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Revista Aleacutetheia de Estudos sobre Antiguumlidade e Medievo ndash Volume 22 Agosto a Dezembro de 2010 ISSN 1983-2087
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Acerca de Ciclos e Eacutepocas coacutesmicas Uma nova leitura do Mito de ldquoO Poliacuteticordquo
de Platatildeo
Feacutelix Jaacutecome Neto1
Resumo Este artigo defende que a interpretaccedilatildeo tradicional do mito de ldquoO Poliacuteticordquo de
Platatildeo natildeo possui forccedila explicativa nem para elucidar devidamente o conteuacutedo do mito
tampouco a relaccedilatildeo das ideias do mito com o diaacutelogo como um todo Postulo que o
Estrangeiro relata dois Ciclos coacutesmicos que contecircm quatro Eacutepocas coacutesmicas distintas e
natildeo apenas Era de Zeus e Era de Cronos como pensa a leitura corrente do mito
Sustento ainda que a Era de Zeus natildeo eacute uma marcha retroacutegrada abandonada pelos
deuses mas um periacuteodo em que a autonomia dos homens eacute ponderada pela vigilacircncia
coacutesmica da divindade Assim o mito natildeo desilude a pesquisa pelo melhor poliacutetico
objeto do diaacutelogo mas sim enquadra o poliacutetico dentro da especificidade da
temporalidade do acontecer humano
Palavras-Chaves Platatildeo ndash Era dos deuses ndash Era dos homens ndash tempo - poliacutetico
Resumeacute Cet article soutient que linterpreacutetation traditionnelle du mythe de Le
Politique de Platon na pas de pouvoir explicatif ni deacutelucider le contenu du mythe ni la
relation du mythe au dialogue dans son ensemble Jallegravegue que lEacutetranger raconte quil a
deux Cycles cosmiques qui contiennent quatre diffeacuterentes Eacutepoques cosmiques et non
pas seulement lEgravere de Cronos et lEgravere de Zeus comment pense la compreacutehension
traditionnelle du mythe Jaffirme encore que lEgravere de Zeus nest pas une marche
reacutetrograde abandonneacute par les dieux mais une peacuteriode ougrave lautonomie des hommes est
pondeacutereacutee par la surveillance cosmique de la diviniteacute Ainsi le mythe ne deacuteccediloit pas la
recherche du meilleur politique tel est le sujet du dialogue mais il circonscrit le
politique agrave la speacutecificiteacute de la temporaliteacute des eacuteveacutenements humains
Este artigo trata do mito contado pelo personagem ldquoEstrangeirordquo (268d ndash 274d)
dentro do diaacutelogo platoacutenico intitulado ldquoO Poliacuteticordquo2 O objetivo da presenccedila deste relato
1 Mestrando em Estudos Claacutessicos ndash Mundo Antigo ndash pela Universidade de Coimbra e pesquisador vinculado ao Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra Portugal E-mail para contato felixjacomehotmailcom
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no diaacutelogo eacute de evidenciar que a definiccedilatildeo do poliacutetico escopo da primeira parte do
diaacutelogo natildeo pode ser consumada sem levar em consideraccedilatildeo a especificidade do tempo
dos homens Este tempo coacutesmico eacute caracterizado atraveacutes do contraste em relaccedilatildeo a dois
outros tempos coacutesmicos aquele baseado em um movimento retroacutegrado e sem vigilacircncia
dos deuses no qual os seres vivos inexoravelmente regridem e natildeo haacute possibilidade de
estabelecer uma ordem poliacutetica e outro tempo oriundo do governo de Cronos em que a
vigilacircncia divina cuida de cada detalhe da sobrevivecircncia dos homens deixando para
estes pouco espaccedilo para autonomia e portanto sem meios de estabelecer uma ordem
poliacutetica propriamente humana Como um ponto intermediaacuterio o tempo dos homens
contemporacircneos a Platatildeo eacute a Era de Zeus quando haacute por um lado uma certa vigilacircncia
divina especialmente quanto ao sentido da rotaccedilatildeo do cosmos por outro lado haacute
autonomia para que os seres humanos governem a si proacuteprios e assim permite o
estabelecimento da vida poliacutetica
Este artigo entatildeo visa apresentar em detalhes a interpretaccedilatildeo introduzida no
paraacutegrafo acima Isso justifica-se visto que minha interpretaccedilatildeo eacute conflitante com agraves
leituras tradicionais que foram feitas sobre esta passagem de ldquoO Poliacuteticordquo de Platatildeo
Para tanto o texto estaacute dividido em duas partes Na primeira parte aponto algumas
contradiccedilotildees entre a interpretaccedilatildeo tradicional e as proacuteprias premissas do mito
estabelecidas pelo personagem que conta o mito o Estrangeiro atraveacutes da leitura de
alguns comentadores que seguem a base da interpretaccedilatildeo tradicional Ainda nesta
primeira parte do artigo apresentamos grades de leituras mais recentes que se afastam
da leitura tradicional como Cristopher Rowe e principalmente Luc Brisson e Gabriela
Carone Na segunda parte faccedilo uma espeacutecie de siacutentese do diaacutelogo3 onde defendo minha
proacutepria interpretaccedilatildeo do mito
-I-
Natildeo eacute faacutecil estabelecer o que seria a interpretaccedilatildeo tradicional deste mito uma vez
que os autores divergem consideravelmente e a mesma base de interpretaccedilatildeo daacute origem
a teses contraditoacuterias De todo modo eacute possiacutevel dizer que a interpretaccedilatildeo tradicional
2 O texto grego utilizado do diaacutelogo ldquoO Poliacuteticordquo foi a ediccedilatildeo estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) A traduccedilatildeo do diaacutelogo para o portuguecircs usada no artigo eacute de autoria de Carmen Isabel Leal Soares em Platatildeo (2008) salvo algumas exceccedilotildees que foram devidamente indicadas 3 Alerto ao leitor que natildeo se trata de uma siacutentese strictu sensu uma vez que certas partes merecem mais destaque do que outras Em geral as passagens mais polecircmicas e que servem para elucidar as divergecircncias com a interpretaccedilatildeo tradicional foram privilegiadas na siacutentese
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expotildee que haacute dois ciclos coacutesmicos que correspondem a duas eacutepocas antagocircnicas a Era
de Cronos guiada pelo deus e a Era de Zeus onde o deus estaacute ausente Como o deus
estaacute ausente a era de Zeus seria dominada pela parte corpoacuterea de sua proacutepria formaccedilatildeo
gerando uma desordem crescente e inexoraacutevel ateacute chegar ao ponto criacutetico em que seraacute
preciso uma nova intervenccedilatildeo divina4
Vejamos agora as implicaccedilotildees de tal tese de acordo com as premissas apresentadas
pelo Estrangeiro no decorrer da passagem do mito Reiterando que o argumento
tradicional concebe exatamente dois cicloseacutepocas coacutesmicas Cronos e Zeus
1) Como o governo de Cronos eacute guiado pelo deus este periacuteodo natildeo pode estar em
sentido retroacutegrado5 e portanto o envelhecimento dentre os homens natildeo pode ser de
velhos para jovens6
2) A Era de Zeus por oposiccedilatildeo eacute marcada pelo mundo girando por si proacuteprio o
que causa as referidas desordens Se as coisas satildeo assim a Era de Zeus
presumivelmente a Era dos leitores de Platatildeo eacute marcada por um movimento retroacutegrado
e o envelhecimento dentre os homens faz-se da velhice para a juventude ou seja os
homens nasceriam velhos
3) Sendo assim o movimento retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 271c 2
assemelha-se antes com a Era de Zeus por ser um movimento retroacutegrado baseado em
um universo deixado por si mesmo do que com a Era de Cronos que eacute o oposto disto
jaacute que eacute guiada pelo deus
Pois bem a fragilidade da(s) interpretaccedilatildeo (otildees) tradicional(is) estaacute(atildeo) justamente
em contradizer as proacuteprias implicaccedilotildees de sua tese baacutesica Vejamos isso em alguns
comentadores que de uma forma ou de outra buscam seguir a base da interpretaccedilatildeo
tradicionalVidal-Naquet (1978 137) faz a Era de Cronos ser guiada pelo deus e ao
mesmo tempo ser baseada em um movimento reverso ldquothe human beings of the time of
Cronos led their lives in reverserdquo aleacutem disso diz Vidal-Naquet ldquomen were born from
4 Para um exemplo desta base de interpretaccedilatildeo ver Miller (2004 38-51) Mais autores que trabalham sobre nesta perspectiva seratildeo discutidos nos proacuteximos paraacutegrafos 5 Cf 268c-d onde eacute dito que a disposiccedilatildeo retroacutegrada eacute inerente ao mundo deixado por ele mesmo e natildeo ao mundo guiado pelo deus Portanto o mundo guiado pelo deus precisa ter um movimento oposto ao movimento retroacutegrado 6 Jaacute que este tipo de envelhecimento eacute caracteriacutestico do mundo deixado por si mesmo em sentido retroacutegrado conforme estaacute expliacutecito na descriccedilatildeo da passagem 270b 10 ateacute 271c 2
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the earth and they were born oldrdquo7 Todavia a identidade entre movimento guiado pelo
deus ndash movimento retroacutegrado ndash e homens nascerem velhos natildeo faz o menor sentido no
que tange ao mito contado pelo Estrangeiro Os homens da Era de Cronos nascem da
terra mas natildeo eacute dito que nascem velhos8
A ideia de que Cronos estaria dentro do movimento retroacutegrado adveacutem quase sempre
da interpretaccedilatildeo da passagem 271c 8 - 271d 3 Segundo essa linha de pensamento o
Estrangeiro estaria respondendo para Soacutecrates que a Era de Cronos natildeo tem nada a ver
com a atual mas sim com a precedente (270b 10 - 271c 2) Diante disso estudiosos que
seguem esta interpretaccedilatildeo tendem a pensar que o movimento retroacutegrado descrito em
270b 10 - 271c estaacute na mesma Era coacutesmica que Cronos e que no fundo trata-se da Era
de Cronos jaacute que para estes comentadores natildeo existem mais do que dois cicloseacutepocas
coacutesmicas Cronos e Zeus9 Entretanto a posiccedilatildeo estabelecida entre Era de Cronos e Era
de Zeus natildeo precisa ser necessariamente em termos de sentido de movimento coacutesmico e
portanto essa passagem natildeo eacute suficiente para marcar Cronos como movimento
retroacutegrado
Jaacute Miller (2004) parece entrar em contradiccedilatildeo ao caracterizar a Era de Zeus
justamente por manter a tese tradicional de que estamos vivendo na crescente
decadecircncia Assim sendo o autor seguindo a interpretaccedilatildeo tradicional diz que a Era de
Zeus eacute deixada por si proacutepria portanto baseada em um movimento retroacutegrado no qual
prevalece o elemento corpoacutereo a desordem o esquecimento (Miller 2004 39) Ainda
em relaccedilatildeo a Zeus acrescenta ldquoThe cosmos as a whole according to the myth suffers
7 Em flagrante contradiccedilatildeo com o aviso do proacuteprio Estrangeiro contido em 269e ldquocolocar-se permanentemente em rotaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel a ningueacutem excepto ao guia responsaacutevel por todos os movimentos - e natildeo eacute legiacutetimo [οὐ θέmicroις] que este execute um movimento ora num sentido ora no seu contraacuterio [] temos necessidade de afirmar que o cosmos nem sempre eacute responsaacutevel pelo seu proacuteprio movimento nem sequer eacute posto a girar por um deus em movimentos de rotaccedilatildeo duplos e contraacuterios nem tatildeo-pouco cabe a dois deuses com modos de pensar opostos entre si pocirc-los a rodarrdquo Assim vemos que natildeo eacute possiacutevel um deus movimentar o mundo em dois sentidos opostos como tambeacutem natildeo eacute possiacutevel que existam dois deuses que movimentam o mundo em sentidos opostos O deus para Platatildeo eacute a fonte do nous e dele apenas emana o bem e o bom O deus natildeo pode movimentar algo no sentido retroacutegrado porque isso seria corromper o deus diante da materialidade do mundo Eacute justamente a dimensatildeo corpoacuterea que impele o mundo para traacutes 8 Esse argumento de que os homens sob Cronos nascem velhos jaacute tinha sido expressado por Vidal-Naquet (1960 78 n5) Roochink (2005 8) defende a mesma ideia Para sustentar tal argumento Vidal-Naquet baseia-se em 273e 10 No entanto acredito que τὰ δ ἐκ γῆς νεογενῆ σώmicroατα πολιὰ refere-se agrave eacutepoca retroacutegrada anterior agrave Era de Zeus e natildeo agrave eacutepoca de Cronos A forma como interpreto eacute mais coerente visto que nascer velho eacute proacuteprio do movimento deixado por si mesmo e natildeo da Era de Cronos onde haacute a vigilacircncia do deus 9 Assim White (2007 43) e Morgan (2004 254) parecem sugerir que a Era de Cronos faz parte da primeira eacutepoca reversa descrita (270b 10 - 271c 2)
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increasing disorderrdquo (idem 2004 50) Mesmo diante desta caracterizaccedilatildeo que o autor faz
da Era de Zeus ele acredita que
The dominance of lethe forgetfulness (273c) in the later stage of the age of Zeus refers to the secularization and humanization of culture and with this the breakdown of the prepolitical authoritarian order The new and increasing disharmony of the later stage therefore calls for a new kind of order and the forgetfulness calls for a new sort of remembrance (ibidem 49)
Uma crescente desarmonia que gera ordem Como pensar em crescente desarmonia
se os dons oferecidos aos homens pelos deuses marcam uma provaacutevel melhoria no
micro-cosmos humano dentro da Idade de Zeus Como dar conta da presenccedila ativa dos
deuses se na Era de Zeus os deuses estatildeo supostamente ausentes Um outro aspecto que
passa despercebido pelos comentadores eacute a contradiccedilatildeo entre o movimento
supostamente retroacutegrado da eacutepoca de Zeus e o tipo de envelhecimento dado que no
tempo atual (eacutepoca de Platatildeo) o envelhecimento daacute-se no sentido que estamos
habituados ou seja jovem ndash velho A rigor era para o envelhecimento em Zeus ser
como descrito nos movimentos reversos ou seja era para nascermos velhos Isso natildeo
faz qualquer sentido e natildeo li nenhum comentador que diga claramente que as pessoas
nasciam velhas na eacutepoca atual10
Para aleacutem destes problemas de interpretaccedilatildeo imanente do mito de ldquoO Poliacuteticordquo essa
grade interpretativa que temos discutido ateacute agora enlaccedila o mito em seacuterias dificuldades
interpretativas em relaccedilatildeo ao resto do diaacutelogo no qual o mito estaacute inserido Segundo a
versatildeo tradicional o nosso tempo caminha para um crescente e inexoraacutevel regresso que
faraacute tantas turbulecircncias e desordem que seraacute necessaacuterio uma nova intervenccedilatildeo divina
Sendo assim como conciliar esta crescente desordem dentro do nosso ciclo coacutesmico e a
busca efetivada no diaacutelogo pelo melhor poliacutetico que governaria dotado da arte poliacutetica
segundo a ldquoconstituiccedilatildeo corretardquo [πολιτείαν τὴν ὀρθήν]11(297c 2) Carece de sentido a
pesquisa acerca do paradigma do poliacutetico - que ocupa todo o dialogo apoacutes o mito - se
10 White (2007 51) talvez sem perceber a contradiccedilatildeo que advinha de suas proacuteprias teses harmoniza a Era de Zeus enquanto baseada em um movimento retroacutegrado e o envelhecimento normal jovem ndash velho Poreacutem sustento faz isso contrariando as premissas do mito de ldquoO Poliacuteticordquo 11 Traduccedilatildeo minha
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toda e qualquer mudanccedila em nossa Era for para pior jaacute que o mundo caminha em
sentido retroacutegrado12
Como observa Carone (2004 107) uma das mensagens fundamentais do diaacutelogo
ldquoPoliacuteticordquo eacute que ldquoone should strive for the ideal constitution or at least try to imitate it as
best one canrdquo13 Ora dentro da visatildeo de mundo platocircnica a busca por imitar a
ldquoconstituiccedilatildeo corretardquo eacute um corolaacuterio semelhante agravequele que diz que devemos imitar
tanto quanto possiacutevel a realidade das Formas A relaccedilatildeo entre Forma e imitaccedilatildeo natildeo
significa para Platatildeo que todo devir eacute um afastamento da Forma e portanto uma
degenerescecircncia14 Nesse sentido o progresso poliacutetico que se percebe em ldquoO Poliacuteticordquo eacute
a aproximaccedilatildeo de um paradigma do que seja o poliacutetico dentro de uma Era marcada pela
autonomia dos seres humanos que precisam governar a si proacuteprios embora natildeo estejam
completamente desprovidos de auxiacutelio divino especialmente no que diz respeito ao
12 Um debate semelhante encontra-se tambeacutem acerca do mito das cinco idades de ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo de Hesiacuteodo Se a descriccedilatildeo de nossa geraccedilatildeo de Ferro eacute concebida como uma crescente e irremediaacutevel degenerescecircncia qual o sentido das admoestaccedilotildees do poeta seja em relaccedilatildeo ao seu irmatildeo Perses seja em relaccedilatildeo aos reis ldquodevoradores de presentesrdquo (Hes Op 263-264) se toda mudanccedila for sempre para pior jaacute que o devir histoacuterico jaacute estaacute preacute-concebido Sobre este problema especiacutefico ver Neschke (1996) e Clay (2003 81-99) A diferenccedila na descriccedilatildeo dos acontecimentos que envolvem a humanidade no mito das cinco idades de Hesiacuteodo e no mito de ldquoO Poliacuteticordquo de Platatildeo eacute que o poeta da Beoacutecia descreve mais pormenorizadamente o que vai ou pode suceder no porvir Sendo assim uma certa leitura literal do verso 180 em diante de ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo faz do devir histoacuterico uma decadecircncia jaacute completamente preacute-determinada tornando fora de sintonia todos os apelos morais do poema Jaacute o mito de ldquoO Poliacuteticordquo por natildeo descrever o porvir de forma detalhada abre a possibilidade de mesmo uma leitura literal do texto reconhecer que natildeo obstante o tempo humano esteja incrustado no tempo ciacuteclico do mundo eacute possiacutevel que em um mesmo ciclo temporal possamos ter acontecimentos que superem qualquer processo de decadecircncia ainda que esta superaccedilatildeo natildeo seja senatildeo provisoacuteria haja vista que em algum momento segundo essa leitura o retorno ciacuteclico do universo dar-se-aacute 13 Cf 297 a-c e 300e-301a 14 Em outros termos natildeo significa que toda mudanccedila eacute para pior ndash jaacute que se afastaria do paradigma que eacute a Forma como pensava Popper (1966 35-36) Em linhas semelhantes agravequelas de Popper segue Fialho (1989-1990 75) ldquoo paradoxo de todo o devir que eacute ao mesmo tempo determinado pela Ideia mas desvirtuaccedilatildeo da Ideiardquo Aqui eacute preciso especificar a relaccedilatildeo entre a Ideia e o devir Dodds (1973 14) explana que ldquoFor Plato all progress consists in aproximation to a pre-existing modelrdquo Isso significa que para Platatildeo o desenvolvimento histoacuterico eacute teleoloacutegico ou seja o devir move-se segundo um fim preacute-traccedilado O fim preacute-estabelecido para Platatildeo eacute justamente a Ideia Entretanto dizer que todo progresso em Platatildeo eacute uma aproximaccedilatildeo de um modelo preacute-existente eacute diferente de afirmar que todo devir eacute desvirtuaccedilatildeo da Ideia Como afirma Taylor (1999 285) para que a uacuteltima tese seja vaacutelida eacute preciso pensar que a Ideia-Forma seja ldquoan independently specifiable good state from the standpoint of which change can be seen as deteriorationrdquo Contudo a Forma tem primazia sobre o mundo natildeo porque eacute um ponto de partida para toda mudanccedila mas sim porque ldquobeing eternal they exist before any particular instance comes to berdquo (idem 285 n 11) Sendo assim Platatildeo deixa em aberto a possibilidade de algo progredir na medida em que se aproxima natildeo se afasta da Ideia Portanto o ponto inicial da mudanccedila natildeo eacute a ideia mas sim algo que era ainda mais afastado da Ideia Eacute sobre isso que insiste contra Popper Taylor (1999 285 n11) ldquoThings which become F [Form] obviously become more like the Form of F not less like it as Poppers account requiresrdquo Ademais todo o destaque de Platatildeo em torno da busca da filosofia eacute o reconhecimento de que o devir pode ser antes uma aproximaccedilatildeo da Ideia do que uma desvirtuaccedilatildeo desta
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controle do movimento coacutesmico O progresso15 entatildeo tem uma abrangecircncia limitada agrave
eacutepoca ou ao ciclo em que vivemos jaacute que a inserccedilatildeo da temporalidade humana dentro
do tempo ciacuteclico do universo natildeo permite um progresso ilimitado e realmente
definitivo16
Diante das dificuldades de interpretaccedilatildeo que a leitura tradicional do mito de ldquoO
Poliacuteticordquo oferece alguns estudiosos tecircm contestado tal interpretaccedilatildeo em nome de outras
grades de leituras Luc Brisson e Gabriela Roxana Carone estatildeo entre os pesquisadores
principais embora Christopher Rowe tambeacutem divirja da interpretaccedilatildeo tradicional em
alguns pontos importantes Assim Rowe (1997 313-4 n31) em sua traduccedilatildeo para o
inglecircs de ldquoO Poliacuteticordquo defende que o Estrangeiro fala de duas Eras que giram ambas
no sentido que estamos habituados ou seja do leste para o oeste17 sendo uma a Era de
Cronos sob o controle do deus e a outra a Era Zeus onde o mundo eacute deixado por si
15 Natildeo trabalho aqui com o termo progresso no sentido exato do que foi desenvolvido pelo pensamento Iluminista ateacute porque natildeo haacute um uacutenico sentido para progresso oriundo do Iluminismo Nesse sentido discordo da metodologia usada por Den Boer (1977) que consiste em escolher uma versatildeo do ideaacuterio de progresso do Iluminismo e sob um truiacutesmo buscar um ideaacuterio correspondente no pensamento grego Ora eacute oacutebvio que diante de uma metodologia tatildeo riacutegida os gregos natildeo possuiriam qualquer ideia de progresso Em suma prefiro estudar uma sociedade antiga de forma menos inflexiacutevel e com conceitos mais amplos que alcancem formas distintas da nossa de pensar a sociedade Nesse sentido eu prefiro definiccedilotildees de progresso utilizaacuteveis para o mundo antigo como a de Carr (1996 126) ldquoum pressuposto da histoacuteria de que o homem eacute capaz de tirar proveito (natildeo que ele necessariamente o faccedila) da experiecircncia de seus antecessores e que o progresso na histoacuteria diferentemente da evoluccedilatildeo na natureza baseia-se na transmissatildeo de bens adquiridosrdquo ou como a definiccedilatildeo de Novara (1982 14-5) ldquoNous preacutecisons donc que nous nous attachons aux textes latins ougrave sexprime lideacutee dune ameacutelioration progressive mdash ce qui ne signifie pas neacutecessairement ininterrompue mais poursuivie mdash due tout ou partie au travail humain mdash ce qui nexclut donc pas a priori une transcendance de lhistoire des hommes mdash au cours dun temps assez long pour constituer une histoire quil sagisse de lhistoire de la civilisation et de lhumaniteacute de lhistoire dun peuple ou de celle dune vierdquo 16 Assim os dons divinos oferecidos aos homens em 274c-d marcam um progresso face agrave situaccedilatildeo inicial da Era de Zeus Eacute esse o sentido a meu ver do que Dodds (1973 14) qualificou como ldquotemporary and limited progress between catastrophesrdquo em Platatildeo Digno de nota eacute que no movimento retroacutegrado propriamente dito natildeo haacute qualquer possibilidade de progresso No entanto o final do movimento de regressatildeo permite ao mundo entrar novamente em contato com o demiurgo e reaver o nous algo que poderia ser impossiacutevel se o tempo fosse linear e o mundo se distanciasse continuamente do demiurgo sem garantia de retorno Esse eacute um dos motivos pelo qual o tempo tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo eacute ciacuteclico Mesmo que interpretemos de forma literal ou natildeo a Era de Zeus como uma siacutentese do nous divino e da anankeacute corpoacuterea eacute forccediloso admitir que a Era de Zeus estaacute fadada a acabar mesmo que haja progresso dentro dela tendo em vista os dois ciclos baacutesicos do universo que se alternam (cf 269c-d 270b 7-8) segundo uma lei que deriva a mudanccedila do micro-cosmos a partir do macro-cosmos fazendo com que a experiecircncia proacutepria da historicidade humana se esvazie diante de um mundo que ldquoimitamos e seguimos ao longo de todos os temposrdquo (274d 6-7) 17 Nesse ponto Rowe estaacute de acordo com a minha interpretaccedilatildeo bem como com a de Brisson e de Carone que falaremos em seguida segundo a qual Cronos e Zeus partilham do mesmo sentido de movimento coacutesmico
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mesmo18 Estas duas Eras satildeo separadas por um periacuteodo relativamente breve de rotaccedilatildeo
na direccedilatildeo reversa (sol nascendo no oeste)19 Por fim as pessoas nascidas da terra
pertencentes a este periacuteodo de direccedilatildeo reversa satildeo distintas das pessoas nascidas da terra
na Era de Cronos20
Luc Brisson por sua vez afasta-se ainda mais da interpretaccedilatildeo tradicional Para o
pesquisador francecircs haacute dois ciclos coacutesmicos (movimento coacutesmico guiado ou natildeo pelo
deus) que abarcam trecircs eacutepocas coacutesmicas21 Reino de Cronos mundo deixado por si
mesmo (272d6 ndash 273e4) e Reino de Zeus22 O Reino de Cronos possui o mesmo sentido
de movimento dos astros que o Reino de Zeus sentido esse de acordo com o que
estamos habituados - leste para oeste - (Brisson 1998 491)23 Aleacutem disso no Reino de
Cronos o envelhecimento dos seres vivos daacute-se de jovens para velhos (idem 2000
182)24 A semelhanccedila que haacute entre o Reino de Cronos e o primeiro movimento reverso eacute
apenas ao niacutevel do modo de geraccedilatildeo (em ambos periacuteodos os homens nascem da terra e
natildeo de ciclo coacutesmico) O Reino de Cronos estaacute na direccedilatildeo oposta ao movimento reverso
anterior (ibidem 2000 176) O Reino de Zeus estaacute no mesmo ciclo que Cronos mas em
eacutepoca distinta Na nossa eacutepoca a divindade ocupa-se da marcha do universo mas as
divindades secundaacuterias saiacuteram de seus postos25 O Reino de Zeus eacute visto por Brisson
18 Nesse toacutepico Rowe segue a visatildeo tradicional ao afirmar que os homens estatildeo desprovidos dos deuses na Era de Zeus Fica contudo sem explicaccedilatildeo a causa que faz com que o mundo deixado por si mesmo (Zeus) gire no mesmo sentido do mundo guiado pelo deus (Cronos) Essa eacute a meu ver a principal falha da interpretaccedilatildeo de Rowe jaacute que o mito eacute expliacutecito em afirmar que o movimento inerente ao mundo deixado por si mesmo eacute retroacutegrado (cf 269d 2-3) 19 Rowe portanto segue a visatildeo de dois ciclos mas traz uma novidade em relaccedilatildeo agrave leitura tradicional ao reconhecer a existecircncia de um periacuteodo reverso distinto de Cronos e de Zeus No entanto a afirmaccedilatildeo de Rowe de que se trata de um periacuteodo relativamente breve natildeo me parece ter fundamento no texto original A passagem mais expliacutecita acerca desse toacutepico 270a 2-8 dificilmente pode ser lida conforme a tese de Rowe Assim em 270a 6-8 o Estrangeiro diz que o mundo deixado por si mesmo ldquocaminha em sentido inverso durante milhares de periacuteodos pois enorme e equilibrado como eacute gira apoiado num eixo muito pequeno [ὥστε ἀνάπαλιν πορεύεσθαι πολλὰς περιόδων microυριάδας διὰ δὴ τὸ microέγιστον ὂν καὶ ἰσορροπώτατον ἐπὶ microικροτάτου βαῖνον ποδὸς ἰέναι]rdquo 20 Contra portanto a leitura tradicional que como vimos tende a associar as pessoas nascidas da terra da eacutepoca reversa com aquelas pessoas nascidas da terra da eacutepoca de Cronos 21 Assim Brisson (2000 170) define ciclo ldquojacute entends par laquocycleraquo une peacuteriode dacuteun nombre deacutetermineacute dacuteaneacutees agrave la fin de laquelle certains pheacutenomegravenes astronomiques qui se produisent dans le mecircme ordre se reacutepegravetentrdquo e eacutepoca coacutesmica ldquoune laquoeacutepoqueraquo est une peacuteriode historique deacutetermineacutee par de eacuteveacutenements importants caracteacuteriseacutes par un eacutetat de choses particulier (idem 173) 22 Portanto o periacuteodo reverso que Rowe acusava como algo distinto de Cronos e Zeus eacute tido por Brisson como uma eacutepoca agrave parte 23 Nesse quesito o pesquisador francecircs segue Rowe contra a leitura tradicional 24 Opiniatildeo portanto oposta agravequela da interpretaccedilatildeo tradicional 25 Brisson (2000 173 184) = BrissonPradeau (2003 44) em Platon (2003) No entanto a traduccedilatildeo de 271d 3-6 e a nota referente a este passo feita por BrissonPradeau (2003) diz que os deuses secundaacuterios
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como uma siacutentese dos periacuteodos anteriormente mencionados em que haacute autonomia dos
homens para governarem a si proacuteprios poreacutem haacute tambeacutem o controle coacutesmico da
divindade (idem 2000 174) 26 Esta siacutentese seria na verdade uma superaccedilatildeo ou mesmo
negaccedilatildeo das eacutepocas reversas e de Cronos em favor de uma siacutentese da necessidade e do
acaso - Reino de Zeus O caraacuteter definitivo ou natildeo desta siacutentese parece-me pouco claro
para o autor jaacute que em um texto ele reconhece que pode vir um novo ciclo reverso
depois de Zeus (ibidem 2000 186) enquanto em outro texto ele afirma que o Reino de
Zeus ldquoinstaure alors et semble mettre un terme agrave lacutehistoire des bouleversements
cosmiques est celui que nous connaissons encore aujourdacutehui le monde est
deacutefinitivement soustrait par la diviniteacute au risque de la corruptionrdquo (ibidem 2003 44)27
Ainda para Brisson entre o Reino de Cronos e de Zeus haacute um periacuteodo reverso que
ele hesita em identificar como diferente do primeiro movimento reverso descrito antes
de Cronos De toda forma o autor sustenta que ambos os movimentos reversos tecircm
sentido oposto ao Reino de Cronos (ibidem 2000 174)
Jaacute Carone (2004) segue substancialmente a interpretaccedilatildeo de Luc Brisson Assim
Zeus e Cronos estatildeo no mesmo sentido coacutesmico que eacute oposto agraves duas eacutepocas reversas
descritas Em Cronos a geraccedilatildeo cresce de jovem para velho em Zeus haacute o cuidado da
divindade sob o universo embora os deuses tutelares tenham deixado de governar as
regiotildees do mundo A Era de Zeus seria uma siacutentese das eacutepocas anteriores em que haacute
participaccedilatildeo ativa tanto do deus como dos homens As diferenccedilas entre os dois
estudiosos extraiacutedas a partir da bibliografia consultada satildeo basicamente as seguintes
Carone (2004 100 n41) percebe cinco ldquocosmic cyclesrdquo ao inveacutes de trecircs eacutepocas dentro
de dois ciclos como pensa Brisson sendo estes ciclos coacutesmicos a criaccedilatildeo do universo
pelo deus a ordem reversa a idade de Cronos a segunda ordem reversa a idade de
Zeus28 Carone (2004 97-8) interpreta 271b4 ndash c2 como se fosse jaacute o relato da Era de
tambeacutem satildeo atuantes na eacutepoca de Zeus A presenccedila da divindade sob Zeus mesmo que ao niacutevel da conduccedilatildeo do universo eacute logo uma interpretaccedilatildeo oposta agrave leitura tradicional 26 Brisson (2003) qualifica o Reino de Zeus tambeacutem como um ldquoeacutetat intermeacutediairerdquo (p43) 27 Segundo esse raciociacutenio a siacutentese operada pela Era de Zeus instauraria um tempo linear que interromperia a sucessatildeo ciacuteclica do tempo O mito natildeo parece comprovar esta ideia Ainda assim penso que eacute possiacutevel compreender a Era de Zeus como uma espeacutecie de siacutentese entre nous e anankecirc tal como no Timeu ndash cf 47e-48a - todavia o caraacuteter ciacuteclico do tempo eacute marcadamente destacado tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo 28 Dessa forma Carone (2004) trabalha como se houvesse cinco ciclos coacutesmicos Contudo 269c-d eacute taxativo ao dizer que soacute haacute dois ciclos coacutesmicos ou duas formas de disposiccedilatildeo dos astros Dentro destes ciclos eacute que pode haver mais de uma eacutepoca coacutesmica Assim julgo indispensaacutevel manter a definiccedilatildeo e a distinccedilatildeo de ciclo e eacutepoca coacutesmica feita por Brisson (2000) Natildeo penso que seja uacutetil considerar a criaccedilatildeo
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Cronos atraveacutes de uma transiccedilatildeo entre o primeira eacutepoca reversa e a Era de Cronos e
natildeo a continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo da primeira eacutepoca reversa29
-II-
Este breve debate bibliograacutefico eacute suficiente para contextualizar minha interpretaccedilatildeo
do mito Interpretaccedilatildeo esta que segue em linhas gerais Brisson e Carone embora eu
discorde em pontos importantes como na quantidade de ciclos e eacutepocas coacutesmicas
descritas jaacute que a meu ver haacute dois ciclos e quatro eacutepocas coacutesmicas O mito entatildeo situa-
se dentro do diaacutelogo logo apoacutes as sucessivas divisotildees conceituais que permeiam toda a
primeira parte do diaacutelogo Estas divisotildees que tecircm como escopo identificar o que seria o
poliacutetico chega a conclusatildeo provisoacuteria de que o poliacutetico seria um pastor de homens Ora
o mito vem mostrar justamente que esta definiccedilatildeo se enquadraria antes aos deuses da
Era de Cronos que tutelam os homens como pastores Portanto natildeo faz sentido uma
definiccedilatildeo do poliacutetico se esta natildeo corresponde agrave realidade da temporalidade humana
atual
Eacute preciso portanto seguir um outro caminho Este outro caminho ocupa a terceira
parte do diaacutelogo numa tentativa de definir um certo paradigma do poliacutetico que atuaria
em torno da constituiccedilatildeo correta Sendo assim para expor minha visatildeo do relato do
Estrangeiro eu dividi para fins didaacuteticos o relato do mito em sete partes as quais
seguem
do universo pelo deus se eacute que algo assim estaacute explicitamente descrito no texto como uma eacutepoca coacutesmica em si Todavia eacute importante a distinccedilatildeo forjada por Carone entre a primeira e a segunda eacutepoca reversa como eacutepocas distintas superando a hesitaccedilatildeo de Brisson 29 A leitura da autora eacute de fato tentadora porque resolveria duas dificuldades de interpretaccedilatildeo associadas a esta passagem De um lado faria sentido a atuaccedilatildeo do deus em 271c 2 por tratar-se da eacutepoca de Cronos que de outro modo permanece obscuro jaacute que se trataria da descriccedilatildeo de periacuteodo reverso logo alheio agrave atuaccedilatildeo divina De outro lado deixaria mais claro o significado de 271c 4-7 O jovem Soacutecrates estaria entatildeo perguntando se a Era de Cronos teria lugar na eacutepoca desta revoluccedilatildeo (271b4 ndash c2) ou na eacutepoca atual O Estrangeiro entatildeo responderia que Cronos teria acontecido na revoluccedilatildeo contida em 271b4 ndash c2 No entanto a hipoacutetese eacute pouco plausiacutevel porque a passagem 271b4 ndash c2 eacute claramente a resposta do Estrangeiro agrave pergunta feita pelo jovem Soacutecrates em 271a 2-3 acerca de como se dava o nascimento e a geraccedilatildeo entre os homens da eacutepoca que estava entatildeo sendo descrita pelo Estrangeiro ou seja a primeira eacutepoca reversa Assim essa passagem natildeo trata da Era de Cronos mas sim da primeira eacutepoca reversa Talvez a presenccedila do deus em 271c 2 queira remeter ao fato de que o deus afasta-se durante o movimento reverso para seu posto de observaccedilatildeo mas permanece com a possibilidade de intervir pontualmente se assim julgar oportuno embora a lei geral seja que a divindade respeite a autonomia do mundo e apenas intervenha quando a desordem corpoacuterea ameace fazer perecer o proacuteprio mundo
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1- Apresentaccedilatildeo e definiccedilatildeo do meacutetodo a ser seguido neste novo relato
O Estrangeiro diz que eacute preciso ldquoencetar desde o iniacutecio uma nova via [ὁδὸν]rdquo (268d
5) A este novo caminho seraacute ldquomisturado uma dose de brincadeira [παιδιὰν]rdquo (268d 8)
atraveacutes de um meacutetodo que natildeo mais dar-se-aacute por sucessivas divisotildees mas sim atraveacutes de
ldquoum mito extenso [microεγάλου microύθου]rdquo (268d 9)
2- Mitos que seratildeo entrelaccedilados dentro do ldquomito extensordquo
Apoacutes ter estabelecido o tipo e o meacutetodo do relato o Estrangeiro conta ao jovem
Soacutecrates trecircs mitos que traratildeo liccedilotildees fundamentais para a continuaccedilatildeo do relato do
Estrangeiro Em 268e-269a eacute apresentado o mito de Atreu e Tiestes de onde retiramos a
primeira informaccedilatildeo cosmoloacutegica do mito a divindade mudou a ordem dos astros para
servir de testemunha a Atreu Assim o ldquoSol nasce hoje no lugar onde antes se deitavardquo
(269a 3) Ainda em 269a o Estrangeiro introduz o segundo mito aquele ldquodo governo
exercido por Cronos [τήν γε βασιλείαν ἣν ἦρξε Κρόνος]rdquo (269a 7) Logo em seguida o
Estrangeiro introduz o terceiro mito que iraacute compor a sua grande narrativa Trata-se ldquodo
nascimento dos homens de antanho gerados da terra e natildeo uns dos outros
[τὸ τοὺς ἔmicroπροσθεν φύεσθαι γηγενεῖς καὶ microὴ ἐξ ἀλλήλων γεννᾶσθαι]rdquo (269b 2-3)
Como interpreta Brisson (2000 175-77) os trecircs elementos miacuteticos apresentados pelo
Estrangeiro introduzem tambeacutem os trecircs aspectos que seratildeo entrelaccedilados na grande
narrativa a partir da histoacuteria de Atreu e Tiestes a dimensatildeo coacutesmica atraveacutes do mito do
governo de Cronos a dimensatildeo poliacutetica a partir do mito dos humanos nascidos da terra
a dimensatildeo antropoloacutegica Assim apoacutes anunciar os trecircs mitos o Estrangeiro afirma que
ldquotodos esses acontecimentos aleacutem de milhares de outros ainda mais extraordinaacuterios
resultam todos do mesmo estado de coisasrdquo
[Ταῦτα τοίνυν ἔστι microὲν σύmicroπαντα ἐκ ταὐτοῦ πάθους καὶ πρὸς τούτοις ἕτερα microυρία καὶ
τούτων ἔτι θαυmicroαστότερα] (269b 5-6) 30
30 Traduccedilatildeo minha Carmen Soares traduz σύmicroπαντα por ldquotodas essas situaccedilotildeesrdquo e traduz πάθους por ldquoconjunturardquo Logo agrave frente em 269c 1 verte πάθος por ldquocontextosrdquo Situaccedilotildees conjunturas e contextos talvez decircem a ideia de algo que eacute de alguma forma apenas devido agraves circunstacircncias de um dado momento No entanto aquilo que o Estrangeiro estaacute comeccedilando a estabelecer eacute uma espeacutecie de estado de coisas que define a proacutepria forma coacutesmica do universo atraveacutes de movimentos que ora vatildeo no sentido que conhecemos ora no sentido inverso como discutiremos acerca de 269c-269d Nesse sentido prefiro a
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O Estrangeiro continua e daacute-nos uma informaccedilatildeo que contribuiraacute para entendermos a
inserccedilatildeo do mito dentro do conjunto do diaacutelogo o ldquoestado de coisas [πάθος]rdquo (269c 1)31
que eacute a ldquocausa [αἴτιον]rdquo (269c 1)32 desses acontecimentos ldquointeressa agrave explicaccedilatildeo do que
eacute o rei [τὴν τοῦ βασιλέως ἀπόδειξιν πρέψει]rdquo (269c 2)
3- Regra acerca da disposiccedilatildeo dos astros do movimento do universo e da
participaccedilatildeo divina neste movimento
Logo em seguida o Estrangeiro mostra ao jovem Soacutecrates o estado de coisas do
Universo
Presta atenccedilatildeo O universo umas vezes a divindade guia-o pessoalmente no seu trajecto e acompanha-o no seu movimento circular mas outras afasta-se quando os circuitos atingem o intervalo de tempo apropriado Mas nessa ocasiatildeo por acccedilatildeo do movimento autoacutenomo o cosmos volta novamente agrave posiccedilatildeo contraacuteria uma vez que eacute um ser vivo dotado de inteligecircncia pelo seu arquitecto primordial Todavia este movimento de retrocesso torna-se necessariamente inato pela seguinte razatildeo [Ἀκούοις ἄν τὸ γὰρ πᾶν τόδε τοτὲ microὲν αὐτὸς ὁ θεὸς συmicroποδηγεῖ πορευόmicroενον καὶ συγκυκλεῖ τοτὲ δὲ ἀνῆκεν ὅταν αἱ περίοδοι τοῦ προσήκοντος αὐτῷ microέτρον εἰλήφωσιν ἤδη χρόνου τὸ δὲ πάλιν αὐτόmicroατον εἰς τἀναντία περιάγεται ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν εἰληχὸς ἐκ τοῦ συναρmicroόσαντος αὐτὸ κατ ἀρχάς τοῦτο δὲ αὐτῷ τὸ ἀνάπαλιν ἰέναι διὰ τόδ ἐξ ἀνάγκης ἔmicroφυτον γέγονε] (269c 4 ndash 269d3)
Assim eacute-nos dito que ora eacute o proacuteprio deus que ldquoguia [συmicroποδηγεῖ]rdquo a ldquomarcha
[πορευόμενον]rdquo do universo e preside seu ldquomovimento circular [συγκυκλεῖ]rdquo ora o
deus deixa o universo ir por ele mesmo Quando o universo eacute deixado por si mesmo seu
movimento ldquoautocircnomo [αὐτόmicroατον]rdquo e ldquoinerente [ἔmicroφυτον]rdquo impele-o a girar ldquopara traacutes
[ἀνάπαλιν]rdquo e em ldquosentido inverso[τἀναντία]rdquo33
Esta regra geral do movimento do universo onde o movimento normal do universo
deixado por si mesmo eacute ir no sentido retroacutegrado possui segundo o Estrangeiro uma
razatildeo Razatildeo essa que eacute contada entre 269d 4 e 270a 9 A tese central aqui eacute a mesma
