DEBATES E TENDÊNCIAS

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HISTÓRIA HISTÓRIA DEBATES E TENDÊNCIAS DEBATES E TENDÊNCIAS Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo

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HISTÓRIAHISTÓRIADEBATES E TENDÊNCIASDEBATES E TENDÊNCIASRevista do Programa de Pós-Graduação em História

da Universidade de Passo Fundo

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

Rui Getúlio SoaresReitor

Eliane Lucia ColussiVice-reitora de Graduação

Hugo Tourinho FilhoVice-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação

Adil de Oliveira PachecoVice-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários

Nelson Germano BeckVice-reitor Administrativo

Neusa Maria Henriques RochaDiretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

UPF EditoraSimone Meredith Scheffer BassoEditora

Maria Emilse LucatelliEditoria de Texto

Sabino GallonRevisão de Emendas

Jeferson Cunha LorenzLuis A. Hofmann Jr.Produção dapa

Sirlete Regina da SilvaProjeto Gráfico e Diagramação

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIAAdelar Heinsfeld - Coordenador

Curso de HistóriaAna Luiza Setti Reckziegel

Conselho EditorialAdelar HeinsfeldAna Luiza Setti ReckziegelEduardo Munhoz SvartmanGerson Luís TrombettaGizele ZanottoJanaína Rigo SantinJoão Carlos TedescoLuiz Carlos Tau GolinMário MaestriPaulo Zarth

Conselho ConsultivoAaron Shatzman (Montgomery County Community College)Albene Menezes (UnB)Ana Frega (Universidad de la Republica – Uruguai)Beatriz Carolina Crisório (Universidad de Buenos Aires – UBA)Emílio Franzina (Universitá Degli Studi di Verona)Enrique Padrós (UFRGS)Estevão de Rezende Martins (UnB)Flavio Heinz (PUCRS)Fernando Camargo (UFPel)Guilherme Pereira Neves (UFF)Helder Gordim da Silveira (PUCRS)Hernán Silva (UNS – Argentina)Jerzy Mazurek (Universidade de Varsóvia)Márcia Menendes Motta (UFF)Marcus Carvalho (UFPE)Philomena Gebran (USS)Sandra Maria Lubisco Brancato (PUCRS)Silvia Maria Fávero Arend (Udesc)

HISTÓRIA: DEBATES E TENDÊNCIASISSN –1517-2856Indexada em The History Journals Guide

A revista História: Debates e Tendências é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo, tendo por objetivo a divulga-ção de artigos, resenhas, ensaios e entrevistas na área de história e ciências sociais

Coordenadora: Ana Luiza Setti Reckziegel

Organizador deste número:Mário Maestri

História : Debates e Tendências / Universidade de Passo Fundo, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós- Graduação em História. – Vol. 1, n. 1, (junho, 1999)-.- Passo Fundo : UPF, 1999-.

Semestral ISSN 1517-2856 1.História – Periódico I. Universidade de Passo Fundo. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História.

SumárioEditorial

1968: o ano que abalou o mundo ................................................ 7

Dossiê“Maio de 1968: o Brasil e o mundo”

Brasil, 1968: o assalto ao céu, a descida ao inferno ................ 13Brésil, 1968: l’assaut au ciel, la descente aux enfers

Mário Maestri

O 68 no Uruguai: crise estrutural, mobilização social e autoritarismo ............................................................................. 28The 68 in Uruguay: strucctural crisis, mobilization social and bossiness

Enrique Serra PadrósAnanda Simões Fernandes

México: el movimiento del 1968 no se olvida ........................... 50Mexico: the movement of 1968 is not forgotten

Rodolfo Bórquez Bustos

Maio de 1968: a greve geral que abalou a França ................... 85May 1968: the general strike that staggered France

Robert Ponge

De las protestas juveniles a los movimientos sociales: del Mayo Francés al Cordobaza ............................................. 102From youthful outcries to social movements: from French May to Cordobaza

María José BecerraDiego Buffa

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História: Debates e Tendências – v. 8, n. 1, jan./jul. 2008, publ. no 1o sem. 2009

Itália - 1968: movimento estudantil e conflito social ............ 114Italia, 1968: mouvement étudiant et conflit social

Achille Lollo

1968 no Brasil: a visão dos militares ..................................... 1321968 in Brazil: the military view

Eduardo Munhoz Svartman

O que queremos? Queremos tudo! Breve ensaio interpretativo sobre o sentido histórico de 1968 ................... 148Que voulons-nous? Nous voulons tout! Brèves réflexions interprétatives sur la signification historique de mai 191968

Mário Maestri

Artigos livres

A imagem e suas representações no ensino de história ........ 163The image and its representations in the teaching of history

Ademar Firmino dos Santos

Revisitando (criticamente) as leituras do golpe .................... 171Reviewing the readings of the coup

Daniel de Mendonça

O sertão, Os sertões: a construção da região Nordeste do Brasil a partir da interface entre história e literatura ......... 195The sertão, The sertões: the building of Northest region of Brazil from the interface between history and literature

Tiago Bonato

O círculo e a flecha: representações do tempo no desenvolvimento da música .................................................... 215The circle and the arrow: time representations in the development of music

Gerson Luís Trombetta

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História: Debates e Tendências – v. 8, n. 1, jan./jul. 2008, publ. no 1o sem. 2009

“O leitor pergunta”: o jornal Mensageiro Luterano e o ideal missionário da Igreja Evangélica Luterana do Brasil entre 1980 e 1989 ......................................................... 226Does the reader ask?: the Lutheran Messenger newspaper and the ideal missionary of Evangelical Lutheran Church of Brazil between 1980 and 1989

Diogo da Silva RoizMarcos Scherwinski

Resenha

Rio Grande em debate: conservadorismo e mudança ........... 247Rio Grande in debate: conservation and move

Jacqueline Ahlert

Normas para publicação ......................................................... 254

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História: Debates e Tendências – v. 8, n. 1, jan./jul. 2008, publ. no 1o sem. 2009

Editorial

1968: o ano que abalou o mundo

Em 2008 realizaram-se no Bra-sil e no mundo inúmeras iniciativas acadêmicas destinadas a registrar o transcurso dos quarenta anos de 1968, abordando os múltiplos aspectos des-se momento singular do século XX. Naquelas iniciativas, como na grande mídia e na editoria, enfatizaram-se so-bretudo as transformações culturais e comportamentais nascidas ou acelera-das durante aquela conjuntura mun-dial – o feminismo, a revolução sexual, a criatividade artística, os direitos civis e das minorias, etc. Em geral, 1968 foi apresentado como um momento singu-lar, mas vencido e superado, para sem-pre, pela marcha inexorável dos quatro decênios sucessivos.

De segunda-feira, 26, a sexta-feira, 30 de maio de 2008, o Progra-ma de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF) realizou o ciclo de debates “Maio de 1968: o Brasil e o mundo”, sob a co-ordenação dos historiadores Ana Luiza Setti Reckziegel e Mário Maestri, com

em torno a trezentos participantes. Palestraram no evento os doutores em História Eduardo Svartman (PPGH/UPF), Mário Maestri (PPGH/UPF), Enrique Serra Padrós (PPGH/UFRGS) e os doutores em Letras Miguel Ret-tenmaier (PPGL/UPF) e Roberto Pon-ge (UFRGS). Mediaram as discussões os historiadores Ana Luiza Setti Re-ckziegel, Adelar Heisnfeld, Haroldo Loguércio Carvalho, todos docentes do PPGH da UPF.

O evento “Maio de 1968: o Brasil e o mundo” priorizou – como assinala-va sua convocatória – a apresentação e a discussão da “conjuntura política, social e econômica nacional e mundial, vivida pelo Brasil e por grande parte do mundo, nos anos 1960”, que teve seu “ápice”, sem se limitar e se esgotar, naquele momento histórico singular. Sobretudo, 1968 foi relembrado como momento referencial, de “fundamental importância para a história contem-porânea, com permanências e refle-xos que se sentem, ainda muito fortes,

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História: Debates e Tendências – v. 8, n. 1, jan./jul. 2008, publ. no 1o sem. 2009

atualmente”. Sobretudo, foi discutido como uma situação candentemente em aberto, devido a sua inconclusão.

Na abordagem dos acontecimen-tos que agitaram naquele então o Brasil, a França, a China e a Améri-ca Latina, espaços de análise dos pa-lestrantes, retomou-se um filão inter-pretativo já quase abandonado, após o refluxo e derrota do enorme impulso social com epicentro naquele ano refe-rencial, duas décadas mais tarde, com a vitória mundial da maré neoliberal de 1989, ou seja, os expositores comun-garam principalmente na compreensão de 1968 como momento de impulsão de conjuntura revolucionária de ampli-dão e profundidade mundial próxima, talvez, apenas à conhecida pela huma-nidade em 1917, quando da Revolução Russa.

Com o objetivo de registrar as re-flexões apresentadas durante o evento, propôs-se, desde o início da sua organi-zação, acolher em número temático da revista História: Debates e Tendências, dedicado às jornadas de 1968, as inter-venções, ampliadas, dos palestrantes, às quais foram incorporados textos so-bre os fatos na Argentina, com ênfase nas jornadas de Córdoba, em 1969, de autoria dos historiadores argentinos José Becerra e Diego Buffa; sobre as lutas e o massacre da praça das Três Culturas, no México, em 1968; do soci-ólogo Rodolfo Bórquez Bustos, chileno,

professor da Universidad Autónoma de Guerrero; do jornalista italiano Achille Lollo, há muito radicado no Brasil, so-bre as lutas estudantis e operárias na Itália.

Há forte diversidade no que se refere à nacionalidade e à geração dos presentes autores. Temos brasi-leiros, argentinos, chileno, francês e italiano. Os mais veteranos, ainda estudantes, em 1968 e nos anos ime-diatamente seguintes, enfrentaram as forças policiais nas ruas de Paris, de Roma, de Porto Alegre, de Santiago, com uma consciência muito limitada dos momentos históricos que viviam. Os mais jovens há pouco ou sequer ha-viam nascido quando o Quartier Latin se inflamou, Córdoba explodiu, o norte da Itália conheceu o Outono Quente, o Brasil incendiou-se com a morte do se-cundarista Édison Luís de Lima Sou-to! Porém, um fio vermelho transpassa e unifica em geral todos os artigos na diversidade de suas interpretações: a defesa de 1968, de sua memória, de seu programa, de seu caráter histórico referencial, como um ano que se nega a esgotar-se, pois espera e necessita can-dentemente realizar-se.

Ainda neste número, a revista contempla artigos de temática diversa que se constituem numa significativa colaboração. O artigo de Ademar Fir-mino dos Santos, “A imagem e suas representações no ensino de história”,

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História: Debates e Tendências – v. 8, n. 1, jan./jul. 2008, publ. no 1o sem. 2009

aborda a imagem, sua forma de produ-ção e intencionalidade na perspectiva de que o documento imagético consti-tui uma fonte documental.

Daniel de Mendonça, em “Revi-sitando (criticamente) as leituras do golpe”, discute a historiografia sobre o período 1964, analisa as obras de Al-fred Stepan, René Dreifuss, Argelina Figueiredo e Wanderley Guilherme dos Santos e sugere alguns elementos que fundamentam uma nova possibi-lidade de compreensão do movimento de 1964.

Tiago Bonato aborda uma questão histórica a partir da fonte literária em “O sertão, Os sertões: a construção da região Nordeste do Brasil a partir da interface entre história e literatura”, discutindo como as narrativas ficcio-nais podem trazer à tona o problema da realidade histórica, questionando nos relatos à fidelidade à região obser-vada, o Nordeste.

Em “O círculo e a flecha: repre-sentações do tempo no desenvolvimen-to da música”, Gerson Luís Trombetta analisa como as expressões artístico-musicais articulam-se dialeticamente com o desenvolvimento do pensamento humano e constituem um meio para esclarecer como cada época histórica produz suas referências de sentido.

E, por fim, Diogo da Silva Roiz e Marcos Scherwisnki, no artigo “‘O leitor pergunta’: o jornal Mensagei-ro Luterano e o ideal missionário da Igreja Evangélica Luterana do Brasil entre 1980 e 1989”, fazem uma aná-lise das principais dificuldades que a Igreja Evangélica Luterana do Brasil enfrentou no decorrer do século XX no tocante à formação de pastores e como o periódico evangélico contribuiu para minimizar esta situação.

Ana Luiza Setti Reckziegel

e Mário Maestri

Dossiê “Maio de 1968:

o Brasil e o mundo”

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História: Debates e Tendências – v. 8, n. 1, jan./jul. 2008, p. 13-27, publ. no 1o sem. 2009

Em inícios de 1960, sucederam-se avanços e retrocessos das lutas sociais, com destaque para a vitória cubana e a derrota do nacional-populismo no Brasil, onde, muito logo, renasceu a oposição social à ditadura militar, im-pulsionada pelas medidas recessivas implementadas no contexto de tensa situação mundial, dominada pelas lu-tas pacifistas e antirracistas nos EUA e de libertação nacional na Palestina e Vietnã. No Brasil, em 1967 renascia a resistência operária e, em 1968, viveu-se o apogeu das lutas estudantis, no Brasil e no mundo. Sob a pressão dos acontecimentos, surgiram no Brasil organizações revolucionárias, comu-mente influenciadas pelo foquismo. Sobretudo a juventude secundarista e a universitária empreendem vigorosas mobilizações no contexto de forte re-sistência cultural. A morte de Édison Luís de Lima Souto, em 28 de março de 1968, galvanizou a mobilização es-

Resumo

Brasil , 1968: o assalto ao céu, a descida ao inferno

Mário Maestri∗

tudantil no país. Rio de Janeiro viveu a “Passeata dos Cem mil”. Entretanto, em Osasco, greve operária foi derrota-da e o Congresso da UNE, de Ibiúna, reprimido. O refluxo da oposição co-meçava a se impor no país, enquanto seguiam ações militares de vanguarda dissociadas da população. Em dezem-bro, foi decretado o ato institucional no 5. O refluxo do apoio à resistência era determinado pela expansão econômica transitória, que neutralizou as classes médias e setores operários mais atra-sados. Isolada, sem conseguir levantar programa de lutas factível, a resistên-cia foi reprimida, dispersa, derrotada. A ditadura manteve-se até 1985, quan-do abandonou o poder, sob os golpes do renascimento de ação popular e operá-ria, mas que não materializou demo-cratização social e política de fato.

Palavras-chave: 1968. Ditadura mili-tar. Movimento estudantil.

* Doutor em História. Professor do curso de Gra-duação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo.

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Os inícios dos anos 1960 haviam sido contraditórios para as lutas sociais no mundo. Em 1964, sob a orientação colaboracionista do Partido Comunis-ta, o movimento popular brasileiro fora derrotado sem lutar. Em 1965-1966, a mesma política facilitara o massacre de um milhão e meio de comunistas e a consolidação da ditadura na Indoné-sia. O assassinato do líder marroquino socialista Ben Barka (1920-1965) , na França , em outubro de 1965, e a depo-sição de Ben Bella por Boumédienne (1932-1978) , na Argélia , em junho do mesmo ano, registravam também os li-mites da luta pela emancipação social, sob a direção de classes burguesas na-cionais tidas como progressistas.

A década iniciara-se também sob signos auspiciosos. Nas barbas do gi-gante imperialista, em 1959, a partir da Sierra Maestra , um grupo de jovens revolucionários galvanizara o forte movimento de rebeldia da população da pequena ilha e vergara a ditadura odiada. Dois anos mais tarde, a revo-lução cubana assumiria caráter clara-mente socialista.1 Em abril de 1961, o fiasco da invasão imperialista da baía dos Porcos aumentou a humilhação estadunidense. Sobretudo, na Indochi-na, avançava incessantemente a luta armada das forças populares vietna-mitas, apesar dos ingentes recursos militares empregados pelos EUA.

A derrota brasileira

A derrota no Brasil pesara for-temente sobre a conjuntura mundial. No início da década de 1960, amplos setores populares e médios haviam aderido às propostas de difusas refor-mas de base, que, prometia-se, resga-tariam os marginais das cidades e dos campos e relançariam o industrialismo que modernizara relativamente, nas três décadas anteriores, a anacrônica estrutura rural da nação. Em 1964, o projeto nacional-reformista fora abor-tado violentamente. Em nome das clas-ses proprietárias do país, os militares impuseram a ditadura, reprimindo du-ramente o movimento popular. A der-rota fora ainda mais frustrante porque ocorrera sem qualquer resistência, precisamente quando muitos se julga-vam a um passo da vitória.

Os grandes líderes populistas – João Goulart (1919-1976) , Leonel Brizola (1922-2004) e Miguel Arraes (1916-2005) – abandonaram o país sem resistir. Brizola propusera, inutilmen-te, oposição de última hora, rejeitada terminantemente pelo presidente João Goulart , seu cunhado.2 O Partido Co-munista Brasileiro, a grande organi-zação da esquerda, de orientação pró-soviética, mantivera até o triste fim do governo constitucional seu atrela-mento ao populismo nacionalista, em-perrando a organização autônoma dos

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trabalhadores. Após o golpe de 1964, o Partidão reafirmou sem qualquer au-tocrítica sua política colaboracionista.3

No Brasil , a euforia dos vencedo-res seria curta. Através do mundo, a crise capitalista mundial, que se insi-nuaria nas principais economias mun-diais, em 1967, por primeira vez, após longos anos de crescimento ininterrup-to, exigia que trabalhadores e assala-riados apertassem os cintos, para que o grande capital “tirasse suas casta-nhas do fogo”. Desde abril de 1964, os militares brasileiros intervinham nos sindicatos; parlamentares populares tiveram os direitos políticos cassados; militares democratas foram reforma-dos; conquistas sociais foram confis-cadas; a renda da classe média e dos trabalhadores despencou em razão da política recessiva ditada pelo grande capital ao governo subserviente do di-tador Castelo Branco (1964-1967).

O desemprego aumentava. A in-flação corroía os salários. As classes médias passavam desiludidas para a oposição, após haverem marchado, em março de 1964, com “Deus, pela pátria e pela família”, convocadas pelo impe-rialismo, pela Igreja e pelos partidos de direita, preparando a intervenção mili-tar que “salvaria” o país da “ditadura sindicalista”. Políticos antipopulares, ou que haviam apoiado o golpe, como Carlos Lacerda (1914-1977) e Jusceli-no Kubitschek (1902-1976) , marginali-

zados do poder, uniram-se a João Gou-lart em uma efêmera “Frente Ampla ”, em fins de 1966, ao compreender que os militares pretendiam se eternizar no poder.4

Poder negro

A situação internacional era ten-sa e dinâmica. Após o fiasco dos regi-mes árabes conservadores, com desta-que para o Egito , a Síria e a Jordânia , na Guerra dos Seis Dias , contra Israel, de inícios de junho 1967, a guerrilha palestina assumia a luta antissionista em lugar das direções conservadoras desmoralizadas. Com a crise econômi-ca chegando aos EUA, em boa parte em razão dos gastos de guerra, que an-tes haviam apenas garantido lucros ao grande capital, o movimento pacifista estadunidense questionava duramente a intervenção no Vietnã e os valores do american way of life. O imperialismo yankee era golpeado no próprio ventre. Malcolm X (1925-1965) fora assassi-nado em fevereiro de 1965 em Nova York , mas o black power fortalecia-se e os bairros negros ardiam sob o fogo do ódio da população humilhada. Os hispano-estadunidenses e as próprias populações ameríndias levantavam também a cabeça. No Vietnã, em 30 de janeiro 1968, morreriam os sonhos de vitória militar, com a ofensiva do Ano Ted , durante a qual os vietecongues

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atacaram mais de trinta cidades sul-vietnamitas e a própria embaixada dos Estados Unidos em Saigon. Entretan-to, a classe operária estadunidense, apesar das importantes jornadas da-queles anos, manteve-se politicamen-te imóvel, sob a hegemonia do grande capital.

De 31 de julho a 10 de agosto de 1967 ocorreu em Havana , Cuba , o pri-meiro encontro internacional da Orga-nização Latino-Americana de Solida-riedade (Olas ), fundada um ano antes, em 1966. Após teorizar sumária e su-perficialmente a experiência vivida na ilha, a direção cubana propunha clara-mente a generalização incondicional da luta guerrilheira rural – “Criar um, dois, mil Vietnãs ”. Ainda que de forma confusa e voluntarista, a Olas rompia o monopólio político soviético que de-fendia, na América Latina e através do mundo, a colaboração e subordi-nação do movimento popular às bur-guesias nacionais, apresentadas como “progressistas”. A presença de Carlos Marighella (1911-1969) no encontro da Olas, noticiada amplamente, ao ser conhecida no Brasil , levou à expulsão do conhecido militante comunista do PCB .5 A captura e morte de Ernesto Che Guevara (1928-1967) , em 8 de ou-tubro de 1967, na selva boliviana, foi vista como um duro percalço no longo caminho a ser trilhado, não como resul-tado das inconsequências da proposta

de início da luta armada por pequenos grupos à margem das lutas e da cons-ciência reais dos trabalhadores.6

No Brasil , como na França , na Itália , na Alemanha Federal , no Japão , no México e em tantas outras regiões do mundo, 1968 abrir-se-ia sob o sig-no da resistência já explícita.7 No Bra-sil, a crise econômica de 1967 levara a que o movimento operário, lutando contra o arrocho salarial, se recuperas-se, minimamente, dos golpes sofridos. Em 16 de abril, 1.200 operários da si-derúrgica Belgo-Mineira cruzavam os braços em Contagem , Minas Gerais ; logo dezesseis mil trabalhadores en-contravam-se em greve. O movimento encerrou-se no início do mês seguinte, com um abono salarial de 10%. No 1° de maio de 1968, outra importante vi-tória: o governador Abreu Sodré (1917-1999) e sua comitiva, convidados por sindicalistas pelegos e do PCB para subir ao palanque da praça da Sé , fo-ram vaiados, escorraçados e obrigados a se refugiar na catedral paulistana. Os participantes do comício, sob a con-signa “Só a greve derruba o arrocho”, queimaram o palanque e partiram em passeata. No mês seguinte, eclodiram breves paralisações nas montadoras de São Bernardo.

Em maio, fortíssimos ventos euro-peus avivavam o braseiro nacional. A cidade de Paris e, a seguir, a França , foram convulsionadas pelo estudan-

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tado universitário enragé. Muito logo, o movimento operário iniciou dura e longa greve geral. O governo de Char-les De Gaulle (1890-1970) recuou, a ordem burguesa tremeu, falou-se em governo popular, antes que o Partido Comunista Francês canalizasse a mo-bilização da rua e as ocupações de fá-brica para a luta institucional, enter-rando-as sob um estrondoso fracasso eleitoral. O maio francês galvanizou o mundo, colocando quase nas sombras as lutas estudantis e operárias, igual-mente muito duras na Itália e na pró-pria Alemanha Federal , avivada neste último país pelo atentado ao líder es-tudantil Rudi Dutschke (1940-1979) , em 11 de abril de 1968. No mesmo mês era assassinado Martin Luther King (1929-1968) , em Memphis , Tennessee . Na França lutara-se contra o autorita-rismo, contra a discriminação, contra os privilégios, pelo socialismo operário e democrático. Uma geração de líderes de vinte anos conquistava a juventude do mundo com seu radicalismo, incon-formismo, desprendimento, coerência – Daniel Cohn-Bendit , Alain Krivine , Jacques Sauvageot, e outros.

Revolução na revolução

A vitória cubana impusera o prin-cípio de que a revolução iniciaria pela ação exemplar de alguns guerrilheiros. Em 1967, o foquismo seria teorizado,

em Revolução na revolução?, pelo jo-vem francês Regis Debrey , intelectual de vocação guerrilheira rápida e de pouco sucesso. Se o foco não pudesse ser lançado no campo, seria iniciado na cidade.8 Desde janeiro de 1967, o ativismo dos Guardas Vermelhas chi-nesas contra a restauração capitalista, hoje plenamente vitoriosa, prestigiava o maoísmo, sobretudo entre os jovens católicos franceses radicalizados. A ação das organizações trotskistas na França divulgava o marxismo-revo-lucionário, o antistalinismo, o antibu-rocrático, tornando a seguir Ernest Mandel (1923-1995) figura pública mundial.

Debilitado pela derrota de 1964, o PCB explodia em uma constelação de grupos radicalizados. Jovens che-gados da Juventude Universitária Ca-tólica (JUC) e da Juventude Operária Católica (JOC) aderiam à luta anti-imperialista e anticapitalista.9 Então, o Brasil conheceu uma multiplicidade de pequenas organizações revolucio-nárias – Aliança Libertadora Nacional (ALN) , Comando de Libertação Nacio-nal (Colina), Partido Comunista Bra-sileiro Revolucionário (PCBR) , Ação Popular (AP) , VAR-Palmares , Partido Operário Comunista (POC) , Fração Bolchevique-Trotskista , Movimento Revolucionário Tiradentes , e outras – com algumas centenas de militan-tes, mais comumente de 17 a 25 anos,

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e abrangência em geral regional.10 A juventude universitária e secundaris-ta abraçava a luta política, cultural e ideológica com destemor, magnanimi-dade e impaciência. Saía às ruas pi-chando – literalmente, pois, na época, não havia o spray – “Mais verbas e me-nos canhões”; “Um, dois, mil Vietnãs ”, “O povo unido derruba a ditadura”, “Viva a aliança operário-estudantil”. Conscientes de que não há prática sem teoria, os jovens militantes liam sem cessar, sobretudo história, economia, sociologia – A revolução russa, de León Trotsky (1879-1940) ; O diário na Bolí-via, de Ernesto Che Guevara ; os três Profetas, de Isaac Deutscher (1907-1967) ; A revolução brasileira, de Caio Prado Júnior (1907-1990) ; Formação histórica do Brasil, de Werneck So-dré; O livro vermelho, de Mao Tsé-tung (1893-1976) ; Poemas do cárcere, de Ho Chi Minh (1890-1969) .

Em 1968, pela primeira vez no Brasil , a Civilização Brasileira publi-cava O capital, de Karl Marx (1818-1883) . Militantes imberbes devoravam os grossos volumes, de fio a pavio, pági-na por página, sem os compreenderem muito. Estudavam-se e debatiam-se os mínimos detalhes das revoluções rus-sa, chinesa e cubana, ainda que fosse bem menor o interesse sobre a história do Brasil, sobretudo do período ante-rior a 1930, durante o qual as catego-rias da sociologia do capitalismo não

eram plenamente funcionais, nem ha-via tempo e vontade para se empreen-der interpretação original do passado brasileiro. Pelo país afora, discutia-se e polemizava-se duramente. O futuro estava ao alcance da mão. Abraçavam-se as nuvens, em um assalto aos céus.

A explosão de criatividade inva-diu as artes, sobretudo a música, o teatro, o cinema, a produção editorial nacionais. Uma estética radical de raí-zes tupiniquins garantia momentos de glória ao cinema nacional. Nélson Pereira dos Santos filmara o clássico Vidas secas em 1963 e Anselmo Duarte conquistara Cannes com O pagador de promessas , de 1962. O quase-menino Glauber Rocha (1939-1981) dirigira Terra em transe em 1967 e concluiria, em 1969, O dragão da maldade contra o santo guerreiro . Filmaria a grande mobilização carioca de 1968, para pro-jeto cinematográfico jamais concreti-zado. Bertolt Brecht (1898-1956 ) era uma constante nos teatros nacionais – Os fuzis da senhora Carrar , Galileu Galilei , A ópera dos três vinténs, Mãe coragem e seus filhos. A dramaturgia nacional plantava raízes próprias com Liberdade, liberdade e Arena conta Zumbi, de 1965, Arena conta Tiraden-tes , de 1967, e com encenações explo-sivas como Roda-viva , de 1968, objeto de ataques de grupos paramilitares di-reitistas.11

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A cultura é do povo

Num país de poucos leitores, com a televisão ainda engatinhando, o com-bate cultural enfuriava quando se tra-tava da música popular. Apenas par-cialmente inconscientes do papel que cumpriam, Roberto Carlos , Erasmo Carlos , Vanderléia e a turma da “Jo-vem Guarda ” pregavam a despolitiza-ção é só pediam “que você me aqueça nesse inverno e que tudo mais vá para o inferno”.12 A esquerda dominava to-talmente o campo, com uma seleção que só aceitava “craques”: Caetano , Chico , Elis Regina , Jair Rodrigues , Gilberto Gil , Geraldo Vandré , Vinícius de Morais, e outros. Quando dos fes-tivais da canção, a disputa politizada transformava-se em uma quase bata-lha campal.13

Por meio da música, debatiam-se a ação imediata e os projetos para o futuro do país. Numa época sem ceri-mônias, iconoclasta, o público levanta-va-se contra os monstros sagrados que se construíam, caso ousassem sair da linha, ou do que se pensava que fosse a linha. Em 28 de março de 1968, três dias antes do quarto aniversário do golpe, as polícias militares do Exército e da Aeronáutica invadiram o restau-rante do Calabouço , no Rio de Janeiro , e dispararam, à queima-roupa, contra os estudantes, matando Édison Luís de Lima Souto , de 18 anos. No dia se-

guinte, sexta-feira, a antiga capital da República parou para que sessenta mil populares acompanhassem a despedida ao secundarista. A resposta foi violen-ta. Por diversos dias, a cidade tornou-se campo de acirrada batalha: de um lado, estudantes e populares; do outro, polícia e exército. Universitários, se-cundaristas e populares foram mortos. Ao se deslocarem pelas ruas do centro, os soldados protegiam-se debaixo das marquises dos objetos atirados dos edifícios. Um policial militar, a cavalo, morreu ao receber na cabeça um pesa-do balde carregado de cimento fresco, lançado de um edifício em construção.

A agitação estudantil alastrou-se pelo Brasil , com manifestações nas principais capitais. Na quarta-feira, 26 de junho, o movimento alcançou seu ápice. No Rio de Janeiro , cem mil ma-nifestantes concentraram-se na Cine-lândia e desfilaram pelo centro, numa demonstração permitida pelo governo. Cinquenta mil pessoas protestaram nas ruas de Recife. As grandes mani-festações alcançaram efeito inespe-rado. Dias mais tarde, uma comissão da “Passeata dos Cem mil”, do Rio de Janeiro, seria recebida em Brasília pelo ditador Costa e Silva (1902-1969) . Entre os membros da delegação encon-trava-se um representante da UNE , entidade colocada na ilegalidade ime-diatamente após o golpe. Entretanto, o encontro não teve consequências.

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A mobilização operária levara a oposição sindical a planejar um amplo movimento grevista para o fim do ano, quando da data-base de importantes ca-tegorias. A explosão das manifestações de junho aceleraria a greve. Em 16 de julho, José Ibrahim , com 21 anos, pre-sidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco , ligado à organização milita-rista VPR , liderou greve da Cobrasma , de seis mil trabalhadores, com ocupa-ção da empresa e aprisionamento dos funcionários graduados, à qual aderi-ram dez mil trabalhadores de outras indústrias. O movimento exigiu rea-juste de 35%, reposição salarial a cada três meses e outras reivindicações. A ditadura militar respondeu violenta-mente. Centenas de trabalhadores fo-ram presos e despedidos. A Cobrasma foi invadida. José Ibrahim mergulhou na clandestinidade, sendo preso em 2 de fevereiro de 1969. Mais tarde, liber-tado e banido como parte dos prisionei-ros políticos trocados pelo embaixador estadunidense, partiu para o México, Cuba, Chile e, a seguir, para a Bélgi-ca .14 Zequinha , dirigente operário da Cobrasma, foi preso e torturado. Após cinco dias, a greve quebrava-se. Uma segunda paralisação, em Contagem , Minas Gerais , em outubro, foi reprimi-da com facilidade. A greve geral do fim do ano jamais seria tentada.

A queda do congresso da UNE

No país decrescia a mobilização. Em 12 de outubro, o movimento es-tudantil, espinha dorsal da oposição, recebeu forte golpe. Subestimando a repressão, a direção da UNE reuniu para seu 30° Congresso, num sítio em Ibiúna , cidadezinha do interior de São Paulo , milhares de delegados chegados de todo o país. A prisão dos participan-tes permitiu a detenção das direções e o mapeamento das lideranças estudan-tis do norte ao sul do país.15 No mesmo dia em que caía o congresso de Ibiúna, era varado pelas balas de um comando militar da VPR , diante de sua residên-cia, em São Paulo, o capitão estaduni-dense Charles Chandler , funcionário da CIA, “estudando” sociologia no Bra-sil . Os dois acontecimentos ilustravam a orientação que viveria a resistência nos anos seguintes. Ações armadas de grupos de corajosos jovens militan-tes, isolados socialmente, pretendiam substituir o movimento de massas em refluxo. Em 2 de outubro, na capital mexicana, na praça das Três Culturas , de duzentos a trezentos estudantes e populares foram massacrados pelo exército e policiais durante concen-tração, dez dias antes do início dos Jo-gos Olímpicos, que se realizaram sem quaisquer pruridos morais.16

Sobretudo de 1969 a 1973, orga-nizações de esquerda militaristas, ins-

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piradas no foquismo guevarista, lança-riam “ações” espetaculares – assaltos a bancos; sequestros de embaixadores e de aviões; execuções de torturadores; guerrilhas rurais, etc. –, sem que os trabalhadores urbanos e rurais aderis-sem à proposta de luta armada imedia-ta, milhões de anos-luz longe de suas consciências, necessidades e capacida-de de organização na época. Isoladas, as organizações militaristas seriam dizimadas, uma após a outra, pela re-pressão, que se estenderia igualmente aos militantes voltados para a organi-zação dos trabalhadores e classes po-pulares. Por esses anos, automóveis da nova classe média ascendente inva-diam as ruas portando o autocolante “Brasil : ame-o ou deixe-o”, distribuí-do pela repressão, simples tradução da consigna direitista estadunidense America love it or leave it.

Em 15 de setembro de 1968, na fi-nal paulista do III Festival Internacio-nal da Canção , da Globo , no Teatro da Universidade Católica de São Paulo, acompanhado pelos Mutantes , Cae-tano Veloso apresentou a música “É proibido, proibir”, vestido de roupas de plástico colorido, com colares exóticos no pescoço, enquanto um jovem esta-dunidense, ainda mais psicodélico, sal-tava e berrava no palco, como parte da coreografia.17 Da competição partici-pava a canção finalista “Caminhando” (“Para não dizer que não falei das flo-

res”), de Geraldo Vandré , classificada em segundo lugar, que se tornaria uma espécie de hino da resistência. “Vem, vamos embora / Que esperar não é sa-ber / Quem sabe faz a hora / Não espe-ra acontecer.”

As históricas vaias que recebeu Caetano Veloso certamente interpreta-vam a consciência do público, formado quase exclusivamente por jovens, do distanciamento cada vez maior de par-te da intelectualidade da resistência em refluxo. Em 1972, Elis Regina can-taria querer apenas “uma casa no cam-po, do tamanho ideal…” A defecção de seu parceiro Jair Rodrigues – “O morro não tem vez / e o que ele fez já foi de-mais / Mas olhem bem vocês / Quando derem vez ao morro / Toda a cidade vai cantar” – seria ainda mais bucólica. Nos anos seguintes, apenas alguns ar-tistas continuariam segurando a pete-ca e cutucando a onça com vara curta. Entre eles, sobretudo, Chico Buarque, que prosseguiu no ataque, ainda que fosse armado com um despretensioso roquezinho, no estilo “você não gosta de mim, mas sua filha gosta”, ou com com-posições clássicas e duras como “Fado tropical”, com Ruy Guerra , de 1972-3, ou “Cálice”, de 1975, com Gilberto Gil . Seu “Apesar de você”, de 1970, tornar-se-ia o hino da luta final contra a dita-dura e a esperança de uma reparação dos crimes por ela cometidos, que até hoje não se concretizou – “Hoje você é

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quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão”; “Você vai pagar e é do-brado / Cada lágrima rolada / Nesse meu penar”.18

Descida aos infernos

O ano, que nascera sob o signo da vontade popular, concluía-se sob o ta-cão militar. A resistência iniciava sua descida aos infernos. Em 29 de agosto de 1968, tropas policiais e militares, poderosamente armadas, invadiam a Universidade de Brasília . As cenas re-gistradas pela imprensa lembravam a ação das tropas de ocupação nazistas: estudantes marcham com as mãos à cabeça e deitam-se sob a mira das ar-mas. O golpe seria desferido dias mais tarde. Um anódino pronunciamento do deputado Márcio Moreira Alves , em 2 e 3 de setembro, pedindo o boicote da população ao desfile de Sete de Setem-bro, serviu para que os militares apre-sentassem o pedido de levantamento da imunidade do parlamentar, a fim de instaurarem o processo que desagra-varia o pundonor castrense arranha-do. Em 12 de dezembro, o Congresso Nacional rechaçou o pedido aviltante. No dia seguinte, 13 de dezembro de 1968, o governo liquidou o que restava de liberdade democrática. O caso Már-cio Moreira Alves era uma justificati-va. No início do ano, em abril, o bri-gadeiro João Paulo Burnier propusera

ao Para-sar , serviço de salvamento da Aeronáutica, uma ampla campanha terrorista, com execuções individuais e atentados de massa – explosão do gasômetro do Rio de Janeiro e da re-presa de Ribeirão das Lajes, etc. –, para “fechar” de todo o regime. O pla-no fora frustrado em virtude de oposi-ção do capitão-aviador Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho , castigado e re-formado pelo seu destemor. O ato ins-titucional nº 5 cerrou o Congresso, as Assembleias Legislativas, suspendeu o habeas-corpus, fortaleceu a censura, preparou o caminho para a repressão, o aprisionamento, a tortura, a elimina-ção dos opositores.19

O refluxo da mobilização popular tinha raízes muito mais profundas do que a repressão. Elas haviam passado despercebidas a uma oposição formada, em sua maioria, por jovens que apenas despertavam para a vida política. Des-de inícios de 1968, após anos de reces-são, a economia nacional expandia-se. A superexploração dos trabalhadores, o ingresso de capitais internacionais, a reorientação da produção para a expor-tação, a abertura de novos mercados, etc. relançavam a produção interna. O desemprego caía, a acumulação de ca-pitais crescia, o empresariado nacional apegava-se ao regime que permitia au-mentar fortemente seus ganhos. Ago-ra, para os empresários, falar em de-mocracia e direitos sindicais era uma

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indecência. Ao contrário, eles pediam, com insistência, mais repressão, che-gando a financiar e participar direta-mente da tortura, junto com policiais e militares. Nas décadas seguintes, a população nacional pagaria patetica-mente a conta social e econômica do “milagre”. Em meados de 1968, a ex-pansão econômica e a repressão poli-cial ganhavam vastos setores sociais, sobretudo das classes médias, para uma posição de apatia, senão de apoio inicialmente tíbio a um regime mili-tar que lhes prometia realizar os mais queridos desejos.

A queda da inflação, financiamen-tos habitacionais acessíveis, emprésti-mos a baixo custo permitiam que seto-res das classes médias conquistassem o sonho da casa própria, do primeiro automóvel, da primeira viagem à Eu-ropa . Nos anos seguintes, ao visitar o Velho Mundo, os “filhos do milagre” manter-se-iam distantes dos apestados banidos e exilados que eventualmente encontravam. Em 1969, em “Pequeno burguês”, Martinho da Vila festejava a possibilidade de setores populares formarem-se nas universidades pagas, incentivadas pela ditadura, após duro esforço: “Dizem que sou burguês / Mui-to privilegiado / Mas burgueses são vocês /.” O final da canção não deixa lugar a dúvidas: “E quem quiser ser como eu / vai ter é que penar um boca-do”. / Muito mais explícitos eram Dom e Ravel, em 1970, com “Eu te amo, meu

Brasil , eu te amo. / Meu coração é ver-de, amarelo, branco, azul-anil. / Nin-guém segura a juventude do Brasil.” O claro sucesso de vendagens dessas músicas registrava os novos ventos e o isolamento social crescente da oposi-ção à ditadura.20

Num cenário de progressão social, as classes médias fechavam comumen-te os olhos para a superexploração das classes operárias e para a repressão da oposição. Os militantes que haviam “nadado como peixe na água”, por entre uma população alçada contra o regime militar, sentiam-se agora como lamba-ris na frigideira. Nas universidades, eram apontados com o dedo; antigos companheiros trocavam de calçada, para não serem vistos ou falar com o “famigerado subversivo”. A expansão econômica neutralizaria importantes setores operários. Os baixos salários e os altos ritmos de produção foram vis-tos como uma quase-libertação por tra-balhadores recém-chegados do campo. Superjornadas de 12 e mais horas de trabalho permitiam a aquisição de pro-dutos de consumo durável, antes fora do alcance do orçamento popular – te-levisor, refrigerador, etc.21 Sobretudo a expansão da indústria metal-mecânica criaria uma jovem aristocracia operá-ria, relativamente bem paga. Ela se confrontaria, poderosamente, com o re-gime, mais tarde, em fins dos anos 70, quando o retorno da inflação corroe ria os salários.22

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Ousar lutar, ousar vencer

A modernização conservadora do país originaria um funcionalismo pú-blico federal bem remunerado, empre-gado nas grandes estatais, em expan-são. O crescimento selvagem do ensino privado superior diminuía a pressão social em razão da falta de vagas nas universidades públicas. As universi-dades federais foram reorganizadas segundo padrões estadunidenses. Pela primeira vez, criava-se uma burocracia acadêmica, bem paga e bem financia-da, que mergulharia, em uma enorme parte, por mais de uma década, num calmo e cômodo apoliticismo travestido de neutralidade científica. Isolados so-cialmente, insensíveis ao novo contex-to nacional, as organizações armadas travaram, a partir de 1969, o “combate nas trevas” a que se refere Jacob Go-render em seu livro homônimo, peque-no clássico sobre aqueles duros anos. Presos entre o confronto dos grupos armados e a repressão, as organiza-ções que não haviam se deixado arras-tar pela aventura militarista tiveram suas possibilidades de intervenção du-ramente diminuídas, no contexto do confronto armado que se vivia no país. Crescentemente isolada e incapaz de apresentar projeto político que inter-pretasse as necessidades das amplas massas e definisse formas de luta e de organização adaptadas à época, a mi-litância de esquerda desmoralizou-se, abandonou a luta, caiu combatendo,

foi aprisionada, tomou o caminho do exílio ou procurou sobreviver, na dura situação de ditadura. Nos mais duros momentos, agoniados pelo peso da der-rota, centenas de militantes permane-ceram no país, organizando a resistên-cia, como podiam.23

A ditadura do capital, que parecia vacilar em 1968, manter-se-ia ainda por longos anos, até 1985, quando a mobilização operária e popular con-quistaria, finalmente, a redemocrati-zação, sem, porém, obter, no momento da transição, o direito a eleições dire-tas, de punição dos crimes da ditadura, de restauração dos direitos sociais per-didos, etc., conhecendo uma nova der-rota, ao substituir-se ao regime militar governo que manteve no essencial as modificações institucionais empreen-didas nos vinte anos de regime militar, em desfavor das classes subalternas e em favor dos privilegiados. Tancredo Neves e José Sarney, eleitos como presi-dente e vice-presidente indiretamente, eram políticos conservadores oriundos, respectivamente, das filas da oposição moderada consentida e da base políti-ca de apoio do regime militar. De certo modo, simplesmente “se mudava tudo, para que tudo ficasse igual”.24

Aprofundada pela vitória da ofen-siva neoliberal internacional de fins dos anos 1980, quarenta anos mais tarde, nesse 2008, a derrota do movi-mento de 1968 no Brasil pesou ainda poderosamente sobre a vida nacional. Aquelas jornadas memoráveis são cada

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vez mais lembradas, mesmo por muitos de seus participantes, para, ainda com nostalgia condescendente, assinalar os muitos erros, os inúmeros enganos, as falsas ilusões, e sugerir que jamais se deveria ter combatido aquela bata-lha, já perdida de antemão – como é o caso dos best-sellers de Zuenir Ventu-ra , 1968: o ano que não terminou, e de Alfredo Sirkis, Os carbonários.25 Neste 2008 permanece singularmente perti-nente a concepção de que, sem “ousar lutar”, não é possível vencer e que não há pior derrota que a sofrida sem com-bate. As jornadas de 1968, no Brasil e no mundo, não constituem simples fa-tos históricos a serem narrados. Pas-sados quarenta anos, 1968 permanece como esfinge enigmática, exigindo que sejam desvelados seus complexos sen-tidos. Como um poderoso farol, aque-les sucessos seguem ainda indicando, mesmo muito longe, no horizonte, o ca-minho seguro a ser seguido.

Résumé

Brésil, 1968: l’assaut au ciel, la descente aux enfers

Au début des années 1960, les lut-tes sociales connurent des progrès et des reculs successifs, parmi lesquels il convient de rappeler la victoire de la révolution cubaine et la défaite du national-populisme au Brésil où, très rapidement, réapparut l’opposition sociale à la dictature militaire, engen-drée par les mesures récessives mises

en place, dans le contexte d’une situ-ation mondiale particulièrement ten-due, dominée par les luttes pacifistes et au i-racistes aux USA et de libéra-tion nationale en Palestine et au Viet-nam. En 1967, le Brésil connut un re-nouveau de résistance ouvrière, alors que 1968 fut l’année de l’apogée des révoltes étudiantes, aussi bien au Bré-sil que dans le reste du monde. Sous la pression de tels événements, surgirent des organisations révolutionnaires, en général sous l’influence du foquis-me. Les jeunes surtout entreprirent de fortes mobilisations, dans le contexte d´une importante résistance culturel-le. L´assassinat d’Édison Luís de Lima Souto, le 28 mars 1968, galvanisa la mobilisation des étudiants dans tout le pays. Rio de Janeiro connut la mani-festation des Cent Mille, alors qu´était réprimée la grève ouvrière à Osasco, de même que le Congrès de l’Union Natio-nale des Etudiants à Ibiuna. Le recul de l´opposition se généralisa, malgré la continuation d´actions armées de la part d’avangardes dissociées de la population. L’acte institutionnel 5 fut décrété en décembre. Le manque croissant d’appui à la résistance fut déterminé par l’expansion économi-que transitoire qui neutralisa les clas-ses moyennes et les secteurs ouvriers moins conscients. Isolée, ne parvenant pas à mettre sur pied un programme de luttes réalisable, la résistance fut réprimée, dispersée et vaincue. La dic-tature resta au pouvoir jusqu´en 1985, lorsqu’elle l’abandonna sous les coups d´une nouvelle action populaire et ou-vrière, qui ne matérialisa cependant pas une véritable démocratisation so-ciale et politique.

Mot clé: 1968. Dictature militaire. Mouvement étudiant.

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Notas1 BAMBIRRA, Vânia. Revolução cubana: uma

interpretação. Coimbra: Centelha, 1975; FER-NANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialis-mo: a Revolução Cubana. São Paulo: T. A. Quei-roz, 1979; ESCOSTEGUY, Jorge. Cuba hoje: 20 anos de revolução. São Paulo: Alfa Ômega, 1978.

2 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart : as lutas sociais no Brasil . 1961-1964. 7. ed. rev. e ampl. Brasília: EdiUnB; Rio de Janeiro : Revan, 2001; SILVA, Hélio. 1964: golpe ou contragolpe? Rio de Janeiro : Civili-zação Brasileira , 1975; SKIDMORE, Thomas. Brasil : de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988.

3 CARONE, Edgard. O marxismo no Brasil: das origens a 1964. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986; CARONE, Edgard. O PCB (1943-1964). São Paulo: Difel, 1982; CARONE, Edgard. O PCB (1964-1982). São Paulo: Difel, 1982; DREI-FUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado; ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1987; MARAES, Dênis de. A esquerda e o golpe de 64. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

4 VIANA FILHO, Luís. O governo Castelo Bran-co. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976; CAS-TELLO BRANCO, Carlos. Introdução à Revo-lução de 1964. Rio de Janeiro: Artenova, 1975; Neto, Lira. Castello: a marcha para a ditadura. São Paulo: Contexto, 2004.

5 NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). Carlos Marighella : o homem por trás do mito. São Pau-lo : EdiUnesp, 1999.

6 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas: a es-querda brasileira. Das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987; ABREU, João Batista de. As manobras da informação: aná-lise da cobertura jornalística da luta armada no Brasil (1965-1979). Rio de Janeiro : Mauad, 2000; REIS FILHO, D. A.; SÁ, João F. Imagens da revolução: documentos políticos das organi-zações clandestinas dos anos 1961 a 1971. Rio: Marco Zero, 1986.

7 Cf., ver outros, MARTINS FILHO, J. R. A rebe-lião estudantil: México, França e Brasil. Cam-pinas: Mercado de Letras, 1996; CAPANNA, Mario. Formidabili quegli anni. Milano: BUR, 1998; MASSARI, Roberto. Il ’68: come e perché. Bolsena: Massari, 1998; GUEVARA NIEBLA, Gilberto. La democracia en la calle: crónica del

movimiento estudiantil mexicano. México: Si-glo XXI, 1988; REVUELTAS, José. México 68: juventud y revolución. México: Era, 1978; QUA-TROCCHI, Angelo; NAIRN, Tom. O começo do fim: França, maio de 1968. [1968]. Trad. de M. A. Reis. Rio de Janeiro: Record, 1998; ALI, Tariq. O poder das barricadas: uma autobiografia dos anos 60. São Paulo: Boitempo, 2008; RENAUT, Alain. Pensamento 68. São Paulo: Ensaio, 1985; GOLDFELDER, Sonia. A primavera de Praga. São Paulo: Brasiliense, 1981; MARTINS FI-LHO, João Roberto. Rebelião estudantil: 1968 - México, França e Brasil. Campinas: Mercado das Letras, 1996; PONGE, Robert (Org.). 1968: o ano das muitas primaveras. Porto Alegre: SMCPOA, 1998.

8 DEBREY, Regis. Révolution dans la révolution? Lutte armée et lutte politique en Amérique La-tine. Paris: François Maspero, 1967; ANDER-SON, Jon Lee. Che uma biografia. Rio de Janei-ro: Objetiva, 1997; ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o trei-namento guerrilheiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.

9 SOUZA, Luiz. A. G. A JUC: os estudantes cató-licos e a política. Petrópolis: Vozes, 1984.

10 Cf. entre outros: PAZ, Carlos Eugênio. Nas tri-lhas da ALN. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997; LIMA, H.; ARANTES, A. História da ação popular: da JUC ao PC do B. São Paulo: Alfa Ômega, 1984; LEAL, Murilo. À esquerda da es-querda: trotskistas, comunistas e populistas no Brasil contemporâneo (1952-1966). São Paulo: Paz & Terra, 2003; BEZERRA, Gregório. Me-mórias: segunda parte (1946-1969). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980; CASO, Antônio. A esquerda armada no Brasil. 1967-1971. Portugal: Moraes, 1976.

11 Cf. entre outros: BOAL, Augusto. Teatro do oprimido. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-ra, 1975; CAMPOS, Cláudia de Arruda. Zum-bi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva; Edusp, 1988; MAGALDI, Sábato. Um palco brasileiro: o Arena. São Paulo: Brasiliense, 1984; MOSTA-ÇO, Edélcio. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta Editorial, 1982.

12 MEDEIROS, Paulo de Tarso. A aventura da Jovem Guarda. São Paulo: Brasiliense, 1984; ARAÚJO, Paulo Cesar de. Roberto Carlos em detalhes. São Paulo: Planeta, 2006; SANCHES, Pedro Alexandre. Como dois e dois são cinco: Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa). São Paulo: Boitempo, 2004.

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13 MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003.

14 Depoimento de José Ibrahim: http://www.zedirceu.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id= 3638&Itemid=106

15 FAVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. UNE em tempo de autoritarismo. Rio de Janei-ro: Ed. UFRJ, 1995; GURGEL, Roberto Mauro. História da UNE: depoimentos de ex-dirigentes. São Paulo: Livramento, 1980; ROMAGNOLI, Luis H.; GONÇALVES, Tânia. A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador. São Paulo: Alfa Ômega, 1979; SANFELICE, José Luís. Movimento estu-dantil: A UNE na resistência ao Golpe de 64. São Paulo: Cortez, 1986.

16 GUEVARA NIEBLA, Gilberto. Libertad bajo protesta: historia de un proceso. México: Fede-ración Editorial Mexicana, 1973; GUEVARA NIEBLA, Gilberto. La democracia en la calle: crónica del movimiento estudiantil mexicano. México: Siglo XXI, 1988; REVUELTAS, José. México 68: juventud y revolución. México: Era, 1978; SCHERER, Julio; MONSIVÁIS, Carlos. Parte de guerra: Tlatelolco 1968: documentos del general Marcelino Garcia Barragan: los he-chos y la historia. México: Aguilar, 1999.

17 VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34, 1998.

18 Cf. entre outros: BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes: MPB nos anos 70. Rio de Ja-neiro: Civilização Brasileira, 1980; CARVA-LHO, Gilberto. Chico Buarque: análise poético musical. Rio de Janeiro: Codecri, 1983; ALBIN, Ricardo Cravo. Driblando a censura: de como o cutelo invadiu a cultura. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002.

19 SILVA, Hélio. Costa e Silva - 23º presidente do Brasil. São Paulo: Três, 1983; BEATRIZ, Kush-nir. Cães de guarda: jornalistas e censores: do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitem-po, 2004.

20 ARAUJO, Paulo Cesar. Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2003

21 CASTRO, A. S. de Souza, F. E. P. A economia brasileira em marcha forçada. Rio de Janei-ro: Paz e Terra, 1985; SINGER, Paul. A crise do milagre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

22 KUCINSKI, Bernardo. O fim da ditadura mili-tar. São Paulo: Contexto, 2001.

23 CARVALHO, Luiz Maklouf. Mulheres que fo-ram à luta armada. São Paulo: Globo, 1998; FREIRE, Alípio et al. Tiradentes, um presídio da ditadura: memórias de presos políticos. São Paulo: Scipione, 1997; GORENDER, Jacob. Combate nas trevas: das ilusões perdidas à luta armada. 5. ed. São Paulo: Ática, 1998; PAZ, Car-los Eugênio. Viagem à luta armada. Rio de Ja-neiro: Civilização Brasileira, 1996; MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo: mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Boitempo; Fundação Perseu Abra-mo, 1999.

24 DELGADO, Lucília de Almeida Neves et al. Tancredo: a tragetória de um liberal. Petrópo-lis: Vozes, 1985; DIMENSTEIN, O complô que elegeu Tancredo Neves. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 1985; FASSY, Amaury. De Castelo a Sarney. Thesaurus, 1987; OLIVEIRA, Bastos. Sarney: o outro lado da história. Nova Frontei-ra; SARNEY, José. Palavras do presidente José Sarney. Brasília: Brasiliana, 1985.

