu vínculo com a Confrérie de la fraternité, l’egalité et de l’iberté. Pois também tenho esses vínculos. Por isto creio que a sua ajuda será fundamental para que eu os possa acompanhar rumo ao vale do Três Forquilhas”.

- “Não sou maçon”. - Disse Voges, com firmeza.

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- “Nada tema, pastor”. - Continuou Jasper. - “Posso contar com a sua discrição e a sua intervenção, para a minha inclusão entre os colonos protestantes?”.

- “Fico até feliz com isto. A sua presença na área

da nossa Colônia Protestante talvez servirá muito, no futuro que ainda é incerto para nós”. - Disse Voges. “Sempre é bom ter mais alguém com conhecimento de medicina e remédios, para o tratamento dos males que venham a afligir o nosso povo. Posso incluí-lo na relação, sim. Porém, é necessário que apresente ao Coronel Paula Soares, a sua condição religiosa.”.

- “Paula Soares já me conhece bem. Ele já sabe

que sou um intelectual e livre pensador. Não tenho vínculo com a igreja... Portanto, não sou católico, nem protestante...”.

- “Neste caso não vejo nada que impeça a sua ida

para a nossa área. Onde pretende se radicar?”. - Quis saber Voges.

- “Tenho um acerto firmado para adquirir um

ponto comercial nas proximidades da passagem do Sangradouro ou Canal Taraba, que fica depois da Lagoa do Armazém (Itapeva), e antes da Lagoa da Concha (Lagoa do Ignácio ou Quadros), na borda da praia e que já é a passagem principal para entrar na Colônia de Três Forquilhas. Ali será um ponto estratégico, para me estabelecer, em condições de socorrer os viajantes e atender os fazendeiros açorianos das proximidades, que não possuem a presença de um médico”.

Voges ainda estava surpreso com a conversa e

pediu por mais detalhes: - “O seu nome ficará, portanto, incluído na relação de colonos, para receber seu lote de terra na Colônia de Três Forquilhas?”.

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- “O meu nome precisa estar incluído na sua relação para que a minha família possa ser movimentada para aquela área de colonização. Estarei aproveitando o deslocamento para Três Forquilhas, para, depois, sem mais tardar me fixar no referido Sangradouro. Tenho a quantia necessária, em dinheiro, para adquirir aquela pequena propriedade”.

Johann Jasper e o Pastor Voges apertaram as

mãos, selando, desta forma, o entendimento que haveria de ajudar este imigrante alemão em sua fixação no referido Sangradouro.

“Te amo mais que tudo no mundo...” O casal Petersen aproveita o entardecer, para um

passeio pela margem da lagoa mais próxima. Eles terão mais esta noite e então, partirão com o pastor até Três Forquilhas. Catharina ficará na casa dos Niederauer por algum tempo. Ele terá que voltar logo, de novo, a Torres, para acompanhar a construção da balsa, para fazer uma experiência de navegação pela Lagoa Itapeva.

Vão caminhando pela areia, braços dados, felizes

e cheios de planos para o futuro. Ao chegar próximo das águas da lagoa, Peter se

aproxima mais ainda de Catharina e a rodeia com os seus braços fortes de navegador e remador, porém, de modo terno e gentil. Pergunta quase aos sussurros: - “Será menina ou menino?”.

Ela ri e também abraça o marido com força,

respondendo baixinho: - “Não fará diferença, não é? Que

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venha o que Deus nos conceder, pois o nosso amor será o mesmo, seja menina, ou seja, menino...”.

- “Querida, te amo mais que tudo no mundo...”.

Figura 10: Enamorados, em Torres, diante da Lagoa. Fonte: Gravura elaborada pelo autor, 1974.

Catharina começa a cantar. Ela lembrara de uma

canção de amor que ela aprendera com a mãe, quando menina. Peter olha enamorado para a sua amada e segura sua mão com mais força ainda. Depois que ela finaliza a canção, ele diz: - “Como seria bom se pudéssemos segurar este momento, para sempre, por todo o tempo e até na eternidade”.

- “Você sabe o que o pastor falou no nosso

casamento, quando ele pediu os nossos votos de fidelidade? Ele disse ‘até que a morte os separe’... Depois, na eternidade o que será?”.

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- “Querida, não vamos falar de morte. Falemos de vida... Falemos de amor...”.

Os dois ficaram muito tempo, abraçados.

Encostaram as cabeças um no outro, em silêncio. Era mesmo como se quisessem segurar o tempo. Ficaram olhando para os últimos raios do sol, cintilando sobre as águas tranqüilas da lagoa. O céu apresentava um colorido que eles jamais haviam imaginado. Conseguiam identificar os tons de lilás, rosa, vermelho, amarelo, alaranjado, o azul e uma infinidade de seus matizes, assim como o branco e o negro no céu. Eles não se recordavam de algum dia, na Alemanha, terem visto algum anoitecer que se apresentasse tão deslumbrante e com tantas cores.

Enquanto isto, os pescadores, em suas canoas,

recolhiam o material de pesca e o resultado de mais uma tarde de trabalho. Agora pretendiam passar no acantonamento dos alemães para vender-lhes algum peixe, para a janta.

Peter e Catharina decidiram retornar para casa.

Também comprariam um peixe para reforçar a janta desta noite.

Leite é que não falta...

A viagem a Três Forquilhas, desta vez foi bastante

penosa, devido a uma forte chuva quando estavam próximos ao Sangradouro, entre as Lagoas Itapeva e Quadros. Buscaram refúgio num galpão de um proprietário português. Paulo König fez um fogo para secar as roupas dos filhos e da esposa, enquanto

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aguardavam a chuva passar. Petersen também aproveitou o calor para secar a roupa de Catharina.

Chegaram à Colônia ao entardecer. Pastor Voges

foi direto para o núcleo da igreja e teve uma boa surpresa. A estrutura do templo já estava erguida. Gross estava agora trabalhando em duas frentes, um grupo estava fabricando tabuinhas para ser feita a cobertura do templo, e outro grupo serrava tábuas para fechar as paredes e fazer portas e janelas. Tratava-se de um serviço muito lento que empregaria muitas horas, semanas e talvez até mais de um mês.

Voges recordou então da carta que ele escrevera,

no dia 2 de fevereiro, para ser entregue ao reverendo Mathias Main, da Sociedade Bíblica Inglesa. Naquela oportunidade ele fizera uma descrição, com a visão da igreja parcialmente concluída. No entanto, passadas tantas semanas, ali via apenas um esqueleto do templo. Faltava muita coisa para ter uma igreja em condições de uso, mas estava satisfeito, pois a obra não parara.

Enquanto isso, Petersen foi à casa de Philipp

Niederauer. Confiando a eles a sua amada, disse: - “Que a minha Catharina faça companhia e cuide da sua Catharina, até que nasça o vosso bebê. Depois a sua Catharina poderá cuidar da minha, quando estiver no tempo para a chegada da nossa criança”.

O casal Niederauer recebeu Catharina Petersen

com muito carinho. A esposa de Niederauer falou: - “Você não entra aqui para trabalhar, certo? A Frau Helbig vem todos os dias me ajudar no serviço do rancho, para lavar e cozinhar. O que eu preciso é da sua companhia alegre e agradável...”.

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E a senhora Niederauer continuou: - “Trouxeste a tua flauta? Quero que o meu bebê possa escutar desde já os sons de música e canto...”. - Catharina Petersen mostrando a flauta, foi e abraçou fortemente a prima, com muito carinho.

Petersen antes de se despedir disse: - “O pastor

conseguiu diversas vacas de leite. Eu trouxe uma para deixar com vocês. Sei que precisarão alimentar mais alguém em breve...”.

Niederauer agradeceu e levou a vaca para deixá-

la no pasto. Paul König já se separara do grupo um pouco

antes de chegar ao Sítio das Três Figueiras, onde havia um passo que dava para o outro lado do rio. Conduziu a carroça até o seu rancho e teve uma bela surpresa. Ali já se encontravam todos os moradores do núcleo sudeste, que ao constatarem a aproximação da família König, rapidamente se reuniram ali, diante do rancho deles. Todos queriam notícias sobre aqueles que ainda aguardavam em Torres e sobre a instalação definitiva da Colônia.

A esposa de König foi logo com as crianças para

ver o rancho. Estavam ali diversas camas improvisadas. Tudo estava limpo, o chão varrido recentemente. Sinal que os vizinhos andavam por aí, de vez em quando, preparando com carinho a chegada de pessoas, que eles bem sabiam, viriam tomadas pela exaustão, depois de uma longa viagem em carreta de bois.

O menino Peter König pegando na mão da

irmãzinha foi inspecionar as poucas coisas que existiam no rancho. Parou diante de um tripé onde estava pendurado um panelão. Paul explicou: - “Crianças. Este é

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o nosso fogão...” Paul König voltou até o lado de fora do rancho, lembrando que era preciso colocar no pasto, a vaca que trouxera. Dirigindo-se aos vizinhos, que ainda lá se encontravam, disse: - “Agora temos aqui mais uma vaca leiteira. Vai sobrar leite todos os dias, para quem necessitar...”.

O ferreiro Schütt sorridente informou: - “Pois eu

aceito a sua oferta. A nossa vaquinha está secando. E, meus dois pequenos Brehm precisam de muito leite para logo ficarem grandes e bem fortes para poderem me ajudar na ferraria”. - Todos riram, olhando para os dois pequenos filhos de Izabel Brehm Schütt.