traduccedilatildeo de Luc Brisson em Platon (2003) que traduz σύmicroπαντα por ldquotous ces eacuteveacutenementsrdquo πάθους como tambeacutem πάθος de 269c 1 por ldquoeacutetatrdquo (ldquoraquoEacutetatraquo rend ici paacutethos et deacutesigne la disposition astronomique des mouvements du monderdquo - Brisson (2003 226 n95) Segue nesse mesmo sentido a traduccedilatildeo de Rowe em Plato (1997) σύmicroπαντα eacute traduzido por ldquoall these thingsrdquo e πάθους como tambeacutem πάθος por ldquostate of affairsrdquo 31 Traduccedilatildeo minha 32 Traduccedilatildeo minha 33 Isto eacute em sentido retroacutegrado A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
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44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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no diaacutelogo eacute de evidenciar que a definiccedilatildeo do poliacutetico escopo da primeira parte do
diaacutelogo natildeo pode ser consumada sem levar em consideraccedilatildeo a especificidade do tempo
dos homens Este tempo coacutesmico eacute caracterizado atraveacutes do contraste em relaccedilatildeo a dois
outros tempos coacutesmicos aquele baseado em um movimento retroacutegrado e sem vigilacircncia
dos deuses no qual os seres vivos inexoravelmente regridem e natildeo haacute possibilidade de
estabelecer uma ordem poliacutetica e outro tempo oriundo do governo de Cronos em que a
vigilacircncia divina cuida de cada detalhe da sobrevivecircncia dos homens deixando para
estes pouco espaccedilo para autonomia e portanto sem meios de estabelecer uma ordem
poliacutetica propriamente humana Como um ponto intermediaacuterio o tempo dos homens
contemporacircneos a Platatildeo eacute a Era de Zeus quando haacute por um lado uma certa vigilacircncia
divina especialmente quanto ao sentido da rotaccedilatildeo do cosmos por outro lado haacute
autonomia para que os seres humanos governem a si proacuteprios e assim permite o
estabelecimento da vida poliacutetica
Este artigo entatildeo visa apresentar em detalhes a interpretaccedilatildeo introduzida no
paraacutegrafo acima Isso justifica-se visto que minha interpretaccedilatildeo eacute conflitante com agraves
leituras tradicionais que foram feitas sobre esta passagem de ldquoO Poliacuteticordquo de Platatildeo
Para tanto o texto estaacute dividido em duas partes Na primeira parte aponto algumas
contradiccedilotildees entre a interpretaccedilatildeo tradicional e as proacuteprias premissas do mito
estabelecidas pelo personagem que conta o mito o Estrangeiro atraveacutes da leitura de
alguns comentadores que seguem a base da interpretaccedilatildeo tradicional Ainda nesta
primeira parte do artigo apresentamos grades de leituras mais recentes que se afastam
da leitura tradicional como Cristopher Rowe e principalmente Luc Brisson e Gabriela
Carone Na segunda parte faccedilo uma espeacutecie de siacutentese do diaacutelogo3 onde defendo minha
proacutepria interpretaccedilatildeo do mito
-I-
Natildeo eacute faacutecil estabelecer o que seria a interpretaccedilatildeo tradicional deste mito uma vez
que os autores divergem consideravelmente e a mesma base de interpretaccedilatildeo daacute origem
a teses contraditoacuterias De todo modo eacute possiacutevel dizer que a interpretaccedilatildeo tradicional
2 O texto grego utilizado do diaacutelogo ldquoO Poliacuteticordquo foi a ediccedilatildeo estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) A traduccedilatildeo do diaacutelogo para o portuguecircs usada no artigo eacute de autoria de Carmen Isabel Leal Soares em Platatildeo (2008) salvo algumas exceccedilotildees que foram devidamente indicadas 3 Alerto ao leitor que natildeo se trata de uma siacutentese strictu sensu uma vez que certas partes merecem mais destaque do que outras Em geral as passagens mais polecircmicas e que servem para elucidar as divergecircncias com a interpretaccedilatildeo tradicional foram privilegiadas na siacutentese
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expotildee que haacute dois ciclos coacutesmicos que correspondem a duas eacutepocas antagocircnicas a Era
de Cronos guiada pelo deus e a Era de Zeus onde o deus estaacute ausente Como o deus
estaacute ausente a era de Zeus seria dominada pela parte corpoacuterea de sua proacutepria formaccedilatildeo
gerando uma desordem crescente e inexoraacutevel ateacute chegar ao ponto criacutetico em que seraacute
preciso uma nova intervenccedilatildeo divina4
Vejamos agora as implicaccedilotildees de tal tese de acordo com as premissas apresentadas
pelo Estrangeiro no decorrer da passagem do mito Reiterando que o argumento
tradicional concebe exatamente dois cicloseacutepocas coacutesmicas Cronos e Zeus
1) Como o governo de Cronos eacute guiado pelo deus este periacuteodo natildeo pode estar em
sentido retroacutegrado5 e portanto o envelhecimento dentre os homens natildeo pode ser de
velhos para jovens6
2) A Era de Zeus por oposiccedilatildeo eacute marcada pelo mundo girando por si proacuteprio o
que causa as referidas desordens Se as coisas satildeo assim a Era de Zeus
presumivelmente a Era dos leitores de Platatildeo eacute marcada por um movimento retroacutegrado
e o envelhecimento dentre os homens faz-se da velhice para a juventude ou seja os
homens nasceriam velhos
3) Sendo assim o movimento retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 271c 2
assemelha-se antes com a Era de Zeus por ser um movimento retroacutegrado baseado em
um universo deixado por si mesmo do que com a Era de Cronos que eacute o oposto disto
jaacute que eacute guiada pelo deus
Pois bem a fragilidade da(s) interpretaccedilatildeo (otildees) tradicional(is) estaacute(atildeo) justamente
em contradizer as proacuteprias implicaccedilotildees de sua tese baacutesica Vejamos isso em alguns
comentadores que de uma forma ou de outra buscam seguir a base da interpretaccedilatildeo
tradicionalVidal-Naquet (1978 137) faz a Era de Cronos ser guiada pelo deus e ao
mesmo tempo ser baseada em um movimento reverso ldquothe human beings of the time of
Cronos led their lives in reverserdquo aleacutem disso diz Vidal-Naquet ldquomen were born from
4 Para um exemplo desta base de interpretaccedilatildeo ver Miller (2004 38-51) Mais autores que trabalham sobre nesta perspectiva seratildeo discutidos nos proacuteximos paraacutegrafos 5 Cf 268c-d onde eacute dito que a disposiccedilatildeo retroacutegrada eacute inerente ao mundo deixado por ele mesmo e natildeo ao mundo guiado pelo deus Portanto o mundo guiado pelo deus precisa ter um movimento oposto ao movimento retroacutegrado 6 Jaacute que este tipo de envelhecimento eacute caracteriacutestico do mundo deixado por si mesmo em sentido retroacutegrado conforme estaacute expliacutecito na descriccedilatildeo da passagem 270b 10 ateacute 271c 2
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the earth and they were born oldrdquo7 Todavia a identidade entre movimento guiado pelo
deus ndash movimento retroacutegrado ndash e homens nascerem velhos natildeo faz o menor sentido no
que tange ao mito contado pelo Estrangeiro Os homens da Era de Cronos nascem da
terra mas natildeo eacute dito que nascem velhos8
A ideia de que Cronos estaria dentro do movimento retroacutegrado adveacutem quase sempre
da interpretaccedilatildeo da passagem 271c 8 - 271d 3 Segundo essa linha de pensamento o
Estrangeiro estaria respondendo para Soacutecrates que a Era de Cronos natildeo tem nada a ver
com a atual mas sim com a precedente (270b 10 - 271c 2) Diante disso estudiosos que
seguem esta interpretaccedilatildeo tendem a pensar que o movimento retroacutegrado descrito em
270b 10 - 271c estaacute na mesma Era coacutesmica que Cronos e que no fundo trata-se da Era
de Cronos jaacute que para estes comentadores natildeo existem mais do que dois cicloseacutepocas
coacutesmicas Cronos e Zeus9 Entretanto a posiccedilatildeo estabelecida entre Era de Cronos e Era
de Zeus natildeo precisa ser necessariamente em termos de sentido de movimento coacutesmico e
portanto essa passagem natildeo eacute suficiente para marcar Cronos como movimento
retroacutegrado
Jaacute Miller (2004) parece entrar em contradiccedilatildeo ao caracterizar a Era de Zeus
justamente por manter a tese tradicional de que estamos vivendo na crescente
decadecircncia Assim sendo o autor seguindo a interpretaccedilatildeo tradicional diz que a Era de
Zeus eacute deixada por si proacutepria portanto baseada em um movimento retroacutegrado no qual
prevalece o elemento corpoacutereo a desordem o esquecimento (Miller 2004 39) Ainda
em relaccedilatildeo a Zeus acrescenta ldquoThe cosmos as a whole according to the myth suffers
7 Em flagrante contradiccedilatildeo com o aviso do proacuteprio Estrangeiro contido em 269e ldquocolocar-se permanentemente em rotaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel a ningueacutem excepto ao guia responsaacutevel por todos os movimentos - e natildeo eacute legiacutetimo [οὐ θέmicroις] que este execute um movimento ora num sentido ora no seu contraacuterio [] temos necessidade de afirmar que o cosmos nem sempre eacute responsaacutevel pelo seu proacuteprio movimento nem sequer eacute posto a girar por um deus em movimentos de rotaccedilatildeo duplos e contraacuterios nem tatildeo-pouco cabe a dois deuses com modos de pensar opostos entre si pocirc-los a rodarrdquo Assim vemos que natildeo eacute possiacutevel um deus movimentar o mundo em dois sentidos opostos como tambeacutem natildeo eacute possiacutevel que existam dois deuses que movimentam o mundo em sentidos opostos O deus para Platatildeo eacute a fonte do nous e dele apenas emana o bem e o bom O deus natildeo pode movimentar algo no sentido retroacutegrado porque isso seria corromper o deus diante da materialidade do mundo Eacute justamente a dimensatildeo corpoacuterea que impele o mundo para traacutes 8 Esse argumento de que os homens sob Cronos nascem velhos jaacute tinha sido expressado por Vidal-Naquet (1960 78 n5) Roochink (2005 8) defende a mesma ideia Para sustentar tal argumento Vidal-Naquet baseia-se em 273e 10 No entanto acredito que τὰ δ ἐκ γῆς νεογενῆ σώmicroατα πολιὰ refere-se agrave eacutepoca retroacutegrada anterior agrave Era de Zeus e natildeo agrave eacutepoca de Cronos A forma como interpreto eacute mais coerente visto que nascer velho eacute proacuteprio do movimento deixado por si mesmo e natildeo da Era de Cronos onde haacute a vigilacircncia do deus 9 Assim White (2007 43) e Morgan (2004 254) parecem sugerir que a Era de Cronos faz parte da primeira eacutepoca reversa descrita (270b 10 - 271c 2)
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increasing disorderrdquo (idem 2004 50) Mesmo diante desta caracterizaccedilatildeo que o autor faz
da Era de Zeus ele acredita que
The dominance of lethe forgetfulness (273c) in the later stage of the age of Zeus refers to the secularization and humanization of culture and with this the breakdown of the prepolitical authoritarian order The new and increasing disharmony of the later stage therefore calls for a new kind of order and the forgetfulness calls for a new sort of remembrance (ibidem 49)
Uma crescente desarmonia que gera ordem Como pensar em crescente desarmonia
se os dons oferecidos aos homens pelos deuses marcam uma provaacutevel melhoria no
micro-cosmos humano dentro da Idade de Zeus Como dar conta da presenccedila ativa dos
deuses se na Era de Zeus os deuses estatildeo supostamente ausentes Um outro aspecto que
passa despercebido pelos comentadores eacute a contradiccedilatildeo entre o movimento
supostamente retroacutegrado da eacutepoca de Zeus e o tipo de envelhecimento dado que no
tempo atual (eacutepoca de Platatildeo) o envelhecimento daacute-se no sentido que estamos
habituados ou seja jovem ndash velho A rigor era para o envelhecimento em Zeus ser
como descrito nos movimentos reversos ou seja era para nascermos velhos Isso natildeo
faz qualquer sentido e natildeo li nenhum comentador que diga claramente que as pessoas
nasciam velhas na eacutepoca atual10
Para aleacutem destes problemas de interpretaccedilatildeo imanente do mito de ldquoO Poliacuteticordquo essa
grade interpretativa que temos discutido ateacute agora enlaccedila o mito em seacuterias dificuldades
interpretativas em relaccedilatildeo ao resto do diaacutelogo no qual o mito estaacute inserido Segundo a
versatildeo tradicional o nosso tempo caminha para um crescente e inexoraacutevel regresso que
faraacute tantas turbulecircncias e desordem que seraacute necessaacuterio uma nova intervenccedilatildeo divina
Sendo assim como conciliar esta crescente desordem dentro do nosso ciclo coacutesmico e a
busca efetivada no diaacutelogo pelo melhor poliacutetico que governaria dotado da arte poliacutetica
segundo a ldquoconstituiccedilatildeo corretardquo [πολιτείαν τὴν ὀρθήν]11(297c 2) Carece de sentido a
pesquisa acerca do paradigma do poliacutetico - que ocupa todo o dialogo apoacutes o mito - se
10 White (2007 51) talvez sem perceber a contradiccedilatildeo que advinha de suas proacuteprias teses harmoniza a Era de Zeus enquanto baseada em um movimento retroacutegrado e o envelhecimento normal jovem ndash velho Poreacutem sustento faz isso contrariando as premissas do mito de ldquoO Poliacuteticordquo 11 Traduccedilatildeo minha
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toda e qualquer mudanccedila em nossa Era for para pior jaacute que o mundo caminha em
sentido retroacutegrado12
Como observa Carone (2004 107) uma das mensagens fundamentais do diaacutelogo
ldquoPoliacuteticordquo eacute que ldquoone should strive for the ideal constitution or at least try to imitate it as
best one canrdquo13 Ora dentro da visatildeo de mundo platocircnica a busca por imitar a
ldquoconstituiccedilatildeo corretardquo eacute um corolaacuterio semelhante agravequele que diz que devemos imitar
tanto quanto possiacutevel a realidade das Formas A relaccedilatildeo entre Forma e imitaccedilatildeo natildeo
significa para Platatildeo que todo devir eacute um afastamento da Forma e portanto uma
degenerescecircncia14 Nesse sentido o progresso poliacutetico que se percebe em ldquoO Poliacuteticordquo eacute
a aproximaccedilatildeo de um paradigma do que seja o poliacutetico dentro de uma Era marcada pela
autonomia dos seres humanos que precisam governar a si proacuteprios embora natildeo estejam
completamente desprovidos de auxiacutelio divino especialmente no que diz respeito ao
12 Um debate semelhante encontra-se tambeacutem acerca do mito das cinco idades de ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo de Hesiacuteodo Se a descriccedilatildeo de nossa geraccedilatildeo de Ferro eacute concebida como uma crescente e irremediaacutevel degenerescecircncia qual o sentido das admoestaccedilotildees do poeta seja em relaccedilatildeo ao seu irmatildeo Perses seja em relaccedilatildeo aos reis ldquodevoradores de presentesrdquo (Hes Op 263-264) se toda mudanccedila for sempre para pior jaacute que o devir histoacuterico jaacute estaacute preacute-concebido Sobre este problema especiacutefico ver Neschke (1996) e Clay (2003 81-99) A diferenccedila na descriccedilatildeo dos acontecimentos que envolvem a humanidade no mito das cinco idades de Hesiacuteodo e no mito de ldquoO Poliacuteticordquo de Platatildeo eacute que o poeta da Beoacutecia descreve mais pormenorizadamente o que vai ou pode suceder no porvir Sendo assim uma certa leitura literal do verso 180 em diante de ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo faz do devir histoacuterico uma decadecircncia jaacute completamente preacute-determinada tornando fora de sintonia todos os apelos morais do poema Jaacute o mito de ldquoO Poliacuteticordquo por natildeo descrever o porvir de forma detalhada abre a possibilidade de mesmo uma leitura literal do texto reconhecer que natildeo obstante o tempo humano esteja incrustado no tempo ciacuteclico do mundo eacute possiacutevel que em um mesmo ciclo temporal possamos ter acontecimentos que superem qualquer processo de decadecircncia ainda que esta superaccedilatildeo natildeo seja senatildeo provisoacuteria haja vista que em algum momento segundo essa leitura o retorno ciacuteclico do universo dar-se-aacute 13 Cf 297 a-c e 300e-301a 14 Em outros termos natildeo significa que toda mudanccedila eacute para pior ndash jaacute que se afastaria do paradigma que eacute a Forma como pensava Popper (1966 35-36) Em linhas semelhantes agravequelas de Popper segue Fialho (1989-1990 75) ldquoo paradoxo de todo o devir que eacute ao mesmo tempo determinado pela Ideia mas desvirtuaccedilatildeo da Ideiardquo Aqui eacute preciso especificar a relaccedilatildeo entre a Ideia e o devir Dodds (1973 14) explana que ldquoFor Plato all progress consists in aproximation to a pre-existing modelrdquo Isso significa que para Platatildeo o desenvolvimento histoacuterico eacute teleoloacutegico ou seja o devir move-se segundo um fim preacute-traccedilado O fim preacute-estabelecido para Platatildeo eacute justamente a Ideia Entretanto dizer que todo progresso em Platatildeo eacute uma aproximaccedilatildeo de um modelo preacute-existente eacute diferente de afirmar que todo devir eacute desvirtuaccedilatildeo da Ideia Como afirma Taylor (1999 285) para que a uacuteltima tese seja vaacutelida eacute preciso pensar que a Ideia-Forma seja ldquoan independently specifiable good state from the standpoint of which change can be seen as deteriorationrdquo Contudo a Forma tem primazia sobre o mundo natildeo porque eacute um ponto de partida para toda mudanccedila mas sim porque ldquobeing eternal they exist before any particular instance comes to berdquo (idem 285 n 11) Sendo assim Platatildeo deixa em aberto a possibilidade de algo progredir na medida em que se aproxima natildeo se afasta da Ideia Portanto o ponto inicial da mudanccedila natildeo eacute a ideia mas sim algo que era ainda mais afastado da Ideia Eacute sobre isso que insiste contra Popper Taylor (1999 285 n11) ldquoThings which become F [Form] obviously become more like the Form of F not less like it as Poppers account requiresrdquo Ademais todo o destaque de Platatildeo em torno da busca da filosofia eacute o reconhecimento de que o devir pode ser antes uma aproximaccedilatildeo da Ideia do que uma desvirtuaccedilatildeo desta
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controle do movimento coacutesmico O progresso15 entatildeo tem uma abrangecircncia limitada agrave
eacutepoca ou ao ciclo em que vivemos jaacute que a inserccedilatildeo da temporalidade humana dentro
do tempo ciacuteclico do universo natildeo permite um progresso ilimitado e realmente
definitivo16
Diante das dificuldades de interpretaccedilatildeo que a leitura tradicional do mito de ldquoO
Poliacuteticordquo oferece alguns estudiosos tecircm contestado tal interpretaccedilatildeo em nome de outras
grades de leituras Luc Brisson e Gabriela Roxana Carone estatildeo entre os pesquisadores
principais embora Christopher Rowe tambeacutem divirja da interpretaccedilatildeo tradicional em
alguns pontos importantes Assim Rowe (1997 313-4 n31) em sua traduccedilatildeo para o
inglecircs de ldquoO Poliacuteticordquo defende que o Estrangeiro fala de duas Eras que giram ambas
no sentido que estamos habituados ou seja do leste para o oeste17 sendo uma a Era de
Cronos sob o controle do deus e a outra a Era Zeus onde o mundo eacute deixado por si
15 Natildeo trabalho aqui com o termo progresso no sentido exato do que foi desenvolvido pelo pensamento Iluminista ateacute porque natildeo haacute um uacutenico sentido para progresso oriundo do Iluminismo Nesse sentido discordo da metodologia usada por Den Boer (1977) que consiste em escolher uma versatildeo do ideaacuterio de progresso do Iluminismo e sob um truiacutesmo buscar um ideaacuterio correspondente no pensamento grego Ora eacute oacutebvio que diante de uma metodologia tatildeo riacutegida os gregos natildeo possuiriam qualquer ideia de progresso Em suma prefiro estudar uma sociedade antiga de forma menos inflexiacutevel e com conceitos mais amplos que alcancem formas distintas da nossa de pensar a sociedade Nesse sentido eu prefiro definiccedilotildees de progresso utilizaacuteveis para o mundo antigo como a de Carr (1996 126) ldquoum pressuposto da histoacuteria de que o homem eacute capaz de tirar proveito (natildeo que ele necessariamente o faccedila) da experiecircncia de seus antecessores e que o progresso na histoacuteria diferentemente da evoluccedilatildeo na natureza baseia-se na transmissatildeo de bens adquiridosrdquo ou como a definiccedilatildeo de Novara (1982 14-5) ldquoNous preacutecisons donc que nous nous attachons aux textes latins ougrave sexprime lideacutee dune ameacutelioration progressive mdash ce qui ne signifie pas neacutecessairement ininterrompue mais poursuivie mdash due tout ou partie au travail humain mdash ce qui nexclut donc pas a priori une transcendance de lhistoire des hommes mdash au cours dun temps assez long pour constituer une histoire quil sagisse de lhistoire de la civilisation et de lhumaniteacute de lhistoire dun peuple ou de celle dune vierdquo 16 Assim os dons divinos oferecidos aos homens em 274c-d marcam um progresso face agrave situaccedilatildeo inicial da Era de Zeus Eacute esse o sentido a meu ver do que Dodds (1973 14) qualificou como ldquotemporary and limited progress between catastrophesrdquo em Platatildeo Digno de nota eacute que no movimento retroacutegrado propriamente dito natildeo haacute qualquer possibilidade de progresso No entanto o final do movimento de regressatildeo permite ao mundo entrar novamente em contato com o demiurgo e reaver o nous algo que poderia ser impossiacutevel se o tempo fosse linear e o mundo se distanciasse continuamente do demiurgo sem garantia de retorno Esse eacute um dos motivos pelo qual o tempo tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo eacute ciacuteclico Mesmo que interpretemos de forma literal ou natildeo a Era de Zeus como uma siacutentese do nous divino e da anankeacute corpoacuterea eacute forccediloso admitir que a Era de Zeus estaacute fadada a acabar mesmo que haja progresso dentro dela tendo em vista os dois ciclos baacutesicos do universo que se alternam (cf 269c-d 270b 7-8) segundo uma lei que deriva a mudanccedila do micro-cosmos a partir do macro-cosmos fazendo com que a experiecircncia proacutepria da historicidade humana se esvazie diante de um mundo que ldquoimitamos e seguimos ao longo de todos os temposrdquo (274d 6-7) 17 Nesse ponto Rowe estaacute de acordo com a minha interpretaccedilatildeo bem como com a de Brisson e de Carone que falaremos em seguida segundo a qual Cronos e Zeus partilham do mesmo sentido de movimento coacutesmico
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mesmo18 Estas duas Eras satildeo separadas por um periacuteodo relativamente breve de rotaccedilatildeo
na direccedilatildeo reversa (sol nascendo no oeste)19 Por fim as pessoas nascidas da terra
pertencentes a este periacuteodo de direccedilatildeo reversa satildeo distintas das pessoas nascidas da terra
na Era de Cronos20
Luc Brisson por sua vez afasta-se ainda mais da interpretaccedilatildeo tradicional Para o
pesquisador francecircs haacute dois ciclos coacutesmicos (movimento coacutesmico guiado ou natildeo pelo
deus) que abarcam trecircs eacutepocas coacutesmicas21 Reino de Cronos mundo deixado por si
mesmo (272d6 ndash 273e4) e Reino de Zeus22 O Reino de Cronos possui o mesmo sentido
de movimento dos astros que o Reino de Zeus sentido esse de acordo com o que
estamos habituados - leste para oeste - (Brisson 1998 491)23 Aleacutem disso no Reino de
Cronos o envelhecimento dos seres vivos daacute-se de jovens para velhos (idem 2000
182)24 A semelhanccedila que haacute entre o Reino de Cronos e o primeiro movimento reverso eacute
apenas ao niacutevel do modo de geraccedilatildeo (em ambos periacuteodos os homens nascem da terra e
natildeo de ciclo coacutesmico) O Reino de Cronos estaacute na direccedilatildeo oposta ao movimento reverso
anterior (ibidem 2000 176) O Reino de Zeus estaacute no mesmo ciclo que Cronos mas em
eacutepoca distinta Na nossa eacutepoca a divindade ocupa-se da marcha do universo mas as
divindades secundaacuterias saiacuteram de seus postos25 O Reino de Zeus eacute visto por Brisson
18 Nesse toacutepico Rowe segue a visatildeo tradicional ao afirmar que os homens estatildeo desprovidos dos deuses na Era de Zeus Fica contudo sem explicaccedilatildeo a causa que faz com que o mundo deixado por si mesmo (Zeus) gire no mesmo sentido do mundo guiado pelo deus (Cronos) Essa eacute a meu ver a principal falha da interpretaccedilatildeo de Rowe jaacute que o mito eacute expliacutecito em afirmar que o movimento inerente ao mundo deixado por si mesmo eacute retroacutegrado (cf 269d 2-3) 19 Rowe portanto segue a visatildeo de dois ciclos mas traz uma novidade em relaccedilatildeo agrave leitura tradicional ao reconhecer a existecircncia de um periacuteodo reverso distinto de Cronos e de Zeus No entanto a afirmaccedilatildeo de Rowe de que se trata de um periacuteodo relativamente breve natildeo me parece ter fundamento no texto original A passagem mais expliacutecita acerca desse toacutepico 270a 2-8 dificilmente pode ser lida conforme a tese de Rowe Assim em 270a 6-8 o Estrangeiro diz que o mundo deixado por si mesmo ldquocaminha em sentido inverso durante milhares de periacuteodos pois enorme e equilibrado como eacute gira apoiado num eixo muito pequeno [ὥστε ἀνάπαλιν πορεύεσθαι πολλὰς περιόδων microυριάδας διὰ δὴ τὸ microέγιστον ὂν καὶ ἰσορροπώτατον ἐπὶ microικροτάτου βαῖνον ποδὸς ἰέναι]rdquo 20 Contra portanto a leitura tradicional que como vimos tende a associar as pessoas nascidas da terra da eacutepoca reversa com aquelas pessoas nascidas da terra da eacutepoca de Cronos 21 Assim Brisson (2000 170) define ciclo ldquojacute entends par laquocycleraquo une peacuteriode dacuteun nombre deacutetermineacute dacuteaneacutees agrave la fin de laquelle certains pheacutenomegravenes astronomiques qui se produisent dans le mecircme ordre se reacutepegravetentrdquo e eacutepoca coacutesmica ldquoune laquoeacutepoqueraquo est une peacuteriode historique deacutetermineacutee par de eacuteveacutenements importants caracteacuteriseacutes par un eacutetat de choses particulier (idem 173) 22 Portanto o periacuteodo reverso que Rowe acusava como algo distinto de Cronos e Zeus eacute tido por Brisson como uma eacutepoca agrave parte 23 Nesse quesito o pesquisador francecircs segue Rowe contra a leitura tradicional 24 Opiniatildeo portanto oposta agravequela da interpretaccedilatildeo tradicional 25 Brisson (2000 173 184) = BrissonPradeau (2003 44) em Platon (2003) No entanto a traduccedilatildeo de 271d 3-6 e a nota referente a este passo feita por BrissonPradeau (2003) diz que os deuses secundaacuterios
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como uma siacutentese dos periacuteodos anteriormente mencionados em que haacute autonomia dos
homens para governarem a si proacuteprios poreacutem haacute tambeacutem o controle coacutesmico da
divindade (idem 2000 174) 26 Esta siacutentese seria na verdade uma superaccedilatildeo ou mesmo
negaccedilatildeo das eacutepocas reversas e de Cronos em favor de uma siacutentese da necessidade e do
acaso - Reino de Zeus O caraacuteter definitivo ou natildeo desta siacutentese parece-me pouco claro
para o autor jaacute que em um texto ele reconhece que pode vir um novo ciclo reverso
depois de Zeus (ibidem 2000 186) enquanto em outro texto ele afirma que o Reino de
Zeus ldquoinstaure alors et semble mettre un terme agrave lacutehistoire des bouleversements
cosmiques est celui que nous connaissons encore aujourdacutehui le monde est
deacutefinitivement soustrait par la diviniteacute au risque de la corruptionrdquo (ibidem 2003 44)27
Ainda para Brisson entre o Reino de Cronos e de Zeus haacute um periacuteodo reverso que
ele hesita em identificar como diferente do primeiro movimento reverso descrito antes
de Cronos De toda forma o autor sustenta que ambos os movimentos reversos tecircm
sentido oposto ao Reino de Cronos (ibidem 2000 174)
Jaacute Carone (2004) segue substancialmente a interpretaccedilatildeo de Luc Brisson Assim
Zeus e Cronos estatildeo no mesmo sentido coacutesmico que eacute oposto agraves duas eacutepocas reversas
descritas Em Cronos a geraccedilatildeo cresce de jovem para velho em Zeus haacute o cuidado da
divindade sob o universo embora os deuses tutelares tenham deixado de governar as
regiotildees do mundo A Era de Zeus seria uma siacutentese das eacutepocas anteriores em que haacute
participaccedilatildeo ativa tanto do deus como dos homens As diferenccedilas entre os dois
estudiosos extraiacutedas a partir da bibliografia consultada satildeo basicamente as seguintes
Carone (2004 100 n41) percebe cinco ldquocosmic cyclesrdquo ao inveacutes de trecircs eacutepocas dentro
de dois ciclos como pensa Brisson sendo estes ciclos coacutesmicos a criaccedilatildeo do universo
pelo deus a ordem reversa a idade de Cronos a segunda ordem reversa a idade de
Zeus28 Carone (2004 97-8) interpreta 271b4 ndash c2 como se fosse jaacute o relato da Era de
tambeacutem satildeo atuantes na eacutepoca de Zeus A presenccedila da divindade sob Zeus mesmo que ao niacutevel da conduccedilatildeo do universo eacute logo uma interpretaccedilatildeo oposta agrave leitura tradicional 26 Brisson (2003) qualifica o Reino de Zeus tambeacutem como um ldquoeacutetat intermeacutediairerdquo (p43) 27 Segundo esse raciociacutenio a siacutentese operada pela Era de Zeus instauraria um tempo linear que interromperia a sucessatildeo ciacuteclica do tempo O mito natildeo parece comprovar esta ideia Ainda assim penso que eacute possiacutevel compreender a Era de Zeus como uma espeacutecie de siacutentese entre nous e anankecirc tal como no Timeu ndash cf 47e-48a - todavia o caraacuteter ciacuteclico do tempo eacute marcadamente destacado tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo 28 Dessa forma Carone (2004) trabalha como se houvesse cinco ciclos coacutesmicos Contudo 269c-d eacute taxativo ao dizer que soacute haacute dois ciclos coacutesmicos ou duas formas de disposiccedilatildeo dos astros Dentro destes ciclos eacute que pode haver mais de uma eacutepoca coacutesmica Assim julgo indispensaacutevel manter a definiccedilatildeo e a distinccedilatildeo de ciclo e eacutepoca coacutesmica feita por Brisson (2000) Natildeo penso que seja uacutetil considerar a criaccedilatildeo
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Cronos atraveacutes de uma transiccedilatildeo entre o primeira eacutepoca reversa e a Era de Cronos e
natildeo a continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo da primeira eacutepoca reversa29
-II-
Este breve debate bibliograacutefico eacute suficiente para contextualizar minha interpretaccedilatildeo
do mito Interpretaccedilatildeo esta que segue em linhas gerais Brisson e Carone embora eu
discorde em pontos importantes como na quantidade de ciclos e eacutepocas coacutesmicas
descritas jaacute que a meu ver haacute dois ciclos e quatro eacutepocas coacutesmicas O mito entatildeo situa-
se dentro do diaacutelogo logo apoacutes as sucessivas divisotildees conceituais que permeiam toda a
primeira parte do diaacutelogo Estas divisotildees que tecircm como escopo identificar o que seria o
poliacutetico chega a conclusatildeo provisoacuteria de que o poliacutetico seria um pastor de homens Ora
o mito vem mostrar justamente que esta definiccedilatildeo se enquadraria antes aos deuses da
Era de Cronos que tutelam os homens como pastores Portanto natildeo faz sentido uma
definiccedilatildeo do poliacutetico se esta natildeo corresponde agrave realidade da temporalidade humana
atual
Eacute preciso portanto seguir um outro caminho Este outro caminho ocupa a terceira
parte do diaacutelogo numa tentativa de definir um certo paradigma do poliacutetico que atuaria
em torno da constituiccedilatildeo correta Sendo assim para expor minha visatildeo do relato do
Estrangeiro eu dividi para fins didaacuteticos o relato do mito em sete partes as quais
seguem
do universo pelo deus se eacute que algo assim estaacute explicitamente descrito no texto como uma eacutepoca coacutesmica em si Todavia eacute importante a distinccedilatildeo forjada por Carone entre a primeira e a segunda eacutepoca reversa como eacutepocas distintas superando a hesitaccedilatildeo de Brisson 29 A leitura da autora eacute de fato tentadora porque resolveria duas dificuldades de interpretaccedilatildeo associadas a esta passagem De um lado faria sentido a atuaccedilatildeo do deus em 271c 2 por tratar-se da eacutepoca de Cronos que de outro modo permanece obscuro jaacute que se trataria da descriccedilatildeo de periacuteodo reverso logo alheio agrave atuaccedilatildeo divina De outro lado deixaria mais claro o significado de 271c 4-7 O jovem Soacutecrates estaria entatildeo perguntando se a Era de Cronos teria lugar na eacutepoca desta revoluccedilatildeo (271b4 ndash c2) ou na eacutepoca atual O Estrangeiro entatildeo responderia que Cronos teria acontecido na revoluccedilatildeo contida em 271b4 ndash c2 No entanto a hipoacutetese eacute pouco plausiacutevel porque a passagem 271b4 ndash c2 eacute claramente a resposta do Estrangeiro agrave pergunta feita pelo jovem Soacutecrates em 271a 2-3 acerca de como se dava o nascimento e a geraccedilatildeo entre os homens da eacutepoca que estava entatildeo sendo descrita pelo Estrangeiro ou seja a primeira eacutepoca reversa Assim essa passagem natildeo trata da Era de Cronos mas sim da primeira eacutepoca reversa Talvez a presenccedila do deus em 271c 2 queira remeter ao fato de que o deus afasta-se durante o movimento reverso para seu posto de observaccedilatildeo mas permanece com a possibilidade de intervir pontualmente se assim julgar oportuno embora a lei geral seja que a divindade respeite a autonomia do mundo e apenas intervenha quando a desordem corpoacuterea ameace fazer perecer o proacuteprio mundo
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1- Apresentaccedilatildeo e definiccedilatildeo do meacutetodo a ser seguido neste novo relato
O Estrangeiro diz que eacute preciso ldquoencetar desde o iniacutecio uma nova via [ὁδὸν]rdquo (268d
5) A este novo caminho seraacute ldquomisturado uma dose de brincadeira [παιδιὰν]rdquo (268d 8)
atraveacutes de um meacutetodo que natildeo mais dar-se-aacute por sucessivas divisotildees mas sim atraveacutes de
ldquoum mito extenso [microεγάλου microύθου]rdquo (268d 9)
2- Mitos que seratildeo entrelaccedilados dentro do ldquomito extensordquo
Apoacutes ter estabelecido o tipo e o meacutetodo do relato o Estrangeiro conta ao jovem
Soacutecrates trecircs mitos que traratildeo liccedilotildees fundamentais para a continuaccedilatildeo do relato do
Estrangeiro Em 268e-269a eacute apresentado o mito de Atreu e Tiestes de onde retiramos a
primeira informaccedilatildeo cosmoloacutegica do mito a divindade mudou a ordem dos astros para
servir de testemunha a Atreu Assim o ldquoSol nasce hoje no lugar onde antes se deitavardquo
(269a 3) Ainda em 269a o Estrangeiro introduz o segundo mito aquele ldquodo governo
exercido por Cronos [τήν γε βασιλείαν ἣν ἦρξε Κρόνος]rdquo (269a 7) Logo em seguida o
Estrangeiro introduz o terceiro mito que iraacute compor a sua grande narrativa Trata-se ldquodo
nascimento dos homens de antanho gerados da terra e natildeo uns dos outros
[τὸ τοὺς ἔmicroπροσθεν φύεσθαι γηγενεῖς καὶ microὴ ἐξ ἀλλήλων γεννᾶσθαι]rdquo (269b 2-3)
Como interpreta Brisson (2000 175-77) os trecircs elementos miacuteticos apresentados pelo
Estrangeiro introduzem tambeacutem os trecircs aspectos que seratildeo entrelaccedilados na grande
narrativa a partir da histoacuteria de Atreu e Tiestes a dimensatildeo coacutesmica atraveacutes do mito do
governo de Cronos a dimensatildeo poliacutetica a partir do mito dos humanos nascidos da terra
a dimensatildeo antropoloacutegica Assim apoacutes anunciar os trecircs mitos o Estrangeiro afirma que
ldquotodos esses acontecimentos aleacutem de milhares de outros ainda mais extraordinaacuterios
resultam todos do mesmo estado de coisasrdquo
[Ταῦτα τοίνυν ἔστι microὲν σύmicroπαντα ἐκ ταὐτοῦ πάθους καὶ πρὸς τούτοις ἕτερα microυρία καὶ
τούτων ἔτι θαυmicroαστότερα] (269b 5-6) 30
30 Traduccedilatildeo minha Carmen Soares traduz σύmicroπαντα por ldquotodas essas situaccedilotildeesrdquo e traduz πάθους por ldquoconjunturardquo Logo agrave frente em 269c 1 verte πάθος por ldquocontextosrdquo Situaccedilotildees conjunturas e contextos talvez decircem a ideia de algo que eacute de alguma forma apenas devido agraves circunstacircncias de um dado momento No entanto aquilo que o Estrangeiro estaacute comeccedilando a estabelecer eacute uma espeacutecie de estado de coisas que define a proacutepria forma coacutesmica do universo atraveacutes de movimentos que ora vatildeo no sentido que conhecemos ora no sentido inverso como discutiremos acerca de 269c-269d Nesse sentido prefiro a
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O Estrangeiro continua e daacute-nos uma informaccedilatildeo que contribuiraacute para entendermos a
inserccedilatildeo do mito dentro do conjunto do diaacutelogo o ldquoestado de coisas [πάθος]rdquo (269c 1)31
que eacute a ldquocausa [αἴτιον]rdquo (269c 1)32 desses acontecimentos ldquointeressa agrave explicaccedilatildeo do que
eacute o rei [τὴν τοῦ βασιλέως ἀπόδειξιν πρέψει]rdquo (269c 2)
3- Regra acerca da disposiccedilatildeo dos astros do movimento do universo e da
participaccedilatildeo divina neste movimento
Logo em seguida o Estrangeiro mostra ao jovem Soacutecrates o estado de coisas do
Universo
Presta atenccedilatildeo O universo umas vezes a divindade guia-o pessoalmente no seu trajecto e acompanha-o no seu movimento circular mas outras afasta-se quando os circuitos atingem o intervalo de tempo apropriado Mas nessa ocasiatildeo por acccedilatildeo do movimento autoacutenomo o cosmos volta novamente agrave posiccedilatildeo contraacuteria uma vez que eacute um ser vivo dotado de inteligecircncia pelo seu arquitecto primordial Todavia este movimento de retrocesso torna-se necessariamente inato pela seguinte razatildeo [Ἀκούοις ἄν τὸ γὰρ πᾶν τόδε τοτὲ microὲν αὐτὸς ὁ θεὸς συmicroποδηγεῖ πορευόmicroενον καὶ συγκυκλεῖ τοτὲ δὲ ἀνῆκεν ὅταν αἱ περίοδοι τοῦ προσήκοντος αὐτῷ microέτρον εἰλήφωσιν ἤδη χρόνου τὸ δὲ πάλιν αὐτόmicroατον εἰς τἀναντία περιάγεται ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν εἰληχὸς ἐκ τοῦ συναρmicroόσαντος αὐτὸ κατ ἀρχάς τοῦτο δὲ αὐτῷ τὸ ἀνάπαλιν ἰέναι διὰ τόδ ἐξ ἀνάγκης ἔmicroφυτον γέγονε] (269c 4 ndash 269d3)
Assim eacute-nos dito que ora eacute o proacuteprio deus que ldquoguia [συmicroποδηγεῖ]rdquo a ldquomarcha
[πορευόμενον]rdquo do universo e preside seu ldquomovimento circular [συγκυκλεῖ]rdquo ora o
deus deixa o universo ir por ele mesmo Quando o universo eacute deixado por si mesmo seu
movimento ldquoautocircnomo [αὐτόmicroατον]rdquo e ldquoinerente [ἔmicroφυτον]rdquo impele-o a girar ldquopara traacutes
[ἀνάπαλιν]rdquo e em ldquosentido inverso[τἀναντία]rdquo33
Esta regra geral do movimento do universo onde o movimento normal do universo
deixado por si mesmo eacute ir no sentido retroacutegrado possui segundo o Estrangeiro uma
razatildeo Razatildeo essa que eacute contada entre 269d 4 e 270a 9 A tese central aqui eacute a mesma
traduccedilatildeo de Luc Brisson em Platon (2003) que traduz σύmicroπαντα por ldquotous ces eacuteveacutenementsrdquo πάθους como tambeacutem πάθος de 269c 1 por ldquoeacutetatrdquo (ldquoraquoEacutetatraquo rend ici paacutethos et deacutesigne la disposition astronomique des mouvements du monderdquo - Brisson (2003 226 n95) Segue nesse mesmo sentido a traduccedilatildeo de Rowe em Plato (1997) σύmicroπαντα eacute traduzido por ldquoall these thingsrdquo e πάθους como tambeacutem πάθος por ldquostate of affairsrdquo 31 Traduccedilatildeo minha 32 Traduccedilatildeo minha 33 Isto eacute em sentido retroacutegrado A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
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44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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expotildee que haacute dois ciclos coacutesmicos que correspondem a duas eacutepocas antagocircnicas a Era
de Cronos guiada pelo deus e a Era de Zeus onde o deus estaacute ausente Como o deus
estaacute ausente a era de Zeus seria dominada pela parte corpoacuterea de sua proacutepria formaccedilatildeo
gerando uma desordem crescente e inexoraacutevel ateacute chegar ao ponto criacutetico em que seraacute
preciso uma nova intervenccedilatildeo divina4
Vejamos agora as implicaccedilotildees de tal tese de acordo com as premissas apresentadas
pelo Estrangeiro no decorrer da passagem do mito Reiterando que o argumento
tradicional concebe exatamente dois cicloseacutepocas coacutesmicas Cronos e Zeus
1) Como o governo de Cronos eacute guiado pelo deus este periacuteodo natildeo pode estar em
sentido retroacutegrado5 e portanto o envelhecimento dentre os homens natildeo pode ser de
velhos para jovens6
2) A Era de Zeus por oposiccedilatildeo eacute marcada pelo mundo girando por si proacuteprio o
que causa as referidas desordens Se as coisas satildeo assim a Era de Zeus
