De Vez Em Quando

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De vez em quando – horas depois da concepção ou, em geral, vários dias depois –, as forças que unem células recém- divididas, configurando-as na mesma massa coesa, de algum modo cedem. Em vez de se manterem juntas num conjunto que, meses mais tarde, vai formar um ser humano e, por fim, um indivíduo, essas células se apartam, dando origem a duas entidades independentes, cada uma com suas próprias células em frenética divisão. Embora se separem, elas são uma coisa só: cada núcleo de cada célula encerra o mesmo DNA. Gêmeos idênticos começam a vida assim, como acidentes fortuitos, resultado extraordinário de uma falha sistêmica. A formação de gêmeos fraternos é mais prosaica. Dois espermatozoides distintos encontram dois óvulos diferentes e dão origem a dois bebês. Gêmeos fraternos não são mais parecidos que dois irmãos quaisquer. Singular neles é apenas a simultaneidade: eles são concebidos e nascem aproximadamente ao mesmo tempo. Cada um dos quatro rapazes de Bogotá havia sido criado como um gêmeo fraterno, com uma identidade própria. Agora, porém, cada um deles se dava conta de que tinha um gêmeo idêntico, de que era parte de um par perfeito. Antes ainda de os quatro efetivamente se encontrarem, já nos preâmbulos cada um deles se alinhava, sem o saber, ao irmão com o qual dividira o útero. Carlos e Wilber foram cautelosos, presumindo que não convinha a ninguém levar adiante aquela história – vai saber que problemas aquilo acarretaria? William e Jorge, contudo, revelaram-se abertos à possibilidade de uma aproximação. Poucas horas depois de tomar conhecimento da história, Janeth já havia armado para que os dois últimos se vissem numa praça pública às nove daquela mesma noite, assim que o açougue fechasse. De início avesso à ideia de encontrar os outros irmãos, Wilber foi ficando cada vez mais curioso à medida que olhava as fotos. Quis ir também. Por volta das três da tarde, William falou com Jorge pela primeira vez e perguntou se, além de Brian e Janeth, Wilber também podia ir. Ficou aliviado quando o outro concordou. Ambos notaram que suas vozes não eram parecidas. William tinha uma voz mais rouca e, claro, o sotaque de Santander. Além disso, empregara o tratamento de “senhor”, uma formalidade típica

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De vez em quando – horas depois da concepção ou, em geral, vários dias depois –, as forças que unem células recém-divididas, configurando-as na mesma massa coesa, de algum modo cedem. Em vez de se manterem juntas num conjunto que, meses mais tarde, vai formar um ser humano e, por fim, um indivíduo, essas células se apartam, dando origem a duas entidades independentes, cada uma com suas próprias células em frenética divisão. Embora se separem, elas são uma coisa só: cada núcleo de cada célula encerra o mesmo DNA. Gêmeos idênticos começam a vida assim, como acidentes fortuitos, resultado extraordinário de uma falha sistêmica.

A formação de gêmeos fraternos é mais prosaica. Dois espermatozoides distintos encontram dois óvulos diferentes e dão origem a dois bebês. Gêmeos fraternos não são mais parecidos que dois irmãos quaisquer. Singular neles é apenas a simultaneidade: eles são concebidos e nascem aproximadamente ao mesmo tempo.

Cada um dos quatro rapazes de Bogotá havia sido criado como um gêmeo fraterno, com uma identidade própria. Agora, porém, cada um deles se dava conta de que tinha um gêmeo idêntico, de que era parte de um par perfeito. Antes ainda de os quatro efetivamente se encontrarem, já nos preâmbulos cada um deles se alinhava, sem o saber, ao irmão com o qual dividira o útero. Carlos e Wilber foram cautelosos, presumindo que não convinha a ninguém levar adiante aquela história – vai saber que problemas aquilo acarretaria? William e Jorge, contudo, revelaram-se abertos à possibilidade de uma aproximação. Poucas horas depois de tomar conhecimento da história, Janeth já havia armado para que os dois últimos se vissem numa praça pública às nove daquela mesma noite, assim que o açougue fechasse.