25 ZUENIR, Ventura. 1968: o ano que não termi-nou; SIRKIS, Alfredo. Os carbonários. Rio de Janeiro: Globo, 1994.

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O ano de 1968, no Uruguai, foi marca-do pelo início da escalada autoritária, com a ascensão ao poder de Jorge Pa-checo Areco. As reivindicações mun-diais levantadas em 1968, notadamen-te, as latino-americanas, somaram-se às discussões nacionais travadas em virtude do esgotamento econômico e da crise social que se pronunciava desde a década de 1960. O confronto entre o go-verno e a oposição (trabalhadores, es-tudantes, militantes da luta armada, artistas, intelectuais, etc.) acirrou-se cada vez mais, gerando um cenário de radicalização das lutas sociais que se estenderia até a deflagração do golpe de estado, em 1973, no Uruguai.

Palavras-chave: 1968. Governo Pache-co Areco. Movimentos sociais.

Resumo

O 68 no Uruguai: crise estrutural, mobilização social e

autoritarismoEnrique Serra Padrós∗

“Ananda Simões Fernandes∗∗

No somos los extranjeros / los extranjeros son otros;

son ellos los mercaderes / y los esclavos nosotros.

Yo quiero romper la vida, / como cambiarla quisiera,

ayúdeme compañero; / ayúdeme, no demore,

que una gota con ser poco / con otra se hace aguacero.

“Milonga de andar lejos” (1968)

Daniel Viglietti

Introdução

Na América Latina o espírito de 1968 manifestou-se de forma diversa e com graus de intensidade e em espaços cronológicos diferentes. Além do im-pacto e das influências dos 68 extrarre-gionais (o Maio Francês, a Primavera de Praga ou as correntes da contracul-tura dos EUA), o subcontinente teve

* Professor do Departamento de História e do PPG-História/UFRGS.

** Mestranda do PPG-História/UFRGS.

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movimentos próprios, autônomos, com lógicas explicativas nacionais e conec-tados, de forma geral, com as reivin-dicações universais daquela onda. A crítica global ao imperialismo, ao co-lonialismo, ao racismo, à exploração e à desumanização da civilização esteve acompanhada de elementos particula-res e concretos nas diversas realidades nacionais.

Nessa perspectiva, a questão da terra, o embate pela autonomia universitária, o debate dependência-desenvolvimento, a presença estadu-nidense, o papel da oligarquia e as de-mandas sociais dos setores populares manifestaram-se, de forma diversa, na exploração político-social que mar-cou a década de 1960 na América La-tina. México, Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, entre outros, foram países particularmente atingidos pela dinâ-mica do 68, porém esta inserida den-tro de um processo de confronto social muito mais amplo. Assim, a cronologia específica de cada situação variou. Em alguns casos, esteve inserida no ano da grande recusa, como no caso do México de Tlatelolco, ou no Brasil do acirra-mento da ditadura, com a decretação do ato institucional nº 5 (AI-5) e o início dos “anos de chumbo”. Em outros, foi momento de inflexão imediatamente posterior, caso da Argentina do Cordo-bazo. Finalmente, houve casos, como o uruguaio e o chileno, nos quais o cená-

rio permaneceu aberto, projetando-se até os dramáticos anos 70 e concluindo com os respectivos golpes de estado, em 1973.

De qualquer forma, o 68 na Amé-rica Latina não pode ser dissociado das grandes questões que marcaram a dé-cada: a Revolução Cubana, a revolução socialista e o périplo do Che Guevara, o conflito reforma-revolução x contrar-revolução, o peruanismo, a crise estru-tural e a contrainsurgência. Por isso mesmo, pode-se afirmar que o 68 lati-no-americano teve nuances que o dife-renciaram do 68 da Europa ocidental ou do 68 estudantil dos EUA (mas nem tanto do 68 da luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos). Na prá-tica, quase tudo estava por fazer e, se havia saturação de alguma coisa, era de autoritarismo, subdesenvolvimen-to, miséria, estagnação, frustração e exploração.

A guerrilha passou a ser uma opção sedutora a partir da Revolução Cubana. A imagem do Che esteve em todas as esquinas latino-americanas, e os contatos entre marxistas e cristãos apontaram para novos pactos sociais e para o que se denominou “Primavera da Igreja”, intenso movimento de de-bates e propostas realizados também no interior da estrutura institucional do catolicismo. Efetivamente, a Igreja teve sua postura questionada por cor-rentes progressistas derivadas do Con-

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cílio Vaticano II e que reivindicavam coerência entre o discurso e a prática, aproximando a instituição de um reba-nho de fiéis vulneráveis à marginali-zação e exploração – provavelmente, o maior ícone dessa tendência cristã da época tenha sido o colombiano Camilo Torres, el cura guerrillero. Outras ins-tituições tradicionais também sofre-ram, em alguns países, uma guinada de matiz nacionalista e/ou reformista. É o que ocorreu, particularmente, com certos setores das Forças Armadas, como no caso daqueles que, em 1968, no Peru, foram liderados por Velasco Alvarado e, no Panamá, por Omar Tor-rijos.

O 68 uruguaio

A década de 1960 marcou, no Uru-guai, o aprofundamento de uma crise estrutural que atingiu as bases, já em processo de corrosão, das políticas de bem-estar social herdadas da conjun-tura favorável da Segunda Guerra. A pauperização da população, o arrocho salarial e a deterioração dos serviços sociais estatais intensificaram um des-contentamento que passou a se expres-sar em constantes mobilizações sociais dos mais diversos matizes. O clima de Guerra Fria, a Revolução Cubana e a existência de ditaduras no Paraguai (desde 1954), no Brasil (desde 1964) e na Argentina (desde 1966) tornavam a situação mais explosiva.

O 68 no Uruguai iniciou, de certa forma, com a morte do presidente Os-car Gestido, em dezembro de 1967, e sua substituição pelo vice-presidente Jorge Pacheco Areco. O autoritarismo marcou essa nova administração des-de o começo. Poucos dias após assu-mir, Pacheco Areco dissolveu diversos partidos, movimentos sociais e jornais identificados com o pensamento polí-tico de esquerda. Foram alvos dessa ação o Partido Socialista, a Federación Anarquista Uruguaya, o Movimiento Revolucionario Oriental, o Movimiento de Acción Popular Uruguaya, o Movi-miento de Izquierda Revolucionaria e os jornais Época e El Sol, todos proibi-dos sob acusação de patrocinar a luta armada e de serem vinculados à “sub-versiva” Organização Latino-America-na de Solidariedade (Olas).

Dentre as primeiras medidas adotadas pela nova gestão também se deve mencionar a reconfiguração ministerial, com representantes das grandes empresas, do latifúndio e do setor financeiro, iniciando perigosa desconexão governamental e ruptura com a tradição política do país, ou seja, a rejeição do partido e das instâncias políticas como fóruns de negociação e de embate, fator vertebral da democra-cia uruguaia. Ao contrário, divulgou-se a imagem de que a presença de “técni-cos” no governo era positiva, pois eles não se rendiam às pressões de cunho político-eleitoral.

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Acentuar a imagem do desprestí-gio dos partidos políticos e responsabi-lizá-los pela atuação ineficiente diante da crise social e econômica que atra-vessava o país escondia um risco po-tencial de autoritarismo: o menosprezo pelo Parlamento e pela representação popular. Tais fatos foram reiterada-mente praticados por esse governo. Essa postura administrativa, combi-nada com a banalização e a utilização indiscriminada das medidas prontas de seguridad (dispositivos constitucio-nais de exceção), sintetizou a escalada autoritária governamental, o que acen-tuou a insegurança geral e acelerou o processo de radicalização e confronto no interior da sociedade.

Desse modo, a violência foi a prin-cipal ação política do governo Pacheco Areco, voltada principalmente contra os setores populares, os trabalhado-res e os estudantes. O presidente, a fim de conter o processo inflacionário no Uruguai, começou a seguir paula-tinamente as diretrizes impostas pelo Fundo Monetário Internacional. Para tanto, era necessário restringir os di-reitos dos trabalhadores e seus bene-fícios salariais,1 situação que foi total-mente rechaçada pela população. Os trabalhadores uruguaios já haviam alcançado um alto nível de consciên-cia de classe e não estavam dispostos a permitir a perda de suas garantias. Dessa forma, a administração Pacheco

Areco começou a criminalizar as mani-festações pacíficas de trabalhadores e estudantes pelo uso constante da apli-cação das medidas prontas de seguri-dad (MPS).

O reajuste salarial do ano de 1968, que ocorria no dia primeiro de julho, foi ansiosamente esperado pelos trabalhadores. Entretanto, Pacheco Areco decretou uma medida de exceção no dia 28 de junho para, conforme as diretrizes do FMI, congelar os preços e salários no Uruguai. Considerando que o reajuste salarial era a reposição das perdas acumuladas no ano, tal decre-to gerou profundo descontentamento, mas, diante do fato concreto, qualquer pessoa que se manifestasse contra essa política salarial estaria infringindo a lei. A repressão estatal intensificou-se e começou a vigorar nas empresas públicas e privadas a “militarização” dos funcionários, ou seja, a imposição de uma lógica militarista aplicada ao trabalho, como, por exemplo, em rela-ção aos grevistas que não retornavam às fábricas quando o governo exigia, situação em que eram considerados desertores.

No âmbito educacional, a política do governo passou a ser formulada em duas dimensões básicas. Uma, a re-pressiva: a escalada contra a autono-mia universitária, os Consejos de Se-cundaria e a Universidad del Trabajo veio acompanhada de violência. As in-

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vasões ilegais dos estabelecimentos de ensino contra as ocupações estudantis (modalidade tradicional de protestos) procuraram também impedir o acesso dos estudantes aos locais de estudo (e de resistência), bem como suspender os cursos universitários por meio de decretos (ferindo uma prerrogativa exclusiva dos Conselhos das Faculda-des). O ensino secundário, a Univer-sidad del Trabajo e os cursos prepara-tórios também tiveram seus prédios atingidos e clausurados, enquanto os estudantes eram agredidos por bandos armados, principalmente os da Juven-tud Uruguaya de Pié (JUP) – apresen-tados pelo discurso oficial como “es-tudantes de boas famílias uruguaias que haviam decidido resistir ao gue-varismo” –, os quais agiam com total beneplácito policial. A violência estatal fez várias vítimas entre os estudantes, como Líber Arce, Hugo de los Santos e Susana Pintos, comovendo a sociedade uruguaia.

A segunda dimensão do governo em relação ao ensino foi a interven-ção jurídica. O governo tentou impor o Consejo Superior de Enseñanza, cujo objetivo primordial era a elimi-nação do caráter autônomo de gestão das instituições e, consequentemente, sua subordinação ao Poder Executivo. Desse conselho deveriam fazer parte o ministro da Cultura (que exerceria a presidência), diretores gerais do ensi-

no secundário, primário e da Univer-sidad del Trabajo, além do reitor da universidade, único a ser eleito. Pre-tendia, ainda, regulamentar os grê-mios estudantis e selecionar o corpo docente segundo critérios de “confiabi-lidade”. A proposta foi muito criticada no Parlamento em razão da quebra de autonomia do sistema de ensino e da promoção do ensino privado, implícita no seu texto. Barrada no Parlamento, sua operacionalidade não se configu-rou durante o governo Pacheco Areco, embora seus postulados fossem absor-vidos pela posterior Ley de Educación General imposta pela ditadura civil-militar.

Nesse governo, além da intensifi-cação da repressão, houve a sua qua-lificação. Para tanto, foi instalado um Estado policial, no qual a tortura foi usada de forma intensiva nos interro-gatórios e teve seus serviços de inteli-gência modernizados com a ajuda nor-te-americana, em primeiro lugar, mas também com a cooperação da ditadura brasileira.

A radicalização política na década de 1960 também tendeu para a direita. Grupos de extrema-direita, de atuação clandestina, surgiram nesse momen-to. Contudo, foi durante o conturbado governo Pacheco Areco que estes “ban-dos” passaram a executar ações mais frequentes e mais violentas. Além da JUP, o Comando Caza Tupamaros e o

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Esquadrão da Morte, grupos parapo-liciais que realizavam perseguições e execuções políticas, agiam indiscrimi-nadamente. A administração Pacheco Areco era totalmente conivente com esses grupos clandestinos ou encober-tos.

Convenção Nacional de Trabalhadores

Em junho de 1967 ocorreu a pri-meira assembleia nacional da Conven-ção Nacional de Trabalhadores (CNT), na qual se discutiram a conjuntura nacional e o posicionamento do movi-mento operário perante ela. Também fez parte da pauta o debate sobre o aprofundamento da crise, a sujeição ao FMI e a política salarial do governo. A administração Gestido trouxe maior arrocho para os trabalhadores ao pro-por maior austeridade, recortes orça-mentários e ao aceitar a ingerência do FMI. A utilização de MPs para repri-mir a mobilização dos trabalhadores seguiu uma tradição iniciada na pri-meira metade da década de 1960, po-rém de 1967 em diante, principalmen-te desde a ascensão de Pacheco Areco, seu uso com esse fim intensificou-se consideravelmente. O agravamento da tensão social e a resposta cada vez mais violenta do governo acentuaram o caráter político das lutas sindicais.

Em junho de 1969, o conflito social foi exasperado pela visita da Missão Rockfeller (21 de junho): a CNT, os es-tudantes e o Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros (MLN-T) se mo-bilizaram para demonstrar sua repro-vação pela presença do representante dos EUA. Preventivamente, o governo suspendeu as aulas nos estabeleci-mentos públicos e privados de todo o país na segunda quinzena de junho. O motivo oficial alegado foi a constatação de uma epidemia de gripe que a popu-lação, ironicamente, identificou como “gripe Rockefeller” ou “gripefeller”. No mesmo período, o movimento dos ban-cários desencadeou uma dura greve, que, após 23 dias, sofreu a militariza-ção do setor; fato semelhante ocorreu com os trabalhadores das empresas estatais UTE, Ancap e OSE.2 O Sindi-cato dos Bancários, uma das principais forças da CNT, diante do processo de “reestruturação bancária” do governo (concentração acelerada e internacio-nalização do sistema financeiro), ten-tou reverter esse processo e denunciou os casos de corrupção beneficiando o sistema privado e estrangeiro. Inega-velmente, para os setores dominantes, a existência de uma organização sin-dical com o perfil da CNT entravava o processo de monopolização em anda-mento; seu enquadramento foi exigido pelos atores financeiros envolvidos; si-lenciar tal resistência era pré-condição

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para a reestruturação sin ruido y sin dolor.

Com a militarização, os bancá-rios passaram à jurisdição da Justiça Militar e receberam um prazo de seis dias para voltar ao trabalho – fato que, massivamente, foi ignorado. O gover-no, usando as MPs, declarou deserto-res mais de dois mil bancários públi-cos. Mesmo assim, as atividades não foram retomadas e a greve radicalizou. A CNT, em solidariedade, convocou a uma jornada de paralisação, no início de julho, acompanhada de mobilizações setoriais de apoio aos trabalhadores em greve. Em agosto, diante de nova jornada de paralisação geral, a milita-rização foi estendida ao setor privado. Após três meses de conflito, as denún-cias de abuso de poder originadas no Parlamento, amplamente apoiadas pela população, levaram o governo, pressionado política e economicamen-te (ameaça de asfixia econômica com a paralisação do sistema bancário), a re-ver suas posições e recuar das sanções administrativas que usara como ins-trumento de perseguição. Na prática, o governo teve de recuar, pois fora derro-tado politicamente. A militarização foi levantada, sendo permitida a volta dos “desertores” a seus locais de trabalho.

Na mesma época, conflitos com trabalhadores dos frigoríficos levaram o governo a declarar zona militar o bairro operário do Cerro, um dos mais

combativos e de longa tradição anar-quista e comunista. A greve articulada pela Federação da Carne foi provocada pela iniciativa do governo em liquidar a legislação trabalhista no setor e des-mantelar a empresa estatal frigorífica em benefício dos grandes consórcios estadunidenses (Deltec, International Packer, Armour).

Para enfrentar uma repressão violenta, os trabalhadores organiza-ram barricadas em volta das plantas frigoríficas e em pontos estratégicos do bairro operário. Atividades de apoio foram organizadas pela CNT nos bair-ros industriais vizinhos. Um dos des-dobramentos diretos do conflito foi o fortalecimento da unidade desse setor de trabalhadores, superando velhas divergências internas de organização e aproximando-o à CNT, fato simbo-licamente retratado nas atividades de apoio e, visivelmente, na “Marcha al Cerro” de dezenas de milhares de trabalhadores convocados pela CNT, protesto que se concluiu com o “abraço histórico” destes com os trabalhadores das empresas frigoríficas. Outro des-dobramento desse conflito foi a moção de censura e de destituição votada pela Assembleia Geral contra o ministro de Indústria e Comércio, Peirano Facio, que, acusado de ter interesses pessoais nos processos de privatização e inter-nacionalização dos setores públicos, acabou renunciando.

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Nesse contexto, a participação do movimento operário e dos trabalhado-res, de forma geral, foi muito intensa, levando à denominada “ativação do movimento popular”. Enrique Rodri-guez, para demonstrar o grau de com-batividade do movimento operário e de outros setores da sociedade nesse con-texto, afirma que em 1969 milhares de homens e mulheres “pasaron [...] por comisarías, cuarteles, cárceles, [presí-dio da] Isla de Flores [...]; fue en ese período que recrudecieron las tortu-ras repugnantes que en estos días se denuncian y se investigan a nivel del Senado”.3

A radicalização do enfrentamento levou a direção da CNT, em 1970, dian-te da evolução política e das ameaças golpistas apoiadas nas MPs, a propor três diretrizes consideradas estratégi-cas:

1) Reafirmaba el papel dirigente de la clase obrera en el proceso, precisamen-te cuando la oligarquía se había jura-mentado para descabezarla;2) Creaba condiciones para que, si ha-bía elecciones, éstas se realizaran des-de el inicio sobre el definido eje “oligar-quía o pueblo”, con los temas sociales y económicos al rojo vivo y no con el planteo farisaico de “orden o subver-sión” [...];3) Si el proceso político se inclinaba a la ultraderecha y al golpe, lograr que el pueblo estuviera unido, vigilante y dispuesto a enfrentalo, luchando.4

Para o movimento operário, a situação parecia definida: junto à de-

núncia das mazelas produzidas pela crise estrutural, havia a necessidade de resistir à imposição de um projeto econômico que acelerava o desmon-te do que restava do velho Estado de bem-estar e que exigia o enquadra-mento (“saneamento”) dos trabalhado-res, sindicatos, CNT, etc. Era necessá-rio resistir à ofensiva repressiva que visava instalar um sindicalismo dócil e um movimento operário despolitiza-do e sem pretensões de protagonismos. A construção da unidade que confluía na CNT ocorria paralelamente à for-mação da Frente Ampla,5 o que gerou enormes expectativas nas possibilida-des eleitorais de 1971.

Movimento estudantil

No Uruguai a mobilização es-tudantil vinha num crescente desde o início da década. Inegavelmente, o 68 estudantil uruguaio foi indissociá-vel da dinâmica que explodiu em todo o mundo e que gerou um acentuado protagonismo estudantil. Entretan-to, a maior conflitividade obedecia à conjuntura crítica que vivia o país. A deterioração dos níveis de vida dos setores médios e populares, aguçada no período, dificultava a permanência no sistema educativo dos jovens dessa origem social que se haviam integrado massivamente ao ensino médio e, em menor proporção, à universidade.6 En-tretanto, no momento em que aumen-

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tava o número de alunos no sistema de ensino, o governo, com a justificativa da crise, diminuía consideravelmente o orçamento destinado à educação.

Um outro paradoxo se detectava com toda crueza no meio universitário. A realidade do mercado de trabalho para os jovens recém-formados apre-sentava-se dura: a disponibilidade de qualificada mão-de-obra diante de um mercado de trabalho saturado,7 fator permanente de tensionamento. O re-sultado era o desemprego, o subempre-go e a emigração de um alto percentual de jovens bem qualificados.

O movimento estudantil8 vinha questionando, há tempos, a política econômica do governo, a crise estrutu-ral e o uso das MPs. As mobilizações de 1968 iniciaram-se com duas ques-tões pontuais: o aumento da passagem escolar e a discussão do orçamento da Universidad de la República (pública). Entretanto, a dinâmica do movimento ampliou o leque de reivindicações, as-sumindo a rejeição das MPs, o repúdio ao congelamento salarial, o protesto contra a invasão policial nos campi universitários e, finalmente, o confron-to com o governo quando este tentou destituir as autoridades universitá-rias. Tudo isso se retroalimentou com os desdobramentos dos acontecimentos que varriam a França, o Brasil, a Ar-gentina, o México, a Tchecoslováquia, os EUA, etc.

Os eventos aceleraram-se em maio quando, diante das massivas mo-bilizações, o governo promoveu violen-ta onda repressiva de intervenção con-tra os atos estudantis. A interrupção de ruas, as “sentadas” (no estilo sit-in dos EUA) e o apedrejamento de ôni-bus foram fatos que acompanharam a discussão da passagem escolar, por exemplo. Os secundaristas realizavam manifestações-relâmpago, ocupavam seus locais de estudo e enfrentavam a Guarda Metropolitana com barrica-das de pneus incendiados e coquetéis molotov. Simultaneamente, a Univer-sidad del Trabajo decretava greve ge-ral – funcionários, alunos e professores reivindicavam a falta dos repasses do governo à instituição, o que inviabili-zava seu funcionamento. Apesar do aumento das detenções, a mobilização não arrefeceu. Com os liceos (institui-ções secundaristas) ocupados, surgi-ram os “contracursos” (fato inédito no Uruguai), experiência que se havia ex-pandido na década de 1960 nos EUA e na Europa.

As negociações com as autorida-des geraram dissidências entre os es-tudantes, o que tornou mais complexa a situação. No início de junho, a crise colapsava todo o sistema de ensino, com paralisações que se multiplicavam em razão da falta de repasse de recur-sos. No 6 de junho, cinco estudantes da Universidad del Trabajo foram feridos

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com gravidade, originando, como res-posta, ataques contra a Pan American, Pepsi Cola, General Eletric e diversas agências bancárias, num processo de crescente radicalização e acusações contra o governo e contra os EUA. A onda atingiu cidades próximas a Mon-tevidéu (Las Piedras, Pando, Santa Lucía). No 12 de junho, violentos con-frontos no centro de Montevidéu dei-xaram dezenas de feridos e trezentos estudantes detidos.

Diante desse quadro, o governo implantou novas MPs para “pôr fim à subversão nas ruas”, o que gerou mais revoltas e prisões. Residências e locais de ensino foram alvos de batidas po-liciais à procura de material “subver-sivo”. Na evolução das hostilidades, o governo, apoiado pela grande impren-sa e pelas correntes conservadoras dos partidos tradicionais, veiculou peças de propaganda sustentadas na tese da “nação agredida” e colocou-se como garantia incondicional de “tranquili-dade” contra a “subversão” dos “maus uruguaios”. Por outro lado, realizou-se a articulação entre as mobilizações es-tudantis e as dos funcionários públicos e bancários. Enquanto o governo de-cretava a militarização dos locais de trabalho destes últimos, o ministro de Cultura, Garcia Capurro, ameaçava invadir a universidade e violar sua au-tonomia por ser fonte de distúrbios.

A metodologia da ação estudantil apresentava um certo padrão de luta:

ocupação de prédios (no caso dos secun-daristas, com a participação de alunos com idade entre 12 e 14 anos); mon-tagem de barreiras no trânsito com distribuição de panfletos à população; cobrança de pedágios para arrecadar fundos; manifestações-relâmpago de alta mobilidade com palavras de ordem e panfletagem; ações contra alvos es-pecíficos (bancos, empresas dos EUA, sedes de organismos estatais), combi-nadas com apedrejamento e ataques com coquetéis molotov (ações comuns contra os meios de transporte em jor-nadas de greve geral).9

A construção de barricadas foi ou-tro recurso tático importante para blo-quear ruas e prédios. A dispersão em pequenos grupos consistiu em tática diversionista empregada para dividir, cansar e distrair a polícia; de certa for-ma, a vantagem numérica facilitava o movimento de recuo, reagrupamento e nova progressão. Embora houvesse planejamento, o calor do embate exigia rápidas decisões e mudança de planos – às vezes, motivadas por desavenças internas entre base e direção.

Entre 11 e 14 de julho de 1968, dezenas de estudantes foram cercados na Faculdade de Medicina e atacados com armas de fogo; poucas semanas depois, a polícia invadiu o prédio cen-tral da universidade e das faculdades de Agronomia, Arquitetura, Belas Ar-tes e Medicina. Montevidéu virou pal-co de nova onda de confrontos; as críti-

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cas contra a violência estatal partiram até dos aliados do próprio governo. Na segunda-feira, 12 de agosto, mais de trinta estudantes foram feridos, um dos quais, Líber Arce,10 foi morto pela polícia. Seu velório, no prédio central da universidade, concentrou uma mul-tidão que acompanhou seu corpo até o cemitério. A seguir, mais de cinco mil manifestantes avançaram sobre o cen-tro da cidade, o qual estava sem defesa policial.

Nesse momento, houve divergên-cias entre os manifestantes, pois parte das lideranças tentou encaminhar a multidão para a universidade e, assim, afastá-la do centro comercial. Os âni-mos exaltados fizeram explodir desa-cordos e confrontos. A violência que se desencadeou faz pensar em provocado-res infiltrados, fato que parece ter res-paldo no depoimento do general Líber Seregni – na época comandante-em-chefe do Exército11 –, que denunciou a conivência policial ao abandonar o centro da cidade. Tal afirmação tam-bém é corroborada nos comentários do agente cubano infiltrado na estação da CIA de Montevidéu Manuel Hevia.12 Ambos os relatos coincidem no fato de que, durante aquela noite, os estudan-tes que ocupavam o prédio central da universidade foram provocados por pa-rapoliciais. O general Seregni comenta o fato:

La noche del entierro de Líber Arce […] se montó una trampa, una inmen-sa trampa [...] entre las fuerzas policia-les y el gobierno. Una trampa en que la policía desapareció. Desapareció de las calles de Montevideo y aparecieron bandas hechas para provocar y empe-zaron a romper vidrios ¡A provocar en serio! Fueron hasta la Casa Presiden-cial.13

Na manhã anterior, considerando a delicada situação em que se vivia, Seregni havia sugerido, contra a opi-nião da maioria das autoridades, que não deveria haver policiais a menos de dez quadras do velório, para que não parecesse provocação contra a popula-ção revoltada com a recente morte do estudante. Para Seregni, a situação era bem clara: bandos de provocadores infiltrados procuravam criar um fato concreto que justificasse a repressão; por isso, entendeu que era uma arma-dilha, fato ratificado nas memórias de Hevia ao relatar as ordens da CIA (com anuência da embaixada estadu-nidense em Montevidéu) a seus agen-tes, para provocar um conflito de gran-des proporções. O general impediu que suas tropas reprimissem e, ao saber da montagem da ação provocadora, solicitou aos líderes sindicais que colo-cassem grupos de proteção para evitar que as Forças Armadas pudessem ser induzidas a cometer excessos irrever-síveis. Dessa forma, a Federação dos Estudantes Universitários, o Partido Comunista e a CNT organizaram gru-

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pos que enfrentaram os provocadores e os mantiveram afastados da grande massa concentrada na universidade.

Nas semanas seguintes, o confli-to manteve alta intensidade. O gover-no proibiu a circulação do semanário Marcha por três edições, enquanto a oposição se manifestava contra a im-prensa governista dos jornais El Día e El Debate e do Canal 4 de televisão. Houve um aumento das ocupações dos liceos e das faculdades, levantaram-se novas barricadas, bloquearam-se ruas e multiplicaram-se as manifestações-relâmpagos. Trabalhadores da fábrica Alpargatas e estudantes da Faculdade de Medicina pressionavam, conjunta-mente, nas proximidades do Palácio Legislativo.

No 21 de setembro, diante da uni-versidade, os estudantes Hugo de los Santos e Susana Pintos14 foram mor-tos pela repressão. Então, o clima de tensão atingiu o ápice. O governo can-celou as aulas na universidade e no ensino secundário até meados de outu-bro, procurando desmobilizar os estu-dantes – fato aproveitado pelas Forças Armadas para assumir o controle dos prédios, forjando provas que corrobo-ravam que os liceos e a universidade haviam se tornado “antros subversi-vos”. Mais uma vez, as ações eram efe-tuadas com o apoio dos setores oficia-listas da imprensa que repercutiam a versão oficial e o silêncio da oposição, mediante censura.

O movimento estudantil entrava, então, em fase de refluxo temporário. A repressão assumia, cada vez mais, perfil inconstitucional, e as Forças Armadas, que ainda só se envolviam quando atacadas, prestavam serviço de assessoria à polícia, repassando seu know-how em técnicas de espionagem e de obtenção de informação. Isso per-mitiu à polícia iniciar-se na tarefa da infiltração nos movimentos estudantil e sindical, tentando prever e antecipar ações da oposição. A desconfiança da infiltração piorou o clima interno das organizações (presença ostensiva de agentes à paisana, estudantes colabo-racionistas, delatores, infiltrados). O discurso oficial procurava convencer a população de que os estudantes se ha-viam transformado em massa de ma-nobra da guerrilha urbana; definitiva-mente, o movimento passava a ocupar o rol de “inimigo interno”, juntamente com o MLN, a CNT e os partidos “mar-xistas”.

De qualquer forma, apesar das restrições colocadas pela repressão es-tatal, o aspecto mais importante desse contexto foi o aprofundamento da rela-ção dos estudantes com os sindicatos. Independentemente de problemas de linguagem, da desconfiança persisten-te em alguns setores operários ou do entendimento político da transitorie-dade do “ser estudante”, a construção de uma pauta comum convergente

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expressou-se por meio de uma rede de circuitos solidários, na visualização de um inimigo comum e na elaboração de pontos programáticos próximos. A CNT assumiu que a autonomia universitá-ria era parte da luta popular e a con-signa Obreros y Estudiantes: unidos y adelante, defendida nas lutas dos anos 50, manteve persistência e vitalidade.

Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros

Dentro da esquerda, a principal organização armada foi o Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros. Desde 1962 existia um organismo que coordenava vários grupos de ação di-reta vinculados ou derivados de orga-nizações legais e que confluíram, por volta de 1965, na fundação do MLN. Nessa fase de clandestinidade do mo-vimento (ainda desconhecido do públi-co), seus integrantes estavam na lega-lidade, embora participassem de ações de expropriação de armas e dinheiro,15 recrutamento de quadros, estrutura-ção interna, avaliação de estratégias e acumulação de informação (por exem-plo, sobre a rede cloacal de Montevi-déu). De qualquer forma, a organiza-ção tornou-se pública em dezembro de 1966 e, gradativamente, muitos dos seus quadros viram-se na contingência de passar à clandestinidade.

Entre 1968 e 1969, o movimento intensificou seu protagonismo por meio de uma tipologia de ações que caracte-rizaram essa fase de luta como “etapa Robin Hood”. Orientado pelos dirigen-tes “históricos” (entre os quais Raúl Sendic), recebendo lideranças prove-nientes da luta social, calejadas no trabalho subterrâneo de organização e acumulação de experiência, o MLN também centrou a ação nas denúncias de corrupção política. Realizando ações que ridicularizavam as forças policiais pela sua ineficiência, os tupamaros efetuavam expropriações de bancos, financeiras e casas de penhora, ações de apropriação de documentos compro-metedores sobre sonegação fiscal ou ganhos ilegais de grupos econômicos e expropriações massivas de alimentos que eram repartidos nas comunidades mais carentes, entre outros. Nessa fase, evitava-se o uso da violência, embora já ocorresse o sequestro de autoridades governamentais, que eram detidas nos cárceles del pueblo,16 com finalidade política ou para obtenção de informa-ção. Havia uma orientação da direção do movimento para evitar ações indis-criminadas e, na medida do possível, perda de vidas; nas “expropriações”, o alvo deveria ser a “propriedade bur-guesa”, não os trabalhadores, peque-nos comerciantes ou produtores.17

A estratégia tupamara de evitar o confronto aberto com a polícia mos-

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trava-se positiva, pois permitia poupar quadros “militares”18 e acumular apoio de parcelas da população que viam suas ações com simpatia. Enquanto isso, expunha a ineficiência e o des-preparo do dispositivo de segurança, informação e repressão.

Partidários das teses foquistas, os tupamaros viam-se irradiando, como onda contagiante, a consciência revo-lucionária ao conjunto da sociedade. Entendiam a luta armada como resul-tado do “esgotamento” e da “ineficiên-cia” das formas tradicionais da política legal. O impacto da Revolução Cubana, a influência de Che Guevara e o insu-cesso eleitoral da esquerda uruguaia, em 1962, pareciam reforçar essa op-ção. A Conferência da Olas, em 1967, inseria essa opção dentro de um mar-co de insurreição continental. Coeren-te com essas orientações, a consigna “Habrá patria para todos o no habrá patria para nadie”, foi estampada nos do cumentos da organização.

O documento de “apresentação” do MLN fundamentava, como objetivos primeiros, o nacionalismo antioligár-quico e o socialismo, além da integração e da solidariedade latino-americanas. A adaptação do “foquismo” à especifici-dade uruguaia implicava abandonar a tática clássica da “montanha como re-fúgio”, pois, nas condições geográficas e demográficas existentes do Uruguai, isso não tinha sentido. Assim, o MLN

teria de ser um fenômeno urbano, parti-cularmente montevideano. A grande ci-dade teve de substituir a montanha e a selva, fornecendo as condições necessá-rias de cobertura, anonimato, clandes-tinidade e de ação violenta e rápida.

Em 1968, a organização decolou. Suas ações vitoriosas e as simpatias recolhidas junto a determinados seto-res da população explicam um grande crescimento em número de quadros, influência política e qualidade técnica, operativa e organizacional. Três for-mas principais de operações são iden-tificadas na fase “Robin Hood”, geral-mente mescladas entre si: operações políticas de denúncia de corrupção; operações de demonstração de força, que reforçavam a percepção sobre o po-der de fogo da organização; operações de expropriação financeira destinadas à sustentação da infraestrutura clan-destina e dos quadros imersos nessa rede, bem como para a aquisição de ar-mas, equipamentos e veículos.

Também havia operações de de-vassa fiscal e financeira, em que o MLN sequestrava e tornava públicos documentos comprometedores e de empresas que sonegavam impostos, praticavam fraudes e corrupção em al-tas esferas administrativas. Ações que expunham mazelas da corrupção nas altas esferas, sem utilização de violên-cia física, geravam repercussões muito favoráveis ao movimento.

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A evolução dos fatos e o crescimen-to da organização, porém, tornaram mais violentos os confrontos contra a polícia, o que fez refluir a simpatia e admiração que o movimento havia capitalizado até então. O sequestro e execução de responsáveis de violação dos direitos humanos e integrantes de esquadrões da morte não foi bem dige-rido por uma sociedade que não tinha familiaridade com esse tipo de ação. O ponto de inflexão foi marcado pela “Operação Pando”19 e pelo sequestro e execução de Dan Mitrione – especialis-ta dos EUA em técnicas de tortura –, em agosto de 1970.

A queda das principais lideran-ças da organização guerrilheira, ain-da em 1970, abriu espaço para uma nova geração, que apostou no milita-rismo e no verticalismo da tomada de decisões. Na fase mais violenta do confronto, ocorreram novas execuções de torturadores e foram sequestrados diplomatas estrangeiros, como os côn-sules Dias Gomide (Brasil)20 e Geoffrey Jackson (Grã-Bretanha), para servi-rem de moe da de troca por dirigentes prisioneiros ou para impactar a opi-nião pública internacional.

A “cultura engajada”

Como já visto, na década de 1960 o modelo econômico e social que fazia com que o Uruguai fosse conhecido

como “Suíça da América” começou a desmoronar. O Estado tinha uma par-ticipação bastante efetiva na sociedade uruguaia, principalmente no tocante à distribuição de renda e à concessão de direitos trabalhistas, quando compara-do com o restante da América Latina. Possuindo uma economia baseada na exportação de produtos primários, com o fim da Segunda Guerra, o Estado de bem-estar social não conseguiu mais se sustentar, levando a uma estagna-ção da economia e a uma deterioração social. A crise econômica acabou por abalar os alicerces da democracia uru-guaia, uma das mais sólidas da Améri-ca Latina.

Entretanto, intelectuais de es-querda já estavam questionando a visão tradicional que a sociedade uru-guaia tinha a respeito do seu país. De-nunciavam que a “Suíça da América” era ilusória, pois, além da recessão que o Estado vinha sofrendo, o “bem-estar social” nunca chegara ao campo nem, tampouco, impedira que setores crescentes da população de Montevi-déu habitassem na periferia da cidade, em favelas – os cantegriles.21 Essa ilu-são também afastava a noção de que o Uruguai pertencia à América Latina, possuindo uma história comum com os demais países, além de possuir as mes-mas mazelas socioeconômicas, herda-das tanto da exploração colonial e das oligarquias que ainda permaneciam

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no poder como da relação com a potên-cia norte-americana. Desse modo, foi nesse contexto de recessão e de auto-ritarismo, desencadeado pelo governo Pacheco Areco, que o latino-america-nismo passou a ser fundamental no mundo cultural uruguaio.

No mundo do teatro, mereceram destaque especial, entre outros, os coletivos do El Galpón e La Comedia Nacional; na literatura, destacava-se o texto de Mario Benedetti. O semanário Marcha era o principal espaço de refle-xão do mundo da cultura, no qual des-pontava seu diretor, Carlos Quijano. Os carnavais uruguaios serviram de palco para a sátira política e a crítica social recorrentes em diversas murgas (gênero teatral-musical). A virada da década de 1960 para a de 1970 marcou a forte presença no panorama musical de compositores e cantores comprome-tidos com o seu tempo (Alfredo Zitarro-sa, Héctor Numa Moraes, José Carba-jal, Los Olimareños, Daniel Viglietti). Também houve uma relativa circula-ção e intercâmbio de obras de outros músicos latino-americanos de perfil semelhante: os argentinos Atahualpa Yupanqui, Horacio Guarany e Merce-des Sosa, assim como os chilenos Vio-leta Parra, Víctor Jara e Ricardo Alar-cón, eram ouvidos nas rádios do país. Um fato curioso que não ficou restrito ao Uruguai é que, nesse período, músi-cos espanhóis em confronto com a cen-

sura franquista divulgavam sua obra junto ao público latino-americano, au-mentando os limites dessa comunhão de trocas e de identificação de situa-ções e problemas comuns. A forte pre-sença do exílio espanhol republicano e o teor das suas mensagens engajadas, ou simplesmente cantando os poetas silenciados pelas décadas da ditadura de Franco, garantiam calorosa recep-ção a artistas do porte de Paco Ibañez e Joan Manuel Serrat e do conjunto Agua Viva.

No âmbito da imprensa, Marcha foi um semanário que se projetou na história intelectual e cultural da Amé-rica Latina. Fundado em 1939 pelo jornalista Carlos Quijano, acabou sendo fechado em 1974 pela ditadura civil-militar. Em momentos de apogeu, chegou a vender em torno de vinte mil exemplares na cidade de Montevidéu e 12 mil em Buenos Aires. Seu público leitor eram principalmente as cama-das médias da população e os jovens universitários.

Os pesquisadores sobre este pe-riódico, grosso modo, identificam três fases na história do semanário: a pri-meira (1939-1946), quando se desta-cava principalmente por suas posições antifascistas e estava centrado mais em temas rio-platenses; a segunda (1946-1958), quando o jornal passou a se preocupar destacadamente com o fenômeno do peronismo; a terceira

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(1959-1974), como o grande momento do latino-americanismo, indo desde a Revolução Cubana até seu fechamento pela ditadura.

A partir dos acontecimentos cuba-nos, o sentimento de latino-americani-dade fortaleceu-se: o latino-americanis-mo passou a ser fundamentado na luta contra o imperialismo estadunidense. Na onda anti-imperialista, o anticapi-talismo também se intensificou, sendo esse sentimento identificado cada vez mais com a política de esquerda. Inclu-sive o Marcha publicou, em 1965, com exclusividade, “El socialismo y el hom-bre en Cuba”, de Ernesto Che Gueva-ra.22 Assim, a América Latina começou a ser pensada como uma unidade de pertencimento, passando a se anali-sar os problemas sociais, econômicos e políticos enfrentados por todas as so-ciedades latino-americanas. Formou-se um pensamento latino-americano anti-imperialista, socialista, nacional e integracionista. No ano de 1968, es-ses anseios se intensificaram.

Desde as páginas do Marcha, re-nomados cronistas e jornalistas nacio-nais dividiam espaço com importantes autores latino-americanos, alguns de-les exilados em Montevidéu. De certa forma, o semanário foi a consciência política de uma geração que questio-nou o establishment e que acompa-nhou a espiral autoritária que se pro-jetou sobre o país a partir de 1968. O

Marcha sofreu constantes ameaças e foi alvo sistemático da censura até seu fechamento definitivo. Vários dos seus integrantes foram presos e torturados; muitos tiveram de partir para o exílio e Julio Castro, o principal colaborador de Carlos Quijano, foi sequestrado e está desaparecido até hoje.

A mudança de percepção, mar-cada pelo 68, pode ser vista também no canto popular uruguaio elaborado nesse período, a denominada canción de propuesta. “A desalambrar”,23 em-blemática canção composta por Da-niel Viglietti, tem na versão original a preo cupação da questão da terra e da reforma agrária num âmbito nacional:

Yo pregunto a los presentessi no se han puesto a pensarque esta tierra es de nosotrosy no del que tenga más.

Yo pregunto si en la tierranunca habrá pensado ustedque si las manos son nuestrases nuestro lo que nos den.

¡A desalambrar, a desalambrar!que la tierra es nuestra,tuya y de aquel, de Pedro, María, de Juan y José.

Si molesto con mi cantoa alguien que ande por ahle aseguro que es un gringo un dueño del Uruguay.

Alguns meses após o lançamento, Viglietti ampliaria a abrangência do universo contido na canção, “latino-americanizando-a”, ao alterar seus versos finais:

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Si molesto con mi cantoa alguien que no quiera oírle aseguro que es un gringoo un dueño de este país.

O caráter universal de “A desa-lambrar” expandiu-se pelo tempo e pelo espaço, visto que o seu questionamen-to encontrava eco em todo o Terceiro Mundo, o que levou o poeta Mario Be-nedetti a reconhecê-la como a primeira canção revolucionária do repertório do compositor Daniel Viglietti.

De certa forma, essa confluência de proposições, presente na atitude de Viglietti foi marca do 68 uruguaio: uma enorme coincidência de setores sociais, de formas de luta, de propos-tas e de ações. As divergências táti-cas, estratégicas e doutrinárias não escondiam um clima de mal-estar e de acumulação de forças diante da ofen-siva conservadora e da reestruturação capitalista, que aproximou estudantes e trabalhadores e encaminhou muitos deles à rede de apoio ou ao próprio cír-culo interno da organização armada. Foi uma confluência que, em outra or-dem, aproximou, integrou e articulou o nacional do internacional, o uruguaio do latino-americano e do terceiro-mun-dista. Mesmo que, naquele momento, tal manifestação tenha ficado mais no plano das percepções e das intenções, paradoxalmente, ocorreu anos depois, na articulação da solidariedade e das lutas de denúncia desde o exílio.

O golpe de 1973: o fi m do 1968 uruguaio

O 1968 latino-americano diferen-ciou-se do movimento mundial em ra-zão de especificidades bem concretas: no âmbito local, a luta antioligárquica, a denúncia e a contestação aos mode-los econômicos de dominação e explo-ração; no mundial, a luta contra o im-perialismo norte-americano.

A deterioração do processo político uruguaio, a partir da resposta estatal à crise e às mobilizações sociais, levou os diversos setores a propor a organização de uma frente de partidos que pudesse concorrer nas eleições presidenciais de 1971. Dessa forma, em fevereiro desse ano surgiu a Frente Ampla, aglutinan-do os partidos comunista, socialista e democrático-cristão, outros pequenos partidos de esquerda, assim como dis-sidências dos partidos tradicionais. Além disso, contou com apoio da CNT, do movimento estudantil, de inúmeros intelectuais (entre eles, os vinculados ao semanário Marcha e músicos da canción de propuesta) e do braço políti-co do MLN – o grupo 26 de Março.

Em poucos meses, a militância dessa nova força política desencadeou intenso trabalho de divulgação do seu programa e dos seus candidatos junto à população urbana. Grandes mobili-zações e comícios inauguraram uma nova forma de fazer política, com es-

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pecial destaque para os Comitês de Bases, células de organização comu-nitária espalhadas pelos bairros de Montevidéu e de algumas cidades do interior do país.

A Frente Ampla, por meio de um programa com matizes socialis-tas, anti-imperialistas e nacionalis-tas, congregou os descontentamentos e as reivindicações históricas dos se-tores populares e médios, integrando as lutas dos movimentos estudantil e operário no plano político-eleitoral. A acumulação de forças da segunda me-tade da década de 1960, e particular-mente do 68, foi o motor da esquerda eleitoral, que obteve expressivo resul-tado para uma organização que tinha apenas nove meses de existência no momento das eleições (nov. 1971). De qualquer forma, acabou derrotada, embora obtivesse qualitativa repre-sentação parlamentar, o que assustou significativamente os setores conser-vadores da sociedade uruguaia e os in-teresses do grande capital.

Ainda nessas eleições, Pacheco Areco tentou a reeleição presidencial valendo-se de um agressivo discurso anticomunista, que reforçava a ideia de que somente um governo forte po-deria evitar a ameaça “subversiva” – identificada esta tanto na persistência da guerrilha, quanto na ameaça “mar-xista” da Frente Ampla. Logo, visando vencer as eleições, o governo restringiu

o recurso às MPs tentando diminuir o desgaste político que seu uso acarre-tava, o que podia inviabilizar as pre-tensões continuístas. Apesar dos seus esforços, Pacheco Areco não conseguiu a reeleição, mas fez o seu sucessor, Juan María Bordaberry. Tal resultado significou a retomada da política auto-ritária, com o aumento da repressão e da censura, sobretudo em virtude da oposição que continuava sofrendo da guerrilha tupamara, acrescida agora da oposição parlamentar.

Na fase pós-eleitoral, a radicali-zação da ofensiva autoritária patroci-nada pelo governo teve como suporte a decretação do “estado de guerra inter-na”, apoiado pela maioria oficialista do Parlamento, o que legitimou a inter-venção das Forças Armadas no cenário político. Como consequência, em 1972 o MLN acabou derrotado e, a partir de então, já numa lógica pautada cada vez mais pelo anticomunismo e pela Dou-trina de Segurança Nacional, os novos alvos passaram a ser a Frente Ampla e os movimentos sociais. A necessidade de disciplinar, de forma geral, a socie-dade e, de forma particular, a força-de-trabalho, através do medo e de um mecanismo inédito de dominação polí-tica, levou ao desencadeamento do gol-pe de Estado, em 27 de junho de 1973, promovido pelo próprio presidente, em conluio com os setores militares. Tal fato encerrou, definitivamente, a tra-

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dição democrática e constitucional da cidadania neste país e as expectativas de mudança reivindicadas a partir das lutas da década de 1960 e, principal-mente, do 68 uruguaio, dando início a uma longa ditadura, marcada pela profunda desnacionalização da econo-mia e pela promoção do terrorismo de estado.

Abstract

The 68 in Uruguay: strucctural crisis, mobilization social and bossiness

The 1968s in Uruguay was marked by the start of authoritarian ascent with the Jorge Pacheco Areco’s rise to power. The world demands raised in 1968 – notably the Latin-American ones – added to national discussions fought due to the economic exhaustion and social crisis that was happening since the 1960s. The confrontation between government and opposition (workers, students, militants in the armed struggle, artists, intellectuals, etc.) aggravated increasingly creating a radicalization setting of social con-flits that would extend to the deflagra-tion of coup d’état in 1973 in Uruguay.

Key words: The1968s. Pacheco Areco’s government. Social movements.

Notas1 É importante destacar que o Estado era o maior

empregador no Uruguai.2 Respectivamente, Usinas y Teléfonos del Esta-

do; Administración Nacional de Combustibles, Álcohol y Portland; Obras Sanitarias del Esta-do.

3 RODRIGUEZ, Enrique. Uruguay: raíces de la madurez del movimiento obrero. [s. l.]: [s. n.], [s. d.]. p. 132.

4 RODRIGUEZ, op. cit., p. 150.5 Diante de política inédita de forças de esquerda

e centro-esquerda.6 NAHUM, Benjamin. Manual de Historia del

Uruguay: 1903-1990. Montevideo: Banda Orien-tal, 1995. p. 308.

7 Os dados atestam essa realidade em 1968, aos 18.650 estudantes matriculados na universida-de se somaram 4.621 novos, cuja origem social apresentava o seguinte perfil: 32%, setores mé-dio altos; 57%, setores médios; 11%, setores mé-dios baixos. Aproximadamente, 30% trabalha-vam de forma permanente ao passo que outros 30% o faziam eventualmente; ainda, 42% eram maiores de 25 anos e cerca de 40% (do total) aca-bavam desistindo.

8 O espectro ideológico estudantil da época com-portava: a) Comunistas: vinculados ao PC, con-trolavam cargos de direção e procuravam conter os setores radicais alegando que as condições re-volucionárias não estavam dadas; favoráveis à negociação, consideravam essencial o amadure-cimento da consciência de toda a população; ma-joritariamente provinham dos setores médios; b) Cristãos: seus ícones eram os padres revolu-cionários Camilo Torres e Juan C. Zaffaroni, só o caráter religioso os distinguia dos grupos radi-cais; originários dos setores médios e populares; c) Movimiento de Unificación Social Proletária: autodefinidos como leninistas, eram considera-dos muito críticos à orientação do Partido Co-munista, eram minoritários; d) radicais: de ori-gem política diversa (anarquistas, dissidências do Partido Socialista, do Movimiento Revolu-cionário Oriental e do Movimiento de Izquierda Revolucionaria), provinham de setores popula-res, eram críticos das posturas dos cristãos e de Cohn-Bendit e Marcuse e sua referência era Che Guevara; questionavam toda organização tradicional, mesmo de esquerda, defensores da ação a partir de pequenos comitês; e) direita. núcleo reduzido originado nos setores abasta-dos; muito limitados, apostaram em métodos diversionistas e na ação de contrapropaganda.

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BAÑALES, Carlos; JARA, Enrique. La rebelión estudiantil. Montevideo: Arca, 1968. p. 77-79.

9 O arsenal defensivo podia contemplar estilin-gues, os citados coquetéis molotov, pedras, pi-menta (para esfregar nos olhos dos cavalos das unidades montadas), bolinhas de gude (para fazer os cavalos resvalarem), lenços molhados com suco de limão (para resistir aos gases lacri-mogêneos), etc.

10 Líber Arce foi o primeiro estudante a ser as-sassinado pela repressão estatal, tornando-se, então, símbolo do movimento estudantil e das lutas sociais, inclusive porque, num jogo de palavras, seu nome virou a consigna Liberarse (Libertar-se).

11 O general Líber Seregni manifestava discordân-cia crescente com a administração Pacheco Are-co; pouco depois, passou à reserva e contribuiu na fundação da Frente Ampla, da qual foi can-didato presidencial no pleito eleitoral de 1971.

12 HEVIA COSCULLUELA, Manuel. Pasaporte 11333. Uruguay:… ocho años con la C.I.A. Mon-tevideo: Liberación Nacional, 1985.

13 BUTAZZONI, Fernando. Seregni-Rosencof: mano a mano. Montevideo: Aguilar, 2002. p. 63.

14 Susana Pintos foi atingida quando um grupo de estudantes, acenando com lenços brancos, ten-tava ajudar o colega Hugo de los Santos, mortal-mente atingido. Mauricio Rosencof lembra que alguns dos estudantes mortos após a morte de Líber Arce foram atingidos por franco-atirado-res, cuyo propósito era asesinar e que estariam vinculados a esquadrões da morte formados a partir da assessoria dos EUA. BUTAZZONI, op. cit., p. 205.

15 Em 1963 aconteceu uma das primeiras grandes ações da organização, o assalto ao Clube de Tiro, na cidade de Nueva Helvécia, que se concluiu com a expropriação de umas trinta armas.

16 Os “cárceres do povo” (Cárceles del Pueblo) fo-ram esconderijos especiais adaptados com cer-ta infraestrutura para receber, durante tempo prolongado, pessoas sequestradas pelo MLN. Geralmente, eram pequenos espaços subterrâ-neos que contavam com sistema de segurança, enfermaria, celas individuais, entrada de veícu-los e uma fachada legal de residência.

17 BRUSCHERA, Oscar H. Las décadas infames. Análisis político: 1967-1985. Montevideo: Lu-nardi y Risso, 1986. p. 150.

18 A formação de quadros “militares” (aqueles di-retamente envolvidos nas ações armadas) tinha um alto custo operacional. A falta de preparação

mínima dos quadros voluntários e as dificulda-des de fornecimento de treinamento (fator vital para a organização) aumentavam pelo fato do Uruguai não possuir um serviço militar obriga-tório que tivesse transmitido conhecimento mí-nimo sobre armamento, táticas militares, etc., como ocorria no Brasil e na Argentina. Quanto ao treinamento que muitos quadros receberam em Cuba, de pouco adiantava, dadas as condi-ções geográficas do Uruguai e a concepção de guerrilha cubana, nas quais a montanha, a sel-va e o mundo rural tinham centralidade, condi-ções que inexistem no país.

19 No dia 8 de outubro de 1969, aniversário da morte de Che, um comando do MLN invadiu a cidade de Pando, ocupando a delegacia de po-lícia, o quartel de bombeiros e a central telefô-nica; quatro bancos foram assaltados. Na fuga um dos grupos foi cercado por um enorme dis-positivo militar, com o saldo de 16 guerrilheiros presos e três mortos. Esta ação assinalou um salto qualitativo no estilo da organização, aban-donando o estilo “Robin Hood” em troca de outro mais espetacular e parecido com a clássica ação guerrilheira.

20 O sequestro de Dias Gomide, em 31 de julho de 1970, foi relacionado ao auxílio que o governo uruguaio recebia do Brasil quanto à instrução de técnicas repressivas. Dias Gomide, vincula-do à organização Tradição, Família e Proprie-dade, teve sua soltura condicionada à troca de presos políticos do MLN, porém a administra-ção Pacheco Areco não aceitou negociar, apesar das pressões da ditadura do general Médici. Esta, por sua vez, concentrou unidades de pa-raquedistas na fronteira e enviou especialistas em contrainsurgência urbana e integrantes do Esquadrão da Morte para colaborar na busca do funcionário. O próprio delegado Fleury teria sido enviado para colaborar com a polícia uru-guaia.