presumivelmente a Era dos leitores de Platatildeo eacute marcada por um movimento retroacutegrado
e o envelhecimento dentre os homens faz-se da velhice para a juventude ou seja os
homens nasceriam velhos
3) Sendo assim o movimento retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 271c 2
assemelha-se antes com a Era de Zeus por ser um movimento retroacutegrado baseado em
um universo deixado por si mesmo do que com a Era de Cronos que eacute o oposto disto
jaacute que eacute guiada pelo deus
Pois bem a fragilidade da(s) interpretaccedilatildeo (otildees) tradicional(is) estaacute(atildeo) justamente
em contradizer as proacuteprias implicaccedilotildees de sua tese baacutesica Vejamos isso em alguns
comentadores que de uma forma ou de outra buscam seguir a base da interpretaccedilatildeo
tradicionalVidal-Naquet (1978 137) faz a Era de Cronos ser guiada pelo deus e ao
mesmo tempo ser baseada em um movimento reverso ldquothe human beings of the time of
Cronos led their lives in reverserdquo aleacutem disso diz Vidal-Naquet ldquomen were born from
4 Para um exemplo desta base de interpretaccedilatildeo ver Miller (2004 38-51) Mais autores que trabalham sobre nesta perspectiva seratildeo discutidos nos proacuteximos paraacutegrafos 5 Cf 268c-d onde eacute dito que a disposiccedilatildeo retroacutegrada eacute inerente ao mundo deixado por ele mesmo e natildeo ao mundo guiado pelo deus Portanto o mundo guiado pelo deus precisa ter um movimento oposto ao movimento retroacutegrado 6 Jaacute que este tipo de envelhecimento eacute caracteriacutestico do mundo deixado por si mesmo em sentido retroacutegrado conforme estaacute expliacutecito na descriccedilatildeo da passagem 270b 10 ateacute 271c 2
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the earth and they were born oldrdquo7 Todavia a identidade entre movimento guiado pelo
deus ndash movimento retroacutegrado ndash e homens nascerem velhos natildeo faz o menor sentido no
que tange ao mito contado pelo Estrangeiro Os homens da Era de Cronos nascem da
terra mas natildeo eacute dito que nascem velhos8
A ideia de que Cronos estaria dentro do movimento retroacutegrado adveacutem quase sempre
da interpretaccedilatildeo da passagem 271c 8 - 271d 3 Segundo essa linha de pensamento o
Estrangeiro estaria respondendo para Soacutecrates que a Era de Cronos natildeo tem nada a ver
com a atual mas sim com a precedente (270b 10 - 271c 2) Diante disso estudiosos que
seguem esta interpretaccedilatildeo tendem a pensar que o movimento retroacutegrado descrito em
270b 10 - 271c estaacute na mesma Era coacutesmica que Cronos e que no fundo trata-se da Era
de Cronos jaacute que para estes comentadores natildeo existem mais do que dois cicloseacutepocas
coacutesmicas Cronos e Zeus9 Entretanto a posiccedilatildeo estabelecida entre Era de Cronos e Era
de Zeus natildeo precisa ser necessariamente em termos de sentido de movimento coacutesmico e
portanto essa passagem natildeo eacute suficiente para marcar Cronos como movimento
retroacutegrado
Jaacute Miller (2004) parece entrar em contradiccedilatildeo ao caracterizar a Era de Zeus
justamente por manter a tese tradicional de que estamos vivendo na crescente
decadecircncia Assim sendo o autor seguindo a interpretaccedilatildeo tradicional diz que a Era de
Zeus eacute deixada por si proacutepria portanto baseada em um movimento retroacutegrado no qual
prevalece o elemento corpoacutereo a desordem o esquecimento (Miller 2004 39) Ainda
em relaccedilatildeo a Zeus acrescenta ldquoThe cosmos as a whole according to the myth suffers
7 Em flagrante contradiccedilatildeo com o aviso do proacuteprio Estrangeiro contido em 269e ldquocolocar-se permanentemente em rotaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel a ningueacutem excepto ao guia responsaacutevel por todos os movimentos - e natildeo eacute legiacutetimo [οὐ θέmicroις] que este execute um movimento ora num sentido ora no seu contraacuterio [] temos necessidade de afirmar que o cosmos nem sempre eacute responsaacutevel pelo seu proacuteprio movimento nem sequer eacute posto a girar por um deus em movimentos de rotaccedilatildeo duplos e contraacuterios nem tatildeo-pouco cabe a dois deuses com modos de pensar opostos entre si pocirc-los a rodarrdquo Assim vemos que natildeo eacute possiacutevel um deus movimentar o mundo em dois sentidos opostos como tambeacutem natildeo eacute possiacutevel que existam dois deuses que movimentam o mundo em sentidos opostos O deus para Platatildeo eacute a fonte do nous e dele apenas emana o bem e o bom O deus natildeo pode movimentar algo no sentido retroacutegrado porque isso seria corromper o deus diante da materialidade do mundo Eacute justamente a dimensatildeo corpoacuterea que impele o mundo para traacutes 8 Esse argumento de que os homens sob Cronos nascem velhos jaacute tinha sido expressado por Vidal-Naquet (1960 78 n5) Roochink (2005 8) defende a mesma ideia Para sustentar tal argumento Vidal-Naquet baseia-se em 273e 10 No entanto acredito que τὰ δ ἐκ γῆς νεογενῆ σώmicroατα πολιὰ refere-se agrave eacutepoca retroacutegrada anterior agrave Era de Zeus e natildeo agrave eacutepoca de Cronos A forma como interpreto eacute mais coerente visto que nascer velho eacute proacuteprio do movimento deixado por si mesmo e natildeo da Era de Cronos onde haacute a vigilacircncia do deus 9 Assim White (2007 43) e Morgan (2004 254) parecem sugerir que a Era de Cronos faz parte da primeira eacutepoca reversa descrita (270b 10 - 271c 2)
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increasing disorderrdquo (idem 2004 50) Mesmo diante desta caracterizaccedilatildeo que o autor faz
da Era de Zeus ele acredita que
The dominance of lethe forgetfulness (273c) in the later stage of the age of Zeus refers to the secularization and humanization of culture and with this the breakdown of the prepolitical authoritarian order The new and increasing disharmony of the later stage therefore calls for a new kind of order and the forgetfulness calls for a new sort of remembrance (ibidem 49)
Uma crescente desarmonia que gera ordem Como pensar em crescente desarmonia
se os dons oferecidos aos homens pelos deuses marcam uma provaacutevel melhoria no
micro-cosmos humano dentro da Idade de Zeus Como dar conta da presenccedila ativa dos
deuses se na Era de Zeus os deuses estatildeo supostamente ausentes Um outro aspecto que
passa despercebido pelos comentadores eacute a contradiccedilatildeo entre o movimento
supostamente retroacutegrado da eacutepoca de Zeus e o tipo de envelhecimento dado que no
tempo atual (eacutepoca de Platatildeo) o envelhecimento daacute-se no sentido que estamos
habituados ou seja jovem ndash velho A rigor era para o envelhecimento em Zeus ser
como descrito nos movimentos reversos ou seja era para nascermos velhos Isso natildeo
faz qualquer sentido e natildeo li nenhum comentador que diga claramente que as pessoas
nasciam velhas na eacutepoca atual10
Para aleacutem destes problemas de interpretaccedilatildeo imanente do mito de ldquoO Poliacuteticordquo essa
grade interpretativa que temos discutido ateacute agora enlaccedila o mito em seacuterias dificuldades
interpretativas em relaccedilatildeo ao resto do diaacutelogo no qual o mito estaacute inserido Segundo a
versatildeo tradicional o nosso tempo caminha para um crescente e inexoraacutevel regresso que
faraacute tantas turbulecircncias e desordem que seraacute necessaacuterio uma nova intervenccedilatildeo divina
Sendo assim como conciliar esta crescente desordem dentro do nosso ciclo coacutesmico e a
busca efetivada no diaacutelogo pelo melhor poliacutetico que governaria dotado da arte poliacutetica
segundo a ldquoconstituiccedilatildeo corretardquo [πολιτείαν τὴν ὀρθήν]11(297c 2) Carece de sentido a
pesquisa acerca do paradigma do poliacutetico - que ocupa todo o dialogo apoacutes o mito - se
10 White (2007 51) talvez sem perceber a contradiccedilatildeo que advinha de suas proacuteprias teses harmoniza a Era de Zeus enquanto baseada em um movimento retroacutegrado e o envelhecimento normal jovem ndash velho Poreacutem sustento faz isso contrariando as premissas do mito de ldquoO Poliacuteticordquo 11 Traduccedilatildeo minha
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toda e qualquer mudanccedila em nossa Era for para pior jaacute que o mundo caminha em
sentido retroacutegrado12
Como observa Carone (2004 107) uma das mensagens fundamentais do diaacutelogo
ldquoPoliacuteticordquo eacute que ldquoone should strive for the ideal constitution or at least try to imitate it as
best one canrdquo13 Ora dentro da visatildeo de mundo platocircnica a busca por imitar a
ldquoconstituiccedilatildeo corretardquo eacute um corolaacuterio semelhante agravequele que diz que devemos imitar
tanto quanto possiacutevel a realidade das Formas A relaccedilatildeo entre Forma e imitaccedilatildeo natildeo
significa para Platatildeo que todo devir eacute um afastamento da Forma e portanto uma
degenerescecircncia14 Nesse sentido o progresso poliacutetico que se percebe em ldquoO Poliacuteticordquo eacute
a aproximaccedilatildeo de um paradigma do que seja o poliacutetico dentro de uma Era marcada pela
autonomia dos seres humanos que precisam governar a si proacuteprios embora natildeo estejam
completamente desprovidos de auxiacutelio divino especialmente no que diz respeito ao
12 Um debate semelhante encontra-se tambeacutem acerca do mito das cinco idades de ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo de Hesiacuteodo Se a descriccedilatildeo de nossa geraccedilatildeo de Ferro eacute concebida como uma crescente e irremediaacutevel degenerescecircncia qual o sentido das admoestaccedilotildees do poeta seja em relaccedilatildeo ao seu irmatildeo Perses seja em relaccedilatildeo aos reis ldquodevoradores de presentesrdquo (Hes Op 263-264) se toda mudanccedila for sempre para pior jaacute que o devir histoacuterico jaacute estaacute preacute-concebido Sobre este problema especiacutefico ver Neschke (1996) e Clay (2003 81-99) A diferenccedila na descriccedilatildeo dos acontecimentos que envolvem a humanidade no mito das cinco idades de Hesiacuteodo e no mito de ldquoO Poliacuteticordquo de Platatildeo eacute que o poeta da Beoacutecia descreve mais pormenorizadamente o que vai ou pode suceder no porvir Sendo assim uma certa leitura literal do verso 180 em diante de ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo faz do devir histoacuterico uma decadecircncia jaacute completamente preacute-determinada tornando fora de sintonia todos os apelos morais do poema Jaacute o mito de ldquoO Poliacuteticordquo por natildeo descrever o porvir de forma detalhada abre a possibilidade de mesmo uma leitura literal do texto reconhecer que natildeo obstante o tempo humano esteja incrustado no tempo ciacuteclico do mundo eacute possiacutevel que em um mesmo ciclo temporal possamos ter acontecimentos que superem qualquer processo de decadecircncia ainda que esta superaccedilatildeo natildeo seja senatildeo provisoacuteria haja vista que em algum momento segundo essa leitura o retorno ciacuteclico do universo dar-se-aacute 13 Cf 297 a-c e 300e-301a 14 Em outros termos natildeo significa que toda mudanccedila eacute para pior ndash jaacute que se afastaria do paradigma que eacute a Forma como pensava Popper (1966 35-36) Em linhas semelhantes agravequelas de Popper segue Fialho (1989-1990 75) ldquoo paradoxo de todo o devir que eacute ao mesmo tempo determinado pela Ideia mas desvirtuaccedilatildeo da Ideiardquo Aqui eacute preciso especificar a relaccedilatildeo entre a Ideia e o devir Dodds (1973 14) explana que ldquoFor Plato all progress consists in aproximation to a pre-existing modelrdquo Isso significa que para Platatildeo o desenvolvimento histoacuterico eacute teleoloacutegico ou seja o devir move-se segundo um fim preacute-traccedilado O fim preacute-estabelecido para Platatildeo eacute justamente a Ideia Entretanto dizer que todo progresso em Platatildeo eacute uma aproximaccedilatildeo de um modelo preacute-existente eacute diferente de afirmar que todo devir eacute desvirtuaccedilatildeo da Ideia Como afirma Taylor (1999 285) para que a uacuteltima tese seja vaacutelida eacute preciso pensar que a Ideia-Forma seja ldquoan independently specifiable good state from the standpoint of which change can be seen as deteriorationrdquo Contudo a Forma tem primazia sobre o mundo natildeo porque eacute um ponto de partida para toda mudanccedila mas sim porque ldquobeing eternal they exist before any particular instance comes to berdquo (idem 285 n 11) Sendo assim Platatildeo deixa em aberto a possibilidade de algo progredir na medida em que se aproxima natildeo se afasta da Ideia Portanto o ponto inicial da mudanccedila natildeo eacute a ideia mas sim algo que era ainda mais afastado da Ideia Eacute sobre isso que insiste contra Popper Taylor (1999 285 n11) ldquoThings which become F [Form] obviously become more like the Form of F not less like it as Poppers account requiresrdquo Ademais todo o destaque de Platatildeo em torno da busca da filosofia eacute o reconhecimento de que o devir pode ser antes uma aproximaccedilatildeo da Ideia do que uma desvirtuaccedilatildeo desta
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controle do movimento coacutesmico O progresso15 entatildeo tem uma abrangecircncia limitada agrave
eacutepoca ou ao ciclo em que vivemos jaacute que a inserccedilatildeo da temporalidade humana dentro
do tempo ciacuteclico do universo natildeo permite um progresso ilimitado e realmente
definitivo16
Diante das dificuldades de interpretaccedilatildeo que a leitura tradicional do mito de ldquoO
Poliacuteticordquo oferece alguns estudiosos tecircm contestado tal interpretaccedilatildeo em nome de outras
grades de leituras Luc Brisson e Gabriela Roxana Carone estatildeo entre os pesquisadores
principais embora Christopher Rowe tambeacutem divirja da interpretaccedilatildeo tradicional em
alguns pontos importantes Assim Rowe (1997 313-4 n31) em sua traduccedilatildeo para o
inglecircs de ldquoO Poliacuteticordquo defende que o Estrangeiro fala de duas Eras que giram ambas
no sentido que estamos habituados ou seja do leste para o oeste17 sendo uma a Era de
Cronos sob o controle do deus e a outra a Era Zeus onde o mundo eacute deixado por si
15 Natildeo trabalho aqui com o termo progresso no sentido exato do que foi desenvolvido pelo pensamento Iluminista ateacute porque natildeo haacute um uacutenico sentido para progresso oriundo do Iluminismo Nesse sentido discordo da metodologia usada por Den Boer (1977) que consiste em escolher uma versatildeo do ideaacuterio de progresso do Iluminismo e sob um truiacutesmo buscar um ideaacuterio correspondente no pensamento grego Ora eacute oacutebvio que diante de uma metodologia tatildeo riacutegida os gregos natildeo possuiriam qualquer ideia de progresso Em suma prefiro estudar uma sociedade antiga de forma menos inflexiacutevel e com conceitos mais amplos que alcancem formas distintas da nossa de pensar a sociedade Nesse sentido eu prefiro definiccedilotildees de progresso utilizaacuteveis para o mundo antigo como a de Carr (1996 126) ldquoum pressuposto da histoacuteria de que o homem eacute capaz de tirar proveito (natildeo que ele necessariamente o faccedila) da experiecircncia de seus antecessores e que o progresso na histoacuteria diferentemente da evoluccedilatildeo na natureza baseia-se na transmissatildeo de bens adquiridosrdquo ou como a definiccedilatildeo de Novara (1982 14-5) ldquoNous preacutecisons donc que nous nous attachons aux textes latins ougrave sexprime lideacutee dune ameacutelioration progressive mdash ce qui ne signifie pas neacutecessairement ininterrompue mais poursuivie mdash due tout ou partie au travail humain mdash ce qui nexclut donc pas a priori une transcendance de lhistoire des hommes mdash au cours dun temps assez long pour constituer une histoire quil sagisse de lhistoire de la civilisation et de lhumaniteacute de lhistoire dun peuple ou de celle dune vierdquo 16 Assim os dons divinos oferecidos aos homens em 274c-d marcam um progresso face agrave situaccedilatildeo inicial da Era de Zeus Eacute esse o sentido a meu ver do que Dodds (1973 14) qualificou como ldquotemporary and limited progress between catastrophesrdquo em Platatildeo Digno de nota eacute que no movimento retroacutegrado propriamente dito natildeo haacute qualquer possibilidade de progresso No entanto o final do movimento de regressatildeo permite ao mundo entrar novamente em contato com o demiurgo e reaver o nous algo que poderia ser impossiacutevel se o tempo fosse linear e o mundo se distanciasse continuamente do demiurgo sem garantia de retorno Esse eacute um dos motivos pelo qual o tempo tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo eacute ciacuteclico Mesmo que interpretemos de forma literal ou natildeo a Era de Zeus como uma siacutentese do nous divino e da anankeacute corpoacuterea eacute forccediloso admitir que a Era de Zeus estaacute fadada a acabar mesmo que haja progresso dentro dela tendo em vista os dois ciclos baacutesicos do universo que se alternam (cf 269c-d 270b 7-8) segundo uma lei que deriva a mudanccedila do micro-cosmos a partir do macro-cosmos fazendo com que a experiecircncia proacutepria da historicidade humana se esvazie diante de um mundo que ldquoimitamos e seguimos ao longo de todos os temposrdquo (274d 6-7) 17 Nesse ponto Rowe estaacute de acordo com a minha interpretaccedilatildeo bem como com a de Brisson e de Carone que falaremos em seguida segundo a qual Cronos e Zeus partilham do mesmo sentido de movimento coacutesmico
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mesmo18 Estas duas Eras satildeo separadas por um periacuteodo relativamente breve de rotaccedilatildeo
na direccedilatildeo reversa (sol nascendo no oeste)19 Por fim as pessoas nascidas da terra
pertencentes a este periacuteodo de direccedilatildeo reversa satildeo distintas das pessoas nascidas da terra
na Era de Cronos20
Luc Brisson por sua vez afasta-se ainda mais da interpretaccedilatildeo tradicional Para o
pesquisador francecircs haacute dois ciclos coacutesmicos (movimento coacutesmico guiado ou natildeo pelo
deus) que abarcam trecircs eacutepocas coacutesmicas21 Reino de Cronos mundo deixado por si
mesmo (272d6 ndash 273e4) e Reino de Zeus22 O Reino de Cronos possui o mesmo sentido
de movimento dos astros que o Reino de Zeus sentido esse de acordo com o que
estamos habituados - leste para oeste - (Brisson 1998 491)23 Aleacutem disso no Reino de
Cronos o envelhecimento dos seres vivos daacute-se de jovens para velhos (idem 2000
182)24 A semelhanccedila que haacute entre o Reino de Cronos e o primeiro movimento reverso eacute
apenas ao niacutevel do modo de geraccedilatildeo (em ambos periacuteodos os homens nascem da terra e
natildeo de ciclo coacutesmico) O Reino de Cronos estaacute na direccedilatildeo oposta ao movimento reverso
anterior (ibidem 2000 176) O Reino de Zeus estaacute no mesmo ciclo que Cronos mas em
eacutepoca distinta Na nossa eacutepoca a divindade ocupa-se da marcha do universo mas as
divindades secundaacuterias saiacuteram de seus postos25 O Reino de Zeus eacute visto por Brisson
18 Nesse toacutepico Rowe segue a visatildeo tradicional ao afirmar que os homens estatildeo desprovidos dos deuses na Era de Zeus Fica contudo sem explicaccedilatildeo a causa que faz com que o mundo deixado por si mesmo (Zeus) gire no mesmo sentido do mundo guiado pelo deus (Cronos) Essa eacute a meu ver a principal falha da interpretaccedilatildeo de Rowe jaacute que o mito eacute expliacutecito em afirmar que o movimento inerente ao mundo deixado por si mesmo eacute retroacutegrado (cf 269d 2-3) 19 Rowe portanto segue a visatildeo de dois ciclos mas traz uma novidade em relaccedilatildeo agrave leitura tradicional ao reconhecer a existecircncia de um periacuteodo reverso distinto de Cronos e de Zeus No entanto a afirmaccedilatildeo de Rowe de que se trata de um periacuteodo relativamente breve natildeo me parece ter fundamento no texto original A passagem mais expliacutecita acerca desse toacutepico 270a 2-8 dificilmente pode ser lida conforme a tese de Rowe Assim em 270a 6-8 o Estrangeiro diz que o mundo deixado por si mesmo ldquocaminha em sentido inverso durante milhares de periacuteodos pois enorme e equilibrado como eacute gira apoiado num eixo muito pequeno [ὥστε ἀνάπαλιν πορεύεσθαι πολλὰς περιόδων microυριάδας διὰ δὴ τὸ microέγιστον ὂν καὶ ἰσορροπώτατον ἐπὶ microικροτάτου βαῖνον ποδὸς ἰέναι]rdquo 20 Contra portanto a leitura tradicional que como vimos tende a associar as pessoas nascidas da terra da eacutepoca reversa com aquelas pessoas nascidas da terra da eacutepoca de Cronos 21 Assim Brisson (2000 170) define ciclo ldquojacute entends par laquocycleraquo une peacuteriode dacuteun nombre deacutetermineacute dacuteaneacutees agrave la fin de laquelle certains pheacutenomegravenes astronomiques qui se produisent dans le mecircme ordre se reacutepegravetentrdquo e eacutepoca coacutesmica ldquoune laquoeacutepoqueraquo est une peacuteriode historique deacutetermineacutee par de eacuteveacutenements importants caracteacuteriseacutes par un eacutetat de choses particulier (idem 173) 22 Portanto o periacuteodo reverso que Rowe acusava como algo distinto de Cronos e Zeus eacute tido por Brisson como uma eacutepoca agrave parte 23 Nesse quesito o pesquisador francecircs segue Rowe contra a leitura tradicional 24 Opiniatildeo portanto oposta agravequela da interpretaccedilatildeo tradicional 25 Brisson (2000 173 184) = BrissonPradeau (2003 44) em Platon (2003) No entanto a traduccedilatildeo de 271d 3-6 e a nota referente a este passo feita por BrissonPradeau (2003) diz que os deuses secundaacuterios
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como uma siacutentese dos periacuteodos anteriormente mencionados em que haacute autonomia dos
homens para governarem a si proacuteprios poreacutem haacute tambeacutem o controle coacutesmico da
divindade (idem 2000 174) 26 Esta siacutentese seria na verdade uma superaccedilatildeo ou mesmo
negaccedilatildeo das eacutepocas reversas e de Cronos em favor de uma siacutentese da necessidade e do
acaso - Reino de Zeus O caraacuteter definitivo ou natildeo desta siacutentese parece-me pouco claro
para o autor jaacute que em um texto ele reconhece que pode vir um novo ciclo reverso
depois de Zeus (ibidem 2000 186) enquanto em outro texto ele afirma que o Reino de
Zeus ldquoinstaure alors et semble mettre un terme agrave lacutehistoire des bouleversements
cosmiques est celui que nous connaissons encore aujourdacutehui le monde est
deacutefinitivement soustrait par la diviniteacute au risque de la corruptionrdquo (ibidem 2003 44)27
Ainda para Brisson entre o Reino de Cronos e de Zeus haacute um periacuteodo reverso que
ele hesita em identificar como diferente do primeiro movimento reverso descrito antes
de Cronos De toda forma o autor sustenta que ambos os movimentos reversos tecircm
sentido oposto ao Reino de Cronos (ibidem 2000 174)
Jaacute Carone (2004) segue substancialmente a interpretaccedilatildeo de Luc Brisson Assim
Zeus e Cronos estatildeo no mesmo sentido coacutesmico que eacute oposto agraves duas eacutepocas reversas
descritas Em Cronos a geraccedilatildeo cresce de jovem para velho em Zeus haacute o cuidado da
divindade sob o universo embora os deuses tutelares tenham deixado de governar as
regiotildees do mundo A Era de Zeus seria uma siacutentese das eacutepocas anteriores em que haacute
participaccedilatildeo ativa tanto do deus como dos homens As diferenccedilas entre os dois
estudiosos extraiacutedas a partir da bibliografia consultada satildeo basicamente as seguintes
Carone (2004 100 n41) percebe cinco ldquocosmic cyclesrdquo ao inveacutes de trecircs eacutepocas dentro
de dois ciclos como pensa Brisson sendo estes ciclos coacutesmicos a criaccedilatildeo do universo
pelo deus a ordem reversa a idade de Cronos a segunda ordem reversa a idade de
Zeus28 Carone (2004 97-8) interpreta 271b4 ndash c2 como se fosse jaacute o relato da Era de
tambeacutem satildeo atuantes na eacutepoca de Zeus A presenccedila da divindade sob Zeus mesmo que ao niacutevel da conduccedilatildeo do universo eacute logo uma interpretaccedilatildeo oposta agrave leitura tradicional 26 Brisson (2003) qualifica o Reino de Zeus tambeacutem como um ldquoeacutetat intermeacutediairerdquo (p43) 27 Segundo esse raciociacutenio a siacutentese operada pela Era de Zeus instauraria um tempo linear que interromperia a sucessatildeo ciacuteclica do tempo O mito natildeo parece comprovar esta ideia Ainda assim penso que eacute possiacutevel compreender a Era de Zeus como uma espeacutecie de siacutentese entre nous e anankecirc tal como no Timeu ndash cf 47e-48a - todavia o caraacuteter ciacuteclico do tempo eacute marcadamente destacado tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo 28 Dessa forma Carone (2004) trabalha como se houvesse cinco ciclos coacutesmicos Contudo 269c-d eacute taxativo ao dizer que soacute haacute dois ciclos coacutesmicos ou duas formas de disposiccedilatildeo dos astros Dentro destes ciclos eacute que pode haver mais de uma eacutepoca coacutesmica Assim julgo indispensaacutevel manter a definiccedilatildeo e a distinccedilatildeo de ciclo e eacutepoca coacutesmica feita por Brisson (2000) Natildeo penso que seja uacutetil considerar a criaccedilatildeo
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Cronos atraveacutes de uma transiccedilatildeo entre o primeira eacutepoca reversa e a Era de Cronos e
natildeo a continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo da primeira eacutepoca reversa29
-II-
Este breve debate bibliograacutefico eacute suficiente para contextualizar minha interpretaccedilatildeo
do mito Interpretaccedilatildeo esta que segue em linhas gerais Brisson e Carone embora eu
discorde em pontos importantes como na quantidade de ciclos e eacutepocas coacutesmicas
descritas jaacute que a meu ver haacute dois ciclos e quatro eacutepocas coacutesmicas O mito entatildeo situa-
se dentro do diaacutelogo logo apoacutes as sucessivas divisotildees conceituais que permeiam toda a
primeira parte do diaacutelogo Estas divisotildees que tecircm como escopo identificar o que seria o
poliacutetico chega a conclusatildeo provisoacuteria de que o poliacutetico seria um pastor de homens Ora
o mito vem mostrar justamente que esta definiccedilatildeo se enquadraria antes aos deuses da
Era de Cronos que tutelam os homens como pastores Portanto natildeo faz sentido uma
definiccedilatildeo do poliacutetico se esta natildeo corresponde agrave realidade da temporalidade humana
atual
Eacute preciso portanto seguir um outro caminho Este outro caminho ocupa a terceira
parte do diaacutelogo numa tentativa de definir um certo paradigma do poliacutetico que atuaria
em torno da constituiccedilatildeo correta Sendo assim para expor minha visatildeo do relato do
Estrangeiro eu dividi para fins didaacuteticos o relato do mito em sete partes as quais
seguem
do universo pelo deus se eacute que algo assim estaacute explicitamente descrito no texto como uma eacutepoca coacutesmica em si Todavia eacute importante a distinccedilatildeo forjada por Carone entre a primeira e a segunda eacutepoca reversa como eacutepocas distintas superando a hesitaccedilatildeo de Brisson 29 A leitura da autora eacute de fato tentadora porque resolveria duas dificuldades de interpretaccedilatildeo associadas a esta passagem De um lado faria sentido a atuaccedilatildeo do deus em 271c 2 por tratar-se da eacutepoca de Cronos que de outro modo permanece obscuro jaacute que se trataria da descriccedilatildeo de periacuteodo reverso logo alheio agrave atuaccedilatildeo divina De outro lado deixaria mais claro o significado de 271c 4-7 O jovem Soacutecrates estaria entatildeo perguntando se a Era de Cronos teria lugar na eacutepoca desta revoluccedilatildeo (271b4 ndash c2) ou na eacutepoca atual O Estrangeiro entatildeo responderia que Cronos teria acontecido na revoluccedilatildeo contida em 271b4 ndash c2 No entanto a hipoacutetese eacute pouco plausiacutevel porque a passagem 271b4 ndash c2 eacute claramente a resposta do Estrangeiro agrave pergunta feita pelo jovem Soacutecrates em 271a 2-3 acerca de como se dava o nascimento e a geraccedilatildeo entre os homens da eacutepoca que estava entatildeo sendo descrita pelo Estrangeiro ou seja a primeira eacutepoca reversa Assim essa passagem natildeo trata da Era de Cronos mas sim da primeira eacutepoca reversa Talvez a presenccedila do deus em 271c 2 queira remeter ao fato de que o deus afasta-se durante o movimento reverso para seu posto de observaccedilatildeo mas permanece com a possibilidade de intervir pontualmente se assim julgar oportuno embora a lei geral seja que a divindade respeite a autonomia do mundo e apenas intervenha quando a desordem corpoacuterea ameace fazer perecer o proacuteprio mundo
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1- Apresentaccedilatildeo e definiccedilatildeo do meacutetodo a ser seguido neste novo relato
O Estrangeiro diz que eacute preciso ldquoencetar desde o iniacutecio uma nova via [ὁδὸν]rdquo (268d
5) A este novo caminho seraacute ldquomisturado uma dose de brincadeira [παιδιὰν]rdquo (268d 8)
atraveacutes de um meacutetodo que natildeo mais dar-se-aacute por sucessivas divisotildees mas sim atraveacutes de
ldquoum mito extenso [microεγάλου microύθου]rdquo (268d 9)
2- Mitos que seratildeo entrelaccedilados dentro do ldquomito extensordquo
Apoacutes ter estabelecido o tipo e o meacutetodo do relato o Estrangeiro conta ao jovem
Soacutecrates trecircs mitos que traratildeo liccedilotildees fundamentais para a continuaccedilatildeo do relato do
Estrangeiro Em 268e-269a eacute apresentado o mito de Atreu e Tiestes de onde retiramos a
primeira informaccedilatildeo cosmoloacutegica do mito a divindade mudou a ordem dos astros para
servir de testemunha a Atreu Assim o ldquoSol nasce hoje no lugar onde antes se deitavardquo
(269a 3) Ainda em 269a o Estrangeiro introduz o segundo mito aquele ldquodo governo
exercido por Cronos [τήν γε βασιλείαν ἣν ἦρξε Κρόνος]rdquo (269a 7) Logo em seguida o
Estrangeiro introduz o terceiro mito que iraacute compor a sua grande narrativa Trata-se ldquodo
nascimento dos homens de antanho gerados da terra e natildeo uns dos outros
[τὸ τοὺς ἔmicroπροσθεν φύεσθαι γηγενεῖς καὶ microὴ ἐξ ἀλλήλων γεννᾶσθαι]rdquo (269b 2-3)
Como interpreta Brisson (2000 175-77) os trecircs elementos miacuteticos apresentados pelo
Estrangeiro introduzem tambeacutem os trecircs aspectos que seratildeo entrelaccedilados na grande
narrativa a partir da histoacuteria de Atreu e Tiestes a dimensatildeo coacutesmica atraveacutes do mito do
governo de Cronos a dimensatildeo poliacutetica a partir do mito dos humanos nascidos da terra
a dimensatildeo antropoloacutegica Assim apoacutes anunciar os trecircs mitos o Estrangeiro afirma que
ldquotodos esses acontecimentos aleacutem de milhares de outros ainda mais extraordinaacuterios
resultam todos do mesmo estado de coisasrdquo
[Ταῦτα τοίνυν ἔστι microὲν σύmicroπαντα ἐκ ταὐτοῦ πάθους καὶ πρὸς τούτοις ἕτερα microυρία καὶ
τούτων ἔτι θαυmicroαστότερα] (269b 5-6) 30
30 Traduccedilatildeo minha Carmen Soares traduz σύmicroπαντα por ldquotodas essas situaccedilotildeesrdquo e traduz πάθους por ldquoconjunturardquo Logo agrave frente em 269c 1 verte πάθος por ldquocontextosrdquo Situaccedilotildees conjunturas e contextos talvez decircem a ideia de algo que eacute de alguma forma apenas devido agraves circunstacircncias de um dado momento No entanto aquilo que o Estrangeiro estaacute comeccedilando a estabelecer eacute uma espeacutecie de estado de coisas que define a proacutepria forma coacutesmica do universo atraveacutes de movimentos que ora vatildeo no sentido que conhecemos ora no sentido inverso como discutiremos acerca de 269c-269d Nesse sentido prefiro a
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O Estrangeiro continua e daacute-nos uma informaccedilatildeo que contribuiraacute para entendermos a
inserccedilatildeo do mito dentro do conjunto do diaacutelogo o ldquoestado de coisas [πάθος]rdquo (269c 1)31
que eacute a ldquocausa [αἴτιον]rdquo (269c 1)32 desses acontecimentos ldquointeressa agrave explicaccedilatildeo do que
eacute o rei [τὴν τοῦ βασιλέως ἀπόδειξιν πρέψει]rdquo (269c 2)
3- Regra acerca da disposiccedilatildeo dos astros do movimento do universo e da
participaccedilatildeo divina neste movimento
Logo em seguida o Estrangeiro mostra ao jovem Soacutecrates o estado de coisas do
Universo
Presta atenccedilatildeo O universo umas vezes a divindade guia-o pessoalmente no seu trajecto e acompanha-o no seu movimento circular mas outras afasta-se quando os circuitos atingem o intervalo de tempo apropriado Mas nessa ocasiatildeo por acccedilatildeo do movimento autoacutenomo o cosmos volta novamente agrave posiccedilatildeo contraacuteria uma vez que eacute um ser vivo dotado de inteligecircncia pelo seu arquitecto primordial Todavia este movimento de retrocesso torna-se necessariamente inato pela seguinte razatildeo [Ἀκούοις ἄν τὸ γὰρ πᾶν τόδε τοτὲ microὲν αὐτὸς ὁ θεὸς συmicroποδηγεῖ πορευόmicroενον καὶ συγκυκλεῖ τοτὲ δὲ ἀνῆκεν ὅταν αἱ περίοδοι τοῦ προσήκοντος αὐτῷ microέτρον εἰλήφωσιν ἤδη χρόνου τὸ δὲ πάλιν αὐτόmicroατον εἰς τἀναντία περιάγεται ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν εἰληχὸς ἐκ τοῦ συναρmicroόσαντος αὐτὸ κατ ἀρχάς τοῦτο δὲ αὐτῷ τὸ ἀνάπαλιν ἰέναι διὰ τόδ ἐξ ἀνάγκης ἔmicroφυτον γέγονε] (269c 4 ndash 269d3)
Assim eacute-nos dito que ora eacute o proacuteprio deus que ldquoguia [συmicroποδηγεῖ]rdquo a ldquomarcha
[πορευόμενον]rdquo do universo e preside seu ldquomovimento circular [συγκυκλεῖ]rdquo ora o
deus deixa o universo ir por ele mesmo Quando o universo eacute deixado por si mesmo seu
movimento ldquoautocircnomo [αὐτόmicroατον]rdquo e ldquoinerente [ἔmicroφυτον]rdquo impele-o a girar ldquopara traacutes
[ἀνάπαλιν]rdquo e em ldquosentido inverso[τἀναντία]rdquo33
Esta regra geral do movimento do universo onde o movimento normal do universo
deixado por si mesmo eacute ir no sentido retroacutegrado possui segundo o Estrangeiro uma
razatildeo Razatildeo essa que eacute contada entre 269d 4 e 270a 9 A tese central aqui eacute a mesma
traduccedilatildeo de Luc Brisson em Platon (2003) que traduz σύmicroπαντα por ldquotous ces eacuteveacutenementsrdquo πάθους como tambeacutem πάθος de 269c 1 por ldquoeacutetatrdquo (ldquoraquoEacutetatraquo rend ici paacutethos et deacutesigne la disposition astronomique des mouvements du monderdquo - Brisson (2003 226 n95) Segue nesse mesmo sentido a traduccedilatildeo de Rowe em Plato (1997) σύmicroπαντα eacute traduzido por ldquoall these thingsrdquo e πάθους como tambeacutem πάθος por ldquostate of affairsrdquo 31 Traduccedilatildeo minha 32 Traduccedilatildeo minha 33 Isto eacute em sentido retroacutegrado A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
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44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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the earth and they were born oldrdquo7 Todavia a identidade entre movimento guiado pelo
deus ndash movimento retroacutegrado ndash e homens nascerem velhos natildeo faz o menor sentido no
que tange ao mito contado pelo Estrangeiro Os homens da Era de Cronos nascem da
terra mas natildeo eacute dito que nascem velhos8
A ideia de que Cronos estaria dentro do movimento retroacutegrado adveacutem quase sempre
da interpretaccedilatildeo da passagem 271c 8 - 271d 3 Segundo essa linha de pensamento o
Estrangeiro estaria respondendo para Soacutecrates que a Era de Cronos natildeo tem nada a ver
com a atual mas sim com a precedente (270b 10 - 271c 2) Diante disso estudiosos que
seguem esta interpretaccedilatildeo tendem a pensar que o movimento retroacutegrado descrito em
270b 10 - 271c estaacute na mesma Era coacutesmica que Cronos e que no fundo trata-se da Era
de Cronos jaacute que para estes comentadores natildeo existem mais do que dois cicloseacutepocas
coacutesmicas Cronos e Zeus9 Entretanto a posiccedilatildeo estabelecida entre Era de Cronos e Era
de Zeus natildeo precisa ser necessariamente em termos de sentido de movimento coacutesmico e
portanto essa passagem natildeo eacute suficiente para marcar Cronos como movimento
retroacutegrado
Jaacute Miller (2004) parece entrar em contradiccedilatildeo ao caracterizar a Era de Zeus
justamente por manter a tese tradicional de que estamos vivendo na crescente
decadecircncia Assim sendo o autor seguindo a interpretaccedilatildeo tradicional diz que a Era de
Zeus eacute deixada por si proacutepria portanto baseada em um movimento retroacutegrado no qual
prevalece o elemento corpoacutereo a desordem o esquecimento (Miller 2004 39) Ainda
em relaccedilatildeo a Zeus acrescenta ldquoThe cosmos as a whole according to the myth suffers
7 Em flagrante contradiccedilatildeo com o aviso do proacuteprio Estrangeiro contido em 269e ldquocolocar-se permanentemente em rotaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel a ningueacutem excepto ao guia responsaacutevel por todos os movimentos - e natildeo eacute legiacutetimo [οὐ θέmicroις] que este execute um movimento ora num sentido ora no seu contraacuterio [] temos necessidade de afirmar que o cosmos nem sempre eacute responsaacutevel pelo seu proacuteprio movimento nem sequer eacute posto a girar por um deus em movimentos de rotaccedilatildeo duplos e contraacuterios nem tatildeo-pouco cabe a dois deuses com modos de pensar opostos entre si pocirc-los a rodarrdquo Assim vemos que natildeo eacute possiacutevel um deus movimentar o mundo em dois sentidos opostos como tambeacutem natildeo eacute possiacutevel que existam dois deuses que movimentam o mundo em sentidos opostos O deus para Platatildeo eacute a fonte do nous e dele apenas emana o bem e o bom O deus natildeo pode movimentar algo no sentido retroacutegrado porque isso seria corromper o deus diante da materialidade do mundo Eacute justamente a dimensatildeo corpoacuterea que impele o mundo para traacutes 8 Esse argumento de que os homens sob Cronos nascem velhos jaacute tinha sido expressado por Vidal-Naquet (1960 78 n5) Roochink (2005 8) defende a mesma ideia Para sustentar tal argumento Vidal-Naquet baseia-se em 273e 10 No entanto acredito que τὰ δ ἐκ γῆς νεογενῆ σώmicroατα πολιὰ refere-se agrave eacutepoca retroacutegrada anterior agrave Era de Zeus e natildeo agrave eacutepoca de Cronos A forma como interpreto eacute mais coerente visto que nascer velho eacute proacuteprio do movimento deixado por si mesmo e natildeo da Era de Cronos onde haacute a vigilacircncia do deus 9 Assim White (2007 43) e Morgan (2004 254) parecem sugerir que a Era de Cronos faz parte da primeira eacutepoca reversa descrita (270b 10 - 271c 2)
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increasing disorderrdquo (idem 2004 50) Mesmo diante desta caracterizaccedilatildeo que o autor faz
da Era de Zeus ele acredita que
The dominance of lethe forgetfulness (273c) in the later stage of the age of Zeus refers to the secularization and humanization of culture and with this the breakdown of the prepolitical authoritarian order The new and increasing disharmony of the later stage therefore calls for a new kind of order and the forgetfulness calls for a new sort of remembrance (ibidem 49)
Uma crescente desarmonia que gera ordem Como pensar em crescente desarmonia
se os dons oferecidos aos homens pelos deuses marcam uma provaacutevel melhoria no
micro-cosmos humano dentro da Idade de Zeus Como dar conta da presenccedila ativa dos
deuses se na Era de Zeus os deuses estatildeo supostamente ausentes Um outro aspecto que
passa despercebido pelos comentadores eacute a contradiccedilatildeo entre o movimento
supostamente retroacutegrado da eacutepoca de Zeus e o tipo de envelhecimento dado que no
tempo atual (eacutepoca de Platatildeo) o envelhecimento daacute-se no sentido que estamos
habituados ou seja jovem ndash velho A rigor era para o envelhecimento em Zeus ser
como descrito nos movimentos reversos ou seja era para nascermos velhos Isso natildeo
faz qualquer sentido e natildeo li nenhum comentador que diga claramente que as pessoas
nasciam velhas na eacutepoca atual10
Para aleacutem destes problemas de interpretaccedilatildeo imanente do mito de ldquoO Poliacuteticordquo essa
grade interpretativa que temos discutido ateacute agora enlaccedila o mito em seacuterias dificuldades
interpretativas em relaccedilatildeo ao resto do diaacutelogo no qual o mito estaacute inserido Segundo a
versatildeo tradicional o nosso tempo caminha para um crescente e inexoraacutevel regresso que
faraacute tantas turbulecircncias e desordem que seraacute necessaacuterio uma nova intervenccedilatildeo divina
Sendo assim como conciliar esta crescente desordem dentro do nosso ciclo coacutesmico e a
busca efetivada no diaacutelogo pelo melhor poliacutetico que governaria dotado da arte poliacutetica
segundo a ldquoconstituiccedilatildeo corretardquo [πολιτείαν τὴν ὀρθήν]11(297c 2) Carece de sentido a
pesquisa acerca do paradigma do poliacutetico - que ocupa todo o dialogo apoacutes o mito - se