Justin, sempre jocoso, que não perdia ocasião

para fazer troça e despertar risos, disse: - “O ferreiro que tenha um pouco de paciência! Estes pequenos ainda vão tomar muito leite e vão ter que comer bastante para só daqui a alguns anos ter força para ajudar o padrasto. Malhar ferro não é serviço para meninos...”.

Eigenbrodt com sua esposa e filhinha

atravessaram o rio, num passo próximo da igreja. Eles também tinham pressa para chegarem ao rancho deles, e então, tiveram uma grande surpresa. Os vizinhos Bobsin, Marlow e Mauer haviam notado que se aproximavam do núcleo deles. Foram ao encontro dos Eigenbrodt, receptivos e alegres. Foi, sem dúvida, uma bela surpresa: o ranchinho estava bem limpo e com sinais de ter sido varrido recentemente. Uma cama bem mais larga estava agora ali, num canto, com a palha coberta com um pano de algodão, fazendo a vez de lençol.

Orgulhoso, Eigenbrodt indicou para a vaca que ele

trouxera, dizendo: - “O leite está garantido para nós. Se alguém precisar, é só falar...”.

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O aspecto da Colônia já começava a dar os nítidos contornos de um início de colonização. As diversas choupanas em diferentes pontos das trilhas, nos núcleos estabelecidos, davam sinal da presença dos desbravadores. Algumas lavouras podiam ser vistas. Alguns animais pastando, bois, vacas e cavalos. No núcleo sudeste podia ser ouvida a bigorna do ferreiro, com as marteladas fortes desferidas sobre o ferro em brasa.

E, algo novo eram as vozes dos colonos alemães,

assobiando ou então cantando as suas canções preferidas, enquanto trabalhavam. Era o despertar da vida de uma comunidade em formação. Eram pessoas confiantes e cheias de esperança, trabalhando com entusiasmo no propósito de construir um futuro promissor, para eles e para as suas futuras gerações.

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NASCE O PRIMEIRO HOMEM DA COLÔNIA

- “Nasceu o primeiro homem da nossa Colônia Alemã de Três Forquilhas”. - Disse Dr. Elias Zinckgraf, colocando o recém nascido nos braços de Catharina Niederauer, que estava deitada sobre uma cama rústica e sem conforto, tendo o marido ao lado, cheio de orgulho e visível satisfação.

- “A mais nova mãe da nossa Colônia deve ser a

primeira a segurar seu filhinho”. - Acrescentou ainda o médico.

A luz de duas lamparinas iluminava parcamente o

ambiente, deixando sombras se projetando para as diferentes direções, à medida que as pessoas presentes se locomoviam diante das mesmas.

Catharina chamou pela amiga Catharina Petersen,

que ali se encontrava, zelosa e atenta, e pediu: - “Coloque logo uma roupinha nele, pois me parece que está fazendo um pouco de frio”. - A madrugada estava mesmo um tanto fria, apesar de ser outono.

Catharina Petersen falou ao médico: - “Doutor,

também estou grávida, conforme o senhor já deve ter notado. Como não tenho nenhuma experiência para lidar com um bebê, gostaria de lhe perguntar algo...”.

- “Ora, pergunte já. Se eu souber, também será

para já que terá a sua resposta...”. - “Doutor. Quantos banhos diários a gente deve

dar num bebê?”.

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- “Um banho por dia, é bom. É necessário lavar demoradamente todo o corpo do bebê, para então trocar a água da gamela. Nunca guarde a água para ser usada num outro banho e muito menos para o outro dia. Já ouvi falar de mães que por comodismo guardavam a água para os próximos dias... Imaginem o estado de tal água, onde certamente nem se via mais o bebê, no meio da sujeira... Penso que foi daí que veio aquele ditado ‘não jogue fora o bebê, junto com a água do banho’. Se diziam isso, então é porque nem mais conseguiam ver um bebê, em meio da água turva”.

Todos riram, achando graça nas explicações do

médico. Ele continuou: - “A falta de higiene acarreta os mais inesperados males e até epidemias”.

Agora todos silenciaram, e o médico continuou: -

“Voltando à forma de preparar o banho do bebê, sei que na Europa, as mães têm o costume de dissolver uma ou duas colheres de aveia, na água... Isto é muito bom... Outra coisa, que sempre recomendo, é que a água seja levemente morna... Depois, para secar a criança, use o pano mais macio que tiver em casa, de preferência de algodão... O pano de algodão é leve... Outra coisa que é preciso recomendar, para uma futura mamãe, é que se acostume a trocar as panos do bebê, assim que ele estiver molhado”.

Catharina Niederauer sorriu para o médico e

disse: - “Veja só que eu, hoje, me tornei mãe pela segunda vez, pois já tive a pequena < Kathren >, que está ali dormindo. Mas posso afirmar que a gente, sempre, está aprendendo mais alguma coisa com o doutor...”.

- “Isso é verdade”. - Disse o médico. “Confesso

que no breve tempo que estou aqui em Três Forquilhas

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já aprendi diversas coisas. Talvez vocês não imaginam, mas aprendi muito, foi no contato que tivemos com aqueles índios, que vieram construir as nossas choupanas... Observei o costume que eles tem com a limpeza. Notei como interrompiam o trabalho, de vez em quando, iam até o rio para mergulhar na água, e voltavam. Num dia muito quente que tivemos, eles entraram na água doze vezes! Sim, eu contei, só naquele dia, foram se banhar doze vezes! Percebi também que são muito mais saudáveis do que nós, que viemos da Europa. Penso que deveríamos nos render ao hábito deles, mesmo que tem gente que os chamam de selvagens ou de bichos do mato...”.

Dr. Elias Zickgraf pediu licença para retornar ao

seu rancho e ver se dormia ainda mais um pouco. Chegando em casa, anotou à luz de uma lamparina: - Na madrugada do dia 4 de abril de 1827, às 3 horas da madrugada, nasceu Johannes Niederauer Sobrinho, o primeiro homem e um legítimo filho brasileiro, dos imigrantes colonizadores, que entraram no vale do rio Três Forquilhas.

O batismo de João Niederauer Sobrinho

- “Qual será o nome da criança?”. - Perguntou o

pastor: - “Johannes”. - Respondeu o pai, todo pressuroso. - “É o nome do meu irmão que será padrinho do pequeno e também porque gostamos deste nome, que é bíblico. É o nome de um dos doze apóstolos...”.

Voges concordou e acrescentou: - “É um nome

bíblico, sim. Tenho um livrinho onde está explicado que Johannes significa ‘Deus é gracioso’”.

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- “Que Deus então seja gracioso com o nosso menino”. - Disse Philipp.

- “Sim, Deus é gracioso. O batismo testemunha

isso para todos nós, que somos aceitos graciosamente, como filhos do Pai Celeste”.

Era o dia 14 de abril de 1827. O pastor avisou: -

“Este é o nosso primeiro culto na nova igreja de madeira, coberta com pequenas folhas de tábua. É a forma muito simples para inaugurá-la. Ninguém pense que não temos festa. Temos festa sim, pois será ministrado também o primeiro sacramento do santo batismo. E só isso já é motivo de festa em nossos corações...”.

Figura 11: Templo de madeira da Colônia de Três Forquilhas. Fonte: Gravura feita pelo autor, com informações

do Sr. Alberto Schmitt, 1970.

O templo já estava com cobertura e com paredes.

Não havia nem forro e nem assoalho. Estavam pisando sobre um simples chão batido. Mas era o novo templo,

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por isto fazendo deste um momento ainda mais solene e festivo.

O pastor improvisara um altar, com a

entronização de um dos exemplares da Bíblia Sagrada, recebidos da Sociedade Bíblica Inglesa, do encontro providencial que ocorrera em Torres. Sobre o altar viam-se também duas velas acesas.

Catharina Petersen aproximou-se com uma alegria

indescritível e falou: - “Estou pronta para acompanhar os hinos com a minha flauta”.

O pastor emocionou a todos. Falou sobre a

coragem, o trabalho e a disposição para esta vida sacrificada, de todos que ali se encontravam, de famílias reunidas e dispostas a construir uma comunidade de fé, na esperança de quem acredita que uma vida melhor está por vir.

O silêncio foi profundo quando a mãe levou o

menino diante do altar. Silêncio quebrado pela voz do pastor dizendo: - “Johannes Niederauer Sobrinho, eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. - Enquanto por três vezes colocava água sobre a cabeça do mesmo.

Após a benção para a criança, para os pais e aos

presentes, o pastor, como já era do seu costume, declamou: - “Olhem para este menino. Vejam nele uma semente do amanhã... Que a luz do sol da fé brilhe sempre no céu de seu olhar! Que com destemor em meio às lutas, jamais deixe de sonhar. Que Deus abençoe este menino, para ser um orgulho para o nosso povo, e voltado para o bem desta nossa nova Pátria, para o bem do nosso Brasil”.

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A Colônia ganha mais vida No dia 27 de maio, o agrimensor João José

Ferreira, em companhia do ajudante Voss, apresentou-se a Paula Soares, em Torres, declarando estar concluída a medição de lotes destinados aos colonos, em Três Forquilhas.

No dia 03 de junho Paula Soares deu o início à

Colônia, agora de modo oficial, com o deslocamento de outras 17 famílias, para serem juntados às 16 que lá já se encontravam há mais de meio ano.

Essas dezessete famílias foram de Johann

Nicolaus Mittmann, Gottlieb Henze, Martin Schneider, Felipe Dhein, Felipe Pedro Gross, Pedro Reiheimer, Jacob Hoffmann, Johann Carl Witt, Jacob Klippel, Johann Andréas Sparremberger, Johann Jost Sparremberger, Hans Thron Stollmberg (de volta da Cisplatina), Georg Gottfried Engel, Heinrich Becker, Johann Hoffmann Sofia Menger e Jorge Sparremberger.