21 O termo é uma clara ironia ao fato de que Can-tegril é o nome do bairro das camadas altas de Punta del Este, que, por sua vez, é a cidade balneária uruguaia vinculada aos setores domi-nantes.

22 Ernesto Che Guevara e Carlos Quijano eram grandes amigos; assim, Che enviou com exclu-sividade o seu texto para ser publicado em Mar-cha.

23 Incluída no álbum Canciones para el hombre nuevo, criado em 1967, em Cuba, e lançado no Uruguai em 1968.

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Resumen

México: el movimiento del 1968 no se olvida

Rodolfo Bórquez Bustos∗

A mi hermano Juan Carlos. Post Mortem. 2 de julio del 2008 QPD.

Pero la más hermosa de todas las dudas es cuando los débiles y

desalentados levantan su cabeza y dejan de creer en la fuerza de sus opresores.

Bertold Brecht

* Doutor em Ciências da Educação. Professor da Universidade Autónoma de Guerrero (México) e da Faculdade de Sociologia.

El movimiento de protesta del 68 en México, se generó como consecuencia de un largo período de descontento so-cial contra un régimen político autori-tario nacido en los años veinte durante la posrevolución. Este sistema político se caracterizó en lo esencial por mono-polizar el poder a través de métodos arbitrarios, valiéndose fundamental-mente de un partido único, de una ide-ología nacionalista, de posturas popu-listas, de un evidente corporativismo y cuando no se obtenían los resultados requeridos, el poder no titubeaba en aplicar la represión franca y abierta.

Palabras claves: Régimen político au-toritario. Movimiento de protesta. Ma-sacre en Tlatelolco.

La importancia del rodeo y de la memoria en la historia

No es posible entender el movi-miento de protesta del 68 en México, si no concebimos este fenómeno en su larga duración, incluso en su tempora-lidad “de muy larga duración”. (BRAU-DEL, 1989, p. 65). Pero esto no basta, también tenemos que re-escribir la historia, cuando esta historia la co-nocemos solamente por la versión de los vencedores. Según el relato mani-queo del poder, y aprovechándose de

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las condiciones de la lucha ideológicas que existía durante la Guerra Fría, la revuelta estudiantil del 68 habría sido provocada por “una intriga interna-cional organizada por el comunismo”. Sin embargo, cuando las pocas plumas y voces trataron de ver este capítulo de la historia de México desde la me-moria de los vencidos, muchos fueron callados o censurados. De hecho, en los libros oficiales de historia que se uti-lizan obligatoriamente en el sistema educativo mexicano, hasta la década de los 90’s no aparecía este aconteci-miento, no es que haya sido “olvida-do”, más bien había sido abiertamente “borrado” de la historia oficial.

Nuestro proceder axiológico segui-rá lo más cercanamente la huella de los vencidos, de los sin voz ni recuerdo, no para lamentarnos, ni tampoco para saber “objetivamente” lo que sucedió, sino para comprender los escenarios y propuestas utópicas de estos grupos sociales y advertir si su lucha en 1968 valió la pena y si aún éstas siguen vi-gentes para seguir combatiendo por ellas. Consideramos que los que lucha-ron, sí pensaban que podían cambiar la sociedad opresora de su época. Ellos se involucraron para transformar “lo que era”, proyectando como posibilidad “lo que podría ser”, teniendo por delante los imperativos tan humanamente re-levantes como son: la libertad, justicia e igualdad. En este sentido estos gru-

pos sociales entendieron que la utopía era desafiar lo desconocido, cruzar caminos inexplorados, abriendo bre-chas con el fin de hacer trascender al ser humano y así mejorar sus propias circunstancias e incidir para que otros pudieran mejorar las suyas. A través de sus acciones tomaron conciencia que podían y tenían la fuerza para enfren-tarse con el poder, romper con el orden establecido y proponer un proyecto que favoreciera a los oprimidos, a los excluidos a los sin voz.

Esta posibilidad de cambio radi-cal que llevaron a cabo los que partici-paron activamente en el movimiento del 68 tenía por delante un horizonte utópico que se manifestaba como po-sibilidad, este proyecto fue surgiendo de una verdadera convicción, inspira-da muchas veces en la intuición, en un proyecto político pre-diseñado, cons-truido en el calor de la propia acción, pensado en el marco de una concepción ideológica, pero surgió ante todo como una crítica en desacuerdo con la situa-ción presente, en este sentido fue una rebelión inalienable. (MAYO; AINSA, 1999, p. 8).

Es decir los rebeldes del 68, poten-ciaron la inconformidad con “lo dado”, trascendiendo sus circunstancias in-mediatas, con el fin de aprehender un mundo que a través de lo real empíri-camente conocido, no podían percibir. Como lo afirma Ernest Bloch, la uto-

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pía es la esperanza, es el proceso de “ir siendo” para “llegar a ser” y viceversa. Consideramos que su proyección utó-pica fue profundamente revoluciona-ria, ya que se sustentaba en una cons-trucción de posibilidad de mejorar las condiciones de lo humano (GUTIÉR-REZ PANTOJA, 2005, p. 115), tenien-do conciencia de la sentencia de Marx que todo lo “sólido se desvanece en el aire” (BERMAN, 1998, p. 7), ya que lo “dado” por muy “dado” que aparezca a nuestro entendimiento empírico (como fue el “sólido” poder del sistema auto-ritario mexicano que gobernó por 70 años), siempre está “dándose” y al es-tar “dándose” está abierto a ser cues-tionado y modificado.

Consideramos que la Revolución Mexicana (1910-1920), constituye un parteaguas en la historia del país, el México que nace y se construye des-pués de la Revolución provocará gran-des cambios a nivel económico, político, social y cultural. Sin embargo, ciertos aspectos tales como el caciquismo, au-toritarismo político, centralización del poder etc., perdurarán durante mu-chos años, con otras máscaras, pero de cierto modo se conservará como forma cotidiana en el ejercicio del poder.

La Revolución Mexicana, fue la respuesta armada organizada y ejecu-tada primordialmente por la pequeña burguesía democrática y el campesi-nado miserable, contra este poder om-

nipresente, arbitrario y dictatorial de Porfirio Díaz, quien gobernó durante 30 años con el apoyo de los terrate-nientes, los inversionistas extranje-ros y la naciente burguesía minera e industrial. Pero hay que destacar que el verdadero motor de la Revolución fue el campesinado pobre, que al grito de “Tierra y Libertad” organizaron un extenso movimiento armado. Los cam-pesinos insurrectos conducidos princi-palmente por los liderazgos de Pancho Villa en el norte y Emiliano Zapata en el sur, ganaron grandes batallas, pero en la batalla decisiva fueron vencidos, no por la dictadura, sino por sus alia-dos, por el sector democrático burgués encabezado por el grupo conocido como los constitucionalistas, éstos termina-ron imponiendo su hegemonía en la construcción del nuevo orden posrevo-lucionario.

El grupo que asumió el poder una vez concluido el proceso revolucionario armado, fue una burocracia político-militar, de origen pequeño burguesa. (LEAL, 1972; GILLY, 1981). Este gru-po originarios de las clases medias, no tuvo un proyecto histórico propio, estratégicamente siempre se mantu-vieron al servicio de los intereses de la burguesía nacional y mientras les fue-ron útiles, también apoyó a los grupos oligárquicos. Tanto los caudillos mili-tares surgidos de la Revolución, como los administradores formados bajo

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el porfiriato y posteriormente ciertos cuadros intelectuales provenientes de la sociedad civil, se constituirán en la fracción burocrático-gobernante, que facilitarán a lo largo de la posrevolu-ción el proceso de acumulación capita-lista.

En este sentido, Adolfo Gilly tie-ne razón cuando afirma que el Estado que nace después de la Revolución es una República Burguesa y considerar-lo bonapartista como algunos autores lo habían sostenido, es un error, ya que el bonapartismo en un sistema de go-bierno y no una forma de Estado. Pero el gobierno nacido de la Revolución sí es bonapartista, ya que tenía esas ca-racterísticas. En efecto, “Obregón se alza por encima de una situación de equilibrio posrevolucionario entre las clases y ascienden al poder estatal apoyándose en varios sectores de cla-ses contrapuestas, pero para hacer la política de uno de ellos: la consolida-ción de una burguesía nacional, utili-zando fundamentalmente la palanca del Estado para afirmar su dominaci-ón y favorecer su acumulación de ca-pital”. (GILLY et al., 1981, p. 48). De diferentes maneras, con matices y rit-mos diversos, éste será el proyecto de las clases dominantes desde la posre-volución. El régimen político mexicano se construyó de manera muy singular, destacando principalmente: un partido único, un presidente fuerte con pode-

res ilimitados, corporativizando a los diferentes sectores sociales como fue la clase obrera, campesinado, clases me-dias, sectores populares y ejército; sus-tentando su discurso en una ideología populista y un nacionalismo estrecho.

Con el fin de impedir un quiebre del proyecto burgués, se fue erigiendo paulatinamente un partido único que será la columna vertebral del sistema político mexicano, el cual se denomina-rá primero Partido Nacional Revolu-cionario (PNR), posteriormente bajo el mandato de Lázaro Cardenas se trans-forma en el Partido de la Revolución Mexicana (PRM), y cuando considera-ron que la Revolución ya había “cum-plido”, se propuso “cancelar la lucha de clases” y reemplazarla por la “unidad nacional” a través de la institucionali-zación de las conquistas obtenidas. Así en 1942, El PRM se transformó en el Partido Revolucionario Institucional (PRI), que reagrupará lo que genérica-mente llamarán “la familia revolucio-naria”. Se mantienen corporativizados tres “sectores” (obrero, campesino y popular), pero se excluyen a los milita-res. Las Fuerzas Armadas se institu-cionalizarán con el fin de despolitizar a este sector y evitar la disputa por el poder en su interior, pero continuarán dependiendo de la autoridad del pre-sidente. Esta alianza policlasista, será la que permitirá en el país un cierto desarrollo económico, pero primordial-

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mente una larga “paz social” sustenta-da en la paulatina consolidación de un sistema capitalista de acumulación.

Un elemento importante a des-tacar en el sistema político mexicano moderno que jugará un papel determi-nante en el 68, será el presidencialis-mo. El tener un poder ejecutivo fuerte, autoritario y anti democrático, se pier-de en la historia de México. El Imperio Aztecas, los Virreinatos coloniales es-pañoles, el porfiriato etc., se caracteri-zaron por sostenerse en gobiernos sus-tentados en el autoritarismo personal.

Enumerar todas las facultades le-gales y extra-legales que goza el pre-sidente en México desde la posrevolu-ción, sería extremadamente extenso, solamente señalaremos algunas para dimensionar el inmenso poder que tie-nen los presidentes mexicanos.1 A par-te de todo el poder formal que le da una constitución sustentada en principios democráticos, debemos destacar que el presidente de México es: el jefe máximo del partido oficial, el jefe de Estado, el jefe de las Fuerzas Armadas, asimismo nombra a su sucesor, e incide directa-mente en el nombramiento de jueces, miembros de la Corte Suprema, procu-radores y jefes militares, además siem-pre ha mantenido influencia, jerarquía y dominio sobre las autoridades locales y estatales, para evitar ser censurados los medios de comunicación le dan al presidente una amplia cobertura a su

gestión, igualmente posee una amplia ingerencia sobre la distribución de re-cursos públicos, tiene vastas facultades en materia económica a través de las empresas públicas, y el Banco Central, pero algo que es increíble a concebir en los tiempos modernos, es que el pre-sidente y sus secretarios de estado no son políticamente responsables ante el Congreso, es decir no pueden ser remo-vidos. (CARPIZO; JORGE, 1983). Por eso – como veremos más adelante – después de la masacre del 68 el enton-ces presidente Gustavo Díaz Ordaz en su informe presidencial, declaró que él es el único responsable “ante la histo-ria” de esos acontecimiento, evidente-mente que nunca fue juzgado, ni tam-poco nadie de su gobierno involucrado en estos lamentables hechos.

Daniel Cosió (1972, p. 31) se ha referido al presidencialismo mexica-no como una monarquía sexenal ab-soluta. Pablo Neruda (1974) comparó al Presidente de la Republica con un emperador azteca con más poder que la familia real inglesa. Jorge Montaño (1976) señaló que el presidente no sólo es el jefe del ejecutivo, sino también el punto de equilibrio de todo el sistema social. Vargas Llosa – en un coloquio de análisis político realizado en Méxi-co a inicio de los 90 –, definió al pre-sidencialismo mexicano como “la dic-tadura perfecta”. Este será el tamaño del poder que enfrentarán los jóvenes

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durante los acontecimientos del 68, y lo harán cimbrar.

Las circunstancias socio-económicas previas

al 68

En México tanto la infraestructu-ra, como la coyuntura abierta duran-te la Segunda Guerra Mundial, faci-litarán el impulso industrial interno. El modelo consistía en: intervención rectora del poder público en la econo-mía, un Estado benefactor cumpliendo un fuerte papel social, baja fiscalidad para la industria y la agricultura me-xicana, una política arancelaria alta a los productos extranjeros, búsqueda del ahorro interno y externo. Un 53% del total de las inversiones de los fon-dos federales se utilizaron para obras públicas y políticas sociales entre los años 40’s y 60’s. Además, este creci-miento industrial se pudo implementar principalmente gracias a la aplicación de una adecuada política bancario-fi-nanciera, que le permitió a la burgue-sía industrial interna poder acceder de forma rápida y eficaz a préstamos; como asimismo a la contracción de la oferta internacional, provocada por la economía de guerra de los países que estaban involucrados en ella.

Esta política permitió un desar-rollo económico espectacular, el sector industrial creció entre 1932 y 1940 un

6.1%. De 1940 hasta inicios de los años setentas el PIB mantendrá un creci-miento promedio anual de 6.1%, cuan-do las economías en América Latina crecían con una tasa promedio de 4.6%. En este mismo período, el producto in-terno per capita en México alcanzó una tasa de 3.3%, siendo dado que en este mismo rubro en América Latina crecía a un 2.2%. (COSÍO, 1972, p. 52). Se es-taba viviendo un verdadero “milagro económico”.

Sin embargo, el prestigiado soci-ólogo mexicano Pablo Gonzáles Casa-nova (1976), en 1963, nos va a mostrar la otra cara de la moneda. Realiza un estudio comparativo sobre la situaci-ón política económica y social del país desde el período de la posrevolución, y apoyado con datos estadísticos elabo-rados por el propio gobierno, descubre que a pesar del espectacular creci-miento económico que muestra el pe-riodo de industrialización de sustituci-ón de importaciones, este crecimiento no fue acompañado con el tan espera-do desarrollo que beneficiara a las cla-ses sociales más pobres, al contrario la situación de los pobres empeoró, la distribución del ingreso y de la rique-za seguía siendo extremadamente de-sigual. En esa misma época algunos economistas encabezados por Ifigenia Martínez, llegaron a las mismas con-clusiones descritas por el sociólogo.

En 1968, el 10% que constituía la clase alta, poseía el 50% del ingreso

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nacional, mientras que al 90% restan-te contaban con el otro 50%. El Banco de México en una encuesta elabora-da en 1968 y publicada solamente en 1974 confirmará estas aseveraciones. (MEDINA PEÑA, 1994, p. 170-179).

Igualmente, el proceso de indus-trialización de sustitución de importa-ciones, provoca la emigración masiva de los campesinos pobres hacia las ciu-dades, las cifras hablan por sí mismas. Durante la Revolución, México era un país fundamental agrario, en 1940, 65% de la fuerza de trabajo se emplea-ba en la agricultura, a mediados de los sesentas esta mano de obra representa-ba solamente un 52%, en los noventas vivía menos de un 30% de la población mexicana donde trabaja solamente un 10% de la mano de obra activa, apor-tando únicamente un 4% del PIB. El abandono del campo por parte de los campesinos pobres era evidente, y la Revolución no estaba haciendo justicia a estos sectores.

En el fondo, la despoblación del campo y empobrecimiento de la agri-cultura, evidenciaba el fracaso de la vía campesina sustentada en la refor-ma agraria2 y el triunfo de la vía priva-da de acumulación capitalista agraria, que se dio a través de la tendencia a la concentración de tierras bajo nove-dosas empresas capitalistas de explo-tación.

Además, la competencia política dentro de un marco democrático no

existía, seguía prevaleciendo la hege-monía de un partido único de Estado. Como ya lo señalamos, desde la posre-volución hasta los años 70, el partido oficial (PRI), nunca tuvo una verdade-ra oposición. Este sistema político au-toritario también entró paulatinamen-te en crisis, y empezó a ser amenazado por una serie de acciones a lo largo de todo el país

En 1936, el Sindicato Mexicano de Electricistas (SME), estalló una huelga con el fin de mejorar sus con-diciones laborales. En 1951 miles de mineros caminaron pacíficamente 1.400 kilómetros de Coahuila hasta la capital, para protestar por el maltrato inflingido por los patrones norteameri-canos dueños de una empresa minera. A lo largo de 1958, se llevaron a cabo diversas protestas por parte de tele-grafistas, maestros y trabajadores del petróleo, todas sufrieron los embates de la represión, y muchos de sus líde-res fueron encarcelados. En Baja Cali-fornia, Chihuahua y San Luís Potosí, a fines de los 50 hubo protestas por los fraudes electorales cometidos por el partido oficial. En 1958-59 los ferro-carrileros reivindicaron mejoras sala-riales y autonomía sindical, mayorita-riamente rechazaron la imposición de dirigentes “charros” – es decir sumisos al gobierno –, y estalló una gran huel-ga que fue reprimida por el ejercito y sus dirigentes encarcelados, acusados del delito de “disolución social” y por

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ser “comunistas”, entre ellos Valentín Campa y Demetrio Vallejo.

Rubén Jaramillo Méndez, campe-sino que luchó desde muy joven en la Revolución al lado de Zapata, continuó su lucha defendiendo los intereses de los campesinos, el 23 de mayo de 1962 impunemente la policía y el ejército lo asesinaron acribillándolo junto a toda su familia. (RAVELO LECUONA, 1978, p. 9-17).

En 1965 se llevaron a cabo diver-sas manifestaciones de médicos que reivindicaban mejoras salariales. El 23 de septiembre de este mismo año, un pequeño contingente de guerrille-ros al considerar que todos los canales de participación política por medio de procedimientos democráticos estaban cancelados, se lanzaron a la lucha ar-mada, atacando un cuartel militar en la ciudad de Madera en el estado de Chihuahua, el movimiento fue violen-tamente sofocado.

Detrás de todas estas lucha de reivindicaciones principalmente eco-nómicas y políticas, se dejaba ver un fenómeno caracterizado fundamental-mente por: la intolerancia del sistema dirigido por un partido único; con un movimiento obrero corporativizado, sumiso sin independencia de clase; un campesinado empobrecido y cada vez con menos peso social; una clase me-dia más educada, con un mejor nivel de vida, temiendo perder el ascenso social que había logrado, y algunos de

sus sectores movilizados reclamando el establecimiento de una verdadera democracia; un sistema represivo in-condicional a los intereses del poder, dispuesto a obedientemente reprimir cuando las autoridades así lo determi-naran. Asimismo, las clases dominan-tes mantenían una alianza indisoluble entre el capital externo mayoritaria-mente norteamericano, burguesía in-dustrial financiera interna, ricos gran-jeros y burocracia dirigente, formada en el seno de las grandes empresas públicas, todos ellos obtenían grandes ganancias y privilegios con el apoyo incondicional del Estado, cuya figura emblemática era el poderoso presiden-te. Este será el escenario social, políti-co y económico, en que se desarrollará el movimiento estudiantil del 68.

El 68 en el marco de la tradición de lucha del

movimiento estudiantil

A pesar de estos grandes brotes de descontento económico, político y social, el gobierno en su discurso ide-ológico cargado de nacionalismo, popu-lismo y anti comunismo, se vanagloria-ba declarando que en el país reinaba la paz social, la democracia, y un creci-miento económico sostenido, que esta-ba trayendo progreso para el país. Sin embargo el histórico movimiento de protesta estudiantil que se manifestó

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con mayor intensidad desde mediado de la década de los 50´s. y a lo largo de los 60´s. le demostrará al sistema lo contrario.

Esta época se distinguió por el de-sarrollo enormes movilizaciones, paros y huelgas de universitarios por motivos diversos: en solidaridad con las luchas obreras, demandaban mejoras en sus instalaciones y programas educativos, luchaban por el respeto a la autonomía universitaria, solidarizaban con la Re-volución Cubana y protestaban contra las invasiones de USA, o bien exigían la liberación de los presos políticos y reivindicaban el establecimiento de un verdadero sistema democrático en el país. Muchas de estas manifestacio-nes, culminaron con fuertes enfrenta-mientos con los cuerpos represivos y también con la ocupación militar de los recintos escolares.

El Instituto Politécnico Nacional (IPN), se había caracterizado por ser una institución educativa sumamente combativa. Ya en 1956, había realiza-do una de las huelga más importantes hasta antes de 1968. Durante este mo-vimiento, apareció por primera vez en la dirección una organización política democrática autónoma independiente del Estado, la Federación Nacional de Estudiantes Técnicos (FNET).3

El 11 de abril de 1956, la FNET organizó una huelga nacional que in-cluyó diversas escuelas del Distrito

Federal (DF), pero también de Mi-choacán, Coahuila, Jalisco, Hidalgo y Puebla, entre otros estados. Los estu-diantes exigían aumentar las horas de clase, más y mejores maestros, ampliar los laboratorios y talleres, más aulas y la construcción de una ciudad univer-sitaria politécnica. En el IPN asistían muchos estudiantes de provincia por lo general de clase media y baja, por lo tanto también reivindicaban más becas, y casas hogares colectivas, la construcción de un internado para que se acrecentaran las oportunidades de educación para los hijos de obreros y campesinos. Igualmente se exigía la promulgación de la Ley Orgánica que diera existencia legal al IPN. Las bri-gadas estudiantiles se equiparon de autobuses, recorrieron durante más de dos meses la capital y los estados de la República mexicana, explicando al pueblo y a los estudiantes de diversas escuelas, los motivos de su lucha. El 16 de junio de 1956, el presidente Ruiz Cortínez resolvió parte del pliego peti-torio. Al día siguiente se suspendió el movimiento de huelga.

A partir del 21 de junio, las acti-vidades del Politécnico y de las demás escuelas se normalizaron. Pero las soluciones ofrecidas en el documento presidencial, se aplicaban en forma muy lenta. Los estudiantes se inquie-taban y volvieron a la lucha, entonces el ejército decidió ocupar las instalacio-

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nes politécnicas, y ejercer una fuerte represión. Muchos estudiantes fueron encarcelados, entre los que se destaca el máximo dirigente de la FNET Ni-candro Mendoza Patiño, primer preso político acusado de “disolución social”, estipulado en el artículo 145 Código Pe-nal, y que en el 68 uno de los reclamos de la plataforma de lucha será abolir este artículo.4 Pero no todo fue perder, los estudiantes de los politécnicos ob-tuvieron algunos beneficios los cuales se vieron concretados durante el mis-mo gobierno de Adolfo Ruiz Cortines.

En 1958 fue atropellado el estu-diante Alfredo Bonfil de la Universidad Autónoma de México (UNAM), este evento coincidió con una tentativa de aumentar el pasaje del transporte. Los estudiantes salieron espontáneamente a protestar, retuvieron 600 autobuses y quemaron las terminales de las líne-as Villa Clasa y Villa Álvaro. Hubo mo-vilización masiva, el presidente Adolfo Ruiz Cortines tuvo que ceder parcial-mente a las demandas de los estudian-tes. (JARDÓN, 1998, p. 15).

En abril de 1960, estudiantes de la Universidad Michoacana iniciaron una huelga por la transformación de la ley orgánica que regía esta institución. Movimiento de protesta que por diver-sas demandas estudiantiles, se repeti-rá en el 1962, 1963, 1966 y 1968.

El 30 de diciembre de 1960 en Chilpancingo capital del estado de

guerrero (una de las regiones más po-bres de México), hubo una matanza co-metida por tropas del ejército federal contra el movimiento estudiantil que habían dado una impresionante lucha civil ciudadana en los meses anterio-res por convertir el antiguo Colegio del Estado en una institución educativa autónoma, la cual desembocó en una gran movilización y una huelga gene-ral, donde se unió parte importante de sectores populares. Las demandas se ampliaron y se pedía la destitución del tirano y cruel gobernador, general Raúl Caballero Aburto. Pero el sacrifi-cio no fue en vano, a la postre se obtuvo la autonomía universitaria, se creó la Universidad del Sur y posteriormente la Universidad Autónoma de Guerrero. Asimismo se logró la destitución del ti-rano Caballero Aburto, y los presos po-líticos fueron liberados. Sin embargo, la paz social no duró mucho tiempo, el partido hegemónico no dejaba espacio para las voces disidentes. En Guerre-ro, los asesinatos políticos prosiguie-ron en 1964 en la ciudad de Iguala, 18 de mayo de 1967 en Atoyac de Álvarez, en agosto de ese mismo año se produ-jo una matanza contra los copreros en Acapulco. Cerrados los espacios demo-cráticos, algunos grupos optaron por la lucha armada, que empezó a desar-rollarse desde antes del 68, y que du-rará toda la década de los 70’s. Genaro Vázquez y Lucio Cabañas, serán los

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líderes que encabezarán la guerrilla, ambos eran profesores.

En un vistazo rápido y general, podemos recordar que en abril de 1961 los estudiantes capitalinos iniciaron una jornada de lucha en defensa de la Revolución Cubana, las manifesta-ciones culminaron con la intervención violenta del cuerpo de policías (los gra-naderos). En febrero de 1964, en Pue-bla, en 1966 en Morelia, en 1967 en Sonora y Tabasco, se llevaron a cabo grandes movilizaciones estudiantiles reclamando una reforma universitaria y contra el poder autoritario del gobier-no, estas protestas rebasaron la mera protesta juvenil estudiantil y pasaron a ser movilizaciones radicales donde se unieron ciertos sectores del pueblo, fueron ferozmente reprimidas.

En 1965, los médicos luchan en la capital y se manifiestan reivindicando mejores salarios, como asimismo cues-tionan las instituciones públicas de sa-lud. Este movimiento de protesta con-cluyó con una ola represiva y el despido de cientos de empleados de este sector. Los estudiantes de diversos horizon-tes, salieron a las calles para protestar contra el gobierno y solidarizar con la lucha de los médicos.

En 1966, estalla una huelga en la UNAM organizada por un sector de humanidades y de preparatorias (equi-valente a bachillerato), que protestaba entre otras cosas contra los métodos

antidemocráticos en la designación del Rector. Este paro, terminó derrocando al rector Ignacio Chávez, pero tambi-én logró la desaparición de la policía de vigilancia (que en ves de vigilar reprimía a los grupos disidentes) y de la Federaciones Universitarias de So-ciedades de Alumnos que dirigían di-versas facultades a través de métodos “porriles”,5 e impedían el desarrollo de las voces discrepantes. El rector fue reemplazado por Javier Barros Sierra, un académico demócrata, que juga-rá un papel fundamental de apoyo al movimiento del 68. En septiembre de ese mismo año, estalló en Sinaloa una huelga general exigiendo la renuncia del rector Julio Ibarra Urrea. En 1967, intervino el ejército en la Universidad de Sonora para reprimir una manifes-tación estudiantil que exigir respeto a las libertades democráticas.

En 1967, el IPN llevó a cabo di-versas manifestaciones de apoyo con los estudiantes de la escuela privada de agricultura Hermanos Escobar en Chihuahua, ellos demandaban ser in-corporados al IPN de esa zona. En este movimiento, solidarizaron también to-das las normales del país, y la Univer-sidad de Chapingo. Se realizó un paro nacional y el reclamo de los estudian-tes fue satisfecho. Estas movilizaciones fueron organizadas democráticamente desde la base, a través de asambleas por un Comité Nacional de Huelga y

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Solidaridad. Veremos más adelan-te, que el Comité Nacional de Huelga (CNH) que dirigirá el movimiento del 68, retomará esta misma estructura organizativa, la cual como ya vimos, había sido puesta a prueba con un año de anterioridad.6

Pero las movilizaciones estudian-tiles también estaban determinadas por la coyuntura política de la lucha internacional, muchas de ellas revela-ban su repudio a USA por las invasio-nes a Cuba, Vietnam y Santo Domingo, como asimismo expresaban su apoyo a la lucha que llevaba a cabo el Che Gue-vara en Bolivia.

Finalmente hay que destacar que la lucha estudiantil en los estados de Guerrero, Michoacán y Sonora, fue ra-dical y estuvieron ligadas a movimien-tos populares, por tal motivo en estos tres estados intervendrá ferozmente el ejército, quedando como anteceden-te próximo el papel que cumplirá esta institución armada en la matanza de Tlatelolco en el 68, y en la llamada “Guerra Sucia”, durante la década de los 70�s y parte de los 80�s, donde el ejercito conjuntamente con los otros grupos policíacos por mandato del Es-tado mexicano, impunemente reprimió violentamente a los grupos guerrille-ros, arrojando como resultado miles de encarcelados, torturados, muertos y desaparecidos.

El desarrollo de los acontecimientos del 68

Para el análisis cronológico del movimiento del 68, utilizaremos como recurso metodológico y pedagógico, la división de cuatro etapas elaborada por Sergio Zermeño (1978, B). Igual-mente, consultamos diversas fuentes para explicar y situar en tiempo y es-pacio este proceso político, destacan-do principalmente, la memoria de los que participaron en este movimiento y que han quedado plasmadas en di-versos textos: (PONIATOWSKA, 1980; JARDÓN, 1998; ZERMEÑO, 1978a,b; ANAYA, 1998; LÓPEZ GALLO, 1975; BASÁÑEZ, 1981).

Primera etapa: el inicio (del 24 al 30 de julio)

Los hechos iniciales que desenca-denaron o “prendieron” el 68 mexica-no fueron completamente fortuitos. El 22 de julio en el Distrito Federal (DF), después de un partido de futbol jugado en una plaza pública denominada La Ciudadela, alumnos de la preparatoria particular Isaac Ochoterena (incorpo-rada a la UNAM) se enfrentaron en una pelea callejera contra estudiantes de las Vocacionales 2 y 5 del IPN. Los jóvenes de la Ochoterena se refugiaron en su plantel que fue apedreado por los politécnicos.

El 23, los estudiantes de las pre-paratorias 2 y 6 de la UNAM en “solida-

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ridad” con la preparatoria Ochoterena, apedrearon la Vocacional 2, sus com-pañeros de la vocacional 5 se sumaron al contraataque politécnico y apoyados por las pandillas de Los Arañas y Los Ciudadelos, apedrean nuevamente el edificio de la preparatoria Isaac Ocho-terena. Las fuerzas represivas inter-vinieron violentamente y so pretexto de controlar la gresca, golpearon a los estudiantes y lanzaron gas lacrimóge-no. Luego de varias horas de enfrenta-miento, los Politécnicos se refugian en la Vocacional 5; una sección del Cuerpo de Granaderos entró al plantel, donde apalearon por igual a alumnos, profe-sores y empleados que trataban de im-pedirles el paso.

El 24 de julio, la policía en lugar de apaciguar este conflicto, continuó reprimiendo brutalmente “Los estu-diantes opusieron resistencia y la lu-cha duró tres horas e involucró a 3000 estudiantes y a 200 granaderos”. (BA-SÁÑEZ, 1981, p. 170). El mismo 24, las vocacionales 2 y 5 fueron ocupadas por la policía. Un grupo de estudiantes del INP, realizó un mitin para protes-tar y la FNET organización estudiantil que como vimos había cumplido con un papel relevante en el movimiento de protesta de los años 50’s y 60’s – poste-riormente será controlada por el PRI y corporativizada –, llamó a una movili-zación para el 26 de julio.

Por otra parte, la Facultad de Ciencias Políticas de la UNAM, inició

un paro en apoyo a la huelga de ham-bre que estaba llevando a cabo el líder ferrocarrilero preso Demetrio Vallejos y contra la represión policiaca.

El 26 de julio se atravesaron si-multáneamente dos manifestaciones, la convocada por la FNET con las de-mandas referidas, y la encabezaba por la Confederación Nacional de Es-tudiantes Democráticos (CNED), diri-gida esta por el Partido Comunista,7 donde también participaban otros grupos de izquierda que actuaba semi clandestino y que cada año conmemo-raba el asalto al Cuartel Moncada, rei-vindicando de esta forma la Revolución Cubana. Al cruzarse las dos manifes-taciones se unieron, alcanzando un nú-mero de aproximadamente 50 mil es-tudiantes. Un pequeño contingente de alrededor de 5 mil, decidieron marchar hacia el Zócalo,8 la policía les impidió el paso utilizando todo su poderío. (BA-SÁÑEZ, 1981, p. 170). Los estudiantes resistieron y se apropiaron de autobu-ses para protegerse de las embestidas represiva de lo granaderos, quienes ocuparon diversas calles del centro de la ciudad y golpean incluso a estudian-tes de dos preparatoria que salían de clases y que no estaban involucrados en el movimiento, pero éstos se aper-trecharon y terminaron sumándose a la lucha callejera. Los enfrentamientos duraron más de cuatro horas, se suce-dieron por todo el centro de la capital. Finalmente el director de la preparato-

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ria nº 3 Roberto Alatorre Padilla, logró parlamentar con los granaderos, que se retiraron llevándose un número in-determinado de detenidos. Posterior-mente la policía allanó los domicilios de los líderes y militantes comunistas, quieren serán encarcelados. Simultá-neamente la policía allanó el edificio del Partido Comunista y el local de la imprenta de su periódico, “La voz de México”. Por su parte la FNET se des-lindó de toda responsabilidad y acusó a los miembros de las Juventudes del Partido Comunista, como los respon-sables del enfrentamiento.

Es importante señalar, que a pe-sar de la prohibición franca o velada que pesaba sobre los grupos reconoci-dos como genéricamente “la izquierda” y que reagrupaba a militantes del Par-tido Comunista pro soviético, trotskis-tas, maoístas, socialistas, pro cubanos etc., éstos actuaban en las universi-dades, vocacionales y preparatorias, de manera semi legal, encubiertos en grupos culturales, sociales, deportivos, etc. Desde este espacio, sin un status definido, pero relativamente tolerada esta izquierda, aprendió hacer activi-dad política y en la década de los 60’s ganaron espacios, lograron mayorita-riamente tomar el control de muchas organizaciones estudiantiles.

El 27 de julio, los estudiantes to-maron las preparatorias 1, 2 y 3 de la UNAM, y la vocacional 5 del IPN, ma-

nifestando de esta manera su repudio a la represión ejercida por los grana-deros contra sus compañeros los días anteriores y demandan la liberación de los detenidos; en un gesto negocia-dor a través de las autoridades de la UNAM los estudiantes ceden y entre-gan los autobuses que habían tomado para defenderse contra la brutalidad policíaca. La voz del gobierno se hace escuchar, el general Luis Cueto Ramí-rez jefe de la Policía Preventiva, en un tono “amenazantemente conciliador” declara, que liberará a los detenidos pero que la policía no tolerará más ac-tos violentos y que actuará con máxi-ma energía contra aquellos que pertur-ben el orden público. (ANAYA, 1998, p. 383). Sin embargo los estudiantes no se atemorizaron y la agitación cal-lejera continuó.

El gobierno en lugar de abrir el diálogo, toma la decisión de reprimir. El 29 de julio la policía y el ejército ro-dearon planteles escolares de cuatro escuelas preparatorias de la UNAM y una del IPN, ubicadas principalmente en el centro de la ciudad. A las prime-ras horas del 30 de julio el Ejército fue llamado a intervenir, ocuparon las ins-talaciones de estos centros educativos. Con un disparo de bazooka destruye-ron la antigua puerta tallada en el si-glo XVII de la Preparatoria 1 de San Ildefonso, y tomaron las preparatorias 2, 3 y 5, así como la vocacional 5. De

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esta acción desmedidamente violenta por parte del ejército, quedaron 400 estudiantes lesionados y 1000 deteni-dos. (BASÁÑEZ, 1981, p. 171). Igual-mente, el ejército ocupó la escuela de Arte Dramático del Instituto Nacional de Bellas Artes (INBA).

El mismo día 30 de julio por la tarde, en la Ciudad Universitaria de la UNAM, el rector Barros Sierra en un gesto de solidaridad y compromiso con las demandas del naciente movimien-to estudiantil, izó la bandera nacional a media asta y las transmisiones de Radio UNAM concluyeron temprano en señal de luto por los hechos de los días anteriores. Posteriormente serán devueltos los planteles a la UNAM.

Las primeras lecturas que se ha-cen los diversos sectores sociales y po-líticos del inicio del movimiento de pro-testa estudiantil fueron erráticas, se creía que detrás de este acontecimien-to se escondía una pugna interna en el seno del poder, provocada por la lucha para asignar al próximo candidato a la presidencia, que debería gobernar el país a partir de 1970. Otros afirmaban que era un pretexto para encarcelar a militantes de izquierda ya que podrían causar conflictos durantes los Juegos Olímpicos, que se iban a iniciar en México el 12 de octubre de ese año. Con el clima que imperaba durante la Guerra Fría, algunos apuntaban a la intromisión de USA, ya que Sr.

Hoover director del FBI, había decla-rado públicamente a inicios del 68, que en México se estaba fraguando una “conspiración comunista”, en conse-cuencia lo lógico era pensar que se de-bería reprimir a los comunistas. (ZER-MEÑO, 1978b, p. 21).

Consideramos que estas versio-nes no fueron acertadas. Es cierto que el movimiento tuvo en sus inicios cau-sas completamente fortuitas, pero que en el transcurso de los acontecimien-tos comenzó a tomar una forma de pro-testa política claramente focalizada: contra el autoritarismo del Estado que estaba cerrado a la posibilidad de abrir el diálogo para llegar algún acuerdo con los estudiantes, y que solamente quería preservar el orden por medio de la represión. En este sentido la actua-ción del gobierno fue sorda, incapaz de escuchar las voces de los estudiantes. Esta situación provocó que el descon-tento estudiantil creciera como una bola de nieve y se radicalizara.

Segunda etapa: el ascenso (del 30 de julio al 27 de agosto)

Esta etapa se distingue princi-palmente por una posición conciliado-ra y de apertura al diálogo por parte del gobierno. En segundo término, la organización del movimiento queda perfectamente estructurada. Asimis-mo, se realizarán las manifestaciones más grandes de este período histórico. Veamos en detalle esta fase.

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A partir del 30 de julio se percibe una tensa calma, una disminución de la presencia en las calles de la policía y del ejército. En el transcurso de los primeros días de agosto, las fuerzas represivas abandonan paulatinamen-te las escuelas tomadas. El mismo 30 de julio la FNET presenta al Regente capitalino Corona del Rosal, un pliego petitorio, quien resuelve algunos pun-tos de forma inmediata. Sin embargo, su cercanía con el poder y el poco ar-raigo que mantenía esta Federación con los estudiantes, dichos acuerdos son deslegitimados y pasan desaperci-bidos.

El 1o de agosto, el rector de la UNAM encabezó una gigantesca ma-nifestación donde participaron apro-ximadamente 100 mil personas entre estudiantes y profesores, pertenecien-tes mayoritariamente a la UNAM, y al IPN, a las normales y al prestigio-so Colegio de México. Las principales consignas aludían a la violación de la autonomía universitaria, al cese de la represión contra los estudiantes, y a la libertad de los presos políticos, pero la consigna que marcará el sello del movimiento será: “Únete Pueblo”. El movimiento buscaba establecer una alianza con los sectores obrero-campe-sino, alianza que en la práctica política real nunca llegará a concretarse

Cada día que pasa, más estable-cimientos educativos se incorporan a

la huelga y paralizan sus actividades en apoyo al movimiento de protesta. El mismo 1o de agosto, sorpresivamente el presidente Gustavo Díaz Ordaz, en un discurso pronunciado en Guadala-jara, ofreció su “mano tendida a quien quisiera estrecharla”. Como muestra de voluntad de diálogo, el 1o, 2 y 3 de agosto fueron devueltos a la UNAM los planteles educativos ocupados por las fuerzas represivas; de hecho ya habí-an abandonado las instalaciones de la Preparatoria 5 el 30 de julio.

El 5 de agosto, los estudiantes del IPN realizaron una manifestaci-ón que reunió a 100 mil estudiantes y profesores. El movimiento estudiantil se empieza a radicalizar, criticando no solamente el autoritarismo represivo del gobierno, sino también a la direcci-ón “charra” de la FNET por su postura vacilante y vendida al gobierno.

Con el fin organizar el descon-tento estudiantil que día a día iba au-mentando, y evitar que el diálogo que ofrecía el gobierno fuera canalizado a través de organizaciones charras su-misas a la voluntad del gobierno, se crea el 9 de agosto desde las bases estudiantiles, el Consejo Nacional de Huelga (CNH), que se convertirá en el motor que dirigirá el movimiento de protesta, desconociendo de facto la re-presentación estudiantil de la FNET.

El 8 de agosto, el gobierno en un intento burocrático-legaloide, propone

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que sea el mismo Regente9 que dialo-gue con una comisión del movimiento para llegar a una acuerdo sobre “la conducta de la policía”, insistiendo que en esta comisión estén incorporados maestros, alumnos y la FNET, organi-zación que como ya lo dijimos, carecía de bases estudiantiles y estaba subor-dinadas al sistema. El CNH no se dejó engañar, se negó a participar en este tipo de diálogo amañado, y propuso un dialogo público con las autoridades.

El 9 de agosto, el movimiento estudiantil quedaba oficialmente es-tructurado de la siguiente forma: Una Asamblea Plenaria con absoluta so-beranía y poder político de decisión; un Consejo Nacional de Huelga CNH, organizado en comisiones de Informa-ción, Brigadas de Propaganda, Finan-zas, Asuntos Jurídicos y Relaciones con Provincia. (ZERMEÑO, 1978a, p. 2). Abajo del CNH estaba el Comi-té Coordinador o Comité Central de cada institución educativa nombrados directamente por los miembros de la asamblea, su papel consistía en dirigir la lucha en su sector, a la vez tenían un representante en el seno del CNH. Además, cada centro de enseñanza funcionaba a través de asambleas per-manentes y Comités de Huelga o de Lucha, que estaban estructurados de la misma manera que el CNH, es decir en comisiones de Propaganda, Finan-zas, Brigadas Políticas etc. El CNH es-

taba integrado aproximadamente por 140 a 210 miembros, más o menos por 2 o 3 personas de las 70 escuelas que estaban participando activamente en la huelga. (ZERMEÑO, 1978a, p. 2).

Esta forma de organización, tiene su fortaleza en el hecho de que cen-tralizó y canalizó las demandas más genuinas del movimiento, además era un organismo abiertamente democrá-tico, representativo de todo el espectro tan esencialmente heterogéneo que integraba la protesta estudiantil. Su debilidad, fue que el abanico político, ideológico, cultural y de intereses, era tan diverso que muchas veces las ar-duas discusiones desgastaban y para-lizaban al movimiento, o no se podían tomar decisiones rápidas que la propia coyuntura exigía.

El 4 de agosto el movimiento in-volucrado en las movilizaciones de protesta, ya había elaborado un pliego petitorio que el CNH hace suyo y que invalidaba las demandas presentadas por la FNET. Los puntos eran los si-guientes:

1. Libertad para los presos políti-cos

2. Derogación de los artículos 145 y 145 bis del Código Penal Federal, que instituían el deli-to de “disolución social” y sir-vieron de instrumento jurídico para encarcelar a disidentes políticos, y agredir impune-

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mente a todos los que parti-cipaban en el movimiento de protesta.

3. Desaparición del Cuerpo de Granaderos.

4. Destitución de los jefes policí-acos, generales Luis Cueto Ra-mírez y Raúl Mendiolea, invo-lucrados en la represión.

5. Indemnización a los familiares de todos los muertos y heridos desde el inicio del conflicto el 26 de julio en adelante.

6. Deslindamiento de responsa-bilidades de los funcionarios culpables de los actos de repre-sión y vandalismo cometidos por la policía, granaderos y ejército, contra el movimiento estudiantil.

El CNH hará de estos 6 puntos su programa de acción política. Las briga-das estudiantiles, se extendieron por toda la Ciudad de México y en parte importante del país promoviendo sus demandas, las voces y propuestas de los estudiantes se dejaban oír en los mercados, en las escuelas, en las uni-versidades, en las calles, en las plazas públicas, asimismo se llevaban a cabo mítines relámpagos, distribución de volantes, colecta de dinero para man-tener el movimiento, etc. El discurso de los estudiantes estaba dirigido a todos los ciudadanos, pero particularmente al pueblo para que se uniera a la lu-

cha, sin embargo, la esencia de su dis-curso era plural, en el sentido que esos 6 puntos de una u otra forma incluía el sentir de la mayoría de la población mexicana, que estaba arto del autori-tarismo y arbitrariedades del sistema; “no había reunión en que no se discu-tiera sobre el conflicto; los hogares se conmovieron en virtud de las inquie-tudes juveniles. Jamás en México las discusiones habían llegado al tono de polémica a que condujo la actividad de los jóvenes”. (LÓPEZ GALLO, 1975, p. 584).

Con la plataforma de los seis pun-tos, el movimiento estaba apuntando principalmente contra el sistema polí-tico en su flanco más débil: el autori-tarismo, el presidencialismo sordo, la represión, la falta de libertades demo-cráticas, la impunidad y complicidad de las autoridades, etc. Es decir sus reivindicaciones no se limitaban a las reformas educativas como en antaño, iban mucho más allá. “El movimiento del 68 se presentó como abanderando a los sectores populares y como gestor potencial de sus demandas. De ahí su distintivo globalmente aceptado de movimiento estudiantil-popular10 pro libertades democráticas”. (ZERMEÑO, 1978a, p. 2).

El 13 de agosto se realizó una gran marcha de 150 mil participantes, que culminó en el Zócalo rompiendo con la tradicional costumbre del autoritaris-

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mo presidencialista, que impedía las protestas cerca del Palacio Nacional. Lo que los manifestantes pretendían era mostrar su descontento “frente al poder”, con el fin de que el presidente Gustavo Díaz Ordaz los viera, los es-cuchara y abriera el diálogo. Las espe-ranzas fueron vanas.

Sin embargo los sectores obreros, campesinos o como genéricamente se le denominaba en México “el pueblo”, prácticamente no se incorporó a la lu-cha del movimiento, a pesar que éste enarbolaba sus causas y constante-mente los invitó públicamente a parti-cipar en la protesta. El corporativismo oficial, aunado a la represión brutal que el Estado había inflingido al mo-vimiento proletario independiente me-xicano, que culminó con el encarcela-miento de sus principales dirigentes, a fines de los 50’s e inicio de los 60’s, cau-saba temor entre los sectores obreros, no así en un sector importante de la clase media, que veían el movimiento estudiantil de protesta con simpatía, y una posibilidad de de ampliar los espa-cios de participación política y ascenso social.

El 21 de agosto el CNH acordó re-alizar una manifestación que culmina-ría en el Zócalo, presionando de esta manera al gobierno para que se diera una respuesta a la demanda de los 6 puntos. Frente a esta decisión de los estudiantes, al otro día el Secretario

de Gobernación,11 Luis Echeverría,12 declaró oficialmente que el gobierno estaba en la mejor disposición de reci-bir a maestros y alumnos para atender sus demandas y “resolver en definitiva el conflicto […] estimamos que un diá-logo franco y sereno, desembocará en el esclarecimiento de los orígenes y el desarrollo de este lamentable proble-ma”. (LÓPEZ GALLO, 1975, p. 588). El CNH respetuoso de las decisiones de las asambleas que representaban sus bases, y desconfiando de un po-sible engaño o manipulación política por parte del gobierno, reitera que el diálogo debe ser público, en presencia de la prensa, la radio y la televisión, rechazando tácitamente el ofrecimien-to del gobierno. El 24 de este mismo mes, la Coalición de Profesores declara que es el CNH el único representante del movimiento en el diálogo público. De esta manera los maestros le dan un status de representación institucional al CNH, presionando y obligando al gobierno a reconocerlo.

Haber aceptado el diálogo en los términos que proponía el gobierno, po-dría haber significado un triunfo del movimiento, a condición que se cum-plieran los 6 puntos, ya que el poder se habría doblegado frente a la lucha estudiantil. Pero también paralizaría las movilizaciones que iban en ascenso y detendría el crecimiento de la base social de apoyo que empezaba discre-

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tamente a sumarse desde los sectores populares. Sin embargo, si ese apoyo lograba ampliarse y consolidarse, po-dría significar un avance trascenden-tal hacia otros objetivos superiores que pusieran a la orden del día una verdadera reforma del sistema político mexicano. El CNH apostó a la presión desde la movilización estudiantil que iba en aumento, y en espera también que se incorporase mayoritariamente el sector popular para presionar desde una posición de fuerza al sistema au-toritario. Para alcanzar este objetivo había que darle tiempo al tiempo, es decir, atrasar la negociación.

Aparentemente, el hecho de re-chazar el diálogo puso en entredicho la primera intención del movimiento, que era dialogar con el gobierno y que éste escuchara sus demandas, esto po-día provocar divisiones internas, y un descrédito en la opinión pública que verían en el movimiento una postura de intransigencia. Si así fuera, el po-der estaría con todas las armas para meter en la ilegalidad estas manifes-taciones y volver a la estrategia de la represión.

Toda la última semana de agosto, se discutió acaloradamente la coyun-tura política en el seno del CNH, pre-guntándose si el movimiento seguía encerrado en una alianza segura en-tre estudiantes y sectores medios, o se abría hacia el sector obrero. Final-

mente la mayoría decidió ratificar el dialogo público, ampliar la alianza con todos los sectores del pueblo, y organi-zar una manifestación para el día 27 de agosto.

El 25 de agosto, con la presión de una manifestación estudiantil se logró obtener la liberación de casi 250 ven-dedores ambulantes, detenidos y acu-sados de vender sin permiso en luga-res públicos.

El 27 de agosto hubo una mani-festación, fue la más concurrida de la historia del movimiento del 68, para unos asistieron 400 mil (ZERMEÑO, 1978b, p. 124) para otros 500 mil per-sonas. (LÓPEZ GALLO, 1975, p. 589). Los manifestantes partieron desde el Museo de Antropología, continuaron por el bosque de Chapultepec y se en-filaron hasta llegar al Zócalo. Se pide nuevamente el dialogo público, el go-bierno no respondió al llamado. Asi-mismo se iza una bandera roja y negra, con el claro objetivo de demostrar su simpatía por la lucha de los trabajado-res.13 En su trayecto miles de personas observaban con gestos de aprobación, unos aplauden, otros se incorporaban a la marcha.

Finalizada la manifestación, se decide arriar la bandera y dejar en el Zócalo un contingente permanente de maestros y estudiantes, en calidad de guardias hasta que se resuelva el conflicto. Sin embargo antes que se

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disuelva la manifestación, uno de los miembros del CNH “Sócrates Campos Lemus, propuso a la multitud cons-tituida en asamblea plenaria que el debate público […] se efectuara en el Zócalo, el día 1ro de septiembre (día y hora del informe Presidencial)”14. (ZERMEÑO, 1978a, p. 16). Esta pro-puesta fue considerada por el gobierno como “un desafío”.

Algunos medios masivos de comu-nicación, haciendo uso de la mentira, mal informaron, señalaron que miem-bros del movimiento habían “profana-do” la catedral metropolitana al tocar las campanas15 y que al amanecer del 28 de agosto izaron una bandera roja y negra en el asta monumental del Zó-calo (acción realizada probablemente por el propio gobierno), donde normal-mente ondea una gigantesca bandera mexicana. Ideológicamente el gobierno manejó que se habían “ofendido” dos sacro símbolos sumamente respeta-dos por la mayoría de los mexicanos: la bandera y la Santa Iglesia Católica. A todas luces se buscaba un pretexto para reprimir. Al amanecer del 28 de agosto: “Los batallones 43 y 44 de in-fantería, 12 carros blindados de guar-dias presidenciales, un batallón de paracaidistas, 4 carros de bomberos, 200 patrullas azules y 4 batallones de tránsito, desalojaran de la Plaza de la Constitución al grupo de estudiantes.” (ZERMEÑO, 1978a, p. 17). Con esta

acción el gobierno daba muestras de que volvería aplicar su estrategia re-presiva, cerrando toda posibilidad de apertura al diálogo.

Tercera etapa: descenso (del 27 de agosto al 18 de septiembre)

Esta etapa simplemente se carac-teriza por el endurecimiento represi-vo por parte del gobierno, negación a cualquier tipo de diálogo con el CNH, y aparición de diferencias internas en el seno del movimiento.

Al día siguiente del desalojo del Zócalo, el gobierno organizó en este mismo lugar una marcha para pro-testar por la “ofensa” que había sido víctima la bandera nacional, al que asistieron trabajadores al servicio del Estado “acarreados”,16 por sus jefes, ol-vidando que la mayoría de los manifes-tantes eran burócratas, perteneciente a la clase media y que tenían hijos o parientes en las preparatorias o uni-versidades. Estos singulares “manifes-tantes”, en lugar de lanzar consignas contra el movimiento, balaban a coro: “beee, beee, somos borregos, beee, beee somos borregos” los estudiantes que se encontraban presenciando este surrea-lista espectáculo, se unieron a los seu-dos manifestantes y la marcha oficial de apoyo al gobierno, terminó convirti-éndose en una protesta contra el pro-pio gobierno. La represión nuevamen-te se hizo sentir, sin distinguir si eran burócratas o estudiantes. Todas las en-

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tradas al Zócalo fueron bloqueadas por elementos policíacos y del ejército. Sin embargo, algunas personas que obser-vaban la manifestación desde edificios aledaños, fueron testigos de que había muchas ambulancias en este lugar y que decenas de cuerpos sin vida eran puestos en bolsas y apiñados en camio-nes militares.