10 White (2007 51) talvez sem perceber a contradiccedilatildeo que advinha de suas proacuteprias teses harmoniza a Era de Zeus enquanto baseada em um movimento retroacutegrado e o envelhecimento normal jovem ndash velho Poreacutem sustento faz isso contrariando as premissas do mito de ldquoO Poliacuteticordquo 11 Traduccedilatildeo minha
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toda e qualquer mudanccedila em nossa Era for para pior jaacute que o mundo caminha em
sentido retroacutegrado12
Como observa Carone (2004 107) uma das mensagens fundamentais do diaacutelogo
ldquoPoliacuteticordquo eacute que ldquoone should strive for the ideal constitution or at least try to imitate it as
best one canrdquo13 Ora dentro da visatildeo de mundo platocircnica a busca por imitar a
ldquoconstituiccedilatildeo corretardquo eacute um corolaacuterio semelhante agravequele que diz que devemos imitar
tanto quanto possiacutevel a realidade das Formas A relaccedilatildeo entre Forma e imitaccedilatildeo natildeo
significa para Platatildeo que todo devir eacute um afastamento da Forma e portanto uma
degenerescecircncia14 Nesse sentido o progresso poliacutetico que se percebe em ldquoO Poliacuteticordquo eacute
a aproximaccedilatildeo de um paradigma do que seja o poliacutetico dentro de uma Era marcada pela
autonomia dos seres humanos que precisam governar a si proacuteprios embora natildeo estejam
completamente desprovidos de auxiacutelio divino especialmente no que diz respeito ao
12 Um debate semelhante encontra-se tambeacutem acerca do mito das cinco idades de ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo de Hesiacuteodo Se a descriccedilatildeo de nossa geraccedilatildeo de Ferro eacute concebida como uma crescente e irremediaacutevel degenerescecircncia qual o sentido das admoestaccedilotildees do poeta seja em relaccedilatildeo ao seu irmatildeo Perses seja em relaccedilatildeo aos reis ldquodevoradores de presentesrdquo (Hes Op 263-264) se toda mudanccedila for sempre para pior jaacute que o devir histoacuterico jaacute estaacute preacute-concebido Sobre este problema especiacutefico ver Neschke (1996) e Clay (2003 81-99) A diferenccedila na descriccedilatildeo dos acontecimentos que envolvem a humanidade no mito das cinco idades de Hesiacuteodo e no mito de ldquoO Poliacuteticordquo de Platatildeo eacute que o poeta da Beoacutecia descreve mais pormenorizadamente o que vai ou pode suceder no porvir Sendo assim uma certa leitura literal do verso 180 em diante de ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo faz do devir histoacuterico uma decadecircncia jaacute completamente preacute-determinada tornando fora de sintonia todos os apelos morais do poema Jaacute o mito de ldquoO Poliacuteticordquo por natildeo descrever o porvir de forma detalhada abre a possibilidade de mesmo uma leitura literal do texto reconhecer que natildeo obstante o tempo humano esteja incrustado no tempo ciacuteclico do mundo eacute possiacutevel que em um mesmo ciclo temporal possamos ter acontecimentos que superem qualquer processo de decadecircncia ainda que esta superaccedilatildeo natildeo seja senatildeo provisoacuteria haja vista que em algum momento segundo essa leitura o retorno ciacuteclico do universo dar-se-aacute 13 Cf 297 a-c e 300e-301a 14 Em outros termos natildeo significa que toda mudanccedila eacute para pior ndash jaacute que se afastaria do paradigma que eacute a Forma como pensava Popper (1966 35-36) Em linhas semelhantes agravequelas de Popper segue Fialho (1989-1990 75) ldquoo paradoxo de todo o devir que eacute ao mesmo tempo determinado pela Ideia mas desvirtuaccedilatildeo da Ideiardquo Aqui eacute preciso especificar a relaccedilatildeo entre a Ideia e o devir Dodds (1973 14) explana que ldquoFor Plato all progress consists in aproximation to a pre-existing modelrdquo Isso significa que para Platatildeo o desenvolvimento histoacuterico eacute teleoloacutegico ou seja o devir move-se segundo um fim preacute-traccedilado O fim preacute-estabelecido para Platatildeo eacute justamente a Ideia Entretanto dizer que todo progresso em Platatildeo eacute uma aproximaccedilatildeo de um modelo preacute-existente eacute diferente de afirmar que todo devir eacute desvirtuaccedilatildeo da Ideia Como afirma Taylor (1999 285) para que a uacuteltima tese seja vaacutelida eacute preciso pensar que a Ideia-Forma seja ldquoan independently specifiable good state from the standpoint of which change can be seen as deteriorationrdquo Contudo a Forma tem primazia sobre o mundo natildeo porque eacute um ponto de partida para toda mudanccedila mas sim porque ldquobeing eternal they exist before any particular instance comes to berdquo (idem 285 n 11) Sendo assim Platatildeo deixa em aberto a possibilidade de algo progredir na medida em que se aproxima natildeo se afasta da Ideia Portanto o ponto inicial da mudanccedila natildeo eacute a ideia mas sim algo que era ainda mais afastado da Ideia Eacute sobre isso que insiste contra Popper Taylor (1999 285 n11) ldquoThings which become F [Form] obviously become more like the Form of F not less like it as Poppers account requiresrdquo Ademais todo o destaque de Platatildeo em torno da busca da filosofia eacute o reconhecimento de que o devir pode ser antes uma aproximaccedilatildeo da Ideia do que uma desvirtuaccedilatildeo desta
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controle do movimento coacutesmico O progresso15 entatildeo tem uma abrangecircncia limitada agrave
eacutepoca ou ao ciclo em que vivemos jaacute que a inserccedilatildeo da temporalidade humana dentro
do tempo ciacuteclico do universo natildeo permite um progresso ilimitado e realmente
definitivo16
Diante das dificuldades de interpretaccedilatildeo que a leitura tradicional do mito de ldquoO
Poliacuteticordquo oferece alguns estudiosos tecircm contestado tal interpretaccedilatildeo em nome de outras
grades de leituras Luc Brisson e Gabriela Roxana Carone estatildeo entre os pesquisadores
principais embora Christopher Rowe tambeacutem divirja da interpretaccedilatildeo tradicional em
alguns pontos importantes Assim Rowe (1997 313-4 n31) em sua traduccedilatildeo para o
inglecircs de ldquoO Poliacuteticordquo defende que o Estrangeiro fala de duas Eras que giram ambas
no sentido que estamos habituados ou seja do leste para o oeste17 sendo uma a Era de
Cronos sob o controle do deus e a outra a Era Zeus onde o mundo eacute deixado por si
15 Natildeo trabalho aqui com o termo progresso no sentido exato do que foi desenvolvido pelo pensamento Iluminista ateacute porque natildeo haacute um uacutenico sentido para progresso oriundo do Iluminismo Nesse sentido discordo da metodologia usada por Den Boer (1977) que consiste em escolher uma versatildeo do ideaacuterio de progresso do Iluminismo e sob um truiacutesmo buscar um ideaacuterio correspondente no pensamento grego Ora eacute oacutebvio que diante de uma metodologia tatildeo riacutegida os gregos natildeo possuiriam qualquer ideia de progresso Em suma prefiro estudar uma sociedade antiga de forma menos inflexiacutevel e com conceitos mais amplos que alcancem formas distintas da nossa de pensar a sociedade Nesse sentido eu prefiro definiccedilotildees de progresso utilizaacuteveis para o mundo antigo como a de Carr (1996 126) ldquoum pressuposto da histoacuteria de que o homem eacute capaz de tirar proveito (natildeo que ele necessariamente o faccedila) da experiecircncia de seus antecessores e que o progresso na histoacuteria diferentemente da evoluccedilatildeo na natureza baseia-se na transmissatildeo de bens adquiridosrdquo ou como a definiccedilatildeo de Novara (1982 14-5) ldquoNous preacutecisons donc que nous nous attachons aux textes latins ougrave sexprime lideacutee dune ameacutelioration progressive mdash ce qui ne signifie pas neacutecessairement ininterrompue mais poursuivie mdash due tout ou partie au travail humain mdash ce qui nexclut donc pas a priori une transcendance de lhistoire des hommes mdash au cours dun temps assez long pour constituer une histoire quil sagisse de lhistoire de la civilisation et de lhumaniteacute de lhistoire dun peuple ou de celle dune vierdquo 16 Assim os dons divinos oferecidos aos homens em 274c-d marcam um progresso face agrave situaccedilatildeo inicial da Era de Zeus Eacute esse o sentido a meu ver do que Dodds (1973 14) qualificou como ldquotemporary and limited progress between catastrophesrdquo em Platatildeo Digno de nota eacute que no movimento retroacutegrado propriamente dito natildeo haacute qualquer possibilidade de progresso No entanto o final do movimento de regressatildeo permite ao mundo entrar novamente em contato com o demiurgo e reaver o nous algo que poderia ser impossiacutevel se o tempo fosse linear e o mundo se distanciasse continuamente do demiurgo sem garantia de retorno Esse eacute um dos motivos pelo qual o tempo tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo eacute ciacuteclico Mesmo que interpretemos de forma literal ou natildeo a Era de Zeus como uma siacutentese do nous divino e da anankeacute corpoacuterea eacute forccediloso admitir que a Era de Zeus estaacute fadada a acabar mesmo que haja progresso dentro dela tendo em vista os dois ciclos baacutesicos do universo que se alternam (cf 269c-d 270b 7-8) segundo uma lei que deriva a mudanccedila do micro-cosmos a partir do macro-cosmos fazendo com que a experiecircncia proacutepria da historicidade humana se esvazie diante de um mundo que ldquoimitamos e seguimos ao longo de todos os temposrdquo (274d 6-7) 17 Nesse ponto Rowe estaacute de acordo com a minha interpretaccedilatildeo bem como com a de Brisson e de Carone que falaremos em seguida segundo a qual Cronos e Zeus partilham do mesmo sentido de movimento coacutesmico
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mesmo18 Estas duas Eras satildeo separadas por um periacuteodo relativamente breve de rotaccedilatildeo
na direccedilatildeo reversa (sol nascendo no oeste)19 Por fim as pessoas nascidas da terra
pertencentes a este periacuteodo de direccedilatildeo reversa satildeo distintas das pessoas nascidas da terra
na Era de Cronos20
Luc Brisson por sua vez afasta-se ainda mais da interpretaccedilatildeo tradicional Para o
pesquisador francecircs haacute dois ciclos coacutesmicos (movimento coacutesmico guiado ou natildeo pelo
deus) que abarcam trecircs eacutepocas coacutesmicas21 Reino de Cronos mundo deixado por si
mesmo (272d6 ndash 273e4) e Reino de Zeus22 O Reino de Cronos possui o mesmo sentido
de movimento dos astros que o Reino de Zeus sentido esse de acordo com o que
estamos habituados - leste para oeste - (Brisson 1998 491)23 Aleacutem disso no Reino de
Cronos o envelhecimento dos seres vivos daacute-se de jovens para velhos (idem 2000
182)24 A semelhanccedila que haacute entre o Reino de Cronos e o primeiro movimento reverso eacute
apenas ao niacutevel do modo de geraccedilatildeo (em ambos periacuteodos os homens nascem da terra e
natildeo de ciclo coacutesmico) O Reino de Cronos estaacute na direccedilatildeo oposta ao movimento reverso
anterior (ibidem 2000 176) O Reino de Zeus estaacute no mesmo ciclo que Cronos mas em
eacutepoca distinta Na nossa eacutepoca a divindade ocupa-se da marcha do universo mas as
divindades secundaacuterias saiacuteram de seus postos25 O Reino de Zeus eacute visto por Brisson
18 Nesse toacutepico Rowe segue a visatildeo tradicional ao afirmar que os homens estatildeo desprovidos dos deuses na Era de Zeus Fica contudo sem explicaccedilatildeo a causa que faz com que o mundo deixado por si mesmo (Zeus) gire no mesmo sentido do mundo guiado pelo deus (Cronos) Essa eacute a meu ver a principal falha da interpretaccedilatildeo de Rowe jaacute que o mito eacute expliacutecito em afirmar que o movimento inerente ao mundo deixado por si mesmo eacute retroacutegrado (cf 269d 2-3) 19 Rowe portanto segue a visatildeo de dois ciclos mas traz uma novidade em relaccedilatildeo agrave leitura tradicional ao reconhecer a existecircncia de um periacuteodo reverso distinto de Cronos e de Zeus No entanto a afirmaccedilatildeo de Rowe de que se trata de um periacuteodo relativamente breve natildeo me parece ter fundamento no texto original A passagem mais expliacutecita acerca desse toacutepico 270a 2-8 dificilmente pode ser lida conforme a tese de Rowe Assim em 270a 6-8 o Estrangeiro diz que o mundo deixado por si mesmo ldquocaminha em sentido inverso durante milhares de periacuteodos pois enorme e equilibrado como eacute gira apoiado num eixo muito pequeno [ὥστε ἀνάπαλιν πορεύεσθαι πολλὰς περιόδων microυριάδας διὰ δὴ τὸ microέγιστον ὂν καὶ ἰσορροπώτατον ἐπὶ microικροτάτου βαῖνον ποδὸς ἰέναι]rdquo 20 Contra portanto a leitura tradicional que como vimos tende a associar as pessoas nascidas da terra da eacutepoca reversa com aquelas pessoas nascidas da terra da eacutepoca de Cronos 21 Assim Brisson (2000 170) define ciclo ldquojacute entends par laquocycleraquo une peacuteriode dacuteun nombre deacutetermineacute dacuteaneacutees agrave la fin de laquelle certains pheacutenomegravenes astronomiques qui se produisent dans le mecircme ordre se reacutepegravetentrdquo e eacutepoca coacutesmica ldquoune laquoeacutepoqueraquo est une peacuteriode historique deacutetermineacutee par de eacuteveacutenements importants caracteacuteriseacutes par un eacutetat de choses particulier (idem 173) 22 Portanto o periacuteodo reverso que Rowe acusava como algo distinto de Cronos e Zeus eacute tido por Brisson como uma eacutepoca agrave parte 23 Nesse quesito o pesquisador francecircs segue Rowe contra a leitura tradicional 24 Opiniatildeo portanto oposta agravequela da interpretaccedilatildeo tradicional 25 Brisson (2000 173 184) = BrissonPradeau (2003 44) em Platon (2003) No entanto a traduccedilatildeo de 271d 3-6 e a nota referente a este passo feita por BrissonPradeau (2003) diz que os deuses secundaacuterios
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como uma siacutentese dos periacuteodos anteriormente mencionados em que haacute autonomia dos
homens para governarem a si proacuteprios poreacutem haacute tambeacutem o controle coacutesmico da
divindade (idem 2000 174) 26 Esta siacutentese seria na verdade uma superaccedilatildeo ou mesmo
negaccedilatildeo das eacutepocas reversas e de Cronos em favor de uma siacutentese da necessidade e do
acaso - Reino de Zeus O caraacuteter definitivo ou natildeo desta siacutentese parece-me pouco claro
para o autor jaacute que em um texto ele reconhece que pode vir um novo ciclo reverso
depois de Zeus (ibidem 2000 186) enquanto em outro texto ele afirma que o Reino de
Zeus ldquoinstaure alors et semble mettre un terme agrave lacutehistoire des bouleversements
cosmiques est celui que nous connaissons encore aujourdacutehui le monde est
deacutefinitivement soustrait par la diviniteacute au risque de la corruptionrdquo (ibidem 2003 44)27
Ainda para Brisson entre o Reino de Cronos e de Zeus haacute um periacuteodo reverso que
ele hesita em identificar como diferente do primeiro movimento reverso descrito antes
de Cronos De toda forma o autor sustenta que ambos os movimentos reversos tecircm
sentido oposto ao Reino de Cronos (ibidem 2000 174)
Jaacute Carone (2004) segue substancialmente a interpretaccedilatildeo de Luc Brisson Assim
Zeus e Cronos estatildeo no mesmo sentido coacutesmico que eacute oposto agraves duas eacutepocas reversas
descritas Em Cronos a geraccedilatildeo cresce de jovem para velho em Zeus haacute o cuidado da
divindade sob o universo embora os deuses tutelares tenham deixado de governar as
regiotildees do mundo A Era de Zeus seria uma siacutentese das eacutepocas anteriores em que haacute
participaccedilatildeo ativa tanto do deus como dos homens As diferenccedilas entre os dois
estudiosos extraiacutedas a partir da bibliografia consultada satildeo basicamente as seguintes
Carone (2004 100 n41) percebe cinco ldquocosmic cyclesrdquo ao inveacutes de trecircs eacutepocas dentro
de dois ciclos como pensa Brisson sendo estes ciclos coacutesmicos a criaccedilatildeo do universo
pelo deus a ordem reversa a idade de Cronos a segunda ordem reversa a idade de
Zeus28 Carone (2004 97-8) interpreta 271b4 ndash c2 como se fosse jaacute o relato da Era de
tambeacutem satildeo atuantes na eacutepoca de Zeus A presenccedila da divindade sob Zeus mesmo que ao niacutevel da conduccedilatildeo do universo eacute logo uma interpretaccedilatildeo oposta agrave leitura tradicional 26 Brisson (2003) qualifica o Reino de Zeus tambeacutem como um ldquoeacutetat intermeacutediairerdquo (p43) 27 Segundo esse raciociacutenio a siacutentese operada pela Era de Zeus instauraria um tempo linear que interromperia a sucessatildeo ciacuteclica do tempo O mito natildeo parece comprovar esta ideia Ainda assim penso que eacute possiacutevel compreender a Era de Zeus como uma espeacutecie de siacutentese entre nous e anankecirc tal como no Timeu ndash cf 47e-48a - todavia o caraacuteter ciacuteclico do tempo eacute marcadamente destacado tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo 28 Dessa forma Carone (2004) trabalha como se houvesse cinco ciclos coacutesmicos Contudo 269c-d eacute taxativo ao dizer que soacute haacute dois ciclos coacutesmicos ou duas formas de disposiccedilatildeo dos astros Dentro destes ciclos eacute que pode haver mais de uma eacutepoca coacutesmica Assim julgo indispensaacutevel manter a definiccedilatildeo e a distinccedilatildeo de ciclo e eacutepoca coacutesmica feita por Brisson (2000) Natildeo penso que seja uacutetil considerar a criaccedilatildeo
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Cronos atraveacutes de uma transiccedilatildeo entre o primeira eacutepoca reversa e a Era de Cronos e
natildeo a continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo da primeira eacutepoca reversa29
-II-
Este breve debate bibliograacutefico eacute suficiente para contextualizar minha interpretaccedilatildeo
do mito Interpretaccedilatildeo esta que segue em linhas gerais Brisson e Carone embora eu
discorde em pontos importantes como na quantidade de ciclos e eacutepocas coacutesmicas
descritas jaacute que a meu ver haacute dois ciclos e quatro eacutepocas coacutesmicas O mito entatildeo situa-
se dentro do diaacutelogo logo apoacutes as sucessivas divisotildees conceituais que permeiam toda a
primeira parte do diaacutelogo Estas divisotildees que tecircm como escopo identificar o que seria o
poliacutetico chega a conclusatildeo provisoacuteria de que o poliacutetico seria um pastor de homens Ora
o mito vem mostrar justamente que esta definiccedilatildeo se enquadraria antes aos deuses da
Era de Cronos que tutelam os homens como pastores Portanto natildeo faz sentido uma
definiccedilatildeo do poliacutetico se esta natildeo corresponde agrave realidade da temporalidade humana
atual
Eacute preciso portanto seguir um outro caminho Este outro caminho ocupa a terceira
parte do diaacutelogo numa tentativa de definir um certo paradigma do poliacutetico que atuaria
em torno da constituiccedilatildeo correta Sendo assim para expor minha visatildeo do relato do
Estrangeiro eu dividi para fins didaacuteticos o relato do mito em sete partes as quais
seguem
do universo pelo deus se eacute que algo assim estaacute explicitamente descrito no texto como uma eacutepoca coacutesmica em si Todavia eacute importante a distinccedilatildeo forjada por Carone entre a primeira e a segunda eacutepoca reversa como eacutepocas distintas superando a hesitaccedilatildeo de Brisson 29 A leitura da autora eacute de fato tentadora porque resolveria duas dificuldades de interpretaccedilatildeo associadas a esta passagem De um lado faria sentido a atuaccedilatildeo do deus em 271c 2 por tratar-se da eacutepoca de Cronos que de outro modo permanece obscuro jaacute que se trataria da descriccedilatildeo de periacuteodo reverso logo alheio agrave atuaccedilatildeo divina De outro lado deixaria mais claro o significado de 271c 4-7 O jovem Soacutecrates estaria entatildeo perguntando se a Era de Cronos teria lugar na eacutepoca desta revoluccedilatildeo (271b4 ndash c2) ou na eacutepoca atual O Estrangeiro entatildeo responderia que Cronos teria acontecido na revoluccedilatildeo contida em 271b4 ndash c2 No entanto a hipoacutetese eacute pouco plausiacutevel porque a passagem 271b4 ndash c2 eacute claramente a resposta do Estrangeiro agrave pergunta feita pelo jovem Soacutecrates em 271a 2-3 acerca de como se dava o nascimento e a geraccedilatildeo entre os homens da eacutepoca que estava entatildeo sendo descrita pelo Estrangeiro ou seja a primeira eacutepoca reversa Assim essa passagem natildeo trata da Era de Cronos mas sim da primeira eacutepoca reversa Talvez a presenccedila do deus em 271c 2 queira remeter ao fato de que o deus afasta-se durante o movimento reverso para seu posto de observaccedilatildeo mas permanece com a possibilidade de intervir pontualmente se assim julgar oportuno embora a lei geral seja que a divindade respeite a autonomia do mundo e apenas intervenha quando a desordem corpoacuterea ameace fazer perecer o proacuteprio mundo
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1- Apresentaccedilatildeo e definiccedilatildeo do meacutetodo a ser seguido neste novo relato
O Estrangeiro diz que eacute preciso ldquoencetar desde o iniacutecio uma nova via [ὁδὸν]rdquo (268d
5) A este novo caminho seraacute ldquomisturado uma dose de brincadeira [παιδιὰν]rdquo (268d 8)
atraveacutes de um meacutetodo que natildeo mais dar-se-aacute por sucessivas divisotildees mas sim atraveacutes de
ldquoum mito extenso [microεγάλου microύθου]rdquo (268d 9)
2- Mitos que seratildeo entrelaccedilados dentro do ldquomito extensordquo
Apoacutes ter estabelecido o tipo e o meacutetodo do relato o Estrangeiro conta ao jovem
Soacutecrates trecircs mitos que traratildeo liccedilotildees fundamentais para a continuaccedilatildeo do relato do
Estrangeiro Em 268e-269a eacute apresentado o mito de Atreu e Tiestes de onde retiramos a
primeira informaccedilatildeo cosmoloacutegica do mito a divindade mudou a ordem dos astros para
servir de testemunha a Atreu Assim o ldquoSol nasce hoje no lugar onde antes se deitavardquo
(269a 3) Ainda em 269a o Estrangeiro introduz o segundo mito aquele ldquodo governo
exercido por Cronos [τήν γε βασιλείαν ἣν ἦρξε Κρόνος]rdquo (269a 7) Logo em seguida o
Estrangeiro introduz o terceiro mito que iraacute compor a sua grande narrativa Trata-se ldquodo
nascimento dos homens de antanho gerados da terra e natildeo uns dos outros
[τὸ τοὺς ἔmicroπροσθεν φύεσθαι γηγενεῖς καὶ microὴ ἐξ ἀλλήλων γεννᾶσθαι]rdquo (269b 2-3)
Como interpreta Brisson (2000 175-77) os trecircs elementos miacuteticos apresentados pelo
Estrangeiro introduzem tambeacutem os trecircs aspectos que seratildeo entrelaccedilados na grande
narrativa a partir da histoacuteria de Atreu e Tiestes a dimensatildeo coacutesmica atraveacutes do mito do
governo de Cronos a dimensatildeo poliacutetica a partir do mito dos humanos nascidos da terra
a dimensatildeo antropoloacutegica Assim apoacutes anunciar os trecircs mitos o Estrangeiro afirma que
ldquotodos esses acontecimentos aleacutem de milhares de outros ainda mais extraordinaacuterios
resultam todos do mesmo estado de coisasrdquo
[Ταῦτα τοίνυν ἔστι microὲν σύmicroπαντα ἐκ ταὐτοῦ πάθους καὶ πρὸς τούτοις ἕτερα microυρία καὶ
τούτων ἔτι θαυmicroαστότερα] (269b 5-6) 30
30 Traduccedilatildeo minha Carmen Soares traduz σύmicroπαντα por ldquotodas essas situaccedilotildeesrdquo e traduz πάθους por ldquoconjunturardquo Logo agrave frente em 269c 1 verte πάθος por ldquocontextosrdquo Situaccedilotildees conjunturas e contextos talvez decircem a ideia de algo que eacute de alguma forma apenas devido agraves circunstacircncias de um dado momento No entanto aquilo que o Estrangeiro estaacute comeccedilando a estabelecer eacute uma espeacutecie de estado de coisas que define a proacutepria forma coacutesmica do universo atraveacutes de movimentos que ora vatildeo no sentido que conhecemos ora no sentido inverso como discutiremos acerca de 269c-269d Nesse sentido prefiro a
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O Estrangeiro continua e daacute-nos uma informaccedilatildeo que contribuiraacute para entendermos a
inserccedilatildeo do mito dentro do conjunto do diaacutelogo o ldquoestado de coisas [πάθος]rdquo (269c 1)31
que eacute a ldquocausa [αἴτιον]rdquo (269c 1)32 desses acontecimentos ldquointeressa agrave explicaccedilatildeo do que
eacute o rei [τὴν τοῦ βασιλέως ἀπόδειξιν πρέψει]rdquo (269c 2)
3- Regra acerca da disposiccedilatildeo dos astros do movimento do universo e da
participaccedilatildeo divina neste movimento
Logo em seguida o Estrangeiro mostra ao jovem Soacutecrates o estado de coisas do
Universo
Presta atenccedilatildeo O universo umas vezes a divindade guia-o pessoalmente no seu trajecto e acompanha-o no seu movimento circular mas outras afasta-se quando os circuitos atingem o intervalo de tempo apropriado Mas nessa ocasiatildeo por acccedilatildeo do movimento autoacutenomo o cosmos volta novamente agrave posiccedilatildeo contraacuteria uma vez que eacute um ser vivo dotado de inteligecircncia pelo seu arquitecto primordial Todavia este movimento de retrocesso torna-se necessariamente inato pela seguinte razatildeo [Ἀκούοις ἄν τὸ γὰρ πᾶν τόδε τοτὲ microὲν αὐτὸς ὁ θεὸς συmicroποδηγεῖ πορευόmicroενον καὶ συγκυκλεῖ τοτὲ δὲ ἀνῆκεν ὅταν αἱ περίοδοι τοῦ προσήκοντος αὐτῷ microέτρον εἰλήφωσιν ἤδη χρόνου τὸ δὲ πάλιν αὐτόmicroατον εἰς τἀναντία περιάγεται ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν εἰληχὸς ἐκ τοῦ συναρmicroόσαντος αὐτὸ κατ ἀρχάς τοῦτο δὲ αὐτῷ τὸ ἀνάπαλιν ἰέναι διὰ τόδ ἐξ ἀνάγκης ἔmicroφυτον γέγονε] (269c 4 ndash 269d3)
Assim eacute-nos dito que ora eacute o proacuteprio deus que ldquoguia [συmicroποδηγεῖ]rdquo a ldquomarcha
[πορευόμενον]rdquo do universo e preside seu ldquomovimento circular [συγκυκλεῖ]rdquo ora o
deus deixa o universo ir por ele mesmo Quando o universo eacute deixado por si mesmo seu
movimento ldquoautocircnomo [αὐτόmicroατον]rdquo e ldquoinerente [ἔmicroφυτον]rdquo impele-o a girar ldquopara traacutes
[ἀνάπαλιν]rdquo e em ldquosentido inverso[τἀναντία]rdquo33
Esta regra geral do movimento do universo onde o movimento normal do universo
deixado por si mesmo eacute ir no sentido retroacutegrado possui segundo o Estrangeiro uma
razatildeo Razatildeo essa que eacute contada entre 269d 4 e 270a 9 A tese central aqui eacute a mesma
traduccedilatildeo de Luc Brisson em Platon (2003) que traduz σύmicroπαντα por ldquotous ces eacuteveacutenementsrdquo πάθους como tambeacutem πάθος de 269c 1 por ldquoeacutetatrdquo (ldquoraquoEacutetatraquo rend ici paacutethos et deacutesigne la disposition astronomique des mouvements du monderdquo - Brisson (2003 226 n95) Segue nesse mesmo sentido a traduccedilatildeo de Rowe em Plato (1997) σύmicroπαντα eacute traduzido por ldquoall these thingsrdquo e πάθους como tambeacutem πάθος por ldquostate of affairsrdquo 31 Traduccedilatildeo minha 32 Traduccedilatildeo minha 33 Isto eacute em sentido retroacutegrado A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
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44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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increasing disorderrdquo (idem 2004 50) Mesmo diante desta caracterizaccedilatildeo que o autor faz
da Era de Zeus ele acredita que
The dominance of lethe forgetfulness (273c) in the later stage of the age of Zeus refers to the secularization and humanization of culture and with this the breakdown of the prepolitical authoritarian order The new and increasing disharmony of the later stage therefore calls for a new kind of order and the forgetfulness calls for a new sort of remembrance (ibidem 49)
Uma crescente desarmonia que gera ordem Como pensar em crescente desarmonia
se os dons oferecidos aos homens pelos deuses marcam uma provaacutevel melhoria no
micro-cosmos humano dentro da Idade de Zeus Como dar conta da presenccedila ativa dos
deuses se na Era de Zeus os deuses estatildeo supostamente ausentes Um outro aspecto que
passa despercebido pelos comentadores eacute a contradiccedilatildeo entre o movimento
supostamente retroacutegrado da eacutepoca de Zeus e o tipo de envelhecimento dado que no
tempo atual (eacutepoca de Platatildeo) o envelhecimento daacute-se no sentido que estamos
habituados ou seja jovem ndash velho A rigor era para o envelhecimento em Zeus ser
como descrito nos movimentos reversos ou seja era para nascermos velhos Isso natildeo
faz qualquer sentido e natildeo li nenhum comentador que diga claramente que as pessoas
nasciam velhas na eacutepoca atual10
Para aleacutem destes problemas de interpretaccedilatildeo imanente do mito de ldquoO Poliacuteticordquo essa
grade interpretativa que temos discutido ateacute agora enlaccedila o mito em seacuterias dificuldades
interpretativas em relaccedilatildeo ao resto do diaacutelogo no qual o mito estaacute inserido Segundo a
versatildeo tradicional o nosso tempo caminha para um crescente e inexoraacutevel regresso que
faraacute tantas turbulecircncias e desordem que seraacute necessaacuterio uma nova intervenccedilatildeo divina
Sendo assim como conciliar esta crescente desordem dentro do nosso ciclo coacutesmico e a
busca efetivada no diaacutelogo pelo melhor poliacutetico que governaria dotado da arte poliacutetica
segundo a ldquoconstituiccedilatildeo corretardquo [πολιτείαν τὴν ὀρθήν]11(297c 2) Carece de sentido a
pesquisa acerca do paradigma do poliacutetico - que ocupa todo o dialogo apoacutes o mito - se
10 White (2007 51) talvez sem perceber a contradiccedilatildeo que advinha de suas proacuteprias teses harmoniza a Era de Zeus enquanto baseada em um movimento retroacutegrado e o envelhecimento normal jovem ndash velho Poreacutem sustento faz isso contrariando as premissas do mito de ldquoO Poliacuteticordquo 11 Traduccedilatildeo minha
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toda e qualquer mudanccedila em nossa Era for para pior jaacute que o mundo caminha em
sentido retroacutegrado12
Como observa Carone (2004 107) uma das mensagens fundamentais do diaacutelogo
ldquoPoliacuteticordquo eacute que ldquoone should strive for the ideal constitution or at least try to imitate it as
best one canrdquo13 Ora dentro da visatildeo de mundo platocircnica a busca por imitar a
ldquoconstituiccedilatildeo corretardquo eacute um corolaacuterio semelhante agravequele que diz que devemos imitar
tanto quanto possiacutevel a realidade das Formas A relaccedilatildeo entre Forma e imitaccedilatildeo natildeo
significa para Platatildeo que todo devir eacute um afastamento da Forma e portanto uma
degenerescecircncia14 Nesse sentido o progresso poliacutetico que se percebe em ldquoO Poliacuteticordquo eacute
a aproximaccedilatildeo de um paradigma do que seja o poliacutetico dentro de uma Era marcada pela
autonomia dos seres humanos que precisam governar a si proacuteprios embora natildeo estejam
completamente desprovidos de auxiacutelio divino especialmente no que diz respeito ao
12 Um debate semelhante encontra-se tambeacutem acerca do mito das cinco idades de ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo de Hesiacuteodo Se a descriccedilatildeo de nossa geraccedilatildeo de Ferro eacute concebida como uma crescente e irremediaacutevel degenerescecircncia qual o sentido das admoestaccedilotildees do poeta seja em relaccedilatildeo ao seu irmatildeo Perses seja em relaccedilatildeo aos reis ldquodevoradores de presentesrdquo (Hes Op 263-264) se toda mudanccedila for sempre para pior jaacute que o devir histoacuterico jaacute estaacute preacute-concebido Sobre este problema especiacutefico ver Neschke (1996) e Clay (2003 81-99) A diferenccedila na descriccedilatildeo dos acontecimentos que envolvem a humanidade no mito das cinco idades de Hesiacuteodo e no mito de ldquoO Poliacuteticordquo de Platatildeo eacute que o poeta da Beoacutecia descreve mais pormenorizadamente o que vai ou pode suceder no porvir Sendo assim uma certa leitura literal do verso 180 em diante de ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo faz do devir histoacuterico uma decadecircncia jaacute completamente preacute-determinada tornando fora de sintonia todos os apelos morais do poema Jaacute o mito de ldquoO Poliacuteticordquo por natildeo descrever o porvir de forma detalhada abre a possibilidade de mesmo uma leitura literal do texto reconhecer que natildeo obstante o tempo humano esteja incrustado no tempo ciacuteclico do mundo eacute possiacutevel que em um mesmo ciclo temporal possamos ter acontecimentos que superem qualquer processo de decadecircncia ainda que esta superaccedilatildeo natildeo seja senatildeo provisoacuteria haja vista que em algum momento segundo essa leitura o retorno ciacuteclico do universo dar-se-aacute 13 Cf 297 a-c e 300e-301a 14 Em outros termos natildeo significa que toda mudanccedila eacute para pior ndash jaacute que se afastaria do paradigma que eacute a Forma como pensava Popper (1966 35-36) Em linhas semelhantes agravequelas de Popper segue Fialho (1989-1990 75) ldquoo paradoxo de todo o devir que eacute ao mesmo tempo determinado pela Ideia mas desvirtuaccedilatildeo da Ideiardquo Aqui eacute preciso especificar a relaccedilatildeo entre a Ideia e o devir Dodds (1973 14) explana que ldquoFor Plato all progress consists in aproximation to a pre-existing modelrdquo Isso significa que para Platatildeo o desenvolvimento histoacuterico eacute teleoloacutegico ou seja o devir move-se segundo um fim preacute-traccedilado O fim preacute-estabelecido para Platatildeo eacute justamente a Ideia Entretanto dizer que todo progresso em Platatildeo eacute uma aproximaccedilatildeo de um modelo preacute-existente eacute diferente de afirmar que todo devir eacute desvirtuaccedilatildeo da Ideia Como afirma Taylor (1999 285) para que a uacuteltima tese seja vaacutelida eacute preciso pensar que a Ideia-Forma seja ldquoan independently specifiable good state from the standpoint of which change can be seen as deteriorationrdquo Contudo a Forma tem primazia sobre o mundo natildeo porque eacute um ponto de partida para toda mudanccedila mas sim porque ldquobeing eternal they exist before any particular instance comes to berdquo (idem 285 n 11) Sendo assim Platatildeo deixa em aberto a possibilidade de algo progredir na medida em que se aproxima natildeo se afasta da Ideia Portanto o ponto inicial da mudanccedila natildeo eacute a ideia mas sim algo que era ainda mais afastado da Ideia Eacute sobre isso que insiste contra Popper Taylor (1999 285 n11) ldquoThings which become F [Form] obviously become more like the Form of F not less like it as Poppers account requiresrdquo Ademais todo o destaque de Platatildeo em torno da busca da filosofia eacute o reconhecimento de que o devir pode ser antes uma aproximaccedilatildeo da Ideia do que uma desvirtuaccedilatildeo desta
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controle do movimento coacutesmico O progresso15 entatildeo tem uma abrangecircncia limitada agrave
eacutepoca ou ao ciclo em que vivemos jaacute que a inserccedilatildeo da temporalidade humana dentro
do tempo ciacuteclico do universo natildeo permite um progresso ilimitado e realmente
definitivo16
Diante das dificuldades de interpretaccedilatildeo que a leitura tradicional do mito de ldquoO
Poliacuteticordquo oferece alguns estudiosos tecircm contestado tal interpretaccedilatildeo em nome de outras
grades de leituras Luc Brisson e Gabriela Roxana Carone estatildeo entre os pesquisadores
principais embora Christopher Rowe tambeacutem divirja da interpretaccedilatildeo tradicional em
alguns pontos importantes Assim Rowe (1997 313-4 n31) em sua traduccedilatildeo para o
inglecircs de ldquoO Poliacuteticordquo defende que o Estrangeiro fala de duas Eras que giram ambas
no sentido que estamos habituados ou seja do leste para o oeste17 sendo uma a Era de
Cronos sob o controle do deus e a outra a Era Zeus onde o mundo eacute deixado por si
15 Natildeo trabalho aqui com o termo progresso no sentido exato do que foi desenvolvido pelo pensamento Iluminista ateacute porque natildeo haacute um uacutenico sentido para progresso oriundo do Iluminismo Nesse sentido discordo da metodologia usada por Den Boer (1977) que consiste em escolher uma versatildeo do ideaacuterio de progresso do Iluminismo e sob um truiacutesmo buscar um ideaacuterio correspondente no pensamento grego Ora eacute oacutebvio que diante de uma metodologia tatildeo riacutegida os gregos natildeo possuiriam qualquer ideia de progresso Em suma prefiro estudar uma sociedade antiga de forma menos inflexiacutevel e com conceitos mais amplos que alcancem formas distintas da nossa de pensar a sociedade Nesse sentido eu prefiro definiccedilotildees de progresso utilizaacuteveis para o mundo antigo como a de Carr (1996 126) ldquoum pressuposto da histoacuteria de que o homem eacute capaz de tirar proveito (natildeo que ele necessariamente o faccedila) da experiecircncia de seus antecessores e que o progresso na histoacuteria diferentemente da evoluccedilatildeo na natureza baseia-se na transmissatildeo de bens adquiridosrdquo ou como a definiccedilatildeo de Novara (1982 14-5) ldquoNous preacutecisons donc que nous nous attachons aux textes latins ougrave sexprime lideacutee dune ameacutelioration progressive mdash ce qui ne signifie pas neacutecessairement ininterrompue mais poursuivie mdash due tout ou partie au travail humain mdash ce qui nexclut donc pas a priori une transcendance de lhistoire des hommes mdash au cours dun temps assez long pour constituer une histoire quil sagisse de lhistoire de la civilisation et de lhumaniteacute de lhistoire dun peuple ou de celle dune vierdquo 16 Assim os dons divinos oferecidos aos homens em 274c-d marcam um progresso face agrave situaccedilatildeo inicial da Era de Zeus Eacute esse o sentido a meu ver do que Dodds (1973 14) qualificou como ldquotemporary and limited progress between catastrophesrdquo em Platatildeo Digno de nota eacute que no movimento retroacutegrado propriamente dito natildeo haacute qualquer possibilidade de progresso No entanto o final do movimento de regressatildeo permite ao mundo entrar novamente em contato com o demiurgo e reaver o nous algo que poderia ser impossiacutevel se o tempo fosse linear e o mundo se distanciasse continuamente do demiurgo sem garantia de retorno Esse eacute um dos motivos pelo qual o tempo tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo eacute ciacuteclico Mesmo que interpretemos de forma literal ou natildeo a Era de Zeus como uma siacutentese do nous divino e da anankeacute corpoacuterea eacute forccediloso admitir que a Era de Zeus estaacute fadada a acabar mesmo que haja progresso dentro dela tendo em vista os dois ciclos baacutesicos do universo que se alternam (cf 269c-d 270b 7-8) segundo uma lei que deriva a mudanccedila do micro-cosmos a partir do macro-cosmos fazendo com que a experiecircncia proacutepria da historicidade humana se esvazie diante de um mundo que ldquoimitamos e seguimos ao longo de todos os temposrdquo (274d 6-7) 17 Nesse ponto Rowe estaacute de acordo com a minha interpretaccedilatildeo bem como com a de Brisson e de Carone que falaremos em seguida segundo a qual Cronos e Zeus partilham do mesmo sentido de movimento coacutesmico
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mesmo18 Estas duas Eras satildeo separadas por um periacuteodo relativamente breve de rotaccedilatildeo
na direccedilatildeo reversa (sol nascendo no oeste)19 Por fim as pessoas nascidas da terra
pertencentes a este periacuteodo de direccedilatildeo reversa satildeo distintas das pessoas nascidas da terra
na Era de Cronos20
Luc Brisson por sua vez afasta-se ainda mais da interpretaccedilatildeo tradicional Para o
pesquisador francecircs haacute dois ciclos coacutesmicos (movimento coacutesmico guiado ou natildeo pelo
deus) que abarcam trecircs eacutepocas coacutesmicas21 Reino de Cronos mundo deixado por si
mesmo (272d6 ndash 273e4) e Reino de Zeus22 O Reino de Cronos possui o mesmo sentido
de movimento dos astros que o Reino de Zeus sentido esse de acordo com o que
estamos habituados - leste para oeste - (Brisson 1998 491)23 Aleacutem disso no Reino de
Cronos o envelhecimento dos seres vivos daacute-se de jovens para velhos (idem 2000
182)24 A semelhanccedila que haacute entre o Reino de Cronos e o primeiro movimento reverso eacute
apenas ao niacutevel do modo de geraccedilatildeo (em ambos periacuteodos os homens nascem da terra e
natildeo de ciclo coacutesmico) O Reino de Cronos estaacute na direccedilatildeo oposta ao movimento reverso
anterior (ibidem 2000 176) O Reino de Zeus estaacute no mesmo ciclo que Cronos mas em
eacutepoca distinta Na nossa eacutepoca a divindade ocupa-se da marcha do universo mas as
divindades secundaacuterias saiacuteram de seus postos25 O Reino de Zeus eacute visto por Brisson