O transporte das famílias foi, como sempre, uma

tarefa das mais difíceis, pois a única opção, que Paula Soares considerava viável, era através de carretas. Ele ainda não confiava no transporte pelas lagoas, temendo algum risco para os colonos, que precisavam ir acompanhados por mulheres, pelas crianças e até pelos seus animais (bois, vacas, cavalos, galinhas e gansos).

As carretas saíram quase de madrugada, no raiar

das primeiras luzes e tomaram, como de praxe, quando se tratava de transporte de pessoas, o caminho do campo, entre as lagoas e o mar. Foram até o Sangradouro para dali rumar a Três Forquilhas, margeando a extremidade Sul da Lagoa dos Quadros.

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Depois desbordaram para a direção do Pântano do Espinho, para em seguida encontrar a trilha que margeando o rio, alcança a sede da Colônia.

Pararam diante do Sitio das Figueiras, onde se via

o rancho do Dr. Elias Zinckgraf. Lá se encontravam também o Comandante Schmitt, o pastor Voges e outras lideranças que os aguardavam ansiosos para o grande e esperado momento do sorteio dos lotes para os recém chegados.

Era um dia de festa para a Colônia. O temor de

ver frustrada esta colonização estava agora superado, com a vinda de mais esta gente. A concessão de lotes para estas dezessete famílias, mediante sorteio, foi conduzida pelo próprio Coronel Paula Soares. Os números de lotes disponíveis estavam escritos em lascas de madeira, previamente preparadas e colocadas dentro de um cesto indígena.

Paula Soares informou: - “Estou fazendo aqui um

sorteio. Entretanto, permitirei que os contemplados façam a troca de lote entre si, caso quiserem ficar mais próximos deste ou daquele parente ou amigo”.

A decisão agradou a todos. Iniciado o sorteio Johann Nicolaus Mittmann foi o

primeiro tentar a sorte. Feliz ele apresentou a sua lasca de madeira dizendo: - “Peguei o lote que representa a porta de entrada da Colônia. Poderei ver as carretas passarem, vindas do Depósito dos Alemães. Ninguém entra, sem que eu saiba ou sem que eu veja. Verei todos, seja aquele que vem, ou seja aquele que vai”. - Todos riram com estas palavras de humor.

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O construtor Gross foi o seguinte sorteado com um lote de terra no lado sudeste, sendo abraçado pelo Jacoby, Justin, König e Schütt. Martin Schneider pegou o lote no núcleo sede, como vizinho de Mittmann. O ferreiro Johann Andréas Sparremberger pegou o lote que ficava diante do cemitério, junto ao passo. Ele aproveitou para fazer pilhéria com Mittmann, dizendo: - “Também serei dono de uma porteira. Se você tentar escapar e ir para a Serra, terá que sair pelo passo, diante de minha ferraria. E quem quiser enterrar um falecido terá que, primeiro, ferrar seus cavalos comigo...”.

Seguiu-se uma gargalhada coletiva. O professor Jorge Godofredo Engel pegou uma

lasca indicando o seu lote para o núcleo sudeste. Os moradores daquele núcleo vieram abraçá-lo felizes. Jacoby falou: - “Teremos garantida a nossa escola... Eu já estava preocupado porque meus filhos não poderiam ir até a igreja, para terem aulas na Escola do Pastor, por causa de distância e do passo de rio. Agora podemos comemorar. Nosso problema está resolvido...”.

Na seqüência os demais também foram sorteados.

O Hans Thron Stollenberg que retornara doente, da Guerra Cisplatina, pediu para trocar o seu lote, pois desejava ficar vizinho de Bobsin, Mauer e Eigenbrodt. Os demais ficaram assim definidos: para o sudeste foram Peter Reinheimer e Jacob Hoffmann; para o nordeste foram Johann Jost Sparremberger, Georg Sparremberger e Johann Hoffmann I; para o núcleo da igreja foram, Johann Carl Witt, Jacob Klippel, viúva Sofia Menger e Heinrich Becker; para a sede foram Gottlieb Henze e Philipp Dhein,

Comandante Schmitt pediu a palavra e falou: -

“Hoje, dia 3 de junho de 1827 é um dia muito especial

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que merece ser registrado. A nossa Colônia ganhou vida... Com a chegada destas famílias já podemos dizer, agora, que a Colônia passou a existir, de verdade. Não é mais a simples teimosia deste que vos fala... Quero finalizar, dizendo ao nosso amigo e diretor da colonização Coronel Paula Soares que nossos corações estão cheios de gratidão. Conte com a nossa estima e a certeza que pode contar conosco, sempre que a nossa força e o nosso empenho lhe foram necessários, para o sucesso desta colonização”.

Vivas e hurras foram ouvidos. O pastor traduziu

as palavras do Comandante para que Paula Soares tomasse conhecimento desta expressão de gratidão, que ia no coração de todos. O coronel aproximou-se então do Comandante e deu-lhe um caloroso aperto de mão, cumprimentando-o pelas belas palavras proferidas.

Não podemos nos esquecer de lembrar que um

grupo de colonos ainda permanecia no acantonamento de Torres. Eles não puderam vir por falta de carretas e de outros meios financeiros. Estes certamente estavam insatisfeitos com a situação. Afinal, não puderam compartilhar deste clima festivo que se formava na nova Colônia Alemã de Três Forquilhas.

A sensação da solidão e do isolamento Era o dia 4 de julho de 1827. Podiam-se ver

famílias chegando de todos os núcleos. Traziam uma variedade de produtos colhidos na lavoura e, um após outro, aproximavam-se do altar para ornamentá-lo com as dádivas trazidas. Estavam preparando a festa ou culto de gratidão pela colheita. Era a tradicional Festa da Colheita, costume que estavam trazendo de suas origens

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comunitárias, da Alemanha. A igreja estava agora com mais apresentação. Não pisavam mais sobre o chão batido. Havia um assoalho, feito com tábuas de canela. Portas e janelas também já haviam sido colocadas.

O Pastor iniciou o culto com uma canção bem

tradicional para a época festiva da Festa da Colheita. Catharina Niederauer estava ali, como sempre, feliz e radiante, para tocar a sua flauta. Mauer e esposa estavam ao lado dela para aproveitar a letra e as notas do caderno que alguém segurava diante dela.

Para o momento litúrgico o pastor declamou o

Salmo 65 - Ações de Graças pelas bênçãos das searas. Em seguida, fez uma oração pedindo pela assistência divina para acompanhar e estar presente na vida de cada família.

Todos esperavam pelo momento do sermão.

Gostavam de escutar o pastor que vinha sempre com palavras que despertavam a confiança na presença de Deus. O pastor leu o texto do Evangelho de Lucas Capítulo 12, 22 – 34, e então falou: - “Alguém se queixa de solidão? A sensação de solidão é um convite de Deus para praticarmos mais e melhor a solidariedade, para estarmos ao lado daqueles que sofrem ou, se sentem abandonados por Deus e pelas demais pessoas. Alguém se queixa que entramos no isolamento, no meio desta enorme floresta, cercados por bichos e bugres? A sensação do isolamento é um convite para a comunhão. Precisamos nos reunir e nos encontrar, de preferência, na casa de Deus, para cantar, para orar, para beber da fonte pura da Palavra Divina e para experimentar o que os Santos Sacramentos nos oferecem. Hoje temos aqui neste nosso novo templo a primeira Festa da Colheita. Estão aqui em torno do altar tantas variedades de frutos de nosso trabalho. Hoje será, também, ministrado o

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Santo Sacramento do Batismo. Serão batizadas mais duas crianças, nascidas há poucos dias. Vamos ter também diante do altar todos os pais que neste ano batizaram suas crianças, para que a Comunidade reunida veja essas crianças para que as acompanhem com as suas orações. E, finalmente, teremos o Santo Sacramento do Altar, a Ceia do Senhor. A Comunhão do Altar é para sabermos que Deus está conosco. Jesus derramou o seu sangue na Cruz para termos vida com o Pai Celestial. Ele vem repartir tudo o que tem, conosco, para nos alimentar e nos saciar da sede e da fome mais profundos. Jesus age em nosso favor também agora e sempre. Digo para aqueles, que vem desabafando comigo sobre as sensações que encontraram aqui na floresta, a certeza que precisamos ter, para superarmos a sensação da solidão, neste estado de isolamento, que é tão real desde que aqui nos estabelecemos, deve ser a presença real do Deus vivo. Ele nos ajude e nos fortaleça nesta esperança e na fé, para podermos perseverar no amor, de uns para com os outros. Deus vos abençoe ricamente, com a Sua Santa Palavra. Amém”.

O pastor convidou que pais e padrinhos viessem

até o altar. Solicitou que também viessem, para formar uma segunda fila, todos aqueles que neste ano tivessem batizado uma criança. Grande era a curiosidade de todos, observando o grande número de famílias se postando diante do altar.

Inicialmente o pastor ministrou o batismo de

Johann Thron Bobsin, filho de Johann Bobsin e Charlotta Marlow, nascido em 15.06.1827, tendo por padrinho Johann Thron Stollenberg, conhecido como “ o Viking”. Em seguida batizou Peter Paul Dhein, filho de Philipp Dhein e Elisabetha Müller, nascido em 11.06.1827 tendo como padrinhos Peter Müller e Paul König.