La represión y el hostigamiento contra el movimiento por parte de los cuerpos policíacos y ejército comenza-ron a generalizarse, y el debate al inte-rior del movimiento era intenso. Para algunos había sido un error haberse quedado en el Zócalo, ya que sirvió de pretexto para que el gobierno justifica-ra las acciones represivas, y el posterior repliegue de la protesta. Para otros la acción violenta emprendida por el go-bierno contra el movimiento, acarrearía un mayor desprestigio para el sistema, y mayores simpatías para la causa de los estudiantes. Finalmente, el 30 de agosto el CNH tomó algunos acuerdos donde rescataremos principalmente dos: cancelar todo tipo de acciones en el Zócalo para el día 1ero de septiem-bre (día del informe presidencial), con esto se evitaba cualquiera provocación que sirviera de motivo al gobierno para reprimir. Además se volvía hacer un llamado a las autoridades para iniciar un diálogo, a condición que éste sea público y que cese la represión. Estos llamados al dialogo por parte del movi-

miento serán constantes. La respuesta del gobierno siempre fue la cerrazón y la represión, todo ello justificado por la difusión de una versión oficial fan-tástica del carácter de la protesta: que el movimiento estudiantil estaba diri-gido por el “comunismo internacional” y tenía como objetivo, impedir que se desarrollaran los Juegos Olímpicos en México, para desprestigiar a la Nación y a su gobierno (sic).

El 1ro de septiembre, el presiden-cial Gustavo Díaz Ordaz, dio lectura a su informe, sin hacer referencia a ninguna de las 6 demandas propues-tas por el CNH, pero sí advierte que el país debe recobrar la tranquilidad y amenaza con sofocar el movimiento estudiantil si se continuaba “pertur-bando el orden”. Las brigadas estu-diantiles continúan haciendo su labor de agitación y propaganda, a pesar del ímpetu de los jóvenes, se reciente un debilitamiento del movimiento, el apoyo empieza a disminuir, probable-mente debido al temor de la ofensiva represiva anunciada por el gobierno.

Un nuevo golpe le dan al movi-miento, cuando el 9 de septiembre el rector de la UNAM Javier Barros Sier-ra, declaró que las demandas institu-cionales presentadas por el Consejo Universitario el pasado 18 de agosto, han quedado satisfechas en lo esencial por el ciudadano Presidente de la Re-pública en su último informe, aunque

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algunos puntos como lo de la autono-mía faltaba aclarase jurídicamente, pero que esto se lograría por otras vías, por lo tanto hacía un llamado a la comunidad universitaria a “volver a la normalidad”. Sin embargo, estos puntos que estaban satisfechos en el decir del Rector, eran las demandas de la UNAM, no del movimiento repre-sentado por el CNH y resumido en su plataforma de los 6 puntos.

Era evidente que el movimiento empezaba a dividirse, una línea que pretendía recobrar el camino del diá-logo bajo las condiciones “institucio-nales” que le daba la legalidad de un Estado autoritario y antidemocrático. La otra corriente buscaba impaciente-mente no perder sus bases de apoyo, lograr crecer incluyendo al movimien-to de protesta principalmente al sector obrero, y negociar públicamente en una posición de fuerza favorable con el objetivo de extender plenamente la democracia republicana.

El movimiento necesitaba a toda costa salir del repliegue en que lo ha-bía metido el gobierno, pero también evitar las embestidas represivas que no cesaban. Era importante pasar a la ofensiva sin exponerse a la represión, había entonces que ocupar los espa-cios públicos para que nuevamente los estudiantes “pudieran ser vistos” ma-sivamente, y así mostrar a la opinión pública y al propio gobierno que la pro-testa seguía viva de manera pacífica y

sin provocaciones. Para tal efecto, el 13 de septiembre tiene lugar la “marcha del silencio”, una manifestación impre-sionante por el orden y disciplina que mostraron las más de 250,000 perso-nas que desfilaron en completo silen-cio, para evitar que la policía pusiera como pretexto la provocación por parte de los estudiantes y arremetieran vio-lentamente contra ellos.

El movimiento buscaba llegar a acuerdos con el gobierno, por lo tan-to hábilmente el 14 de septiembre el CNH propone que “el dialogo público legalmente puede realizarse en térmi-nos del propio mandato constitucio-nal, si a las peticiones escritas y a los acuerdos, también escritos, que dicten las autoridades, se les da una difusión pública”. (ZERMEÑO, 1978a, p. 19). La respuesta del gobierno es el silen-cio; pero el 18 de septiembre su voz se hace escuchar, de manera insospecha-da se viola la ya frágil autonomía uni-versitaria, y con un enorme despliegue militar, el ejército irrumpe a las 9 de la noche y ocupa súbitamente la Ciudad Universitaria de la UNAM, los alum-nos resisten heroicamente. El resul-tado fue un número indeterminado de lesionados, detenidos y encarcelados.

Cuarta y última etapa: desintegración violenta (después del 18 de septiembre)

Esta etapa se caracteriza funda-mentalmente por la profundización de

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la represión, la confrontación y resis-tencia del movimiento, que culmina con la masacre en Tlatelolco.

Al alba del 19 de septiembre el rector de la UNAM protestó pública-mente por la ocupación militar, afir-mando que había sido un acto excesivo de fuerza, que esta casa de estudio no merecía, agregando que “la atención de los problemas de los jóvenes requieren de comprensión antes que la violen-cia […] esperamos que los deplorables hechos que confrontamos, no afecten irreparablemente la democracia en la República”. (LÓPEZ GALLO, 1975, p. 592). El mismo 19, el rector encabe-zó una manifestación de repudio a la ocupación militar. El sistema políti-co mexicano, a través del PRI y de la Cámara de Diputados, en voz de su líder Luis Farías, atacó al rector Bar-ros Sierra por sus declaraciones, éste para evitar enfrentamientos presentó el 23 de septiembre su renuncia, pero salió en su defensa la Coalición de Profesores, quienes declarando públi-camente que si la Junta de Gobierno de la UNAM aceptaba la renuncia del Rector, 7 mil profesores renunciarán con él; en este escenario de tensión el sistema autoritario prefirió ceder: el 25 de septiembre la Junta de Gobier-no rechazó la renuncia y el día 30 el Ejercito abandonó la Ciudad Universi-taria. Los profesores involucrados mo-vimiento de protesta habían ganado una pequeña batalla.

Por su parte, el sector más radical del movimiento profundizó su acción política, pasando directamente al en-frentamiento franco y abierto contra los grupos represivos. El 23 de septiem-bre lucharon heroicamente más de 6 horas contra las fuerzas policíacas en el Casco de Santo Tomas, campus prin-cipal del IPN; asimismo combatieron de la misma manera en la Ciudadela en Zacatengo, en Tlatelolco y en todos los centros educativos del Politécnico Nacional. “La base estudiantil joven encontraba ahí su terreno natural y su coherencia”. (ZERMEÑO, 1978a, p. 19).

Como había sido previsto con an-terioridad, el miércoles 2 de octubre a las 17:30 de la tarde en la Plaza de las Tres Cultura ubicada en Tlatelolco17 hubo una manifestación donde asistie-ron unas 15 mil personas aproximada-mente, era una más de todas las que se hacían en distintos sitios de la capital. Estratégicamente todo el perímetro de la plaza fue ocupado por unos 5 mil miembros del Ejército, cientos de gra-naderos y policías, asimismo habían agentes de la policía infiltrados entre los participantes, que tenían como con-traseña un guante o un pañuelo blanco atado la mano, con el fin de ser identi-ficados por los cuerpos represivos.

Desde el balcón del tercer piso del edificio Chihuahua, los distin-tos oradores se dirigían a la multitud

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integrada por un amplio abanico de sectores sociales, había estudiantes, amas de casa con niños, habitantes de Tlatelolco, vendedores ambulantes, curiosos que pasaban por el lugar etc. En el transcurso del mitin, un grupo de obreros ferrocarrileros se integra-ban y anunciaban en sus carteles, que a partir del 3 de octubre harían paros escalonados en signo de apoyo al movi-miento. Paulatinamente diversos gru-pos de estudiantes llegaban gritando consignas y la plaza se iba colmando.

La descripción de ese fatal tarde que nos hace Elena Poniatowska – en su ya celebre y clásico libro La noche de Tlatelolco (1980, ¡¡edición n° 37!!)18 – ha quedado plasmado como un dra-mático testimonio narrado por los pro-pios actores que vivieron este fatal día, ahí se refleja ciertamente lo que suce-dió y cuyo final desenlace fue el asesi-nato de cientos de manifestantes: “Un estudiante apellidado Vega anunciaba que la marcha programada al Casco de Santo Tomás del IPN no se iba a llevar a cabo, en vista del despliegue de fuerzas públicas y de la posible re-presión, [en ese momento] surgieron en el cielo las luces de bengala19 que hicieron que los concurrentes dirigie-ran automáticamente su mirada hacia arriba. Se oyeron los primeros dispa-ros. La gente se alarmó. A pesar de que los líderes del CNH desde el tercer piso del edificio Chihuahua, gritaban por el

magnavoz: “¡No corran compañeros, no corran, son salvas!… ¡No se vayan, no se vayan, calma!”, la desbandada fue general. Todos huían despavoridos y muchos caían en la plaza, en las rui-nas prehispánicas frente a la iglesia de Santiago Tlatelolco. Se oía el fuego cer-rado y el tableteo de ametralladoras. A partir de ese momento, la Plaza de las Tres Culturas se convirtió en un infier-no. El fuego intenso duró 29 minutos. Luego los disparos decrecieron pero no acabaron. Los cuerpos de las víctimas que quedaron en la Plaza de las Tres Culturas no pudieron ser fotografiados debido a que los elementos del ejército lo impidieron. La sangre pisoteada de cientos de estudiantes, hombres, mu-jeres, niños, soldados y ancianos se ha secado en la tierra de Tlatelolco. Por ahora la sangre ha vuelto al lugar de su quietud. Más tarde brotarán las flores entre las ruinas y entre los sepulcros”. (PONIATOWSKA, 1980, p. 167).

Los estudiantes no podían esca-par, ya que todas las salidas de la pla-za estaban estratégicamente cerradas por la presencia de militares que a dis-paros o bayoneta calada detenían la estampida de los manifestantes, esta-ban encerrados, la plaza de Tlatelolco que se había convertido en una trampa infernal. Al otro día el diario “Excél-sior” señaló que nadie observó de dón-de salieron los primeros disparos. Pero la gran mayoría de los manifestantes

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aseguraron, que los soldados sin ad-vertencia ni previo aviso comenzaron a disparar. La versión oficial del gobier-no, aseveró que fueron “francotirado-res pertenecientes al movimiento” que dispararon primero desde los edificios contra los soldados, lo que provocó que éstos se defendieran.

Se sabe que hubo por lo menos 300 muertos, otros cientos de heridos y muchos más detenidos, torturados y encarcelados.20 Numerosos manifes-tantes corrieron para evitar ser alcan-zados por las balas, buscaron refugio en el conjunto habitacional de Tratelolco, los soldados y la policía tenían cercado todo el recinto, ya habían detenido a los dirigentes del CNH, toda la noche allanaron diversos departamentos en busca de estudiantes, muchos de ellos fueron arrestados, desnudados públi-camente, golpeados, vejados y llevados a prisión.

Los cuerpos represivos acordona-ron la Plaza de las Tres Culturas lugar donde había sido la masacre, los cadá-veres los metieron en camiones y se los llevaron con rumbo desconocido. Du-rante toda la noche hasta levantarse el alba, trabajadores del gobierno Ciudad de México y bomberos, limpiaron todas las pruebas de este genocidio, pero los tanques y el ejército permanecieron ahí todavía durante algún tiempo para evitar la presencia de cualquier testigo incómodo.

A la postre, como era de esperarse el pánico y miedo cundió entre los es-tudiantes, desde ese momento la pro-testa disminuyó su fuerza, la represión se hizo cada vez más cruenta, encar-celaron a muchos dirigentes, profeso-res e intelectuales que habían estado apoyando y participando activamente en el movimiento de protesta. A pesar de este contexto, aún le quedaba al mo-vimiento un último aliento. Las protes-tas continúan pero el día 9 de octubre el CNH aceptó una tregua para no in-terferir con las Olimpiadas que fueron inauguradas el 12 irónicamente bajo el nombre oficial de “Olimpiadas de la Paz”. El gobierno decretó vacaciones para que los estudiantes asistan a las olimpiadas, con esta maniobra se logró que la desmovilización de los estudian-tes fuera prácticamente generalizada. Oficialmente la huelga concluyó el 4 de diciembre y los estudiantes regresaron a clases.

En el siguiente informe presi-dencial y en una entrevista dada a los medios de comunicación, Gustavo Díaz Ordaz declaró, que él es el úni-co responsable de los sucesos del 68 y que la historia lo juzgará. Sin embar-go, para la memoria colectiva este per-sonaje ha quedado señalado como un asesino que cometió de manera calcula un genocidio; a pesar de esta verdad irrebatible, tanto él como sus colabo-radores responsables de estos terribles

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acontecimientos nunca han sido ni se-rán juzgado por la justicia mexicana, a pesar de las tentativas realizadas por grupos defensores de derechos huma-nos, algunos familiares de muertos y desaparecidos, legisladores demócra-tas e intelectuales comprometidos. En México, siempre han imperado las argucias legales para evitar que estos asesinos sean juzgados y castigados. También oficialmente estuvo prohibi-do hablar o escribir sobre lo sucedido en el 68, durante mucho tiempo, en los libros editados por la Secretaría de Educación Pública no se mencionaba nada de este capítulo negro de la histo-ria de México. Solamente durante es-tos últimos años como consecuencia de la limitada transición política hacia un sistema democrático, se han incluido algunos aspectos que marcaron estos lamentables hechos.

Balance y consecuencias del 68

Son muchas las lecturas que se pueden desprender de este aconteci-miento histórico, sin embargo solamen-te analizaremos algunos que a nuestro entender son relevantes.

El movimiento del 68, no nació de la noche a la mañana como una situación inesperada, muy por el con-trario, este evento se presentó en un marco político y social muy complejo y

se anidó mucho antes de que estallara el conflicto. A nivel nacional, durante las últimas dos décadas el país estaba política y socialmente despertando de la supuesta “paz social” que según la clase política gozaba la sociedad me-xicana. Los 20 años anteriores al 68 estuvieron marcados por las prime-ras manifestaciones importantes de disidencia sindical, que demandaban no solamente mejores condiciones la-borales y salariales, sino que además trascendía hacia un gran objetivo po-lítico, que consistió en rechazar el cor-porativismo de los trabajadores a los intereses del Estado. El desconten-to tuvo como consecuencia huelgas y protestas estudiantiles, de empleados y obreros, pero también hubo críticas acompañadas de movilizaciones debi-do a los fraudes electorales cometidos por el PRI, con el beneplácito y ayuda del propio gobierno.

Pero la situación internacional también contribuyó al desarrollo de la protesta estudiantil. En la década de los sesentas los jóvenes, profesores y manifestantes mexicanos en general, estaban bien enterados de la lucha que llevaban adelante los estudiantes franceses, alemanes, y norteamerica-nos; leían las noticias de la invasión soviética en Praga y la resistencia que opusieron en agosto del 68 los checos. Solidarizaron con el pueblo vietnamita y con la guerrilla del Che Guevara, re-

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pudiaron la invasión de USA a Santo Domingo, y defendieron los ideales de la Revolución Cubana. Entre los mi-les de manifestantes habían muchos que estaban familiarizados con las obras de “los clásicos” (Marx, Lenin), pero también conocían las propuestas de Marcuse o Jean Paul Sastre. Los jóvenes del 68 mexicano, coincidían con sus pares a nivel internacional en luchar por la libertad a todos sus ni-veles, contra toda forma de autorita-rismo, destacando fundamentalmente el autoritarismo represivo del Estado, pero su lucha rescata lo más valioso de la utopía que es la posibilidad, la espe-ranza.

En este sentido, el 68 mexicano coincide o está inserto en este movi-miento mundial antisistémico que Wallerstein lo caracterizó como la úl-tima revolución mundial del siglo XX, que cimbró el sistema mundo capita-lista.21 Sin embargo, el 68 en México se distingue principalmente por no limitar sus demandas a un marco par-ticularmente estudiantil, sino que se proyecta principalmente como el por-tador de una crítica a todo el sistema político autoritario.

Para poder haber alcanzado este objetivo de cambiar el sistema tota-litario, el movimiento debería haber sellado una alianza con la mayoría de los sectores de la clase media, clase obrera y campesina, y ese nivel nunca

se logró, por lo tanto el movimiento de protesta estudiantil fue solamente un movimiento “contestatario”, es decir, no ofrecía un proyecto político viable que propusiera una nueva forma de Estado, los 6 puntos de su platafor-ma se limitaba exclusivamente hacer una crítica al régimen político, carac-terizado fundamentalmente por un presidencialismo corrupto, autoritario y represivo, incapaz de escuchar o so-portar las voces disidentes.

En efecto, la composición social de movimiento fue fundamentalmente estudiantil perteneciente a la educa-ción pública y en menor medida a la educación privada, estos participantes eran tanto de nivel universitario como de escuelas normales, preparatoria y/o vocacional, pero también se plegaron al movimiento algunos sectores de la cla-se media como profesores y empleados o burócratas, la clase obrera a pesar de los constantes llamados a participar – recordemos que una de las tantas con-signas era: ¡PUEBLO NO APLAUDAS UNETE! o bien ¡PUEBLO NO NOS ABANDONES ÚNETE! – siempre fue un sector muy minoritario.

La fracción que se puso a la ca-beza del movimiento, fueron mayorita-riamente aquellos jóvenes (hombres y mujeres), que de una u otra forma ya habían tenido previamente experien-cias políticas en el seno de la lucha estudiantil a nivel de preparatorias

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y educación superior y que pertenecí-an mayoritariamente a una izquierda independiente, autónoma o ligada a grupos ajenos al PCM (pro-soviético), es decir maoístas, trotskistas, gueva-ristas, pro-cubanos etc.

Pero el movimiento ideológica-mente era muy heterogéneo, ya que también participaban estudiantes sin militancia alguna, que solo los movía el compartir una lucha que conside-raban justa. Indistintamente habían chavos bandas o pandilleros, vendedo-res ambulantes que deseaban castigo o venganza contra una policía corrup-ta e impune, ya que estaban cansados de ser extorsionados y maltratados por ellos.22 De igual forma, se incorporaron grupos llamados contraculturales, que soñaban con cambiar la vida cotidiana, tanto el autoritarismo familiar como el de la escuela, pero su identidad era más situada a nivel “existencial” que “políticamente militante”. A pesar de todo, estas diferencias desaparecían en el trabajo cotidiano, “en ciertos sec-tores del movimiento estudiantil no había ningún problema de ser hippie politizado o brigadista rocanrolero”. (OTHÓN QUIROZ, 1999, p. 33). Sin embargo, todas estas expresiones por diferentes razones coincidían en ser mayoritariamente jóvenes, críticos di-sidentes. Frente al gobierno represor, padres autoritarios, profesores déspo-tas, o policías impunes, los jóvenes se

fusionaban en el calor mismo de la lu-cha.

También uno de los rasgos distin-tivos del movimiento del 68 en México, fue el haber propiciado un duro golpe al sistema que se jactaba de la esta-bilidad política, crecimiento económico sostenido y paz social absoluta, que su-puestamente reinaba en México. Con la protesta del 68 todo este circo ide-ológico promovido por el poder, quedó desmitificado, vacío de contenido.

Muchos analistas (incluyendo una cierta izquierda intelectual), a 40 años de distancia, han interpretado la lucha de los jóvenes del 68 como un fracaso.23 Primero, por la intensa represión que generó. Hubo una cantidad enorme de muertos, torturados, encarcelados, desaparecidos y perseguidos. Esta verdadera oposición, antes de nacer el sistema ya la había aniquilado. En segundo lugar, ninguno de los 6 pun-tos fue satisfecho, lo más que se obtuvo fue remover 2 jefes policíacos. En ter-cer término, el sistema siguió gozan-do de “buena salud” durante mucho tiempo, recordemos que la demanda principal de los jóvenes era en el fondo la democratización de sistema político, pero este proceso solamente inicio en 1977 con la aprobación de una nueva ley electoral, que permitía con muchas limitaciones la existencia legal de to-dos los partidos político. La reforma continuó tibiamente, y solamente se

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empieza a profundizar después de la alternancia, cuando el PRI pierde la presidencia en el año 2000 y es rem-plazado por la derecha (el Partido de Acción Nacional). En cuarto lugar, nin-guno de los responsables intelectuales o materiales de la represión, tortura y masacre de Tlatelolco, fueron juzgados. En quinto lugar, algunos jóvenes al ver que el camino plural de la democracia quedaba definitivamente cancelado, to-maron las armas y desarrollaron desde la clandestinidad la guerrilla urbana, que fue violentamente embestida por el Estado durante toda la década de los 70’s y parte de los 80’s, negro periodo conocido como la Guerra Sucia y donde murieron y desaparecieron cientos de revolucionarios en manos del ejercito y de cuerpos policíacos clandestinos, que actuaban con toda impunidad.

Sin embargo estas son las “conse-cuencias empíricas inmediatas”, pero la historia no hay que verla en su di-mensión inmediata, sino tal como di-jimos al inicio de este ensayo, hay que verla en su larga duración y desde la memoria de los vencidos. En esta pers-pectiva, no es posible comprender la transición política hacia la democra-cia que vive actualmente México, sin tener como referencia la heroica lucha emprendida por los jóvenes del 68. El sacrificio no fue en vano, el movimien-to puso por primera vez – desde la posrevolución – al descubierto de ma-

nera pública, la naturaleza misma del sistema político mexicano, es decir: su feroz autoritarismo represivo, el poder absoluto del presidente, la impunidad con que actúa el Estado, la complacen-cia y complicidad de toda la clase po-lítica con la violación de los derechos humanos, la obediencia y brutalidad con que aplicaron la fuerza los grupos policíacos y el ejército, las leyes obsole-tas que justifican todo tipo de atropello por parte de la autoridad. Los jóvenes se enfrentaron sin temor a lo que to-dos los mexicanos le temían: al poder absoluto del presidente. Este es el ver-dadero legado de los jóvenes del 68, y estos son los temas que todavía hoy se discuten en el país.

El movimiento de protesta juvenil rompió y desmanteló el corporativismo estudiantil, construyó con imaginaci-ón desde la base organismos de lucha independientes al Estado, todos estos logros actualmente la memoria histó-rica del pueblo mexicano los ha recu-perado. Hoy después de la alternancia iniciada en el año 2000, México vive el inicio de un lento proceso de apertura democrática, y en el telón de fondo aún están vivas las propuestas del 68. No podemos explicar el proceso democra-tizador que vive actualmente el país, sin tener presente como uno de los fac-tores determinantes, la heroica lucha emprendida por todos aquellos que participaron activamente en el movi-

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miento de masas contestatario más importante de estos últimos casi 90 años.

Hasta hoy, en todas las manifes-taciones para recordar el 68 la consig-na es “El 68 no se olvida”, la cual debe ser interpretada como la capacidad de memoria entendida como lo que queda aún pendiente de las propuestas ela-boradas por el movimiento, como tarea política inmediata, pero también como posibilidad utópica de futuro, como es-peranza. El cuestionamiento hecho al sistema autoritario por los jóvenes del 68 aún no está resuelto, la democracia en México aún no se desarrolla ni si-quiera aceptablemente.

El movimiento de protesta nos legó una serie de tareas políticas que deben ser resuelta a favor de los ex-plotados, de los marginados de los ex-cluidos, esto no lo podemos olvidar, la memoria no tiene olvido y el 68 debe seguir conservando su voz y su rostro de todos los que lucharon, indistinta-mente de su ideología, género, clase social o edad.

Debe persistir entre los mexica-nos de manera latente y manifiesta, la memoria como conocimiento de un mo-mento histórico donde el poder aplicó toda su fuerza para acallar las voces discrepantes, para que este negro ca-pítulo nunca más se repita. Como sos-tiene Walter Benjamin en sus tesis de Filosofía de la Historia, (1940, Tesis 7) hay que “cepillar la historia a contra-

pelo”, rescatar la idea de que hoy goza-mos de ciertas libertades democráticas, no solamente gracias a la “genialidad” de algunos juristas o políticos, sino ver que en este avance “civilizatorio” están sepultados los vencidos por la barbarie del poder, pero al mismo tiempo su-brayar que su proyecto aún continúa vivo. Recordar que estos vencidos co-locaron sólidas piedras para construir un mundo más justo, pero que en su lucha terminaron sucumbiendo bajo las ruedas de los vencedores, que hoy pretenden aparecer como los artífices de la moderna democracia mexicana.

Hay que tener memoria para vol-ver a insistir una y mil veces, que la política es la síntesis donde se conjuga la pasión y la razón sustentada en el diálogo abierto y respetuoso, el argu-mento fundamentado y sustentado en principios éticos, todo ello en un es-pacio de participación respaldada por reglas verdaderamente democráticas. Este es el procedimiento que buscaba el movimiento, los que participaron en esta larga protesta estaban convenci-dos que era la única forma civilizada para convivir en sociedad con el “otro”; que cualquiera que sea las formas de violencia, acompañada con métodos represivos para imponer a través de la fuerza una forma de poder político único, debe ser excluido como práctica. No olvidar que la tragedia del 68, ha servido por lo menos para ponerle fre-no a la represión autoritaria del poder

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tan recurrentemente utilizada todavía en México contra las voces disidentes.

Tampoco debemos olvidar que no se han castigado a los responsables de la represión y matanza del 68, hay que preservar esta memoria, no para vengarse, sino para hacer justicia con los caídos y todos los que sufrieron las arbitrariedades del poder, pero sobre todo, para que nunca más el poder actúe con plena impunidad. Asimis-mo, también debemos sacar las leccio-nes de los errores cometidos durante esos meses de lucha, para rectificar y aprender a triunfar… eso tampoco se debe olvidar.

Abstract

Mexico: the movement of 1968 is not forgotten

Mexico 68 was a protest movement ge-nerated as a consequence of a long dis-content period with a political autho-ritarian regime that was born during the 20s, after the Mexican Revolution. The essential characteristics of this po-litical system were the monopolization of power through arbitrary methods, a unique-nationalist ideology party prevalence, as well as populist stands against an obvious corporate situation in the country. This Mexican Govern-ment did not hesitate to openly repress elements or situations that were consi-dered as non-wanted results.

Key words: Authoritarian political re-gime. Protest movement. Tlatelolco Massacre.

Notas1 Después de 70 años de régimen autoritario de

partido único, con la alternancia política inau-gurada en el año 2000, el presidente mexicano ha disminuido notablemente su poder, logrando que el Congreso, y la Suprema Corte manten-gan un cierto contrapeso, así como también se tiende actualmente a separar las funciones del presidente y su partido. Sin embargo, el primer jefe de la Nación aún sigue gozando de amplios poderes.

2 En 1910, 11.000 hacendados poseían casi 60% del territorio nacional, entre 1915 y 1965 se reparten 53 millones 337 500 hectáreas, favo-reciendo a 2 millones 240 000 jefes de familia. El viejo latifundio desapareció, y fue reemplaza-do por los ejidatarios, pequeños propietarios, y grandes empresas agrícolas estas últimas cons-tituían una verdadera alta burguesía agrícola (GONZÁLEZ CASANOVA, 1967, p. 62-63).

3 Posteriormente, como la mayoría de las organi-zaciones sociales será subsumida al modelo cor-porativo del Estado, transformándose en una organización “oficialista”.

4 Este artículo fue aprobado el 10 de octubre de 1941, y señala que se aplicará prisión de 2 a 12 años al extranjero o nacional mexicano que per-turbe el orden público o afecten la soberanía del Estado mexicano, a través de rebelión, sedici-ón, asonada o motín. Este delito es considerado ambiguamente como “disolución social”. Origi-nalmente estaba contemplado para ser aplicado a las actividades de tipo nazi y fascistas, pero también para “combatir el comunismo”. Recor-demos que a fines de los 30’s e inicio de los 40’s, emigraron a México un gran número de comba-tientes republicanos españoles. Asimismo León Totsky se encontraba exiliado en México. Pero también, posteriormente a la segunda Guerra mundial, se vivía un tenso clima político pro-vocado por la lucha ideológica abierta durante la Guerra Fría. Realmente, este artículo de ley penal – que se le agregó un “bis” en el párrafo IV el 29 de diciembre de 1950, aumentándole las penas aplicables –, tenía como fin utilizar una figura delictiva a todas aquellas personas que disintieran políticamente de la línea oficial del gobierno (BARJAU; CORDERA, 1981, p. 288-289). Como ya lo vimos, con este argumento “legal” el gobierno a fines de los años 50’s en-carceló a los dirigentes obreros Valentín Campa y Demetrio Vallejo y con el mismo subterfugio,

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continuará encarcelando a los disidentes políti-cos en la década de los 60’s. y 70’s.

5 Nos referimos a los “porros”, quieres son “eter-nos estudiantes” o “fósiles”, su función no es estudiar sino constituirse en especie de “líderes lumpenes”; en las universidades tienen su “es-pacio natural”, generalmente son pagados por el gobierno a cambio de “controlar” políticamente grupos de estudiantes, actúan violenta e impu-nemente con el propósito de imponer a través de organizaciones estudiantiles “charras” (oficia-les), la línea ideológica y política diseñada por el gobierno. Pero en México también hay “por-ros de izquierda”, cuya única diferencia es que hacen presión a las autoridades reivindicando cambios a favor de algunos sectores excluidos, pero el fin último es obtener beneficios económi-cos para ellos por parte del poder en turno. En el México actual, muchos “respetables políticos” de izquierda y de derecha iniciaron su carrera como “porros”.

6 Para mayores antecedentes sobre la lucha es-tudiantil antes del 68 consultar Testimonio de Pablo Gómez, preso por participar en el movi-miento del 68, actual senador de la Republica por el Partido de la Revolución Democrática en PONIATOWSKA, Elena, 1971, p. 19, y JAR-DÓN, Raúl, 1998, p. 15-17.

7 El Partido Comunista Mexicano (PCM), era un partido pequeño, “antiimperialista”, con poco arraigo entre los trabajadores, con cierta in-fluencia entre el sector estudiantil e intelectua-les, no tenía registro para participar legalmente en procesos electorales, pero su existencia fue tolerada desde la post revolución, incluso algu-nos de sus miembros colaboraron con el gobier-no del general Lázaro Cárdenas.

8 El Zócalo en la Ciudad de México es una mo-numental plaza pública, ubicada en el primer cuadro de la ciudad (el centro), conocida tam-bién como Plaza de la Constitución, rodeada de bellos edificios construidos en la época colonial, sobre los escombros de los vestigios históricos la las culturas pre-hispánicas. Ahí se localiza la catedral y el Palacio Nacional, este último sede oficial del Gobierno – el corazón mismo del sistema político mexicano –, por tal motivo bajo reglas no escritas la “institución presidencial” o el presidencialismo, prohibía hacer manifesta-ciones políticas de protesta en este lugar.

9 Equivalente al Alcalde o máxima autoridad de la Ciudad de México, en ese entonces, era nom-brado arbitrariamente por el Presidente en tur-no.

10 En México cuando se menciona al “sector popu-lar”, puede ser interpretada de dos maneras: se hace referencia a los pobres, que incluye obre-ros, campesinos desempleados etc. La segunda acepción está vinculada a la vieja nomenclatura del PRI que incorporaba en el partido, al sector obrero, campesino y “popular”, este último aglu-tinaba a las organizaciones que representaban a las clases medias, profesores, burócratas, pro-fesionistas, colonos, etc. Los llamados que hacen los jóvenes del movimiento del 68 es en general a todos aquellos que de forma abierta o velada compartía la idea de extender la diminuta de-mocracia, pero de manera particular su objetivo apuntaba para que la clase obrera se incorpora-ra a la lucha.

11 Equivalente a Ministro del Interior, es responsa-ble y ejecuta la política del país, evidentemente que por sobre él está el omnipresente y siempre poderoso Presidente.

12 Este personaje en 1970 ocupó la presidencia que dejó Díaz Ordaz, y fue el responsable de la Guerra Sucia, período donde mataron e hicieron desaparecer a miles de militantes de la izquier-da revolucionaria.

13 Las banderas roja y negra constituyen el símbo-lo de la protesta de los trabajadores mexicanos.

14 Por tradición en México cada 1ro. de septiembre el Presidente de la República como un verdade-ro Monarca, se desplaza del Palacio Nacional al Congreso de la Unión, donde lee solemnemente un informe – conocido como “Informe Presiden-cial” –, sobre su gestión anual. Evidentemente los miembros del Congreso son totalmente com-placiente, y se limitan ha ovacionar y adular al “Sr. Presidente”. Recién en el año 2008, esta “tradición” propia de los sistemas monárquicos, ha sido reformada y desapareció.

15 Efectivamente al entrar la manifestación al Zó-calo dos estudiantes de medicina con el permiso del padre Jesús Pérez tocaron las campanas y encendieron las luces de la catedral, todo el mundo aplaudía sin parar (PONIATOWSKA, 1980).

16 Cuando algunas personas son obligadas por me-dio de la presión a participar en manifestacio-nes públicas, en México se les llama “borregos” y/o acarreados.

17 Tlatelolco es una zona de la Ciudad de México ubicada en la Unidad habitacional Nonoalco-Tlatelolco, ahí se encuentran una cantidad con-siderable de edificios de departamentos multifa-miliares, ocupados por hogares de clase media, principalmente empleados, profesores y e inte-

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lectuales. Esta zona se distinguió por apoyar mayoritariamente al movimiento de protesta estudiantil.

18 En este libro, ella recoge un sin número de testi-monios de los que ahí estuvieron y de la prensa de la época.

19 En el mismo libro de Poniatoswka, la conocida periodista italiana Oriana Fallaci relata que se encontraba presenciando el mitin y que fue herida de bala, “he estado en Vietnam y puedo asegurar que en Vietnam durante los tiroteos y los bombardeos (también en Vietnam señalan los sitios que se van a bombardear con luces de bengala) hay barricadas, refugios, trincheras, agujeros, qué sé yo, a donde correr a guarecer-se. Aquí no hay la más remota posibilidad de escape”.

20 El gobierno reconoció la muerte de un poco más de 40 personas entre civiles y militares, Esta-dos Unidos señaló que habían perecido más de 200.

21 Para este autor la revolución mundial de 1968 surgió de la sensación de que el desarrollo na-cional no había ocurrido; advirtiendo que hubie-ron dos temas principales comunes en todos los levantamientos indistintamente cualquiera que fuesen los detalles locales. El primero una pro-testa contra la hegemonía de USA y la compli-cidad de la URSS al no apoyar los movimientos de protesta antisistémicos. La segunda crítica era contra la “izquierda histórica” que había podido llegar al poder, pero que sin embargo se habían integrado al sistema mundo dominante, haciendo muy poco para combatirlo y cambiarlo a favor de las mayorías excluidas. “La signifi-cación del 68 consiste en que diluyó el consenso existente en torno al wilsonismo-leninismo al cuestionar que la ideología desarrollista hubie-ra alcanzado efectivamente algo de importancia perdurable. Sembró la duda ideológica, erosionó la fe” (WALLERSTEIN, 2001, p. 121).

22 Héctor Anaya (1998, p. 257 ss) se dio la tarea de monitorear los atropellos que perpetraba la po-licía contra los ciudadanos, (asesinatos, robos, agresiones, sobornos, chantajes, amenazas, le-siones etc.), consultando día a día periódicos de la capital durante los años 67 y 68. El número de delitos cometidos impunemente por las fuer-zas policíacas era altísimos.

23 Roger Bartra (2007) ilustre intelectual de iz-quierda sostiene justamente esta tesis, que el movimiento del 68 “nos ha dejado dos heren-cias: la derrota y la transición. Ya sé que afir-mar que el movimiento de 1968 significó una derrota irritará a algunos”.

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Resumo

Maio de 1968: a greve geral que abalou a França1

Robert Ponge∗

O presente trabalho pretende ajudar o leitor a entender o que realmente foi o evento histórico que, na França, cos-tuma ser eufemisticamente chamado de “acontecimentos de Maio de 1968”. Para tanto inicio historiando, isto é, apresentando um relato histórico dos fatos quase que dia a dia e de forma tão objetiva (mas não neutra) quanto possível. Após, passo a uma tentati-va de interpretação, limitada a dois aspectos: o que se refere às causas do movimento e no que concerne ao seu desfecho (o fim precipitado da greve geral, a vitória eleitoral do general De Gaulle e a derrota eleitoral dos parti-dos de esquerda).

Palavras-chave: Maio de 1968. Gre-ve geral. História contemporânea da França.

Os fatos

Para certos comentaristas, o Maio Francês de 1968 foi, sobretudo, o sur-gimento do imprevisível. Realmente, ninguém foi vidente, ninguém chegou a predizer a explosão social que sacudi-ria a França. Mas...

* Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, Pós-Doutor pela Universidade do Quebec em Montreal. Professor Titular do Instituto de Letras da UFRGS

1 Este artigo situa-se na continuidade de estudos começados na segunda metade da década de 1980 e divulgados, inicialmente, em dois textos, publicados em 1988, no número de maio da fi -nada revista Sul e no caderno “ZH Cultura” da Zero Hora de 14 de maio de 1988; a seguir, em 1998, em dois textos publicados em dois fi nados jornais: a Folha da História e o encarte cultural do RS; e, sobretudo, em três capítulos de livros, cujas referências se encontram na bibliografi a ao fi nal do presente trabalho, respectivamente publicados em 1998 (“Maio de 1968: o mês que abalou a França”), 1999 (“França, maio de 1968: realidade e mitos”) e 2003 (“Da Primavera de Praga às barricadas de Paris”). O presente artigo deve muito a seus antecessores, aos quais retoma e dos quais representa uma síntese parcial.

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...o Maio de 1968 não foi um raio num céu azul!

Para entender por que, é preciso recuar dez anos no tempo.

Em 1º de junho de 1958, o gene-ral De Gaulle chega à chefia do Estado francês, tendo como primeira e princi-pal incumbência a tarefa de resolver a guerra colonial em curso na Argélia (então possessão do império francês). Desde 1954, o conflito colonial vinha desagregando a economia, as institui-ções e o tecido político-social da Fran-ça; funcionava como um divisor de águas na política.

Havia ameaças de golpe de esta-do por parte de militares pró-colonia-listas insatisfeitos por considerarem demasiadamente tímido o esforço go-vernamental investido na repressão aos independentistas argelinos. Em razão do prestígio adquirido durante a Segunda Guerra Mundial, De Gaulle é apresentado à população pelos parti-dos de centro e de direita (com o apoio da mídia) como o homem que afastará o perigo de golpe e resolverá todos os problemas. Ele condiciona sua aceita-ção do leme do Estado ao recebimento dos plenos poderes (o que constitui um autêntico golpe). Sua condição prévia é aceita pelo parlamento, aceitação que legaliza o golpe de estado (o qual não deixa, por isso, de ser um golpe!).

De Gaulle é recebido como um salvador, sendo festejada sua chegada

à cabeça do país e amplamente apro-vada em referendum (com 79% de voto sim) sua proposta de, em substituição à Quarta República (de natureza par-lamentarista), instaurar a Quinta Re-pública, um regime presidencialista de pulso forte, ou seja, de caráter bona-partista, com várias feições autoritá-rias e antidemocráticas.

Em 1962, seu governo leva a ter-mo tanto as negociações em torno da acessão da Argélia à independência (e o consequente encerramento da trau-mática guerra colonial) como o proces-so de descolonização em quase todas as possessões do império francês. A po-pularidade do general De Gaulle, que vinha se mantendo alta, alcança um outro pico. Mas vai, a partir de então, começar a baixar.

As nuvens começam, lenta, mas seguramente, a se acumular a partir de 1963, com a implantação do plano governamental de estabilização econô-mica. De nítidos contornos monetaris-tas, este provoca uma queda no poder aquisitivo da população e o aumento da ameaça de desemprego. A insatisfação começa a crescer. A longa e dura pa-ralisação dos mineiros força o governo a recuar. Seguem-se outras greves. Na agropecuária, a integração da França ao Mercado Comum Europeu cria sé-rios problemas de preços e de venda da produção, suscitando numerosas ma-nifestações de pequenos produtores. As entidades estudantis denunciam

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o ministro da Educação e sua política de reformas do ensino (que introduz formas de apoio ao ensino particular e procura restringir o acesso à universi-dade pública).

Em 1965, findo o seu mandato de sete anos na presidência do país, De Gaulle candidata-se a um segun-do mandato, porém consegue vencer o pleito presidencial apenas no segundo turno. No ano de 1967, ocorrem greves combativas. Nas eleições legislativas, a esquerda cresce e o partido gaullista perde cadeiras, sendo obrigado a go-vernar com o apoio dos chamados “in-dependentes”, liderados por Giscard d’Estaing.

A Reforma Universitária suscita-ra alguma confusão, frustração, insa-tisfação. Em Nanterre (subúrbios de Paris), um recém-criado campus da Universidade de Paris torna-se o foco de pequenas manifestações e protestos contra a péssima localização, as defi-ciências em equipamento e os entraves burocráticos que dificultam sobrema-neira a vida nas moradias estudantis, ou seja, as contradições existem e se desenvolvem.

O governo semeia a repressão

Em seu discurso para o Ano Novo de 1968, De Gaulle mostra-se otimis-ta, declarando encarar “com serenida-de” os meses vindouros. Entretanto, no primeiro trimestre as mobilizações (às

vezes greves) aumentam, sobretudo nas universidades, onde as manifesta-ções são mais numerosas, embora com amplitude restrita.

Em março e abril, nos campi, ten-do como pano de fundo uma latente insatisfação estudantil, são realiza-dos diversos comícios e outras ativi-dades contestatórias, particularmente no Campus de Nanterre, onde a sala do Conselho da Faculdade é ocupada durante uma tarde e uma noite. O go-verno responde com punições a líderes escolhidos a dedo e com algumas medi-das de suspensão das aulas.

Em 2 de maio de 1968, visando impedir o prosseguimento das manifes-tações, o decano da Faculdade de Nan-terre anuncia o imediato fechamento do campus. Na sexta-feira, 3 de maio, no prédio central (a Sorbonne) da Univer-sidade de Paris, quatrocentos estudan-tes realizam um comício pacífico contra a ameaça de punição de sete colegas e contra o fechamento da Faculdade de Nanterre. O reitor chama a polícia, que esvazia o prédio e, gratuitamente, prende todos os manifestantes.

O repúdio entre a massa do estu-dantado é total e imediato. Pela pri-meira vez desde a ocupação da França pelas tropas nazistas, durante a Se-gunda Guerra Mundial, a polícia in-vade e ocupa a Sorbonne. Espontanea-mente, estudantes gritam “Libertem nossos colegas!”, saem pelas ruas em passeatas que crescem rapidamente,

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agregam secundaristas e transeuntes, reunindo de duas a três mil pessoas.

O governo opta pelo confronto. A população abastada do quartier latin (o bairro estudantil) assiste, escanda-lizada, à polícia reprimir brutalmen-te. Saldo do dia: centenas de feridos, 593 presos, vários condenados em jul-gamentos sumários. O reitor da Uni-versidade de Paris decide-se pelo seu fechamento – sem prazo para reabrir. A União Nacional dos Estudantes (UNEF) responde imediatamente, cha-mando à greve geral nacional estudan-til. O Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (SNESup) apoia o apelo. No sábado, 4 de maio, as duas entidades convocam uma manifesta-ção para a segunda-feira.

Na segunda-feira, 6 de maio, vinte mil pessoas desfilam exigindo a reaber-tura da Sorbonne e o fim das punições. Mais uma vez, o governo responde com a violência policial. Os manifestantes reagem: espontaneamente, como for-ma de autodefesa, para se proteger e frear o avanço dos pelotões de choque, erguem barricadas, contra as quais a tropa investe.

Ao semear a repressão, o governo colhe a tempestade

O fechamento e a ocupação poli-cial da Sorbonne, a presença perma-nente e ostensiva dos batalhões de choque no bairro, o caráter furioso da

repressão contra os protestos dos dias 3, 6 e seguintes provocam o repúdio e a revolta da população. Não somente ali-mentam as manifestações, que se se-guem quase que diariamente, mas am-pliam a solidariedade aos estudantes. Obrigam o Partido Comunista Francês (PCF) e a Confederação Geral do Tra-balho (CGT2) a reverem sua postura inicial de culpar pretensos grupos de jovens “irresponsáveis e provocadores” pela “desordem”. Passam a denunciar a brutalidade policial e conclamam o estudantado a se opor à repressão.

No sábado, 11 de maio, diante da insensibilidade governamental e da es-calada repressiva, a UNEF, duas cen-trais sindicais (CGT, CFDT3) e a Fede-ração dos Trabalhadores na Educação (FEN4) chamam para a segunda-feira, 13 de maio, a um dia nacional de para-lisação com manifestações nas princi-pais cidades do país. Outras entidades se associam ao apelo. No domingo, 12, pressionado, o governo anuncia a rea-bertura da Universidade de Paris e o cancelamento das punições.

A segunda-feira 13 de maio é mar-cada por uma interrupção quase total das atividades e por manifestações im-ponentes. Em Paris a passeata é gigan-tesca, levando horas e horas para des-filar (estimativas de quinhentas mil a um milhão de pessoas). Nas demais cidades, dezenas e dezenas de milhares desfilam. Estudantes e trabalhadores, jovens e pessoas de idade protestam,

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exigindo o fim da repressão, liberdade, democracia, a demissão dos ministros da Educação e da polícia. Também gri-tam “Fora De Gaulle!”. A polícia sim-plesmente abandona as ruas.

Trata-se do maior movimento de passeatas que a história da França contemporânea registrou.

A greve geral

No dia seguinte, terça-feira, 14 de maio, em Nantes (cidade industrial e portuária do oeste da França), os ope-rários da indústria aérea entram em greve e ocupam a empresa. Um dia depois, na quarta-feira, 15 de maio, é a fábrica parisiense da indústria auto-mobilística Renault que paralisa, com ocupação. Outras empresas seguem o exemplo e, nos dias seguintes, sem nenhuma diretiva das centrais ou das federações sindicais, as paralisações alastram-se por todo o país. Na verda-de, não se trata mais de movimentos isolados: está começando a greve geral que vai fazer o mês de maio de 1968 entrar para a história.

No entanto, na sexta-feira, 17 de maio, Georges Séguy (alto dirigente da CGT e do PCF) declara em nome da CGT: “Não se pensa em lançar uma or-dem de greve geral” e orienta para que as negociações ocorram empresa por empresa. Mas o movimento concreto dos trabalhadores desenvolve-se alheio às orientações de Séguy: as paralisa-

ções se multiplicam, se generalizam; a greve geral já está se conformando aceleradamente.

Na terça-feira, 21 de maio (ape-nas uma semana depois da entrada em greve da fábrica de Nantes), o mo-vimento paredista está rumando para sua plena amplidão: a greve é total na metalurgia, correios, transportes, mi-nas, rádio e TV estatais, saúde e pre-vidência; ainda parcial na borracha e no têxtil; está iniciando na construção civil, marinha mercantil, portuários, bancários, securitários, eletricitários, trabalhadores do ensino, etc. Com cer-ca de dez milhões de grevistas, está se protagonizando a maior greve geral da história da França, senão da Europa – muito maior do que a histórica greve geral de 1936.

Apesar da omissão das centrais sindicais, o processo de generalização das greves cria um elenco de reivindi-cações fundamentais: nenhum salário inferior a mil francos mensais, jornada de trabalho de 40 horas semanais sem redução salarial, garantia do emprego, aposentadoria aos sessenta anos, revo-gação dos decretos-leis prejudiciais ao sistema público de saúde e previdên-cia, extensão das liberdades sindicais, pagamento dos dias parados. Apenas o governo pode responder a essa pauta reivindicativa. Por outro lado, a pró-pria existência da greve geral – refor-çada pela sua excepcional amplidão – apresenta um sentido político que ul-

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trapassa o terreno meramente sindical, sentido esse formulado pelo brado que surge nas passeatas: “Dez anos de De Gaulle, basta!” A greve geral expressa que o povo quer mudanças profundas e um outro governo comprometido com estas. Portanto, De Gaulle, o presiden-te da república, deve ir embora e seu governo com ele.

De Gaulle marca um referendum

Na sexta-feira, 24 de maio, em Paris acontecem importantes manifes-tações. Porém, em virtude de divisões entre as entidades, acontecem em lo-cais e horários separados: a organiza-da pela CGT ocorre à tarde; a convoca-da pela UNEF e outros agrupamentos, à tardinha.

Por sua vez, numa tentativa de fazer refluir a greve, De Gaulle, em ca-deia nacional, apresenta sua proposta para superar a crise: realização, em 13 de junho, de um referendum para apro-var uma forma de “participação” dos trabalhadores e estudantes na gestão das empresas e das universidades.

A frustração dos ouvintes é total. Muitos esperavam que ele se demitis-se. Até seus partidários ficam decep-cionados com o discurso, totalmen-te defasado em relação aos anseios e à ebulição do país. A proposta de De Gaulle é ignorada. Os participantes da greve geral negam legitimidade ao go-

verno; nem cogitam que o referendum possa se concretizar. Após o discurso do presidente, a polícia ataca a mani-festação da UNEF. São batalhas furio-sas com barricadas. Saldo: 456 feridos, 795 presos.

A minuta de acordo sindical

No dia seguinte, 25 de maio, as di-reções das centrais sindicais sentam-se à mesa com o primeiro-ministro Geor-ges Pompidou e com os representantes da Confederação do Patronato Francês (CNPF) para tentar chegar a um acordo que coloque um fim à paralisação. Após 25 horas de conversações, a negociação termina com uma minuta de acordo. Apresentada à Assembleia Geral dos trabalhadores da Renault, é vaiada e rejeitada, pois, em que pese a algumas concessões patronais e governamen-tais, ignora as reivindicações funda-mentais. Nas outras fábricas acontece o mesmo: a minuta é rejeitada.

Explicando que a confederação patronal e o governo não querem ceder mais, a CGT orienta os trabalhadores a negociar separadamente, no nível de ramos de indústria. Várias instâncias sindicais rejeitam a diretriz, susten-tando que as reivindicações são políti-cas e nacionais e, portanto, só podem ser alcançadas nacionalmente.

No mesmo dia 27, novas manifes-tações. Em várias cidades, os partidos

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ou centrais rivais concorrem entre si, chamando a comícios distintos. Em mui-tos, os manifestantes emitem a mesma exigência: demissão de De Gaulle e for-mação de um governo popular.

De Gaulle: ou eleições ou...

Em 30 de maio, às 16h, em cadeia nacional, De Gaulle anuncia que não se demite, adia sine die o referendum sobre a “participação”, dissolve a As-sembleia Nacional e apresenta como saída ao “caos” a realização de eleições legislativas. Deixa implícito que elas só ocorrerão se a greve geral termi-nar. Caso a “ordem” não voltar, tomará medidas drásticas. A seguir, cerca de 250 mil pessoas desfilam nos Champs-Élysées em apoio ao governo. No dia seguinte, manifestações semelhantes acontecem em cidades do interior.

O que decidem o PCF e a Fede-ração da Esquerda Democrata e So-cialista (FGDS, antecedente do atual PS), liderada por François Mitterrand? Mobilizam-se para garantir as eleições, que saúdam como uma vitória, um re-cuo do presidente, uma segunda “chan-ce” do movimento popular. O diário pa-tronal Les Échos de 1º de junho observa com satisfação que “neste confronto entre o chefe do Estado e uma grande parte do país em insubordinação há um elemento tranqüilizador: os comu-nistas parecem aceitar a batalha no terreno eleitoral”. E as centrais sindi-

cais? A CGT garante que “não pretende dificultar em nada o desenrolar da con-sulta eleitoral. É do interesse dos tra-balhadores poder expressar, no quadro das eleições, sua vontade de mudança”. As outras centrais seguem a mesma li-nha. No mesmo dia, em Paris, a UNEF organiza uma manifestação contra De Gaulle, mas fica isolada.

A volta ao trabalho e as eleições

Os partidos agora vivem em fun-ção das eleições, apostando no fim da greve geral. As centrais sindicais tra-balham para seu encerramento, frag-mentando as negociações – realizadas em separado, por grupos de empresas ou até por firmas. Dia após dia, empre-sa após empresa, ramo após ramo, as greves terminam. Não sem choques en-tre dirigentes sindicais e grevistas que reclamam das “migalhas” obtidas. En-tre 24 e 30 de maio havia cerca de dez milhões de grevistas; em 19 de junho, o número não ultrapassa os 150 mil.

Em 30 de junho, abertas as ur-nas, a população toma conhecimento dos frutos da “segunda chance”: as es-peranças de vitória por parte da FGDS e do PCF são frustradas. Juntos, seu escore é de 36,5% dos votos, diminuin-do em 6,5% em relação às eleições de 1967. Além disso, e em razão da orga-nização distrital do pleito que distorce a favor dos vencedores, ambas as agre-miações perdem mais da metade de

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suas cadeiras. Por sua vez, o partido gaullista cresce em votos e, sobretudo, pela mesma razão, em cadeiras (mais 97), detendo, sozinho, a maioria abso-luta; os “independentes”, de Giscard d’Estaing, também crescem em votos e vagas (mais 21).

Para o PCF e a FGDS, é a hora das lágrimas e dos balanços amargu-rados, nem por isso lúcidos. O secretá-rio-geral do PCF, Waldeck Rochet, em-penha-se em explicar que as eleições não foram uma vitória da greve, mas uma manobra do presidente De Gaulle “para explorar a situação”, e descobre “a extrema injustiça da lei eleitoral” (que vigora há quase dez anos)!

Para os grevistas, o final foi as-saz melancólico. Com a greve geral encerrada, ficaram sem a conquista da pauta fundamental, com uma derrota eleitoral e com De Gaulle continuando à cabeça do país.

Esses são os fatos. Vamos agora para as duas questões de interpretação.

Questão de interpretação: as causas do Maio de 1968

Pontos de vista mi(s)tifi cadores e conservadores sobre a questão

Em um artigo dedicado a historiar e discutir a Comuna de Paris (1871), iniciei o item voltado à análise das causas daquele acontecimento relem-brando que os historiadores e analis-

tas conservadores, defensores da ma-nutenção do statu quo político-social, “sempre contam com duas inevitáveis explicações para a ocorrência de mo-vimentos revolucionários: são fruto ou de um complô, de uma conspiração secreta, ou senão, do extremismo, for-ma de loucura que pode até tornar-se coletiva”.5

Sempre! Com efeito, pois, como vamos ver, essa inevitabilidade foi novamente confirmada a respeito de Maio de 1968.