18 Nesse toacutepico Rowe segue a visatildeo tradicional ao afirmar que os homens estatildeo desprovidos dos deuses na Era de Zeus Fica contudo sem explicaccedilatildeo a causa que faz com que o mundo deixado por si mesmo (Zeus) gire no mesmo sentido do mundo guiado pelo deus (Cronos) Essa eacute a meu ver a principal falha da interpretaccedilatildeo de Rowe jaacute que o mito eacute expliacutecito em afirmar que o movimento inerente ao mundo deixado por si mesmo eacute retroacutegrado (cf 269d 2-3) 19 Rowe portanto segue a visatildeo de dois ciclos mas traz uma novidade em relaccedilatildeo agrave leitura tradicional ao reconhecer a existecircncia de um periacuteodo reverso distinto de Cronos e de Zeus No entanto a afirmaccedilatildeo de Rowe de que se trata de um periacuteodo relativamente breve natildeo me parece ter fundamento no texto original A passagem mais expliacutecita acerca desse toacutepico 270a 2-8 dificilmente pode ser lida conforme a tese de Rowe Assim em 270a 6-8 o Estrangeiro diz que o mundo deixado por si mesmo ldquocaminha em sentido inverso durante milhares de periacuteodos pois enorme e equilibrado como eacute gira apoiado num eixo muito pequeno [ὥστε ἀνάπαλιν πορεύεσθαι πολλὰς περιόδων microυριάδας διὰ δὴ τὸ microέγιστον ὂν καὶ ἰσορροπώτατον ἐπὶ microικροτάτου βαῖνον ποδὸς ἰέναι]rdquo 20 Contra portanto a leitura tradicional que como vimos tende a associar as pessoas nascidas da terra da eacutepoca reversa com aquelas pessoas nascidas da terra da eacutepoca de Cronos 21 Assim Brisson (2000 170) define ciclo ldquojacute entends par laquocycleraquo une peacuteriode dacuteun nombre deacutetermineacute dacuteaneacutees agrave la fin de laquelle certains pheacutenomegravenes astronomiques qui se produisent dans le mecircme ordre se reacutepegravetentrdquo e eacutepoca coacutesmica ldquoune laquoeacutepoqueraquo est une peacuteriode historique deacutetermineacutee par de eacuteveacutenements importants caracteacuteriseacutes par un eacutetat de choses particulier (idem 173) 22 Portanto o periacuteodo reverso que Rowe acusava como algo distinto de Cronos e Zeus eacute tido por Brisson como uma eacutepoca agrave parte 23 Nesse quesito o pesquisador francecircs segue Rowe contra a leitura tradicional 24 Opiniatildeo portanto oposta agravequela da interpretaccedilatildeo tradicional 25 Brisson (2000 173 184) = BrissonPradeau (2003 44) em Platon (2003) No entanto a traduccedilatildeo de 271d 3-6 e a nota referente a este passo feita por BrissonPradeau (2003) diz que os deuses secundaacuterios
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como uma siacutentese dos periacuteodos anteriormente mencionados em que haacute autonomia dos
homens para governarem a si proacuteprios poreacutem haacute tambeacutem o controle coacutesmico da
divindade (idem 2000 174) 26 Esta siacutentese seria na verdade uma superaccedilatildeo ou mesmo
negaccedilatildeo das eacutepocas reversas e de Cronos em favor de uma siacutentese da necessidade e do
acaso - Reino de Zeus O caraacuteter definitivo ou natildeo desta siacutentese parece-me pouco claro
para o autor jaacute que em um texto ele reconhece que pode vir um novo ciclo reverso
depois de Zeus (ibidem 2000 186) enquanto em outro texto ele afirma que o Reino de
Zeus ldquoinstaure alors et semble mettre un terme agrave lacutehistoire des bouleversements
cosmiques est celui que nous connaissons encore aujourdacutehui le monde est
deacutefinitivement soustrait par la diviniteacute au risque de la corruptionrdquo (ibidem 2003 44)27
Ainda para Brisson entre o Reino de Cronos e de Zeus haacute um periacuteodo reverso que
ele hesita em identificar como diferente do primeiro movimento reverso descrito antes
de Cronos De toda forma o autor sustenta que ambos os movimentos reversos tecircm
sentido oposto ao Reino de Cronos (ibidem 2000 174)
Jaacute Carone (2004) segue substancialmente a interpretaccedilatildeo de Luc Brisson Assim
Zeus e Cronos estatildeo no mesmo sentido coacutesmico que eacute oposto agraves duas eacutepocas reversas
descritas Em Cronos a geraccedilatildeo cresce de jovem para velho em Zeus haacute o cuidado da
divindade sob o universo embora os deuses tutelares tenham deixado de governar as
regiotildees do mundo A Era de Zeus seria uma siacutentese das eacutepocas anteriores em que haacute
participaccedilatildeo ativa tanto do deus como dos homens As diferenccedilas entre os dois
estudiosos extraiacutedas a partir da bibliografia consultada satildeo basicamente as seguintes
Carone (2004 100 n41) percebe cinco ldquocosmic cyclesrdquo ao inveacutes de trecircs eacutepocas dentro
de dois ciclos como pensa Brisson sendo estes ciclos coacutesmicos a criaccedilatildeo do universo
pelo deus a ordem reversa a idade de Cronos a segunda ordem reversa a idade de
Zeus28 Carone (2004 97-8) interpreta 271b4 ndash c2 como se fosse jaacute o relato da Era de
tambeacutem satildeo atuantes na eacutepoca de Zeus A presenccedila da divindade sob Zeus mesmo que ao niacutevel da conduccedilatildeo do universo eacute logo uma interpretaccedilatildeo oposta agrave leitura tradicional 26 Brisson (2003) qualifica o Reino de Zeus tambeacutem como um ldquoeacutetat intermeacutediairerdquo (p43) 27 Segundo esse raciociacutenio a siacutentese operada pela Era de Zeus instauraria um tempo linear que interromperia a sucessatildeo ciacuteclica do tempo O mito natildeo parece comprovar esta ideia Ainda assim penso que eacute possiacutevel compreender a Era de Zeus como uma espeacutecie de siacutentese entre nous e anankecirc tal como no Timeu ndash cf 47e-48a - todavia o caraacuteter ciacuteclico do tempo eacute marcadamente destacado tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo 28 Dessa forma Carone (2004) trabalha como se houvesse cinco ciclos coacutesmicos Contudo 269c-d eacute taxativo ao dizer que soacute haacute dois ciclos coacutesmicos ou duas formas de disposiccedilatildeo dos astros Dentro destes ciclos eacute que pode haver mais de uma eacutepoca coacutesmica Assim julgo indispensaacutevel manter a definiccedilatildeo e a distinccedilatildeo de ciclo e eacutepoca coacutesmica feita por Brisson (2000) Natildeo penso que seja uacutetil considerar a criaccedilatildeo
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Cronos atraveacutes de uma transiccedilatildeo entre o primeira eacutepoca reversa e a Era de Cronos e
natildeo a continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo da primeira eacutepoca reversa29
-II-
Este breve debate bibliograacutefico eacute suficiente para contextualizar minha interpretaccedilatildeo
do mito Interpretaccedilatildeo esta que segue em linhas gerais Brisson e Carone embora eu
discorde em pontos importantes como na quantidade de ciclos e eacutepocas coacutesmicas
descritas jaacute que a meu ver haacute dois ciclos e quatro eacutepocas coacutesmicas O mito entatildeo situa-
se dentro do diaacutelogo logo apoacutes as sucessivas divisotildees conceituais que permeiam toda a
primeira parte do diaacutelogo Estas divisotildees que tecircm como escopo identificar o que seria o
poliacutetico chega a conclusatildeo provisoacuteria de que o poliacutetico seria um pastor de homens Ora
o mito vem mostrar justamente que esta definiccedilatildeo se enquadraria antes aos deuses da
Era de Cronos que tutelam os homens como pastores Portanto natildeo faz sentido uma
definiccedilatildeo do poliacutetico se esta natildeo corresponde agrave realidade da temporalidade humana
atual
Eacute preciso portanto seguir um outro caminho Este outro caminho ocupa a terceira
parte do diaacutelogo numa tentativa de definir um certo paradigma do poliacutetico que atuaria
em torno da constituiccedilatildeo correta Sendo assim para expor minha visatildeo do relato do
Estrangeiro eu dividi para fins didaacuteticos o relato do mito em sete partes as quais
seguem
do universo pelo deus se eacute que algo assim estaacute explicitamente descrito no texto como uma eacutepoca coacutesmica em si Todavia eacute importante a distinccedilatildeo forjada por Carone entre a primeira e a segunda eacutepoca reversa como eacutepocas distintas superando a hesitaccedilatildeo de Brisson 29 A leitura da autora eacute de fato tentadora porque resolveria duas dificuldades de interpretaccedilatildeo associadas a esta passagem De um lado faria sentido a atuaccedilatildeo do deus em 271c 2 por tratar-se da eacutepoca de Cronos que de outro modo permanece obscuro jaacute que se trataria da descriccedilatildeo de periacuteodo reverso logo alheio agrave atuaccedilatildeo divina De outro lado deixaria mais claro o significado de 271c 4-7 O jovem Soacutecrates estaria entatildeo perguntando se a Era de Cronos teria lugar na eacutepoca desta revoluccedilatildeo (271b4 ndash c2) ou na eacutepoca atual O Estrangeiro entatildeo responderia que Cronos teria acontecido na revoluccedilatildeo contida em 271b4 ndash c2 No entanto a hipoacutetese eacute pouco plausiacutevel porque a passagem 271b4 ndash c2 eacute claramente a resposta do Estrangeiro agrave pergunta feita pelo jovem Soacutecrates em 271a 2-3 acerca de como se dava o nascimento e a geraccedilatildeo entre os homens da eacutepoca que estava entatildeo sendo descrita pelo Estrangeiro ou seja a primeira eacutepoca reversa Assim essa passagem natildeo trata da Era de Cronos mas sim da primeira eacutepoca reversa Talvez a presenccedila do deus em 271c 2 queira remeter ao fato de que o deus afasta-se durante o movimento reverso para seu posto de observaccedilatildeo mas permanece com a possibilidade de intervir pontualmente se assim julgar oportuno embora a lei geral seja que a divindade respeite a autonomia do mundo e apenas intervenha quando a desordem corpoacuterea ameace fazer perecer o proacuteprio mundo
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1- Apresentaccedilatildeo e definiccedilatildeo do meacutetodo a ser seguido neste novo relato
O Estrangeiro diz que eacute preciso ldquoencetar desde o iniacutecio uma nova via [ὁδὸν]rdquo (268d
5) A este novo caminho seraacute ldquomisturado uma dose de brincadeira [παιδιὰν]rdquo (268d 8)
atraveacutes de um meacutetodo que natildeo mais dar-se-aacute por sucessivas divisotildees mas sim atraveacutes de
ldquoum mito extenso [microεγάλου microύθου]rdquo (268d 9)
2- Mitos que seratildeo entrelaccedilados dentro do ldquomito extensordquo
Apoacutes ter estabelecido o tipo e o meacutetodo do relato o Estrangeiro conta ao jovem
Soacutecrates trecircs mitos que traratildeo liccedilotildees fundamentais para a continuaccedilatildeo do relato do
Estrangeiro Em 268e-269a eacute apresentado o mito de Atreu e Tiestes de onde retiramos a
primeira informaccedilatildeo cosmoloacutegica do mito a divindade mudou a ordem dos astros para
servir de testemunha a Atreu Assim o ldquoSol nasce hoje no lugar onde antes se deitavardquo
(269a 3) Ainda em 269a o Estrangeiro introduz o segundo mito aquele ldquodo governo
exercido por Cronos [τήν γε βασιλείαν ἣν ἦρξε Κρόνος]rdquo (269a 7) Logo em seguida o
Estrangeiro introduz o terceiro mito que iraacute compor a sua grande narrativa Trata-se ldquodo
nascimento dos homens de antanho gerados da terra e natildeo uns dos outros
[τὸ τοὺς ἔmicroπροσθεν φύεσθαι γηγενεῖς καὶ microὴ ἐξ ἀλλήλων γεννᾶσθαι]rdquo (269b 2-3)
Como interpreta Brisson (2000 175-77) os trecircs elementos miacuteticos apresentados pelo
Estrangeiro introduzem tambeacutem os trecircs aspectos que seratildeo entrelaccedilados na grande
narrativa a partir da histoacuteria de Atreu e Tiestes a dimensatildeo coacutesmica atraveacutes do mito do
governo de Cronos a dimensatildeo poliacutetica a partir do mito dos humanos nascidos da terra
a dimensatildeo antropoloacutegica Assim apoacutes anunciar os trecircs mitos o Estrangeiro afirma que
ldquotodos esses acontecimentos aleacutem de milhares de outros ainda mais extraordinaacuterios
resultam todos do mesmo estado de coisasrdquo
[Ταῦτα τοίνυν ἔστι microὲν σύmicroπαντα ἐκ ταὐτοῦ πάθους καὶ πρὸς τούτοις ἕτερα microυρία καὶ
τούτων ἔτι θαυmicroαστότερα] (269b 5-6) 30
30 Traduccedilatildeo minha Carmen Soares traduz σύmicroπαντα por ldquotodas essas situaccedilotildeesrdquo e traduz πάθους por ldquoconjunturardquo Logo agrave frente em 269c 1 verte πάθος por ldquocontextosrdquo Situaccedilotildees conjunturas e contextos talvez decircem a ideia de algo que eacute de alguma forma apenas devido agraves circunstacircncias de um dado momento No entanto aquilo que o Estrangeiro estaacute comeccedilando a estabelecer eacute uma espeacutecie de estado de coisas que define a proacutepria forma coacutesmica do universo atraveacutes de movimentos que ora vatildeo no sentido que conhecemos ora no sentido inverso como discutiremos acerca de 269c-269d Nesse sentido prefiro a
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O Estrangeiro continua e daacute-nos uma informaccedilatildeo que contribuiraacute para entendermos a
inserccedilatildeo do mito dentro do conjunto do diaacutelogo o ldquoestado de coisas [πάθος]rdquo (269c 1)31
que eacute a ldquocausa [αἴτιον]rdquo (269c 1)32 desses acontecimentos ldquointeressa agrave explicaccedilatildeo do que
eacute o rei [τὴν τοῦ βασιλέως ἀπόδειξιν πρέψει]rdquo (269c 2)
3- Regra acerca da disposiccedilatildeo dos astros do movimento do universo e da
participaccedilatildeo divina neste movimento
Logo em seguida o Estrangeiro mostra ao jovem Soacutecrates o estado de coisas do
Universo
Presta atenccedilatildeo O universo umas vezes a divindade guia-o pessoalmente no seu trajecto e acompanha-o no seu movimento circular mas outras afasta-se quando os circuitos atingem o intervalo de tempo apropriado Mas nessa ocasiatildeo por acccedilatildeo do movimento autoacutenomo o cosmos volta novamente agrave posiccedilatildeo contraacuteria uma vez que eacute um ser vivo dotado de inteligecircncia pelo seu arquitecto primordial Todavia este movimento de retrocesso torna-se necessariamente inato pela seguinte razatildeo [Ἀκούοις ἄν τὸ γὰρ πᾶν τόδε τοτὲ microὲν αὐτὸς ὁ θεὸς συmicroποδηγεῖ πορευόmicroενον καὶ συγκυκλεῖ τοτὲ δὲ ἀνῆκεν ὅταν αἱ περίοδοι τοῦ προσήκοντος αὐτῷ microέτρον εἰλήφωσιν ἤδη χρόνου τὸ δὲ πάλιν αὐτόmicroατον εἰς τἀναντία περιάγεται ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν εἰληχὸς ἐκ τοῦ συναρmicroόσαντος αὐτὸ κατ ἀρχάς τοῦτο δὲ αὐτῷ τὸ ἀνάπαλιν ἰέναι διὰ τόδ ἐξ ἀνάγκης ἔmicroφυτον γέγονε] (269c 4 ndash 269d3)
Assim eacute-nos dito que ora eacute o proacuteprio deus que ldquoguia [συmicroποδηγεῖ]rdquo a ldquomarcha
[πορευόμενον]rdquo do universo e preside seu ldquomovimento circular [συγκυκλεῖ]rdquo ora o
deus deixa o universo ir por ele mesmo Quando o universo eacute deixado por si mesmo seu
movimento ldquoautocircnomo [αὐτόmicroατον]rdquo e ldquoinerente [ἔmicroφυτον]rdquo impele-o a girar ldquopara traacutes
[ἀνάπαλιν]rdquo e em ldquosentido inverso[τἀναντία]rdquo33
Esta regra geral do movimento do universo onde o movimento normal do universo
deixado por si mesmo eacute ir no sentido retroacutegrado possui segundo o Estrangeiro uma
razatildeo Razatildeo essa que eacute contada entre 269d 4 e 270a 9 A tese central aqui eacute a mesma
traduccedilatildeo de Luc Brisson em Platon (2003) que traduz σύmicroπαντα por ldquotous ces eacuteveacutenementsrdquo πάθους como tambeacutem πάθος de 269c 1 por ldquoeacutetatrdquo (ldquoraquoEacutetatraquo rend ici paacutethos et deacutesigne la disposition astronomique des mouvements du monderdquo - Brisson (2003 226 n95) Segue nesse mesmo sentido a traduccedilatildeo de Rowe em Plato (1997) σύmicroπαντα eacute traduzido por ldquoall these thingsrdquo e πάθους como tambeacutem πάθος por ldquostate of affairsrdquo 31 Traduccedilatildeo minha 32 Traduccedilatildeo minha 33 Isto eacute em sentido retroacutegrado A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
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44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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toda e qualquer mudanccedila em nossa Era for para pior jaacute que o mundo caminha em
sentido retroacutegrado12
Como observa Carone (2004 107) uma das mensagens fundamentais do diaacutelogo
ldquoPoliacuteticordquo eacute que ldquoone should strive for the ideal constitution or at least try to imitate it as
best one canrdquo13 Ora dentro da visatildeo de mundo platocircnica a busca por imitar a
ldquoconstituiccedilatildeo corretardquo eacute um corolaacuterio semelhante agravequele que diz que devemos imitar
tanto quanto possiacutevel a realidade das Formas A relaccedilatildeo entre Forma e imitaccedilatildeo natildeo
significa para Platatildeo que todo devir eacute um afastamento da Forma e portanto uma
degenerescecircncia14 Nesse sentido o progresso poliacutetico que se percebe em ldquoO Poliacuteticordquo eacute
a aproximaccedilatildeo de um paradigma do que seja o poliacutetico dentro de uma Era marcada pela
autonomia dos seres humanos que precisam governar a si proacuteprios embora natildeo estejam
completamente desprovidos de auxiacutelio divino especialmente no que diz respeito ao
12 Um debate semelhante encontra-se tambeacutem acerca do mito das cinco idades de ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo de Hesiacuteodo Se a descriccedilatildeo de nossa geraccedilatildeo de Ferro eacute concebida como uma crescente e irremediaacutevel degenerescecircncia qual o sentido das admoestaccedilotildees do poeta seja em relaccedilatildeo ao seu irmatildeo Perses seja em relaccedilatildeo aos reis ldquodevoradores de presentesrdquo (Hes Op 263-264) se toda mudanccedila for sempre para pior jaacute que o devir histoacuterico jaacute estaacute preacute-concebido Sobre este problema especiacutefico ver Neschke (1996) e Clay (2003 81-99) A diferenccedila na descriccedilatildeo dos acontecimentos que envolvem a humanidade no mito das cinco idades de Hesiacuteodo e no mito de ldquoO Poliacuteticordquo de Platatildeo eacute que o poeta da Beoacutecia descreve mais pormenorizadamente o que vai ou pode suceder no porvir Sendo assim uma certa leitura literal do verso 180 em diante de ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo faz do devir histoacuterico uma decadecircncia jaacute completamente preacute-determinada tornando fora de sintonia todos os apelos morais do poema Jaacute o mito de ldquoO Poliacuteticordquo por natildeo descrever o porvir de forma detalhada abre a possibilidade de mesmo uma leitura literal do texto reconhecer que natildeo obstante o tempo humano esteja incrustado no tempo ciacuteclico do mundo eacute possiacutevel que em um mesmo ciclo temporal possamos ter acontecimentos que superem qualquer processo de decadecircncia ainda que esta superaccedilatildeo natildeo seja senatildeo provisoacuteria haja vista que em algum momento segundo essa leitura o retorno ciacuteclico do universo dar-se-aacute 13 Cf 297 a-c e 300e-301a 14 Em outros termos natildeo significa que toda mudanccedila eacute para pior ndash jaacute que se afastaria do paradigma que eacute a Forma como pensava Popper (1966 35-36) Em linhas semelhantes agravequelas de Popper segue Fialho (1989-1990 75) ldquoo paradoxo de todo o devir que eacute ao mesmo tempo determinado pela Ideia mas desvirtuaccedilatildeo da Ideiardquo Aqui eacute preciso especificar a relaccedilatildeo entre a Ideia e o devir Dodds (1973 14) explana que ldquoFor Plato all progress consists in aproximation to a pre-existing modelrdquo Isso significa que para Platatildeo o desenvolvimento histoacuterico eacute teleoloacutegico ou seja o devir move-se segundo um fim preacute-traccedilado O fim preacute-estabelecido para Platatildeo eacute justamente a Ideia Entretanto dizer que todo progresso em Platatildeo eacute uma aproximaccedilatildeo de um modelo preacute-existente eacute diferente de afirmar que todo devir eacute desvirtuaccedilatildeo da Ideia Como afirma Taylor (1999 285) para que a uacuteltima tese seja vaacutelida eacute preciso pensar que a Ideia-Forma seja ldquoan independently specifiable good state from the standpoint of which change can be seen as deteriorationrdquo Contudo a Forma tem primazia sobre o mundo natildeo porque eacute um ponto de partida para toda mudanccedila mas sim porque ldquobeing eternal they exist before any particular instance comes to berdquo (idem 285 n 11) Sendo assim Platatildeo deixa em aberto a possibilidade de algo progredir na medida em que se aproxima natildeo se afasta da Ideia Portanto o ponto inicial da mudanccedila natildeo eacute a ideia mas sim algo que era ainda mais afastado da Ideia Eacute sobre isso que insiste contra Popper Taylor (1999 285 n11) ldquoThings which become F [Form] obviously become more like the Form of F not less like it as Poppers account requiresrdquo Ademais todo o destaque de Platatildeo em torno da busca da filosofia eacute o reconhecimento de que o devir pode ser antes uma aproximaccedilatildeo da Ideia do que uma desvirtuaccedilatildeo desta
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controle do movimento coacutesmico O progresso15 entatildeo tem uma abrangecircncia limitada agrave
eacutepoca ou ao ciclo em que vivemos jaacute que a inserccedilatildeo da temporalidade humana dentro
do tempo ciacuteclico do universo natildeo permite um progresso ilimitado e realmente
definitivo16
Diante das dificuldades de interpretaccedilatildeo que a leitura tradicional do mito de ldquoO
Poliacuteticordquo oferece alguns estudiosos tecircm contestado tal interpretaccedilatildeo em nome de outras
grades de leituras Luc Brisson e Gabriela Roxana Carone estatildeo entre os pesquisadores
principais embora Christopher Rowe tambeacutem divirja da interpretaccedilatildeo tradicional em
alguns pontos importantes Assim Rowe (1997 313-4 n31) em sua traduccedilatildeo para o
inglecircs de ldquoO Poliacuteticordquo defende que o Estrangeiro fala de duas Eras que giram ambas
no sentido que estamos habituados ou seja do leste para o oeste17 sendo uma a Era de
Cronos sob o controle do deus e a outra a Era Zeus onde o mundo eacute deixado por si
15 Natildeo trabalho aqui com o termo progresso no sentido exato do que foi desenvolvido pelo pensamento Iluminista ateacute porque natildeo haacute um uacutenico sentido para progresso oriundo do Iluminismo Nesse sentido discordo da metodologia usada por Den Boer (1977) que consiste em escolher uma versatildeo do ideaacuterio de progresso do Iluminismo e sob um truiacutesmo buscar um ideaacuterio correspondente no pensamento grego Ora eacute oacutebvio que diante de uma metodologia tatildeo riacutegida os gregos natildeo possuiriam qualquer ideia de progresso Em suma prefiro estudar uma sociedade antiga de forma menos inflexiacutevel e com conceitos mais amplos que alcancem formas distintas da nossa de pensar a sociedade Nesse sentido eu prefiro definiccedilotildees de progresso utilizaacuteveis para o mundo antigo como a de Carr (1996 126) ldquoum pressuposto da histoacuteria de que o homem eacute capaz de tirar proveito (natildeo que ele necessariamente o faccedila) da experiecircncia de seus antecessores e que o progresso na histoacuteria diferentemente da evoluccedilatildeo na natureza baseia-se na transmissatildeo de bens adquiridosrdquo ou como a definiccedilatildeo de Novara (1982 14-5) ldquoNous preacutecisons donc que nous nous attachons aux textes latins ougrave sexprime lideacutee dune ameacutelioration progressive mdash ce qui ne signifie pas neacutecessairement ininterrompue mais poursuivie mdash due tout ou partie au travail humain mdash ce qui nexclut donc pas a priori une transcendance de lhistoire des hommes mdash au cours dun temps assez long pour constituer une histoire quil sagisse de lhistoire de la civilisation et de lhumaniteacute de lhistoire dun peuple ou de celle dune vierdquo 16 Assim os dons divinos oferecidos aos homens em 274c-d marcam um progresso face agrave situaccedilatildeo inicial da Era de Zeus Eacute esse o sentido a meu ver do que Dodds (1973 14) qualificou como ldquotemporary and limited progress between catastrophesrdquo em Platatildeo Digno de nota eacute que no movimento retroacutegrado propriamente dito natildeo haacute qualquer possibilidade de progresso No entanto o final do movimento de regressatildeo permite ao mundo entrar novamente em contato com o demiurgo e reaver o nous algo que poderia ser impossiacutevel se o tempo fosse linear e o mundo se distanciasse continuamente do demiurgo sem garantia de retorno Esse eacute um dos motivos pelo qual o tempo tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo eacute ciacuteclico Mesmo que interpretemos de forma literal ou natildeo a Era de Zeus como uma siacutentese do nous divino e da anankeacute corpoacuterea eacute forccediloso admitir que a Era de Zeus estaacute fadada a acabar mesmo que haja progresso dentro dela tendo em vista os dois ciclos baacutesicos do universo que se alternam (cf 269c-d 270b 7-8) segundo uma lei que deriva a mudanccedila do micro-cosmos a partir do macro-cosmos fazendo com que a experiecircncia proacutepria da historicidade humana se esvazie diante de um mundo que ldquoimitamos e seguimos ao longo de todos os temposrdquo (274d 6-7) 17 Nesse ponto Rowe estaacute de acordo com a minha interpretaccedilatildeo bem como com a de Brisson e de Carone que falaremos em seguida segundo a qual Cronos e Zeus partilham do mesmo sentido de movimento coacutesmico
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mesmo18 Estas duas Eras satildeo separadas por um periacuteodo relativamente breve de rotaccedilatildeo
na direccedilatildeo reversa (sol nascendo no oeste)19 Por fim as pessoas nascidas da terra
pertencentes a este periacuteodo de direccedilatildeo reversa satildeo distintas das pessoas nascidas da terra
na Era de Cronos20
Luc Brisson por sua vez afasta-se ainda mais da interpretaccedilatildeo tradicional Para o
pesquisador francecircs haacute dois ciclos coacutesmicos (movimento coacutesmico guiado ou natildeo pelo
deus) que abarcam trecircs eacutepocas coacutesmicas21 Reino de Cronos mundo deixado por si
mesmo (272d6 ndash 273e4) e Reino de Zeus22 O Reino de Cronos possui o mesmo sentido
de movimento dos astros que o Reino de Zeus sentido esse de acordo com o que
estamos habituados - leste para oeste - (Brisson 1998 491)23 Aleacutem disso no Reino de
Cronos o envelhecimento dos seres vivos daacute-se de jovens para velhos (idem 2000
182)24 A semelhanccedila que haacute entre o Reino de Cronos e o primeiro movimento reverso eacute
apenas ao niacutevel do modo de geraccedilatildeo (em ambos periacuteodos os homens nascem da terra e
natildeo de ciclo coacutesmico) O Reino de Cronos estaacute na direccedilatildeo oposta ao movimento reverso
anterior (ibidem 2000 176) O Reino de Zeus estaacute no mesmo ciclo que Cronos mas em
eacutepoca distinta Na nossa eacutepoca a divindade ocupa-se da marcha do universo mas as
divindades secundaacuterias saiacuteram de seus postos25 O Reino de Zeus eacute visto por Brisson
18 Nesse toacutepico Rowe segue a visatildeo tradicional ao afirmar que os homens estatildeo desprovidos dos deuses na Era de Zeus Fica contudo sem explicaccedilatildeo a causa que faz com que o mundo deixado por si mesmo (Zeus) gire no mesmo sentido do mundo guiado pelo deus (Cronos) Essa eacute a meu ver a principal falha da interpretaccedilatildeo de Rowe jaacute que o mito eacute expliacutecito em afirmar que o movimento inerente ao mundo deixado por si mesmo eacute retroacutegrado (cf 269d 2-3) 19 Rowe portanto segue a visatildeo de dois ciclos mas traz uma novidade em relaccedilatildeo agrave leitura tradicional ao reconhecer a existecircncia de um periacuteodo reverso distinto de Cronos e de Zeus No entanto a afirmaccedilatildeo de Rowe de que se trata de um periacuteodo relativamente breve natildeo me parece ter fundamento no texto original A passagem mais expliacutecita acerca desse toacutepico 270a 2-8 dificilmente pode ser lida conforme a tese de Rowe Assim em 270a 6-8 o Estrangeiro diz que o mundo deixado por si mesmo ldquocaminha em sentido inverso durante milhares de periacuteodos pois enorme e equilibrado como eacute gira apoiado num eixo muito pequeno [ὥστε ἀνάπαλιν πορεύεσθαι πολλὰς περιόδων microυριάδας διὰ δὴ τὸ microέγιστον ὂν καὶ ἰσορροπώτατον ἐπὶ microικροτάτου βαῖνον ποδὸς ἰέναι]rdquo 20 Contra portanto a leitura tradicional que como vimos tende a associar as pessoas nascidas da terra da eacutepoca reversa com aquelas pessoas nascidas da terra da eacutepoca de Cronos 21 Assim Brisson (2000 170) define ciclo ldquojacute entends par laquocycleraquo une peacuteriode dacuteun nombre deacutetermineacute dacuteaneacutees agrave la fin de laquelle certains pheacutenomegravenes astronomiques qui se produisent dans le mecircme ordre se reacutepegravetentrdquo e eacutepoca coacutesmica ldquoune laquoeacutepoqueraquo est une peacuteriode historique deacutetermineacutee par de eacuteveacutenements importants caracteacuteriseacutes par un eacutetat de choses particulier (idem 173) 22 Portanto o periacuteodo reverso que Rowe acusava como algo distinto de Cronos e Zeus eacute tido por Brisson como uma eacutepoca agrave parte 23 Nesse quesito o pesquisador francecircs segue Rowe contra a leitura tradicional 24 Opiniatildeo portanto oposta agravequela da interpretaccedilatildeo tradicional 25 Brisson (2000 173 184) = BrissonPradeau (2003 44) em Platon (2003) No entanto a traduccedilatildeo de 271d 3-6 e a nota referente a este passo feita por BrissonPradeau (2003) diz que os deuses secundaacuterios
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como uma siacutentese dos periacuteodos anteriormente mencionados em que haacute autonomia dos
homens para governarem a si proacuteprios poreacutem haacute tambeacutem o controle coacutesmico da
divindade (idem 2000 174) 26 Esta siacutentese seria na verdade uma superaccedilatildeo ou mesmo
negaccedilatildeo das eacutepocas reversas e de Cronos em favor de uma siacutentese da necessidade e do
acaso - Reino de Zeus O caraacuteter definitivo ou natildeo desta siacutentese parece-me pouco claro
para o autor jaacute que em um texto ele reconhece que pode vir um novo ciclo reverso
depois de Zeus (ibidem 2000 186) enquanto em outro texto ele afirma que o Reino de
Zeus ldquoinstaure alors et semble mettre un terme agrave lacutehistoire des bouleversements
cosmiques est celui que nous connaissons encore aujourdacutehui le monde est
deacutefinitivement soustrait par la diviniteacute au risque de la corruptionrdquo (ibidem 2003 44)27
Ainda para Brisson entre o Reino de Cronos e de Zeus haacute um periacuteodo reverso que
ele hesita em identificar como diferente do primeiro movimento reverso descrito antes
de Cronos De toda forma o autor sustenta que ambos os movimentos reversos tecircm
sentido oposto ao Reino de Cronos (ibidem 2000 174)
Jaacute Carone (2004) segue substancialmente a interpretaccedilatildeo de Luc Brisson Assim
Zeus e Cronos estatildeo no mesmo sentido coacutesmico que eacute oposto agraves duas eacutepocas reversas
descritas Em Cronos a geraccedilatildeo cresce de jovem para velho em Zeus haacute o cuidado da
divindade sob o universo embora os deuses tutelares tenham deixado de governar as
regiotildees do mundo A Era de Zeus seria uma siacutentese das eacutepocas anteriores em que haacute
participaccedilatildeo ativa tanto do deus como dos homens As diferenccedilas entre os dois
estudiosos extraiacutedas a partir da bibliografia consultada satildeo basicamente as seguintes
Carone (2004 100 n41) percebe cinco ldquocosmic cyclesrdquo ao inveacutes de trecircs eacutepocas dentro
de dois ciclos como pensa Brisson sendo estes ciclos coacutesmicos a criaccedilatildeo do universo
pelo deus a ordem reversa a idade de Cronos a segunda ordem reversa a idade de
Zeus28 Carone (2004 97-8) interpreta 271b4 ndash c2 como se fosse jaacute o relato da Era de
tambeacutem satildeo atuantes na eacutepoca de Zeus A presenccedila da divindade sob Zeus mesmo que ao niacutevel da conduccedilatildeo do universo eacute logo uma interpretaccedilatildeo oposta agrave leitura tradicional 26 Brisson (2003) qualifica o Reino de Zeus tambeacutem como um ldquoeacutetat intermeacutediairerdquo (p43) 27 Segundo esse raciociacutenio a siacutentese operada pela Era de Zeus instauraria um tempo linear que interromperia a sucessatildeo ciacuteclica do tempo O mito natildeo parece comprovar esta ideia Ainda assim penso que eacute possiacutevel compreender a Era de Zeus como uma espeacutecie de siacutentese entre nous e anankecirc tal como no Timeu ndash cf 47e-48a - todavia o caraacuteter ciacuteclico do tempo eacute marcadamente destacado tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo 28 Dessa forma Carone (2004) trabalha como se houvesse cinco ciclos coacutesmicos Contudo 269c-d eacute taxativo ao dizer que soacute haacute dois ciclos coacutesmicos ou duas formas de disposiccedilatildeo dos astros Dentro destes ciclos eacute que pode haver mais de uma eacutepoca coacutesmica Assim julgo indispensaacutevel manter a definiccedilatildeo e a distinccedilatildeo de ciclo e eacutepoca coacutesmica feita por Brisson (2000) Natildeo penso que seja uacutetil considerar a criaccedilatildeo
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Cronos atraveacutes de uma transiccedilatildeo entre o primeira eacutepoca reversa e a Era de Cronos e
natildeo a continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo da primeira eacutepoca reversa29
-II-
Este breve debate bibliograacutefico eacute suficiente para contextualizar minha interpretaccedilatildeo
do mito Interpretaccedilatildeo esta que segue em linhas gerais Brisson e Carone embora eu
discorde em pontos importantes como na quantidade de ciclos e eacutepocas coacutesmicas
descritas jaacute que a meu ver haacute dois ciclos e quatro eacutepocas coacutesmicas O mito entatildeo situa-
se dentro do diaacutelogo logo apoacutes as sucessivas divisotildees conceituais que permeiam toda a
primeira parte do diaacutelogo Estas divisotildees que tecircm como escopo identificar o que seria o
poliacutetico chega a conclusatildeo provisoacuteria de que o poliacutetico seria um pastor de homens Ora
o mito vem mostrar justamente que esta definiccedilatildeo se enquadraria antes aos deuses da
Era de Cronos que tutelam os homens como pastores Portanto natildeo faz sentido uma
definiccedilatildeo do poliacutetico se esta natildeo corresponde agrave realidade da temporalidade humana
atual
Eacute preciso portanto seguir um outro caminho Este outro caminho ocupa a terceira
parte do diaacutelogo numa tentativa de definir um certo paradigma do poliacutetico que atuaria
em torno da constituiccedilatildeo correta Sendo assim para expor minha visatildeo do relato do
Estrangeiro eu dividi para fins didaacuteticos o relato do mito em sete partes as quais
seguem
do universo pelo deus se eacute que algo assim estaacute explicitamente descrito no texto como uma eacutepoca coacutesmica em si Todavia eacute importante a distinccedilatildeo forjada por Carone entre a primeira e a segunda eacutepoca reversa como eacutepocas distintas superando a hesitaccedilatildeo de Brisson 29 A leitura da autora eacute de fato tentadora porque resolveria duas dificuldades de interpretaccedilatildeo associadas a esta passagem De um lado faria sentido a atuaccedilatildeo do deus em 271c 2 por tratar-se da eacutepoca de Cronos que de outro modo permanece obscuro jaacute que se trataria da descriccedilatildeo de periacuteodo reverso logo alheio agrave atuaccedilatildeo divina De outro lado deixaria mais claro o significado de 271c 4-7 O jovem Soacutecrates estaria entatildeo perguntando se a Era de Cronos teria lugar na eacutepoca desta revoluccedilatildeo (271b4 ndash c2) ou na eacutepoca atual O Estrangeiro entatildeo responderia que Cronos teria acontecido na revoluccedilatildeo contida em 271b4 ndash c2 No entanto a hipoacutetese eacute pouco plausiacutevel porque a passagem 271b4 ndash c2 eacute claramente a resposta do Estrangeiro agrave pergunta feita pelo jovem Soacutecrates em 271a 2-3 acerca de como se dava o nascimento e a geraccedilatildeo entre os homens da eacutepoca que estava entatildeo sendo descrita pelo Estrangeiro ou seja a primeira eacutepoca reversa Assim essa passagem natildeo trata da Era de Cronos mas sim da primeira eacutepoca reversa Talvez a presenccedila do deus em 271c 2 queira remeter ao fato de que o deus afasta-se durante o movimento reverso para seu posto de observaccedilatildeo mas permanece com a possibilidade de intervir pontualmente se assim julgar oportuno embora a lei geral seja que a divindade respeite a autonomia do mundo e apenas intervenha quando a desordem corpoacuterea ameace fazer perecer o proacuteprio mundo
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1- Apresentaccedilatildeo e definiccedilatildeo do meacutetodo a ser seguido neste novo relato
O Estrangeiro diz que eacute preciso ldquoencetar desde o iniacutecio uma nova via [ὁδὸν]rdquo (268d
5) A este novo caminho seraacute ldquomisturado uma dose de brincadeira [παιδιὰν]rdquo (268d 8)
atraveacutes de um meacutetodo que natildeo mais dar-se-aacute por sucessivas divisotildees mas sim atraveacutes de
ldquoum mito extenso [microεγάλου microύθου]rdquo (268d 9)
2- Mitos que seratildeo entrelaccedilados dentro do ldquomito extensordquo
Apoacutes ter estabelecido o tipo e o meacutetodo do relato o Estrangeiro conta ao jovem
Soacutecrates trecircs mitos que traratildeo liccedilotildees fundamentais para a continuaccedilatildeo do relato do
Estrangeiro Em 268e-269a eacute apresentado o mito de Atreu e Tiestes de onde retiramos a
primeira informaccedilatildeo cosmoloacutegica do mito a divindade mudou a ordem dos astros para
servir de testemunha a Atreu Assim o ldquoSol nasce hoje no lugar onde antes se deitavardquo
(269a 3) Ainda em 269a o Estrangeiro introduz o segundo mito aquele ldquodo governo
exercido por Cronos [τήν γε βασιλείαν ἣν ἦρξε Κρόνος]rdquo (269a 7) Logo em seguida o
Estrangeiro introduz o terceiro mito que iraacute compor a sua grande narrativa Trata-se ldquodo
nascimento dos homens de antanho gerados da terra e natildeo uns dos outros
[τὸ τοὺς ἔmicroπροσθεν φύεσθαι γηγενεῖς καὶ microὴ ἐξ ἀλλήλων γεννᾶσθαι]rdquo (269b 2-3)
Como interpreta Brisson (2000 175-77) os trecircs elementos miacuteticos apresentados pelo
Estrangeiro introduzem tambeacutem os trecircs aspectos que seratildeo entrelaccedilados na grande
narrativa a partir da histoacuteria de Atreu e Tiestes a dimensatildeo coacutesmica atraveacutes do mito do
governo de Cronos a dimensatildeo poliacutetica a partir do mito dos humanos nascidos da terra
a dimensatildeo antropoloacutegica Assim apoacutes anunciar os trecircs mitos o Estrangeiro afirma que
ldquotodos esses acontecimentos aleacutem de milhares de outros ainda mais extraordinaacuterios
resultam todos do mesmo estado de coisasrdquo
[Ταῦτα τοίνυν ἔστι microὲν σύmicroπαντα ἐκ ταὐτοῦ πάθους καὶ πρὸς τούτοις ἕτερα microυρία καὶ
τούτων ἔτι θαυmicroαστότερα] (269b 5-6) 30
30 Traduccedilatildeo minha Carmen Soares traduz σύmicroπαντα por ldquotodas essas situaccedilotildeesrdquo e traduz πάθους por ldquoconjunturardquo Logo agrave frente em 269c 1 verte πάθος por ldquocontextosrdquo Situaccedilotildees conjunturas e contextos talvez decircem a ideia de algo que eacute de alguma forma apenas devido agraves circunstacircncias de um dado momento No entanto aquilo que o Estrangeiro estaacute comeccedilando a estabelecer eacute uma espeacutecie de estado de coisas que define a proacutepria forma coacutesmica do universo atraveacutes de movimentos que ora vatildeo no sentido que conhecemos ora no sentido inverso como discutiremos acerca de 269c-269d Nesse sentido prefiro a
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O Estrangeiro continua e daacute-nos uma informaccedilatildeo que contribuiraacute para entendermos a
inserccedilatildeo do mito dentro do conjunto do diaacutelogo o ldquoestado de coisas [πάθος]rdquo (269c 1)31
que eacute a ldquocausa [αἴτιον]rdquo (269c 1)32 desses acontecimentos ldquointeressa agrave explicaccedilatildeo do que
eacute o rei [τὴν τοῦ βασιλέως ἀπόδειξιν πρέψει]rdquo (269c 2)
3- Regra acerca da disposiccedilatildeo dos astros do movimento do universo e da
participaccedilatildeo divina neste movimento
Logo em seguida o Estrangeiro mostra ao jovem Soacutecrates o estado de coisas do
Universo
Presta atenccedilatildeo O universo umas vezes a divindade guia-o pessoalmente no seu trajecto e acompanha-o no seu movimento circular mas outras afasta-se quando os circuitos atingem o intervalo de tempo apropriado Mas nessa ocasiatildeo por acccedilatildeo do movimento autoacutenomo o cosmos volta novamente agrave posiccedilatildeo contraacuteria uma vez que eacute um ser vivo dotado de inteligecircncia pelo seu arquitecto primordial Todavia este movimento de retrocesso torna-se necessariamente inato pela seguinte razatildeo [Ἀκούοις ἄν τὸ γὰρ πᾶν τόδε τοτὲ microὲν αὐτὸς ὁ θεὸς συmicroποδηγεῖ πορευόmicroενον καὶ συγκυκλεῖ τοτὲ δὲ ἀνῆκεν ὅταν αἱ περίοδοι τοῦ προσήκοντος αὐτῷ microέτρον εἰλήφωσιν ἤδη χρόνου τὸ δὲ πάλιν αὐτόmicroατον εἰς τἀναντία περιάγεται ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν εἰληχὸς ἐκ τοῦ συναρmicroόσαντος αὐτὸ κατ ἀρχάς τοῦτο δὲ αὐτῷ τὸ ἀνάπαλιν ἰέναι διὰ τόδ ἐξ ἀνάγκης ἔmicroφυτον γέγονε] (269c 4 ndash 269d3)
Assim eacute-nos dito que ora eacute o proacuteprio deus que ldquoguia [συmicroποδηγεῖ]rdquo a ldquomarcha
[πορευόμενον]rdquo do universo e preside seu ldquomovimento circular [συγκυκλεῖ]rdquo ora o
deus deixa o universo ir por ele mesmo Quando o universo eacute deixado por si mesmo seu
movimento ldquoautocircnomo [αὐτόmicroατον]rdquo e ldquoinerente [ἔmicroφυτον]rdquo impele-o a girar ldquopara traacutes
[ἀνάπαλιν]rdquo e em ldquosentido inverso[τἀναντία]rdquo33
Esta regra geral do movimento do universo onde o movimento normal do universo
deixado por si mesmo eacute ir no sentido retroacutegrado possui segundo o Estrangeiro uma