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Após a realização do sacramento do batismo, o pastor declamou: - “Olhem aqui para estas crianças, vejam nelas uma semente do amanhã... Não se desesperem, nem parem de sonhar. Não se entreguem, se renovem com as manhãs. Deixem a luz do sol brilhar, no céu do vosso olhar. Tenham fé na vida, tenham fé no amor e tenham fé no que virá!”

Pastor Voges fez em seguida a apresentação das

crianças batizadas em outras datas anteriores: Maria Magdalena Schmitt, filha do comandante

Philipp Peter Schmitt e Elisabetha Justin, nascida em 26.04.1827 tendo por madrinha Maria Magdalena Zemmermann.

Carl Knopf, filho de Valentin Knopf e Eva Clausen, nascido em 08.05.1827, sendo padrinho Carl Becker.

Johann Heinrich Hoffmann, filho de Jacob Hoffmann e Christina Maria Neiss, nascido em 12.05.1827.

Catharina Margaretha Metz, filha de Johannes Metz e Cristina Claun, nascida em 09.05.1827, tendo por madrinha Catharina Margaretha Metz.

Catharina Sparremberger, filha de Johann Jost Sparremberger e Ana Maria Diefenbach, nascida em 27.06.1827 tendo por madrinha Catharina Elisabetha Sparremberger.

Martin Reinheimer, filho de Peter Reinheimmer e Margaretha Hoffmann, nascido em 09.06.1827, tendo por padrinho Martin Zimmermann.

Citou ainda os batismos de Johann Bartholomeus

König, em Torres, de Catharina Feck, primeiro nascimento na Colônia de Três Forquilhas, Johann Niederauer Sobrinho, primeiro filho homem, da Colônia. Explicou que Metz, Köhnlein e Knopf não puderam

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comparecer pelo fato de ainda se encontrarem no acantonamento de Torres.

Voges chamou então Nicolaus Mittmann dizendo: -

“Quero que a Comunidade tome conhecimento que Johann Nicolaus Mittmann, encarregado de serviços de emergência, batizou algumas destas crianças, em Torres, enquanto eu estava aqui em Três Forquilhas. O trabalho de Mittmann tem se revelado de grande necessidade e importância. Por isto agradeço pelo seu trabalho e para que, também, toda a Comunidade saiba do quanto precisamos dele e lhe concedam todo o crédito e atenção, pois que ele atua em meu nome”.

Após o culto, o Comandante Schmitt pediu que

todos que tivessem condições permanecessem no templo para uma reunião, dizendo: - “Esta é a ocasião para que todos aqueles que tiverem um problema ou preocupação, os exponham para ver se podemos ajudar de alguma maneira”.

Philipp Leonhard Niederauer se levanta e diz: - “O

pastor acabou de falar muito bem a respeito do isolamento. Quero explicar que eu e minha esposa não agüentamos mais este isolamento, no meio deste mato e penso que não vale a pena instalar meu comércio aqui. Não vejo futuro para meu investimento e para o meu trabalho. Deus me concedeu inteligência para fazer o melhor pela minha família e por este filho que nasceu há poucos meses”.

Niederauer parou um pouco como que para reunir

seus pensamentos e continuou: - “Somos poucos e por isto são poucos os fregueses para mim e para a minha concorrência que é feita por Jacoby e pelo Comandante Schmitt. Para mim sobraram só os moradores do núcleo da igreja e do núcleo nordeste”.

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Comandante Schmitt interveio: - “Por que estaria eu lhe fazendo concorrência? Não poderá estar acontecendo o contrário, pois tenho bem menos fregueses que você e o Jacoby e não me queixo”.

O pastor procurou contemporizar: - “Todo o

começo é difícil, carregado de dificuldades. Venho insistindo que cada um e todos juntos precisamos perseverar, acreditando no futuro desta Colônia. O coronel Paula Soares me enviou comunicado, para ser lido nos meus cultos, onde promete que antes do final do ano virá mais uma leva de famílias, que já devem estar num desespero bem grande, lá em Torres, pensando que foram esquecidos pelas autoridades, esquecidos por nós e quem sabe no perigo de cair na incredulidade, de pensar que Deus também se esqueceu deles. O coronel escreve ainda que, a qualquer momento, os nossos jovens soldados que seguiram para a guerra na fronteira, poderão estar voltando para casa. Eles virão com o soldo todo no bolso, com dinheiro para gastar, pois terão que comprar de tudo. Assim, darão novo ânimo aos nossos comerciantes”.

Niederauer se levanta e fala: - “Pastor, peço que

me desculpem, pois não gostaria de desanimar os demais, preciso confessar que não estou mal nos negócios. O meu irmão e sócio do comércio permanece no acantonamento de Torres, e está prosperando. Ele me avisou que está satisfeito e que a freguesia dele tem sido bem grande, até de soldados, peões e de famílias brasileiras que fazem compras em nosso armazém”.

Fazendo uma breve pausa, com que para fazer as

idéias funcionarem melhor, ele continua: - “Preciso ser franco e honesto com vocês. Nunca escondi nada de meus vizinhos e amigos. Por isto digo que o meu irmão Johannes enviou um recado, dizendo que tem receio de

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vir para Três Forquilhas. Ele prefere nem receber seu lote aqui, pedindo para sairmos e tentar melhores possibilidades de prosperar, em São Leopoldo, ou Campo Bom ou outro lugar”.

Christian Mauer pede a palavra e fala: - “A minha

situação está bem difícil. Aqui quase não existem recursos para instalar um moinho. Tudo o que precisa ser feito é com sacrifício e dificuldade. Contudo, mesmo assim estou animado, por causa dos bons vizinhos que tenho. Eles estão me ajudando a construir uma roda d’água para, finalmente, movimentar meu moinho. Já fabricamos até a mó15”.

Bobsin e demais vizinhos rodearam Mauer. E o

colono mais forte que um touro explicou: - “Estamos solidários uns com os outros. Ajudamos o Mauer, sim... Fomos todos juntos, para abrir o canal que leva a água do rio para o moinho dele. Aqui uns ajudam os outros e, até o que parece impossível, já está começando a ser realizado”.

Jacob Menger, aproveitando a questão sobre o

canal para puxar água do rio,falou: - “Também precisei ter água do rio para movimentar o meu curtume e diversos colonos vieram me ajudar para abrir o canal. Veio gente até de outros núcleos. Isso me deu coragem. Agora o curtume está em atividade. Couro não falta, só não sei para quem vou vender a produção”.

Bobsin, num toque de humor, interveio:- “Amigo

Menger, já comprei um dos teus couros. Fabriquei algumas cordas trançadas (laços) e ainda irei fabricar outras coisas. Se alguém precisa de artefatos de couro, fale comigo. É só encomendar que tirarei um tempinho para servi-los bem”.

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Paul König levantou-se: - “Vocês já devem saber que sou padeiro. Mas, nem penso fazer pão. Notei que cada família prepara o seu. Nesta situação só me cabe cuidar de minhas lavouras e criação. Espero que tenhamos uma boa colheita neste ano. Fico agradecido a Deus pela terra boa... Fico agradecido a Deus pelas colheitas que já tivemos... Fico agradecido a Deus pelos vizinhos e amigos, que são tão importantes como o pão de cada dia sobre a nossa mesa”.

Diversos colonos deram vivas, para demonstrar

concordância com as palavras de König. Até o pastor levantou-se e foi dar um aperto de mão, em sinal de satisfação por palavras tão sábias e repletas de fé.

O professor Engel pediu a palavra: - “Já iniciei as

aulas no meu ranchinho. Só quero saber se alguém aqui consegue me explicar, quem vai pagar pelo meu trabalho? Receberei ajuda do Governo?”.

Jacoby, com rapidez, colocou-se ao lado do

professor, pôs a mão sobre seu ombro e enfatizou: - “Uma coisa é certa, professor Engel, se o Governo irá te dar um pagamento para exercer o cargo de professor, não sei. Mas sei o que nós moradores do núcleo nordeste decidimos. Nós temos condições financeiras razoáveis, e não vamos te deixar passando fome. Queremos até, em conjunto, com a tua orientação e com a ajuda de tua mulher, preparar uma boa lavoura para vocês onde encontrarão de tudo, para alimentar a família”.

Professor Engel ficou com os olhos marejados de

lágrimas. Abraçou Jacoby com carinho e disse um sonoro: - “Muito obrigado!”.

O Comandante Schmitt solicitou que todos

tivessem mais um pouco de paciência, com a demora que

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estava ocorrendo nesta reunião e falou: - “Preciso ainda tratar com vocês a respeito do trabalho pastoral em nossa igreja. O nosso amigo pastor Voges veio até a minha casa, avisar que ele terá que se ausentar por pelo menos dois meses. Ele pretende casar, em Campo Bom, no começo do próximo ano...”. Muitos dos presentes interromperam o Comandante para dar vivas, de alegria, pela notícia. Schmitt continuou: - “Peço que o pastor explique para todos a respeito do atendimento que será proporcionado aos membros, durante a ausência dele”.

Voges falou: - “Chegou a hora certa para me

casar, pois não agüento mais a vida de homem solteiro. Por isso trarei a Elisabeth, se ela concordar casar comigo, já no começo do ano que vem. Preciso esclarecer para tranqüilizá-los que minha viagem não será para agora. Pretendo sair somente em dezembro, alguns dias antes do Natal, com o objetivo de estar com Elisabeth e a família dela, na noite santa. Apenas estou adiantando o planejamento, para que ninguém reclame de não ter sido comunicado a respeito de minha ausência mais demorada. Também quero tranqüilizá-los de que não ficarão sem atendimento, caso ocorrer a necessidade de um batismo ou enterro. Até aqui o Johann Nicolaus Mittmann já conseguiu dar mostras da capacidade e responsabilidade que ele tem, para atender as emergências que podem surgir. Quando eu retornar ele me passará os apontamentos, conforme já vínhamos fazendo, para que os serviços ministrados sejam devidamente registrados em meus Livros Pastorais. Caso alguém queira casar, convém que faça isto agora enquanto aqui ainda estou ou que aguardem a minha volta. O Mittmann já declarou que casamento ele não faz, de jeito algum”.