Assim, em livro publicado por uma reputada editora, em uma cole-ção respeitada, o conceituado profes-sor francês René Rémond não hesita em apresentar os eventos de maio de 1968 como “um enigma”, como “acon-tecimentos que nada prenunciavam e cuja irracionalidade desconcerta”, e, a seguir, em advertir:

O historiador deve ter o cuidado de não introduzir na desconcertante complexi-dade dos fatos uma racionalidade que não possuiam: 68 é um desafio e uma derrota para a razão lógica que tenta, a todo custo, enquadrar o acontecimen-to em um processo racional. A lição é certamente válida para outras crises e lança uma suspeita sobre as explica-ções excessivamente racionais de nos-sas sucessivas revoluções.6

Embora com algumas circunlo-cuções, Rémond entende que, ao fim e ao cabo, o Maio de 1968 e as demais sucessivas revoluções anteriormente vivenciadas pela França7 não podem

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ser explicadas, analisadas satisfatoria-mente, por possuírem uma irredutível dimensão irracional, em outras pala-vras, um importante quê de loucura.

Isso para a loucura como motiva-ção para os eventos históricos! Resta a segunda inevitável explicação dos con-servadores: o complô, a conspiração, a ação de individualidades manipulado-ras com intentos suspeitos, maléficos. No caso do Maio/68, essa justificação foi formulada em termos quase idên-ticos por tipos de agrupamentos políti-co-sociais de quem caberia esperar que tivessem posições antagônicas, já que uns eram politicamente tidos como de direita ou extrema-direita e os outros se definiam como de esquerda.

No campo da direita, o poder re-correu à praxe costumeira de tirar do baú a velha tese de que toda a agitação decorria da ação planejada de entida-des políticas contestatórias. Quando o alcance da mobilização era ainda inci-piente, ou somente estudantil, o gover-no gaullista explicou que tudo não pas-sava da ação de pretensos “grupúsculos políticos infiltrados”, minorias alheias sub-repticiamente insinuadas e ativas entre o estudantado, a soldo de interes-ses escusos. Quando entraram em mo-vimento os amplos batalhões da classe trabalhadora, o governo recorreu ao anticomunismo, culpando os pretensos “intentos hegemônicos e golpistas” do Partido Comunista Francês (sobre os reais desígnios do PCF, ver adiante).

Por sua vez, os grupos da direita nacionalista e/ou fascista tiveram a alegria de descobrir em Daniel Cohn-Bendit (estudante de sociologia e um dos principais líderes do movimento contestatório estudantil) o bode expia-tório quase perfeito: vivia na França desde sua infância, porém era de na-cionalidade alemã (portanto, um es-trangeiro) e, ainda por cima, judeu. Aí se encontrava uma bela ocasião de tentar desqualificar tanto a figura de Cohn-Bendit (um intruso que se teria imiscuído em assuntos privativos dos franceses) como a própria mobilização estudantil, arremessando contra ela duas acusações: seria manipulada do exterior ao mesmo tempo pela chamada “internacional judia” e pelo comunismo internacional, ou seja, tratava-se, para eles, da grande chance de apelar para o nacionalismo, excitando duas fobias: o antissemitismo e a xenofobia. Os gru-pos fascistas não hesitaram e saíram denunciando que o movimento estava dirigido por um “judeu alemão”. O go-verno não se fez de rogado e proibiu ao estrangeiro Cohn-Bendit permanecer no território francês.

O movimento de massas posicio-nou-se imediata e claramente contra esses diversos ataques, contra essas mitificações que não passavam de mistificações. Ao governo que culpava pretensos grupúsculos pela agitação político-social, passeatas de vinte mil (e muito mais) pessoas responderam

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gritando, com inegável ironia: “Somos um grupúsculo!”. Ao antissemitismo e à xenofobia, massivas manifestações opuseram uma sonora palavra-de-or-dem: “Somos todos judeus alemães!”.

No campo da esquerda, o Partido Comunista Francês apresentava-se como herdeiro moderno do racionalis-mo e do iluminismo, como adepto do socialismo científico, do marxismo, e, além disso, como internacionalista. Deveria, portanto, pelo seu ideário, ser incapaz de produzir ou aderir a mistifi-cações desse quilate. Infelizmente, não foi o que aconteceu. Na fase inicial do movimento, o PCF, quase que em unís-sono com o governo, denunciou perio-dicamente a atividade dos chamados “grupúsculos” no movimento estudan-til, chegando ao ponto de lançar sus-peitas sobre Cohn-Bendit (nacionalida-de estrangeira) e de justificar ou, pelo menos, mostrar alguma compreensão – em função da necessidade de reagir à ação de estudantes pretensamente “irresponsáveis e provocadores” – pe-las sucessivas decisões repressivas das autoridades universitárias. Posterior-mente, quando a avalanche grevista começou a varrer a França, as lideran-ças da CGT e do PCF não cansaram de precaver os grevistas contra qualquer aproximação com os estudantes, tidos como “irresponsáveis e aventureiros” por natureza. Cabe se perguntar por que o PCF acumulou tantos equívocos, indignos de todo e qualquer partido

identificado com os ideais e as tradi-ções autenticamente socialistas.

A conjuntura na França nos anos sessenta

O que provocou mesmo o movi-mento de Maio de 1968? Como é pos-sível enxergar no histórico dos fatos relatado na parte 1, acima:

1. Uma resistência tenaz

As causas do Maio/1968 deitam suas raízes na resistência tenazmen-te oposta pela classe trabalhadora ao plano governamental de estabilização econômica, que, a partir de 1963, susci-tou crescente insatisfação, provocando movimentos de protesto, alguns bas-tante ásperos: tratava-se de primeiras advertências.

Em 1965, ficou chamuscado o esti-lo plebiscitário e imperial de governar do general De Gaulle, quando este se viu obrigado a esperar o segundo turno para vencer a eleição presidencial: ou-tra advertência.

Em 1967, nas eleições legislati-vas, a esquerda cresceu e o gaullismo perdeu cadeiras: nova advertência. Mas o governo estava muito seguro de si, insensível à crescente insatisfação.

2. Acreditando cortar o mal pela raiz, o governo brinca com pólvora

Interpretando a incipiente contes-tação estudantil como obra de ativistas infiltrados, o governo decidiu cortar o

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mal pela raiz, com punições que pre-tendia exemplares contra lideranças tachadas de agitadores ou sublevado-res profissionais.

O movimento estudantil respon-deu com um modesto comício. O mi-nistro reagiu com a invasão e ocupação policial do prédio, e a prisão dos ma-nifestantes. O governo não suspeitava, mas estava brincando com pólvora, pois...

3. Entra em cena o movimento de mas-sa estudantil e, a seguir, as centrais sindicais

Tais medidas suscitaram imedia-tas, imprevistas, massivas e comba-tivas passeatas de protesto. Inicial-mente espontânea, a reação da massa estudantil se alicerçou na União Na-cional dos Estudantes da França8 e foi alimentada pela própria brutalidade da repressão, haja vista que o governo optara pelo confronto. As manifesta-ções cresceram e se sucederam diaria-mente.

A ferocidade da ação policial con-tra os estudantes suscitou repúdio ao governo, solidariedade aos estudantes, ampliou as manifestações e pressionou as centrais sindicais a convocar, junto com a UNEF e a FEN (Federação dos Trabalhadores do Ensino Público), um grande dia de paralisação nacional e passeatas.

Preocupado, o governo recuou. Tarde demais!

4. O histórico dia 13 de maio

A amplitude e força inauditas das manifestações daquele dia deu con-fiança aos trabalhadores, deixando na população a sensação de que o Esta-do autoritário estava enfraquecido e recua va, de que, agora sim!, existiam condições para conquistar o que fora negado durante dez anos: de que che-gara o momento de protestar, lutar e mudar o estado de coisas!

5. A histórica greve geral

A incomum magnitude do dia 13 de maio serviu de trampolim para a deflagração, no dia seguinte, de greves reivindicativas e para sua dissemina-ção: começava a maior greve geral da história da França, senão da Europa, com dez milhões de grevistas.

6. Resumindo

O governo estava na ofensiva e o movimento social resistia, na defensi-va. O governo decidiu acentuar a ofen-siva. Diante das resistências, optou pelo choque. Ao fazê-lo, defrontou-se com a frente unida da massa estudan-til e de sua entidade, a UNEF. Ao per-sistir na escalada do choque, acabou se defrontando com a frente unida dos trabalhadores, da juventude e dos es-tudantes, junto com suas entidades de classe (sindicais e partidárias), unida-de na ação que se expressou de forma acabada e superior no dia 13 de maio, impulsionando a deflagração de para-lisações cuja disseminação e generali-zação provocou a greve geral.

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Em suma, quem provocou a explo-são foi o próprio governo: ao semear a repressão e o confronto, colheu a tem-pestade!

A conjuntura internacional no período pós-Segunda Guerra e nos

anos 1967-1969

O estopim dos acontecimentos de maio de 1968 (passeatas e barricadas dos estudantes e da juventude, dia na-cional de paralisação e manifestações de 13 de maio, greve geral) encontra-va-se, indubitavelmente, nas especi-ficidades da conjuntura e nas formas concretas assumidas pelo desenvolvi-mento das lutas de classes na França da década de 1960 e dos quatro primei-ros meses de 1968 (particularidades e concretude que incluem, por exemplo, a escolha pelo governo das táticas da ofensiva e do confronto, bem como o fato de que essas se defrontaram com a férrea resistência dos estudantes, da juventude e da classe trabalhadora).

Mas o vulto e alcance excepcio-nais do Maio/1968 só podem ser en-tendidos plenamente situando-o na conjuntura mundial tanto do período histórico como do momento específico. Deve antes de mais nada ser lembrado que (além do movimento contestatório ocorrido na França) o ano de 1968 e, de forma mais ampla, os anos 1967-1969 salientaram-se por sua efervescência

político-social fora do comum, que é o magnífico fruto de mais de vinte anos de ofensiva e de conquistas do movi-mento operário e democrático, em ní-vel mundial.

Esse período foi aberto pela memo-rável derrota do nazi-fascismo ao final do conflito mundial, a qual propiciou um impressionante ascenso da mobili-zação e organização dos trabalhadores em numerosos países, a explosão das lutas de libertação nacional, a expro-priação do capital na Europa do Leste e a Revolução Chinesa em 1949.

Os pontos altos das décadas de 1950 e 1960 foram a derrota militar das tropas do Estado francês peran-te o povo do Vietnã, o início da guer-ra anticolonialista na Argélia (ambos em 1954), as revoluções dos Conselhos Operários na Polônia e na Hungria em 1956, a bela Revolução Cubana em 1959 e o ápice do processo de descolo-nização, com a Grã Bretanha e a Fran-ça perdendo seus impérios em 1962.

Surgindo, então, como o resultado e a expressão maior e mais poderosa de todo esse processo e acúmulo ante-riores, os anos 1967-1969 destacam-se pelo estalo de uma miríade de impor-tantes – por vezes, vultosas – mobiliza-ções: EUA, México, Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Japão, Alemanha Oci-dental, Bélgica, França, Espanha, Itá-lia, Polônia, Tchecoslováquia, URSS, etc. Foi uma autêntica comoção telúri-ca, cujo epicentro se situou na Europa:

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talvez quantitativa, sobretudo quali-tativamente, em função da conjunção do famoso Maio francês e da notável Primavera de Praga – os eventos de maior densidade política e social do ano, movimentos prenhes de autênti-cas revoluções.9

Questão de interpretação: por que De Gaulle venceu as

eleições?

Por que o resultado eleitoral foi desfavorável ao PCF e à FGDS? Por que não lucraram com a greve geral? A questão é complexa. Limitar-me-ei, aqui, a respondê-la minimamente.

É, inicialmente, preciso remon-tar ao início do movimento paredista e analisar como se comportaram as principais forças que se definiam como de esquerda e deveriam, portanto, pro-curar escorar-se no movimento grevis-ta e fortalecê-lo. Foi essa sua postura?

Algumas questões da greve geral

Como vimos, a excepcional mag-nitude das manifestações do dia 13 de maio serviu de trampolim para a deflagração de um processo de greves reivindicativas e para sua dissemina-ção, dando nascimento à maior greve geral da história da França, talvez da Europa. Esta, de per si, possuía o se-guinte significado: a maioria da nação

não aguenta mais, está contra o gover-no, ou seja, como gritavam os manifes-tantes: “Fora De Gaulle!”. O que fize-ram tanto as centrais sindicais como a FGDS e o PCF?

Alguns dias após as grandes pas-seatas do 13 de Maio, a FGDS e o PCF saíram de seu silêncio para colocar que o governo deveria “ir embora”. Porém, não ofereceram nenhum caminho, não deram nenhuma orientação para tal: ficaram esperando que De Gaulle se demitisse por livre e espontânea von-tade.

Por sua vez, as direções das cen-trais foram negociar com a entidade nacional do patronato e com o gover-no (reconhecendo-lhe a legitimidade que os grevistas lhe negavam). Ainda por cima, não assumiram como pedra de toque a pauta fundamental de rei-vindicações. O resultado foi a minuta de acordo, que ficou muito aquém da mesma. Tanto que foi veementemente recusada pela base grevista.

A terminante rejeição da minuta pelos trabalhadores ligou, de maneira ainda mais íntima, os dois aspectos da greve: a exigência de atendimento da pauta fundamental dos grevistas (reivindicações, digamos, sindicais) e a exigência de saída de De Gaulle (rei-vindicação puramente política, no mais alto nível: o do poder). Vinculava am-bos os aspectos, pois era o governo de De Gaulle que – além de ser responsá-

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vel pela política econômica e social do decênio e pela repressão das últimas semanas – negava, agora, o atendi-mento das reivindicações. Entretanto, esta estreita união não foi assumida pelas centrais, nem pelos partidos de esquerda. Ficaram esperando para ver o que o presidente da República faria.

Em que terreno, o duelo? A esquerda aceita a jogada de De Gaulle

Desde 13 de maio, uma batalha aberta estava em curso. Contra o de-sejo dos grevistas, De Gaulle queria permanecer. Para tal, era preciso que acabasse com a greve geral, com a mo-bilização operária e popular (movimen-to no qual estava despontando uma re-volução), antes que esta acabasse com ele, antes que a revolução eclodisse e varresse o governo.

De Gaulle estava passando por imensas dificuldades, vacilando e tro-peçando; estava enfraquecido. No en-tanto, a imobilidade dos partidos de esquerda deu-lhe fôlego, que aprovei-tou com o firme discurso de 30 de maio. Ao prometer a realização de eleições legislativas, estava propondo que o re-sultado do conflito político-social fosse decidido em outro terreno, o das urnas. Condicionou as eleições ao término da greve, senão restabeleceria a ordem pela força, custe o que custar. Falando claro, colocou a alternativa: ou eleição ou confronto!

Tratava-se de uma cartada. Pos-sivelmente de um blefe. Sobretudo de uma chantagem para amedrontar, pressionar o PCF, a FGDS e as enti-dades sindicais. Estes, com exceção da UNEF, aceitaram sem pestanejar o quadro delineado por De Gaulle. Con-cordaram que as eleições constituíam mesmo a saída. Fizeram de conta que ofereciam o melhor caminho para der-rotar De Gaulle, para enxotá-lo e para obter as reivindicações. Em consequên-cia, empenharam-se firmemente em conseguir o fim da greve geral.

O historiador Georges Lefranc constata: “Doravante, reivindica-ções sociais e atividade política vão se distanciar.”10 A formulação, sendo um pouco tímida e elíptica, traduzo-a: o desenvolvimento político do movi-mento tinha vinculado estreitamente a exigência de atendimento da pauta fundamental dos grevistas com a exi-gência da saída de De Gaulle. Mas para garantir a realização das eleições os partidos políticos de esquerda e as cen-trais sindicais passaram a atuar bus-cando separar aquilo que o desenvolvi-mento da greve geral tinha unido; em suma, tiveram uma ação divisionista! Por um lado, os partidos abandonaram a greve à sua sorte, apostando no seu fim, em prol da campanha eleitoral. Por sua vez, visando também ao tér-mino da greve, as centrais impuseram que as negociações se desenvolvessem de maneira fracionada, por empre-

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tinha profetizado o caos que viria caso a greve continuasse, e a greve termi-nou. O eleitorado flutuante votou nele. De Gaulle foi o inconteste vencedor. O PCF, a FGDS e as centrais sindicais colheram o que haviam semeado.

Restaria analisar por que a atua-ção da FGDS, do PCF e das centrais sindicais não foi marcada pela vontade de derrubar De Gaulle, mas (é o míni-mo que se pode dizer) pela passivida-de e dubiedade, ou mesmo, como foi e continua sendo dito, pela traição dos anseios, potencialidades e porvir do movimento de 68, pela traição da re-volução que estava despontando. Não sendo possível fazê-lo no quadro deste trabalho, restrinjo-me a remeter o lei-tor, por um lado, ao estudo da história da social-democracia e de sua falência para compreender a postura da FGDS e, por outro, no que toca ao PCF, ao es-tudo do stalinismo.

Abstract

May 1968: the general strike that staggered France

The aim of this paper is to help the reader to understand what is usually and euphemistically known in France as “the events of May 1968”. I begin historicizing the events, that is presen-ting, as objectively as possible (but not neutrally), an almost daily account of the historical facts. Next, I attempt to interpret the facts; that interpretation is restricted to two issues: the causes

sa ou ramo; quanto às reivindicações da pauta fundamental, deveriam ser abandonadas e remetidas à Assem-bleia Legislativa a ser eleita. A greve geral e a estrondosa mobilização que estava se centralizando contra o gover-no, na qual despontava uma revolução, foram brecadas, divididas, fragmenta-das, atomizadas, sendo substituídas pelas eleições legislativas.

Foi uma jogada inteligente de um presidente enfraquecido para que os partidos de esquerda e as centrais acei-tassem abrir mão da arma que fazia sua força, trocando-a por um terreno que, no mínimo e no pior dos casos, não poderia ser tão desfavorável ao regime gaullista. Ainda mais com a greve ter-minada, com a máquina governamen-tal, o processo eleitoral, os meios de comunicação estatais sob seu controle e, além disso, com o restante da mídia (jornais, rádios privadas) e todo o es-tablishment a torcer ativamente pelo sucesso dos partidos da ordem.

Em suma – além de abrir mão de seu time (os grevistas), depois de enfraquecê-lo com a atomização das negociações –, o PCF, a FGDS e as cen-trais sindicais deixaram De Gaulle di-tar todas as condições e regras do due-lo, entregando-lhe o mando de campo e até a escalação dos próprios juízes. Ao aceitar que De Gaulle desse as car-tas, ao curvar-se diante dele, fizeram com que ele aparecesse como um ho-mem forte capaz de trazer saídas, ga-rantir a ordem e evitar o abismo. Ele

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of the 1968 movement and its outcome (the sudden and unexpected end of the general strike, de Gaulle’s electoral victory and the left-wing parties’ elec-toral defeat).

Key words: May 1968. General strike. French contemporary history.

Notas2 CGT: Confederação Geral do Trabalho, a maior

central sindical da França, com, na época, cerca de dois milhões de sócios; sua direção é, então, dominada e controlada pelo PCF.

3 CFDT: Confederação Francesa e Democrática do Trabalho, uma importante central sindical da França; oriunda do sindicalismo cristão, foi fundada em 1964 quando a maioria dos associa-dos da Confederação Francesa dos Trabalhado-res Cristãos; pronuncia-se pelo abandono do ca-ráter e da designação confessionais (“cristãos”) até então inerentes ao seu movimento sindical; conta então com cerca de sete mil sócios.

4 A FEN (Federação da Educação Nacional) tinha recusado alinhar-se com uma ou outra central sindical por ocasião da grande cisão sindical de 1948; reagrupando 27 sindicatos de trabalhado-res do ensino público, com uma alta representa-tividade (cerca de quinhentos mil sócios), a FEN ocupava um lugar especial, central e unitário no cenário sindical da França (marcado pela divi-são entre várias centrais sindicais). O SNESup, referido, estava filiado à FEN.

5 PONGE, Robert. A Comuna de Paris (1871). In: CEM-RS (Org.). Luz e sombras: ensaios de in-terpretação marxista. Porto Alegre: Centro de Estudos Marxistas-RS/CEM-RS e Editora da UFRGS, 1997. p. 146.

6 RÉMOND, René. Notre Siècle: de 1918 a 1991 (trata-se do volume 6 da Histoire de France organizada por Jean Favier para a Editora Ar-thème Fayard, a seguir publicada no Livre de Poche). Nouvelle édition augmentée. Paris: Li-vre de Poche, coll. Références, 1991. Ch. 27, p. 599-600 (grifado por mim).

7 Rémond não explicita quais são essas sucessi-vas revoluções, certamente por considerar que a resposta é óbvia para o leitor francês ou mi-

nimamente informado na história da França; o que leva a inferir que, com essa expressão, refere-se indubitavelmente à Revolução France-sa de 1789-1794, à revolução de julho de 1830, as revoluções de fevereiro e junho de 1848, à Comuna de Paris de 1871 e, provavelmente, à greve geral de 1936.

8 A UNEF convocou a greve geral estudantil e manifestações diárias; o Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior - SNESup apoiou os protestos.

9 Sobre o movimento internacional de massas nos anos 1967-1969 e sobre as raízes deste no as-censo do movimento operário e democrático no período pós-Segunda Guerra, ver, entre outros, PONGE, Robert. As raízes do 1968, um movi-mento internacional. In: ______ (Org.). 1968: o ano das muitas primaveras. Porto Alegre: Se-cretaria Municipal da Cultura da Prefeitura Municipal, 1998. p. 19-29. Sobre a Primavera de Praga: para uma brevíssima introdução, ver PONGE, R.; ZEMOR, Fernando. Da Primavera de Praga às barricadas de Paris. In: PADRÓS, Enrique Serra; HOLZMANN, Lorena (Org.). 1968: contestação e utopia. Porto Alegre: Edi-tora da UFRGS, 2003. p. 43-46. Para uma aná-lise mais desenvolvida, ver ZEMOR, Fernando. A Primavera de Praga: o processo político. In: PONGE (Org.), op. cit., p. 39-45. Sobretudo ver BROUÉ, Pierre. A Primavera dos povos começa em Praga. Trad. do francês. São Paulo: Kairós, 1979, uma lúcida análise da luta dos povos da Tchecoslováquia por um autêntico socialismo, com rosto humano.

10 EFRANC, Georges. Le mouvement syndical: de la libération aux événements de mai-juin 1968. Paris: Payot, 1969. p. 242.

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De las protestas juveniles a los movimientos sociales:

del Mayo Francés al CordobazaMaría José Becerra∗

Diego Buffa∗∗

Resumen

En el presente artículo, intentaremos explicar esquemáticamente la situaci-ón económica mundial a finales de los sesenta, poniendo especial énfasis en la crisis del sistema capitalista inter-nacional y cómo Argentina se posicionó ante dicha circunstancia. En un segun-do apartado, describiremos la situación social nacional sopesando la relevancia de la conformación de inéditas formas de acción revolucionarias, cuyo impac-to llevó a la caída del régimen militar gobernante. Por último, realizaremos una categorización analítica de los he-chos que se desarrollaron durante el mes de mayo de 1968 y 1969, en Fran-cia y en Córdoba respectivamente, para visualizar los rasgos que mantuvieron en común.

Palabras clave: Cordobazo. El mayo ar-gentino. Rebelión obrero-estudiantil.

Cuando nos propusieron escribir un artículo sobre las implicancias de mayo del ‘68 en la Argentina, nuestra respuesta inmediata fue que durante ese año la situación social se mantuvo calma. Que el año de los estallidos so-ciales en nuestro país fue 1969. El caso más destacado, por su fuerza y por los grupos que participaron en él, fue la rebelión obrero-estudiantil que estalló en la ciudad de Córdoba en mayo de ese año y que marcó el fin de la dicta-dura militar del general Onganía. Así, hablar del Mayo Francés implica en la

* Mestre em Relações Internacionais. Professora da Faculdade de Filosofía e Humanidades da Universidad Nacional de Córdoba. Pesquisadota do Centro de Estudios Avanzados (CONICET-UNC).

** Mestre em Relações Internacionais. Professor da Universidade Nacional de Córdoba e da Univer-sidade Nacional de La Plata. Pesquisador do Cen-tro de Estudios Avanzados (CONICET-UNC).

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Argentina hacer referencia al Cordo-bazo. Dos rebeliones donde los jóvenes fueron los protagonistas indiscutidos.

Los medios de comunicación de entonces, como los actuales, plantean que estos dos hechos estuvieron signa-dos por “el espíritu de la época”, por la rebeldía de una uventud cansada del modelo rígido y conservador impuesto por la sociedad surgida después de la Segunda Guerra Mundial: un mero en-frentamiento entre generaciones. Esta visión es simplista y los vacía de conte-nido ideológico. Lo que sí está claro, es que son dos situaciones distintas, con motivaciones y fines diferentes. En-tonces, ¿por qué relacionarlos?

Las jornadas parisinas de 1968 mostraron a la opinión pública el es-tado de movilización y el grado de con-ciencia de una juventud que se alzaba en lucha revolucionaria entre el capi-tal y el trabajo. Juventud de diferentes lugares, como México, Estados Unidos, Italia y Alemania Federal, pero que al no estar “conectada” entre sí no pudo, o no supo, producir cambios estructu-rales dentro del sistema capitalista. Por esta razón y por el alto compo-nente específico que cada movimiento adquirió, es que resulta difícil hablar de una continuidad. Pero estas parti-cularidades se desdibujan si analiza-mos la coyuntura histórica en la que se desarrollaron estas rebeliones y, más aún, si vemos quiénes fueron sus

protagonistas principales. Este vas-to proceso internacional posee ciertos rasgos comunes como el tipo de activi-dad y la espontaneidad de las masas, la dinámica anticapitalista y antiim-perialista de los movimientos, el alto grado de radicalización de las nuevas generaciones que participan, la forma-ción de nuevas corrientes de izquierda que sobrepasan a las direcciones tradi-cionales, entre otros.

Es así que, primero, intentaremos explicar esquemáticamente la situaci-ón económica mundial a finales de los ‘60 – con la crisis del sistema capita-lista – y cómo Argentina se articuló a dicho modelo para, en un segundo apartado, describir la situación social en esta última y sopesar la relevancia de la conformación de inéditas formas de acción, cuyo impacto político llevó a la caída del régimen militar de turno. Por último, realizaremos una categori-zación analítica de los hechos que se desarrollaron durante el mes de mayo de 1968 y 1969, en Francia y en Córdo-ba, respectivamente, para visualizar los rasgos que mantuvieron en común.

La crisis del sistema capitalista

El final de la II Guerra Mundial planteó la emergencia de un modelo centralizado, donde la preponderan-cia económica, política y militar fue

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detentada por dos potencias con áreas de influencia claramente definidas y acotadas. Samir Amin1 define el ciclo de posguerra como un largo camino ascendente construido sobre tres pila-res, algunas veces complementarios y otras en conflicto pero que produjeron una fuerte expansión económica en cada una de las áreas en donde se de-sarrollaron. Estos pilares fueron: a) en Occidente la existencia de la acumu-lación fordista y de la socialdemo-cracia que, regulada por las políticas nacionales keynesianas, se abrieron a la economía mundial preservando una coherencia entre la acumula ción y el compromiso capital/trabajo; b) el proyecto de Bandung, un proyecto nacional-burgués que intentó atrapar a las naciones en un contexto de inde-pendencia circunscrito, donde moder-nización y desarrollo iban asociados; c) el proyecto soviético, que intentó alcanzar a Occidente mediante una estrategia de acumulación libre de las constricciones del sistema capitalista y gestionada mediante la propiedad es-tatal y la centralización del poder eco-nómico y político por una nueva bur-guesía en formación, la nomenclatura de los partidos comunistas.2

Pondremos atención en los dos primeros. Estos proyectos se basaron en creencias monolíticas: Occidente creía que el crecimiento continuado era un hecho indiscutido, y que los paí-

ses periféricos debían abocarse a la construcción nacional, cuyo modelo de Estado Nacional era el europeo, como solución a largo plazo de los problemas de subdesarrollo. Pero, como el mismo Amin explica, la expansión del capita-lismo no implica resultados que puedan identificarse en términos de desarrollo. Durante la segunda posguerra, la lógi-ca del sistema capitalista erosionó los sistemas nacionales de producción cre-ados históricamente, a lo que se sumó la adopción de una industrialización progresiva de las periferias, basada en productos agrícolas o minerales con baja inversión económica y alto uso de mano de obra. Las instituciones de Bretton Woods fueron las encargadas de concretar esta lógica, posibilitando la expansión del sistema capitalista y fomentando la liberalización del siste-ma comercial y financiero, a costa de la dependencia de las periferias.3

Volviendo a la idea central de este trabajo, las bases fundantes del siste-ma y sus ideas gestoras, generaron un boom económico que a finales de los ‘60 mostró sus limites con una caída de la tasa media de ganancia capitalista y de la productividad del trabajo. La de-clinación de los beneficios capitalistas planteó la necesidad de, por una parte, reducir los derechos que los trabajado-res habían ganado en los países cen-trales durante la vigencia del Estado de Bienestar y, a la vez, por otra parte,

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intentar una ofensiva imperialista so-bre los países periféricos. En el terre-no político el fracaso de la guerra de Vietnam fue el emblema de la crisis de la hegemonía estadounidense, acosada por una enorme resistencia popular tanto interna como externa.

En los países periféricos la situa-ción no fue mejor, las burguesías na-cionales debieron disminuir la partici-pación lograda por la clase obrera en la renta nacional y cerrar el ascenso so-cial de los sectores medios, lo que con-dujo a amplios sectores a cuestionar el orden establecido.4

Este cuestionamiento se mani-festó en enfrentamientos que abrieron un ciclo ascendente de lucha de clases, cuyas características fueron interna-cionales.5 Este movimiento, con sus singularidades, alcanzó a la mayoría de los países industrializados, en algu-nos casos antes y en otros después del Mayo Francés. Por ejemplo: en 1964-1965 el movimiento de protesta contra la guerra de Vietnam en la Universidad de Berkley; en 1966, los disturbios pro-vos en Ámsterdam; los casos de Berlín, Atenas y Milán, previos al estallido francés. Y, entre los posteriores: Río de Janeiro, Tokio, México y Madrid. El Cono Sur sería uno de los epicentros del proceso abierto con estas moviliza-ciones: junto al Cordobazo en 1969, las

masas bolivianas protagonizaron un ciclo de movilizaciones que tuvo como hito la constitución de la Asamblea Po-pular; en 1970 la Unidad Popular llegó al gobierno chileno con Salvador Allen-de como presidente; Uruguay vivió en 1968 el ascenso del movimiento obrero y estudiantil.

La mayoría de quienes han escri-to sobre estas rebeliones, en particular las que ocurrieron en los países desar-rollados, las han caracterizado como movimientos de jóvenes que rechaza-ban frontalmente una sociedad consu-mista, que era percibida como hipócri-ta y conformista. Quizás en muchos de los casos este haya sido el detonante, o el emergente más palpable a través de ciertas consignas o pintadas que los estudiantes sostenían. Pero en muchos casos los jóvenes universitarios no es-tuvieron solos, los obreros los apoyaron dando a estas acciones carácter polí-tico. El ciclo que abrió el ‘68 permitió que surgieran fuertes tendencias a la acción directa de las masas y a la de-mocracia obrera, en una escala impor-tante. En la mayoría de los países don-de tuvo intervención el proletariado se manifestaron formas embrionarias de doble poder en las fábricas y a ni-vel territorial, iniciándose una disputa por la dirección.6 Argentina fue uno de tales frentes.

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La decadencia del capitalismo argentino: el Cordobazo

El Cordobazo se desarrolló en mo-mentos en que el capital extranjero y la dictadura militar en el poder se alia-ban para liquidar las conquistas que los trabajadores habían conseguido. Para comprender esta situación es ne-cesaria una breve reseña histórica.

La alianza de las fuerzas armadas argentinas con las clases propietarias –fundamentalmente las vinculadas con el capital terrateniente y financie-ro – fue persistente desde la constitu-ción misma de la Nación, a finales del S. XIX. La aparición en la escena polí-tica, durante el S. XX, de dos partidos cuya base eran amplios sectores de la sociedad, hasta ese momento margina-dos – la Unión Cívica Radical primero y el peronismo después – tuvo un do-ble impacto: por un lado, implicó el fin de la hegemonía de esa alianza en el poder; y, por otro, instaló a tales par-tidos, en el imaginario colectivo, como fundadores de la democracia política y la ampliación de la ciudadanía social, respectivamente. Fue así que los gru-pos dominantes, incapaces de procesar en el terreno de la democracia la de-fensa de sus intereses, optaron por la alternativa de los golpes de Estado.7

En 1955 las Fuerzas Armadas derrocaron al presidente Juan Domin-go Perón, mediante un golpe de Estado

conocido como “Revolución Libertado-ra”. Este régimen se basaba en la pros-cripción del peronismo, en la represión sistemática del conflicto obrero y en el avasallamiento de las conquistas que los trabajadores habían consegui-do durante el gobierno de Perón. La alianza con los Estados Unidos se hizo más estrecha y la llegada de capitales extranjeros fue uno de sus objetivos centrales.

Los gobiernos, democráticos o mi-litares, que se sucedieron entre 1955 y 1973, se mantuvieron, con matices, dentro de esa tónica hasta que el pe-ronismo volvió al poder en elecciones libres y sin proscripciones.

Durante ese periodo, el 29 de junio de 1966, tuvo lugar otro golpe de esta-do: encabezado por Juan Carlos Onga-nía y denominado por sus perpetrado-res como “Revolución Argentina”.

Onganía tenía un programa de acción con tres tiempos prolongados para lograr, progresivamente, un re-ordenamiento de la sociedad: un tiem-po económico, donde se reavivaría el crecimiento y se dominaría la infla-ción, un tiempo social donde se redis-tribuirían los frutos del crecimiento y un tiempo político.8 Como se observa, esta progresión permitiría dejar una sociedad “organizada”, para que, como ultimo peldaño en su ordenamiento, se retornara a una democracia “verda-dera”, tutelada por los militares. Este

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proyecto se realizaría con la alianza del nacionalismo católico y el liberalis-mo económico.

Esta nueva asonada militar des-pertó muchas ilusiones en el movi-miento obrero. Contó inicialmente con la pasividad de Perón – quien llamó a “desensillar hasta que aclare” – y con el sostén de la burocracia sindical de la época. La plana mayor de la Confedera-ción General del Trabajo (CGT) – Van-dor, Taccone, Coria, Alonso – asistió a la asunción del mando, convalidando la dictadura.9

Tales expectativas del movimien-to obrero, se basaron en la composi ción nacionalista de una de las facciones militares. Pero, ese “supuesto nacio-nalismo miliar se diluyó rápidamente y se ofreció como brazo armado de las facciones burguesas más directamente ligadas al imperialismo”.10

Haciendo alarde de su poder para acallar a posibles opositores, tomó una serie de medias que golpearon directa-mente en el sector obrero y en el es-tudiantil. Más allá de prohibir a los partidos políticos y a toda actividad política, como era de esperar en un go-bierno de facto, intervino – en julio de 1966 – las universidades nacionales en lo que se conoció como “la noche de los bastones largos”, expulsando a es-tudiantes y profesores y removiendo a decenas de docentes e investigadores. La consecuencia lógica fue que muchos

prefirieran continuar con su carrera académica en el extranjero: se concretó una “fuga de cerebros”. El movimien-to estudiantil se resistió tenazmente con una serie de manifestaciones y lu-chas callejeras. En uno de los choques entre estudiantes y policía, fue asesi-nado el obrero y estudiante Santiago Pampillon. Esto sucedió en Córdoba en septiembre. “Su doble condición de ser obrero de Smata [Sindicato de Mecáni-cos y Afines del Trasporte Automotor] y estudiante liga la lucha del movimien-to estudiantil con el movimiento obre-ro, que paraliza una hora sus tareas en repudio a la represión que soportan los estudiantes cordobeses”.11

La ruptura con el movimiento obrero comenzó recién en 1967, cuan-do el gobierno de la dictadura decidió cerrar una serie de ingenios azucare-ros en Tucumán y, en la resistencia que ofrecieron los obreros, fue asesina-da Hilda Guerrero de Molina. En 1968 estallaron una serie de huelgas que culminaron con una huelga general, convocada por la CGT, que fue sofoca-da por la dictadura. Quedó entonces en evidencia que el régimen de Onga-nía era un régimen de línea dura, dis-puesto a recurrir a la fuerza para re-primir a todos los que se le opusieran. La conducción del movimiento obrero, que seguía apoyando a la dictadura, fue cuestionada por un amplio sector de los trabajadores, quienes finalmen-

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te llevan a la fractura de la confede-ración. La CGT queda dividida en dos: la de Azopardo, dirigida por Augusto Vandor y considerada “participacio-nista”; y la de los Argentinos, liderada por Raimundo Ongaro. En esta última se nuclearon los gremios de izquierda e independientes, su representante en Córdoba fue Agustín Tosco.

Esta fractura dentro del movi-miento obrero sucedió cuando se estaba llevando adelante “el tiempo económi-co”. El plan económico estuvo precedido de una fuerte devaluación de la mone-da (del orden del 40%) intentó frenar el déficit estatal aumentando las tarifas de las corporaciones publicas; se reno-vó el compromiso con las inversiones extranjeras; y se concretó un control estricto sobre los salarios. Se tomaron medidas que proponían “aumentar las exportaciones a la par que protegía el consumo interno, para generar creci-miento pero evitando una subcorriente acumuladora de inflación”.12 Este plan, y sus efectos, fueron aclamados en Wa-shington13 debido a que sellaban, en el plano político, la alianza entre el sec-tor nacionalista católico de las Fuerzas Armadas y el liberalismo económico. Además, promovía la convergencia del capital extranjero, los grandes grupos económicos nacionales y un sector de la burguesía terrateniente.

La bonanza de ese plan se disipó en poco tiempo. El objetivo principal

de los grupos de poder era crear las condiciones necesarias para atraer nuevas inversiones y proteger a sus socios internos, así, se pretendió des-nacionalizar la industria estimulando la compra de la capacidad ya instalada por firmas extranjeras y se aumentó la deuda externa para subsidiar a las pa-tronales. Todo ello operó abiertamente a favor de los grupos concentrados del capital, nacional y extranjero, y en de-trimento de las conquistas que la clase trabajadora había logrado.

Para principios de 1969, Onganía respaldó al ministro de Economía fren-te a los reclamos salariales del sector participacionista. El descontento creció frente a la política proimperialista del régimen, que permitía la penetración de los monopolios. Como éstos requerí-an abaratamiento de la mano de obra para instalarse, el gobierno implemen-tó las quitas zonales: reducción del sa-lario de los obreros metalúrgicos que se encontrasen fuera de Capital Fede-ral y Buenos Aires. Se levantó una ola de protestas.

El endurecimiento del régimen llevó a un aumento de las protestas, obreras como estudiantiles, durante 1969. A principios de mayo, se sumó a las protestas de los trabajadores me-talúrgicos, por las quitas zonales, la reacción de todo el movimiento obrero cordobés por la sanción de una ley que unificaba la jornada legal de trabajo a

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48 horas semanales. Con esto se supri-mía el sábado inglés, que en Córdoba implicaba trabajar 44 horas semanales cobrando 48 horas. Las dos CGTs con-vocaron, luego de varias asambleas con represión policial incluida, a la reali-zación de un paro general para los días 15 y 16 de mayo.14 El grado de acata-miento fue superior al 94% y contó con el apoyo del movimiento estudiantil, a través de sus organizaciones.15

Este último grupo habría de ser duramente castigado por esos días. El 15 de mayo una protesta estudiantil en Corrientes – por la privatización del comedor universitario – fue reprimida y su saldo fue el asesinato del estudian-te de medicina Juan José Cabral. Los días siguientes, el estudiantado argen-tino se lanzó a las calles en solidaridad con los estudiantes correntinos. Hubo protestas en Resistencia, La Plata, Tu-cumán, Salta, Córdoba, Buenos Aires, Mendoza y Rosario. En esta última, la represión terminó con las vidas de los estudiantes Blanco y Bello. La Fede-ración Universitaria Argentina llamó a un paro nacional universitario para los días 21 y 29 de mayo. Adhirieron también los profesores y los egresados. La represión se hizo sentir y en varias universidades, por orden de sus recto-res, se cerraron las puertas; en algu-nos casos por tiempo indeterminado. En Rosario, la CGT de los Argentinos convocó a la formación de un comité

obrero-estudiantil para adoptar reso-luciones conjuntas.16

La escalada de represión fue su-biendo de tono, y la resistencia fue cada vez mayor. La Federación Uni-versitaria de Córdoba (FUC) lanzó un plan de Lucha y Protesta durante la semana del 26 al 29 de mayo, que fue acompañado por los estudiantes secundarios. La dictadura, en su in-tento por poner fin a esta situación, envió refuerzos policiales a Córdoba para reprimir las protestas y detuvo, por algunas horas, a líderes obreros, como Tosco y Ongaro; además, se de-claró a Rosario zona de emergencia bajo control militar. Por otro lado, se decidió iniciar negociaciones con algu-nos gremios pertenecientes a la CGT participacionista, para terminar con el estado de asamblea en que se encon-traban las fábricas.17 Esto no impidió que la rebelión creciera.

El 24 de mayo la Federación Uni-versitaria Argentina convocó a un paro general por 24 horas para el día 29. Las dos centrales obreras acordaron la necesidad de realizar un paro general, pero la fecha elegida fue el 30. En Cór-doba, desde el inicio de la represión es-tudiantil se venía planteando en todas las asambleas obreras el apoyo a este grupo, es por ello que, con el acuerdo de las dos CGTs y a moción de Agustín Tosco, el plenario de gremios resolvió adelantar el paro en la provincia para

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el día 29, con abandono de tareas a las diez de la mañana y concentración frente a la CGT.18

Cronología de dos rebeliones

La cronología del Cordobazo y la del Mayo Francés presentan similitu-des, si las analizamos con relación a sus protagonistas, a las alianzas que lograron y a las prácticas que se em-plearon.

En el mayo cordobés podemos dis-tinguir tres momentos consecutivos:19 el primero comenzó en la mañana del 29 de mayo, con el avance de varias columnas de manifestantes hacia el centro de la ciudad. El perfil de ese momento fue netamente obrero, orga-nizado y dirigido; aunque también se movilizaron los centros de estudiantes y, a medida que avanzaban las colum-nas, se sumaron vecinos. El perfil se volvió cada vez más heterogéneo, dán-dole un carácter de protesta popular. Se inició así el segundo momento, so-bre el mediodía, singularizado por las primeras escaramuzas con la policía y por un gran apoyo de la sociedad – los vecinos abrieron sus puertas para dar refugio a los manifestantes acor-ralados, tiraron objetos contundentes a la policía desde balcones y azoteas, etcétera. Luego de la muerte del obre-ro Máximo Mena se precipitaron los combates callejeros, que serían el pró-

logo de la retirada de la policía y del despliegue, ya sin orden alguno, de la protesta. El centro de la ciudad se convirtió en zona ocupada por los ma-nifestantes, con destrucción e incendio ritual de las instalaciones de grandes empresas y aparición de francotirado-res. El tercer momento se abrió hacia las cinco de la tarde con la entrada del ejército. Las tropas convergiendo sobre el Barrio Clínicas, donde se replegaba la resistencia y allí prosiguieron los enfrentamientos, con disparos desde ambos lados, hasta la mañana del 30. La composición social había variado, el perfil era ya netamente estudiantil. No obstante algunos incidentes aislados, la ciudad entraba en su ritmo habitual. Sin embargo, el régimen había queda-do en evidencia: no pudo garantizar el cumplimiento de su segundo objetivo, el control del movimiento obrero y de la oposición social. Onganía abandonó el poder en 1970.

Con relación al Mayo Francés, po-demos distinguir también tres momen-tos, aunque de más largo alcance:20 la fase estudiantil del 2 al 13 de mayo; la fase social entre el 13 y el 27 de mayo y la fase política del 27 de mayo al 23 de junio. La primera etapa surgió en una universidad de las afueras de Pa-ris donde un movimiento de activistas dio lugar a una insurrección simbólica en el Barrio Latino, integrando a todos los estudiantes; el gobierno se replegó

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y este movimiento se extendió a las provincias y a los obreros. Se abrió así la fase social: generalización de una huelga general espontánea de grandes proporciones, que culminaría con el rechazo, por parte de los huelguistas, del acuerdo negociado por los líderes sindicales y las patronales. Esta fase acabó en el surgimiento de nuevos lí-deres revolucionarios que cuestiona-ban al gobierno, motivo por el cual este último debió reaccionar. Se abrió así la tercera fase, política, que más tarde precipitaría la caída de De Gaulle en 1969.

Conclusión

Las rebeliones estudiantiles de fi-nales de los ‘60 fueron el emergente de una sociedad en crisis, de un sistema capitalista que comenzaba a mostrar su ineficiencia y que desenmascaraba la visión según la cual el capitalismo favorecía el desarrollo y el bienestar de la población. Estas rebeliones mostra-ron, además, nuevas formas de protes-tar y nuevas alianzas. El cansancio de la clase trabajadora y de los jóvenes, ante la falta de respuesta a sus nece-sidades insatisfechas, llevó a que se unieran en la lucha y a que ésta se ra-dicalizara más. No sólo luchaban por cuestiones específicas de cada sector, pedían más: pedían cambios políticos, pedían nuevos interlocutores.

En cuanto a las prácticas de visi-bilización, eligieron acciones que, de-sarrolladas dentro del espacio público, como la calle, les dieran una llegada más directa a amplios sectores de la sociedad. Sociedad que supo captar sus reclamos – que se materializaban de diversas maneras: en Paris a través de pintadas en las paredes, en Córdo-ba a través de ingeniosas formas de re-sistencia policial – y que los acompañó y participó de ellos.

Aunque los reclamos de Paris y de Córdoba tuvieron una distancia en el tiempo y en la coyuntura que los de-sencadenó; forman parte de un mismo proceso. Un proceso que abrió las puer-tas a los reclamos y las luchas sectoria-les. Proceso en el que los movimientos juveniles se transformaron en movi-mientos sociales, en donde ser realis-ta era pedir lo imposible. Proceso que fue brutal y cruelmente acallado. El movimiento social de Paris fue recon-vertido por el sistema neoliberal y el individualismo de los años ‘80 cuando el movimiento obrero y el estudiantil debieron retroceder en las conquistas logradas hasta entonces. A su vez, el cordobés fue deshecho con violencia por la siguiente dictadura militar, que mató, secuestró y torturó a los dirigen-tes estudiantiles y obreros.

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Abstract

From youthful outcries to social movements: from French May to

Cordobaza

The aim of the present article is to try to explain in detail the world eco-nomic situation in the end of the 60’s emphasizing specially the crisis of the international capitalist system and how Argentina took up a stance in this situation. In the second chapter the national social situation will be described analysing the importance of the configuration of the unique ways of revolutionary actions whose impact brought to the fall of military govern-ment of that time. At last, an analitical classification of the facts that happen from may 1968 to 1969 in France and Cordoba respectively will be done in order to show the characteristics that were in common.

Key words: Cordobazo. Argentinian may. Student and work rebellion.

Notas1 AMIN, Samir. El capitalismo en la era de la Glo-

balización. Barcelona: Paidos, 1999.2 Ibidem, p. 65.3 Ibidem, p. 30-31.4 WERNWE, Ruth; AGUIRRE, Facundo. Insur-

gencia obrera en Argentina 1969-1976. Clasis-mo, coordinadoras interfabriles y estrategias de la izquierda. Argentina: Ediciones IPS, 2007. p. 44.

5 Ibidem, p. 46.6 Ibidem, p. 47.7 En Argentina el ciclo de golpes de Estado se

inicio en 1930, le siguieron los golpes de 1943, 1955, 1966 y 1976.

8 ROCK, David. Argentina 1516-1987. Desde la colonización española hasta Raúl Alfonsín. Bue-nos Aires: Alianza Editorial, 1989. p. 429.

9 FLORES, Gregorio. SITRAC-SITRAM. Del Cor-dobazo al Clasismo. Buenos Aires: Ediciones Magenta W, 1994. p. 33.

10 WERNWE, Ruth; AGUIRRE, Facundo. Op. cit., 2007, p. 51.

11 FLORES, Gregorio. Op. cit., 1994, p. 33.12 ROCK, David. Op. cit., 1989. p. 430. 13 Ibidem, p. 431.14 La CGT de los argentinos convocó solamente a

un paro por 24 horas del día 16 de mayo. 15 DELICH, Francisco. Crisis y protesta social.

Córdoba 1969. Centro de Estudios Avanzados, Universidad Nacional de Córdoba, Córdoba, 1994, p. 44-50.

16 Ibidem, p. 50-56.17 Ibidem, p. 56-62.18 FLORES, Gregorio. Op. cit., 1994. p. 33.19 TORRE, Juan Carlos. A partir del Cordobazo.

Estudios, n. 4, julio, 1994. p. 15-16.20 SANCHEZ PRIETO, Juan María. La historia

imposible del Mayo Francés. Revista de Estu-dios Políticos, n. 112, abril/junio, 2001. p. 110-116. Disponible en: http://www.cepc.es/rap/Pu-blicaciones

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Itália - 1968: movimento estudantil e confl ito social

Achille Lollo∗

Resumo

O artigo aborda o desenvolvimento das lutas estudantis desde 1967, no con-texto do controle da Itália pelo grande capital e pelo imperialismo, segundo os acordos de Yalta, sancionados pela direção do Partido Comunista Italiano. Aborda as raízes teóricas e sociais do surgimento de nova esquerda, revo-lucionária e antiparlamentarista, nos anos 1967-69, e a estratégia de terror e o golpismo implementados pelo Estado e pelo imperialismo no combate desse processo.

Palavras-chave: Itália. 1968. Revolu-ção italiana.

Na primeira semana de janeiro de 1968, sem nenhuma ligação com o movimento estudantil francês, come-çaram em Roma e Milão os protestos contra a reforma do ensino promovida pelo governo de centro-esquerda, diri-gido pelo democrata-cristão Aldo Moro. Lideraram as manifestações os “coleti-vos estudantis” das escolas de segun-do grau Castelnuovo e Mamiani, de Roma, e Parini, de Milão, que, ao invés de dialogar com os representantes do Ministério da Educação, promoveram as primeiras ocupações das escolas e realizaram “as assembleias perma-nentes abertas ao território”, que não

* Jornalista e ensaísta especializado em política internacional, nasceu em Roma, em 1951, mili-tando quando estudante no grupo Potere Ope-raio. Vive há muitos anos no Rio de Janeiro, onde foi editor das revistas Nação Brasil, Conjuntura Internacional e Crítica Social. Colabora atual-mente com o jornal Brasil de Fato e é diretor da produtora de vídeo TV Adia e do site www.portal-popular.org.br

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se limitavam a criticar a essência eli-tista do ensino superior na sociedade capitalista italiana. Ao reivindicar um espaço aberto no território, os estudan-tes secundaristas e os universitários da Universidade La Sapienza, de Roma, e La Statale, de Milão, colocaram na ordem do dia o debate sobre o sistema capitalista italiano e sua dependência internacional.

Quadros da esquerda sindical, li-deranças dos bairros proletários, pro-fessores, intelectuais e operários desi-ludidos com o reformismo dos partidos da esquerda parlamentar (PCI, PSIUP, PSU) começaram a participar nestas primeiras “assembleias permanentes”, nas escolas e faculdades ocupadas. Por outro lado, a repressão policial e as represálias dos diretores contra os es-tudantes que militavam nos coletivos aceleraram o nascimento de um movi-mento de ruptura, promovido pelos es-tudantes, e da consciência de ser parte integrante do conflito social italiano.

Para evitar a explosão do conflito social, sobretudo nas grandes metró-poles (Roma, Milão, Turim, Gênova, Florença e Nápoles), e para tentar con-trolar a insubordinação operária nos perímetros industriais do norte, o go-verno democrata-cristão, presidido por Aldo Moro desde 1964, fez de tudo para salvar o “programa reformista” do as-sim chamado “centro-esquerda”, que, na realidade, nada mais foi que um

“arranjo político”, tipicamente italia-no, articulado pelo setor da Democra-cia Cristã ligado a Aldo Moro e os so-cialistas e social-democratas reunidos no PSU (Partido Socialista Unificado).

Durante todo o mês de fevereiro de 1968, a universidade pública de Roma La Sapienza (nas faculdades de Magistério, Ciências Políticas, Le-tras, Engenharia e Química) voltou a ser ocupada pelos estudantes, que, desta vez, tiveram de enfrentar a rea-ção orquestrada ad hoc pelos bandos neofascistas do MSI, chefiados pelos deputados Caradonna e Almirante (ex-membros do governo fascista de Mussolini), dos neonazistas de Ordine Nuovo, liderados por Pino Rauti (sogro do atual prefeito de Roma, Gianni Ale-manno), e de Avanguardia Nazionale, cujo chefe era Stefano delle Chiaie, notoriamente ligado aos homens do serviço secreto italiano (SID). Como sempre, os neofascistas contavam com a proteção da polícia e dos carabinei-ros (uma espécie de Polícia Militar italiana), que se aproveitaram para deso cupar com particular violência as faculdades romanas.

Na última semana de fevereiro, o movimento dos estudantes universitá-rios e secundaristas de Roma decidiu dar uma resposta ao governo ocupando e “defendendo” a Faculdade de Arqui-tetura, localizada no sofisticado bairro de Valle Giulia. Essa foi a primeira

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“ocupação aberta”, que apontava o “di-reito de organizar a defesa da assem-bléia”. Naqueles dias, foi igualmente publicado um manifesto que conclama-va à contestação nacional da política do regime de opressão monopolizado pela Democracia Cristã e seus aliados, di-tos “progressistas” (Partido Republica-no, social-democratas do PSDI e socia-listas do antigo PSI de Pietro Nenni). Foi nessa ocasião que Oreste Scalzo-ne, líder da Faculdade de Magistério, propôs debater nas salas da faculdade ocupada a essência dos mecanismos de exploração do regime capitalista, con-vidando para participar do debate os operários da FATME e da Siemens (fá-bricas de produtos de alta tecnologia, localizadas nos subúrbios romanos), que naqueles dias – contrariando os sindicatos – haviam ocupado a fábrica e criado um “Comitê de base para or-ganizar a luta dos operários”.

A resposta do governo veio nos primeiros dias de março, com a mobi-lização de todas as unidades da polícia de choque “Célere” e os destacamentos de carabineiros do Batalhão Padova. Quanto à mídia italiana, mobilizou-se para celebrar a “vitória do Estado democrático contra os estudantes ba-derneiros”. Praticamente, para o go-verno (e também para alguns setores da esquerda parlamentar), a retoma-da da Faculdade de Arquitetura tinha um significado politicamente pedagó-

gico. No entanto, a forte violência po-licial programada para desocupar a faculdade em poucas horas chocou-se com a resistência dos estudantes du-rante quase uma semana. Valle Giu-lia tornou-se o símbolo da resistência estudantil italiana e as imagens dos brutais espancamentos de estudantes veiculadas pela mídia foram o estopim de um movimento de revolta que esta-va amadurecendo – um movimento de revolta cuja explosão era temida pelo Comando Sul da Otan, pelos homens do governo democrata-cristão e pela maioria do Comitê Central do PCI.