razatildeo Razatildeo essa que eacute contada entre 269d 4 e 270a 9 A tese central aqui eacute a mesma
traduccedilatildeo de Luc Brisson em Platon (2003) que traduz σύmicroπαντα por ldquotous ces eacuteveacutenementsrdquo πάθους como tambeacutem πάθος de 269c 1 por ldquoeacutetatrdquo (ldquoraquoEacutetatraquo rend ici paacutethos et deacutesigne la disposition astronomique des mouvements du monderdquo - Brisson (2003 226 n95) Segue nesse mesmo sentido a traduccedilatildeo de Rowe em Plato (1997) σύmicroπαντα eacute traduzido por ldquoall these thingsrdquo e πάθους como tambeacutem πάθος por ldquostate of affairsrdquo 31 Traduccedilatildeo minha 32 Traduccedilatildeo minha 33 Isto eacute em sentido retroacutegrado A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
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44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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controle do movimento coacutesmico O progresso15 entatildeo tem uma abrangecircncia limitada agrave
eacutepoca ou ao ciclo em que vivemos jaacute que a inserccedilatildeo da temporalidade humana dentro
do tempo ciacuteclico do universo natildeo permite um progresso ilimitado e realmente
definitivo16
Diante das dificuldades de interpretaccedilatildeo que a leitura tradicional do mito de ldquoO
Poliacuteticordquo oferece alguns estudiosos tecircm contestado tal interpretaccedilatildeo em nome de outras
grades de leituras Luc Brisson e Gabriela Roxana Carone estatildeo entre os pesquisadores
principais embora Christopher Rowe tambeacutem divirja da interpretaccedilatildeo tradicional em
alguns pontos importantes Assim Rowe (1997 313-4 n31) em sua traduccedilatildeo para o
inglecircs de ldquoO Poliacuteticordquo defende que o Estrangeiro fala de duas Eras que giram ambas
no sentido que estamos habituados ou seja do leste para o oeste17 sendo uma a Era de
Cronos sob o controle do deus e a outra a Era Zeus onde o mundo eacute deixado por si
15 Natildeo trabalho aqui com o termo progresso no sentido exato do que foi desenvolvido pelo pensamento Iluminista ateacute porque natildeo haacute um uacutenico sentido para progresso oriundo do Iluminismo Nesse sentido discordo da metodologia usada por Den Boer (1977) que consiste em escolher uma versatildeo do ideaacuterio de progresso do Iluminismo e sob um truiacutesmo buscar um ideaacuterio correspondente no pensamento grego Ora eacute oacutebvio que diante de uma metodologia tatildeo riacutegida os gregos natildeo possuiriam qualquer ideia de progresso Em suma prefiro estudar uma sociedade antiga de forma menos inflexiacutevel e com conceitos mais amplos que alcancem formas distintas da nossa de pensar a sociedade Nesse sentido eu prefiro definiccedilotildees de progresso utilizaacuteveis para o mundo antigo como a de Carr (1996 126) ldquoum pressuposto da histoacuteria de que o homem eacute capaz de tirar proveito (natildeo que ele necessariamente o faccedila) da experiecircncia de seus antecessores e que o progresso na histoacuteria diferentemente da evoluccedilatildeo na natureza baseia-se na transmissatildeo de bens adquiridosrdquo ou como a definiccedilatildeo de Novara (1982 14-5) ldquoNous preacutecisons donc que nous nous attachons aux textes latins ougrave sexprime lideacutee dune ameacutelioration progressive mdash ce qui ne signifie pas neacutecessairement ininterrompue mais poursuivie mdash due tout ou partie au travail humain mdash ce qui nexclut donc pas a priori une transcendance de lhistoire des hommes mdash au cours dun temps assez long pour constituer une histoire quil sagisse de lhistoire de la civilisation et de lhumaniteacute de lhistoire dun peuple ou de celle dune vierdquo 16 Assim os dons divinos oferecidos aos homens em 274c-d marcam um progresso face agrave situaccedilatildeo inicial da Era de Zeus Eacute esse o sentido a meu ver do que Dodds (1973 14) qualificou como ldquotemporary and limited progress between catastrophesrdquo em Platatildeo Digno de nota eacute que no movimento retroacutegrado propriamente dito natildeo haacute qualquer possibilidade de progresso No entanto o final do movimento de regressatildeo permite ao mundo entrar novamente em contato com o demiurgo e reaver o nous algo que poderia ser impossiacutevel se o tempo fosse linear e o mundo se distanciasse continuamente do demiurgo sem garantia de retorno Esse eacute um dos motivos pelo qual o tempo tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo eacute ciacuteclico Mesmo que interpretemos de forma literal ou natildeo a Era de Zeus como uma siacutentese do nous divino e da anankeacute corpoacuterea eacute forccediloso admitir que a Era de Zeus estaacute fadada a acabar mesmo que haja progresso dentro dela tendo em vista os dois ciclos baacutesicos do universo que se alternam (cf 269c-d 270b 7-8) segundo uma lei que deriva a mudanccedila do micro-cosmos a partir do macro-cosmos fazendo com que a experiecircncia proacutepria da historicidade humana se esvazie diante de um mundo que ldquoimitamos e seguimos ao longo de todos os temposrdquo (274d 6-7) 17 Nesse ponto Rowe estaacute de acordo com a minha interpretaccedilatildeo bem como com a de Brisson e de Carone que falaremos em seguida segundo a qual Cronos e Zeus partilham do mesmo sentido de movimento coacutesmico
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mesmo18 Estas duas Eras satildeo separadas por um periacuteodo relativamente breve de rotaccedilatildeo
na direccedilatildeo reversa (sol nascendo no oeste)19 Por fim as pessoas nascidas da terra
pertencentes a este periacuteodo de direccedilatildeo reversa satildeo distintas das pessoas nascidas da terra
na Era de Cronos20
Luc Brisson por sua vez afasta-se ainda mais da interpretaccedilatildeo tradicional Para o
pesquisador francecircs haacute dois ciclos coacutesmicos (movimento coacutesmico guiado ou natildeo pelo
deus) que abarcam trecircs eacutepocas coacutesmicas21 Reino de Cronos mundo deixado por si
mesmo (272d6 ndash 273e4) e Reino de Zeus22 O Reino de Cronos possui o mesmo sentido
de movimento dos astros que o Reino de Zeus sentido esse de acordo com o que
estamos habituados - leste para oeste - (Brisson 1998 491)23 Aleacutem disso no Reino de
Cronos o envelhecimento dos seres vivos daacute-se de jovens para velhos (idem 2000
182)24 A semelhanccedila que haacute entre o Reino de Cronos e o primeiro movimento reverso eacute
apenas ao niacutevel do modo de geraccedilatildeo (em ambos periacuteodos os homens nascem da terra e
natildeo de ciclo coacutesmico) O Reino de Cronos estaacute na direccedilatildeo oposta ao movimento reverso
anterior (ibidem 2000 176) O Reino de Zeus estaacute no mesmo ciclo que Cronos mas em
eacutepoca distinta Na nossa eacutepoca a divindade ocupa-se da marcha do universo mas as
divindades secundaacuterias saiacuteram de seus postos25 O Reino de Zeus eacute visto por Brisson
18 Nesse toacutepico Rowe segue a visatildeo tradicional ao afirmar que os homens estatildeo desprovidos dos deuses na Era de Zeus Fica contudo sem explicaccedilatildeo a causa que faz com que o mundo deixado por si mesmo (Zeus) gire no mesmo sentido do mundo guiado pelo deus (Cronos) Essa eacute a meu ver a principal falha da interpretaccedilatildeo de Rowe jaacute que o mito eacute expliacutecito em afirmar que o movimento inerente ao mundo deixado por si mesmo eacute retroacutegrado (cf 269d 2-3) 19 Rowe portanto segue a visatildeo de dois ciclos mas traz uma novidade em relaccedilatildeo agrave leitura tradicional ao reconhecer a existecircncia de um periacuteodo reverso distinto de Cronos e de Zeus No entanto a afirmaccedilatildeo de Rowe de que se trata de um periacuteodo relativamente breve natildeo me parece ter fundamento no texto original A passagem mais expliacutecita acerca desse toacutepico 270a 2-8 dificilmente pode ser lida conforme a tese de Rowe Assim em 270a 6-8 o Estrangeiro diz que o mundo deixado por si mesmo ldquocaminha em sentido inverso durante milhares de periacuteodos pois enorme e equilibrado como eacute gira apoiado num eixo muito pequeno [ὥστε ἀνάπαλιν πορεύεσθαι πολλὰς περιόδων microυριάδας διὰ δὴ τὸ microέγιστον ὂν καὶ ἰσορροπώτατον ἐπὶ microικροτάτου βαῖνον ποδὸς ἰέναι]rdquo 20 Contra portanto a leitura tradicional que como vimos tende a associar as pessoas nascidas da terra da eacutepoca reversa com aquelas pessoas nascidas da terra da eacutepoca de Cronos 21 Assim Brisson (2000 170) define ciclo ldquojacute entends par laquocycleraquo une peacuteriode dacuteun nombre deacutetermineacute dacuteaneacutees agrave la fin de laquelle certains pheacutenomegravenes astronomiques qui se produisent dans le mecircme ordre se reacutepegravetentrdquo e eacutepoca coacutesmica ldquoune laquoeacutepoqueraquo est une peacuteriode historique deacutetermineacutee par de eacuteveacutenements importants caracteacuteriseacutes par un eacutetat de choses particulier (idem 173) 22 Portanto o periacuteodo reverso que Rowe acusava como algo distinto de Cronos e Zeus eacute tido por Brisson como uma eacutepoca agrave parte 23 Nesse quesito o pesquisador francecircs segue Rowe contra a leitura tradicional 24 Opiniatildeo portanto oposta agravequela da interpretaccedilatildeo tradicional 25 Brisson (2000 173 184) = BrissonPradeau (2003 44) em Platon (2003) No entanto a traduccedilatildeo de 271d 3-6 e a nota referente a este passo feita por BrissonPradeau (2003) diz que os deuses secundaacuterios
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como uma siacutentese dos periacuteodos anteriormente mencionados em que haacute autonomia dos
homens para governarem a si proacuteprios poreacutem haacute tambeacutem o controle coacutesmico da
divindade (idem 2000 174) 26 Esta siacutentese seria na verdade uma superaccedilatildeo ou mesmo
negaccedilatildeo das eacutepocas reversas e de Cronos em favor de uma siacutentese da necessidade e do
acaso - Reino de Zeus O caraacuteter definitivo ou natildeo desta siacutentese parece-me pouco claro
para o autor jaacute que em um texto ele reconhece que pode vir um novo ciclo reverso
depois de Zeus (ibidem 2000 186) enquanto em outro texto ele afirma que o Reino de
Zeus ldquoinstaure alors et semble mettre un terme agrave lacutehistoire des bouleversements
cosmiques est celui que nous connaissons encore aujourdacutehui le monde est
deacutefinitivement soustrait par la diviniteacute au risque de la corruptionrdquo (ibidem 2003 44)27
Ainda para Brisson entre o Reino de Cronos e de Zeus haacute um periacuteodo reverso que
ele hesita em identificar como diferente do primeiro movimento reverso descrito antes
de Cronos De toda forma o autor sustenta que ambos os movimentos reversos tecircm
sentido oposto ao Reino de Cronos (ibidem 2000 174)
Jaacute Carone (2004) segue substancialmente a interpretaccedilatildeo de Luc Brisson Assim
Zeus e Cronos estatildeo no mesmo sentido coacutesmico que eacute oposto agraves duas eacutepocas reversas
descritas Em Cronos a geraccedilatildeo cresce de jovem para velho em Zeus haacute o cuidado da
divindade sob o universo embora os deuses tutelares tenham deixado de governar as
regiotildees do mundo A Era de Zeus seria uma siacutentese das eacutepocas anteriores em que haacute
participaccedilatildeo ativa tanto do deus como dos homens As diferenccedilas entre os dois
estudiosos extraiacutedas a partir da bibliografia consultada satildeo basicamente as seguintes
Carone (2004 100 n41) percebe cinco ldquocosmic cyclesrdquo ao inveacutes de trecircs eacutepocas dentro
de dois ciclos como pensa Brisson sendo estes ciclos coacutesmicos a criaccedilatildeo do universo
pelo deus a ordem reversa a idade de Cronos a segunda ordem reversa a idade de
Zeus28 Carone (2004 97-8) interpreta 271b4 ndash c2 como se fosse jaacute o relato da Era de
tambeacutem satildeo atuantes na eacutepoca de Zeus A presenccedila da divindade sob Zeus mesmo que ao niacutevel da conduccedilatildeo do universo eacute logo uma interpretaccedilatildeo oposta agrave leitura tradicional 26 Brisson (2003) qualifica o Reino de Zeus tambeacutem como um ldquoeacutetat intermeacutediairerdquo (p43) 27 Segundo esse raciociacutenio a siacutentese operada pela Era de Zeus instauraria um tempo linear que interromperia a sucessatildeo ciacuteclica do tempo O mito natildeo parece comprovar esta ideia Ainda assim penso que eacute possiacutevel compreender a Era de Zeus como uma espeacutecie de siacutentese entre nous e anankecirc tal como no Timeu ndash cf 47e-48a - todavia o caraacuteter ciacuteclico do tempo eacute marcadamente destacado tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo 28 Dessa forma Carone (2004) trabalha como se houvesse cinco ciclos coacutesmicos Contudo 269c-d eacute taxativo ao dizer que soacute haacute dois ciclos coacutesmicos ou duas formas de disposiccedilatildeo dos astros Dentro destes ciclos eacute que pode haver mais de uma eacutepoca coacutesmica Assim julgo indispensaacutevel manter a definiccedilatildeo e a distinccedilatildeo de ciclo e eacutepoca coacutesmica feita por Brisson (2000) Natildeo penso que seja uacutetil considerar a criaccedilatildeo
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Cronos atraveacutes de uma transiccedilatildeo entre o primeira eacutepoca reversa e a Era de Cronos e
natildeo a continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo da primeira eacutepoca reversa29
-II-
Este breve debate bibliograacutefico eacute suficiente para contextualizar minha interpretaccedilatildeo
do mito Interpretaccedilatildeo esta que segue em linhas gerais Brisson e Carone embora eu
discorde em pontos importantes como na quantidade de ciclos e eacutepocas coacutesmicas
descritas jaacute que a meu ver haacute dois ciclos e quatro eacutepocas coacutesmicas O mito entatildeo situa-
se dentro do diaacutelogo logo apoacutes as sucessivas divisotildees conceituais que permeiam toda a
primeira parte do diaacutelogo Estas divisotildees que tecircm como escopo identificar o que seria o
poliacutetico chega a conclusatildeo provisoacuteria de que o poliacutetico seria um pastor de homens Ora
o mito vem mostrar justamente que esta definiccedilatildeo se enquadraria antes aos deuses da
Era de Cronos que tutelam os homens como pastores Portanto natildeo faz sentido uma
definiccedilatildeo do poliacutetico se esta natildeo corresponde agrave realidade da temporalidade humana
atual
Eacute preciso portanto seguir um outro caminho Este outro caminho ocupa a terceira
parte do diaacutelogo numa tentativa de definir um certo paradigma do poliacutetico que atuaria
em torno da constituiccedilatildeo correta Sendo assim para expor minha visatildeo do relato do
Estrangeiro eu dividi para fins didaacuteticos o relato do mito em sete partes as quais
seguem
do universo pelo deus se eacute que algo assim estaacute explicitamente descrito no texto como uma eacutepoca coacutesmica em si Todavia eacute importante a distinccedilatildeo forjada por Carone entre a primeira e a segunda eacutepoca reversa como eacutepocas distintas superando a hesitaccedilatildeo de Brisson 29 A leitura da autora eacute de fato tentadora porque resolveria duas dificuldades de interpretaccedilatildeo associadas a esta passagem De um lado faria sentido a atuaccedilatildeo do deus em 271c 2 por tratar-se da eacutepoca de Cronos que de outro modo permanece obscuro jaacute que se trataria da descriccedilatildeo de periacuteodo reverso logo alheio agrave atuaccedilatildeo divina De outro lado deixaria mais claro o significado de 271c 4-7 O jovem Soacutecrates estaria entatildeo perguntando se a Era de Cronos teria lugar na eacutepoca desta revoluccedilatildeo (271b4 ndash c2) ou na eacutepoca atual O Estrangeiro entatildeo responderia que Cronos teria acontecido na revoluccedilatildeo contida em 271b4 ndash c2 No entanto a hipoacutetese eacute pouco plausiacutevel porque a passagem 271b4 ndash c2 eacute claramente a resposta do Estrangeiro agrave pergunta feita pelo jovem Soacutecrates em 271a 2-3 acerca de como se dava o nascimento e a geraccedilatildeo entre os homens da eacutepoca que estava entatildeo sendo descrita pelo Estrangeiro ou seja a primeira eacutepoca reversa Assim essa passagem natildeo trata da Era de Cronos mas sim da primeira eacutepoca reversa Talvez a presenccedila do deus em 271c 2 queira remeter ao fato de que o deus afasta-se durante o movimento reverso para seu posto de observaccedilatildeo mas permanece com a possibilidade de intervir pontualmente se assim julgar oportuno embora a lei geral seja que a divindade respeite a autonomia do mundo e apenas intervenha quando a desordem corpoacuterea ameace fazer perecer o proacuteprio mundo
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1- Apresentaccedilatildeo e definiccedilatildeo do meacutetodo a ser seguido neste novo relato
O Estrangeiro diz que eacute preciso ldquoencetar desde o iniacutecio uma nova via [ὁδὸν]rdquo (268d
5) A este novo caminho seraacute ldquomisturado uma dose de brincadeira [παιδιὰν]rdquo (268d 8)
atraveacutes de um meacutetodo que natildeo mais dar-se-aacute por sucessivas divisotildees mas sim atraveacutes de
ldquoum mito extenso [microεγάλου microύθου]rdquo (268d 9)
2- Mitos que seratildeo entrelaccedilados dentro do ldquomito extensordquo
Apoacutes ter estabelecido o tipo e o meacutetodo do relato o Estrangeiro conta ao jovem
Soacutecrates trecircs mitos que traratildeo liccedilotildees fundamentais para a continuaccedilatildeo do relato do
Estrangeiro Em 268e-269a eacute apresentado o mito de Atreu e Tiestes de onde retiramos a
primeira informaccedilatildeo cosmoloacutegica do mito a divindade mudou a ordem dos astros para
servir de testemunha a Atreu Assim o ldquoSol nasce hoje no lugar onde antes se deitavardquo
(269a 3) Ainda em 269a o Estrangeiro introduz o segundo mito aquele ldquodo governo
exercido por Cronos [τήν γε βασιλείαν ἣν ἦρξε Κρόνος]rdquo (269a 7) Logo em seguida o
Estrangeiro introduz o terceiro mito que iraacute compor a sua grande narrativa Trata-se ldquodo
nascimento dos homens de antanho gerados da terra e natildeo uns dos outros
[τὸ τοὺς ἔmicroπροσθεν φύεσθαι γηγενεῖς καὶ microὴ ἐξ ἀλλήλων γεννᾶσθαι]rdquo (269b 2-3)
Como interpreta Brisson (2000 175-77) os trecircs elementos miacuteticos apresentados pelo
Estrangeiro introduzem tambeacutem os trecircs aspectos que seratildeo entrelaccedilados na grande
narrativa a partir da histoacuteria de Atreu e Tiestes a dimensatildeo coacutesmica atraveacutes do mito do
governo de Cronos a dimensatildeo poliacutetica a partir do mito dos humanos nascidos da terra
a dimensatildeo antropoloacutegica Assim apoacutes anunciar os trecircs mitos o Estrangeiro afirma que
ldquotodos esses acontecimentos aleacutem de milhares de outros ainda mais extraordinaacuterios
resultam todos do mesmo estado de coisasrdquo
[Ταῦτα τοίνυν ἔστι microὲν σύmicroπαντα ἐκ ταὐτοῦ πάθους καὶ πρὸς τούτοις ἕτερα microυρία καὶ
τούτων ἔτι θαυmicroαστότερα] (269b 5-6) 30
30 Traduccedilatildeo minha Carmen Soares traduz σύmicroπαντα por ldquotodas essas situaccedilotildeesrdquo e traduz πάθους por ldquoconjunturardquo Logo agrave frente em 269c 1 verte πάθος por ldquocontextosrdquo Situaccedilotildees conjunturas e contextos talvez decircem a ideia de algo que eacute de alguma forma apenas devido agraves circunstacircncias de um dado momento No entanto aquilo que o Estrangeiro estaacute comeccedilando a estabelecer eacute uma espeacutecie de estado de coisas que define a proacutepria forma coacutesmica do universo atraveacutes de movimentos que ora vatildeo no sentido que conhecemos ora no sentido inverso como discutiremos acerca de 269c-269d Nesse sentido prefiro a
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O Estrangeiro continua e daacute-nos uma informaccedilatildeo que contribuiraacute para entendermos a
inserccedilatildeo do mito dentro do conjunto do diaacutelogo o ldquoestado de coisas [πάθος]rdquo (269c 1)31
que eacute a ldquocausa [αἴτιον]rdquo (269c 1)32 desses acontecimentos ldquointeressa agrave explicaccedilatildeo do que
eacute o rei [τὴν τοῦ βασιλέως ἀπόδειξιν πρέψει]rdquo (269c 2)
3- Regra acerca da disposiccedilatildeo dos astros do movimento do universo e da
participaccedilatildeo divina neste movimento
Logo em seguida o Estrangeiro mostra ao jovem Soacutecrates o estado de coisas do
Universo
Presta atenccedilatildeo O universo umas vezes a divindade guia-o pessoalmente no seu trajecto e acompanha-o no seu movimento circular mas outras afasta-se quando os circuitos atingem o intervalo de tempo apropriado Mas nessa ocasiatildeo por acccedilatildeo do movimento autoacutenomo o cosmos volta novamente agrave posiccedilatildeo contraacuteria uma vez que eacute um ser vivo dotado de inteligecircncia pelo seu arquitecto primordial Todavia este movimento de retrocesso torna-se necessariamente inato pela seguinte razatildeo [Ἀκούοις ἄν τὸ γὰρ πᾶν τόδε τοτὲ microὲν αὐτὸς ὁ θεὸς συmicroποδηγεῖ πορευόmicroενον καὶ συγκυκλεῖ τοτὲ δὲ ἀνῆκεν ὅταν αἱ περίοδοι τοῦ προσήκοντος αὐτῷ microέτρον εἰλήφωσιν ἤδη χρόνου τὸ δὲ πάλιν αὐτόmicroατον εἰς τἀναντία περιάγεται ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν εἰληχὸς ἐκ τοῦ συναρmicroόσαντος αὐτὸ κατ ἀρχάς τοῦτο δὲ αὐτῷ τὸ ἀνάπαλιν ἰέναι διὰ τόδ ἐξ ἀνάγκης ἔmicroφυτον γέγονε] (269c 4 ndash 269d3)
Assim eacute-nos dito que ora eacute o proacuteprio deus que ldquoguia [συmicroποδηγεῖ]rdquo a ldquomarcha
[πορευόμενον]rdquo do universo e preside seu ldquomovimento circular [συγκυκλεῖ]rdquo ora o
deus deixa o universo ir por ele mesmo Quando o universo eacute deixado por si mesmo seu
movimento ldquoautocircnomo [αὐτόmicroατον]rdquo e ldquoinerente [ἔmicroφυτον]rdquo impele-o a girar ldquopara traacutes
[ἀνάπαλιν]rdquo e em ldquosentido inverso[τἀναντία]rdquo33
Esta regra geral do movimento do universo onde o movimento normal do universo
deixado por si mesmo eacute ir no sentido retroacutegrado possui segundo o Estrangeiro uma
razatildeo Razatildeo essa que eacute contada entre 269d 4 e 270a 9 A tese central aqui eacute a mesma
traduccedilatildeo de Luc Brisson em Platon (2003) que traduz σύmicroπαντα por ldquotous ces eacuteveacutenementsrdquo πάθους como tambeacutem πάθος de 269c 1 por ldquoeacutetatrdquo (ldquoraquoEacutetatraquo rend ici paacutethos et deacutesigne la disposition astronomique des mouvements du monderdquo - Brisson (2003 226 n95) Segue nesse mesmo sentido a traduccedilatildeo de Rowe em Plato (1997) σύmicroπαντα eacute traduzido por ldquoall these thingsrdquo e πάθους como tambeacutem πάθος por ldquostate of affairsrdquo 31 Traduccedilatildeo minha 32 Traduccedilatildeo minha 33 Isto eacute em sentido retroacutegrado A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
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44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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mesmo18 Estas duas Eras satildeo separadas por um periacuteodo relativamente breve de rotaccedilatildeo
na direccedilatildeo reversa (sol nascendo no oeste)19 Por fim as pessoas nascidas da terra
pertencentes a este periacuteodo de direccedilatildeo reversa satildeo distintas das pessoas nascidas da terra
na Era de Cronos20
Luc Brisson por sua vez afasta-se ainda mais da interpretaccedilatildeo tradicional Para o
pesquisador francecircs haacute dois ciclos coacutesmicos (movimento coacutesmico guiado ou natildeo pelo
deus) que abarcam trecircs eacutepocas coacutesmicas21 Reino de Cronos mundo deixado por si
mesmo (272d6 ndash 273e4) e Reino de Zeus22 O Reino de Cronos possui o mesmo sentido
de movimento dos astros que o Reino de Zeus sentido esse de acordo com o que
estamos habituados - leste para oeste - (Brisson 1998 491)23 Aleacutem disso no Reino de
Cronos o envelhecimento dos seres vivos daacute-se de jovens para velhos (idem 2000
182)24 A semelhanccedila que haacute entre o Reino de Cronos e o primeiro movimento reverso eacute
apenas ao niacutevel do modo de geraccedilatildeo (em ambos periacuteodos os homens nascem da terra e
natildeo de ciclo coacutesmico) O Reino de Cronos estaacute na direccedilatildeo oposta ao movimento reverso
anterior (ibidem 2000 176) O Reino de Zeus estaacute no mesmo ciclo que Cronos mas em
eacutepoca distinta Na nossa eacutepoca a divindade ocupa-se da marcha do universo mas as
divindades secundaacuterias saiacuteram de seus postos25 O Reino de Zeus eacute visto por Brisson
18 Nesse toacutepico Rowe segue a visatildeo tradicional ao afirmar que os homens estatildeo desprovidos dos deuses na Era de Zeus Fica contudo sem explicaccedilatildeo a causa que faz com que o mundo deixado por si mesmo (Zeus) gire no mesmo sentido do mundo guiado pelo deus (Cronos) Essa eacute a meu ver a principal falha da interpretaccedilatildeo de Rowe jaacute que o mito eacute expliacutecito em afirmar que o movimento inerente ao mundo deixado por si mesmo eacute retroacutegrado (cf 269d 2-3) 19 Rowe portanto segue a visatildeo de dois ciclos mas traz uma novidade em relaccedilatildeo agrave leitura tradicional ao reconhecer a existecircncia de um periacuteodo reverso distinto de Cronos e de Zeus No entanto a afirmaccedilatildeo de Rowe de que se trata de um periacuteodo relativamente breve natildeo me parece ter fundamento no texto original A passagem mais expliacutecita acerca desse toacutepico 270a 2-8 dificilmente pode ser lida conforme a tese de Rowe Assim em 270a 6-8 o Estrangeiro diz que o mundo deixado por si mesmo ldquocaminha em sentido inverso durante milhares de periacuteodos pois enorme e equilibrado como eacute gira apoiado num eixo muito pequeno [ὥστε ἀνάπαλιν πορεύεσθαι πολλὰς περιόδων microυριάδας διὰ δὴ τὸ microέγιστον ὂν καὶ ἰσορροπώτατον ἐπὶ microικροτάτου βαῖνον ποδὸς ἰέναι]rdquo 20 Contra portanto a leitura tradicional que como vimos tende a associar as pessoas nascidas da terra da eacutepoca reversa com aquelas pessoas nascidas da terra da eacutepoca de Cronos 21 Assim Brisson (2000 170) define ciclo ldquojacute entends par laquocycleraquo une peacuteriode dacuteun nombre deacutetermineacute dacuteaneacutees agrave la fin de laquelle certains pheacutenomegravenes astronomiques qui se produisent dans le mecircme ordre se reacutepegravetentrdquo e eacutepoca coacutesmica ldquoune laquoeacutepoqueraquo est une peacuteriode historique deacutetermineacutee par de eacuteveacutenements importants caracteacuteriseacutes par un eacutetat de choses particulier (idem 173) 22 Portanto o periacuteodo reverso que Rowe acusava como algo distinto de Cronos e Zeus eacute tido por Brisson como uma eacutepoca agrave parte 23 Nesse quesito o pesquisador francecircs segue Rowe contra a leitura tradicional 24 Opiniatildeo portanto oposta agravequela da interpretaccedilatildeo tradicional 25 Brisson (2000 173 184) = BrissonPradeau (2003 44) em Platon (2003) No entanto a traduccedilatildeo de 271d 3-6 e a nota referente a este passo feita por BrissonPradeau (2003) diz que os deuses secundaacuterios
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como uma siacutentese dos periacuteodos anteriormente mencionados em que haacute autonomia dos
homens para governarem a si proacuteprios poreacutem haacute tambeacutem o controle coacutesmico da
divindade (idem 2000 174) 26 Esta siacutentese seria na verdade uma superaccedilatildeo ou mesmo
negaccedilatildeo das eacutepocas reversas e de Cronos em favor de uma siacutentese da necessidade e do
acaso - Reino de Zeus O caraacuteter definitivo ou natildeo desta siacutentese parece-me pouco claro
para o autor jaacute que em um texto ele reconhece que pode vir um novo ciclo reverso
depois de Zeus (ibidem 2000 186) enquanto em outro texto ele afirma que o Reino de
Zeus ldquoinstaure alors et semble mettre un terme agrave lacutehistoire des bouleversements
cosmiques est celui que nous connaissons encore aujourdacutehui le monde est
deacutefinitivement soustrait par la diviniteacute au risque de la corruptionrdquo (ibidem 2003 44)27
Ainda para Brisson entre o Reino de Cronos e de Zeus haacute um periacuteodo reverso que
ele hesita em identificar como diferente do primeiro movimento reverso descrito antes
de Cronos De toda forma o autor sustenta que ambos os movimentos reversos tecircm
sentido oposto ao Reino de Cronos (ibidem 2000 174)
Jaacute Carone (2004) segue substancialmente a interpretaccedilatildeo de Luc Brisson Assim
Zeus e Cronos estatildeo no mesmo sentido coacutesmico que eacute oposto agraves duas eacutepocas reversas
descritas Em Cronos a geraccedilatildeo cresce de jovem para velho em Zeus haacute o cuidado da
divindade sob o universo embora os deuses tutelares tenham deixado de governar as
regiotildees do mundo A Era de Zeus seria uma siacutentese das eacutepocas anteriores em que haacute
participaccedilatildeo ativa tanto do deus como dos homens As diferenccedilas entre os dois
estudiosos extraiacutedas a partir da bibliografia consultada satildeo basicamente as seguintes
Carone (2004 100 n41) percebe cinco ldquocosmic cyclesrdquo ao inveacutes de trecircs eacutepocas dentro
de dois ciclos como pensa Brisson sendo estes ciclos coacutesmicos a criaccedilatildeo do universo
pelo deus a ordem reversa a idade de Cronos a segunda ordem reversa a idade de
Zeus28 Carone (2004 97-8) interpreta 271b4 ndash c2 como se fosse jaacute o relato da Era de
tambeacutem satildeo atuantes na eacutepoca de Zeus A presenccedila da divindade sob Zeus mesmo que ao niacutevel da conduccedilatildeo do universo eacute logo uma interpretaccedilatildeo oposta agrave leitura tradicional 26 Brisson (2003) qualifica o Reino de Zeus tambeacutem como um ldquoeacutetat intermeacutediairerdquo (p43) 27 Segundo esse raciociacutenio a siacutentese operada pela Era de Zeus instauraria um tempo linear que interromperia a sucessatildeo ciacuteclica do tempo O mito natildeo parece comprovar esta ideia Ainda assim penso que eacute possiacutevel compreender a Era de Zeus como uma espeacutecie de siacutentese entre nous e anankecirc tal como no Timeu ndash cf 47e-48a - todavia o caraacuteter ciacuteclico do tempo eacute marcadamente destacado tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo 28 Dessa forma Carone (2004) trabalha como se houvesse cinco ciclos coacutesmicos Contudo 269c-d eacute taxativo ao dizer que soacute haacute dois ciclos coacutesmicos ou duas formas de disposiccedilatildeo dos astros Dentro destes ciclos eacute que pode haver mais de uma eacutepoca coacutesmica Assim julgo indispensaacutevel manter a definiccedilatildeo e a distinccedilatildeo de ciclo e eacutepoca coacutesmica feita por Brisson (2000) Natildeo penso que seja uacutetil considerar a criaccedilatildeo
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Cronos atraveacutes de uma transiccedilatildeo entre o primeira eacutepoca reversa e a Era de Cronos e
natildeo a continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo da primeira eacutepoca reversa29
-II-
Este breve debate bibliograacutefico eacute suficiente para contextualizar minha interpretaccedilatildeo
do mito Interpretaccedilatildeo esta que segue em linhas gerais Brisson e Carone embora eu
discorde em pontos importantes como na quantidade de ciclos e eacutepocas coacutesmicas
descritas jaacute que a meu ver haacute dois ciclos e quatro eacutepocas coacutesmicas O mito entatildeo situa-
se dentro do diaacutelogo logo apoacutes as sucessivas divisotildees conceituais que permeiam toda a
primeira parte do diaacutelogo Estas divisotildees que tecircm como escopo identificar o que seria o
poliacutetico chega a conclusatildeo provisoacuteria de que o poliacutetico seria um pastor de homens Ora
o mito vem mostrar justamente que esta definiccedilatildeo se enquadraria antes aos deuses da
Era de Cronos que tutelam os homens como pastores Portanto natildeo faz sentido uma
definiccedilatildeo do poliacutetico se esta natildeo corresponde agrave realidade da temporalidade humana
atual
Eacute preciso portanto seguir um outro caminho Este outro caminho ocupa a terceira
parte do diaacutelogo numa tentativa de definir um certo paradigma do poliacutetico que atuaria
em torno da constituiccedilatildeo correta Sendo assim para expor minha visatildeo do relato do
Estrangeiro eu dividi para fins didaacuteticos o relato do mito em sete partes as quais
seguem
do universo pelo deus se eacute que algo assim estaacute explicitamente descrito no texto como uma eacutepoca coacutesmica em si Todavia eacute importante a distinccedilatildeo forjada por Carone entre a primeira e a segunda eacutepoca reversa como eacutepocas distintas superando a hesitaccedilatildeo de Brisson 29 A leitura da autora eacute de fato tentadora porque resolveria duas dificuldades de interpretaccedilatildeo associadas a esta passagem De um lado faria sentido a atuaccedilatildeo do deus em 271c 2 por tratar-se da eacutepoca de Cronos que de outro modo permanece obscuro jaacute que se trataria da descriccedilatildeo de periacuteodo reverso logo alheio agrave atuaccedilatildeo divina De outro lado deixaria mais claro o significado de 271c 4-7 O jovem Soacutecrates estaria entatildeo perguntando se a Era de Cronos teria lugar na eacutepoca desta revoluccedilatildeo (271b4 ndash c2) ou na eacutepoca atual O Estrangeiro entatildeo responderia que Cronos teria acontecido na revoluccedilatildeo contida em 271b4 ndash c2 No entanto a hipoacutetese eacute pouco plausiacutevel porque a passagem 271b4 ndash c2 eacute claramente a resposta do Estrangeiro agrave pergunta feita pelo jovem Soacutecrates em 271a 2-3 acerca de como se dava o nascimento e a geraccedilatildeo entre os homens da eacutepoca que estava entatildeo sendo descrita pelo Estrangeiro ou seja a primeira eacutepoca reversa Assim essa passagem natildeo trata da Era de Cronos mas sim da primeira eacutepoca reversa Talvez a presenccedila do deus em 271c 2 queira remeter ao fato de que o deus afasta-se durante o movimento reverso para seu posto de observaccedilatildeo mas permanece com a possibilidade de intervir pontualmente se assim julgar oportuno embora a lei geral seja que a divindade respeite a autonomia do mundo e apenas intervenha quando a desordem corpoacuterea ameace fazer perecer o proacuteprio mundo
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1- Apresentaccedilatildeo e definiccedilatildeo do meacutetodo a ser seguido neste novo relato
O Estrangeiro diz que eacute preciso ldquoencetar desde o iniacutecio uma nova via [ὁδὸν]rdquo (268d
5) A este novo caminho seraacute ldquomisturado uma dose de brincadeira [παιδιὰν]rdquo (268d 8)
atraveacutes de um meacutetodo que natildeo mais dar-se-aacute por sucessivas divisotildees mas sim atraveacutes de
ldquoum mito extenso [microεγάλου microύθου]rdquo (268d 9)
2- Mitos que seratildeo entrelaccedilados dentro do ldquomito extensordquo
Apoacutes ter estabelecido o tipo e o meacutetodo do relato o Estrangeiro conta ao jovem
Soacutecrates trecircs mitos que traratildeo liccedilotildees fundamentais para a continuaccedilatildeo do relato do
Estrangeiro Em 268e-269a eacute apresentado o mito de Atreu e Tiestes de onde retiramos a
primeira informaccedilatildeo cosmoloacutegica do mito a divindade mudou a ordem dos astros para
servir de testemunha a Atreu Assim o ldquoSol nasce hoje no lugar onde antes se deitavardquo
(269a 3) Ainda em 269a o Estrangeiro introduz o segundo mito aquele ldquodo governo
exercido por Cronos [τήν γε βασιλείαν ἣν ἦρξε Κρόνος]rdquo (269a 7) Logo em seguida o
Estrangeiro introduz o terceiro mito que iraacute compor a sua grande narrativa Trata-se ldquodo
nascimento dos homens de antanho gerados da terra e natildeo uns dos outros
[τὸ τοὺς ἔmicroπροσθεν φύεσθαι γηγενεῖς καὶ microὴ ἐξ ἀλλήλων γεννᾶσθαι]rdquo (269b 2-3)
Como interpreta Brisson (2000 175-77) os trecircs elementos miacuteticos apresentados pelo
Estrangeiro introduzem tambeacutem os trecircs aspectos que seratildeo entrelaccedilados na grande
narrativa a partir da histoacuteria de Atreu e Tiestes a dimensatildeo coacutesmica atraveacutes do mito do
governo de Cronos a dimensatildeo poliacutetica a partir do mito dos humanos nascidos da terra
a dimensatildeo antropoloacutegica Assim apoacutes anunciar os trecircs mitos o Estrangeiro afirma que
ldquotodos esses acontecimentos aleacutem de milhares de outros ainda mais extraordinaacuterios
resultam todos do mesmo estado de coisasrdquo
[Ταῦτα τοίνυν ἔστι microὲν σύmicroπαντα ἐκ ταὐτοῦ πάθους καὶ πρὸς τούτοις ἕτερα microυρία καὶ
τούτων ἔτι θαυmicroαστότερα] (269b 5-6) 30
30 Traduccedilatildeo minha Carmen Soares traduz σύmicroπαντα por ldquotodas essas situaccedilotildeesrdquo e traduz πάθους por ldquoconjunturardquo Logo agrave frente em 269c 1 verte πάθος por ldquocontextosrdquo Situaccedilotildees conjunturas e contextos talvez decircem a ideia de algo que eacute de alguma forma apenas devido agraves circunstacircncias de um dado momento No entanto aquilo que o Estrangeiro estaacute comeccedilando a estabelecer eacute uma espeacutecie de estado de coisas que define a proacutepria forma coacutesmica do universo atraveacutes de movimentos que ora vatildeo no sentido que conhecemos ora no sentido inverso como discutiremos acerca de 269c-269d Nesse sentido prefiro a
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O Estrangeiro continua e daacute-nos uma informaccedilatildeo que contribuiraacute para entendermos a
inserccedilatildeo do mito dentro do conjunto do diaacutelogo o ldquoestado de coisas [πάθος]rdquo (269c 1)31
que eacute a ldquocausa [αἴτιον]rdquo (269c 1)32 desses acontecimentos ldquointeressa agrave explicaccedilatildeo do que
eacute o rei [τὴν τοῦ βασιλέως ἀπόδειξιν πρέψει]rdquo (269c 2)
3- Regra acerca da disposiccedilatildeo dos astros do movimento do universo e da
participaccedilatildeo divina neste movimento
Logo em seguida o Estrangeiro mostra ao jovem Soacutecrates o estado de coisas do
Universo
Presta atenccedilatildeo O universo umas vezes a divindade guia-o pessoalmente no seu trajecto e acompanha-o no seu movimento circular mas outras afasta-se quando os circuitos atingem o intervalo de tempo apropriado Mas nessa ocasiatildeo por acccedilatildeo do movimento autoacutenomo o cosmos volta novamente agrave posiccedilatildeo contraacuteria uma vez que eacute um ser vivo dotado de inteligecircncia pelo seu arquitecto primordial Todavia este movimento de retrocesso torna-se necessariamente inato pela seguinte razatildeo [Ἀκούοις ἄν τὸ γὰρ πᾶν τόδε τοτὲ microὲν αὐτὸς ὁ θεὸς συmicroποδηγεῖ πορευόmicroενον καὶ συγκυκλεῖ τοτὲ δὲ ἀνῆκεν ὅταν αἱ περίοδοι τοῦ προσήκοντος αὐτῷ microέτρον εἰλήφωσιν ἤδη χρόνου τὸ δὲ πάλιν αὐτόmicroατον εἰς τἀναντία περιάγεται ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν εἰληχὸς ἐκ τοῦ συναρmicroόσαντος αὐτὸ κατ ἀρχάς τοῦτο δὲ αὐτῷ τὸ ἀνάπαλιν ἰέναι διὰ τόδ ἐξ ἀνάγκης ἔmicroφυτον γέγονε] (269c 4 ndash 269d3)
Assim eacute-nos dito que ora eacute o proacuteprio deus que ldquoguia [συmicroποδηγεῖ]rdquo a ldquomarcha
[πορευόμενον]rdquo do universo e preside seu ldquomovimento circular [συγκυκλεῖ]rdquo ora o
deus deixa o universo ir por ele mesmo Quando o universo eacute deixado por si mesmo seu
movimento ldquoautocircnomo [αὐτόmicroατον]rdquo e ldquoinerente [ἔmicroφυτον]rdquo impele-o a girar ldquopara traacutes
[ἀνάπαλιν]rdquo e em ldquosentido inverso[τἀναντία]rdquo33
Esta regra geral do movimento do universo onde o movimento normal do universo
deixado por si mesmo eacute ir no sentido retroacutegrado possui segundo o Estrangeiro uma
razatildeo Razatildeo essa que eacute contada entre 269d 4 e 270a 9 A tese central aqui eacute a mesma
traduccedilatildeo de Luc Brisson em Platon (2003) que traduz σύmicroπαντα por ldquotous ces eacuteveacutenementsrdquo πάθους como tambeacutem πάθος de 269c 1 por ldquoeacutetatrdquo (ldquoraquoEacutetatraquo rend ici paacutethos et deacutesigne la disposition astronomique des mouvements du monderdquo - Brisson (2003 226 n95) Segue nesse mesmo sentido a traduccedilatildeo de Rowe em Plato (1997) σύmicroπαντα eacute traduzido por ldquoall these thingsrdquo e πάθους como tambeacutem πάθος por ldquostate of affairsrdquo 31 Traduccedilatildeo minha 32 Traduccedilatildeo minha 33 Isto eacute em sentido retroacutegrado A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
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44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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como uma siacutentese dos periacuteodos anteriormente mencionados em que haacute autonomia dos
homens para governarem a si proacuteprios poreacutem haacute tambeacutem o controle coacutesmico da
divindade (idem 2000 174) 26 Esta siacutentese seria na verdade uma superaccedilatildeo ou mesmo
negaccedilatildeo das eacutepocas reversas e de Cronos em favor de uma siacutentese da necessidade e do
acaso - Reino de Zeus O caraacuteter definitivo ou natildeo desta siacutentese parece-me pouco claro
para o autor jaacute que em um texto ele reconhece que pode vir um novo ciclo reverso
depois de Zeus (ibidem 2000 186) enquanto em outro texto ele afirma que o Reino de
Zeus ldquoinstaure alors et semble mettre un terme agrave lacutehistoire des bouleversements
cosmiques est celui que nous connaissons encore aujourdacutehui le monde est
deacutefinitivement soustrait par la diviniteacute au risque de la corruptionrdquo (ibidem 2003 44)27
Ainda para Brisson entre o Reino de Cronos e de Zeus haacute um periacuteodo reverso que
ele hesita em identificar como diferente do primeiro movimento reverso descrito antes