De início avesso à ideia de encontrar os outros irmãos, Wilber foi ficando cada vez mais curioso à medida que olhava as fotos. Quis ir também. Por volta das três da tarde, William falou com Jorge pela primeira vez e perguntou se, além de Brian e Janeth, Wilber também podia ir. Ficou aliviado quando o outro concordou. Ambos notaram que suas vozes não eram parecidas. William tinha uma voz mais rouca e, claro, o sotaque de Santander. Além disso, empregara o tratamento de “senhor”, uma formalidade típica do pessoal do interior. Jorge gostou da voz do rapaz, que parecia não apenas simpático, mas um bom sujeito.

Conforme o momento se aproximava, William foi se fechando, taciturno – estava nervoso. Saiu do trabalho e foi cortar o cabelo. Vestiu seu melhor suéter, preto com listras cinza. E levou consigo sua arma, hábito que adquirira desde os tempos do serviço militar. Andava de um lado para o outro.

Em outro ponto da cidade, Jorge também estava nervoso. Pedira ao irmão que fosse com ele, mas Carlos tinha um compromisso que não estava disposto a cancelar. Assim, quando Jorge topou com um amigo da faculdade, pediu que o acompanhasse, para dar apoio moral.

Na hora marcada, Jorge estava postado na praça, olhando ao redor. As palmas de suas mãos estavam úmidas, ele mal conseguia respirar. Em poucos minutos, um grupo veio caminhando em sua direção. Lá estava William – era a cara de Jorge, tinha o mesmo andar, o mesmo ritmo e os pés engraçados, numa pisada em dez para as duas.

 

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Brian filmou aquele momento em seu celular. Com o som desligado, emudecidas as palavras nervosas, o vídeo mostra Jorge e William numa espécie de pantomima coreografada e ritualizada. William olha fixo para Jorge, enquanto Jorge desvia o olhar para o lado; a seguir, é William quem volta a cabeça para o outro lado, como se, intuitivamente, desse a Jorge a oportunidade de fitar seu rosto, o que ele, de fato, faz. Os dois se encaram – os olhares se encontram por um breve momento de intimidade surpreendente, eles trocam sorrisos; depois tornam a desviar os olhos. Em rápidas olhadelas, parecem amantes prestes a confessar a paixão recíproca. Jorge se recompõe e dirige, enfim, um olhar de avaliação a William; como masca chiclete, seu queixo trabalha um bocado. Depois, leva a mão ao rosto, apertando a própria carne. Sim, este sou eu; e aquela pessoa ali é ele. William permanece em silêncio, apoiando-se ora numa perna, ora na outra, o que dá a impressão de que está balançando. (“Foi como olhar num espelho e ver, do outro lado, um universo paralelo”, Jorge diria mais tarde.)

Para Jorge era mais fácil encarar Wilber, o sósia de Carlos – ele o olha e balança a cabeça. Wilber havia visto as fotos de Carlos, que usava óculos. “Só me faltam os óculos!”, disse, com um risinho agudo que fez Jorge sentir outra vez a pressão no peito: era a risada de Carlos.

Depois de ter constatado a semelhança de William e Jorge, Wilber agora ansiava por conhecer Carlos. Jorge telefonou para o irmão, avisando que estavam indo para lá, e o grupo se amontoou em dois táxis rumo ao apartamento de Jorge e Carlos.

Por volta das dez da noite, Carlos ouviu o toque da campainha. Caminhou até a porta e ali ficou, paralisado: não conseguia abri-la. Sabia que era Jorge com aqueles rapazes das fotos. Aquelas pessoas não eram apenas estranhas, eram mais que isso: eram personagens de uma história de sua vida sobre a qual ele tinha pouco controle.

“Abre a porta!”, Jorge ordenou. Carlos ouviu uma risadinha. Era a sua própria, mas não provinha dele – ou talvez sim. “Não quero”, Carlos respondeu. “Estou apavorado.” Segundos se passaram, Carlos ria nervosamente de um lado, Wilber do outro. “Carlos, abre a porta!”, Jorge repetiu. Não se pode tapar o sol com a peneira, a mãe deles costumava dizer.