Finalizada a reunião, o Comandante Schmitt

pediu: - “Vamos realizar um sorteio com as dádivas

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colocadas no altar, assim elas serão repartidas entre todos. Cada chefe de família pode tirar seu bilhetinho e, começando pelo menor número, um após o outro, pode passar diante do altar e escolher um produto. O último terá que se contentar com o que sobrar”.

Cada perda é única

Cada pessoa é única e, por isto, cada perda que

ocorre na vida das pessoas, também é única. Não existem duas pessoas iguais. E, é isso que se reflete nos vínculos que vão sendo estabelecidos, seja na família ou na vida comunitária.

Assim aconteceu também no lar de Paul e Emília

König em relação ao pequeno Bartholomeus que em Torres nascera “de pés e a ferros”. Desde o parto, ele revelara uma saúde muito frágil. Os cuidados do casal, por este motivo, eram dobrados. Os recursos, no meio da floresta, entretanto, eram poucos.

Buscaram a ajuda de Dr. Elias. Ao tomar

conhecimento das complicações havidas durante o parto, ele meneou a cabeça e disse: - “Aquele médico certamente fez uso de duas colheres de ferro, para facilitar o nascimento, uma vez que a cabeça saiu por último. Existem parteiras e até médicos, que tem medo, de que a criança saia sufocada, nestas circunstâncias. É aí que apelam para o uso de ferros. O lamentável no caso de Bartholomeus, é que ocorreu um traumatismo craniano. Além disso, ele deve ter bebido líquido, antes de sair. Nestas condições, poucas crianças sobrevivem. É um milagre ele estar em vossos braços”.

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Emilia disse: - “Nesses poucos meses, ele ocupou um lugar muito especial em nossos corações. Nós o amamos tanto. Queremos criá-lo com os cuidados necessários, para que encontre a saúde e uma vida boa”.

O médico alertou: - “Quero ser bem franco com

vocês. Não existem recursos para corrigir a anormalidade causada no cérebro e nos pulmões da criança. A única coisa é aguardar, para ver como ele se desenvolve...”.

No dia 20 de agosto de 1827, num dia muito frio e

chuvoso, o pequeno teve algumas convulsões. Dr. Elias foi mais uma vez chamado. Ele disse: -

“Nada posso fazer. Ele não resistirá por muito tempo... Agora é questão de horas, apenas...”.

De fato, no mesmo dia ele faleceu. Era a primeira

perda de uma pessoa querida, na nova Colônia. Haveria de ser também o primeiro enterro no cemitério da Comunidade. König foi em busca do pastor, para acertar o horário do sepultamento, na intenção de avisar todos os moradores.

Frau Niederauer, quando viu König passando, já

foi alertando: - “O pastor viajou a Torres. Ele está bastante preocupado com as famílias que, ainda, lá se encontram. Devem estar numa verdadeira agonia de espera, para também serem trazidas para cá... Até o final do ano o pastor quer viajar a São Leopoldo... Ele vai casar e, finalmente, trazer para nós uma Frau Pfarrer (mulher de pastor). Mas, antes de partir, ele gostaria de ver toda nossa a gente evangélica, reunida aqui, na nossa Comunidade...”.

Frau Hellwig também ajudou na explicação: - “O

pastor avisou que pretende permanecer em Torres

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durante algumas semanas, para assistir aquelas famílias... Além disso, ele pretende ter encontros com o coronel, para saber o que está atrasando a vinda de outras famílias...”.

König perguntou: - “E agora? O que farei? Torres

fica longe. Não dá tempo para chamar o pastor...”. Apareceu finalmente Philipp Niederauer que

aconselhou: - “Vá até a casa do Mittmann. Foi isso que o pastor, antes de partir, recomendou que fosse feito em caso de alguma emergência pastoral. O Mittmann se prontificou para nos dar a assistência que se fizer necessária”.

Johann Nicolaus Mittmann teve que realizar,

assim, o seu primeiro sepultamento e também o primeiro da nova Colônia. Mesmo que até ali não fizera nenhum serviço fúnebre, disse, resoluto: - “Eu vos acompanharei, para vos dar o consolo da Palavra de Deus e para orar convosco o Pai Nosso”.

A família König já conquistara a estima de todos.

Por isto, dos quatro cantos da Colônia vieram os colonos e suas famílias, para estarem ao lado destes enlutados, que sofriam essa perda dolorosa.

A Sra. Elisabeth Schmitt, após o sepultamento,

ainda no cemitério, deu um forte abraço na amiga enlutada e, em voz alta, para todos ouvirem, disse: - “Deus sabe por que Ele buscou este anjinho querido do Paul e da Emília. Eu também perdi dois, no navio, durante a viagem para cá. Sei também que o nosso amigo professor Engel e esposa também perderam seus dois anjinhos, no navio. A dor é muito grande. A única força que nos é dada numa hora destas, vem de Deus. A fé em Jesus é o nosso consolo. Pela fé confiamos e

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confessamos: - Não importa onde, exatamente, estejam os nossos anjinhos queridos. A verdade é que sempre estarão conosco, em nossos corações e no nosso pensamento, porque a verdade é: - nós os amamos muito, enquanto Deus os deixou confiados aos nossos cuidados”.

Muitas mulheres caíram em choro e forte pranto.

Mesmo os homens mais duros e curtidos pelas dificuldades da vida, enxugaram lágrimas que teimavam correr-lhes pela face.

Uma história de partos e de sacrifícios - “Se algum dia alguém inventar de escrever a

nossa história, haverá de fazer um relato somente sobre partos e sacrifícios”. - Disse Frau Schmitt em tom jocoso.

Estava ali, o seu marido, o Comandante Schmitt,

em companhia de Dr. Elias Zinckgraf e do pastor Voges. Este retornara de Torres fazia algumas semanas, sem ter conseguido apressar a vinda dos demais colonos ainda retidos no acantonamento.

Os três estavam descansando e conversando à

sombra de uma marrequeira16, quando Frau Schmitt viera com a sua tirada de humor.

Voges, sorrindo, respondeu: - “Frau Schmitt, a

senhora acha graça nisso, não é? Sou de opinião que é coisa séria. Caso uma pessoa, um dia, seja daqui a cem ou duzentos anos pegar o meu Livro do Registro Eclesiástico verá que as famílias, o que melhor souberam fazer, foram filhos. Se formos contar para saber em qual dos ranchos da Colônia este ano uma mulher não esteve

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ou então não está grávida, sobrarão poucos, como o velho Marlow e o velho Sparremberger?”.

O médico interessou-se na conversa: - “Concordo.

Já estou começando a perder a conta dos partos que realizei”.

Frau Schmitt volta à carga, mostrando um papel:

- “Anotei neste papel o nome de todas as mulheres da Colônia que me contaram que estão grávidas...”.

O pastor, curioso, aproximou-se dela e pediu: -

“Dá licença para ler? Ou isto é segredinho das mulheres?”.

- “Não tem problema”. - Disse ela. Voges conferiu a relação e a passou ao médico.

Esfregou as mãos com satisfação, dizendo: - “Que bela informação. Isso é sinal de que a nossa Colônia vai crescer. Não é isso que todos querem?”.

Enquanto eles assim falavam e riam, aparece

Peter Friedrich Petersen, agitado. Fazia semanas que ele retornara de Torres, onde estivera acompanhando o projeto de navegação pela lagoa. Ele desejava estar ao lado da esposa, por ocasião do nascimento do primeiro filho deles.

- “O que está acontecendo, homem? Aquiete-se e

venha se juntar em nossa conversa, você que também está com mulher grávida no seu rancho”. - Disse o Comandante Schmitt.

- “Não há tempo para conversa, comandante. O

senhor me desculpe que não posso sentar agora. A coisa é urgente e vim chamar Dr. Elias. A Catharina vai ter a

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criança, daqui há pouco”. - Dirigindo-se ao médico, ele pede: - “Dr.Elias, o senhor pode vir comigo? A Frau Hellwig já se encontra lá, para servir de parteira, mas ela acha que o parto não vai ser fácil...”.

- “Claro que posso. Já estou pronto e te

acompanho”. - Dr. Elias pegou sua valise, montou em seu cavalo e seguiu ao lado de Petersen, que nem se dera ao trabalho de descer do animal, para dar a mão ao Comandante e demais presentes, de tão nervoso que estava.

Dr. Elias chegou ao rancho de Petersen e foi

entrando, sem cerimônia. Examinou Frau Petersen e avisou: - “Realmente. O parto deve ser para já...”.

Frau Hellwig preocupada falou: - “Estou

acompanhando a Catharina desde cedo. Já a examinei diversas vezes. Ela parece que não está querendo ter a criança. Será que o senhor terá que fazer uso de ferros para tirá-la logo?”.

Dr. Elias muito sério respondeu: - “Todos aqui

sabem que sou contra esse uso indiscriminado e absurdo de ferros em partos. Temos que buscar sempre o modo mais natural. Isso é bem melhor tanto para a criança bem como para a mãe”.

O médico teve que executar todo um trabalho de

orientação, um jogo de paciência, para acalmar a jovem mãe em hora de parto. Ele foi pedindo: - “Por favor, Catharina. Você está muito tensa. Volte à calma! Olhe para mim e ouça minha orientação, que isso vai te deixar bem tranqüila”.