de Cronos De toda forma o autor sustenta que ambos os movimentos reversos tecircm
sentido oposto ao Reino de Cronos (ibidem 2000 174)
Jaacute Carone (2004) segue substancialmente a interpretaccedilatildeo de Luc Brisson Assim
Zeus e Cronos estatildeo no mesmo sentido coacutesmico que eacute oposto agraves duas eacutepocas reversas
descritas Em Cronos a geraccedilatildeo cresce de jovem para velho em Zeus haacute o cuidado da
divindade sob o universo embora os deuses tutelares tenham deixado de governar as
regiotildees do mundo A Era de Zeus seria uma siacutentese das eacutepocas anteriores em que haacute
participaccedilatildeo ativa tanto do deus como dos homens As diferenccedilas entre os dois
estudiosos extraiacutedas a partir da bibliografia consultada satildeo basicamente as seguintes
Carone (2004 100 n41) percebe cinco ldquocosmic cyclesrdquo ao inveacutes de trecircs eacutepocas dentro
de dois ciclos como pensa Brisson sendo estes ciclos coacutesmicos a criaccedilatildeo do universo
pelo deus a ordem reversa a idade de Cronos a segunda ordem reversa a idade de
Zeus28 Carone (2004 97-8) interpreta 271b4 ndash c2 como se fosse jaacute o relato da Era de
tambeacutem satildeo atuantes na eacutepoca de Zeus A presenccedila da divindade sob Zeus mesmo que ao niacutevel da conduccedilatildeo do universo eacute logo uma interpretaccedilatildeo oposta agrave leitura tradicional 26 Brisson (2003) qualifica o Reino de Zeus tambeacutem como um ldquoeacutetat intermeacutediairerdquo (p43) 27 Segundo esse raciociacutenio a siacutentese operada pela Era de Zeus instauraria um tempo linear que interromperia a sucessatildeo ciacuteclica do tempo O mito natildeo parece comprovar esta ideia Ainda assim penso que eacute possiacutevel compreender a Era de Zeus como uma espeacutecie de siacutentese entre nous e anankecirc tal como no Timeu ndash cf 47e-48a - todavia o caraacuteter ciacuteclico do tempo eacute marcadamente destacado tanto no Timeu como no mito de ldquoO Poliacuteticordquo 28 Dessa forma Carone (2004) trabalha como se houvesse cinco ciclos coacutesmicos Contudo 269c-d eacute taxativo ao dizer que soacute haacute dois ciclos coacutesmicos ou duas formas de disposiccedilatildeo dos astros Dentro destes ciclos eacute que pode haver mais de uma eacutepoca coacutesmica Assim julgo indispensaacutevel manter a definiccedilatildeo e a distinccedilatildeo de ciclo e eacutepoca coacutesmica feita por Brisson (2000) Natildeo penso que seja uacutetil considerar a criaccedilatildeo
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Cronos atraveacutes de uma transiccedilatildeo entre o primeira eacutepoca reversa e a Era de Cronos e
natildeo a continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo da primeira eacutepoca reversa29
-II-
Este breve debate bibliograacutefico eacute suficiente para contextualizar minha interpretaccedilatildeo
do mito Interpretaccedilatildeo esta que segue em linhas gerais Brisson e Carone embora eu
discorde em pontos importantes como na quantidade de ciclos e eacutepocas coacutesmicas
descritas jaacute que a meu ver haacute dois ciclos e quatro eacutepocas coacutesmicas O mito entatildeo situa-
se dentro do diaacutelogo logo apoacutes as sucessivas divisotildees conceituais que permeiam toda a
primeira parte do diaacutelogo Estas divisotildees que tecircm como escopo identificar o que seria o
poliacutetico chega a conclusatildeo provisoacuteria de que o poliacutetico seria um pastor de homens Ora
o mito vem mostrar justamente que esta definiccedilatildeo se enquadraria antes aos deuses da
Era de Cronos que tutelam os homens como pastores Portanto natildeo faz sentido uma
definiccedilatildeo do poliacutetico se esta natildeo corresponde agrave realidade da temporalidade humana
atual
Eacute preciso portanto seguir um outro caminho Este outro caminho ocupa a terceira
parte do diaacutelogo numa tentativa de definir um certo paradigma do poliacutetico que atuaria
em torno da constituiccedilatildeo correta Sendo assim para expor minha visatildeo do relato do
Estrangeiro eu dividi para fins didaacuteticos o relato do mito em sete partes as quais
seguem
do universo pelo deus se eacute que algo assim estaacute explicitamente descrito no texto como uma eacutepoca coacutesmica em si Todavia eacute importante a distinccedilatildeo forjada por Carone entre a primeira e a segunda eacutepoca reversa como eacutepocas distintas superando a hesitaccedilatildeo de Brisson 29 A leitura da autora eacute de fato tentadora porque resolveria duas dificuldades de interpretaccedilatildeo associadas a esta passagem De um lado faria sentido a atuaccedilatildeo do deus em 271c 2 por tratar-se da eacutepoca de Cronos que de outro modo permanece obscuro jaacute que se trataria da descriccedilatildeo de periacuteodo reverso logo alheio agrave atuaccedilatildeo divina De outro lado deixaria mais claro o significado de 271c 4-7 O jovem Soacutecrates estaria entatildeo perguntando se a Era de Cronos teria lugar na eacutepoca desta revoluccedilatildeo (271b4 ndash c2) ou na eacutepoca atual O Estrangeiro entatildeo responderia que Cronos teria acontecido na revoluccedilatildeo contida em 271b4 ndash c2 No entanto a hipoacutetese eacute pouco plausiacutevel porque a passagem 271b4 ndash c2 eacute claramente a resposta do Estrangeiro agrave pergunta feita pelo jovem Soacutecrates em 271a 2-3 acerca de como se dava o nascimento e a geraccedilatildeo entre os homens da eacutepoca que estava entatildeo sendo descrita pelo Estrangeiro ou seja a primeira eacutepoca reversa Assim essa passagem natildeo trata da Era de Cronos mas sim da primeira eacutepoca reversa Talvez a presenccedila do deus em 271c 2 queira remeter ao fato de que o deus afasta-se durante o movimento reverso para seu posto de observaccedilatildeo mas permanece com a possibilidade de intervir pontualmente se assim julgar oportuno embora a lei geral seja que a divindade respeite a autonomia do mundo e apenas intervenha quando a desordem corpoacuterea ameace fazer perecer o proacuteprio mundo
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1- Apresentaccedilatildeo e definiccedilatildeo do meacutetodo a ser seguido neste novo relato
O Estrangeiro diz que eacute preciso ldquoencetar desde o iniacutecio uma nova via [ὁδὸν]rdquo (268d
5) A este novo caminho seraacute ldquomisturado uma dose de brincadeira [παιδιὰν]rdquo (268d 8)
atraveacutes de um meacutetodo que natildeo mais dar-se-aacute por sucessivas divisotildees mas sim atraveacutes de
ldquoum mito extenso [microεγάλου microύθου]rdquo (268d 9)
2- Mitos que seratildeo entrelaccedilados dentro do ldquomito extensordquo
Apoacutes ter estabelecido o tipo e o meacutetodo do relato o Estrangeiro conta ao jovem
Soacutecrates trecircs mitos que traratildeo liccedilotildees fundamentais para a continuaccedilatildeo do relato do
Estrangeiro Em 268e-269a eacute apresentado o mito de Atreu e Tiestes de onde retiramos a
primeira informaccedilatildeo cosmoloacutegica do mito a divindade mudou a ordem dos astros para
servir de testemunha a Atreu Assim o ldquoSol nasce hoje no lugar onde antes se deitavardquo
(269a 3) Ainda em 269a o Estrangeiro introduz o segundo mito aquele ldquodo governo
exercido por Cronos [τήν γε βασιλείαν ἣν ἦρξε Κρόνος]rdquo (269a 7) Logo em seguida o
Estrangeiro introduz o terceiro mito que iraacute compor a sua grande narrativa Trata-se ldquodo
nascimento dos homens de antanho gerados da terra e natildeo uns dos outros
[τὸ τοὺς ἔmicroπροσθεν φύεσθαι γηγενεῖς καὶ microὴ ἐξ ἀλλήλων γεννᾶσθαι]rdquo (269b 2-3)
Como interpreta Brisson (2000 175-77) os trecircs elementos miacuteticos apresentados pelo
Estrangeiro introduzem tambeacutem os trecircs aspectos que seratildeo entrelaccedilados na grande
narrativa a partir da histoacuteria de Atreu e Tiestes a dimensatildeo coacutesmica atraveacutes do mito do
governo de Cronos a dimensatildeo poliacutetica a partir do mito dos humanos nascidos da terra
a dimensatildeo antropoloacutegica Assim apoacutes anunciar os trecircs mitos o Estrangeiro afirma que
ldquotodos esses acontecimentos aleacutem de milhares de outros ainda mais extraordinaacuterios
resultam todos do mesmo estado de coisasrdquo
[Ταῦτα τοίνυν ἔστι microὲν σύmicroπαντα ἐκ ταὐτοῦ πάθους καὶ πρὸς τούτοις ἕτερα microυρία καὶ
τούτων ἔτι θαυmicroαστότερα] (269b 5-6) 30
30 Traduccedilatildeo minha Carmen Soares traduz σύmicroπαντα por ldquotodas essas situaccedilotildeesrdquo e traduz πάθους por ldquoconjunturardquo Logo agrave frente em 269c 1 verte πάθος por ldquocontextosrdquo Situaccedilotildees conjunturas e contextos talvez decircem a ideia de algo que eacute de alguma forma apenas devido agraves circunstacircncias de um dado momento No entanto aquilo que o Estrangeiro estaacute comeccedilando a estabelecer eacute uma espeacutecie de estado de coisas que define a proacutepria forma coacutesmica do universo atraveacutes de movimentos que ora vatildeo no sentido que conhecemos ora no sentido inverso como discutiremos acerca de 269c-269d Nesse sentido prefiro a
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O Estrangeiro continua e daacute-nos uma informaccedilatildeo que contribuiraacute para entendermos a
inserccedilatildeo do mito dentro do conjunto do diaacutelogo o ldquoestado de coisas [πάθος]rdquo (269c 1)31
que eacute a ldquocausa [αἴτιον]rdquo (269c 1)32 desses acontecimentos ldquointeressa agrave explicaccedilatildeo do que
eacute o rei [τὴν τοῦ βασιλέως ἀπόδειξιν πρέψει]rdquo (269c 2)
3- Regra acerca da disposiccedilatildeo dos astros do movimento do universo e da
participaccedilatildeo divina neste movimento
Logo em seguida o Estrangeiro mostra ao jovem Soacutecrates o estado de coisas do
Universo
Presta atenccedilatildeo O universo umas vezes a divindade guia-o pessoalmente no seu trajecto e acompanha-o no seu movimento circular mas outras afasta-se quando os circuitos atingem o intervalo de tempo apropriado Mas nessa ocasiatildeo por acccedilatildeo do movimento autoacutenomo o cosmos volta novamente agrave posiccedilatildeo contraacuteria uma vez que eacute um ser vivo dotado de inteligecircncia pelo seu arquitecto primordial Todavia este movimento de retrocesso torna-se necessariamente inato pela seguinte razatildeo [Ἀκούοις ἄν τὸ γὰρ πᾶν τόδε τοτὲ microὲν αὐτὸς ὁ θεὸς συmicroποδηγεῖ πορευόmicroενον καὶ συγκυκλεῖ τοτὲ δὲ ἀνῆκεν ὅταν αἱ περίοδοι τοῦ προσήκοντος αὐτῷ microέτρον εἰλήφωσιν ἤδη χρόνου τὸ δὲ πάλιν αὐτόmicroατον εἰς τἀναντία περιάγεται ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν εἰληχὸς ἐκ τοῦ συναρmicroόσαντος αὐτὸ κατ ἀρχάς τοῦτο δὲ αὐτῷ τὸ ἀνάπαλιν ἰέναι διὰ τόδ ἐξ ἀνάγκης ἔmicroφυτον γέγονε] (269c 4 ndash 269d3)
Assim eacute-nos dito que ora eacute o proacuteprio deus que ldquoguia [συmicroποδηγεῖ]rdquo a ldquomarcha
[πορευόμενον]rdquo do universo e preside seu ldquomovimento circular [συγκυκλεῖ]rdquo ora o
deus deixa o universo ir por ele mesmo Quando o universo eacute deixado por si mesmo seu
movimento ldquoautocircnomo [αὐτόmicroατον]rdquo e ldquoinerente [ἔmicroφυτον]rdquo impele-o a girar ldquopara traacutes
[ἀνάπαλιν]rdquo e em ldquosentido inverso[τἀναντία]rdquo33
Esta regra geral do movimento do universo onde o movimento normal do universo
deixado por si mesmo eacute ir no sentido retroacutegrado possui segundo o Estrangeiro uma
razatildeo Razatildeo essa que eacute contada entre 269d 4 e 270a 9 A tese central aqui eacute a mesma
traduccedilatildeo de Luc Brisson em Platon (2003) que traduz σύmicroπαντα por ldquotous ces eacuteveacutenementsrdquo πάθους como tambeacutem πάθος de 269c 1 por ldquoeacutetatrdquo (ldquoraquoEacutetatraquo rend ici paacutethos et deacutesigne la disposition astronomique des mouvements du monderdquo - Brisson (2003 226 n95) Segue nesse mesmo sentido a traduccedilatildeo de Rowe em Plato (1997) σύmicroπαντα eacute traduzido por ldquoall these thingsrdquo e πάθους como tambeacutem πάθος por ldquostate of affairsrdquo 31 Traduccedilatildeo minha 32 Traduccedilatildeo minha 33 Isto eacute em sentido retroacutegrado A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
A) Fontes textuais HESIacuteODO Teogonia Trabalhos e Dias Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas de Ana Elias Pinheiro e de Joseacute Ribeiro Ferreira Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005
44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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Cronos atraveacutes de uma transiccedilatildeo entre o primeira eacutepoca reversa e a Era de Cronos e
natildeo a continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo da primeira eacutepoca reversa29
-II-
Este breve debate bibliograacutefico eacute suficiente para contextualizar minha interpretaccedilatildeo
do mito Interpretaccedilatildeo esta que segue em linhas gerais Brisson e Carone embora eu
discorde em pontos importantes como na quantidade de ciclos e eacutepocas coacutesmicas
descritas jaacute que a meu ver haacute dois ciclos e quatro eacutepocas coacutesmicas O mito entatildeo situa-
se dentro do diaacutelogo logo apoacutes as sucessivas divisotildees conceituais que permeiam toda a
primeira parte do diaacutelogo Estas divisotildees que tecircm como escopo identificar o que seria o
poliacutetico chega a conclusatildeo provisoacuteria de que o poliacutetico seria um pastor de homens Ora
o mito vem mostrar justamente que esta definiccedilatildeo se enquadraria antes aos deuses da
Era de Cronos que tutelam os homens como pastores Portanto natildeo faz sentido uma
definiccedilatildeo do poliacutetico se esta natildeo corresponde agrave realidade da temporalidade humana
atual
Eacute preciso portanto seguir um outro caminho Este outro caminho ocupa a terceira
parte do diaacutelogo numa tentativa de definir um certo paradigma do poliacutetico que atuaria
em torno da constituiccedilatildeo correta Sendo assim para expor minha visatildeo do relato do
Estrangeiro eu dividi para fins didaacuteticos o relato do mito em sete partes as quais
seguem
do universo pelo deus se eacute que algo assim estaacute explicitamente descrito no texto como uma eacutepoca coacutesmica em si Todavia eacute importante a distinccedilatildeo forjada por Carone entre a primeira e a segunda eacutepoca reversa como eacutepocas distintas superando a hesitaccedilatildeo de Brisson 29 A leitura da autora eacute de fato tentadora porque resolveria duas dificuldades de interpretaccedilatildeo associadas a esta passagem De um lado faria sentido a atuaccedilatildeo do deus em 271c 2 por tratar-se da eacutepoca de Cronos que de outro modo permanece obscuro jaacute que se trataria da descriccedilatildeo de periacuteodo reverso logo alheio agrave atuaccedilatildeo divina De outro lado deixaria mais claro o significado de 271c 4-7 O jovem Soacutecrates estaria entatildeo perguntando se a Era de Cronos teria lugar na eacutepoca desta revoluccedilatildeo (271b4 ndash c2) ou na eacutepoca atual O Estrangeiro entatildeo responderia que Cronos teria acontecido na revoluccedilatildeo contida em 271b4 ndash c2 No entanto a hipoacutetese eacute pouco plausiacutevel porque a passagem 271b4 ndash c2 eacute claramente a resposta do Estrangeiro agrave pergunta feita pelo jovem Soacutecrates em 271a 2-3 acerca de como se dava o nascimento e a geraccedilatildeo entre os homens da eacutepoca que estava entatildeo sendo descrita pelo Estrangeiro ou seja a primeira eacutepoca reversa Assim essa passagem natildeo trata da Era de Cronos mas sim da primeira eacutepoca reversa Talvez a presenccedila do deus em 271c 2 queira remeter ao fato de que o deus afasta-se durante o movimento reverso para seu posto de observaccedilatildeo mas permanece com a possibilidade de intervir pontualmente se assim julgar oportuno embora a lei geral seja que a divindade respeite a autonomia do mundo e apenas intervenha quando a desordem corpoacuterea ameace fazer perecer o proacuteprio mundo
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1- Apresentaccedilatildeo e definiccedilatildeo do meacutetodo a ser seguido neste novo relato
O Estrangeiro diz que eacute preciso ldquoencetar desde o iniacutecio uma nova via [ὁδὸν]rdquo (268d
5) A este novo caminho seraacute ldquomisturado uma dose de brincadeira [παιδιὰν]rdquo (268d 8)
atraveacutes de um meacutetodo que natildeo mais dar-se-aacute por sucessivas divisotildees mas sim atraveacutes de
ldquoum mito extenso [microεγάλου microύθου]rdquo (268d 9)
2- Mitos que seratildeo entrelaccedilados dentro do ldquomito extensordquo
Apoacutes ter estabelecido o tipo e o meacutetodo do relato o Estrangeiro conta ao jovem
Soacutecrates trecircs mitos que traratildeo liccedilotildees fundamentais para a continuaccedilatildeo do relato do
Estrangeiro Em 268e-269a eacute apresentado o mito de Atreu e Tiestes de onde retiramos a
primeira informaccedilatildeo cosmoloacutegica do mito a divindade mudou a ordem dos astros para
servir de testemunha a Atreu Assim o ldquoSol nasce hoje no lugar onde antes se deitavardquo
(269a 3) Ainda em 269a o Estrangeiro introduz o segundo mito aquele ldquodo governo
exercido por Cronos [τήν γε βασιλείαν ἣν ἦρξε Κρόνος]rdquo (269a 7) Logo em seguida o
Estrangeiro introduz o terceiro mito que iraacute compor a sua grande narrativa Trata-se ldquodo
nascimento dos homens de antanho gerados da terra e natildeo uns dos outros
[τὸ τοὺς ἔmicroπροσθεν φύεσθαι γηγενεῖς καὶ microὴ ἐξ ἀλλήλων γεννᾶσθαι]rdquo (269b 2-3)
Como interpreta Brisson (2000 175-77) os trecircs elementos miacuteticos apresentados pelo
Estrangeiro introduzem tambeacutem os trecircs aspectos que seratildeo entrelaccedilados na grande
narrativa a partir da histoacuteria de Atreu e Tiestes a dimensatildeo coacutesmica atraveacutes do mito do
governo de Cronos a dimensatildeo poliacutetica a partir do mito dos humanos nascidos da terra
a dimensatildeo antropoloacutegica Assim apoacutes anunciar os trecircs mitos o Estrangeiro afirma que
ldquotodos esses acontecimentos aleacutem de milhares de outros ainda mais extraordinaacuterios
resultam todos do mesmo estado de coisasrdquo
[Ταῦτα τοίνυν ἔστι microὲν σύmicroπαντα ἐκ ταὐτοῦ πάθους καὶ πρὸς τούτοις ἕτερα microυρία καὶ
τούτων ἔτι θαυmicroαστότερα] (269b 5-6) 30
30 Traduccedilatildeo minha Carmen Soares traduz σύmicroπαντα por ldquotodas essas situaccedilotildeesrdquo e traduz πάθους por ldquoconjunturardquo Logo agrave frente em 269c 1 verte πάθος por ldquocontextosrdquo Situaccedilotildees conjunturas e contextos talvez decircem a ideia de algo que eacute de alguma forma apenas devido agraves circunstacircncias de um dado momento No entanto aquilo que o Estrangeiro estaacute comeccedilando a estabelecer eacute uma espeacutecie de estado de coisas que define a proacutepria forma coacutesmica do universo atraveacutes de movimentos que ora vatildeo no sentido que conhecemos ora no sentido inverso como discutiremos acerca de 269c-269d Nesse sentido prefiro a
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O Estrangeiro continua e daacute-nos uma informaccedilatildeo que contribuiraacute para entendermos a
inserccedilatildeo do mito dentro do conjunto do diaacutelogo o ldquoestado de coisas [πάθος]rdquo (269c 1)31
que eacute a ldquocausa [αἴτιον]rdquo (269c 1)32 desses acontecimentos ldquointeressa agrave explicaccedilatildeo do que
eacute o rei [τὴν τοῦ βασιλέως ἀπόδειξιν πρέψει]rdquo (269c 2)
3- Regra acerca da disposiccedilatildeo dos astros do movimento do universo e da
participaccedilatildeo divina neste movimento
Logo em seguida o Estrangeiro mostra ao jovem Soacutecrates o estado de coisas do
Universo
Presta atenccedilatildeo O universo umas vezes a divindade guia-o pessoalmente no seu trajecto e acompanha-o no seu movimento circular mas outras afasta-se quando os circuitos atingem o intervalo de tempo apropriado Mas nessa ocasiatildeo por acccedilatildeo do movimento autoacutenomo o cosmos volta novamente agrave posiccedilatildeo contraacuteria uma vez que eacute um ser vivo dotado de inteligecircncia pelo seu arquitecto primordial Todavia este movimento de retrocesso torna-se necessariamente inato pela seguinte razatildeo [Ἀκούοις ἄν τὸ γὰρ πᾶν τόδε τοτὲ microὲν αὐτὸς ὁ θεὸς συmicroποδηγεῖ πορευόmicroενον καὶ συγκυκλεῖ τοτὲ δὲ ἀνῆκεν ὅταν αἱ περίοδοι τοῦ προσήκοντος αὐτῷ microέτρον εἰλήφωσιν ἤδη χρόνου τὸ δὲ πάλιν αὐτόmicroατον εἰς τἀναντία περιάγεται ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν εἰληχὸς ἐκ τοῦ συναρmicroόσαντος αὐτὸ κατ ἀρχάς τοῦτο δὲ αὐτῷ τὸ ἀνάπαλιν ἰέναι διὰ τόδ ἐξ ἀνάγκης ἔmicroφυτον γέγονε] (269c 4 ndash 269d3)
Assim eacute-nos dito que ora eacute o proacuteprio deus que ldquoguia [συmicroποδηγεῖ]rdquo a ldquomarcha
[πορευόμενον]rdquo do universo e preside seu ldquomovimento circular [συγκυκλεῖ]rdquo ora o
deus deixa o universo ir por ele mesmo Quando o universo eacute deixado por si mesmo seu
movimento ldquoautocircnomo [αὐτόmicroατον]rdquo e ldquoinerente [ἔmicroφυτον]rdquo impele-o a girar ldquopara traacutes
[ἀνάπαλιν]rdquo e em ldquosentido inverso[τἀναντία]rdquo33
Esta regra geral do movimento do universo onde o movimento normal do universo
deixado por si mesmo eacute ir no sentido retroacutegrado possui segundo o Estrangeiro uma
razatildeo Razatildeo essa que eacute contada entre 269d 4 e 270a 9 A tese central aqui eacute a mesma
traduccedilatildeo de Luc Brisson em Platon (2003) que traduz σύmicroπαντα por ldquotous ces eacuteveacutenementsrdquo πάθους como tambeacutem πάθος de 269c 1 por ldquoeacutetatrdquo (ldquoraquoEacutetatraquo rend ici paacutethos et deacutesigne la disposition astronomique des mouvements du monderdquo - Brisson (2003 226 n95) Segue nesse mesmo sentido a traduccedilatildeo de Rowe em Plato (1997) σύmicroπαντα eacute traduzido por ldquoall these thingsrdquo e πάθους como tambeacutem πάθος por ldquostate of affairsrdquo 31 Traduccedilatildeo minha 32 Traduccedilatildeo minha 33 Isto eacute em sentido retroacutegrado A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
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44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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1- Apresentaccedilatildeo e definiccedilatildeo do meacutetodo a ser seguido neste novo relato
O Estrangeiro diz que eacute preciso ldquoencetar desde o iniacutecio uma nova via [ὁδὸν]rdquo (268d
5) A este novo caminho seraacute ldquomisturado uma dose de brincadeira [παιδιὰν]rdquo (268d 8)
atraveacutes de um meacutetodo que natildeo mais dar-se-aacute por sucessivas divisotildees mas sim atraveacutes de
ldquoum mito extenso [microεγάλου microύθου]rdquo (268d 9)
2- Mitos que seratildeo entrelaccedilados dentro do ldquomito extensordquo
Apoacutes ter estabelecido o tipo e o meacutetodo do relato o Estrangeiro conta ao jovem
Soacutecrates trecircs mitos que traratildeo liccedilotildees fundamentais para a continuaccedilatildeo do relato do
Estrangeiro Em 268e-269a eacute apresentado o mito de Atreu e Tiestes de onde retiramos a
primeira informaccedilatildeo cosmoloacutegica do mito a divindade mudou a ordem dos astros para
servir de testemunha a Atreu Assim o ldquoSol nasce hoje no lugar onde antes se deitavardquo
(269a 3) Ainda em 269a o Estrangeiro introduz o segundo mito aquele ldquodo governo
exercido por Cronos [τήν γε βασιλείαν ἣν ἦρξε Κρόνος]rdquo (269a 7) Logo em seguida o
Estrangeiro introduz o terceiro mito que iraacute compor a sua grande narrativa Trata-se ldquodo
nascimento dos homens de antanho gerados da terra e natildeo uns dos outros
[τὸ τοὺς ἔmicroπροσθεν φύεσθαι γηγενεῖς καὶ microὴ ἐξ ἀλλήλων γεννᾶσθαι]rdquo (269b 2-3)
Como interpreta Brisson (2000 175-77) os trecircs elementos miacuteticos apresentados pelo
Estrangeiro introduzem tambeacutem os trecircs aspectos que seratildeo entrelaccedilados na grande
narrativa a partir da histoacuteria de Atreu e Tiestes a dimensatildeo coacutesmica atraveacutes do mito do
governo de Cronos a dimensatildeo poliacutetica a partir do mito dos humanos nascidos da terra
a dimensatildeo antropoloacutegica Assim apoacutes anunciar os trecircs mitos o Estrangeiro afirma que
ldquotodos esses acontecimentos aleacutem de milhares de outros ainda mais extraordinaacuterios
resultam todos do mesmo estado de coisasrdquo
[Ταῦτα τοίνυν ἔστι microὲν σύmicroπαντα ἐκ ταὐτοῦ πάθους καὶ πρὸς τούτοις ἕτερα microυρία καὶ
τούτων ἔτι θαυmicroαστότερα] (269b 5-6) 30
30 Traduccedilatildeo minha Carmen Soares traduz σύmicroπαντα por ldquotodas essas situaccedilotildeesrdquo e traduz πάθους por ldquoconjunturardquo Logo agrave frente em 269c 1 verte πάθος por ldquocontextosrdquo Situaccedilotildees conjunturas e contextos talvez decircem a ideia de algo que eacute de alguma forma apenas devido agraves circunstacircncias de um dado momento No entanto aquilo que o Estrangeiro estaacute comeccedilando a estabelecer eacute uma espeacutecie de estado de coisas que define a proacutepria forma coacutesmica do universo atraveacutes de movimentos que ora vatildeo no sentido que conhecemos ora no sentido inverso como discutiremos acerca de 269c-269d Nesse sentido prefiro a
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O Estrangeiro continua e daacute-nos uma informaccedilatildeo que contribuiraacute para entendermos a
inserccedilatildeo do mito dentro do conjunto do diaacutelogo o ldquoestado de coisas [πάθος]rdquo (269c 1)31
que eacute a ldquocausa [αἴτιον]rdquo (269c 1)32 desses acontecimentos ldquointeressa agrave explicaccedilatildeo do que
eacute o rei [τὴν τοῦ βασιλέως ἀπόδειξιν πρέψει]rdquo (269c 2)
3- Regra acerca da disposiccedilatildeo dos astros do movimento do universo e da
participaccedilatildeo divina neste movimento
Logo em seguida o Estrangeiro mostra ao jovem Soacutecrates o estado de coisas do
Universo
Presta atenccedilatildeo O universo umas vezes a divindade guia-o pessoalmente no seu trajecto e acompanha-o no seu movimento circular mas outras afasta-se quando os circuitos atingem o intervalo de tempo apropriado Mas nessa ocasiatildeo por acccedilatildeo do movimento autoacutenomo o cosmos volta novamente agrave posiccedilatildeo contraacuteria uma vez que eacute um ser vivo dotado de inteligecircncia pelo seu arquitecto primordial Todavia este movimento de retrocesso torna-se necessariamente inato pela seguinte razatildeo [Ἀκούοις ἄν τὸ γὰρ πᾶν τόδε τοτὲ microὲν αὐτὸς ὁ θεὸς συmicroποδηγεῖ πορευόmicroενον καὶ συγκυκλεῖ τοτὲ δὲ ἀνῆκεν ὅταν αἱ περίοδοι τοῦ προσήκοντος αὐτῷ microέτρον εἰλήφωσιν ἤδη χρόνου τὸ δὲ πάλιν αὐτόmicroατον εἰς τἀναντία περιάγεται ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν εἰληχὸς ἐκ τοῦ συναρmicroόσαντος αὐτὸ κατ ἀρχάς τοῦτο δὲ αὐτῷ τὸ ἀνάπαλιν ἰέναι διὰ τόδ ἐξ ἀνάγκης ἔmicroφυτον γέγονε] (269c 4 ndash 269d3)
Assim eacute-nos dito que ora eacute o proacuteprio deus que ldquoguia [συmicroποδηγεῖ]rdquo a ldquomarcha
[πορευόμενον]rdquo do universo e preside seu ldquomovimento circular [συγκυκλεῖ]rdquo ora o
deus deixa o universo ir por ele mesmo Quando o universo eacute deixado por si mesmo seu
movimento ldquoautocircnomo [αὐτόmicroατον]rdquo e ldquoinerente [ἔmicroφυτον]rdquo impele-o a girar ldquopara traacutes
[ἀνάπαλιν]rdquo e em ldquosentido inverso[τἀναντία]rdquo33
Esta regra geral do movimento do universo onde o movimento normal do universo
deixado por si mesmo eacute ir no sentido retroacutegrado possui segundo o Estrangeiro uma
razatildeo Razatildeo essa que eacute contada entre 269d 4 e 270a 9 A tese central aqui eacute a mesma
traduccedilatildeo de Luc Brisson em Platon (2003) que traduz σύmicroπαντα por ldquotous ces eacuteveacutenementsrdquo πάθους como tambeacutem πάθος de 269c 1 por ldquoeacutetatrdquo (ldquoraquoEacutetatraquo rend ici paacutethos et deacutesigne la disposition astronomique des mouvements du monderdquo - Brisson (2003 226 n95) Segue nesse mesmo sentido a traduccedilatildeo de Rowe em Plato (1997) σύmicroπαντα eacute traduzido por ldquoall these thingsrdquo e πάθους como tambeacutem πάθος por ldquostate of affairsrdquo 31 Traduccedilatildeo minha 32 Traduccedilatildeo minha 33 Isto eacute em sentido retroacutegrado A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
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44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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O Estrangeiro continua e daacute-nos uma informaccedilatildeo que contribuiraacute para entendermos a
inserccedilatildeo do mito dentro do conjunto do diaacutelogo o ldquoestado de coisas [πάθος]rdquo (269c 1)31
que eacute a ldquocausa [αἴτιον]rdquo (269c 1)32 desses acontecimentos ldquointeressa agrave explicaccedilatildeo do que
eacute o rei [τὴν τοῦ βασιλέως ἀπόδειξιν πρέψει]rdquo (269c 2)
3- Regra acerca da disposiccedilatildeo dos astros do movimento do universo e da
participaccedilatildeo divina neste movimento
Logo em seguida o Estrangeiro mostra ao jovem Soacutecrates o estado de coisas do
Universo
Presta atenccedilatildeo O universo umas vezes a divindade guia-o pessoalmente no seu trajecto e acompanha-o no seu movimento circular mas outras afasta-se quando os circuitos atingem o intervalo de tempo apropriado Mas nessa ocasiatildeo por acccedilatildeo do movimento autoacutenomo o cosmos volta novamente agrave posiccedilatildeo contraacuteria uma vez que eacute um ser vivo dotado de inteligecircncia pelo seu arquitecto primordial Todavia este movimento de retrocesso torna-se necessariamente inato pela seguinte razatildeo [Ἀκούοις ἄν τὸ γὰρ πᾶν τόδε τοτὲ microὲν αὐτὸς ὁ θεὸς συmicroποδηγεῖ πορευόmicroενον καὶ συγκυκλεῖ τοτὲ δὲ ἀνῆκεν ὅταν αἱ περίοδοι τοῦ προσήκοντος αὐτῷ microέτρον εἰλήφωσιν ἤδη χρόνου τὸ δὲ πάλιν αὐτόmicroατον εἰς τἀναντία περιάγεται ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν εἰληχὸς ἐκ τοῦ συναρmicroόσαντος αὐτὸ κατ ἀρχάς τοῦτο δὲ αὐτῷ τὸ ἀνάπαλιν ἰέναι διὰ τόδ ἐξ ἀνάγκης ἔmicroφυτον γέγονε] (269c 4 ndash 269d3)
Assim eacute-nos dito que ora eacute o proacuteprio deus que ldquoguia [συmicroποδηγεῖ]rdquo a ldquomarcha
[πορευόμενον]rdquo do universo e preside seu ldquomovimento circular [συγκυκλεῖ]rdquo ora o
deus deixa o universo ir por ele mesmo Quando o universo eacute deixado por si mesmo seu
movimento ldquoautocircnomo [αὐτόmicroατον]rdquo e ldquoinerente [ἔmicroφυτον]rdquo impele-o a girar ldquopara traacutes
[ἀνάπαλιν]rdquo e em ldquosentido inverso[τἀναντία]rdquo33
Esta regra geral do movimento do universo onde o movimento normal do universo
deixado por si mesmo eacute ir no sentido retroacutegrado possui segundo o Estrangeiro uma
razatildeo Razatildeo essa que eacute contada entre 269d 4 e 270a 9 A tese central aqui eacute a mesma
traduccedilatildeo de Luc Brisson em Platon (2003) que traduz σύmicroπαντα por ldquotous ces eacuteveacutenementsrdquo πάθους como tambeacutem πάθος de 269c 1 por ldquoeacutetatrdquo (ldquoraquoEacutetatraquo rend ici paacutethos et deacutesigne la disposition astronomique des mouvements du monderdquo - Brisson (2003 226 n95) Segue nesse mesmo sentido a traduccedilatildeo de Rowe em Plato (1997) σύmicroπαντα eacute traduzido por ldquoall these thingsrdquo e πάθους como tambeacutem πάθος por ldquostate of affairsrdquo 31 Traduccedilatildeo minha 32 Traduccedilatildeo minha 33 Isto eacute em sentido retroacutegrado A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
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44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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encontrada no Timeu34 ldquoa permanecircncia constante no mesmo estado e na mesma forma
de existecircncia ndash essa eacute uma caracteriacutestica proacutepria apenas dos mais divinos dos seresrdquo
(269d 5-7) Jaacute o ldquoceacuteu e o mundo [οὐρανὸν καὶ κόσmicroον]rdquo(269d 7-8) participam do
ldquocorpoacutereo [σώmicroατος]rdquo (269e 1) e por isso natildeo podem estar isentos de ldquomudanccedila
[microεταβολῆς]rdquo (269e 1)35
4- Primeira eacutepoca coacutesmica movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se
jovem) e universo deixado por si mesmo
Terminada a explicaccedilatildeo da razatildeo do movimento retroacutegrado do universo o Estrangeiro
passa a descrever a primeira eacutepoca coacutesmica (270b 10 ateacute 217c 2)36 Este relato serve
para o narrador colocar em destaque os acontecimentos que vecircm agrave tona quando o
universo eacute deixado por si mesmo e entra assim em movimento retroacutegrado O primeiro
acontecimento daacute-se no proacuteprio movimento de girar em sentido contraacuterio no qual a
maioria animais e dos humanos morrem (270c 11- 270d 4) Os seres humanos
sobreviventes presenciam diversos acontecimentos ldquofantaacutesticos e inusitados
[θαυmicroαστὰ καὶ καινὰ]rdquo (270d 2) quem era velho torna-se jovem atraveacutes de um
gradativo rejuvenescimento ateacute que desaparece completamente Durante este periacuteodo os
seres humanos nasciam da terra graccedilas a uma interligaccedilatildeo entre morte e geraccedilatildeo que
fazia renascer ldquoo trajeto da criaccedilatildeo em sentido inversordquo (271b)
5- Segunda eacutepoca coacutesmica (Era de Cronos) movimento no sentido inverso ao
retroacutegrado (jovem tornar-se velho) universo guiado pelo deus e homens
governados por deuses tutelares
Finda a descriccedilatildeo da eacutepoca anterior (retroacutegrada) o jovem Soacutecrates indaga
Mas no que se refere agrave vida que dizes ter existido durante o reinado de Cronos esta teve lugar no periacuteodo de tempo em que ocorreram essas reviravoltas ou no actual [ἀλλὰ δὴ τὸν βίον ὃν ἐπὶ τῆς Κρόνου φῂς εἶναι δυνάmicroεως πότερον ἐν ἐκείναις ἦν ταῖς τροπαῖς ἢ ἐν ταῖσδε] (271c 4-5)
34 Cf Timeu 37d-38b 35 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria 36 Na explanaccedilatildeo do mito eu assumo as definiccedilotildees de ciclo e eacutepoca coacutesmica estabelecidas por Luc Brisson e jaacute referidas anteriormente (cf n 21)
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
A) Fontes textuais HESIacuteODO Teogonia Trabalhos e Dias Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas de Ana Elias Pinheiro e de Joseacute Ribeiro Ferreira Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005
44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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HESIOD Works and Days Edited and Translated by Glenn W Most LondonCambridge Harvard University Press (Loeb Classical Library) 2006 PLATAtildeO O Poliacutetico Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Carmen Isabel Leal Soares Lisboa Ciacuterculo de Leitores 2008 PLATO Platonis Opera ed John Burnet Oxford Oxford University Press 1903 PLATO Platonis Opera Tomvs I ed ROBINSON DB (et al) Oxford Oxford Clarendon Press 1995 PLATO Statesman Translated and notes by Cristopher Rowe In PLATO Complete Works Edited with introduction and notes by J M Cooper IndianapolisCambridge Hackett Publishing Company 1997 PLATON Le Politique Text eacutetabli et traduit par August Diegraves Paris Les Belles Lettres 1950 PLATON Le Politique Traduction par Luc Brisson et Jean-Franccedilois Pradeau Paris Eacuteditions Flamarion 2003 PLATON Timeacutee Traduit par Eacutemile Chambry Paris Eacuteditions Garnier Fregraveres 1969
B) Obras gerais BRAGUE Remi Du temps chez Platon et Aristote quatre etudes Paris Presses universitaires de France 1982 BRISSON Luc Interpreacutetation du mythe du Politique (268D - 274D) In Lectures de Platon Paris Vrin 2000 BRISSON Luc Le Mecircme et lAutre dans la Structure Ontologique du Timeacutee de Platon Un commentaire systeacutematique du Timeacutee de Platon Troisiegraveme Edition reacuteviseacutee Sankt Augustin Academia Verlag 1998 [1974] CARONE Gabriela R Reversing the Myth of The Politicus Classical Quartely 541 (2004) pp 88-108 CARR Edward Hallet O que eacute Histoacuteria Traduccedilatildeo de Luacutecia Mauriacutecio de Alverga Rio de Janeiro 1996 [1961] CLAY Jenny Strauss Hesiodacutes Cosmos Cambridge Cambridge University Press 2003 DEN BOER W Progress in the Greece of Thucydides Amsterdam North-Holland Publishing Company 1977 DODDS ER The Ancient Concept of Progress In The Ancient Concept of Progress and other
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VIDAL-NAQUET Pierre Platoacutes myth of the Statesman the ambiguities of the Golden Age and of History Journal of Hellenic Studies 98 (1978) pp 132-141 VIDAL-NAQUET Pierre Temps des dieux et temps des hommes Essai sur quelques aspects de lexpeacuterience temporelle chez les Grecs Revue de lhistoire des religions 1571 (1960) pp 55 - 80 WHITE David A Myth Metaphysics and Dialectic in Platoacutes Statesman Burlington Ashgate Publishing Company 2007
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Minha interpretaccedilatildeo eacute que por um lado τροπαῖς refere-se ao periacuteodo de reviravoltas
que vinha sendo descrito ateacute entatildeo ou seja a primeira eacutepoca coacutesmica caracterizada pelo
movimento reverso por outro lado ἐν ταῖσδε quer dizer este momento ou seja esta
eacutepoca em que vivemos (gregos da eacutepoca de Platatildeo)
A resposta do Estrangeiro vem nos seguintes termos
Poreacutem quanto agrave tua pergunta sobre o facto de tudo nascer espontaneamente para satisfazer os homens essa natildeo eacute em absoluto uma caracteriacutestica do movimento presente mas pertencia sim ao anterior [ὃ δ ἤρου περὶ τοῦ πάντα αὐτόmicroατα γίγνεσθαι τοῖς ἀνθρώποις ἥκιστα τῆς νῦν ἐστι καθεστηκυίας φορᾶς ἀλλ ἦν καὶ τοῦτο τῆς ἔmicroπροσθεν] (271c 8 - 271d 3)
A Era de Cronos ou antes o gecircnero de vida em que tudo nascia espontaneamente
para os homens natildeo eacute caracteriacutestico do momento ldquopresente [νῦν]rdquo mas sim do ldquoanterior
[ἔmicroπροσθεν]rdquo A meu juiacutezo o objetivo do Estrangeiro eacute contrapor a Era de Cronos com a
Era atual de Zeus para poder provar que a definiccedilatildeo do rei como pastor de homens
pertence a uma outra eacutepoca que natildeo a presente Esse contraste eacute fundamentalmente
poliacutetico e antropoloacutegico e natildeo cosmoloacutegico natildeo havendo uma oposiccedilatildeo de movimento
coacutesmico entre as Eras de Cronos e de Zeus Assim ἔmicroπροσθεν natildeo se refere agrave primeira
eacutepoca coacutesmica a do movimento reverso jaacute que segundo a apresentaccedilatildeo da Era de
Cronos quase nenhuma caracteriacutestica permite aproximar a Era de Cronos do movimento
retroacutegrado descrito entre 270b 10 e 217c 2
Vejamos entatildeo como o Estrangeiro comeccedila a detalhar as particularidades da Era de
Cronos Esse comeccedilo central para o entendimento da relaccedilatildeo entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus dar-se atraveacutes de uma passagem com dificuldades de interpretaccedilatildeo e de
estabelecimento do texto original37 Conforme encontra-se em Brague (1982 74)
reproduzimos o texto grego dos manuscritos
τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντῃ τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα
A ediccedilatildeo com a qual trabalhamos estabelecida por August Diegraves em Platon (1950) lecirc
37 Trata-se da passagem 271d 3-6 Para uma revisatildeo das propostas de correccedilatildeo dos manuscritos pelos principais editores deste diaacutelogo platocircnico ver Brague (1982 73-96)
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
Revista Aleacutetheia de Estudos sobre Antiguumlidade e Medievo ndash Volume 22 Agosto a Dezembro de 2010 ISSN 1983-2087
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
A) Fontes textuais HESIacuteODO Teogonia Trabalhos e Dias Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas de Ana Elias Pinheiro e de Joseacute Ribeiro Ferreira Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005
44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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HESIOD Works and Days Edited and Translated by Glenn W Most LondonCambridge Harvard University Press (Loeb Classical Library) 2006 PLATAtildeO O Poliacutetico Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Carmen Isabel Leal Soares Lisboa Ciacuterculo de Leitores 2008 PLATO Platonis Opera ed John Burnet Oxford Oxford University Press 1903 PLATO Platonis Opera Tomvs I ed ROBINSON DB (et al) Oxford Oxford Clarendon Press 1995 PLATO Statesman Translated and notes by Cristopher Rowe In PLATO Complete Works Edited with introduction and notes by J M Cooper IndianapolisCambridge Hackett Publishing Company 1997 PLATON Le Politique Text eacutetabli et traduit par August Diegraves Paris Les Belles Lettres 1950 PLATON Le Politique Traduction par Luc Brisson et Jean-Franccedilois Pradeau Paris Eacuteditions Flamarion 2003 PLATON Timeacutee Traduit par Eacutemile Chambry Paris Eacuteditions Garnier Fregraveres 1969
B) Obras gerais BRAGUE Remi Du temps chez Platon et Aristote quatre etudes Paris Presses universitaires de France 1982 BRISSON Luc Interpreacutetation du mythe du Politique (268D - 274D) In Lectures de Platon Paris Vrin 2000 BRISSON Luc Le Mecircme et lAutre dans la Structure Ontologique du Timeacutee de Platon Un commentaire systeacutematique du Timeacutee de Platon Troisiegraveme Edition reacuteviseacutee Sankt Augustin Academia Verlag 1998 [1974] CARONE Gabriela R Reversing the Myth of The Politicus Classical Quartely 541 (2004) pp 88-108 CARR Edward Hallet O que eacute Histoacuteria Traduccedilatildeo de Luacutecia Mauriacutecio de Alverga Rio de Janeiro 1996 [1961] CLAY Jenny Strauss Hesiodacutes Cosmos Cambridge Cambridge University Press 2003 DEN BOER W Progress in the Greece of Thucydides Amsterdam North-Holland Publishing Company 1977 DODDS ER The Ancient Concept of Progress In The Ancient Concept of Progress and other