Carlos abriu a porta e o grupo entrou. Vinham em fila, como uma procissão num sonho. Ali estavam Jorge com seu duplo – um Jorge com um suéter estranho, idêntico a seu irmão, mas mais tímido, sem aquela confiança toda. Ali estava uma mulher também, e um outro sujeito. E ali estava ele: Carlos agora fitava a si mesmo, uma visão modificada de si próprio, uma fotocópia engraçada, uma piada, um pesadelo.

Olhava para Wilber, sua imagem refletida. Os dois se espiaram de relance, soltaram um “ai!” e viraram de costas, tampando os olhos e corando. Wilber começou a falar, mas Carlos estava tendo dificuldade para entender o que ele dizia. Em lugar do “r” vibrante, Wilber pronunciava um “d”. O defeito da fala! Carlos também o apresentara, quando criança, mas superara com sessões de fonoaudiologia.

Os quatro começaram a trocar figurinhas, interrogando-se para descobrir as características compartilhadas pelos gêmeos idênticos. Quem eram os birrentos da família? Carlos e Wilber! E os mais dóceis? Jorge e William! Quem eram os mais

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ordeiros? Carlos e Wilber! E os que corriam atrás das meninas? Carlos e Wilber! E os mais fortes? Jorge e William!

Ainda assim, enquanto Jorge só via semelhanças a cada vez que olhava para William, Carlos procurava as diferenças entre ele e seu duplo de Santander. “Veja nossas mãos”, ele disse. “Não são iguais.” As de Wilber eram maiores, mais grossas, cheias de cicatrizes da lida com as facas do açougue e com os facões que, quando mais jovem, empunhara no campo. Carlos, por outro lado, ia à manicure – suas unhas, como não é incomum entre os colombianos, estavam recobertas de base incolor.

William perguntou a Jorge sobre sua mãe biológica. Como ela era? Onde estava? Observando cuidadosamente o rosto de William, Jorge contou-lhe que a mãe deles havia morrido de câncer quatro anos antes. Mostrou-lhe uma foto dela ainda jovem: cabelos compridos presos na nuca, belos olhos num rosto de expressão doce e séria. Ao olhar para a foto, William sentiu uma nova onda de pesar e não disse mais nada por vários minutos.

Durante a maior parte da noite, o clima do encontro foi de arrebatamento. Os rapazes se divertiam com as semelhanças, mais fáceis de identificar que as diferenças. Mas um profundo sentimento de perda pairava sobre cada um deles: o tempo perdido com pais e irmãos biológicos, as oportunidades perdidas, os anos perdidos, os perdidos mitos da criação.

Jorge parecia determinado a manter afastados aqueles sentimentos, pelo menos por ora. “Tudo que aconteceu”, disse ao grupo, “é que nossas famílias aumentaram.” Alguém perguntou: “Time de futebol?” E os quatro gritaram em uníssono o nome de um time popular na Colômbia: “Atlético Nacional!”

Por volta da meia-noite, as visitas se foram, prometendo que logo se reencontrariam. Jorge e Carlos se entreolharam na sala vazia. Tudo continuava igual, tudo havia mudado. “E aí, o que a gente faz agora?”, Carlos perguntou. Jorge percebeu que ele começara a chorar. Carlos, então, caminhou até Jorge e o envolveu num abraço apertado. “Eu quero ser seu irmão”, disse.

 

Gêmeos idênticos não fazem muito sentido, do ponto de vista evolutivo. Já os fraternos têm o benefício da diversidade genética, o que aumenta as chances de pelo menos um sobreviver a um eventual infortúnio. Ainda assim, a despeito desse seu caráter inexplicável, os gêmeos idênticos nos ajudam a elucidar o entendimento mais básico de como e por que nos tornamos o que somos. Mediante o estudo da sobreposição de características em gêmeos fraternos (que, em média, compartilham 50% de seus genes) e em gêmeos idênticos (que compartilham 100% de seus genes), cientistas vêm tentando, há mais de um século, descobrir quanto da variação que encontramos no interior de uma população pode ser atribuído à hereditariedade e quanto ao ambiente. “Gêmeos merecem atenção especial”, escreveu sir Francis Galton, cientista britânico que, no final do século XIX, foi o primeiro a comparar gêmeos muito parecidos com gêmeos não tão parecidos (embora a ciência da época ainda não diferenciasse os gêmeos idênticos dos fraternos). “Isso porque sua história nos proporciona meios de

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distinguir os efeitos das tendências herdadas de nascença daqueles impostos pelas circunstâncias específicas de sua vida posterior.”