Catharina era uma mulher muito sensível, frágil,

voltada à musica e as artes e estava sofrendo muito em

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meio a vida rude e difícil, desse mato em que viviam. Dr. Elias continuou falando: - “Catharina, pense neste parto como se fosse um arranjo de notas musicais que você vai executar em sua flauta, num culto de festa e alegria. A tua criança precisa ser uma obra de arte, da tua e do teu marido, pois juntos, com amor encomendaram esta vida preciosa que agora precisa vir à luz”.

Finalmente, Catharina sorriu. Ela passou a prestar

mais atenção para as palavras do médico, e concentrou a atenção na criança que precisava nascer.

- “Muito bem”. - Disse o médico. - “Agora as

coisas estão ficando bem melhores... Pense na tua criança que precisa nascer. Solte-a com carinho, mas com toda a força. Ela quer nascer, viu? Ela precisa de luz, agora. Força. Mais força... Diga bem alto: eu quero que ela venha nos alegrar...”

- “Eu quero que ela nos venha alegrar”. - Repetiu

Catharina. Catharina seguiu tudo o que o médico ordenava.

Foi também repetindo as palavras que ele pronunciava. A luta de Catharina continuou por mais alguns minutos, quando o médico falou com firmeza: - “Agora. Força. Já posso ver a cabeça vindo... Força... Pronto!”. - Cortou o cordão umbilical e entregou a criança para Frau Hellwig para que ela a limpasse. E o médico voltando-se para Catharina anunciou: - “É uma menina e, saiu tão bonita como a mãe!”.

O nascimento da filhinha de Peter e Catharina

Petersen ocorreu no dia 24 de setembro de 1827. O batismo foi realizado no dia 04 de novembro, quase dois meses depois, no templo da Colônia de Três Forquilhas, quando Catharina já se encontrava restabelecida do

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parto difícil. Ela fez questão de acompanhar os hinos ao som de sua flauta. Serviram de padrinhos o cunhado pastor Carlos Leopoldo Voges e Elisabetha Diefenthaler, a irmã de Catharina, ainda residente em Campo Bom e que em breve haveria de casar com o pastor.

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A TERCEIRA LEVA DE COLONOS Era o final do mês de dezembro de 1827. O pastor Voges nesta altura já viajara a São

Leopoldo, e ele não pode presenciar a chegada da tão esperada terceira leva de colonos, destinados para a Colônia de Três Forquilhas.

As carretas avançaram vagarosamente pelo

caminho. Fazia um dia de sol bem quente. Os pais de família haviam improvisado coberturas de palha sobre as carroças para proteger mulheres e crianças. Os homens vinham em seus cavalos, atentos para proporcionar o bom andamento da viagem. A chegada foi novamente junto ao Sítio das Três Figueiras. Os moradores da Colônia de Três Forquilhas estavam ali reunidos para conceder uma acolhida festiva, com brados de boas vindas e grande alegria.

O coronel Paula Soares, com seu uniforme azul,

impecável, de oficial do Exército Imperial vinha à frente da caravana de carretas. Estava montado num imponente cavalo. Era um chefe militar admirado e respeitado por todos, devido ao seu modo atencioso, porém, firme e decidido.

Comandante Schmitt fez a recepção ao coronel.

Assim que o militar apeou, recebeu um efusivo aperto de mão. Sem delongas Paula Soares como da outra vez, fez realizar o sorteio de lotes disponíveis, para contemplar também os recém chegados com a tão sonhada terra.

Johannes Niederauer tomou a frente e foi

avisando: - “Eu acho que já tenho meu lote, escolhido

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pelo meu irmão. Somos sócios no comércio. Precisamos ficar juntos”.

Houve aqueles que resmungaram, dizendo não ser

justo que os comerciantes escolhessem dos melhores terrenos, nas proximidades da igreja e escola, sem sorteio. Mas o murmúrio ficou nisto mesmo.

Além de Johannes Niederauer estavam ali mais 23

famílias, como segue: Martin Zimmermann, Peter Reinheimer, Hans Wasmer, os irmãos Johannes e Wilhelm Metz, Gottlieb Heinemann, Joachim Lorey (de retorno da Guerra Cisplatina), Christoph Klumb, Johann Kratz, Carl Gitter, Philipp Boehl, Benjamim Schmidt, Berter Birckenstock, Christian Scholler, Heinrich Casper, Andréas Köhlein, Valentim Becker, Johann Goethe, Jacob Schwabenland, Johann Nicolaus Müller, Phillip Hoffmann, Heinrich Berghahn e Heinrich Geb.

Foram também contemplados com seus lotes de

terra, mesmo que ausentes, os voluntários que haviam seguido com Sua Majestade o Imperador D. Pedro I, para a Guerra Cisplatina: João Miguel Eberhardt, Carlos Becker, João Beck, Valentim Becker, João Wolff, Ernst Friedrich Hildebrandt, João Jacob Müller, Henrique Berghahn, e Nicolau Schmitt.

Apenas Joachim Lorey e Hans Thron Stollenberg

haviam regressado antes, enfermos. O último, conhecido como o Viking, até já viera com a leva anterior e estava fixado na Colônia.

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Uma carta ao Imperador Finalizado o sorteio, com a ajuda de um intérprete

Paula Soares pediu que todos permanecessem no local por um pouco mais de tempo. Mostrou uma carta, dizendo-a dirigida ao Imperador D. Pedro I, com palavras de agradecimento dos colonos, pelas terras recebidas. O coronel falou: - “A carta está redigida em francês. Meu intérprete vai explicar o teor da missiva, explicada em vossa língua, que, aliás, Sua Majestade não entende. Por isto ordenei que ela fosse escrita em francês, língua que tanto o vosso Imperador bem como vosso pastor dominam bem. Lastimo muito que pastor Voges não pode estar aqui para também assiná-la...”.

Philipp Feck trouxe uma mesinha do rancho de Dr.

Elias, para servir de apoio para a coleta das assinaturas. Os colonos fizeram fila, mostrando satisfação com a iniciativa.

Quando Paula Soares se aproximou novamente do

Comandante Schmitt na intenção de se despedir, este falou, com a ajuda do intérprete: - “Que notícias o senhor pode nos dar a respeito da construção das casas para os colonos que ainda estão na espera?”.

Paula Soares, muito atencioso, chamou Petersen

para se postar ao seu lado e, com a ajuda de um intérprete, explicou: - “Tivemos muitos contratempos. A navegação pela lagoa não deu o resultado desejado. O senhor Petersen, que está aqui é testemunha do que vou dizer. Ele terá que viajar até São Leopoldo para saber da possibilidade de conseguirmos equipamento para uma barca a vapor, que tenha a força de puxar uma balsa carregada. O nosso barco a velas não teve a força necessária para dar conta do nosso propósito”.

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Paula Soares, apontando para a casa de telhas do Dr. Elias Zincgraf, continuou: - “Quanto às telhas, não é viável fazer o transporte através de carretas, desde Torres, pelo caminho arenoso. Conseguimos trazer apenas algumas cargas de telhas. Foi possível a construção das casas do Comandante Schmitt, dos comerciantes Niederauer e Jacoby e do médico Dr. Elias. Foram quatro casas... Podem notar que são de pau-a-pique, pois que tijolos ainda não estão disponíveis. Sei que isto gera descontentamento. Porém afirmo que estou fazendo muito empenho para que as maiores necessidades, de todos, sejam atendidas”

Paula Soares continuou na exposição do assunto:

- “Já estou estudando providências que irão contornar o problema que enfrentamos com o transporte das telhas. Pretendemos encurtar distâncias... A nossa idéia é de instalarmos uma olaria na região da Sanga Funda. Espero que durante o ano de 1828, seja possível concretizar este plano”.

Comandante Schmitt finalizou com mais outra

pergunta: - “Caro Coronel Paula Soares. Quando virão os demais colonos que ainda permanecem na agonia da espera, em Torres?”.

Paula Soares manteve o seu tom atencioso,

apesar da crítica que soava com tanta nitidez neste questionamento. Era visível que ele devotava uma grande consideração ao Comandante Schmitt. Até fazia questão de fortalecer o papel de líder que Schmitt desempenhava junto aos colonos de Três Forquilhas. E com palavras firmes, explicou: - “Tenho hoje, duas frentes no estabelecimento da chamada colonização alemã em Torres. Inicialmente, conforme o plano do nosso Governador, estava prevista uma só Colônia, no vale do rio Mampituba. Vocês são testemunhas que

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aquela área não agradou a ninguém. Por isto parti para o plano de radicá-los, aqui, neste vale do Três Forquilhas. Permiti que o Comandante Schmitt viesse, em fins do mês de dezembro de 1826, com o seu grupo de desbravadores e pioneiros, para aqui abrir roçados de lavouras e dar ajuda ao trabalho do agrimensor. Vocês precisam reconhecer que estão em melhor situação que os católicos que ainda aguardam providências. Estejam seguros que os poucos protestantes que ainda restam em Torres, em breve haverão de estar convosco.”.

Comandante Schmitt ficou emocionado, com a

explicação do Coronel. Adiantou-se, estendendo a mão a Paula Soares, para um efusivo cumprimento e falou: - “Honroso e fraterno amigo Coronel Paula Soares, devemos ao senhor a nossa gratidão e o nosso mais profundo reconhecimento. Sei que as suas palavras são verdadeiras. Somos testemunhas dos seus esforços e devemos à sua coragem e à sua decisão, o fato de nos encontrarmos instalados nesta Colônia de Três Forquilhas. Leve mais uma vez a certeza que poderá contar sempre com o nosso apreço e a nossa disposição de servir Sua Majestade, o nosso Imperador D. Pedro, como súditos fiéis”.