A tradição de rebeldia popular e os temores estratégicos da Otan

A maioria dos dirigentes nacio-nais da Democracia Cristã Italiana(DCI) era formada por políticos conser-vadores, “amigos” das famílias mafio-sas, empresários oportunistas que pu-blicamente queriam ser considerados de direita, mas dispostos a fazer alian-ças também no centro-esquerda para sustentar seus governos. Contudo, a maioria da DCI era profundamente anticomunista e ligada ao pensamen-to estratégico da CIA e do Comando Sul da Otan, cujos responsáveis nunca acreditaram que, em caso de violen-ta rebelião popular, os dirigentes do Partido Comunista Italiano (PCI) e

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os socialistas do PSI respeitariam os acordos de Yalta, com base nos quais aItália e a Grécia deveriam permanecer na esfera de influência do Ocidente eter governos “democráticos que respei-tassem a propriedade privada e a reli-gião católica”.

Era entre os generais do Coman-do Sul da Otan (localizado em Nápoles)que os temores eram maiores, em ra-zão da histórica resistência armada ao nazi-fascismo organizada pelo PCI e o PSI e, sobretudo, pela capacidade de mobilização popular por parte dos sindicatos que haviam conseguido ampliar o conflito social desde o fim da década de 1950, apesar do cresci-mento econômico. Para os analistas da Otan, a generalização do conflito social poderia provocar o surgimento de um fenômeno insurrecional pareci-do com o da Grécia, onde os dirigentes do Partido Comunista, em 1948, ha-viam desobedecido às ordens de Stalin e “libertado” o país dos monarquis-tas. Diante da imobilidade da URSS, em resposta, a Inglaterra e os aliadosinvadiram a Grécia, expulsando os insurrectos comunistas gregos, que foram para a Albânia e para a Iugos-lávia

Em Washinghton, os que não confiavam nas bases do PCI, do PSI e nos setores chamados “católicos de esquerda” lembravam que, quando um ex-fascista atentara contra a vida

do líder do PCI Palmiro Togliatti, em 1948, houvera uma autêntica rebelião popular, que em 48 horas desarticula-ra todas as estruturas de repressão do nascente Estado liberal-burguês e que não se transformara em aberta insur-reição comunista com a tomada do po-der apenas porque as direções do PCI e do PSI haviam permanecido imóveis, respeitando as ordens do Kremlino. Foi Scoccimarro, líder do núcleo stali-nista no Bureau Político do PCI, que, da varanda do Hospital San Camillo, em Roma, pedira aos insurrectos de toda Itália “voltarem para casa, por-que o camarada Palmiro Togliatti não havia sido atingido mortalmente”.

O medo da “onda vermelha” voltou em 1956, após a invasão da Hungria porparte da URSS e em razão das contí-nuas brigas de fronteira com a Iugos-lávia. Em função disso, em 28 de no-vembro, o governo democrata-cristão autorizou o acordo entre o Serviço de Informação das Forças Armadas (Si-far) e a CIA para criar o “Gládio”, es-trutura político-militar permanente e clandestina, preparada para iniciar a guerrilha, caso o governo caísse nas mãos dos comunistas.

A seguir, em 1959, o general De Lorenzo, chefe do Sifar, começou a amadurecer a ideia de preparar os serviços secretos e as Forças Armadas para reagirem com um golpe de esta-do caso os comunistas e os socialistas

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conseguissem formar um governo ma-joritário. Para isso, os homens do Sifar montaram um esquema para fichar e espionar as lideranças políticas e sin-dicais da esquerda. Em 1960, a ideia do golpe de estado começou a ganhar a simpatia de algumas lideranças da direita da Democracia Cristã, entre elas Antonio Segni, que em 7 de abril convenceu a direção da DCI a aceitar os votos dos parlamentares do partido neofascista MSI para a o novo governo democrata-cristão de Fernando Tam-broni.

O governo democrata-cristão teve de se demitir após três meses de sua posse, em razão das inúmeras manifes-tações – violentamente reprimidas pela polícia do ministro do Interior Scelba –, que, em 1º de julho, transformaram-se em autêntica rebelião popular desde o norte da península até o interior da Sicília. Naquele dia, os neofascistas do MSI, protegidos pela polícia e pelos carabineiros, tentaram realizar seu showmício na principal praça de Gê-nova, onde, em 1944, os nazi-fascistas haviam fuzilado dezenas de partigiani. A provocação dos neo fascistas do MSI e a violência policial foram os motivos que determinaram aquela rebelião popular e espontânea contra o gover-no Tambroni. Cidades inteiras, como Genôva, Turim, Roma, Milão, Régio-Emília, Florença, Bolonha, Nápoles e províncias no interior da Sicília, da

Puglia, da Toscana, da Úmbria e da Romagna realizaram revolta popular que não virou motim insurrecional no-vamente graças à intervenção dos nú-cleos dirigentes do PCI e do PSI, que negociaram com a DC o fim da revolta em troca da demissão do governo Tam-broni.

Em 6 de maio de 1962, para ele-ger Antonio Segni presidente da Re-pública, a Democracia Cristã recorreu novamente aos votos dos neofascistas do MSI. Em junho, o general De Loren-zo, chefe do Sifar, assinou com a CIA um acordo sobre “ações de emergência sem autorização preventiva do gover-no”. A experiência da última rebelião popular, que ficou conhecida como “Julho 60”, reforçara em De Lorenzo e nos generais do Estado Maior a ideia do Sifar de organizar o golpe de esta-do. Em 1963, durante uma manifes-tação de trabalhadores da construção organizada pela central CGIL (social-comunista), foi denunciada a ação dos “grupos de ataques” criados pelo coro-nel Renzo Rocca do Sifar. No intuito de evitar a explosão das forças populares, a Democracia Cristã encarregou Aldo Moro (líder da corrente minoritária progressista) de compor um governo de “centro-esquerda”, com a participação dos social-democratas e dos socialis-tas, na condição de que Pietro Nenni e a direção do PSI aceitassem renunciar publicamente aos ideais leninistas e

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abandonar a Frente Popular, construí-da com o PCI e o PSIUP.

Em 1964, o general Edoardo For-misano, do Serviço Informações Ope-rativas e Situação (Sios), advertiu o Sifar de que havia vazado a informa-ção de que alguns industriais estariam financiando a “oposição ao governo de centro-esquerda”, depositando cotas para o coronel do Renzo Rocca, que “se suicidaria” em 1968. Em 6 de junho de 1965, Randolfo Pacciardi apontava para um golpe branco ao pedir que o presidente Segni fechasse o Parlamen-to e formasse “um governo de saúde pública”. Três meses mais tarde, em se-tembro, o Sifar publicaria o livro Guer-ra não ortodoxa e, em maio de 1965, o Estado Maior do Exercito organizava, em Roma, no Hotel Parco de Principi, o seminário “Guerra revolucionária não ortodoxa”, do qual, além de represen-tantes da extrema-direita (Pino Rauti e Stefano delle Chiaie), participaram oficiais da Otan e da CIA, que relata-ram a experiência “preventiva” do gol-pe brasileiro de 1964.

Em 1965, após o golpe de estado na Indonésia e o massacre de quase trezentos mil populares comunistas, os neofascistas do MSI, liderados pelo parlamentar Giulio Caradonna, ocupa-ram a Universidade La Sapienza com o grito “Indonésia Italiana Já”. A po-lícia teve de intervir duramente para evitar o linchamento dos neofascistas,

quando a universidade foi cercada por estudantes e, sobretudo, pelos morado-res dos bairros romanos de Tiburtino e Prenestino, notoriamente de esquerda. Em 16 de novembro, a revista Expres-so recebeu um dossiê anônimo que re-velava algumas operações do Sifar na preparação do golpe de estado (espio-nagem e fichamento de dirigentes co-munistas e socialistas, de intelectuais e sindicalistas; preparação de campos de detenção, etc.). Consequentemente, o governo de centro-esquerda foi obri-gado a dissolver o Sifar e, no seu lugar, criar o Serviço Informações da Defesa (SID). Na realidade, o primeiro-minis-tro Aldo Moro fez isso somente para acalmar os manifestantes, pois os ho-mens e as estruturas golpistas do Sifar passaram a integrar o SID. O general De Lorenzo que deveria ser inquirido pela Justiça, foi logo eleito deputado nas fileiras do partido monarquista e, desse modo, o “progressista” Aldo Moro conseguiu fechar uma página tétrica da história italiana que continuaria reproduzindo seus mistérios golpistas por mais 15 anos.

Em 1966, a CIA preparou o “Pla-no Caos”, pelo qual pretendia se infil-trar em todas os partidos e as organi-zações de extrema esquerda europeias. Na Itália, o SID foi a principal ante-na do plano da CIA. Em 21 de abril de 1967, a CIA e a Otan autorizaram os coronéis Zoitakis e Papadopulos a

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rea lizar um golpe de estado na Grécia para impedir que o Partido Socialista (PASOK), de Andrea Papandreu, for-masse um governo de centro-esquer-da. Para os estrategistas da Otan, o golpe na Grécia e as dificuldades manifestadas pelos regimes franquis-ta na Espanha e salarazista em Por-tugal, aumentavam a importância estratégica da Itália, que logo seria considerada a “peça-chave na geoestra-tégia do Ocidente no Mediterrâneo”.

Por outro lado, a explosão do con-flito em Israel, a firme posição anti-Otan e anti-EUA de Iugoslávia e da Albânia, a penetração da URSS no mar Mediterrâneo para apoiar os líde-res do nacional-socialismo árabe (Nas-ser no Egito, Boumedien na Argélia) e a Revolução Verde de Gheddafi na Líbia induziram os serviços secretos italianos, a direita, grande parte da Democracia Cristã, setores empresa-riais e até represententas do Vaticano a aceitar a ideia da extrema direita da necessidade de esboçar propostas“para saber como manter na Itália um Estado, católico e capitalista, diante do possível ataque da onda vermelha que desde 1960 estimulava o conflito social para ter condições de atacar o Estado e as Forças Armadas”, um conceito ela-borado pelo neonazista Pino Rauti, de Ordine Nuovo, e pelo agente do SID, Guido Giannettini, que, em 1966, pu-blicara o livro As mãos vermelhas so-bre as Forças Armadas.

Esse contexto geral era de conhe-cimento da esquerda italiana. Quando em janeiro de 1968 começaram as pri-meiras manifestações dos estudantes em Roma e Milão, foi logo denunciado o conúbio entre uma parte do Estado e os neofascistas. Mesmo tendo infor-mações privilegiadas sobre os projetos de golpe, o Bureau Político do PCI, as direções do PSI e do PSIUP e da cen-tral CGIL insistiam com suas bases em “não responder às provocações dos neofascistas”.

Essa posição se chocava com a dos estudantes e dos setores mais popu-lares e combativos da esquerda, como os sindicatos dos ferroviários, da cons-trução, dos trabalhadores rurais, dos correios, das federações de metalúrgi-cos, petroquímicos, etc. Mais especifi-camente, os coletivos de estudantes universitários e secundaristas viam na mobilização antifascista a única forma de impedir a realização do golpe e, em 16 de março, os coletivos dos estu-dantes da Universidade La Sapienza, de Roma, realizaram uma ação inédi-ta, declarando o fim dos Parlamentos Acadêmicos e expulsando do movimen-to estudantil todos os grupos ou asso-ciações ligados à direita. Em algumas faculdades e escolas de segundo grau, os estudantes foram mais radicais e impediram a entrada física nos estabe-lecimentos dos conhecidos Picchiatori Fascisti (estudantes membros dos gru-pos paramilitares neofascistas).

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Em quase todas as grandes cida-des italianas, o enfrentamento entre estudantes e as forças repressivas do Estado iniciara desde janeiro de 1968, praticamente cinco meses antes que os estudantes franceses ocupassem as faculdades da Sorbonne, em Paris, em maio de 1968. Quando, em junho daquele ano, Le Mouvement francês recuou em função dos acordos espúrios negociados entre o governo De Gaulle e os partidos e centrais sindicais de es-querda (PCF, OS e CGT), na Itália a onda de ocupações e de manifestações estudantis ampliou-se, apesar dos vio-lentos choques com a polícia.

O jornal Corriere della Sera, na sua edição de 1º de junho, alertava o governo (e o povo da direita) sobre o fato de os estudantes de Roma have-rem mantido empenhados polícia e ca-rabineiros durante quase 18 horas no bairro de Campo de Fiori com “pera-ções de guerrilha urbana alimentada com o lançamento de centenas de co-quetéis Molotov”.

A verdade é que, no início do ve-rão de 1968, a repressão policial e as centenas de processos judiciais não conseguiram parar as ocupações e as manifestações dos estudantes, que, com mais frequência e capacidade de mobilização, ocupavam os centros das cidades envolvendo nos protestos tam-bém trabalhadores, sobretudo jovens.

Em 8 de junho, os estudantes ocu-param a gráfica do jornal Corriere della

Sera, que normalmente defendia a vio-lência da polícia, e no dia 20 as cidades de Pisa e Trieste pararam em razão da “greve municipal” proclamada contra a violência policial, a política do governo e os ataques dos neofascistas.

Apesar das tentativas pacifica-doras dos dirigentes e intelectuais do PCI do PSI, esse panorama de lutas ampliou potencialmente as vertentes do conflito social, capítulo introdutório do célebre “Outono Quente de 1969”, quando os operários entraram em cena para exigir mudanças concretas.

A resposta do Estado a essa situa-ção foi a “estratégia da tensão”, pla-nejada pelos homens do SID (serviço secreto), que armaram os grupos da ex-trema-direita (Fronte Nacional, Ordine Nuovo e Avanguardia Nazionale) para que criassem um contexto de guerra de baixa intensidade com os objetivos de atacar fisicamente lideranças e mem-bros dos Coletivos de Luta e Comitê de Base; armar atentados terroristas em trens e locais públicos para provocar o terror na sociedade; fazer com que uma parte da mídia responsabilizasse os anarquistas e a esquerda extrapar-lamentar pelos atentados; utilizar o terror para operar uma divisão estra-tégica na esquerda.

Para obter melhores resulta-dos, os articuladores da estratégia da tensão permitiram que Junio Valerio Borghese, ex-líder fascista, em 8 de dezembro de 1969, tentasse um golpe

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de estado, que pouco antes o próprio SID denunciara, apresentando o go-verno democrata-cristão como “salva-dor da pátria”.

O medo do golpe de estado provo-cou efetivamente uma divisão na es-querda, entre os que optavam por uma inserção no sistema liberal-burguês e os que perseguiam a lógica leninista da ruptura revolucionária. O movimento estudantil de 1968 foi o grande celeiro dessa esquerda revolucionária, que, a seguir, seria violentamente combatida pelo Estado e pelo então PCI.

Em setembro de 1974, o ex-pri-meiro ministro Giulio Andreotti, da DC, diante da Comissão Justiça, reve-lou que a extrema-direita apadrinhara três tentativas de golpe, sempre de-nunciados pelo SID poucos dias antes de sua realização. A partir de 1968, as tentativas de golpe de estado preventi-vo foram cinco, todas amplamente do-cumentadas pela imprensa e, por isso, muito mais pedagógicas que um golpe efetivo.

Esse contexto político foi criado artificialmente para reforçar ainda mais o papel central da DC na condu-ção do Estado, manipulando, por isso, a opinião pública com a tese de que a DC era a principal vítima política dos “extremos extremismos”, isto é, dos movimentos e partidos da esquerda extraparlamentar e dos grupos para-militares dos nazi-fascistas.

O movimento estudantil e os intelectuais

Jean Paul Sartre, que vivera in-tensamente o Maio de 68 na França, declarava, um ano após os aconteci-mentos, para a famosa revista estadu-nidense New Left Review:

Eu estou convencido que a guerra no Vietnã foi o que fez desencadear o Maio de 68. De fato, para os estudantes que iniciaram o Movimento de 68, o signifi-cado de criticar a guerra no Vietnã não foi só uma tomada de posição em favor da FNL e do povo vietnamita agredi-do pelo imperialismo estadunidense. O principal efeito que essa guerra produ-ziu nos militantes europeus e estaduni-denses foi de ter ampliado o campo do possível. Antes, parecia impossível que os vietnamitas pudessem resistir à for-midável máquina de guerra dos EUA. Todavia, tudo aquilo que eles fizeram serviu para mudar o ponto de vista de muitos, entre os quais os estudantes franceses. E estes, ao olhar o Vietnã, descobriram que havia possibilidades desconhecidas até então. De fato, não podemos saber se algo é impossível até ter tentado e não ter conseguido. Esta foi uma descoberta importantíssima, rica de potencialidades que para o Oci-dente foi um fator revolucionário [...].

Pier Paolo Pasolini, o grande inte-lectual que, em 1968, estava inscrito no PCI, depois da batalha campal de Valle Giulia, o qual as manchetes de muitosjornais de direita imortalizaram com o apedrejamento de policiais ou com a fuga desordenada de carabineiros

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diante dos primeiros coquetéis Molotov, publicou um poema no jornal do PCI, L´Unità, declamando amor e sentimen-tos em favor do “pobre policial, filho do proletariado do Sul, que veste o unifor-me de policial para defender o Estado democrático, enquanto é agredido por estudantes pequeno-burgueses querejeitavam a escola”.

A seguir, em 15 de junho, na revis-ta L´Espresso, Pasolini publicaria outro polêmico poema, que iniciava com uma frase terrível: “Odeio vocês, caros estu-dantes por serem filhos de papai que atacam os pobres policiais, filhos do povo.” Pasolini, que alguns anos mais tarde pediria desculpas por essas de-clarações, representava o pensamento típico dos intelectuais ligados ao PCI, bem como o posicionamento político da maioria dos dirigentes daquele partido para com o movimento estudantil.

O ódio de Pasolini pelos estudan-tes não se devia a terem apedrejado os “filhos do povo” com uniformes e cassetetes de policiais. Seu ataque público e o de vários teóricos do PCI (como Amendola e o próprio Napoli-tano – hoje presidente da República italiana) se explicam porque a explo-são do movimento estudantil coloca-va no cenário da esquerda italiana um novo sujeito político, que, ao re-jeitar o Estado democrático burguês, recusava a mediação dos partidos da esquerda parlamentar por serem su-

bordinados e inseridos na ordem e no fetiche do partidarismo eleitoraldo Estado capitalista.

O movimento estudantil foi logo criticado pelo PCI como “extremismo infantil e agente da provocação”, na tentativa de tornar pouco credíveis os que, nas “assembleias abertas ao terri-tório”, diziam que o horizonte das lutas estudantis era o comunismo, entendi-do como movimento real, que acaba-ria com a divisão social do trabalho. Para os estudantes, o comunismo não era mais representado pela burocracia partidária da URSS ou do PCI: era o programa de uma mudança política e social, cuja primeira necessidade era a igualdade, entendida como objetivo final e racional da sociedade.

Pretendia-se a igualdade não ape-nas do ponto de vista ideológico, mas também na prática, na vida real, in-clusive porque a igualdade de todos pe-rante a lei era objeto do próprio artigo 3º da Constituição italiana, argumento que nas assembleias estudantis apro-fundou ainda mais o debate, já que questionava os que, na sociedade, defi-niam o conceito de lei e a classe que or-ganizava o Estado, aplicando a lei ape-nas em seu favor. Para os estudantes, a primeira consequência disso era que a lei era um produto de controle social contra o qual deveria explodir a luta de classe para restabelecer o conceito de igualdade.

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Foi nesse contexto que, a partir de abril de 1968, os coletivos de estudantes das Universidades La Statale de Milão e La Sapienza de Roma introduziram nos longos debates das assembleias as novas temáticas teóricas, relacionadas com a miséria da divisão social do tra-balho e a consequente luta pela igual-dade, que, inevitavelmente, rejeitava a transição reformista, optando pela construção da ruptura no território junto às massas desfavorecidas e ex-ploradas pelo chamado neocapitalismo italiano. Iniciava-se o movimento para a descoberta de novos valores, que de-claravam acabadas as desigualdades produzidas pela riqueza e pela origem étnica, social, cultural e sexual.

O movimento e suas lutas não foram apenas instrumento para con-testar o governo da Democracia Cris-tã. Foram, sobretudo, um momento coletivo de construção de uma nova escala de valores, por meio da política coletiva, da realização de assembleias abertas e, sobretudo, do “fazer junto as coisas que parecia justo realizar”.

Foi nesse contexto que o movi-mento começou a reformular a própria figura do estudante universitário, que, em 1968, tal como Pasolini escrevera, ainda era visto como o filho de uma rica burguesia iluminada, mas também eli-tista. A presença e a continuidade nas lutas desse novo sujeito político trans-formaram sua essência social e clas-

sista, com a aceitação de um horizonte igualitário que obrigou os estudantes a se livrarem de suas heranças classis-tas para atingir a condição ideal do co-munista e, portanto, entrar no vivo das lutas sociais existentes no território.

É necessário lembrar que todos os coletivos do Movimento Estudantil, logo após ter realizado sua primeira luta que o identificava politicamente, procuraram os sujeitos políticos do ter-ritório social para integrar as lutas dos estudantes no cenário do conflito social. Essa prática levou a que os estudantes de 68, em pouco tempo, construíssemuma relação direta com os trabalha-dores das fábricas, com os proletários que lutavam pela qualidade de vida nos subúrbios metropolitanos ou con-tra a arbitrariedade da polícia e dos grupos neofascistas ou pelo respeito e liberdade sexual das mulheres.

A ruptura com o Estado e com o reformismo de esquerda

O desejo de ruptura dos estudan-tes foi, sobretudo, uma descoberta ideo-lógica, alimentada pela história das lu-tas e das rebeliões populares, na qual os militantes comunistas e socialistas tiveram um papel preponderante. Em segundo lugar, interveio um elemen-to político e sociológico, talvez o mais determinante, que operou como con-traponto sociopolítico entre duas ge-

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rações e duas maneiras de entender odesenvolvimento do Estado e da socie-dade.

Os homens de esquerda que sofre-ram com o fascismo, que vivenciaram os dramas da Segunda Guerra Mun-dial e que participaram do referendum entre monarquia e república acredi-tavam cegamente que o novo Estado liberal-burguês italiano seria de fato democrático e que, portanto, deveria ser defendido e ajudado na sua recons-trução. Nessa visão pesava o conceito stalinista do PCI e sua aceitação silen-ciosa do Tratado de Yalta, que prati-camente retirava ao PCI e ao próprio movimento de esquerda o direito de governar o país. Foi uma castração diplomático-institucional que levou o PCI a olhar para a Democracia Cristã com “ódio e amor” tanto que, em 1976, Enrico Berlinguer lançou o compromis-so histórico com a DC, com a específica tarefa de salvar o Estado e o capital, atacados pela insubordinação operá-ria promovida pelo extremismo de es-querda (Comitês Unitários de Base, Autonomia Operária) e pelas novas vertentes da luta armada (Brigadas Vermelhas, Primeira Linha, etc.).

A crítica dos estudantes ao Estado e, consequentemente, ao regime da DC era feita a partir de trabalhos de aná-lise elaborados em sua maioria pelos teóricos ou pesquisadores que, já em 1964, estavam fora do PCI e do PSI.

Foram, então, os intellettuali fuorius-citi (intelectuais que abandonaram os grandes partidos de esquerda) que, ao formular novas teorias e estudos ana-líticos sobre o neocapitalismo italiano, constituíram os elementos formativos do movimento estudantil e, consequen-temente, em 1969, da Nova Esquerda Italiana, que rejeitou o reformismo e o parlamentarismo burguês.

O primeiro elemento dessa crítica atacava o crescimento econômico ita-liano (que entre 1952 e 1962 alcançou a surpreendente média anual de 6%) por não ser um desenvolvimento tec-nológico amplo, com produtos de pri-meira linha, mas, sim, um conjunto de subprodutos modernos, adaptados às condições da pobreza italiana. Foi um crescimento industrial determinado apenas pela massificação explorado-ra de uma mão-de-obra barata e des-qualificada, introduzida nas linhas de montagem industrial em função de seu baixo custo, não da capacidade de tra-balhar alta tecnologia. Por exemplo, o famoso centro da industria bianca, de Treviso, especializado na montagem de geladeiras e máquinas de lavar, do-minou o mercado europeu e mundial não pelas soluções tecnológicas, mas pela simplicidade e, sobretudo, pelo baixíssimo custo de sua mão-de-obra, a tal ponto que várias multinacionais, sobretudo a Electrolux, renunciaram a produzir eletrodomésticos para as

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classes populares europeias, passan-do a encomendar da Candy, Castor e outras empresas italianas os motores e as peças para suas sofisticadas gela-deiras e máquinas de lavar destinadas ao mercado estadunidense.

O mesmo aconteceu com a Fiat, que prosperou produzindo automóveis populares para o mercado italiano (500 cc; 600 cc; 850 cc), jamais conseguin-do competir com a Porsche, a BMW, a Mercedes ou a Citroen nos modelos mais rentáveis para as classes mais abastadas. Em 1969, a Alfa Romeo e a Lancia praticamente estavam à beira da falência e o governo teve de inter-vir para reestruturá-las e, a seguir, en-tregá-las à Fiat, que as recondicionou para a produção de carros para a classe média mais abastada. Esse tipo de de-senvolvimento contou com uma mão-de-obra barata que deixara em massa a agricultura pobre do sul e que, ao se empregar nas cidades industriais do Norte, não encontrou o sonhado clima de solidariedade e de bem-estar social.

Vulgarmente chamados de terroni (homens da terra), os imigrantes che-gados de Nápoles, de Palermo e das localidades mais atrasadas do interior da Calábria, da Pulha, da Sicília e da Sardenha receberam um tratamento social discriminatório, parecido com o que os franceses dos subúrbios de Paris e de Marselha reservavam aos imigrantes árabes empregados nas fá-

bricas ou nas cidades para realizar os trabalhos mais humildes.

Entre 1952 e 1962, nos primei-ros dez anos do “Milagre Econômico”, em toda a Itália, o número de traba-lhadores da agricultura passou de 7.663.000 para 5.430.000. Enquanto isso, no mesmo período, os trabalhado-res da indústria cresciam de 5.720.000 para 7.991.000 e os do setor de ser-viços aumentava seu empregados de 4.681.000 para 6.368.000. É importan-te lembrar que a imigração do sul para o norte não foi homogênea, visto que se centralizou apenas no triângulo in-dustrial Gênova-Turim-Milão e no polo petroquímico de Ravenna e, sobretudo, de Marghera.

Em 1961, a cidade de Milão au-mentou sua população em 24%, ao passo que Turim (“capital” da Fiat) re-gistrava uma alta populacional de 43% – um desenvolvimento não acompa-nhado por crescimento socioestrutural das cidades, cujas administrações mi-nimizavam as necessidades dos novos moradores (moradia popular, lazeres e serviços). Tratou-se de um desenvol-vimento caracterizado pelo enriqueci-mento desproporcional de uma nova burguesia “empreendedora” e vulgar, apadrinhada pelo poder democrata-cristã e pelos clãs mafiosos, que come-çavam a estender seus tentáculos na administração do Estado. Nas grandes cidades industriais do norte surgiram

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os novos guetos da pobreza, que no fim da década de 1970 iriam se tornar o local ideal para a afirmação do crime organizado.

Quando os estudantes começa-ram a contestar a essência classista do Estado democrático, tão idolatrado por Amendola, Napolitano, Longo e pelo jovem Berlinguer, em razão da rein-trodução dos direitos e das liberdades que o fascismo vetara por vinte anos, ocorreu um movimento de ruptura com a lógica da burocracia do Partido Co-munista e da central sindical CGIL, que encontrou como aliado apenas os setores mais politizados do movimento operário do Norte e do Centro do país – os mesmos que, em 1969, seriam pro-tagonistas das ocupações das fábricas e das lutas pelo Estatuto dos Traba-lhadores e pelas 36 horas de trabalho.

Os “Cadernos Vermelhos” e os marxistas da nova esquerda

Para o Movimento Estudantil ita-liano, do ponto de vista político e an-tropológico, a Itália encontrava-se em uma complexa fase de transição, isto é, um país que, pelo atraso de alguns setores, podia ser considerado ainda pobre, mas que, por outros, já partici-pava da abundância eletiva e elitista do capitalismo avançado.

Esse contexto encontrava nos es-tudantes um terreno fértil para a “re-

jeição” do novo modelo de sociedade consumista, alimentando a contestação da cultura iluminista do gradualismo científico e tecnológico. Foi na negação do consumismo que os estudantes en-contraram espaço para rejeitar a mo-ral católica e, sobretudo, o consumismo sexual, no qual a mulher é conside-rada um simples objeto de consumo. Talvez a questão do resgate da figu-ra e do papel da mulher na sociedadetenha sido o único argumento que encontrou compreensão na esquerda reformista, que, por sua parte, fez de tudo para se apropriar das temáticas feministas com evidentes objetivos eleitorais.

O crescimento do PCI na década de 70, no momento em que o conflito ideológico com a esquerda extrapar-lamentar atingiu profundos níveis de inimizade política, deveu-se sobretudo ao voto das mulheres, em razão das batalhas que o PCI levantou no Par-lamento para o reconhecimento dos direitos trabalhistas da mulher e, a seguir, por construir uma inteligente campanha pelo divórcio, que em 1975 se tornou vitoriosa.

A crítica à moral católica, ao con-sumismo e aos comportamentos dis-criminatórios não foi inventada pelo Movimento Estudantil. Simplesmente foram introduzidos nos debates das assembleias abertas como “elementos de trabalho para a definição de novos

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conceitos políticos e de crítica política”, que, a partir da década de 1960, come-çaram a circular na esquerda italiana em função da divulgação do trabalho de pesquisa dos vários centros de análise marxista – evidentemente desligadosdos departamentos culturais do PCI e do PSI.

Conforme testemunhou Alfonso Iacono no especial sobre 68 do jornal Il Manifesto,

os centros de análise marxista italianos estavam procurando refletir sobre as mudanças sociais e econômicas. Tam-bém procuravam uma resposta sobre os efeitos produzidos com os cruzamen-tos conjunturais da condição histórica internacional com os processos de ajus-tamento modernizadores da economia, bem como na sociedade italiana. Tudo isto, em um contexto onde a atenção te-órica em direção da ideologia alimentou um imaginário tão forte que o mesmo começou a bater de frente com um sis-tema determinado pelas expansão da mídia e que, ao mesmo tempo, era con-trolado em modo arcaico por uma socie-dade que queria mudar seus costumes visto que seu modelo de vida também se estava transformando.

A nova vertente do marxismo ita-liano não teve origem no tradicional historicismo marxista, nem foi um pro-duto de importação que parafraseava as teorias da escola de Frankfurt ou de Althusser ou de Etienne Balibar. Foi, sim, o conjunto de pesquisas, relatórios de campo, reflexões críticas, análises setoriais que desde 1963 – isto é, quan-

do o PSI entrou na área de governo com o dito centro-esquerda da DC de Aldo Moro – começaram a ser publicados pela revista de Renato Panzieri QuaderniRossi (Cadernos Vermelhos). Assim, em 1968, toda a produção intelectual dos novos teóricos marxistas italianos, bem como a interpretação dos fenô-menos críticos internacionais, era re-gularmente analisada e publicada por aquela prestigiosa revista, que, logo, tornou-se o farol teórico de todos os se-tores do Movimento Estudantil.

Foram protagonistas ou colabora-dores os principais representantes do pensamento crítico marxista italiano, tais como Alberto Asar Rosa, Bianca Becalli, Emilio Agazzi, Emilio Pugno, Franco Frontini, Goffredo Fofi, Liliana Lanzardo, Luciano della Mea, Mario Megge, Mario Tronti, Massimo Paci-nas, Michele Salvati, Sergio Garavini, Toni Negri e Vittorio Foa. Com esse po-tencial intelectual, a revista conseguiu produzir profundos artigos de análise sobre os processos que definiam a cons-trução do chamado “neocapitalismo italiano” e interpretar criticamente o conceito de novo planejamento capi-talista que, na época, era implantado nas fábricas para se estender aos dife-rentes setores da sociedade.

Foi nesse âmbito que apareceu a chamada “contra-informação”, que, de-pois, em 1969 e 1970, seria determinan-te para denunciar as tramas golpistas

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do neofascismo e a chamada Strage di Stado (Massacre de Estado), com que grupos de pesquisadores, jornalistas e advogados militantes denunciaram o complô dos serviços secretos, que ini-ciaram a atacar o movimento popular com o uso indiscriminado do terroris-mo neofascista.

Outro importante argumento da revista que fascinou os estudantes de 68 foram as análises sobre a formação de uma nova classe operária, que, com o desenvolvimento tecnológico e o uso massivo da imigração, era apresenta-da como o conjunto do operaio-massa (operário-massa). O capital italiano introduzira uma nova divisão do tra-balho, limitando a participação na li-nha de montagem do antigo “operário especializado”, identificado como “aris-tocracia operária, sindicalizada e de-fensora do trabalho assalariado”, que o capital fez de tudo para expulsar da linha de montagem ou transformar em chefe de controle da produção, tornan-do-o um defensor dos novos tempos e ritmos de exploração fixados pelo ca-pital para o “operário-massa” na linha de montagem industrial.

Outra questão crítica relaciona-da pela revista era o papel do sindi-cato como “correia de transmissão” do partido (PCI e PSI), que considerava o trabalho um elemento necessário e coerente nas suas relações políticas no Estado democrático.

Ao reivindicar a autonomia ope-rária, a revista voltava a trabalhar o Marx dos Grundisse e do Capital, apontando que a centralidade ope-rária não deveria mais propor uma estratégia de alianças que os sub-metessem aos outros setores sociais,muitos deles da esfera dominante, deixando à própria classe operária o direito de construir a nova condução da política, como elemento decisivo das novas e renovadas lutas contra as formas de acumulação capitalista. A nova classe operária que a revista vinha apresentando ao analisar o de-senvolvimento do neocapitalismo ita-liano deveria elaborar uma estratégia cujo objetivo era, antes de tudo, a re-composição social e, a seguir, o alas-tramento do “poder operário”, que da fábrica empurrava sua intervençãono território, juntando as lutas para a reformulação do saber com aquelas que atacavam a reorganização do tra-balho assalariado.

Para o Movimento Estudantil, os Cadernos Vermelhos foram uma espé-cie de Evangelho, visto que, se, por um lado, simplificavam o quadro histórico social, por outro, atualizavam os anta-gonismos e as contradições sociais que, a partir de 1967, começaram a aflorar no seio do neocapitalismo italiano, não tanto como condição específica do tipo de desenvolvimento, mas, sobretudo, como qualificação sociopolítica de seu atraso e de dependência estratégica do capital internacional.

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É difícil pensar o 68 italiano sem a introdução histórica das lutas e das re-voltas populares iniciadas com “Julho 60”. Diferentemente do que afirmam hoje os críticos do “folclore político e degenerativo do 1968” nos principais jornais italianos (Corriere della Sera e La Repubblica), é absolutamente in-correto pensar na evolução política e ideológica do Movimento Estudantil de 1968 sem considerar o acúmulo teórico produzido pelos novos centros de aná-lise marxista e divulgado em forma de apostilas pelos coletivos estudantis ou em sofisticadas revistas, como os Qua-derni Rossi e os Quaderni Piacentini, que editores como Renato Panzieri e Savelli tiveram a coragem de publicar ao longo de muitos anos e que foram a base teórica de tudo o que aconte-ceu em 1969 com o chamado “Outono Quente do Movimento Operário”. A explosão do Movimento Estudantil, em 1968, e sua integração nas lutas operárias, de 1969, foram considera-das um drama para o neocapitalismo italiano e, também, por seus aliados da esquerda reformista, que logo ten-taram definir esse processo como uma “anomalia histórica”.

O caso da rebeldia estudantil seguido pela revolta operária foi um traumático processo de crescimento da própria esquerda e de mudanças conceptuais, no qual, sem soluções, as novas contradições sociopolíticas se somavam às velhas, que o reformismo

de esquerda havia silenciado durante uma década.

Résumé

Italia, 1968: mouvement étudiant et conflit social

Cet article aborde le développement des luttes étudiantes en Italie, depuis 1967, dans le contexte du contrôle du pays par le grand capital et l’impéria-lisme, en fonction des accords de Yalta sanctionnés par la direction du Partit Communiste Italien. Il traite égale-ment des racines théoriques et sociales du surgissement de la nouvelle gauche, révolutionnaire et anti-parlementa-riste, au cours des années 1967-1969, ainsi que de la stratégie de la terreur et du golpisme que l’Etat et l’impéria-lisme mirent sur pied pour combattre ce processus.

Mot clé: Italia. 1968. Révolution ita-lienne.

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Resumo

1968 no Brasil: a visão dos militares

Eduardo Munhoz Svartman*

* Doutor em Ciência Política. Professor do curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo.

O artigo retoma eventos conhecidos da conjuntura política de 1968 e pon-tua os aspectos formativos da visão da cúpula militar naquele período e que influenciaram a sua ação política e a repressão então desencadeada. Argu-menta-se que a cúpula militar era pau-tada por um padrão de visão e de ação política relativamente antigo no meio militar brasileiro: o “intervencionismo controlador”; por uma desconfiança em relação aos políticos civis forte o bastante para subordinar as clivagens castrenses a uma propalada unidade em torno do regime e, por fim, num du-radouro consumo da teoria da “guerra revolucionária”, que desempenhou um papel importante na militarização do regime e na montagem de um poderoso e extensivo aparato de repressão.

Palavras-chave: Forças Armadas. Re-pressão política. Autoritarismo.

O ano de1968 assumiu uma con-dição de marco na história da cultura e dos movimentos sociais do século XX. No Brasil, a data povoa o imaginário produzido pelas memórias e ensaios de protagonistas dessa geração; foi o cenário de uma importante reativa-ção da oposição de diferentes setores da sociedade civil e política à ditadura militar e, como um grande anticlímax, culminou numa violenta reação do re-gime com a edição do ato institucional no 5, em 13 de dezembro. Em março de 1964, um golpe militar apoiado por setores do campo político e da clas-se média (rapidamente reconhecido pelos EUA) pôs fim a um processo de crescente mobilização social que vinha operando nos marcos da Constituição de 1946 e do sistema partidário.

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Depois das tentativas frustradas de 1954 e de 1961, esses segmentos derrubaram o presidente João Goulart e o legado varguista do reformismo na-cionalista de apelo popular que este re-presentava. Desde então, a cena políti-ca brasileira foi marcada por expurgos e cassações, uma nova Constituição, uma reforma partidária, uma nova lei de imprensa e sucessivas crises no meio militar. O padrão de continuísmo e de progressivo “fechamento” do re-gime que se inaugurou no governo do marechal Castelo Branco, marcado por uma forte desconfiança militar em face dos “políticos tradicionais” (inclusive muitos apoiadores do golpe), conferiu a este governo uma caracterização mui-to distinta daquela que a memória e a historiografia lhe consagrariam poste-riormente como sendo liberal, oposta à chamada “linha dura”.1

Diante da progressiva expansão dos mecanismos autoritários durante o mandato de seu predecessor, Costa e Silva, ao assumir a Presidência da República, empregou o discurso de “humanizar a revolução”2 como uma estratégia para legitimar uma inter-venção militar na política cuja duração já ia muito além das expectativas dos setores civis que haviam apoiado o gol-pe em 1964. A reativação das oposições nas ruas, junto às grandes lideranças civis e no Congresso Nacional, onde o partido governista parecia se mostrar

refratário ao que emanava da caserna e do palácio, pôs fim à ilusão militar de que era possível fazer política e gover-nar sem dissenso, apenas eliminando “a subversão e a corrupção”, o que pôs fim também à retórica amena de Costa e Silva.

Diante disso, este artigo retoma alguns elementos importantes da con-juntura política de 1968 e pontua os aspectos formativos que compunham a visão da cúpula militar naquele pe-ríodo como uma forma de se compre-ender a lógica do protagonismo políti-co dos militares e da ação repressiva então desencadeada. Argumenta-se que a cúpula militar era pautada por um padrão de visão e de ação política relativamente antigo no meio militar brasileiro – o intervencionismo contro-lador –, por uma desconfiança em rela-ção aos políticos civis forte o bastante para subordinar as clivagens castren-ses a uma propalada unidade das For-ças Armadas na defesa da “Revolução de 1964” e, por fim, por um duradouro consumo da teoria da “guerra revolu-cionária”, que desempenhou um papel importante na militarização do regime e na montagem de um poderoso e ex-tensivo aparato de repressão.

Como foi assinalado, 1968 foi mar-cado pela rearticulação das oposições ao regime militar, que já vinha pro-gressivamente acentuando seu caráter ditatorial. Essa rearticulação se deu

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tanto no nível da política institucional, especialmente no Congresso, quan-to no nível dos movimentos sociais, particularmente dos trabalhadores e estudantil. Ainda em 1967, políticos que tinham apoiado o golpe e foram relegados pelos militares, como Car-los Lacerda, e lideranças perseguidas pelo regime, como Juscelino Kubits-chek, empreenderam o frágil, porém ruidoso, movimento da Frente Ampla. Apesar das vacilações na capacidade de articulação, o tom das críticas ao governo foi suficiente para que Costa e Silva proibisse qualquer manifesta-ção da ou sobre a Frente Ampla e suas lideranças em abril de 1968.3 O limite do discurso conciliador do presidente era bastante estreito.

Nesse mesmo mês eclodiu uma importante greve de metalúrgicos em Contagem, Minas Gerais, e, na sequên-cia, trabalhadores se manifestaram contra as comemorações oficiais do Primeiro de Maio em São Paulo. Dois meses depois, eclodiria outra greve de metalúrgicos, agora em Osasco, na qual, além das reivindicações salariais, o movimento criticava a política gover-namental para o trabalho.4 A reação do governo Costa e Silva oscilou entre a moderada negociação em Contagem e a dura repressão policial em Osasco, indicando novamente o alcance da re-tórica da “humanização da revolução”.

O movimento estudantil, forte-mente atingido pela repressão após o golpe, reassumiu o seu protagonismo político em 1968. A morte de um es-tudante pela polícia do Rio de Janei-ro em março gerou a primeira grande manifestação de rua contra o regime, a qual foi violentamente reprimida pela polícia. Essa ação desencadeou novas marchas de protesto em várias cidades do país.5 Em junho, novamente no Rio, ocorreu outra grande manifestação, a “Passeata dos 100 mil”, que agregou estudantes, artistas, intelectuais e mi-lhares de populares em protesto contra a violência policial. Em consequência, o Ministério da Justiça proibiu novas marchas de protesto.

Em agosto, o “endurecimento” da repressão ao movimento estudantil atingiu a Universidade de Brasília, cujo campus foi ocupado por tropas da polícia e do Exército, com vários estu-dantes e professores sendo presos. A violência da ação gerou fortes protes-tos no Congresso Nacional, os quais acabaram expondo a fratura existente entre o governo militar e sua base no legislativo. A essa altura, os levantes estudantis em Roma, Paris, Varsóvia e a greve geral na França já se faziam presentes no noticiário nacional e, con-sequentemente, nos círculos decisórios militares.

Em outubro a União Nacional dos Estudantes, proscrita pelo regime, rea-

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lizou o seu 30o Congresso. Apesar de o congresso ter sido descoberto pelas forças de repressão, que prenderam várias lideranças, o movimento dera uma demonstração de sua força ao reunir secretamente em torno de um mil estudantes num sítio no interior de São Paulo.6

A confluência do incremento da oposição ao regime militar por parte de políticos e dos movimentos sociais deu-se numa prolongada crise entre o governo e o Congresso, conduzida pe-los militares de forma a culminar na edição do AI-5. No Congresso a tribuna era usada intensamente para denun-ciar os abusos praticados pelo Exe-cutivo. Ainda em agosto, um discurso do deputado do MDB Márcio Moreira Alves foi reproduzido por militares e divulgado nos quartéis com o intuito de criar um ambiente de comoção na caserna. O discurso instava a popula-ção a boicotar as comemorações mili-tares do 7 de Setembro e as mulheres a se recusarem a namorar oficiais que silenciassem diante da repressão pra-ticada pelo regime.

Diante da crise forjada, o governo, seguindo a Constituição de 1967, soli-citou permissão ao Congresso para pro-cessar o parlamentar que teria ofendi-do a honra e a dignidade das Forças Armadas. Em 12 de dezembro, contan-do com votos da Arena, o partido go-vernista, o Congresso manteve a imu-

nidade parlamentar intacta. Menos de 24 horas depois o AI-5 era decretado e o Congresso, novamente expurgado, foi fechado por tempo indeterminado.7 Um novo ciclo ainda mais intenso de repressão era desencadeado.

Retomada a conjuntura política de 1968, cabe agora abordar a maneira como os militares no poder significa-vam o que se passava no país. Os estu-dos sobre as interações entre as Forças Armadas e o campo político no Brasil devem levar em consideração, antes de mais nada, que essas organizações complexas não são monolíticas; ao con-trário, as três Forças (Marinha, Exérci-to e Aeronáutica) formam corporações independentes, que possuem clivagens hierárquicas, geracionais e abrigam dentro de si grupos que rivalizam no acesso aos recursos materiais e simbó-licos que permitem definir e redefinir as correlações de poder internas. Dado o intenso protagonismo político dos mi-litares brasileiros,8 particularmente os do Exército, os diferentes projetos de Forças Armadas que os grupos alimen-tam são também diferentes projetos de relações entre as Forças Armadas e o campo político. São, portanto, projetos políticos.

Apesar dos repetidos discursos sobre a unidade das Forças Armadas, sempre invocado pela cúpula militar em tempos de crise, os militares bra-sileiros desde 1930 eram muita coisa,

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mas dificilmente foram unidos por muito tempo. Em função disso, é bas-tante problemático pensar os militares como moderadores do sistema político brasileiro após 1946. O fato de as in-tervenções militares em 1945, 1954 e 1955 terem sido, por assim dizer, pontuais, pois passaram o poder a um militar reformado ou a um civil elei-tos, não pode impedir que se constate que as Forças Armadas eram também campos de luta, sendo mobilizadas em questões como a do petróleo e da guer-ra da Coreia, fornecendo candidatos à Presidência da República para o PSD (Eurico Gaspar Dutra), para a UDN (Eduardo Gomes e Juarez Távora) e para o PTB (Henrique Lott), ou ope-rando como uma espécie da caixa de ressonância das clivagens políticas na-cionais como nas eleições para o Clube Militar nos anos 1950.9

Dentre os grupos que até 1964 são mais claramente identificáveis, o que maior êxito político alcançou foi o que José Murilo de Carvalho definiu como “intervencionista controlador”. Gesta-do no início da década de 1930, previa ampla intervenção estatal em vários setores da sociedade; enfatizava a ne-cessidade de assegurar a defesa exter-na e a segurança interna; preocupava-se com a eliminação do conflito social e político em torno da ideia de nação e defendia uma industrialização nacio-nalista na qual o exército deveria ser

um propulsor desse processo.10 Este corpo de ideias foi pela primeira vez sistematizado na chamada “doutrina Góes Monteiro”, produzida pela prin-cipal liderança militar da Revolução de 1930 e que teve grande repercussão no meio militar em razão das posições-chave ocupadas pelo seu formulador até 1945 e pelo fato de, em torno dele, ter gravitado uma outra geração de oficiais fortemente identificados com essas ideias e que mantiveram um elevado grau de protagonismo político nas duas décadas seguintes e no golpe militar de 1964.11

O intervencionismo controlador teria se tornado hegemônico no Exér-cito após o Estado Novo se não tives-se enfrentado a forte concorrência da chamada “ala nacionalista”, engajada na campanha pelo petróleo no fim da década de 1940 e menos sensível à in-dústria do anticomunismo. Ainda que fosse um grupo mais difuso e não tão bem posicionado na hierarquia, essa fração mais à esquerda manteve-se atuante a ponto de ter sido um dos principais alvos nos expurgos que se seguiram ao golpe de 1964. Ainda que seja difícil caracterizar como grupo, havia uma ampla fração de militares que, no jargão da época, era classifi-cada como “legalista”. Normalmente, distanciavam-se das lutas políticas, mas, em determinadas conjunturas polarizadas, mobilizavam-se em gru-

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pos, como o Movimento Militar Cons-titucionalista em 1955, ou em torno de lideranças, como a do comandante do 3o Exército, general Machado Lopes, em 1961, ou de Castelo Branco, em 1964. Os legalistas, portanto, podiam pender tanto para a esquerda quanto para a direita.

Com o golpe e o prolongamento do regime militar, os expurgos e per-seguições atingiram as frações à es-querda dos oficiais e praças das três forças. Contudo, novas clivagens entre o corpo de oficiais identificados com o regime foram se definindo. Ao redor do primeiro presidente militar, Castelo Branco, gravitava o grupo muitas ve-zes identificado com a Escola Superior de Guerra (ESG), do qual faziam parte quadros que permaneceriam na cena política ainda por bastante tempo, como Ernesto Geisel e Golberi do Cou-to e Silva. Desde as primeiras horas do novo regime, uma segunda liderança se apropriara do Ministério do Exérci-to e, colocando-se como interlocutor da jovem oficialidade, que pregava ações repressivas mais intensas, tornara-se uma espécie de porta-voz da chamada “linha dura”.

Essa posição precocemente con-quistada por Costa e Silva foi decisiva para a imposição de seu nome na su-cessão de Castelo Branco. O segundo presidente militar não era, contudo, apenas um representante dos coronéis

e tenentes-coronéis da linha dura; seu ministério contava com um quadro im-portante do grupo castelista, o titular da pasta do Exército, Lyra Tavares, e abrigava mais duas correntes impor-tantes. Em torno do ministro do Inte-rior, general Albuquerque Lima, gra-vitavam oficiais identificados com um “neonacionalismo” de direita que, em parte, se sobrepunha à linha dura.

Por fim, havia ainda o chamado “grupo palaciano”, composto por mili-tares que se converteram em políticos com carreiras bem-sucedidas, como os coronéis Mário Andreazza e Jarbas Passarinho e o general Emílio Médici, que assumira o SNI e dali sairia para a Presidência da República em 1969. Havia ainda nesse grupo o influente general Jayme Portella, do Gabinete Militar.12 Em 1968 as clivagens mili-tiares criavam uma forte tensão en-tre o grupo palaciano e determinadas frações que comandavam tropas, espe-cialmente aquela identificada como “li-nha dura”; no horizonte das disputas intramilitares estavam os rumos a se-rem imprimidos à “Revolução de 1964” e a sucessão presidencial de 1970, que acabou ocorrendo ainda em 1969.

Uma vez definidos os grupos que compõem o dinâmico mosaico das For-ças Armadas, especialmente da força de atuação política mais extensiva, que era o Exército, cabe abordar os esque-mas de compreensão que informaram

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essa ação e, em particular, a redobra-da repressão do ano de 1968. Trata-se, portanto, de identificar aquilo que era partilhado entre essas clivagens mili-tares.

Apesar da sua amplitude e de agregar elementos mais antigos, como várias das teses do chamado “pensa-mento autoritário” da década de 1920, a questões mais novas, como o forte anticomunismo que se desenvolveu no meio militar após a revolta de 1935, a visão a respeito dos fenômenos sociais e políticos partilhada, em especial, pelo intervencionsimo controlador e seus herdeiros começou a ser sistematizada e codificada em duas instituições mili-tares de ensino: a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) e a Escola Superior de Guerra.

A Eceme, que na década de 1930 se chamava Escola de Estado-Maior, é uma escola fundada em 1905 de im-portância capital na produção doutri-nária do Exército. Bastante seletiva no seu ingresso, a Eceme forma os oficiais que poderão ascender ao generalato e que desempenham as funções mais im-portantes na corporação. As formula-ções estratégicas e de emprego da for-ça frequentemente são ali elaboradas e têm no seu curso um decisivo espaço de difusão. Desde a década de 1930, uma parte de seus cursos versava so-bre questões ligadas à infraestrutura, que, em razão do seu caráter estratégi-

co para os exércitos modernos, alimen-tam disposições militares para inter-ferir nos processos decisórios: energia, siderurgia, transportes e indústria bé-lica. Para além disso, a Eceme foi um foco de difusão da ênfase no planeja-mento para a resolução não apenas de exercícios militares, mas também de questões políticas ligadas aos temas estratégicos e à mobilização.13

A partir do fim da Segunda Guer-ra, a Eceme empreendeu um trabalho seletivo de adaptação das doutrinas militares norte-americanas experi-mentadas pela FEB na Itália à modes-ta realidade ainda pré-industrial do Exército brasileiro. As formulações se dão, contudo, em sintonia com o Tiar e com a Conferência de Bogotá, na qual, por influência norte-americana, enquadra-se militarmente o Brasil no esforço de “defesa conjunta do hemis-fério” contra o comunismo.14 Essa com-binação da influência norte-americana com o anticomunismo militar remonta ao Estado Novo, mas durante o gover-no Dutra começou a ser vertida em for-ma de doutrina na Eceme e, a partir da década de 1950, passou a alimentar uma circularidade com a ESG.