Galton, que era primo de Darwin, é conhecido tanto por ter cunhado o termo “eugenia” quanto por sua análise inovadora dos gêmeos (tendo concluído, em parte como consequência de sua pesquisa, que pessoas saudáveis e inteligentes deveriam receber incentivos para procriar mais). Seu sucessor no plano científico, o dermatologista alemão Hermann Werner Siemens, realizou no início da década de 20 os primeiros estudos com gêmeos, não muito díspares daqueles que vêm sendo efetuados. Siemens, contudo, tirou conclusões que contaminaram por muitas décadas a área de pesquisa que ele capitaneou, apoiando os argumentos de Hitler em favor da “higiene racial”. Ao procurar as origens genéticas de vários traços considerados desejáveis ou indesejáveis, pesquisadores como ele pareciam se aproximar perigosamente da busca por uma raça superior.

Mas, apesar de períodos de muita controvérsia, o estudo dos gêmeos proliferou. Ao longo dos últimos cinquenta anos, cerca de 17 mil traços foram investigados, de acordo com uma meta-análise conduzida pela pesquisadora holandesa Tinca Polderman e pelo australiano Beben Benyamin, publicada este ano na Nature Genetics. Cientistas afirmam ter identificado influência genética em características tão variadas como a posse de armas, a preferência eleitoral, a homossexualidade, a satisfação no trabalho, o consumo de café, a obediência às regras e a insônia. Em virtualmente todos os estudos, os pesquisadores observaram que os resultados dos testes aplicados em gêmeos idênticos são mais semelhantes do que aqueles aplicados em gêmeos fraternos.

As pesquisas apontam a influência dos genes em quase todos os aspectos de nosso ser – uma conclusão tão abrangente que alguns cientistas concluíram que certamente haveria algum erro fatal na metodologia empregada. “Tudo pode ser herdado”, afirma Eric Turkheimer, geneticista comportamental da Universidade de Virgínia. “Quanto mais geneticamente aparentadas forem duas pessoas, tanto mais semelhantes elas serão em qualquer aspecto que se queira examinar” – personalidade, preferência por programas de tevê ou tendência política. “Mas isso pode ser verdade mesmo sem que haja por trás desse fenômeno algum tipo específico de mecanismo, alguma versão de um gene como o da doença de Huntington. É algo que resulta dos complexos efeitos combinados de um número incontável de genes.”

Pode-se dizer, talvez, que o ramo mais surpreendente da pesquisa acerca dos gêmeos envolva uma classe pequena e incomum de sujeitos: a dos gêmeos idênticos criados separadamente. Thomas Bouchard Jr., um psicólogo da Universidade de Minnesota, começou a estudá-los em 1979, quando ficou sabendo de Jim e Jim, gêmeos de Ohio que haviam sido reunidos naquela época, aos 39 anos de idade. Eles não só eram muito parecidos, como também passavam férias na mesma praia de Miami, casaram-se com mulheres com o mesmo nome, divorciaram-se, tornaram a se casar com mulheres com o mesmo nome, fumavam a mesma marca de cigarros e tinham por hobby construir móveis em miniatura. Parecidos tanto em personalidade como no tom de voz, era como se tivessem sido formados por inteiro na concepção, impermeáveis aos efeitos exercidos por pais, irmãos ou geografia.

Bouchard foi adiante e pesquisou mais de oitenta pares de gêmeos idênticos criados separadamente, comparando-os a gêmeos idênticos criados juntos e também a gêmeos

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fraternos criados juntos e em separado. Descobriu que, praticamente em todos os casos, os gêmeos idênticos, criados juntos ou não, eram mais parecidos que os fraternos, tanto em personalidade como – resultado ainda mais controvertido – em inteligência. Uma descoberta inesperada em sua pesquisa sugeria que o efeito do ambiente compartilhado por um par de gêmeos – o efeito exercido pelos pais, por exemplo – pouca influência tinha na personalidade. Influência maior exerciam os genes e as experiências únicas, como um semestre passado no exterior ou um amigo importante.