O aperto de mãos entre Paula Soares e

Comandante Schmitt foi efusivo, postados um diante do outro e de olho no olho, como líderes decididos que ambos eram.

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Texto da Carta ao Imperador D. Pedro I (Tradução do original em francês)

À Sua Excelência o Ministro de Estado.

Nós, abaixo assinados, Colonos da Comunidade Protestante da Colônia de São Pedro de Alcântara, Distrito de Torres, em conhecimento da bondade de Vossa Excelência, atrevemo-nos apresentar, com o mais profundo respeito, os nossos agradecimentos à Vossa Excelência como Protetor desta Colônia que é uma terra bonita e fértil, esperando que Vossa Excelência não seja incomodado ao pormos os nossos agradecimentos aos pés de Vossa Excelência.

Há alguns meses que somos proprietários

desta bela área e plantamos o que queremos: frutas e hortaliças, tanto as do Brasil quanto as da Europa.

Entre os colonos se planta centeio, cevada,

trigo, milho, aveia, uvas, cana de açúcar e café; as uvas saem bem, com muito bom resultado para a Província e para nós.

Todos os colonos estão contentes da sua

plantação e apresentam a Vossa Excelência os seus mais sinceros agradecimentos.

Simultaneamente, todos os colonos pedem

a Vossa Excelência ter a bem depor os nossos sentimentos de agradecimento diante do trono do nobre e gracioso Imperador.

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Ao mesmo tempo, atrevemo-nos fazer, também, um pedido à Vossa Excelência: na nossa Colônia não existe nenhum entendido em ferro ou madeira; somos obrigados a mandar fazer fora os nossos utensílios, com muito incômodo e despesas.

É por isso que pedimos dar ordem aos

nossos colonos que vão chegando para remediar a nossa triste situação. Como é do conhecimento de Vossa Excelência, possuímos uma grande e linda área de terras onde se poderá ceder belos terrenos a grandes famílias.

Temos a honra de nos recomendar à graça

de Vossa Excelência e ficamos, com a mais profunda estima, de Vossa Excelência mui humildes e mui obedientes Colonos da Comunidade Cristã Protestante Colônia de São Pedro de Alcântara Dezembro de 1827. (Assinatura de 46 colonos) Análise da Carta Ao Imperador Detalhes que chamam a atenção no teor da carta: A carta ignora que, na realidade, diversos colonos

de Três Forquilhas, entre os quais citamos os irmãos Niederauer, não estavam satisfeitos. Desejavam

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abandonar suas propriedades para sair, e voltar a São Leopoldo.

Ignora também que a experiência com a

plantação de trigo, (das sementes trazidas da Europa, pelo Comandante Schmitt e por Justin, não deram bons resultados). A colheita de trigo, na verdade, foi precária.

Na carta diz que os colonos estavam plantando

uvas, algo que também não ocorrera, muito menos em condições de exportá-las para outros lugares da Província.

Tudo indica que o interesse do Coronel Paula

Soares era o de apresentar bons resultados, ao Governo. Uma carta de agradecimento, neste teor, com

aspectos bem positivos, era favorável ao Diretor da Colonização que desejava demonstrar a sua competência na condução do empreendimento.

O que importa é que a Colônia Alemã Protestante

de Três Forquilhas havia sido estabelecida com êxito. A maioria dos colonos havia sido contemplada e estavam assentados em seus respectivos lotes de terra.

Esta carta foi, provavelmente, redigida em Torres,

trazida até a Colônia de Três Forquilhas por ocasião da vinda da terceira leva de colonos, quase no final do mês de dezembro de 1827, para ser assinada pelos colonos. Nessa ocasião, Pastor Voges já havia viajado a São Leopoldo, para o seu casamento com Elisabetha Diefenthaeler. O pastor era o único na Colônia de Três Forquilhas que entendia a língua francesa.

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CONCLUSÃO Concluímos “De Pés e a Ferros” afirmando que os

méritos da colonização alemã no Vale do Rio Três Forquilhas cabem ao coronel Francisco de Paula Soares Gusmão. Ele teve a coragem para contrariar o projeto original da colonização de Torres, idealizado por Fernandes Pinheiro, que não previa a ocupação do vale de Três Forquilhas.

Paula Soares é merecedor da nossa admiração e,

certamente, a gratidão dos descendentes de pioneiros colonizadores que ainda hoje vivem em áreas que os antepassados receberam a mais de 180 anos atrás, no vale do rio Três Forquilhas.

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DADOS BIOGRÁFICOS DE JOSÉ FELICIANO FERNANDES PINHEIRO: o idealizador da Colonização Alemã no Litoral Norte do Rio Grande do Sul.

Nasceu em Santos, em 09 de maio de 1774, filho

do Coronel José Fernandes Martins (português) e de Teresa de Jesus Pinheiro.

Estudou na Universidade de Coimbra, Portugal Em

1798, recebeu o grau de bacharel. Em 1800, foi nomeado Juiz das Alfândegas do Rio Grande do Sul. Em 19 de setembro de 1801, foi nomeado Auditor Geral de todos os regimentos sul riograndenses. Em 1812, foi até Montevidéu com o exército pacificador e assumiu o cargo de vogal da comissão militar, criada no ano seguinte. Em 1821, foi eleito deputado pela província de São Paulo para a Constituinte Portuguesa.

Em 1823, foi nomeado presidente do Rio Grande

do Sul. Em uma de suas viagens, ao passar pelo vale do Mampituba, ele teve a idéia de criar uma colonização alemã na área de Torres, no Litoral Norte do Rio Grande do Sul.

Fernandes Pinheiro era um defensor das causas

indígenas. Chama a atenção o que escreveu em 12 de abril de 1825: "... é necessário atrair e pacificar por meio de presentes e de maneiras doces os índios selvagens, servindo-se do intermédio dos que já estão domesticados e prometer-lhes, assegurando por meio de intérpretes, que é vontade de nosso Imperador que não haja mais guerras, nem hostilidades; que, se quiserem aldear debaixo de nossa proteção, serão bem acolhidos e até defendidos dos seus inimigos...”. (Ofício de 12/04/1825, do presidente Fernandes Pinheiro ao cel. Manoel da Silva Carneiro e Fontoura — liv. 147, Cxa. 58. Arquivo Histórico RS).

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José Feliciano Fernandes Pinheiro tornou-se o Visconde de São Leopoldo. Faleceu em 6 de julho de 1847, em Porto Alegre.

DADOS BIOGRÁFICOS DE FRANCISCO DE

PAULA SOARES DE GUSMÃO: o primeiro Inspetor da Colonização Alemã de Torres.

Nasceu na cidade de São Paulo, da então

Província de São Paulo, no ano de 1784, como filho do Tenente Francisco Soares e Esméria Antonia de Gusmão.

Iniciou a sua carreira militar, na Província de São

Paulo. Com a proclamação da independência do Brasil

colocou-se ao lado de Sua Majestade Imperial, D. Pedro I, para participar das lutas pela consolidação da Independência. Recebeu o comando das Milícias Sertanejas colocadas em Torres, para guarnecer o Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Casou com Dona Guiomar Antonia Soares Gusmão, viúva de um casamento anterior do qual ela trazia a filha Rita Inácia da Costa. Em 1826, Paula Soares recebeu o cargo de Inspetor das Colônias Alemãs de Torres. Era na verdade uma espécie de Diretor, pelos poderes que lhe foram conferidos. Foi descrito, a partir da tradição oral de Três Forquilhas como sendo um homem de estatura baixa, relativamente gordo. Era do tipo bonachão, porém, firme nas decisões. Em 1835 o Coronel Paula Soares foi destacado pelo Exército para participar da defesa da cidade de Porto Alegre, e procurar conter a investida dos Farrapos. Foi-lhe entregue o Comando da Companhia de Voluntários Alemães, convocados nas diversas colônias alemãs. Certamente recebeu este cargo por dominar, de modo razoável, o idioma alemão. Perdeu a esposa em Porto

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Alegre, no ano de 1849. Já no ano seguinte voltou a contrair matrimonio com a Sra. Rita Edalina dos Santos.

Paula Soares não teve filhos nestes dois

matrimônios. Conforme a tradição oral de Três Forquilhas, mesmo distante de Torres, Paula Soares continuou na função de Inspetor das Colônias Alemãs de Torres, contando com a colaboração do pastor Carlos Leopoldo Voges, no cuidado dos assuntos da Colônia de Três Forquilhas.

Em 1847, Paula Soares redigiu um minucioso

documento intitulado “MEMÓRIAS DAS TÔRRES”. Com a aposentadoria de Paula Soares, o pastor Voges teria assumido a função, inclusive na inspeção da Colônia São Pedro (Católica) o que ainda merece maior pesquisa e comprovação. No final da carreira militar Paula Soares chegou ao posto de Brigadeiro General (hoje seria um General de Brigada).

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FONTES DE CONSULTA

A FALA VEGETAL, texto de Carlos Drummond de Andrade, em CONTOS PLAUSÍVEIS, livro publicado pela José Olímpio Editora, em 1981.

Acervo documental do Pastor CARLOS LEOPOLDO

VOGES. Pastas de documentos, livros, relatórios, fotografias e papéis avulsos.

Livros do Registro Eclesiástico da COMUNIDADE

EVANGÉLICA DE TRÊS FORQUILHAS, em Itati – RS. (Registro de Batismos, Casamentos e Óbitos).