Fundada em 1948, sob forte in-fluência norte-americana e da emer-gente Guerra Fria, a ESG consistiu no principal espaço no qual as crenças até então dispersas entre as frações mais à direita da oficialidade foram verti-

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das numa doutrina cuja configuração fixou a ideologia do autoritarismo mi-litar brasileiro. Um aspecto importan-te, que ajuda a compreender a difusão dos discursos ali produzidos, é o fato de esta instituição militar recrutar civis, especialmente do setor público, para compor o corpo de estagiários (alu-nos) e, eventualmente, para realizar conferências. Desde a década de 1950 a escola conta com uma rede de ex-es-tagiários dispersos pelo país, a Adesg, responsável pela reprodução local da ideologia produzida. Desde os seus tempos iniciais, a ESG tem por objeti-vo “formar elites” comprometidas com a formulação e o planejamento de uma política de segurança nacional. A sis-temática de funcionamento da escola, que conferia à doutrina um caráter de “contínuo aperfeiçoamento”, permitia que suas formulações básicas, deline-adas até meados da década de 1950, fossem ao mesmo tempo reproduzidas e consumidas por novas turmas de mi-litares e civis. Permitia também que fossem repetidas vezes adequadas à conjuntura política nacional, integran-do os novos temas que compunham o debate e as lutas políticas nacionais às suas formulações anteriores.15

A Doutrina de Segurança Nacio-nal (DSN) articulou as considerações militares quanto ao planejamento econômico e político das atividades de defesa (decorrência da guerra indus-

trial e da guerra total) e promoveu a passagem do enfoque dos militares na “agressão externa” para a “agres-são interna”.16 O ponto de partida da doutrina era o “conflito ideológico per-manente” entre Ocidente e Oriente, no qual o Brasil, por sua “índole cristã” e seus compromissos com os “amigos do Norte” (os Estados Unidos), colocava-se inquestionavelmente alinhado com o Ocidente.17

Partindo dessa crença tomada por verdade, a doutrina legitima a passa-gem do comprometimento militar com a defesa nacional para algo bastante difuso, que seria a segurança nacional. Por “defesa” compreende-se o aspecto militar clássico de uma guerra trava-da entre exércitos nacionais. O concei-to de segurança da ESG é muito mais vasto, abarcando tanto os temas liga-dos à mobilização para um esforço de guerra, que compreende a criação ou operacionalização de sistemas logísti-cos, de energia, de combustíveis e de uma indústria bélica, quanto os aspec-tos “psicossociais” ligados à “preserva-ção do desenvolvimento” e à “estabi-lidade política interna”. Dessa forma, Juarez Távora, o segundo comandante da ESG, definiu nos seguintes termos a questão:

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Essa moderna conceituação de segu-rança nacional envolve, assim, direta ou indiretamente, todas as atividades da nação: as ligadas à política interna (aí compreendido o jogo dos partidos e o funcionamento dos poderes) e à po-lítica internacional; os integrantes do complexo econômico (produção primá-ria e industrial, comércio, transportes e energia); as relacionadas com as fi-nanças; as componentes do campo psi-co-social (os fatores morais e psicológi-cos, a educação e a cultura, a saúde e as relações de trabalho e a assistência e a previdência sociais) e, finalmente, as atinentes ao setor militar (Exército, Marinha e Aeronáutica) e que consti-tuem, em seu conjunto os elementos integrantes do poder nacional.18

Uma definição assim tão ampla tomava como verdade o “direito das Forças Armadas de intervirem [...] no processo de desenvolvimento do poten-cial geral da nação”.19 Tal intervenção se daria no sentido de planejar a se-gurança nacional a fim de “remover os óbices” necessários ao fortalecimento do poder nacional, obtendo, com isso, o desenvolvimento com “harmonia entre as classes”. A condução desse processo, previa a doutrina, seria efetivada por uma elite civil e militar capacitada por uma metodologia de solução de proble-mas que, por princípio, elimina a di-mensão política dos assuntos públicos em favor da suposta competência téc-nica. Ao subordinar praticamente tudo aos corolários da segurança, a DSN formula um discurso empregado para

legitimar não apenas a presença de militares no campo político, mas o seu protagonismo praticamente ilimitado.

Além de ter sido um espaço de fa-bricação ideológica, a ESG foi um es-paço de articulação e de conspiração para os oficiais identificados com o intervencionismo controlador mais en-gajados na oposição a Getúlio Vargas e aos seus herdeiros políticos. O episódio do Memorial dos Coronéis, que em fe-vereiro de 1954 desencadeou uma crise que derrubou dois ministros, as arti-culações em torno da campanha presi-dencial de Juarez Távora e da tenta-tiva de bloqueio à posse de Juscelino Kubitschek e João Goulart, a redação do veto dos ministros militares à posse de Goulart após a renúncia de Jânio Quadros e toda a mobilização em tor-no da avaliação da conjuntura de 1961 a 1964 são indicadores da disposição intervencionista dos militares que, no período, desempenharam funções jun-to à escola.

O intervencionismo controlador, por sua vez, é também herdeiro de uma forte disposição partilhada entre segmentos do oficialato do Exército que encara com profunda desconfiança os assim chamados “políticos profissio-nais”. Trata-se de uma visão um tanto difusa, porém fortemente sedimentada entre oficiais do Exército desde a dé-cada de 1920, na qual estava também implícita a sua crítica ao liberalismo

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oligárquico e uma forte crença na téc-nica e nas virtudes militares para re-solver “objetivamente” os problemas nacionais. Mais tarde esse esquema de compreensão seria incorporado ao discurso da ESG que enfatizava o “despreparo” das elites brasileiras, em especial dos políticos, sempre afeitos ao “particularismo” em detrimento de uma visão verdadeiramente “nacio-nal”, de que os militares, por sua for-mação e experiên cia, seriam portado-res por excelência.20

A partir de 1964 o progressivo relegamento sofrido pelas lideranças civis que apoiaram o golpe é outro in-dicativo dessa visão. Rapidamente o bloco golpista cindira-se em dois mun-dos, um civil e outro militar,21 de modo que, antes mesmo da formalização da posse de Castelo Branco na Presidên-cia da República, as movimentações próprias do campo político eram vis-tas por vários oficiais como um risco de “volta ao passado”. No contexto po-lítico de 1968 aqui analisado, a des-confiança militar em face dos políticos civis aparece tanto no enquadramento da Frente Ampla quanto no próprio AI-5. Neste caso, é bem sabido que os esforços apaziguadores de quadros da Arena e do próprio vice-presidente, Pe-dro Aleixo, foram totalmente inócuos diante dos militares. O fato de Aleixo ter defendido a fórmula constitucional do estado de sítio e ter se manifestado, em reunião fechada, contra a edição de

um novo ato institucional só acentuou ainda mais a desconfiança da cúpula militar em relação à “classe política”.22 A sua destituição do cargo de vice-pre-sidente em 1969 nada mais foi do que mais uma decorrência dessa visão pre-dominante entre a alta oficialidade do regime.

As palavras empregadas por Cos-ta e Silva para justificar o AI-5 peran-te a população, em cadeia de rádio e televisão, são muito ilustrativas dessa fratura entre civis e militares. O presi-dente informava ter declarado o reces-so do Congresso Nacional em virtude da “falência temporária do poder polí-tico”, em que um grupo de parlamenta-res “resolvera humilhar, diminuir e de-safiar as Forças Armadas”. O discurso do deputado Moreira Alves e a recusa do Congresso em quebrar sua imunida-de parlamentar estariam conduzindo o país, conforme o discurso presiden-cial, a uma “luta fratricida” e à “res-tauração da aliança entre a corrupção e a subversão”. A apreciação do quadro da oposição civil-militar em 1968 era sintetizada da seguinte maneira pelo ge neral-presidente: “Instigavam-se gru- pos estudantis desavisados; repetiam-se os atos de terrorismo nos grandes centros urbanos; rearticulavam-se es-cancaradamente as forças vencidas pe-la Revolução de 1964; e a tribuna do Congresso convertia-se em vazadouro do ódio e da calúnia contra as Forças Armadas.”23

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Fica bastante nítido que a pro-dução da crise com o Congresso num cenário de reativação da oposição pú-blica ao regime era pouco mais do que o mote para o incremento do autorita-rismo. Conforme o discurso oficial, a questão-chave para o AI-5 era a erosão da base governista no Congresso num contexto de mobilização da sociedade, o que levaria à restauração da ordem anterior ao golpe de 1964. A classe po-lítica teria dado, então, a demonstra-ção de que não era confiável e as ma-nifestações contra o regime vindas dos sindicatos, dos estudantes ou da popu-lação em geral que a elas acorria eram vistas como perigosa subversão.

Um outro elemento discursivo pro-duzido e fartamente reproduzido pelos agentes e espaços aqui abordados que desempenhou as importantes funções ideológicas de mobilizar e legitimar as intervenções militares golpistas foi o componente da guerra revolucionária. A ênfase das preocupações militares na “ameaça interna” e na infiltração co-munista remonta, pelo menos, a 1935, contudo, após as guerras da Coreia, Indochina e Argélia e da vitória da Re-volução Cubana, a questão assume um caráter premente. Tanto por influência francesa quanto, um pouco mais tarde, pela norte-americana, o tema passou a mobilizar os debates e estudos na ESG e na Eceme. A partir de então, as preo-cupações com a ameaça interna estive-

ram codificadas em plena sintonia com o “conflito ideológico permanente” e a doutrina passou a contar com novos exemplos internacionais a respeito dos riscos da chamada “infiltração comu-nista”.

Entre setembro de 1963 e abril de 1964 a chefia do Estado-Maior do Exér-cito, a quem a Eceme era diretamente vinculada, esteve a cargo de Castelo Branco, que se empenhou integral-mente em difundir a nova doutrina nos meios militares brasileiros. Em seu dis-curso de posse no EME, dois dias após a eclosão da revolta dos sargentos em Brasília (que se insurgiram contra a decisão judicial que os considerou ine-legíveis), Castelo deu a tônica de sua posição e asseverou: “Há reformadores oportunistas que querem substituí-la [a estrutura do exército], por meio de um solapamento progressivo e anti-nacional, e instituem o exército popu-lar, um arremedo de milícia, com sua ideologia ambígua, destinado a agitar o país com exauridos pronunciamentos verbais e a perturbar com subversões brancas e motins a vida do povo.”24

No mês seguinte, o general Antô-nio Carlos Muricy, numa conferência sobre guerra revolucionária para o público civil em Natal, falaria aberta-mente: “Quando a manutenção da or-dem escapa ao controle da autoridade civil ou quando há insurreição arma-da, cabe às Forças Armadas agir, com

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violência, imediatamente (por ordem superior ou, se for o caso, por iniciativa própria).”25

Isso entrou pelo canal da ESG, e foi ela que lançou as ideias sobre as guerras insurrecional e revolucionária e passou a nelas identificar o quadro da nossa própria possível guerra. Para nós ain-da não havia guerra nuclear, a guerra convencional já estava ultrapassada. Mas havia uma guerra que nos pa-recia estar aqui dentro. Era a guerra que ascendia o estopim da revolta nos campos e a insatisfação popular nas ci-dades [...]. Isso tudo contribuiu para a formulação da nossa própria doutrina de guerra revolucionária, que resultou no movimento militar de 64.26

A doutrina da guerra revolucio-nária operou decisivamente para pro-duzir um consenso em diversos meios militares e civis para que se entendes-sem as manifestações dos movimentos sociais no início da década de 1960 e as ações do governo João Goulart como partes de um processo articulado e planejado que, se não fosse interrom-pido, conduziria o Brasil a uma revo-lução comunista. A campanha desen-cadeada pelo deputado Bilac Pinto da UDN, um ex-estagiário civil da ESG, denunciava em discursos na tribuna e em artigos de jornal a tese de que se viviam os primeiros estágios da guerra revolucionária desde 1961. Na Eceme os currículos foram alterados no senti-do de dar grande atenção ao tema, de modo que, em articulação com a ESG e com os demais centros de ensino

militar, produziu-se uma “avalanche intelec tual”. Ainda conforme Octávio Costa, os “textos, os livros, os artigos, as discussões os seminários, tudo isso preparou mentalmente as três Forças e deu provas de absoluta convicção de que essa era a nossa guerra”.27

A “avalanche” não arrefeceu em 1964. Desde então, iniciou-se a mon-tagem dos sistemas de informação e de repressão militarizados e pautados pela doutrina da guerra revolucioná-ria. Em junho foi criado, por decreto, o Serviço Nacional de Informações. Liga-do diretamente à Presidência da Repú-blica e dispensado de prestar contas ao Congresso, o SNI desempenhava com larga autonomia e numa crescente es-trutura burocrática as suas tarefas de coleta e análise de informações perti-nentes à segurança nacional, na qual o foco era, invariavelmente, a chamada “subversão interna”.28 O mais antigo dos órgãos militares de informação que desempenhavam funções diretas de repressão era o Centro de Informações da Marinha, o Cenimar, fundado em 1955 com o nome de Serviço de Infor-mações da Marinha. Imediatamente após o golpe, o Cenimar participara di-retamente das operações de expurgos e torturas.29

Em 1967 foi criado o Centro de In-formações do Exército (CIE), núcleo do qual derivariam nos anos seguintes os demais aparatos repressivos vincula-dos ao Exército, como a Operação Ban-

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deirantes (Oban) em 1969, e o temível “sistema” Codi-DOI, implementado ofi-cialmente em 1970.30 Nas palavras do coronel Fiuza de Castro, primeiro co-mandante do CIE, estes órgãos tinham “total autonomia e independência” e contavam com grande infraestrutura, pessoal e orçamento.31 A ampliação e a sobreposição de agências militares en-carregadas de “produzir informações” e de reprimir as oposições ao regime eram uma preocupação e um objetivo partilhado pelos vários segmentos da oficialidade; o discurso que pretendia legitimar a montagem desse aparato era, invariavelmente, o de que o Brasil vivia uma situação de guerra revolu-cionária.

Em 29 de março de 1968, no mes-mo dia da já citada passeata em pro-testo contra a morte de um estudante numa ação da polícia do Rio de Janei-ro, o general Orlando Geisel se despe-dia da chefia do EME, conclamando a “união de todos os verdadeiros pa-triotas contra as forças da subversão que ameaçam todas as nações livres” e também contra os “pregoeiros da ci-zânia” e os “empreiteros da desordem e do terror”. Para um dos oficiais mais bem posicionados na herarquia, os mi-litares estavam, desde 1964, “aperfei-çoando as instituições políticas” e de-fendendo a pátria contra a “volta da corrupção e da subversão”.

Assim, a importância da guer-ra revolucionária, para o ministro do

Exército de Costa e Silva, Lira Tavares, era capital. Em conferência na Eceme em março de 1969, o ministro afirmou claramente que “o problema da se-gurança interna supera, na presente conjuntura, o da segurança externa” e indicou que a guerra revolucionária estava “exigindo uma reformulação, progressiva e segura, da nossa com-preensão clássica do problema militar brasileiro”. Tratava-se de aparelhar o Exército cada vez mais para a repres-são interna, a qual se daria com um grau de autonomia no qual “o Direito e a Lei não poderão amarrar-se aos con-ceitos e à visão tradicionalistas”.32 No imediato pós-1968 não deveria haver entraves à ação repressiva do Estado.

Em sintonia com a experiência do Exército e com a fala do ministro, a Aeronáutica recrutou um de seus ofi-ciais mais ativamente anticomunistas, o coronel-aviador João Paulo Burnier, para frequentar o Curso de Informa-ções oferecido pelos EUA no Panamá e, após o seu retorno em 1968, montar o serviço secreto daquela força, mais tar-de rebatizado de Centro de Informa-ções da Aeronáutica (Cisa).33 Segundo o depoimento de Burnier, a montagem dessas seções militares especializadas na repressão à oposição ao regime, ar-mada ou não, decorria do despreparo das polícias estaduais para fazer esse tipo de “combate”.34

Esse discurso da eficiência e da técnica dominada pelas Forças Arma-

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das para combater a subversão foi em-pregado de modo a conferir um lugar especial para os cada vez mais nume-rosos e autônomos órgãos encarrega-dos de combater a chamada “guerra revolucionária”, a qual, no entender dos militares, ocorrera antes, durante e após o recurso de segmentos da opo-sição à luta armada contra o regime.

Assim como em outras partes do mundo, 1968 no Brasil foi um ano de intensas mobilizações políticas. Gre-ves, manifestações de rua, articulações políticas e críticas públicas marcaram uma escalada da oposição de vários setores da sociedade brasileira ao re-gime militar. A visão militar a respeito da oposição civil e da perda de apoio do regime junto a segmentos como a clas-se média e a lideranças conservadoras foi decorrência de uma combinação de um padrão de comportamento po-lítico autoritário predominante entre os oficiais, de uma forte desconfiança quanto às intenções e moralidade dos “políticos profissionais” e do intenso consumo da doutrina da guerra revo-lucionária. A consequência disso foi uma violenta reação por parte do re-gime, na qual os segmentos mais au-toritários tiveram amplo suporte para a montagem e ampliação de aparatos repressivos numa escala até então não vista no país. A resposta do regime às jornadas de 1968 foi, em síntese, o ter-ror de Estado.

Abstract

1968 in Brazil: the military view

The article recovers de main facts of the Brazilian political conjuncture in 1968 and remarks the formative issues that made the military view which in-fluenced their political and repressive action. On argues that the military hierarchy were strongly influenced by a pattern of political action called “ruler interventionism”; by a distrust on civilian politician strong enough to submit their professionals cleavages into a unity around the regime and, fi-nally, by a continuous consume of the theory of “revolutionary war” that had an important role on the militarization of the regime and on the creation of a powerful and extensive repressive ap-paratus.

Key words: Armed Forces. Political re-pression. Authoritarianism.

Notas1 MARTINS FILHO, João R. O palácio e a ca-

serna: a dinâmica militar das crises políticas na ditadura (1964-1969). São Carlos: Editora da UFSCar, 1995. p. 82 et seq. Ver também SVARTMAN, Eduardo. M. A matriz autoritária do governo Castelo Branco: ou da longa dura-ção das idéias positivistas. História Debates e Tendências, Passo Fundo, v. 4, n. 2, p. 122-135, 2003.

2 SKIDMORE. Thomas. Brasil: de Castelo a Tan-credo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 148.

3 SILVA, Hélio. O poder militar. Porto Alegre: L&PM, 1984. p. 436 et seq.

4 SKIDMORE, T. Op. cit., p. 157 et seq.5 SKIDMORE, T. Op. cit., p. 153.

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6 Folha de São Paulo, 13 out. 1968. Disponí-vel em: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_13out1968.htm. Acesso em: 6 ago. 2008.

7 ALVES, M. Op. cit., p. 129; SILVA, H. Op. cit., p. 439.

8 McCANN, Frank. Soldados da pátria: história do Exército Brasileiro (1888-1937). São Pau-lo: Companhia das Letras, 2007. SVARTMAN, Eduardo Munhoz. Guardiões da nação: for-mação profissional, idéias e engajamento po-lítico dos generais de 1964. Tese (Doutorado) - UFRGS, Porto Alegre, 2006.

9 Para a questão do Clube Militar, ver PEIXOTO, Antônio Carlos. O Clube Militar e os confron-tos no seio das Forças Armadas (1945-1964). In: ROUQUIÉ, Alain (Org.). Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1980.

10 CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política, 1930-1945. In: A Revolução de 30. Seminário Internacional CPDOC/FAV. Brasília: Editora da UnB, 1983. p. 121 et seq. e 146. Em um texto posterior, Carvalho usa a expressão “intervencionismo tutelar” ao invés de “inter-vencionismo controlador”. Ver CARVALHO, José Murilo de. Vargas e os militares: aprendiz de feiticeiro. In: D’ARAÚJO, Maria Celina. As instituições brasileiras na Era Vargas. Rio de Janeiro: Ed. UERJ/FGV, 1999. Para as lutas entre militares no pós-1945 ver PEIXOTO, An-tonio Carlos. O clube militar e os confrontos no seio das Forças Armadas (1945-1964). In: ROU-QUIÉ, Alain (Org.). Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1980; SMALL-MANN, Shawn. A profissionalização da violên-cia extralegal das Forças Armadas no Brasil (1945-64). In: CASTRO, C.; IZECKSOHN, V.; KRAAY, H. (Org.). Nova história militar brasi-leira. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004.

11 A chamada “doutrina Góes” é apresentada por seu formulador nas seguintes obras: MONTEI-RO, Pedro Aurélio de Góes. A Revolução de 30 e a finalidade política do exército (esboço histórico). Rio de Janeiro: Andersen, 1934. COUTINHO, Lorival. O general Góes depõe... Rio de Janeiro: Coelho Branco, 1955. Para uma interpretação ver: PINTO, Sérgio Murilo. A doutrina Góes. In: PANDOLFI, Dulce Chaves (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999. Para a geração subsequente ver SVARTMAN, E. Op. cit., 2006.

12 MARTINS FILHO, J. Op. cit.. p. 116 et seq.13 SVARTMAN, E. 2006. Op. cit. p. 111.

14 ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO. História do Estado-Maior do Exército. Rio de Janeiro: Bi-bliex, 1984. p. 120. MOURA, Gerson. Sucessos e ilusões. Relações internacionais do Brasil du-rante e após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: FGV, 1991. BANDEIRA, Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Dois séculos de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.

15 Para as sucessivas mudanças conceituais na doutrina da ESG ver ARRUDA, Antônio de. A escola Superior de Guerra. 2. ed. São Paulo: GRD, 1983; ROCHA, Maria S. de Moraes. A evolução dos conceitos da doutrina da Escola Superior de Guerra nos anos 70. Dissertação (Mestrado) - USP, São Paulo, 1996.

16 OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. As forças arma-das: política e ideologia no Brasil (1964-1969). Petrópolis: Vozes, 1978. p. 22.

17 CORDEIRO DE FARIAS, Oswaldo. Palestra so-bre a organização da ESG. Rio de Janeiro: ESG, 1949. p. 5.

18 TÁVORA, Juarez. A segurança nacional e a ESG. Rio de Janeiro: ESG, 1954. C-01-54 p. 20 et seq.

19 SARDENBERG, Idálio. Princípios fundamen-tais da Escola Superior de Guerra. Revista da ESG, v. 9, n. 26, 1993. p. 10. (Documento redigi-do em 1949).

20 SVARTMAN, E. 2006. Op. cit., p. 67, 87 e 125.21 MARTINS FILHO, J. Op. cit., p. 47.22 SILVA, H. Op. cit., p. 441.23 COSTA E SILVA, Arthur da. Pronunciamentos

do presidente. [s. l.]: Secretaria de Imprensa, [s. d.]. t. 2, p. 482.

24 Arquivo Catelo Branco, Pasta G1, Discurso de posse na chefia do Estado-Maior do Exército, em 14/9/63.

25 EME. Op. cit., p. 182. Essa pregação de Murici suscitou o discurso de Leonel Brizola acusando-o de “gorila” e “golpista” e desencadeou mais uma crise entre civis e militares durante o governo Goulart.

26 Depoimento de Octávio Costa. In: D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Glauco; CASTRO, Cel-so (Org.). Visões do golpe: a memória militar sobre o golpe de 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 79.

27 Idem, p. 80, para as mudanças curriculares na Eceme, ver STEPAN, Alfred. The military in politics: changing patterns in Brazil. Princeton: Princeton University Press, 1971. p. 181.

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28 ALVES, Maria Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1989. p. 72. FICO, Carlos. Como eles agiam. Os sub-terrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. São Paulo: Record, 2001. p. 81 et seq.; FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do silêncio: a história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula, 1927-2005. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 124 et seq.

29 SKIDMORE, Thomas, 1988, p. 57; FIGUEIRE-DO, L. Op. cit., p. 210.

30 FICO, C. Op. cit., p. 115 et seq.31 D´ARAUJO, Maria Celina (Coord.). Os anos de

chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 42; FIGUEIREDO, L. Op. cit., p. 152.

32 TAVARES, Lira. Missões e rumos do Exército. Rio de Janeiro: Impresna do EME, 1969. p. 80 et seq.

33 FIGUEIREDO, L. Op. cit., p. 217.34 D´ARAÚJO, p. 191.

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O que queremos? Queremos tudo!Breve ensaio interpretativo sobre

o sentido histórico de 19681

Mário Maestri∗

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A celebração dos quarenta anos de 1968 tem ensejado reflexões sobre a sua atua lidade ou superação programática. Os anos 1967-1969 abriram conjuntura revolucionária demarcada fortemente pela contradição entre a crescente ex-ploração vivida pelo operariado dos paí-ses de capitalismo avançado e o enfra-quecimento das direções reformistas, em parte em razão das jornadas demo-cráticas e revolucionárias mundiais vi-toriosas. Iniciadas pelos estudantes, as jornadas revolucionárias fortaleceram-se na medida em que foram retomadas pelo operariado. Da ofensiva da década de 1970, a impulsão revolucionária es-tagnou na de 1980 e foi vergada na de 1990, permanecendo sua vigência refe-rencial como único meio de arrestar o declínio vivido pela humanidade. Palavras-chave: 1968. Política interna-cional. Revolução. Contrarrevolução.

Desde inícios de 2008, sobretudo na Europa, realizam-se encontros, se-minários, palestras, lançamentos de livros e apresentações de documentá-rios sobre 1968. Essas atividades al-cançaram seu apogeu no mês de maio, em razão dos célebres acontecimentos de Paris, há quarenta anos, que, em geral, por sua relevância, tenderam a obscurecer o caráter multinacional da-quelas jornadas. No Brasil, as celebra-ções programadas foram igualmente

Resumo

* Doutor em História. Professor do curso de Gra-duação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo.

1 Intervenção apresentada na mesa-redonda de 14 de maio de 2008, no “Seminário 40 anos de 1968: continuidades e rupturas”, UFF, Niterói, Rio de Janeiro; no Seminário “1968: no Brasil e no Mundo”, do Programa de Pós-Graduação em História da UPF-RS, em 26 de maio de 2008; na Semana Acadêmica do curso de História da UFRGS, “2008: Entre a fl or e o fuzil: interpre-tações e memórias de 1968”, em 9 de junho de 2008.

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importantes, sobretudo porque os fe-nômenos que estremeceram boa parte do mundo expressaram-se de forma poderosa também entre nós, com ápice nos meses de junho e julho de 1968.

Existe já uma enorme produção bibliográfica sobre os acontecimentos que cumprem agora quatro décadas, referentes sobretudo aos países em que se expressaram substancialmente, como a Alemanha Federal, a China, a Espanha, os Estados Unidos, a França, a Itália, o Japão, o México, o Paquistão, a Tcheco-Eslováquia, etc.2 Há também muitos ensaios de interpretação do fe-nômeno como um todo. Lamentavel-mente, mesmo com as atuais celebra-ções, apenas uma muito pequena parte dessa valiosa produção encontra-se traduzida para o português, ainda que já haja considerável bibliografia nacio-nal sobre aqueles fatos.3

No Brasil e no mundo, comumen-te os atos comemorativos em curso de-dicam-se prioritariamente à apresen-tação histórica dos acontecimentos de 1968, pois já fazem parte de um passa-do relativamente distante, o que obri-ga, necessariamente, à sua recupera-ção histórica pelas novas gerações que nasceram após. Uma recuperação faci-litada pela presença ainda significati-va de protagonistas daquelas jornadas, em boa parte muito jovens quando dos eventos, o que certamente não ocorre-rá nas celebrações do cinquentenário de 1968 em 2018.

Signifi cados profundos

Ainda que em geral se discuta quase obsessivamente as influências das jornadas de 1968 no referente às modificações culturais e comporta-mentais da sociedade contemporânea – ecologia, liberdade sexual, emancipa-ção da mulher, crise do autoritarismo familiar, etc. –, o grande debate explí-cito ou implícito que organiza a refle-xão em curso, que poderíamos definir de mais “fina”, centra-se na tentativa de explicação das razões e significados profundos daqueles fatos e, sobretudo, da sua validade programática ou supe-ração, esgotamento e crise definitiva, como proposto de forma reiterada, não raro, até mesmo por ex-dirigentes da-quelas jornadas. Daniel Cohn-Bendit, o jovem líder revolucionário das lutas parisienses, hoje acomodado deputado do Parlamento Europeu, acaba de lan-çar livro com o título Forget 1968 (“Es-queçam 1968”) e vem defendendo, du-rante as celebrações, que a “sociedade hoje não tem nada a ver com a de 40, 45 anos atrás”.4

Apresentam-se comumente de for-ma analógica os acontecimentos ocorri-dos há quatro décadas como o ápice de cataclismo geológico, que, após acumu-lação de forças, iniciou o processo de liberação das fortes tensões anterior-mente reprimidas, em 1967, seguindo-se a essa pré-convulsão variados abalos tectônicos, com um principal e grande

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epicentro em 1968 e movimentos se-cundários nos meses seguintes àquele ano referencial.

Ainda que essa comparação cir-cunscreva de forma relativamente cor-reta a importante sucessão e ritmos dos acontecimentos ocorridos, com grande destaque, sobretudo nos EUA, na Itá-lia e Alemanha Federal, na Espanha em 1967 e, a seguir, principalmente, na França, no México, no Brasil, na Polônia, no Paquistão, na Tcheco-Es-lováquia, etc. em 1968, sequer esboça as razões e significados profundos dos fatos, já que não elucida minimamente as origens e singularidades das fortís-simas tensões e sucessivas distensões sociais vividas em importantes regiões da Europa, Américas e Ásia e, sobretu-do, as causas da extenuação, dissolu-ção ou frustração daquele movimento.

Expansão e crise

Na segunda metade da década de 1960, iniciava-se o esgotamento da longa expansão de pós-guerra vivida nos anos 1947-1973, com destaque nos EUA e na Europa Ocidental, já definida como “os anos dourados” do capitalis-mo.5 Nesse período, sobretudo o mundo do trabalho europeu, fortalecido objeti-vamente pela expansão econômica co-nhecida após o conflito mundial, seguia mantido em forte subordinação políti-ca, social e econômica – desigualdades salariais, jornadas de trabalho longas

e duras, etc. Submissão apresentadas pelas direções político-sindicais socia-listas, stalinistas e social-democratas como parte da própria natureza social, capaz de ser gradativamente reforma-da, mas já não mais superada.

Mesmo se concretizando nacional-mente, a crise da produção capitalista assumia caráter, ritmos e expressões crescentemente mundiais, em razão da crescente internacionalização da eco-nomia. Nesse então, o grande capital empreendeu importantes iniciativas para a superação da tendência à queda da taxa de acumulação que vivia, por meio de forte reestruturação da pro-dução, promovida com a aceleração do ritmo do trabalho, a generalização da cadeia de montagem, o pagamento da produção por peça, o crescente controle do tempo de produção, etc, iniciativas que aumentavam fortemente o nível da exploração do trabalhador industrial.6

Porém, um significativo fenômeno subjetivo imbricava-se a essa tensão objetiva crescente vivida pelo mundo do trabalho. Importantes fatos enfra-queciam o controle e o monopólio polí-tico-ideológico dos trabalhadores pelas suas direções tradicionais, envolvidas no projeto de colaboração trabalho-ca-pital, realidade muito viva na França, na Itália, na Alemanha, países de forte e organizado proletariado, que havia vivido importantes jornadas sociais nos anos finais e sucessivos à Segunda Guerra, os quais se haviam concluído

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com a frustrante restauração da or-dem capitalista.

A luta de libertação nacional do pequenino povo vietnamita, primei-ro contra a França, a seguir contra os EUA, potência capitalista hegemôni-ca após a Segunda Guerra Mundial, ensejava crescimento da consciência mundial sobre a possibilidade-necessi-dade da derrota do imperialismo, sen-timento já fortalecido pela vitória da Revolução Argelina contra a metrópo-le colonial francesa, em 1962, após oito anos de lutas e mais de duzentos mil mortos.7 Esse impulso se solidificava, igualmente, não apenas na América Latina, com a vitória paradigmática da Revolução Cubana, em 1959, seguida, dois anos mais tarde, por sua definição socialista.8 A possibilidade de derrota do imperialismo-capitalismo pelo con-fronto social direto, caso fosse necessá-rio, apresentava-se como importante saída para importantes setores do mo-vimento socialista, sobretudo após as derrotas históricas sofridas no Brasil, em 1964, e a hecatombe da Indonésia, em 1965.9

Jovens brancos e negros

Nos Estados Unidos, a cres-cente mobilização da juventude pobre branca, arrastada à força para a car-nificina imperialista, convergia com e alimentava a ruptura já iniciada nos anos anteriores por importantes seto-

res da comunidade negra estaduniden-se com a organização e radicalização da luta pelos direitos civis. Essas mo-bilizações revelavam ao mundo a hipo-crisia da pretensa democracia social e política estadunidense, sob a vigência plena do capitalismo.10 Tais jornadas e suas formas de luta influenciavam for-temente a consciência das novas gera-ções estudantis e operárias, sobretudo da Europa, América e Ásia, nascidas após o grande conflito.

Na Europa Ocidental, os influxos da revolução na Argélia, em Cuba e na Indochina e da crise de hegemonia es-tadunidense refletiram-se, inicialmen-te, no estudantado da Alemanha e da Itália, em 1967, e, a seguir, da França, em 1968. Por suas características es-truturais, os estudantes eram o setor que, por um lado, melhor expressava as profundas tensões sociais nacionais e, por outro, mais facilmente podia autonomizar-se política e ideologica-mente das direções social-democratas, socialistas e stalinistas tradicionais.

Nas décadas de 1950 e 1960 ge-neralizara-se o ensino superior público nos países europeus avançados, em ra-zão das novas necessidades da produção e da forte pressão social de pós-guerra. Entretanto, essa popularização relativa não foi acompanhada de democratização da estrutura, funcionamento, progra-mas, objetivos, etc. dos estudos univer-sitários. Ainda que originário sobretudo dos segmentos médios, o estudantado

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alemão, italiano e francês mantinha reais vínculos orgânicos com os tra-balhadores por intermédio dos jovens aprendizes e estudantes-operários. Es-ses contatos se davam também nas or-ganizações políticas populares, social-democratas, socialistas e stalinistas destinados aos estudantes e aos jovens.

Convergência operário-estudantil

Os vínculos ligando os mundos es-tudantil e operário foram de essencial importância nos fatos de 1967-1968, já que a profundidade dos sobressal-tos sociais conhecidos nas nações mais diretamente estremecidas por aqueles acontecimentos dependeu, sobretudo, do acolhimento e da potenciação das mobilizações da juventude estudantil e popular pelo movimento operário. Essa realidade podemos apreciar na solução paradigmaticamente divergente dessa equação nos Estados Unidos, em rela-ção à França e à Itália.

Nos EUA, o núcleo central da classe operária, que em geral jamais conheceu autonomia política, mesmo que relativa, diante do capital, apesar de ter conhecido no período 1968-1974 o seu mais amplo ciclo grevista no sé-culo 20, manteve-se tendencialmente refratário, insensível e, não raro, hos-til às mobilizações pacifistas e antirra-cistas, ensejando que a forte fratura do consenso e da hegemonia dominantes

assumisse sobretudo expressões políti-cas e ideológicas de rejeição à cultura, ao comportamento e ao consumo ca-pitalistas, mas jamais à produção e à organização capitalista propriamente ditas. Essa ruptura política não se rea-lizou sequer de forma programática.

A não recepção do movimento pacifista e antirracista por parte do núcleo central dos trabalhadores es-tadunidenses ensejou que os fortes sobressaltos das décadas 1960 e 1970 fossem a seguir apreendidos, em geral, como crise entre as gerações, perden-do-se enorme parte de seu conteúdo evocativo e programático, sobretudo após a soldadura das fissuras no con-senso social empreendida pelas classes dominantes estadunidenses, especial-mente a partir do governo republicano de Ronald Reagan (1981-1989). Isso permitiu que se empreendessem’, a se-guir, verdadeira criminalização e abo-minação daqueles movimentos e a lite-ral neutralização ou eliminação física da vanguarda por eles produzida, pro-cesso já iniciado anteriormente, com os assassinatos de Malcolm X, em 1965, e de Martin Luther King, em 1968.

Étudiants, ouvriers, même combat?

Na França, ao contrário, as lutas estudantis, sobretudo parisienses, de inícios de maio foram acolhidas pela classe trabalhadora, por movimento de

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três semanas de greve geral, com mais de dez milhões de trabalhadores, e ocu-pação de fábricas encimadas por ban-deiras vermelhas, que estabeleceu, nos fatos, dualidade de poderes no país – dualidade que não se objetivou na pro-posta de conquista do governo apenas pela incapacidade do operariado de su-perar politicamente a direção do Parti-do Comunista Francês, que comandou a frustração-dissolução do movimento semi-insurrecional ao canalizá-lo para a solução eleitoral de julho, proposta por De Gaulle, que resultou em clara derrota e refluxo do movimento operá-rio e popular.

Se na França a aliança operário-estudantil levou o país às portas de go-verno popular, de cunho ou orientação operária e socialista, no Paquistão, a confluência das lutas do estudantado com a população trabalhadora foi mais longe, ensejando, após quatro meses de duros combates, a queda, em 1969, da ditadura militar de Ayub Khan, que vinha sendo sustentada pelo imperia-lismo estadunidense – uma conquista frustrada a seguir, em razão do refluxo do movimento revolucionário mundial.

A Itália, ao contrário, constituiu caso singular, já que as mobilizações iniciadas em 1967 ensejaram longa confluência, política e orgânica, entre estudantes radicalizados e segmentos da classe operária em ruptura com o co-laboracionismo do Partido Comunista Italiano, que manteve, porém, a hege-

monia sobre o coração central da classe trabalhadora. Na Itália, o máximo da mobilização social ocorreria quando do “Outono Quente”, em 1969, ensejada pela campanha pela renovação do con-trato trienal de trabalho dos metalúrgi-cos, que motivou mobilizações operário-estudantis muito duras, de claro nível político, encerradas por ampla conces-são das reivindicações econômicas pelo mundo do capital, temeroso do trans-bordamento político do movimento. No final daquelas jornadas ocorreria o atentado terrorista de Piazza Fontana, em Milão, parte da estratégia de tensão do capital e do imperialismo na Itália para enfrentar o avanço social.

Aquele processo se esgotaria dez anos mais tarde, com o refluxo das lutas de massa, o que facilitou a ação irresponsável das organizações arma-das, com destaque para as Brigadas Vermelhas, fortemente utilizadas – quando não teleguiadas – pela direi-ta governamental, que contribuíram para a gravíssima derrota política da esquerda como um todo – fenômeno conhecido também pela Alemanha Fe-deral, sobretudo com a Fração do Exér-cito Vermelho.11

Crise objetivo-subjetiva

O estremecimento geral conhecido por países como a França, Itália, Ale-manha Federal, Estados Unidos, Pa-quistão, México, Brasil, etc. demarcou

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o já referido esgotamento da expansão capitalista do pós-guerra no contexto da primeira grande crise de hegemo-nia conhecida, por um lado, pelo impe-rialismo, no que se refere ao mundo do capital e, por outro, pelo stalinismo e a social-democracia, no que diz respei-to ao mundo do trabalho. Foram fatos que se materializaram segundo as rea-lidades das diversas nações envolvidas pelos sucessos.

Na esfera subjetiva, o avanço da revolução mundial determinou profun-da ruptura da hegemonia stalinista e social-democrata. O fim daquele mono-pólio foi demarcado pela redescoberta de velhos e novos teóricos revolucioná-rios, como Karl Korsch , León Trotsky , Rosa Luxemburgo , Franz Fanon , Georg Lukacs , Guevara , Isaac Deutscher , Wi-lhelm Reich , etc.; pelo renascimento do debate marxista, com destaque para a economia e a teoria da dependência – Charles Bettelheim , Ernest Mandel , Henri Lefevbre , Herbert Marcuse , Paul Baran , Paul Sweezy , etc. e, igual-mente, pela emergência de organiza-ções políticas revolucionárias de corte sobretudo trotskista, maoísta, gueva-ristas, autonomistas, fortes principal-mente nos segmentos da juventude estudantil e operária radicalizadas – na França, Ligue Communiste Révolu-tionnaire; Gauche Prolétarienne, etc.; na Itália, Lotta continua, Potere Ope-raio, Il Manifesto, Avanguardia Ope-raia, etc. Todo esse movimento se ca-

racterizava pela profunda rejeição ao parlamentarismo. Sobretudo na Itália, o novo ativismo político foi conhecido como oposição extraparlamentar.

O próprio fenômeno das organi-zações armadas europeias e latino-americanas explica-se, em parte, pelo impulso revolucionário ensejado pela vitória cubana, pela guerra de liber-tação vietnamita e pelas rupturas de 1967-1968, que, no referente à Euro-pa, galvanizaram e lançaram segmen-tos jovens, principalmente das classes médias, sobretudo após o refluxo da mobilização de massas, em lutas pro-tagonistas – que se esperava que fos-sem seguidas pelos trabalhadores –, vistas por seus participantes como parte do combate anticapitalista e anti-imperialista mundial. Tais ações eram desvinculadas do movimento social, utilizadas pelo imperialismo e pelos governos conservadores contra a esquerda e, sobretudo, o mundo do trabalho, como foi o caso exemplar das Brigadas Vermelhas e o sequestro e morte de Aldo Moro, na Itália.

O geral e o particular

O processo de galvanização subje-tiva mundial vivido em 1967-68 deu-se no contexto de profunda interdeter-minação do geral e do particular, do mundial e do nacional, num processo no qual os meios de comunicação – com destaque para o foto-jornalismo e a te-

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levisão, fortemente popularizada, nos anos anteriores – ensejaram poderosos influxos positivos para o movimento social em avanço, por meio de uma di-fusão intensiva de mobilizações e de lutas. Ainda que esses fatos fossem anatematizados pela mídia em nível da narrativa oral e escrita, sobretudo a capacidade das imagens de reverbe-rar os sentidos que registravam junto a receptores vivendo, mais ou menos, objetiva e subjetivamente, os mesmos influxos, apoiou, incentivou e orientou jornadas congêneres em outras partes do mundo. Fotos de militantes negros pacifistas sendo agredidos por policiais nos EUA; as feitas por Nic Ut , da me-nina Kim Phuc, de nove anos, despi-da e queimada por bombardeamento estadunidense com napalm em 8 de junho de 1972; por Eddie Adams , do general sul-vietnamita Nguyen Ngoc Loan executando oficial vietcongue com um tiro na cabeça; dos dois atle-tas estadunidenses negros (John Car-los e Tommie Smith ) de punho fechado, no pódio dos 200 m das Olimpíadas de 1968; da fuga do embaixador estaduni-dense de Saigon, etc., tiveram imensa repercussão no contexto socialmente tenso daqueles momentos.

O ano de 1968 abriu-se com a vi-tória da ofensiva do Ano Ted, seguin-do-se em maio as jornadas parisienses e, muito logo, a Marcha dos Cem Mil no Rio de Janeiro e as manifestações e lutas vitoriosas no Paquistão. Pela

primeira vez em 1917, diante dos olhos da população mundial, a revolução materializava-se como processo lite-ralmente palpável. Sobretudo o mundo do trabalho desbordava objetivamente as fronteiras políticas, ideológicas e simbólicas que lhe haviam sido delimi-tadas pela normalidade institucional, para se espraiar poderosamente como um tsunami sem fim, transformando seu programa em alternativas sociais e existenciais reais para as populações nacionais e mundiais.

Esse processo de transbordamen-to revolucionário exercia uma fortís-sima atração sobre os setores médios, com destaque para intelectuais, artis-tas, políticos, jovens militantes ou não, etc., afastados anteriormente da atra-ção exercida pela revolução e mundo do trabalho pela ação hegemônica do stalinismo nos países do Leste e entre a grande classe operária organizada sobretudo europeia. A crescente opção subjetiva e, não raro, objetiva e orgâni-ca de cientistas sociais e de acadêmicos pelo socialismo e pela revolução ense-jou a ampliação, quantitativa e quali-tativa, horizontal e vertical, da crítica da sociedade e produção capitalistas nos campos da história, da sociologia, da economia, da política, da psicologia, das artes, etc., contribuindo poderosa-mente para o fortalecimento do mundo do trabalho. Esse fenômeno foi fortíssi-mo na França pós-1968.

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A revolução ao alcance da mão

O socialismo, o racionalismo, o ateísmo, o solidarismo, a fraternida-de tornavam-se valores fortemente prestigiados e perseguidos, ao passo que o capitalismo, o irracionalismo, o espiritualismo, o individualismo, o se-xismo, o racismo, desvalorizavam-se e desqualificavam-se diante dos olhos de milhões e milhões de indivíduos, sob o influxo direto e indireto, consciente e inconsciente, da revolução mundial em marcha. Transbordava através do mundo a confiança num futuro muito próximo em que o homem e a mulher seriam, finalmente, não mais o lobo, mas o amigo do homem. Sem medo, gritava-se através do mundo: “O que queremos? Queremos tudo!”

O ano de 1968 seria o de menor vocações sacerdotais do século 20. Sem necessidade e interesse de olhar, por frustração e desespero, para as coisas do céu e do além, o homem e a mulher, transcendidos pelas possibilidades que se abriam diante de seus olhos, voltavam-se, desbordando de confian-ça, para o mundo material e espiritual terreno do aqui e do agora. O indivíduo crescia e espraiava-se na comunhão so-lidária e fraternal com seus semelhan-tes. Galopando desenfreado através do mundo, o indomável corcel da revolu-ção inoculava seu fulgor infatigável, de

forma mais ou menos radical, em uma vasta geração de militantes sociais, em geral muito jovens, mas igualmente em adultos.

Por seu inesperado radicalismo e longevidade, esse processo determina-ria mais tarde a criação de neologismo soixanthuitards, na França, sessantot-tini, na Itália, para descrever, positiva ou pejorativamente, conforme o lado da trincheira, a geração de homens e mulheres, hoje com sessenta e setenta anos que, apesar de dizimada pelas de-serções ensejada pelas duras derrotas dos confrontos sociais dos anos 1980-90, segue ainda, passados quarenta anos, irremediavelmente marcadas a fogo em seus comportamentos e visões de mundo por aqueles anos e jornadas magníficos, em que a conquista do céu esteve ao alcance das mãos dos povos.

O que não avança, retrocede

Já foi dito que a revolução não se instala da noite para o dia, mesmo quando se trata do dia da revolução. A imposição da derrota histórica do mun-do do trabalho pelo capital, que vive-mos plenamente nos dias de hoje, não se deu, igualmente, de um dia, de mês ou de ano para o outro, após o refluxo da grande onda revolucionária de 1968, já em fins daquele ano, com destaque para a França, Brasil e México – nes-te último país com o terrível massacre de Tlatelolco , de 2 de outubro de 1968,

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com talvez quatrocentos mortos –, ainda que a luta se expandisse, no ano seguinte, pelo Japão, Argentina, com o Cordobazo; na China, com a Comuna de Xangai, e na Itália, com o Outono quente. A partida continuou sendo jogada ainda por alguns anos com as classes trabalhadoras e populares na ofensiva, antes que a maré revolucio-nária sofresse dolorosa reversão.

As razões e cronologias gerais da derrota do empuxe revolucionário, com forte aceleração em 1967-68, exigem discussão bem mais ampla e comple-xa, impossível de ser realizada neste artigo, sequer de forma telegráfica. Apesar da derrota imperialista e da vi-tória popular no Vietnã do Sul (1974), Angola (1975), Moçambique (1975), Iêmen, Etiópia, Nicarágua (1978), a vaga popular mundial sofreu golpes significativos quando das derrotas da revolução chilena, em 1973; na Amé-rica Latina, portuguesa, em 1975, na Europa, e, finalmente, afegã, em 1988, na Ásia, em razão do peso qualitativo desses movimentos. O fortalecimen-to da contrarrevolução entre a classe operária polonesa, por intermédio do sindicato Solidariedade, desempenhou importante papel nesse processo.

A vaga revolucionária mundial esmoreceu em fins da década de 1970, retrocedendo na década de 1980, para ser definitivamente batida na de 1990. Nesse processo desempenharam im-portante papel os governos Ronald Reagan (1981-1989), nos Estados Uni-

dos; Margaret Thatcher (1979-1990), na Inglaterra; o longo poder do papa Woytilla (1978-2005), exercido um pouco através de todo o mundo.

Contrarrevolução vitoriosa

A derrota do grande impulso re-volucionário, que conhecera forte ace-leração em 1967-1968, e o seu esma-gamento geral, vinte anos mais tarde, em 1989, pela recuperação, hoje nos seus momentos finais, da produção capitalista, da URSS e das nações de economia nacionalizada e planejada da Europa, Ásia e América, deveram-se, em última instância, à imobilidade política e social das classes trabalha-doras estadunidenses e soviéticas, in-capazes de superar, mesmo que de for-ma limitada, a dominação capitalista e burocrática sob a qual se encontravam, garantindo amplo espaço de recupera-ção-metamorfose para os segmentos dominantes daqueles países, hegemô-nicos nas suas respectivas esferas.

Os ritmos e as complexas razões de tais fenômenos ainda não foram elucidados a contento, em boa parte em virtude do próprio recuo objetivo e subjetivo vivido desde a década de 1980 pelo mundo do trabalho e seus cada vez mais rarefeitos quadros inte-lectuais orgânicos, quando de processo que se concluiu com a contrarrevolução neoliberal de fins daquele decênio, que ainda pesa dolorosamente sobre todos nós, como assinalado. Tentativas de

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Résumé

Que voulons-nous? Nous voulons tout!Brèves réfl exions interprétatives sur la

signifi cation historique de mai 1968

La célébration des quarante ans des événements de 1968 a entraîné une série de réflexions sur l´actualité/le dépassement programmatique de ces mouvements. Les années 1967-1969 ont inauguré une conjoncture révolu-tionnaire fortement marquée par la contradiiction entre la croissante ex-ploitation vécue par le prolétariat des pays développés et la dégénérescence des directions réformistes. Amorcés par les étudiants, les épisodes révolu-tionnaires se fortifièrent dans la me-sure où les ouvriers prirent la relève. A l´offensive dans les années 1970, l´impulsion révolutionnaire resta stag-nante dans les années 80 et fut assujet-tie dans les années 90, restant cepen-dant une référence fondamentale.

Mot clé: 1968. Politique internationale. Révolution. Contre-révolution.

Notas2 Ver outros sobre a Itália: CAPANNA, Mario.

Formidabili quegli anni. Milano: BUR, 1998; MASSARI, Roberto. Il ’68: come e perché. Bol-sena: Massari, 1998; BASCETTA, M. et al. En-ciclopedia del ‘68. Milano: Manifestolibri, 2008; ALESSANDRO, Bertante. Contro il ‘68: la ge-nerazione infinita. Milano: Agenzia X, 2008; BALESTRINI, Nanni. L’orda d’oro: 1968-1977: la grande ondata rivoluzionaria e creativa, po-litica ed esistenziale. [1988] 4. ed. Milano: Fel-trinelli, 1997; sobre o México, GUEVARA NIE-BLA, Gilberto. Libertad bajo protesta, historia de un proceso. México: Federación Editorial

sínteses dessa realidade, como a am-biciosa obra de Eric J. Hobsbawm, de 1994, A era dos extremos: breve século XX (1914-1991), escrita enquanto o ca-pital reconquistava plenamente os Es-tados perdidos desde 1917, registram no campo das representações teórico-científicas sobretudo a rendição da ra-zão crítica diante da contrarrevolução triunfante.1

Entretanto, a derrota da maré revolucionária, com forte eclosão em 1967-68, não determinou a obsolescên-cia de seu programa, como proposto ha-bitualmente por apologistas da opres-são, apoiados sobretudo na “prova” da vitória capitalista. Hoje, as apologias sobre a nova ordem nascida da vitó-ria mundial do mundo do capital já se esvaem diante dos olhos de todos, na imposição sem limites de mundo domi-nado pela exploração, pelo desassosse-go, pela violência, pelo egoísmo – uma realidade que registra a inarredável urgência da retomada-concretização geral da proposta de reorganização so-cial do mundo levantada há quarenta anos, para a superação de contradições insanáveis postas pela desordem capi-talista. São contradições que, hoje, em razão do seu caráter geral e de sua pro-fundidade, comprovam dolorosamente a lembrança de Rosa Luxemburgo , há quase um século, de que à humanida-de apresenta-se apenas a escolha en-tre dois caminhos a serem seguidos: o socialismo ou a barbárie.

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3 Entre outros: ALI, Tariq. O poder das barrica-das: uma autobiografia dos anos 60. São Paulo: Boitempo, 2008; ALMEIDA JR., Antônio Mendes de. Movimento estudantil no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1981; França, QUATROCCHI, An-gelo; NAIRN, Tom. O começo do fim: França, maio de 1968. [1968]. Trad. de M. A. Reis. Rio de Janeiro: Record, 1998; ALVES, Márcio Moreira. 68 mudou o mundo: a explosão dos sonhos e a guinada conservadora num ano que valeu por décadas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993; FERRY, Luc; RENAUT, Alain. Pensamento 68.

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4 MAESTRI, Mário. Cohn-Bendit pede desculpas. Correio da Cidadania, São Paulo, 24 mar. 2008. Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/content/view/1587/47/; www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ ult94u396770.shtml

5 CHASNAIS, François et al. Uma nova fase do capitalismo? São Paulo: Cemarx, Xamã, 2003. p. 15 et seq.

6 BALESTRINI, Nanni. L’orda d’oro: 1968-1977: la grande ondata rivoluzionaria e creativa, poli-tica ed esistenziale, p. 15 et seq.

7 HO CHI MINH. A resistência do Vietnã. Rio de Janeiro: Laemmert, 1968; FANON, F. L’An V de la révolution algérienne. Paris: Maspero, 1959.

8 BAMBIRRA, Vânia. A Revolução Cubana – uma reinterpretação. Coimbra: Centelha, Brasil, 1975; SWEEZY, Paul; HUBERMAN, Leo. Cuba: anatomia de uma revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1960.

9 GORENDER, Jacó, O combate nas trevas, São Paulo: Ática, 1987.

10 CARMICHAEL; HAMILTON, Strategia del pot-ere nero. Roma-Bari: Laterza, 1968

11 PRINZ, Alois. Disoccupate le strade dai sogni: la vita di Ulrike Meinhof. Trad. de M. Marot-ta. Roma: Arcana, 2007; BOCCA, Giorgio. Noi terroristi: 12 anni di lotta armata ricostruiti e discussi con i protagonisti. Milano: Garzanti, 1985; Progetto Memoria. La mappa perduta. Roma: Sensibili alle Foglie, 1994.

Artigos livres

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A imagem e suas representações no ensino de história

Ademar Firmino dos Santos∗

Resumo

Procuramos, neste trabalho, fazer uma reflexão sobre a importância da utilização das imagens no trabalho do historiador, buscando embasamento teórico e referências em autores que fa-zem a discussão sobre este tipo de do-cumento para mostrar o quanto pode ser produtiva a sua inserção no ensino de história, tendo em vista a produção de conhecimento histórico nos alunos. Torna-se vital refletir sobre os seus conceitos, sua forma de produção e in-tencionalidade, para permitir que os alunos também o façam entendendo que o documento imagético é produzi-do por uma determinada sociedade e possui intencionalidades e propósitos a serem averiguados pela análise do-cumental.

Palavras-chave: Imagens. Representa-ções. Ensino de história.

Quando falamos em recursos au-diovisuais para o ensino de história, geralmente, nós professores, temos a ideia de que se trata apenas de incluir nas aulas de história algumas ima-gens, vídeos, fotos, pinturas, de ma-neira aleatória, sem o devido cuidado e sem questionar as fontes, ou seja, nos esquecemos de que esses recursos são documentos como qualquer outro e que merecem tratamento como tal. Devemos analisar, juntamente com os alunos, o momento histórico em que foi criada a imagem, o seu objetivo, o seu público de interesse, quem é o seu au-tor, em que setor social ele circula e o que pretende com a obra. São algumas das muitas perguntas que podemos fazer em relação à imagem, cujas res-postas podem dar indícios de como se construiu este elemento.

∗ Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina.