Essays on Greek Literature and Belief Oxford Oxford Clarendon Press 1973 FIALHO Maria do Ceacuteu Graacutecio Zambujo laquoSobre a dia no Timeuraquo Humanitas Vol 41-42 (1989-1990) pp 65-76 MILLER Mitchell The Philosopher in Platos Statesman Las Vegas Parmenides Publishing 2004 [1980] MORGAN Kathryn Myth and Philosophy from The Presocratics to Plato Cambridge Cambridge University Press 2004 [2000] NESCHKE Ada Dikegrave La philosophie poeacutetique du Droit dans le laquoMythe des Racesraquo dacuteHeacutesiode In BLAISE Fabienne et al Le meacutetier du mythe lectures dHeacutesiode Lille Presses Universitaires du Septentrion 1996 NOVARA Antoinette Les ideacutees romaines sur le Progregraves dacuteapregraves les eacutecrivains de la Reacutepublique ndash Tome I Paris Les Belles Lettres 1982 POPPER Karl The Open Society and its Enemies5th rev ed London Routledge 1966 ROOCHNIK D Residual Ambiguity in Platos Statesman Journal of the International Plato
Society 5 (2005) Disponiacutevel em (httpgramatauniv-paris1frPlatoarticle26html) acesso em 18 de setembro de 2010 TAYLOR CCW Platoacutes Totalitarianism In FINE Gail (org) Plato
2 Ethics Politics Religion and the Soul (Oxford Readings in Philosophy) New York Oxford University Press 1999
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VIDAL-NAQUET Pierre Platoacutes myth of the Statesman the ambiguities of the Golden Age and of History Journal of Hellenic Studies 98 (1978) pp 132-141 VIDAL-NAQUET Pierre Temps des dieux et temps des hommes Essai sur quelques aspects de lexpeacuterience temporelle chez les Grecs Revue de lhistoire des religions 1571 (1960) pp 55 - 80 WHITE David A Myth Metaphysics and Dialectic in Platoacutes Statesman Burlington Ashgate Publishing Company 2007
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τότε γὰρ αὐτῆς πρῶτον τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός ὣς νῦν laquoκαὶraquo κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicroένα (grifo meu)
Assim ὣς νῦν estabelece uma comparaccedilatildeo de identidade entre a Era de Cronos e a
Era de Zeus Contudo os editores divergem ao relacionar ὣς νῦν com a primeira
sentenccedila [τῆς κυκλήσεως ἦρχεν ἐπιmicroελούmicroενος ὅλης ὁ θεός] ou com a segunda
[κατὰ τόπους ταὐτὸν τοῦτο ὑπὸ θεῶν ἀρχόντων πάντ ἦν τὰ τοῦ κόσmicroου microέρη διειληmicromicro
ένα] ou ainda esvaziam qualquer conteuacutedo de comparaccedilatildeo sob justificativa de que
ὣς νῦν natildeo se adequa ao sentido geral do mito como faz a ediccedilatildeo de Burnet em Plato
(1903) que apresenta ὣς δ αὖ no lugar de ὣς νῦν Sendo assim o sentido da
comparaccedilatildeo difere substancialmente de acordo com a opccedilatildeo do editor A ediccedilatildeo de Diegraves
tenta contornar a dificuldade do estabelecimento do texto ao acrescentar uma conjunccedilatildeo
laquoκαὶraquo que interligaria a primeira e a segunda sentenccedila mantendo ὣς νῦν na primeira
sentenccedila Dessa maneira Diegraves traduz como segue
Alors en effet le commandement et la vigilance du dieu sacuteexerccedilait tout dacuteabord comme agrave preacutesent sur lacuteensemble du mouvement circulaire et la mecircme vigilance sacuteexerccedilait localement toutes les parties du monde eacutetant distribueacutees entre des dieux chargeacutes de les gouverner38
Assim de acordo com a interpretaccedilatildeo de Diegraves com a qual concordo o Estrangeiro
afirma que na Era de Cronos da mesma forma que no presente (Era de Zeus) o deus
comanda o ldquomovimento circularrdquo [κυκλήσεως] enquanto que apenas na Era de Cronos
38 Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que segue a liccedilatildeo de Burnet de ler ὣς δ αὖ ver Rowe em Plato (1997) ldquoFor then the god began to rule and take care of the rotation itself as a whole and as for the regions in their turn it was just the same the parts of the world-order having everywhere been divided up by gods ruling over themrdquo (grifo meu) A traduccedilatildeo portuguesa de Carmen Soares tambeacutem traduz ὣς δ αὖ por seguir o texto grego estabelecido por Duke (et alii) em Platonis Opera (1995) Assim a comparaccedilatildeo de identidade entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca atual estabelecida pelo manuscrito e pela ediccedilatildeo e traduccedilatildeo de Diegraves perde-se nesta traduccedilatildeo de Rowe e de Carmen Soares que seguem ambas no fundo a modificaccedilatildeo feita por Burnet no comeccedilo do seacuteculo passado Para um exemplo de uma traduccedilatildeo que relaciona ὣς νῦν com a segunda setenccedila do paraacutegrafo ver BrissonPradeau em Platon (2003) ldquoAlors en effet la reacutevolution du ciel elle-mecircme cacuteeacutetait le dieu que commenccedilait agrave la commander et agrave en prendre soin ayant distribueacute partout comme cacuteest le cas aujourdacutehui par endroits les parties du monde entre des dieux qui les gouvernaientrdquo (grifo meu) Os tradutores franceses que manteacutem portanto ὣς νῦν mas modificam διειληmicromicroένα por διειληφώς escrevem em nota a esta passagem ldquoSi on accepte cette leccedilon et si on traduit en conseacutequence sous le regravegne de Zeus cacuteest-agrave-dire agrave notre eacutepoque les parties du monde sont distribueacutees entre des dieux qui les gouvernent reacutegion par reacutegion tout comme sous le regravegne de Kronos mais alors que sous le regravegne de Kronos cette pratique eacutetait geacuteneacuteral aujourdacutehui elle ne se rencontre que par endroits et elle ne sacuteexerce quacuteindirectementrdquo (Brisson Pradeau 230 nordm124)
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
A) Fontes textuais HESIacuteODO Teogonia Trabalhos e Dias Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas de Ana Elias Pinheiro e de Joseacute Ribeiro Ferreira Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005
44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
Revista Aleacutetheia de Estudos sobre Antiguumlidade e Medievo ndash Volume 22 Agosto a Dezembro de 2010 ISSN 1983-2087
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HESIOD Works and Days Edited and Translated by Glenn W Most LondonCambridge Harvard University Press (Loeb Classical Library) 2006 PLATAtildeO O Poliacutetico Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Carmen Isabel Leal Soares Lisboa Ciacuterculo de Leitores 2008 PLATO Platonis Opera ed John Burnet Oxford Oxford University Press 1903 PLATO Platonis Opera Tomvs I ed ROBINSON DB (et al) Oxford Oxford Clarendon Press 1995 PLATO Statesman Translated and notes by Cristopher Rowe In PLATO Complete Works Edited with introduction and notes by J M Cooper IndianapolisCambridge Hackett Publishing Company 1997 PLATON Le Politique Text eacutetabli et traduit par August Diegraves Paris Les Belles Lettres 1950 PLATON Le Politique Traduction par Luc Brisson et Jean-Franccedilois Pradeau Paris Eacuteditions Flamarion 2003 PLATON Timeacutee Traduit par Eacutemile Chambry Paris Eacuteditions Garnier Fregraveres 1969
B) Obras gerais BRAGUE Remi Du temps chez Platon et Aristote quatre etudes Paris Presses universitaires de France 1982 BRISSON Luc Interpreacutetation du mythe du Politique (268D - 274D) In Lectures de Platon Paris Vrin 2000 BRISSON Luc Le Mecircme et lAutre dans la Structure Ontologique du Timeacutee de Platon Un commentaire systeacutematique du Timeacutee de Platon Troisiegraveme Edition reacuteviseacutee Sankt Augustin Academia Verlag 1998 [1974] CARONE Gabriela R Reversing the Myth of The Politicus Classical Quartely 541 (2004) pp 88-108 CARR Edward Hallet O que eacute Histoacuteria Traduccedilatildeo de Luacutecia Mauriacutecio de Alverga Rio de Janeiro 1996 [1961] CLAY Jenny Strauss Hesiodacutes Cosmos Cambridge Cambridge University Press 2003 DEN BOER W Progress in the Greece of Thucydides Amsterdam North-Holland Publishing Company 1977 DODDS ER The Ancient Concept of Progress In The Ancient Concept of Progress and other
Essays on Greek Literature and Belief Oxford Oxford Clarendon Press 1973 FIALHO Maria do Ceacuteu Graacutecio Zambujo laquoSobre a dia no Timeuraquo Humanitas Vol 41-42 (1989-1990) pp 65-76 MILLER Mitchell The Philosopher in Platos Statesman Las Vegas Parmenides Publishing 2004 [1980] MORGAN Kathryn Myth and Philosophy from The Presocratics to Plato Cambridge Cambridge University Press 2004 [2000] NESCHKE Ada Dikegrave La philosophie poeacutetique du Droit dans le laquoMythe des Racesraquo dacuteHeacutesiode In BLAISE Fabienne et al Le meacutetier du mythe lectures dHeacutesiode Lille Presses Universitaires du Septentrion 1996 NOVARA Antoinette Les ideacutees romaines sur le Progregraves dacuteapregraves les eacutecrivains de la Reacutepublique ndash Tome I Paris Les Belles Lettres 1982 POPPER Karl The Open Society and its Enemies5th rev ed London Routledge 1966 ROOCHNIK D Residual Ambiguity in Platos Statesman Journal of the International Plato
Society 5 (2005) Disponiacutevel em (httpgramatauniv-paris1frPlatoarticle26html) acesso em 18 de setembro de 2010 TAYLOR CCW Platoacutes Totalitarianism In FINE Gail (org) Plato
2 Ethics Politics Religion and the Soul (Oxford Readings in Philosophy) New York Oxford University Press 1999
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VIDAL-NAQUET Pierre Platoacutes myth of the Statesman the ambiguities of the Golden Age and of History Journal of Hellenic Studies 98 (1978) pp 132-141 VIDAL-NAQUET Pierre Temps des dieux et temps des hommes Essai sur quelques aspects de lexpeacuterience temporelle chez les Grecs Revue de lhistoire des religions 1571 (1960) pp 55 - 80 WHITE David A Myth Metaphysics and Dialectic in Platoacutes Statesman Burlington Ashgate Publishing Company 2007
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jaacute que a comparaccedilatildeo limita-se agrave primeira sentenccedila do paraacutegrafo os deuses foram
distribuiacutedos para governarem por todas as ldquoregiotildees [τόπους]rdquo do ldquomundo [κόσmicroου]rdquo
Assim o que haacute de especiacutefico na eacutepoca de Cronos eacute o governo dos deuses por todas as
regiotildees do mundo para aleacutem da vigilacircncia do movimento coacutesmico que tambeacutem
acontece na eacutepoca de Zeus
Em decorrecircncia deste governo dos vaacuterios ldquodeuses tutelaresrdquo (271d 7) temos que ldquoum
deus conduzia os homens pessoalmente na qualidade de seu chefe [θεὸς ἔνεmicroεν αὐτοὺς
αὐτὸς ἐπιστατῶν]rdquo (271e 5)39Sendo assim ldquocom um deus por pastor natildeo havia
regimes poliacuteticos [πολιτεῖαί] nem a posse de esposas e filhosrdquo (271e 8 ndash 272a 1) Natildeo
havia guerras nem desentendimentos os homens viviam ao ar livre sem vestimentas
em um modo de vida cujos viacuteveres vinham espontaneamente ao encontro dos homens
Essa geraccedilatildeo de homens nascia da terra mais precisamente de sementes [σπέρmicroατα]
(272e 3) Natildeo fica expliacutecito se os homens de Cronos nasciam velhos ou jovens mas
caso pensemos em uma analogia com o desenvolvimento das plantas a partir da
semente concluiremos que como na eacutepoca atual os homens nasciam bebecircs e depois
envelheciam40
O debate sobre a Era de Cronos finaliza com uma digressatildeo atraveacutes de uma discussatildeo
sobre qual eacutepoca seria melhor aquela de Cronos ou esta de Zeus Como diz
BrissonPradeau (2003 231 n130) o proacuteprio fato do Estrangeiro levantar esta questatildeo
apoacutes ter descrito a Idade de Cronos jaacute denota que esta eacutepoca natildeo eacute plenamente uma ldquoEra
de Ourordquo Eacute importante notar que certas circunstacircncias favoraacuteveis ligadas a uma quase
nula dependecircncia da necessidade como a espontaneidade dos viacuteveres e a ausecircncia de
preocupaccedilotildees natildeo satildeo garantias suficientes para a felicidade desta eacutepoca jaacute que o
Estrangeiro responde que era preciso que os homens ldquotivessem aproveitado esse
conjunto de circunstacircncias em prol da filosofia
[κατεχρῶντο τούτοις σύmicroπασιν ἐπὶ φιλοσοφίαν]rdquo (272c 1) mas caso os homens
tivessem se dedicado agrave filosofia entatildeo ldquotornar-se-ia evidente que os seres desse tempo
eram de longe mais felizes do que os da presente era [εὔκριτον ὅτι τῶν νῦν οἱ τότε
microυρίῳ πρὸς εὐδαιmicroονίαν διέφερον]rdquo (272c 5-6) Todavia se vivessem apenas
39 Note que o termo θεὸς natildeo estaacute precedido de artigo definido o que causa ambiguidade sobre qual deus o Estrangeiro estaacute falando se o deus que controla o movimento coacutesmico (como o demiurgo do Timeu) ou os deuses tutelaressecundaacuterios que governam os homens neste momento especiacutefico da eacutepoca de Cronos Brague (1982 86-89) argumenta convincentemente em favor da segunda hipoacutetese 40 Esse eacute tambeacutem o raciociacutenio de Carone (2004 97)
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
A) Fontes textuais HESIacuteODO Teogonia Trabalhos e Dias Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas de Ana Elias Pinheiro e de Joseacute Ribeiro Ferreira Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005
44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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HESIOD Works and Days Edited and Translated by Glenn W Most LondonCambridge Harvard University Press (Loeb Classical Library) 2006 PLATAtildeO O Poliacutetico Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Carmen Isabel Leal Soares Lisboa Ciacuterculo de Leitores 2008 PLATO Platonis Opera ed John Burnet Oxford Oxford University Press 1903 PLATO Platonis Opera Tomvs I ed ROBINSON DB (et al) Oxford Oxford Clarendon Press 1995 PLATO Statesman Translated and notes by Cristopher Rowe In PLATO Complete Works Edited with introduction and notes by J M Cooper IndianapolisCambridge Hackett Publishing Company 1997 PLATON Le Politique Text eacutetabli et traduit par August Diegraves Paris Les Belles Lettres 1950 PLATON Le Politique Traduction par Luc Brisson et Jean-Franccedilois Pradeau Paris Eacuteditions Flamarion 2003 PLATON Timeacutee Traduit par Eacutemile Chambry Paris Eacuteditions Garnier Fregraveres 1969
B) Obras gerais BRAGUE Remi Du temps chez Platon et Aristote quatre etudes Paris Presses universitaires de France 1982 BRISSON Luc Interpreacutetation du mythe du Politique (268D - 274D) In Lectures de Platon Paris Vrin 2000 BRISSON Luc Le Mecircme et lAutre dans la Structure Ontologique du Timeacutee de Platon Un commentaire systeacutematique du Timeacutee de Platon Troisiegraveme Edition reacuteviseacutee Sankt Augustin Academia Verlag 1998 [1974] CARONE Gabriela R Reversing the Myth of The Politicus Classical Quartely 541 (2004) pp 88-108 CARR Edward Hallet O que eacute Histoacuteria Traduccedilatildeo de Luacutecia Mauriacutecio de Alverga Rio de Janeiro 1996 [1961] CLAY Jenny Strauss Hesiodacutes Cosmos Cambridge Cambridge University Press 2003 DEN BOER W Progress in the Greece of Thucydides Amsterdam North-Holland Publishing Company 1977 DODDS ER The Ancient Concept of Progress In The Ancient Concept of Progress and other
Essays on Greek Literature and Belief Oxford Oxford Clarendon Press 1973 FIALHO Maria do Ceacuteu Graacutecio Zambujo laquoSobre a dia no Timeuraquo Humanitas Vol 41-42 (1989-1990) pp 65-76 MILLER Mitchell The Philosopher in Platos Statesman Las Vegas Parmenides Publishing 2004 [1980] MORGAN Kathryn Myth and Philosophy from The Presocratics to Plato Cambridge Cambridge University Press 2004 [2000] NESCHKE Ada Dikegrave La philosophie poeacutetique du Droit dans le laquoMythe des Racesraquo dacuteHeacutesiode In BLAISE Fabienne et al Le meacutetier du mythe lectures dHeacutesiode Lille Presses Universitaires du Septentrion 1996 NOVARA Antoinette Les ideacutees romaines sur le Progregraves dacuteapregraves les eacutecrivains de la Reacutepublique ndash Tome I Paris Les Belles Lettres 1982 POPPER Karl The Open Society and its Enemies5th rev ed London Routledge 1966 ROOCHNIK D Residual Ambiguity in Platos Statesman Journal of the International Plato
Society 5 (2005) Disponiacutevel em (httpgramatauniv-paris1frPlatoarticle26html) acesso em 18 de setembro de 2010 TAYLOR CCW Platoacutes Totalitarianism In FINE Gail (org) Plato
2 Ethics Politics Religion and the Soul (Oxford Readings in Philosophy) New York Oxford University Press 1999
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VIDAL-NAQUET Pierre Platoacutes myth of the Statesman the ambiguities of the Golden Age and of History Journal of Hellenic Studies 98 (1978) pp 132-141 VIDAL-NAQUET Pierre Temps des dieux et temps des hommes Essai sur quelques aspects de lexpeacuterience temporelle chez les Grecs Revue de lhistoire des religions 1571 (1960) pp 55 - 80 WHITE David A Myth Metaphysics and Dialectic in Platoacutes Statesman Burlington Ashgate Publishing Company 2007
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apreciando a comida e a bebida e se entregando ldquoagrave discussatildeo de histoacuterias uns com os
outros e com os animaisrdquo (272c 6- 272d 1) natildeo seriam mais felizes do que os homens de
hoje
6- Terceira eacutepoca coacutesmica (entre a eacutepoca de Cronos e a eacutepoca de Zeus)
movimento no sentido retroacutegrado (velho tornar-se jovem) e universo deixado por si
mesmo
Entre 272d 7 e 273a 1 eacute-nos contada a transiccedilatildeo entre a Era de Cronos e um novo
periacuteodo no qual o
timoneiro do universo uma vez abandonada a direcccedilatildeo do leme retira-se para o seu posto de observaccedilatildeo e um desejo inato e traccedilado pelo destino volta o cosmos ao contraacuterio [τότε δὴ τοῦ παντὸς ὁ microὲν κυβερνήτης οἷον πηδαλίων οἴακος ἀφέmicroενος εἰς τὴν αὑτοῦ περιωπὴν ἀπέστη τὸν δὲ δὴ κόσmicroον πάλιν ἀνέστρεφεν εἱmicroαρmicroένη τε καὶ σύmicroφυτος ἐπιθυmicroία] (272e 3-6)
A descriccedilatildeo desta eacutepoca reversa eacute feita a partir de trecircs gradaccedilotildees temporais a
primeira situa-se quando ocorre o afastamento do deus e a consequente mudanccedila para o
sentido retroacutegrado eacute marcada por turbulecircncias que matam a maioria dos animais (273a
1-4)41 A segunda adveacutem quando cessam as turbulecircncias no instante em que o universo
deixado por si proacuteprio entra ldquoem um movimento ordenado [κατακοσmicroούmicroενος]rdquo
seguindo o seu ldquocurso habitual [εἰωθότα δρόmicroον]rdquo (273a 6-7)42 O Estrangeiro diz-nos
que o universo sob seu proacuteprio governo ldquoa princiacutepio actuava com maior rigor [em
relaccedilatildeo aos ensinamentos do demiurgo] contudo para o final tornou-se mais
permissivordquo (273b) Este afastamento das liccedilotildees do deus marca a terceira gradaccedilatildeo
temporal na qual ldquoagrave medida que o tempo avanccedila e o esquecimento se apodera delerdquo
(273c) a parte corpoacuterea floresce cada vez mais e com ela a turbulecircncia ateacute que o
demiurgo necessite intervir para ordenar e restaurar o universo
7- Quarta eacutepoca coacutesmica (Era de Zeus) movimento no sentido oposto ao da
eacutepoca retroacutegrada universo guiado pelo deus e regiotildees do mundo entregues ao
governo dos homens
41 Descriccedilatildeo similar tambeacutem na primeira eacutepoca retroacutegrada 270c 11- 270d 1 42 Traduccedilatildeo minha
Revista Aleacutetheia de Estudos sobre Antiguumlidade e Medievo ndash Volume 22 Agosto a Dezembro de 2010 ISSN 1983-2087
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
A) Fontes textuais HESIacuteODO Teogonia Trabalhos e Dias Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas de Ana Elias Pinheiro e de Joseacute Ribeiro Ferreira Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005
44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
Revista Aleacutetheia de Estudos sobre Antiguumlidade e Medievo ndash Volume 22 Agosto a Dezembro de 2010 ISSN 1983-2087
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HESIOD Works and Days Edited and Translated by Glenn W Most LondonCambridge Harvard University Press (Loeb Classical Library) 2006 PLATAtildeO O Poliacutetico Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Carmen Isabel Leal Soares Lisboa Ciacuterculo de Leitores 2008 PLATO Platonis Opera ed John Burnet Oxford Oxford University Press 1903 PLATO Platonis Opera Tomvs I ed ROBINSON DB (et al) Oxford Oxford Clarendon Press 1995 PLATO Statesman Translated and notes by Cristopher Rowe In PLATO Complete Works Edited with introduction and notes by J M Cooper IndianapolisCambridge Hackett Publishing Company 1997 PLATON Le Politique Text eacutetabli et traduit par August Diegraves Paris Les Belles Lettres 1950 PLATON Le Politique Traduction par Luc Brisson et Jean-Franccedilois Pradeau Paris Eacuteditions Flamarion 2003 PLATON Timeacutee Traduit par Eacutemile Chambry Paris Eacuteditions Garnier Fregraveres 1969
B) Obras gerais BRAGUE Remi Du temps chez Platon et Aristote quatre etudes Paris Presses universitaires de France 1982 BRISSON Luc Interpreacutetation du mythe du Politique (268D - 274D) In Lectures de Platon Paris Vrin 2000 BRISSON Luc Le Mecircme et lAutre dans la Structure Ontologique du Timeacutee de Platon Un commentaire systeacutematique du Timeacutee de Platon Troisiegraveme Edition reacuteviseacutee Sankt Augustin Academia Verlag 1998 [1974] CARONE Gabriela R Reversing the Myth of The Politicus Classical Quartely 541 (2004) pp 88-108 CARR Edward Hallet O que eacute Histoacuteria Traduccedilatildeo de Luacutecia Mauriacutecio de Alverga Rio de Janeiro 1996 [1961] CLAY Jenny Strauss Hesiodacutes Cosmos Cambridge Cambridge University Press 2003 DEN BOER W Progress in the Greece of Thucydides Amsterdam North-Holland Publishing Company 1977 DODDS ER The Ancient Concept of Progress In The Ancient Concept of Progress and other
Essays on Greek Literature and Belief Oxford Oxford Clarendon Press 1973 FIALHO Maria do Ceacuteu Graacutecio Zambujo laquoSobre a dia no Timeuraquo Humanitas Vol 41-42 (1989-1990) pp 65-76 MILLER Mitchell The Philosopher in Platos Statesman Las Vegas Parmenides Publishing 2004 [1980] MORGAN Kathryn Myth and Philosophy from The Presocratics to Plato Cambridge Cambridge University Press 2004 [2000] NESCHKE Ada Dikegrave La philosophie poeacutetique du Droit dans le laquoMythe des Racesraquo dacuteHeacutesiode In BLAISE Fabienne et al Le meacutetier du mythe lectures dHeacutesiode Lille Presses Universitaires du Septentrion 1996 NOVARA Antoinette Les ideacutees romaines sur le Progregraves dacuteapregraves les eacutecrivains de la Reacutepublique ndash Tome I Paris Les Belles Lettres 1982 POPPER Karl The Open Society and its Enemies5th rev ed London Routledge 1966 ROOCHNIK D Residual Ambiguity in Platos Statesman Journal of the International Plato
Society 5 (2005) Disponiacutevel em (httpgramatauniv-paris1frPlatoarticle26html) acesso em 18 de setembro de 2010 TAYLOR CCW Platoacutes Totalitarianism In FINE Gail (org) Plato
2 Ethics Politics Religion and the Soul (Oxford Readings in Philosophy) New York Oxford University Press 1999
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VIDAL-NAQUET Pierre Platoacutes myth of the Statesman the ambiguities of the Golden Age and of History Journal of Hellenic Studies 98 (1978) pp 132-141 VIDAL-NAQUET Pierre Temps des dieux et temps des hommes Essai sur quelques aspects de lexpeacuterience temporelle chez les Grecs Revue de lhistoire des religions 1571 (1960) pp 55 - 80 WHITE David A Myth Metaphysics and Dialectic in Platoacutes Statesman Burlington Ashgate Publishing Company 2007
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Com a nova intervenccedilatildeo divina descrita em 273d-e o relato chega a um fim
provisoacuterio No entanto para acabar de fato com a grande narrativa eacute ainda preciso falar
do tempo atual o tempo de Zeus
No intuito de caracterizar a Era de Zeus o Estrangeiro usa uma metodologia que
consiste em duas confrontaccedilotildees A primeira gira em torno da forma de geraccedilatildeo dos seres
vivos da Era de Zeus que eacute entatildeo confrontada com aquela da Era precedente (a
segunda eacutepoca retroacutegrada e natildeo a Era de Cronos) (273e) Assim esta antiacutetese com a era
precedente (retroacutegrada) e a afirmaccedilatildeo da mudanccedila na forma de gerar natildeo mais do seio
da terra mas agora dos humanos que se auto-procriam (274a) mostram-nos que
diferentemente da eacutepoca retroacutegrada que antecede o tempo presente a geraccedilatildeo tem lugar
como conhecemos agora isto eacute de jovem para velho Em seguida o Estrangeiro
confronta o periacuteodo em vigecircncia com a eacutepoca do governo de Cronos na qual os deuses
tutelares governavam os seres vivos Esse contraste eacute particularmente uacutetil para mostrar
uma primeira fase da eacutepoca de Zeus onde os humanos encontravam-se ldquosem forccedila
[ἀσθενεῖς]rdquo (274b 8)43 ldquosem proteccedilatildeo [ἀφύλακτοι]rdquo (274b 8) ldquosem recursos
[ἀmicroήχανοι]rdquo (274c 1) e ldquosem artes [ἄτεχνοι]rdquo (274c 1)
Diante desse quadro os seres humanos estavam em dificuldades uma vez que natildeo
tinham mais a proteccedilatildeo dos deuses tutelares como ocorria na eacutepoca de Cronos Ateacute que
os deuses resolvem presentear os humanos com alguns recursos marcando uma segunda
fase na eacutepoca de Zeus (274c 7- 274d 1) De Prometeu os homens receberam o ldquofogo
[πῦρ]rdquo de Hefestos e Atenas as ldquoartes [τέχναι]rdquo de outras divindades os humanos
adquiriram ainda as ldquosementes [σπέρmicroατα]rdquo e as ldquoplantas [φυτὰ]rdquo
Assim nas eacutepocas retroacutegradas os seres vivos tambeacutem natildeo se encontravam sob a
vigilacircncia dos deuses tutelares No entanto soacute na eacutepoca de Zeus eacute que haacute intervenccedilatildeo
divina no sentido de suprir as carecircncias deixadas pelo afastamento destes deuses
tutelares simbolizando as conquistas civilizacionais dos homens Isso mostra que soacute faz
sentido o fornecimento de dons e bens em uma eacutepoca que natildeo estaacute marcada por um
inexoraacutevel retrocesso seja este retrocesso macro-coacutesmico ou micro-coacutesmico (a niacutevel
dos seres vivos como o homem) A divindade na eacutepoca de Zeus natildeo estaacute auxiliada
pelos deuses tutelares e eacute por isso que haacute uma intervenccedilatildeo divina alegoricamente
43 A traduccedilatildeo das palavras gregas deste paraacutegrafo eacute de minha autoria
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
A) Fontes textuais HESIacuteODO Teogonia Trabalhos e Dias Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas de Ana Elias Pinheiro e de Joseacute Ribeiro Ferreira Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005
44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
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HESIOD Works and Days Edited and Translated by Glenn W Most LondonCambridge Harvard University Press (Loeb Classical Library) 2006 PLATAtildeO O Poliacutetico Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Carmen Isabel Leal Soares Lisboa Ciacuterculo de Leitores 2008 PLATO Platonis Opera ed John Burnet Oxford Oxford University Press 1903 PLATO Platonis Opera Tomvs I ed ROBINSON DB (et al) Oxford Oxford Clarendon Press 1995 PLATO Statesman Translated and notes by Cristopher Rowe In PLATO Complete Works Edited with introduction and notes by J M Cooper IndianapolisCambridge Hackett Publishing Company 1997 PLATON Le Politique Text eacutetabli et traduit par August Diegraves Paris Les Belles Lettres 1950 PLATON Le Politique Traduction par Luc Brisson et Jean-Franccedilois Pradeau Paris Eacuteditions Flamarion 2003 PLATON Timeacutee Traduit par Eacutemile Chambry Paris Eacuteditions Garnier Fregraveres 1969
B) Obras gerais BRAGUE Remi Du temps chez Platon et Aristote quatre etudes Paris Presses universitaires de France 1982 BRISSON Luc Interpreacutetation du mythe du Politique (268D - 274D) In Lectures de Platon Paris Vrin 2000 BRISSON Luc Le Mecircme et lAutre dans la Structure Ontologique du Timeacutee de Platon Un commentaire systeacutematique du Timeacutee de Platon Troisiegraveme Edition reacuteviseacutee Sankt Augustin Academia Verlag 1998 [1974] CARONE Gabriela R Reversing the Myth of The Politicus Classical Quartely 541 (2004) pp 88-108 CARR Edward Hallet O que eacute Histoacuteria Traduccedilatildeo de Luacutecia Mauriacutecio de Alverga Rio de Janeiro 1996 [1961] CLAY Jenny Strauss Hesiodacutes Cosmos Cambridge Cambridge University Press 2003 DEN BOER W Progress in the Greece of Thucydides Amsterdam North-Holland Publishing Company 1977 DODDS ER The Ancient Concept of Progress In The Ancient Concept of Progress and other
Essays on Greek Literature and Belief Oxford Oxford Clarendon Press 1973 FIALHO Maria do Ceacuteu Graacutecio Zambujo laquoSobre a dia no Timeuraquo Humanitas Vol 41-42 (1989-1990) pp 65-76 MILLER Mitchell The Philosopher in Platos Statesman Las Vegas Parmenides Publishing 2004 [1980] MORGAN Kathryn Myth and Philosophy from The Presocratics to Plato Cambridge Cambridge University Press 2004 [2000] NESCHKE Ada Dikegrave La philosophie poeacutetique du Droit dans le laquoMythe des Racesraquo dacuteHeacutesiode In BLAISE Fabienne et al Le meacutetier du mythe lectures dHeacutesiode Lille Presses Universitaires du Septentrion 1996 NOVARA Antoinette Les ideacutees romaines sur le Progregraves dacuteapregraves les eacutecrivains de la Reacutepublique ndash Tome I Paris Les Belles Lettres 1982 POPPER Karl The Open Society and its Enemies5th rev ed London Routledge 1966 ROOCHNIK D Residual Ambiguity in Platos Statesman Journal of the International Plato
Society 5 (2005) Disponiacutevel em (httpgramatauniv-paris1frPlatoarticle26html) acesso em 18 de setembro de 2010 TAYLOR CCW Platoacutes Totalitarianism In FINE Gail (org) Plato
2 Ethics Politics Religion and the Soul (Oxford Readings in Philosophy) New York Oxford University Press 1999
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VIDAL-NAQUET Pierre Platoacutes myth of the Statesman the ambiguities of the Golden Age and of History Journal of Hellenic Studies 98 (1978) pp 132-141 VIDAL-NAQUET Pierre Temps des dieux et temps des hommes Essai sur quelques aspects de lexpeacuterience temporelle chez les Grecs Revue de lhistoire des religions 1571 (1960) pp 55 - 80 WHITE David A Myth Metaphysics and Dialectic in Platoacutes Statesman Burlington Ashgate Publishing Company 2007
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atribuiacuteda aos deuses oliacutempicos no sentido de capacitar os homens para uma vida
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave perda da proteccedilatildeo dos deuses tutelares Eacute esse o espiacuterito da
proacutexima passagem onde o Estrangeiro termina seu relato realccedilando que
Os cuidados dos deuses44 faltaram aos homens e foi preciso que estes governassem sua proacutepria vida e fossem responsaacuteveis ndash agrave imagem do que sucede com o universo45 inteiro que imitamos e seguimos ao longo de todos os tempos vivendo e crescendo ora da maneira presente ora de acordo com o modo antigordquo [ἐπειδὴ τὸ microὲν ἐκ θεῶν ὅπερ ἐρρήθη νυνδή τῆς ἐπιmicroελείας ἐπέλιπεν ἀνθρώπους δι ἑαυτῶν τε ἔδει τήν τε διαγωγὴν καὶ τὴν ἐπιmicroέλειαν αὐτοὺς αὑτῶν ἔχειν καθάπερ ὅλος ὁ κόσmicroος ᾧ συmicromicroιmicroούmicroενοι καὶ συνεπόmicroενοι τὸν ἀεὶ χρόνον νῦν microὲν οὕτως τοτὲ δὲ ἐκείνως ζῶmicroέν τε καὶ φυόmicroεθα] (274d)
Nesse sentido o tempo de Zeus pode ser visto como uma siacutentese natildeo definitiva entre
por um lado a divindade e o elemento corpoacutereo do mundo por outro lado entre a
divindade e os homens que governam a si proacuteprios Com este relato Platatildeo parece
sugerir que esta siacutentese seraacute mais duradoura se os homens forem cientes de suas
limitaccedilotildees visto que estatildeo submersos em ordens coacutesmicas cujo controle lhes escapa e
se souberem governar uns aos outros da melhor forma que sua condiccedilatildeo humana
permite Caso os homens falhem em lograr boas constituiccedilotildees e bons poliacuteticos o
equiliacutebrio circunstancial entre divindade mundo e homens finda precipitando o fim da
eacutepoca atual e dando origem ao movimento ciacuteclico que serviraacute em uacuteltima anaacutelise para
reaproximar os homensmundo do deus
Concebido sob estaacute oacutetica o mito contado pelo Estrangeiro reverte-se de importacircncia
na medida em que delimita a especificidade do tempo dos homens permitindo aos seres
humanos conscientes de sua condiccedilatildeo no mundo corpoacutereo buscarem a constituiccedilatildeo
correta e o paradigma do poliacutetico Dessa maneira natildeo haacute qualquer paradoxo entre o
conteuacutedo do mito e o escopo do diaacutelogo
Referecircncias bibliograacuteficas
A) Fontes textuais HESIacuteODO Teogonia Trabalhos e Dias Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas de Ana Elias Pinheiro e de Joseacute Ribeiro Ferreira Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005
44 ἐκ θεῶν presente em 274d 3 refere-se a meu ver aos deuses tutelares e natildeo ao demiurgo Assim os homens estatildeo privados dos daimones 45 Ou antes ldquomundordquo [κόσmicroος]
Revista Aleacutetheia de Estudos sobre Antiguumlidade e Medievo ndash Volume 22 Agosto a Dezembro de 2010 ISSN 1983-2087
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HESIOD Works and Days Edited and Translated by Glenn W Most LondonCambridge Harvard University Press (Loeb Classical Library) 2006 PLATAtildeO O Poliacutetico Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Carmen Isabel Leal Soares Lisboa Ciacuterculo de Leitores 2008 PLATO Platonis Opera ed John Burnet Oxford Oxford University Press 1903 PLATO Platonis Opera Tomvs I ed ROBINSON DB (et al) Oxford Oxford Clarendon Press 1995 PLATO Statesman Translated and notes by Cristopher Rowe In PLATO Complete Works Edited with introduction and notes by J M Cooper IndianapolisCambridge Hackett Publishing Company 1997 PLATON Le Politique Text eacutetabli et traduit par August Diegraves Paris Les Belles Lettres 1950 PLATON Le Politique Traduction par Luc Brisson et Jean-Franccedilois Pradeau Paris Eacuteditions Flamarion 2003 PLATON Timeacutee Traduit par Eacutemile Chambry Paris Eacuteditions Garnier Fregraveres 1969
B) Obras gerais BRAGUE Remi Du temps chez Platon et Aristote quatre etudes Paris Presses universitaires de France 1982 BRISSON Luc Interpreacutetation du mythe du Politique (268D - 274D) In Lectures de Platon Paris Vrin 2000 BRISSON Luc Le Mecircme et lAutre dans la Structure Ontologique du Timeacutee de Platon Un commentaire systeacutematique du Timeacutee de Platon Troisiegraveme Edition reacuteviseacutee Sankt Augustin Academia Verlag 1998 [1974] CARONE Gabriela R Reversing the Myth of The Politicus Classical Quartely 541 (2004) pp 88-108 CARR Edward Hallet O que eacute Histoacuteria Traduccedilatildeo de Luacutecia Mauriacutecio de Alverga Rio de Janeiro 1996 [1961] CLAY Jenny Strauss Hesiodacutes Cosmos Cambridge Cambridge University Press 2003 DEN BOER W Progress in the Greece of Thucydides Amsterdam North-Holland Publishing Company 1977 DODDS ER The Ancient Concept of Progress In The Ancient Concept of Progress and other
Essays on Greek Literature and Belief Oxford Oxford Clarendon Press 1973 FIALHO Maria do Ceacuteu Graacutecio Zambujo laquoSobre a dia no Timeuraquo Humanitas Vol 41-42 (1989-1990) pp 65-76 MILLER Mitchell The Philosopher in Platos Statesman Las Vegas Parmenides Publishing 2004 [1980] MORGAN Kathryn Myth and Philosophy from The Presocratics to Plato Cambridge Cambridge University Press 2004 [2000] NESCHKE Ada Dikegrave La philosophie poeacutetique du Droit dans le laquoMythe des Racesraquo dacuteHeacutesiode In BLAISE Fabienne et al Le meacutetier du mythe lectures dHeacutesiode Lille Presses Universitaires du Septentrion 1996 NOVARA Antoinette Les ideacutees romaines sur le Progregraves dacuteapregraves les eacutecrivains de la Reacutepublique ndash Tome I Paris Les Belles Lettres 1982 POPPER Karl The Open Society and its Enemies5th rev ed London Routledge 1966 ROOCHNIK D Residual Ambiguity in Platos Statesman Journal of the International Plato
Society 5 (2005) Disponiacutevel em (httpgramatauniv-paris1frPlatoarticle26html) acesso em 18 de setembro de 2010 TAYLOR CCW Platoacutes Totalitarianism In FINE Gail (org) Plato
2 Ethics Politics Religion and the Soul (Oxford Readings in Philosophy) New York Oxford University Press 1999
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VIDAL-NAQUET Pierre Platoacutes myth of the Statesman the ambiguities of the Golden Age and of History Journal of Hellenic Studies 98 (1978) pp 132-141 VIDAL-NAQUET Pierre Temps des dieux et temps des hommes Essai sur quelques aspects de lexpeacuterience temporelle chez les Grecs Revue de lhistoire des religions 1571 (1960) pp 55 - 80 WHITE David A Myth Metaphysics and Dialectic in Platoacutes Statesman Burlington Ashgate Publishing Company 2007
Revista Aleacutetheia de Estudos sobre Antiguumlidade e Medievo ndash Volume 22 Agosto a Dezembro de 2010 ISSN 1983-2087
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HESIOD Works and Days Edited and Translated by Glenn W Most LondonCambridge Harvard University Press (Loeb Classical Library) 2006 PLATAtildeO O Poliacutetico Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Carmen Isabel Leal Soares Lisboa Ciacuterculo de Leitores 2008 PLATO Platonis Opera ed John Burnet Oxford Oxford University Press 1903 PLATO Platonis Opera Tomvs I ed ROBINSON DB (et al) Oxford Oxford Clarendon Press 1995 PLATO Statesman Translated and notes by Cristopher Rowe In PLATO Complete Works Edited with introduction and notes by J M Cooper IndianapolisCambridge Hackett Publishing Company 1997 PLATON Le Politique Text eacutetabli et traduit par August Diegraves Paris Les Belles Lettres 1950 PLATON Le Politique Traduction par Luc Brisson et Jean-Franccedilois Pradeau Paris Eacuteditions Flamarion 2003 PLATON Timeacutee Traduit par Eacutemile Chambry Paris Eacuteditions Garnier Fregraveres 1969
B) Obras gerais BRAGUE Remi Du temps chez Platon et Aristote quatre etudes Paris Presses universitaires de France 1982 BRISSON Luc Interpreacutetation du mythe du Politique (268D - 274D) In Lectures de Platon Paris Vrin 2000 BRISSON Luc Le Mecircme et lAutre dans la Structure Ontologique du Timeacutee de Platon Un commentaire systeacutematique du Timeacutee de Platon Troisiegraveme Edition reacuteviseacutee Sankt Augustin Academia Verlag 1998 [1974] CARONE Gabriela R Reversing the Myth of The Politicus Classical Quartely 541 (2004) pp 88-108 CARR Edward Hallet O que eacute Histoacuteria Traduccedilatildeo de Luacutecia Mauriacutecio de Alverga Rio de Janeiro 1996 [1961] CLAY Jenny Strauss Hesiodacutes Cosmos Cambridge Cambridge University Press 2003 DEN BOER W Progress in the Greece of Thucydides Amsterdam North-Holland Publishing Company 1977 DODDS ER The Ancient Concept of Progress In The Ancient Concept of Progress and other
Essays on Greek Literature and Belief Oxford Oxford Clarendon Press 1973 FIALHO Maria do Ceacuteu Graacutecio Zambujo laquoSobre a dia no Timeuraquo Humanitas Vol 41-42 (1989-1990) pp 65-76 MILLER Mitchell The Philosopher in Platos Statesman Las Vegas Parmenides Publishing 2004 [1980] MORGAN Kathryn Myth and Philosophy from The Presocratics to Plato Cambridge Cambridge University Press 2004 [2000] NESCHKE Ada Dikegrave La philosophie poeacutetique du Droit dans le laquoMythe des Racesraquo dacuteHeacutesiode In BLAISE Fabienne et al Le meacutetier du mythe lectures dHeacutesiode Lille Presses Universitaires du Septentrion 1996 NOVARA Antoinette Les ideacutees romaines sur le Progregraves dacuteapregraves les eacutecrivains de la Reacutepublique ndash Tome I Paris Les Belles Lettres 1982 POPPER Karl The Open Society and its Enemies5th rev ed London Routledge 1966 ROOCHNIK D Residual Ambiguity in Platos Statesman Journal of the International Plato
Society 5 (2005) Disponiacutevel em (httpgramatauniv-paris1frPlatoarticle26html) acesso em 18 de setembro de 2010 TAYLOR CCW Platoacutes Totalitarianism In FINE Gail (org) Plato
2 Ethics Politics Religion and the Soul (Oxford Readings in Philosophy) New York Oxford University Press 1999
Revista Aleacutetheia de Estudos sobre Antiguumlidade e Medievo ndash Volume 22 Agosto a Dezembro de 2010 ISSN 1983-2087
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VIDAL-NAQUET Pierre Platoacutes myth of the Statesman the ambiguities of the Golden Age and of History Journal of Hellenic Studies 98 (1978) pp 132-141 VIDAL-NAQUET Pierre Temps des dieux et temps des hommes Essai sur quelques aspects de lexpeacuterience temporelle chez les Grecs Revue de lhistoire des religions 1571 (1960) pp 55 - 80 WHITE David A Myth Metaphysics and Dialectic in Platoacutes Statesman Burlington Ashgate Publishing Company 2007
Revista Aleacutetheia de Estudos sobre Antiguumlidade e Medievo ndash Volume 22 Agosto a Dezembro de 2010 ISSN 1983-2087
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VIDAL-NAQUET Pierre Platoacutes myth of the Statesman the ambiguities of the Golden Age and of History Journal of Hellenic Studies 98 (1978) pp 132-141 VIDAL-NAQUET Pierre Temps des dieux et temps des hommes Essai sur quelques aspects de lexpeacuterience temporelle chez les Grecs Revue de lhistoire des religions 1571 (1960) pp 55 - 80 WHITE David A Myth Metaphysics and Dialectic in Platoacutes Statesman Burlington Ashgate Publishing Company 2007