Arquivo pessoal do escrivão ALBERTO SCHMITT e

de seu pai, o escrivão CHRISTOVAM SCHMITT. Depoimentos de Alberto Schmitt vindos da tradição oral.

Arquivo pessoal de BALDUINO MITTMANN, com

acervo de fotos. Depoimentos de Balduino Mittmann com base na tradição oral.

Depoimentos de EUGENIO BOBSIN, com

memórias sobre os seus antepassados Eberhardt e Bobsin. Eugenio Bobsin foi criado pelo avô Cristiano Eberhardt, com o qual colheu memórias valiosas sobre a história da Colônia de Três Forquilhas.

Depoimentos de JACÓ MAUER, sobre a

personalidade do pastor Voges e as relações do pastor com o povo do vale do rio Três Forquilhas.

Memórias de OTHILIA VOGES BOBSIN e

fotografias do “Arquivo da Família Voges”. Vovó Othilia confiou ao autor, em 1970, uma foto

do pastor Voges, depois publicada pelo historiador Dr.

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Carlos H. Hunsche, que esqueceu de mencionar a origem da mesma.

ELIO E. Müller, em “TRÊS FORQUILHAS 1826 –

1899”, Fonte Gráfica e Editora Ltda, Curitiba, 1992. FISCHER, Ernesto, em “CRÔNICAS DE TRÊS

FORQUILHAS”, manuscritos de 1967, 1968 e 1970. NOTAS EXPLICATIVAS (1) Página 11 – FIGUEIRA: a figueira, árvore majestosa encontrada no ecossistema da “Floresta Perenifólia Higrófila Costeira” que faz parte da Floresta Atlântica, no Litoral Norte do RS, começando pelo rio Mampituba, em Torres, indo até o município de Osório (RS). No “Sítio da Figueira” em Itati (RS) pode ser visto um exemplar, árvore mais que centenária, que desafia o tempo e os ventos, e resiste contra aqueles que não respeitam a pródiga natureza do vale do rio Três Forquilhas e região. (2) Página 15 – ACANTONAMENTO: é a acomodação de pessoas em um espaço apertado, na forma de acampamento rústico, no caso de Torres, em pequenas casas de madeira. Na língua alemã foi definido por Einquartierung e em francês como Cantonnement. (Nota do autor). (3) Página 20 - A LOCALIZAÇÃO DA CHOUPANA TEMPLO: 29º 29' 20.43" de latitude sul 50º 6' 3.63" de longitude oeste). (4) Página 20 - TESTEMUNHO: em 1970, o Sr. Alberto Schmitt, descendente do Pastor Voges, residente naquela propriedade informou que este cedro secular resistiu até

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por volta de 1900, quando foi derrubado e transformado em madeira, portanto 7 anos após a morte do pastor. (5) Página 22 - PIRILAMPO: tem origem no grego, pyris (pyros)=calor, lampis= Luz, Também conhecido por VAGALUME; É um inseto coleóptero das famílias Elateridae, Fengodidae ou Lampyridae, que emite luz. Alimenta-se principalmente de lesmas e caracóis. A espécie mais comum no Brasil é a Lampyris noctiluca, na qual apenas os machos são alados. Habitam matas e campos, preferindo os lugares úmidos e alagadiços como os brejos, onde procuram por caramujos, para alimento. (Nota do autor). (6) Página 30 - SÍTIO DAS FIGUEIRAS: para informação ao leitor, hoje sobrou apenas uma figueira, e passou a ser o “Sítio da Figueira”. Localização: 29º 30' 33.98" S 50º 5' 31.69" W. (7) Página 34 – HUGUENOTE: é a denominação dada aos protestantes franceses (quase sempre calvinistas), pelos seus inimigos, nos séculos XVI e XVII. O antagonismo entre católicos e protestantes resultou em guerras religiosas, que dilaceraram a França do século XVI. Muitos huguenotes eram artesãos, comerciantes e nobres, concentrando-se especialmente no oeste e sudoeste da França. Os Bobsien, que entraram em Três Forquilhas em 1826, foram, conforme a tradição oral, artesãos franceses que fabricavam artigos de couro. Fugiram para a Suécia, para escapar da morte. (8) Página 35 - LEGAIS PIEDOSOS: era uma referência para pessoas que estiveram vinculadas ao movimento puritano da Alemanha, conhecidos depois como pietistas. Consta que o imigrante Christian Maurer (que depois assinava apenas Mauer), bem como Johann Nikolaus Mittmann teriam sido influenciados, na Alemanha, pelo

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movimento pietista, liderado pelo conde Nikolaus Ludwig von Zinzendorf. (Nota do autor). (9) Página 37 – TAIOBA: a taioba ou Xanthosoma sagittifolium Schoot é uma “Arácea” folhosa que era muito apreciada pelos índios desta região e que depois foi incorporada pelos colonizadores europeus, como fonte alimentar. A importância da taioba como componente da dieta humana está no fato de seu total aproveitamento (folhas, caule e bulbos). Suas folhas possuem maior riqueza em nutrientes do que os bulbos. É necessário tomar cuidado, pois existe a taioba brava, que é tóxica. (Nota do autor). (10) Página 45 – PILOTO: termo que, na época, designava a função de agrimensor. (11) Página 54 – RABECA: instrumento de arco, precursor do violino, de origem árabe, utilizado no Brasil em manifestações populares e religiosas desde os remotos tempos da colonização. (12) Página 76 - JUGADAS ALEMÃS: uma jugada alemã corresponde hoje a ¼ de hectare, mais ou menos. (13) Página 91 - BUTIÁ - Cocos eriospatha, palmeira nativa da América do Sul, também conhecida por Macumá e que ocorre nas matas e campos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. (14) Página 91 – PACOVA: a banana chamada pelos índios brasileiros de pacóua, ou como ficou escrita, pacova já existia, sendo nativa, na América. O nome banana é africano, relativo a determinada espécie trazida da África. Apesar das origens diferentes da pacoba brasileira e da banana africana, Gabriel Soares disse que "não há nas árvores de umas às outras nenhuma

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diferença". Há muitas espécies da banana nativa e uma delas, talvez a mais saborosa, é por isso chamada no sul de banana da terra, ou, para outros, de banana-maçã. Talvez essa fosse a que os índios chamavam pacovamirim, que quer dizer pacoba pequena, do comprimento de um dedo, apenas mais grossa. (15) Página 120 – MÓ: cada uma das peças, do par de pedras duras, redondas e planas, com as quais, os moinhos, moem ou trituram grãos de trigo, cevada, centeio e outros, até se reduzirem a farinha. (16) Página 127 – MARREQUEIRA: árvore medicinal, espinhosa que pode medir de 6 a 10 metros de altura, de folhas compostas e flores avermelhadas, nativa do Brasil, também conhecida por corticeira, mulungu e bico-de-papagaio. Uso medicinal na forma de chás: sedativa, tranqüilizante, para dor de dente, reumatismo, hemorróidas, tosse nervosa, asma e purgativa. FIGURAS em “De pés e a Ferros” Figura 1: Página – 12. O autor conversando com a figueira. (Fotografia de Cristiane Müller Sounis Saporiti, 2008. Arte final do autor, 2009). Figura 2: Página – 17. O Coronel Paula Soares (e pastor Voges traduzindo suas palavras...). Gravura feita pelo autor, 1974. Figura 3: Página – 20. Dando uma noção da aparência: Choupana Templo/Escola de Três Forquilhas, de 1826, coberta com folhas de palmeira. Fotomontagem feita pelo autor. Arte final, 2009.

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Figura 4: Página – 23. Pastor Carlos Leopoldo Voges na Colônia de Três Forquilhas. Fonte: Arquivo da Família Voges. O ano da foto é desconhecido. Figura 5: Página – 35. Assinatura de Johann Bobsin em 1827. Fonte: Arquivo Nacional, Seção dos Ministérios, Rio de Janeiro. Carta de agradecimento em francês, assinada por 46 chefes de família de Três Forquilhas, entre os quais consta Johann Bobsin. Data: 31.12.1827. Figura 6: Página – 48. A Colônia de Três Forquilhas. Fonte: Croqui feito pelo autor, publicado no livro: “Três Forquilhas – 1826 -1899”, p. 22. Figura 7: Página – 62. Professor pensativo. Fonte: Fotomontagem do autor, 2009. Figura 8: Página – 67. Náufragos em busca de socorro. Fonte: Gravura elaborada pelo autor, 1974. Figura 9: Página – 94. Voges e Petersen em Três Forquilhas. Fonte: Gravura elaborada pelo autor, 1974. Figura 10: Página – 102. Enamorados, em Torres, diante da Lagoa. Fonte: Gravura elaborada pelo autor, 1974. Figura 11: Página – 111. Templo de madeira da Colônia de Três Forquilhas. Fonte: Gravura feita pelo autor, com informações do Sr. Alberto Schmitt, 1970.

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COLEÇÃO MEMÓRIAS DA FIGUEIRA Autor: Elio Eugenio Müller Volume 1: “De pés e a Ferros” O nascer da Colônia de Três Forquilhas. Volume 2: “Sangue de inocentes” Episódio da Revolução Farroupilha. Volume 3: “Dos bugres aos pretos” A tragédia de duas raças. Volume 4: “Amores da Guerra” Histórias da Guerra do Paraguai. Volume 5: “Face Morena” A miscigenação na Colônia de Três Forquilhas. Volume 6: “Os Peleadores” Um episódio da Revolução Federalista. Volume 7: “E a vida continua...” O drama humano diante do flagelo da epidemia.