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Incrementando essa posição, Jac-ques Aumont, em sua obra intitulada A imagem, de 1993, na qual faz redefi-nições do conceito de imagem, comenta que em todas as sociedades a produção de imagens sempre teve uma finalida-de específica, de propaganda religiosa, ideológica, entre outros, ou seja, de transmitir informações a alguém. Con-forme o autor, “a arte representativa imita a natureza, e essa imitação nos dá prazer; em contrapartida, e quase dialeticamente, ela influi na ‘nature-za’, ou pelo menos em nossa maneira de vê-la”.1

Devemos nos lembrar que a ima-gem, apesar dessa função de transmis-são de informações; não tem o poder de refletir toda uma sociedade; ape-nas “imita”, representando uma forma de comunicação de uma classe social (onde o autor está inserido) num de-terminado espaço e tempo.

Quando se trata de imagem, é necessário voltar um pouco no tempo, para que possa ser vista com outros olhos na nossa sociedade. O mundo moderno nasceu de rupturas e gran-des transformações, de relativização dos valores e ensinamentos, tanto que é conhecido como o “século das luzes”, “da razão”. O século seguinte, o XIX, foi marcado como o “século das imagens”. Segundo Sergio Lage T. Carvalho, em sua obra A saturação do olhar e a ver-tigem dos sentidos, neste momento é que surgiram os meios de reprodução

de imagens, apareceram o cinema e a fotografia, também se dando início a uma grande mudança na paisagem urbana, fazendo surgir uma cultura de imagens vinculadas ao consumo: “A modernidade é contemporânea da indústria estética da mercadoria, da construção de um mundo sensorial ilusório e das grandes intervenções arquitetônicas e urbanísticas. O final do século XIX definitivamente nubla as fronteiras, anteriormente nítidas, entre o mundo do real e o mundo do artifício.”2

A sociedade contemporânea, mais do que nunca, vive sob os efeitos de ataques constantes da mídia, que usa as imagens para vender os seus produ-tos e difundir ideias sobre comporta-mentos e modismos. Desde o início do século XX, percebendo que a imagem era um dos seus grandes aliados, os in-dustriais e as pessoas que trabalham com a divulgação de imagens, os “mar-keteiros”, procuraram o melhor ponto de exposição de seus produtos na dis-puta pelo mercado e intensificaram seus trabalhos de divulgação. Para ilustrar lembramos uma propaganda de refrigerantes que dizia o seguinte: “A imagem é tudo, a sede não é nada.” Isso é uma inverdade, pois a imagem, por si só, não diz coisa alguma; é neces-sário que por trás das imagens existam palavras comentando-as, ou pessoas capazes de interpretá-las.

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Analisando a realidade atual, Douglas Crimp, no artigo denomina-do “Arte e contemporaneidade”, afir-ma que consumidores, geralmente, são indivíduos atuantes e críticos em relação à cultura de massa; portanto, não é correto imaginar que consomem sem objetivo algum. O consumo é mui-to mais do que uma simples atividade econômica e está ligado à realização dos desejos das pessoas, aos sonhos, à identidade, à comunicação. Não po-demos vê-las como uma grande massa controlada por industriais e propagan-distas inescrupulosos.3

Mesmo sabendo que este texto não tem a intenção de aprofundar no assunto e cientes do poder de influên-cia que possui a mídia, todos os atribu-tos de ordem financeira e política que compõem a sua estrutura, caberia uma indagação: Como se dá o uso da pro-paganda para o ensino de história? De que maneira isso acontece?

Não tentaremos eliminar as dúvi-das por completo, mas jogar uma luz para que o diálogo fique aberto para discussões dessa natureza no futuro, como o fez Luiz Fernando Cerri no ar-tigo “A política, a propaganda e o ensi-no de história”. No texto o autor pro-cura analisar e exemplificar o uso da propaganda no ensino de história como forma de experiências e como veículo divulgador de conhecimento histórico levado a um grande público, cumprin-

do uma função educativa capaz de for-mar noções de história.

Cerri nos aponta três cuidados que devemos ter no uso da propaganda (ou imagem) no ensino de história;

• considerar a sua historicidade, fazendo um trabalho de acom-panhamento no tempo e espaço, levantando informações sobre a época em que foi criada, para possibilitar que os alunos façam um acompanhamento da propa-ganda em épocas diferentes e compreendam também os avan-ços tecnológicos de sua produ-ção;

• fazer referência à reflexão sobre o nosso próprio tempo, ou seja, levar os alunos a refletirem so-bre os seus hábitos de consumo, de seus familiares e amigos, para que questionem as suas próprias escolhas;

• colocar em observação o tipo de abordagem feita pela propagan-da e como ela ensina a história segundo determinados pontos de vista que vão além de ven-der um produto e difundir uma ideia.4

O objetivo de levar essas questões ao ambiente escolar é contribuir de for-ma efetiva para desenvolver no aluna-do um leitor crítico e promover ações que possam qualificar positivamente para a sua vida prática cotidiana.

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O que ocorre quando essa propa-ganda é utilizada de outras formas, como, além de objetivos financeiros, vi-sar a objetivos políticos? É o que tentou mostrar Cerri em outro artigo, “Uma escola do Brasil: o trabalho educativo das imagens da nação no ‘milagre bra-sileiro’ (1969-1973) e na comemoração dos 500 anos do descobrimento (1998-2000)”, que mostra a maneira como as imagens foram utilizadas pelo poder governamental e não governamental (Rede Globo) nesses períodos distintos, mas com objetivos semelhantes: o de participar na formação da identidade nacional pela valorização de símbolos nacionais (bandeira, hino) e imagens clássicas (quadros de Tiradentes e o Grito do Ipiranga).5

As imagens têm grande poder de disseminação de ideias, tornando-se peças chave para manipulação de sen-timentos, desejos e vontades das pes-soas. No ensino de história os alunos devem ser capacitados e incentivados a discutir e questionar este turbilhão de imagens que recebem diariamente.

A partir da segunda metade do sé-culo, houve o surgimento de novas tec-nologias vinculadas à informática, que alteraram em muito a sociedade na forma de pensar, agir, de se relacionar entre si e com a imagem, fazendo sur-gir também uma nova forma de escri-ta, virtual, que dinamiza esse processo tornando-a mais ágil e eficiente. Não se tratava apenas de uma mudança

técnica, mas de uma verdadeira evo-lução tecnológica. Annateresa Fabris, no artigo “Redefinindo o conceito de imagem”, publicado na Revista Brasi-leira de História em 1998, assinala que na era da informática os conceitos de espaço, de tempo, de memória, de co-nhecimento, de cultura, de visualidade serão redefinidos em razão da necessi-dade de se entender melhor esse even-to.6

A sociedade contemporânea, a partir da década de 1980, aumentou a dimensão visual para com o domínio da informática, o que coincidiu com o crescimento do interesse pelo estudo das imagens, como relata Ulpiano Me-nezes em seu artigo “Fontes visuais, cultura visual, história visual, balanço provisório, propostas cautelares”:

Na virada da década de 1980 dá-se não só a convergência de várias aborda-gens, interesses e disciplinas em torno do campo comum da visualidade, como também uma percepção cada vez mais ampliada, inclusive fora dos limites acadêmicos, da importância dominan-te da dimensão visual na contempora-neidade. A difusão da comunicação ele-trônica e a popularização da imagem virtual obrigam à procura de novos parâmetros e instrumentos de análise, que articulam os esforços da Sociolo-gia, Antropologia, Filosofia, Semiótica, Psicologia e Psicanálise, Comunicação, Cibernética, Ciências da Cognição. Campos que se estruturam – como os estudos de comunicação de massa e, em particular, a moda assumida prin-cipalmente nos Estados Unidos e na

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Inglaterra pelos chamados “cultural studies”, espécie de bolsa de mercado-rias do simbólico – passam a ter um papel determinante nesse processo7.

Precisaríamos nos aprofundar mais na análise para entender melhor os efeitos e as mudanças sociais cau-sadas pelo surgimento da informática na sociedade contemporânea, inclusi-ve avaliar seus efeitos na cultura esco-lar. Porém, no momento isso não será possível, principalmente pela falta de tempo e para não fugir da essência deste trabalho.

Outro meio de produção de ima-gens bastante utilizado na contempo-raneidade é a fotografia, para o que, segundo Ciro F. Cardoso, em artigo intitulado “Iconografia e história”, de 1990, faz-se necessário montar um quadro com as possibilidades metodo-lógicas disponíveis hoje em dia para a análise da iconografia como do cumento que venha trazer à luz informações e contribuições para a pesquisa histórica. Primeiro, o autor analisa a iconografia como fonte qualitativa e, depois, de for-ma quantitativa, porém não acrescenta novas contribuições ao debate sobre a questão; em seguida, comenta sobre a utilização do cinema na história, cha-mando a atenção do pesquisador para o imaginário e as ideologias dos filmes; depois, passa para a história da arte e a perspectiva semiótica aplicada à icono-grafia.8 Contudo, como referido, Cardo-

so pouco acrescenta para a metodologia da iconografia ou para uma teoria.

A fotografia tem lugar garantido no artigo “Fragmentos de memória: oralidade e visualidade na construção das trajetórias familiares”, de Ana Ma-ria Mauad, publicado em 2001, no qual analisa a relação histórica entre a ora-lidade e visualidade por meio dos rela-tos das pessoas ao observarem as fo-tografias de seus familiares. A autora chama a atenção para a inter-relação existente entre a imagem e o texto:

No que diz respeito ao significado das fotografias familiares, ficam claras as diferenças entre as referências escritas e orais em relação às imagens fotográ-ficas. O título no verso da foto, ou no álbum, pode simplesmente dizer: “ma-mãe e papai, Vassouras, Agosto, 1893”, e oferecer simplesmente um registro da época e do lugar. Já as histórias prove-nientes dos relatos pessoais, contadas a partir da apreciação de uma imagem, são sempre mais densas e complexas, indo muito além do enquadramento da foto e revelando um extracampo bas-tante significativo.9

O artigo é muito interessante por-que inova no sentido de analisar os re-latos orais das pessoas que guardam as fotografias, diferentemente da for-ma habitual em que o pesquisador as analisa, de maneira fria e distante do produtor, ou de alguém que possui uma memória a ser acionada no momento da contemplação da imagem. Além disso, a autora lembra que a imagem, por si

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só, pode nos revelar muita coisa, mas quando vem acompanhada de um tex-to ou de um relato de alguém que viveu aquela experiência, ou esteve próximo de quem a viveu, pode se tornar uma fonte valiosíssima, enriquecendo tam-bém o trabalho do pesquisador.

Nessa mesma linha, sobre as questões que envolvem a observação da imagem como fonte historiográfica, pode-se constatar que Peter Burke, em seu texto Cultura material através de imagens, procura analisar os vários tipos de imagens, comentando sobre os cuidados que devemos ter quando trabalhamos com estes tipos de fonte, mas mostrando o quanto é positivo uti-lizá-las. Burke, verificando pelo “ân-gulo positivo”, afirma que imagens re-velam situações e detalhes da cultura material que as pessoas da época não consideraram relevantes e que foram deixados de lado pelos textos usuais. As imagens também se revelam como testemunho valioso porque mostram a organização dos artefatos do passado:

Os livros nas prateleiras de bibliotecas e livrarias, por exemplo, ou os objetos exóticos arrumados em museus, ou “gabinetes de curiosidades” como eram descritos no século 17, os animais em-palhados e peixes pendurados no teto, os vasos antigos no chão, uma estatue-ta num plinto, objetos menores orga-nizados nas prateleiras e outros ainda menores em gavetas.10

As imagens revelam, por meio da disposição dos objetos, detalhes que em muitos textos não seriam contempla-dos, mas que trazem grande contribui-ção para os pesquisadores da área de história e disciplinas afins, pois podem demonstrar detalhes da influência po-lítica e da posição social das pessoas envolvidas nas imagens, o acesso que teriam à educação e à cultura nesta sociedade e por que valorizar determi-nados objetos em vez de outros.

Por outro lado, não devemos nos esquecer de que muitas vezes as ima-gens que vemos em fotografias, pintu-ras e outras não revelam diretamente o que estava acontecendo naquele am-biente, pois a paisagem muitas vezes é modificada de acordo com a intenção do artista no momento. Assim, sobre o caos, a desordem ou a harmonia e a organização do ambiente, a imagem revela o seu ponto de vista.

Por essa razão, Granet-Abisset, no artigo “O historiador e a fotogra-fia”, defende que o ato de fotografar ou se fazer fotografar nunca é uma ação neutra, pois há sempre, por trás das lentes, emoções, desejos e atitudes dos sujeitos que interferem diretamente neste ato de se produzir imagens. E é justamente por isso que se faz neces-sária a confrontação de dados e infor-mações por outras fontes orais e escri-tas na análise de imagens, visto que as conclusões produzidas continuam

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modestas e necessitando de releitura constante.11

Como podemos dizer que hoje já somos um pouco mais críticos em rela-ção à produção e utilização de ima-gens, afirmamos que o trabalho com as imagens no ensino de história é de vital importância pela qualidade e quantidade de informações que podem trazer à luz. Porém, não devemos nos esquecer de que são produtos culturais de uma sociedade, de uma época e, as-sim, são documentos que devem ser confrontados com outros tipos de fon-tes, como relatos ou comentários de pessoas próximas dos acontecimentos retratados nas imagens, para que se aumente em muito o número de dúvi-das esclarecidas sobre os fatos.

No mundo contemporâneo, em que a imagem é tão difundida e nos fascina a todos, possibilitar aos nossos alunos que sejam mais questionadores às investidas das imagens que nos atordoam é nossa missão. Portanto: Luz. Câmera. Ação!

Abstract

The image and its representations in the teaching of history

We tried in this work, to reflect on the importance of the use of the images in the work of the historian seeking theo-retical basis and references in authors who make the discussion of such do-cuments to show how can be productive

to its inclusion in education of History, with a view to the production of histo-rical knowledge in the students. It is vital reflect on their concepts, their way of production and intent to allow the students also do understand that the document imaging is produced by a given society and has intentionality and purpose to be investigated by the documentary analysis.

Key words: Images. Representations. Teaching of history.

Notas1 AUMONT, Jacques. A imagem. Trad. de Este-

la dos Santos Abreu. Campinas: Papirus, 1993. p. 77-83.

2 CARVALHO, Sérgio Lage T. A saturação do olhar e a vertigem dos sentidos. Revista USP – Dossiê Sociedade de massas e identidade, São Paulo, n. 32, dez./jan./fev. 96/97. p. 130.

3 CRIMP, Douglas. Arte e contemporaneidade. Revista USP, São Paulo, n. 40, 1998-99. p. 82.

4 CERRI, Luis Fernando. A política, a propagan-da e o ensino da história. Cadernos Cedes, Cam-pinas, v. 25, n. 67, set./dez. 2005. p. 321-323.

5 CERRI, Luis Fernando. Uma escola do Brasil: o trabalho educativo das imagens da nação no “mi-lagre brasileiro” (1969-1973) e na comemoração dos 500 anos do descobrimento (1998-2000). In: ENCONTRO NACIONAL PERSPECTIVAS DO ENSINO DE HISTÓRIA, III. Curitiba. UFPR, 1998. Anais... p. 1-20.

6 FABRIS, Annateresa. Redefinindo o conceito de imagem. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 35, 1998. p. 8.

7 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visu-ais, cultura visual, historia visual, balanço pro-visório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, v. 23, n. 45, p. 23.

8 CARDOSO, Ciro Flamarion S. Iconografia e his-tória. Papirus, n. 1, 1990. p. 9-17. Passim.

9 MAUAD, Ana Maria. Fragmentos de memória: oralidade e visualidade na construção das tra-jetórias familiares. Projeto História, São Paulo, 2001. p. 167-168.

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10 BURKE, Peter. Testemunha ocular. Bauru: Edusc, 2004. p. 120-121.

11 GRANET-ABISSET, Anne Marie. O historiador e a fotografia. Trad. de Yara Aun Khoury. Pro-jeto História, São Paulo, jun. 2002. p. 21-24.

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Resumo

Revisitando (criticamente) as leituras do golpe

Daniel de Mendonça∗

* Doutor em Ciência Política. Professor Adjunto do Instituto de Sociologia e Política e do Pro-grama de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPel.

O presente artigo tem por objetivo revi-sitar algumas das interpretações mais destacadas acerca das causas que oca-sionaram o golpe militar de 1964. As análises escolhidas para a leitura críti-ca são as de Alfred Stepan, René Drei-fuss, Argelina Figueiredo e Wanderley Guilherme dos Santos. Para cada uma delas, serão apresentados seus pontos críticos. Ao final do artigo, enfocam-se elementos que fundamentam uma nova possibilidade de compreensão do movimento militar que inaugurou um período de 21 anos de regime autoritá-rio no Brasil.

Palavras-chave: Golpe militar. Regime autoritário. Interpretações do golpe.

Em 31 de março de 1964, o gene-ral Olímpio Mourão Filho deu início ao golpe que redundaria em 21 anos de regime autoritário no Brasil. Em meio a uma crise institucional sem precedentes na história republicana, que demonstrava a quase incapacida-de de diálogo entre as forças políticas antagônicas naqueles momentos finais do regime democrático, João Goulart, praticamente sem oferecer resistência, caiu e exilou-se no Uruguai.

O fato é que, naquele longo mês de março, em razão das intensas manifes-tações, seja da esquerda, seja da direi-ta, os sujeitos políticos não tinham ho-rizontes bem construídos, nem tinham condições de avaliar quem por primeiro intentaria o golpe, quem por primeiro

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solaparia a democracia e alcançaria o poder político a partir de uma medida extremada. Essa tarefa seria obra do futuro, com mais calma, maior distân-cia dos fatos e documentos recolhidos e analisados.

Interpretações de diversos ma-tizes foram apresentadas, visando a melhor iluminar os fatos que redunda-ram numa brusca mudança de regime político. Nesse sentido, neste trabalho serão apresentadas criticamente as principais leituras realizadas acerca das causas que redundaram no golpe militar de 31 de março de 1964. Ana-lisam-se, portanto, as visões de Alfred Stepan, René Dreifuss, Argelina Fi-gueiredo e Wanderley Guilherme dos Santos. Para cada uma dessas análises são apresentados os argumentos cons-truídos que, segundo esses autores, redundaram nas causas do movimen-to militar de 1964, assim como alguns pontos de crítica a essas interpreta-ções. Ao final do artigo, enfoca-se um novo olhar sobre o movimento militar.

A interpretação de Alfred Stepan

A análise de Alfred Stepan (1975) enfoca primordialmente a lógica in-terna de funcionamento das Forças Armadas e a relação que estas estabe-lecem com o poder civil instituído. Na primeira parte de Os militares na polí-

tica, o autor preocupa-se sobremaneira em apresentar a forma como as Forças Armadas são historicamente constituí-das no Brasil, seus fundamentos insti-tucionais e a maneira pela qual se dá o recrutamento, tanto do corpo de solda-dos como de seus oficiais.

Em relação ao recrutamento, é interessante fazer uma observação, a qual serve, segundo o autor, para des-mistificar o caráter eminentemente nacional das organizações militares no Brasil. Assim, argumenta Stepan que as Forças Armadas em geral apresen-tam um caráter regionalizado de recru-tamento, tendo em vista basicamente a redução de custos com o transporte dos seus recrutas. Além disso, apesar de haver registros de um grande núme-ro de analfabetos no país na época em que foi considerada a análise do autor, as Forças Armadas tinham a preferên-cia pelo recrutamento de homens já al-fabetizados, uma vez que isso tornaria mais fácil o treinamento para o uso de equipamentos mais sofisticados. Nas palavras do autor:

Está claro que um exército organizado sobre uma base local, com um sistema exclusivo de recrutamento que prefe-re os alfabetizados aos analfabetos, os elementos urbanos aos rurais, não pode reunir soldados de diferentes setores geográficos e educacionais do Brasil, visando a uma cooperação conjunta dentro de uma instituição de orienta-ção nacional. (STEPAN, 1975, p. 18).

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Dessa forma, o tipo de recruta-mento regionalizado, urbano e de clas-se média possui, conforme Stepan, consequências importantes. A princi-pal, já referida, diz respeito ao fato de que as Forças Armadas não adquirem efetivamente um sentimento de “inte-gração nacional”, como é comumente anunciado, pois seus efetivos, tanto de soldados como de oficiais, apresentam tendências a defender interesses re-gionais.1 Esse fator contribui para se afirmar que as Forças Armadas não podem ser vistas como instituições ho-mogêneas e, sobretudo, que são insti-tuições que sofrem importantes influ-ências do cenário político contingente. Nas palavras do autor:

Contrariamente à suposição de que o Exército nacional é relativamente imune às influências regionais e locais, [...], os líderes estaduais sempre conse-guiram utilizar as polícias estaduais e a retórica do regionalismo para vencer ou neutralizar efetivamente segmen-tos inteiros do Exército nacional. Está claro, [...], que, para estudar adequa-damente o papel do Exército brasileiro ou qualquer outro, não se pode partir da premissa de que o Exército, pela sua missão e organização, é exclusiva-mente uma instituição unificada e de orientação nacional. Ao contrário, [...], existe uma necessidade permanente de avaliar as características institu-cionais dos militares dentro do quadro mais amplo do sistema político global. (STEPAN, 1975, p. 20).

O tipo de recrutamento regiona-lizado, urbano e de classe média dos

efetivos militares prepara a análise de Stepan para o que é a sua principal tese, a qual começa a ser desenvolvi-da na “Parte II” de sua obra, ou seja, o “padrão moderador” das relações entre civis e militares no Brasil no período de 1945 a 1964, o qual advém de uma dificuldade de adequar ao caso latino-americano os padrões já existentes e classificados.2

Dessa forma, como modalidade tipicamente latino-americana da re-lação entre civis e militares, na acep-ção de Stepan, o poder moderador tem como característica principal a utiliza-ção pelos civis do poder coercitivo dos militares no sentido de agirem como moderadores da atividade política,3 re-tirando o então mandatário do Poder Executivo e dando tal poder a outro grupo civil. O papel moderador dos militares, acrescenta o autor, restrin-ge-se, portanto, a derrubar governos. Como afirma Stepan:

Em tal modelo das relações entre civis e militares, estes são chamados repeti-das vezes para agir como moderadores da atividade política, mas lhe é negado sistematicamente o direito de tentar dirigir quaisquer mudanças dentro do sistema político. Longe de se constitu-írem nos “construtores da nação” ou nos “reformadores”, como são encara-dos em alguns países, no modelo mode-rador os militares têm uma tarefa que consiste essencialmente na atividade conservadora de manutenção do siste-ma. O papel dos militares, de modo ge-ral, se restringe à deposição do chefe do

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executivo e à transferência do poder político para grupos civis alternativos. A aceitação deste papel pelos militares está condicionada à sua aceitação da legitimidade e da praticabilidade das formas políticas parlamentares, bem como à constatação, por parte destes militares, de que possuem, em com-paração com os civis, uma capacidade relativamente reduzida de governar. (1975, p. 50).

Estabelecido o paradigma do pa-drão moderador, Stepan analisa-o no período que inicia em 1945 e vai até a sua dissolução em 1964. Afirma que para o dispositivo militar moderador entrar em ação é necessário que o Exe-cutivo e os grupos políticos dos civis pró-regime estejam profundamente divididos.4 Nesses momentos, os vários grupos políticos buscam se acercar do poder militar para evitar ou para arti-cular a deposição do presidente. Além do Executivo e dos grupos políticos civis pró-regime, ganham especial força nos momentos de crise política os grupos políticos classificados por Stepan como “civis antirregime”, ou seja, as facções políticas eminentemente golpistas.

Conforme Stepan, a divisão entre Executivo e civis pró-regime teve mo-mentos de extrema radicalização em três momentos do período em análi-se. Nestes três momentos, ou seja, em 1945, com a deposição de Vargas, em 1954, com a crise que redundou no sui-cídio de Vargas, e na deposição de Gou-lart em 1964, o poder moderador mi-

litar entrou em cena. A razão para os movimentos golpistas bem-sucedidos é diretamente proporcional ao grau de legitimidade do Executivo. Na visão de Stepan:

Os movimentos militares vitoriosos contra o executivo se relacionam com um baixo grau de legitimidade prévia atribuída ao executivo pelas elites polí-ticas civis participantes e um alto grau de legitimidade prévia concedida por estes mesmos civis aos militares, para desempenhar seu papel moderador através da deposição do presidente. (1975, p. 76).

O padrão moderador atribuído aos militares foi quebrado, segundo Stepan, com o golpe de 1964, momento em que as Forças Armadas deixaram de exercer o mero papel de responsá-veis pela deposição de governos cons-tituídos para efetivamente passarem à tarefa de dirigentes dos rumos polí-ticos brasileiros. A razão principal da mudança do padrão moderador está justamente na sua natureza. Para o padrão moderador funcionar é necessá-rio que as regras gerais do jogo político sejam aceitas pelos grupos políticos. Isso quer dizer que, após a deposição do presidente, os grupos políticos no-tadamente devem saber qual é o passo que deve ser dado para que a normali-dade política retorne.

Nesse sentido, em 1945, após a deposição de Vargas, quem assumiu a Presidência da República até a eleição de Eurico Gaspar Dutra foi o presiden-

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te do Supremo Tribunal Federal. Em 1954, eleições foram realizadas e o re-gime voltou à normalidade novamente. Ocorre que, conforme Stepan, o nível da crise política no período da deposi-ção de João Goulart era de tal gravi-dade que os próprios políticos acredi-tavam que o então regime político era inoperante. Isso abriu a possibilidade da quebra do padrão moderador: de simples moderadores, os militares, em 1964, passaram a exercer o papel de elite dirigente na acepção de Stepan:

Um aspecto central do papel modera-dor é que ele mantém as regras gerais do jogo político. Mas, quando estas regras são elas mesmas amplamente questionadas por muitos protagonis-tas políticos, o papel de moderador ou árbitro torna-se menos importante ou praticável. Se, por exemplo, os políticos acreditam que o regime é inoperante, torna-se muito mais difícil resolver a questão de quem deveria receber o po-der político depois da deposição do pre-sidente. Abre-se claramente o caminho para os militares assumirem um novo papel político na sociedade: o de diri-gente em vez de moderador do sistema político. Se os próprios militares acham que deve ser adotado um novo conjun-to de medidas, seu papel pode mudar de mantenedor para transformador do sistema. (1975, p. 101).

Segundo Stepan, o modelo políti-co passa a ser efetivamente inoperan-te sobretudo no período do governo de João Goulart. Quatro são as causas conjunturais que concorrem para tal resultado, a saber:

1) um crescente índice de reivindica-ções políticas e econômicas ao governo; 2) um decréscimo da capacidade ex-trativa decorrente do declínio do cres-cimento econômico; 3) um decréscimo da capacidade política de converter as reivindicações em política concreta, devido à fragmentação do apoio; e 4) a crescente retração do apoio ao próprio regime político.

Aliadas a essas causas exterio-res ao funcionamento das Forças Ar-madas, Stepan registra ainda que as revoltas dos sargentos, em setembro 1963, e a dos marinheiros, em março de 1964, também geraram a apreen-são dos oficiais superiores. Contudo, o primeiro conjunto de causas parece ser mais relevante para Stepan, revelan-do, na visão do autor, que os próprios militares naquele momento tinham dúvidas acerca da capacidade admi-nistrativa civil no exercício do poder político do Estado brasileiro. Stepan, nesse sentido, argumenta que o golpe militar que depôs Goulart e quebrou o paradigma moderador instaurado em 1945 ocorreu efetivamente pela perda da legitimidade do sistema político, que não era mais capaz de dar respos-tas positivas à crescente crise de legi-timidade pela qual passava.

A análise de Stepan tem o mérito de apresentar uma série de elementos concernentes ao funcionamento das Forças Armadas no Brasil, mormente no que é pertinente ao Exército. Apre-senta também, em relação aos momen-

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tos finais da democracia populista, notadamente no período do governo de João Goulart, vários índices sociais, econômicos, políticos e militares que demonstram o grau de instabilidade política do período. Contudo, sua aná-lise apresenta alguns pontos que de-vem ser relativizados.5

O ponto mais crítico da análise de Stepan está justamente na sua formu-lação do padrão moderador. É forçosa a sua admissão de que os militares agiam meramente como uma força que retirava presidentes para dar no-vamente o governo aos membros civis oposicionistas. Analisando o padrão moderador mais detidamente, tem-se que os militares seriam meros “ins-trumentos” da ação dos civis, ou seja, eram paradoxalmente sujeitos políti-cos que não apresentavam qualquer vontade política própria, pois eram sempre monitorados pelos civis. Isso é ainda mais contraditório no conjunto do argumento de Stepan se se conside-rar o fato de que o próprio autor toma o elemento militar como um subsistema do sistema político brasileiro, ou seja, os militares eram altamente influen-ciados pelos acontecimentos políticos. Como ser influenciado e não ter efeti-vamente uma posição política?

Outro elemento que chama a atenção diz respeito à anunciada ideia de “incapacidade” que, segundo Ste-pan, os próprios militares tinham de si próprios em relação à administração

dos negócios públicos, o que explicaria o porquê de as Forças Armadas, no pe-ríodo de 1945 a 1964, terem servido de meras moderadoras de grupos políticos golpistas para deposição de presiden-tes. Tal argumento pode ser problema-tizado, por exemplo, se for levado em consideração que foram os próprios mi-litares que lideraram o golpe de 1964, quebrando, assim, o padrão moderador. Da mesma forma, a argumentação de Stepan nesse sentido pode ser relativi-zada, se considerado o papel da Escola Superior de Guerra como núcleo civil-militar de construção de uma Doutrina de Segurança Nacional, um projeto po-lítico anticomunista para o Brasil, ou seja, uma posição política que vinha sendo construída desde a sua fundação em agosto de 1949.

Outra questão merece ser ain-da destacada como mais um ponto de crítica, a qual diz respeito à sobreva-lorização dos aspectos extrínsecos à organização e ao funcionamento das Forças Armadas, em contrapartida a uma subvalorização dos aspectos emi-nentemente organizacionais no que tange às principais causas do golpe de março de 1964. Segundo Stepan, está claro que o movimento golpista repre-sentou uma reação militar a um sis-tema político inoperante ao tempo de João Goulart, o que é, inclusive, coe-rente com a característica dos milita-res brasileiros de serem sensíveis aos acontecimentos políticos. Entretanto,

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apesar de Stepan destacar também um certo temor dos oficiais em relação à quebra da hierarquia nos quartéis, tal aspecto é subvalorizado pelo au-tor em relação às causas para a defla-gração do golpe. Em contrário a essa posição assumida por Stepan, existe uma série de documentos analisados pela literatura especializada, os quais atestam que a quebra da hierarquia e da disciplina militar não era um acon-tecimento dentre outros; ao contrário, foi fundamental esse temor para uma ação mais efetiva dos oficiais militares responsáveis pelo golpe de estado.

A análise de René Armand Dreifuss

René Dreifuss, em 1964: a con-quista do Estado – ação política, po-der e golpe de classe (1981), apresenta pesquisa amplamente documentada visando explicar a forma como os in-teresses multinacionais e associados, a partir de uma “elite orgânica”, toma-ram o Estado brasileiro com o golpe de março de 1964. Inspirado na teoria po-lítica hegemônica de Antonio Gramsci, Dreifuss utiliza suas principais catego-rias analíticas para municiar teorica-mente aquilo que, segundo o autor, os documentos e uma série de depoimen-tos de pessoas envolvidas com a trama que depôs João Goulart lhe apresenta-vam: a formação, ao longo de décadas,

de um bloco histórico multinacional e associado que disputou a hegemonia tanto no campo econômico como no campo político.

Nesse sentido, Dreifuss remonta à origem do bloco multinacional e as-sociado na década de 1930 com base em seus elementos originais, ou seja, os donos das indústrias, que dispu-tavam interesses com o bloco então dominante na economia brasileira, o qual era constituído pelos agroexpor-tadores. Segundo o autor, havia ain-da naquele momento um “estado de compromisso” entre esses dois grupos econômicos. Contudo, aos interesses industriais emergentes era necessária a constituição de uma “liderança forte” no plano econômico e, posteriormente, no âmbito do poder político. Nas suas palavras:

Apesar de a indústria e de os interes-ses agro-exportadores haverem esta-belecido um “estado de compromisso”, eles tiveram uma coexistência difícil e o período foi marcado por crises contí-nuas a partir de 1932, o que levou ao estabelecimento do Estado Novo em 1937 [...]. Os industriais perceberam que precisavam de uma liderança forte para conseguir disciplinar o esforço na-cional e para impor e administrar sa-crifícios regionais e de classe apropria-dos para a consolidação da sociedade industrial. (DREIFUSS, 1981, p. 22).

Com a ascensão do Estado Novo, os industriais nacionais conseguiram, enfim, ocupar um importante espaço

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na economia nacional, graças ao pro-jeto varguista de implantação de sóli-das bases na indústria nacional, seja no setor público, seja no privado: “O Estado Novo garantiu a supremacia econômica da burguesia industrial e moldou as bases de um bloco históri-co burguês.” (DREIFUSS, 1981, p. 22). Após o final da II Guerra, com a depo-sição de Vargas e a ascensão de Dutra à Presidência, as empresas nacionais passaram paulatinamente a se asso-ciar a grandes grupos multinacionais. A razão dessa crescente associação, segundo Dreifuss, consistiu no fato de que, nesse período, houve uma forte concentração econômica e centraliza-ção do capital, aliado a um processo de controle oligopolista do mercado. Nes-se sentido, as grandes empresas na-cionais eram, na verdade, controladas por grandes grupos multinacionais, tornando-se, assim, empresas “asso-ciadas” a esses interesses.6

Se, a partir de Vargas, os indus-triais começaram a se constituir he-gemonicamente no campo econômico, essa tendência foi ampliada ao lon-go do período democrático de 1945 a 1964. Contudo, o projeto multinacional e associado não se restringia à esfera econômica. Havia, conforme Dreifuss, uma luta ainda maior a ser travada: a conquista do Estado que estava nas mãos dos agentes do bloco populista de poder. No primeiro momento, houve a

tentativa de conciliação de interesses dos capitalistas industriais com os lí-deres políticos populistas, o que não obteve êxito. Então, houve a necessi-dade de a classe “para si” agir por sua própria conta em direção da hegemo-nia política no período:

Por um período de quase dez anos, o bloco de poder emergente visou a uma acomodação com o bloco de poder popu-lista. Ele tentou também conseguir re-formas parciais do aparelho de Estado, assegurar participação multinacional e associada na legislação e administra-ção, assim como apoiou o domínio popu-lista sobre as classes subordinadas [...]. Quando os canais político-partidários e administrativos não obtiveram êxi-to em atingir as reformas necessárias prenunciadas pelo bloco modernizan-te-conservador, e quando os interesses multinacionais e associados notaram as dificuldades crescentes em se con-seguir conter a massa popular dentro do sistema político populista, o bloco de poder emergente teve de recorrer a outros meios. (DREIFUSS, 1981, p. 106-107).

O bloco de poder emergente teve de recorrer a outros meios para, enfim, conseguir o poder do Estado brasileiro. Para tanto, na análise de Dreifuss, foi criado em fins de 19617 o complexo Ipes/Ibad, cujo objetivo primeiro era “agir contra o governo nacional-reformista de João Goulart e contra o alinhamen-to de forças sociais que apoiavam a sua administração”. (1981, p. 161). Em re-lação a este objetivo, é interessante a certeza que tinha Dreifuss acerca da

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homogeneidade8 dos intelectuais orgâ-nicos dos interesses multinacionais e associados, apesar das disputas inter-nas que o próprio autor enfoca ao longo da obra, no sentido da consecução dos objetivos de enfraquecimento do gover-no populista de Goulart. Tal homoge-neidade se relacionava ao fato de que, segundo Dreifuss, em grande parte, os interesses multinacionais e associados possuíam um projeto comum de desen-volvimento econômico, que na esfera política estava sofrendo, por parte da elite populista, sérias restrições. A ho-mogeneidade, portanto, dava-se a par-tir de uma unidade de projeto político e econômico para o Brasil:

Os fundadores do IPES do Rio e de São Paulo, o núcleo do que se tornaria uma rede nacional de militantes grupos de ação, vieram de diferentes backgroun-ds ideológicos. O que os unificava, no entanto, eram suas relações econômi-cas multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado. Esses empresários visavam a uma liderança política compatível com sua supremacia econômica e as-cendência tecnoburocrática, pois, como foi observado, “a direção do país não podia mais ser deixada somente nas mãos dos políticos”. (DREIFUSS, 1981, p. 163).

Para a consecução da pretendida tomada do Estado, o complexo Ipes/Ibad passou a manter estreitas rela-ções de trabalho para tal fim com a já existente Escola Superior de Guer-

ra (ESG). Na visão de Dreifuss, o que ocorreu foi uma ação do complexo Ipes/Ibad9 no interior das Forças Armadas, no sentido de cooptá-las para a causa dos interesses multinacionais e asso-ciados. A relação que existiu entre es-sas entidades foi tão intensa que era muito comum os militantes do Ipes serem, ao mesmo tempo, membros da ESG.10 Dreifuss busca demonstrar as ações que tais organizações tomaram em conjunto para, num primeiro mo-mento, enfraquecer o governo de João Goulart e, após, promover a tomada fi-nal do controle do Estado brasileiro.

Contudo, o que parece claro na análise de Dreifuss é que o empresa-riado multinacional e associado não era um mero partícipe de uma conspi-ração que se gestava, tendo os milita-res como os seus próceres principais. Pelo contrário: os verdadeiros artífices e próceres do movimento de março de 1964 eram os próprios empresários,11 que, com o imprescindível apoio dos militares, deram um golpe civil-militar e derrubaram, enfim, João Goulart. Os interesses do novo bloco econômico e de poder pós-março de 1964, apoiado pelos militares golpistas, formaram, assim, uma nova hegemonia política e administrativa para o Estado brasilei-ro. Na visão de Dreifuss:

Uma vez no poder, o bloco financeiro-industrial multinacional e associado, ao procurar uma redefinição dos cri-térios de inclusão/exclusão no siste-

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ma político, não limitou sua atenção somente às classes trabalhadoras. O bloco de poder multinacional e asso-ciado impôs uma nova relação entre o Estado, as classes dominantes e ele próprio, que implicava a rejeição do bloco oligárquico-industrial populista e de seus mecanismos de representação e controle de classe. O novo bloco de po-der rejeitou a ordem política anterior e procurou estabelecer um regime tecno-empresarial, protegido e apoiado pelas Forças Armadas, um regime tal que os políticos se tornariam anciliares e, no processo, perderiam seu papel central. (1981, p. 485).

Apesar de revelar importantes aspectos do complô civil-militar que depôs João Goulart, a análise de René Dreifuss apresenta pontos que mere-cem ser relativizados. O primeiro diz respeito ao excessivo essencialismo analítico de classe quando Dreifuss constrói o “bloco multinacional e asso-ciado”. Assim, ao ler a obra como um todo, tem-se a impressão de que a ação do empresariado foi unívoca, sem dis-sensões internas, em prol de um “blo-co histórico”, típico de uma análise gramsciana. Dreifuss toma a categoria analítica “classe” como uma realidade empírica absolutamente inequívoca, perfeitamente orquestrada sob a batu-ta de seu “partido”, o Ipes. É como se todos os empresários multinacionais e associados tivessem não só apoiado, mas promovido diretamente o golpe. É como se o esquema teórico produzido por Antonio Gramsci fosse plenamente

adequado para a explicação das causas e das ações que redundaram no golpe de 1964.

Dessa forma, para Dreifuss o mo-vimento que depôs Goulart não teria sido o resultado de uma conjuntura po-lítica conturbada, mas uma necessida-de histórica, uma “derrota anunciada” para a democracia. Tal afirmação se deve ao fato de que o projeto de poder dos empresários foi iniciado na década de 1930 e teve duas fases, ou objetivos distintos, que deveriam necessaria-mente ser alcançados para que cons-tituíssem, assim, um bloco histórico hegemônico. A primeira fase, conquis-tada ainda no período do Estado Novo e consolidada no governo Dutra, foi a da consolidação da hegemonia econô-mica dos interesses industriais multi-nacionais e associados, sobrepondo-se aos interesses do grupo agroexportador decadente. A partir de então, Dreifuss busca demonstrar as várias tentativas de interferência desse novo bloco eco-nômico nos governos populistas, com seus avanços e recuos, até o completo antagonismo registrado no período do governo de João Goulart.

Entretanto, uma questão deve ser levada em consideração neste parti-cular. Os governos populistas de Eurico Gaspar Dutra, Getúlio Vargas e Jusce-lino Kubitschek tiveram um tratamen-to somente en passant na análise de Dreifuss. Basicamente, esses governos

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e a ação do bloco multinacional e as-sociado foram meramente referidos em evidências históricas conhecidas, como em análises de outros autores, mas sem maiores evidências empíricas, que se-riam necessárias. O centro da análise de Dreifuss foi mesmo o governo Gou-lart. Suas evidências empíricas, basea-das em farta documentação, remontam sobremaneira ao ápice da crise política do período pré-autoritário. Nesse sen-tido, é questionável a afirmação de que o projeto de poder dos interesses mul-tinacionais e associados remontasse tão logo ao momento anterior ao da de-flagração efetiva do golpe. A análise de Dreifuss enfoca basicamente o período Goulart e visa ampliar, de forma frágil, seus efeitos para mais ou menos três décadas anteriores.

Não fica também plenamente comprovada a supremacia ideológica dos empresários em relação aos milita-res golpistas. É duvidoso afirmar que os primeiros foram efetivamente os próceres do movimento, uma vez que existem evidências empíricas, mor-mente com base em entrevistas com os militares participantes do complô, além de documentos por eles próprios produzidos, de que já arquitetavam um movimento de desestabilização e de posterior derrubada do governo Goulart independentemente da pos-sível ação dos empresários que repre-sentavam os interesses multinacionais

e associados. Os vários documentos colhidos por Dreifuss e que compõem o anexo de sua obra são indícios, mas não provas suficientes para comprovar a efetiva liderança dos empresários multinacionais e associados no episó-dio do movimento golpista de março de 1964.

A posição de Argelina Figueiredo

A análise de Argelina Figueiredo acerca das causas do golpe militar de março de 1964, centrada sobretudo na “conduta estratégica de atores políti-cos em situações históricas concretas enfatizando interesses e percepções e formulando os problemas em termos de possibilidades e escolhas” (1993, p. 29), possibilita ao leitor ter uma ideia muito interessante dos interesses e ações dos vários “atores” que disputa-vam politicamente naquele conturba-do momento da vida política nacional. Nesse sentido, a autora critica aber-tamente a posição tomada por René Dreifuss de que “a conspiração foi um empreendimento conjunto, liderado por um agente político único e unifica-do – a burguesia –, que ampliou habil-mente sua influência, dirigindo outros grupos para os objetivos por ela dese-jados”. (FIGUEIREDO, 1993, p. 173). Assim, acertadamente, Figueiredo, ao apresentar uma série de ações e posi-

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ções envolvendo uma miríade de “ato-res” políticos na trama golpista, critica Dreifuss afirmando que

é questionável a alegação de que a bur-guesia teve um papel de liderança e de coordenação na conspiração. Parece, ao contrário, que havia diversos grupos conspirando dentro das elites milita-res e civis, e, a despeito da integração entre eles, é exagerado considerar suas ações como uma conspiração única com um comando unificado. (1993, p. 174).

Para além das críticas que a auto-ra faz às mais diversas interpretações do golpe de 1964, que estão na parte in-trodutória de sua obra, um dos objetivos principais de Democracia ou reformas? é apresentar a interessante tensão que certamente havia no perío do acerca da possibilidade da continuidade do regi-me democrático combinando-o com re-formas estruturais no país. É evidente que, como afirma Figueiredo, ao final do período, nem democracia nem refor-mas permaneceram no cenário político posterior àqueles conturbados primei-ros anos da década da 1960. Nesse sen-tido, o esforço do seu trabalho é, diante da radicalidade política presente, in-vestigar “as possibilidades de sucesso de soluções político-institucionais que, dadas as condições vigentes, pudessem combinar democracia com reformas so-ciais”. (FIGUEIREDO, 1993, p. 22).

Dessa forma, conforme a autora, a tensão “democracia versus reformas” acompanha todo o período do governo

de João Goulart: desde o veto militar e a solução parlamentarista, passan-do pela possibilidade de reformas gra-duais sob o sistema parlamentar e sua derrocada antecipada, pelas frustra-das tentativas de reformas já no pre-sidencialismo (Plano Trienal e reforma agrária), pelo pedido de estado de sítio e a Frente Progressista, culminando no isolamento final de Goulart até o golpe fatal no regime democrático.

A falta de consenso sobre “pro-gramas mínimos” entre os “atores” é muito bem percebida por Figueiredo, que demonstra sobejamente, no nível parlamentar, a impossibilidade de se construir o centro político, tendo em vista a crescente radicalidade política e a posição titubeante de João Gou-lart. A análise, portanto, nessa esfe-ra, é praticamente intocável do ponto de vista da percepção e da sagacidade de reconstruir uma história tão cheia de detalhes e “atores” em luta. Nesse sentido, suas palavras finais de Demo-cracia ou reformas? parecem extrema-mente elucidativas:

[...] um outro fator contribuiu para im-pedir a realização de qualquer das duas possibilidades de combinar reforma e democracia, ou seja, a visão instrumen-tal de democracia, mantida tanto pela direita como pela esquerda. De fato, os grupos esquerdistas e pró-reformas buscavam essas reformas ainda que ao custo da democracia. Para obter as re-formas, propunham e estavam dispos-tos a apoiar soluções não democráticas.

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Aceitavam o jogo democrático somente quando fosse compatível com a refor-ma radical. A direita, por outro lado, sempre esteve pronta a quebrar as re-gras democráticas, recorrendo a essas regras apenas quando lhes eram úteis para defender interesses entrincheira-dos. Aceitavam a democracia apenas como meio que lhes possibilitava a manutenção de privilégios. Ambos os grupos subscreviam a noção de gover-no democrático apenas no que servisse às suas conveniências. Nenhum deles aceitava a incerteza inerente às regras democráticas. (FIGUEIREDO, 1993, p. 202).

A análise de Figueiredo apresen-ta, entretanto, dois pontos críticos in-timamente ligados e que, portanto, serão tratados aqui em conjunto: o pri-meiro reside justamente na sobreva-lorização da centralidade “democracia versus reformas”; o segundo resulta na subvalorização do papel dos militares no contexto geral da sua obra.

Assim, inicialmente, qualquer análise acerca do movimento golpista de 1964 tem a necessidade de dar es-pecial ênfase ao papel desempenhado pelos militares durante todo o período, simplesmente tendo em vista o razoá-vel fato de que foram eles próprios que executaram a quebra do já debilitado regime democrático. Nesse sentido, com base na análise de documentos militares produzidos no período, não parece que o tema “democracia versus reformas” foi tão central para os mili-tares golpistas. A questão que parece

mais pertinente aos próceres de 1964 não é em si os termos “democracia” ou “reformas”, mas a questão da “estabili-dade política”, para eles uma discussão bem anterior a essas.

Nesse particular, parece que a análise de Figueiredo apresenta um ponto crítico que compromete o restan-te do seu trabalho no que tange a um possível diagnóstico de desordem rea-lizado pelos militares. O ponto crítico, nesse sentido, está na forma como a autora encaminha, já no capítulo pri-meiro do seu trabalho, o desfecho da crise da renúncia de Jânio Quadros. Nesse sentido, serão tomados alguns excertos do texto de Figueiredo para ilustrar melhor a sua posição e de-monstrar algumas possíveis ambigui-dades de sua análise. Já na introdução a autora anuncia:

No Capítulo 1 [Goulart no poder: com-promisso institucional] analiso a for-mação de uma forte coalizão contra a tentativa dos ministros militares de impedir a posse de Goulart na presi-dência. Uma solução de compromisso foi alcançada com a substituição do sistema presidencialista pelo sistema parlamentarista. (1993, p. 31).

Tomando o capítulo anunciado, a autora menciona a posição da ala “le-galista” das Forças Armadas, contrá-ria ao golpe pretendido pelos ministros militares:

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Como vimos, a ala legalista das For-ças Armadas discordava fortemente da intervenção unilateral dos ministros, mas compartilhava da reserva com que os ministros encaravam os pontos de vista políticos de Goulart. Por isso, embora esse grupo considerasse ilegíti-mo o argumento de segurança nacional objetivando impedir a posse do vice-presidente, era-lhe muito conveniente uma solução intermediária que permi-tisse a manutenção dos poderes consti-tucionais de Goulart, ao mesmo tempo em que reduzia seu poder real. (1993, p. 46).

Note-se que, além de interessante para a ala “legalista” das Forças Ar-madas, que guardava uma série de re-servas em relação a Goulart, a solução parlamentarista, que envolvia a perda quase completa do poder decisório de Jango, era também interessante para o maior partido do Congresso Nacio-nal, o PSD:

Da parte do PSD havia duas outras razões para seu apoio ao regime parla-mentarista. Em primeiro lugar, sendo o partido majoritário, ele desempenha-ria um papel importante na formação do gabinete. Seria, portanto, capaz de recuperar sua influência (perdida com a vitória de Quadros) sobre a adminis-tração central e as políticas do gover-no. Mas havia também um cálculo elei-toral: empossado presidente, Goulart, que poderia vir a ser um forte candida-to presidencial em 1965, seria excluído da disputa daquela eleição. (FIGUEI-REDO, 1993, p. 47).

Além de o casuístico parlamenta-rismo ser interessante à ala “legalista”

das Forças Armadas, era também mui-to vantajoso para o PSD, que ganharia “de presente” um governo perdido elei-toralmente com a vitória de Quadros. Ademais, o ato adicional da alteração do sistema político foi também aceito pelos ministros militares, que, no iní-cio da crise, vetaram a posse Goulart, conforme mesmo demonstra Figueire-do:

Os ministros militares impuseram duas condições para a aceitação do Ato Adicional [...]. A primeira se referia à faculdade do presidente de dissolver o Congresso e promover novas eleições. [...] embora a emenda garantisse for-malmente ao presidente a prerrogati-va de dissolver o Congresso e promover eleições a fim de aglutinar apoio para políticas governamentais, a utilização efetiva desse mecanismo não era per-mitida a Goulart, pois, de acordo com o Ato Adicional, todos os mandatos legis-lativos em curso estavam garantidos [...]. A segunda medida, também talha-da para as circunstâncias específicas da crise daquele momento, era a inclu-são da vaga cláusula de “risco para a segurança nacional” entre as condições pelas quais se poderia pedir o impeach-ment do presidente. (1993, p. 49).

A aludida “solução de compro-misso” que defende Figueiredo não se trata, na verdade, de uma “solução de compromisso” entre as duas partes em disputa naquele momento, ou seja, os deputados legalistas do PTB e do PSB, Brizola e a Legalidade, de um lado e, de outro, os ministros militares gol-pistas. A dita “solução de compromis-

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so”, na prática, envolveu os ministros militares, a ala “legalista” das Forças Armadas, ambos “desconfiados” de Goulart, a UDN, o PSD, que contabili-zava, ao final da crise e com esse des-fecho, ser presenteado com o governo federal. Nessa negociação, Goulart não teve escolha: teve de aceitar a imposi-ção da “solução de compromisso”. Bri-zola ficou completamente isolado, sem o apoio inclusive de Machado Lopes, comandante do III Exército, que tam-bém acabou aceitando a solução parla-mentarista. A solução de compromisso, dessa forma, deixou de fora a esquerda política brasileira.

No texto de Argelina Figueiredo nota-se um problema ao defender que a “solução de compromisso” foi uma medida política que efetivamente evi-tou uma “ruptura institucional”. Nas palavras da autora, “formou-se, ime-diatamente, uma coalizão contra a ruptura institucional, incluindo tanto os grupos esquerdistas e nacionalistas que apoiavam as reformas de Goulart, quantos grupos e lideranças conserva-doras”. (1993, p. 38). Assim, deve-se registrar que a única coalizão que bus-cou evitar uma “ruptura institucional” foi aquela capitaneada por Leonel Bri-zola e a sua Campanha da Legalidade, que teve ainda apoio dos membros do PTB e do PSB no Congresso Nacio-nal, a qual foi completamente alijada no final da crise, pois que seus mem-

bros não concordavam com a “solução parlamentarista”, vista por eles como uma “solução de continuidade”, como um “golpe branco”, ou seja, uma rup-tura casuística das regras do jogo pro-movida inicialmente pelos ministros militares e que tivera a aquiescência do Congresso Nacional.

O problema em se afirmar que a “solução de compromisso” evitou uma “ruptura institucional”, pode ser per-cebido nas passagens a seguir cita-das. Nesse sentido, num momento do seu primeiro capítulo, é afirmado que “o desenrolar dos acontecimentos [...], não favoreceu a alternativa estrita-mente legal, e a solução parlamenta-rista prevaleceu”. (1993, p. 43). Em outro momento, Figueiredo observa: “A defesa de uma solução estritamen-te constitucional, ou seja, dar pleno poder presidencial para Goulart, per-maneceu confinada a uma minoria. No Congresso, a ala esquerda do PTB e os representantes socialistas denun-ciaram o ‘golpe branco’ implícito na lei que instituía o sistema parlamentaris-ta”. (1993, p. 47).

Com base nas duas passagens transcritas, pode-se problematizar o argumento da autora. Ao longo do seu capítulo, ela menciona ter havido uma “solução de compromisso” para garan-tir a manutenção do regime democrá-tico. Não menciona, contudo, que a “solução de compromisso” retirou ple-

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namente da mesa de negociações do impasse justamente aqueles grupos que defendiam tão-somente a estrita manutenção da ordem democrática vigente, ou seja, a simples posse de Goulart na Presidência da Repúbli-ca sob o regime presidencialista. Nas passagens, a própria autora admite que a “solução de compromisso” não foi uma “alternativa estritamente legal” ou não foi uma “solução estritamente constitucional”.

Por mais que o direito possa ge-rar exegeses amplas sobre alterações legais de qualquer natureza, é real-mente difícil, do ponto de vista jurídi-co, neste caso, afirmar que a “solução de compromisso” não passou, na ver-dade, de um golpe branco contra a de-mocracia brasileira. Neste caso especí-fico, não existe, como busca defender Figueiredo, alternativa mais ou menos legal. Tratou-se, na verdade, de uma grosseira ruptura política, um verda-deiro golpe de estado, como afirmava, completamente isolada, a esquerda po-lítica do período.

O problema na interpretação de Figueiredo assenta-se no fato de que a autora não considerou a hipótese de que os ministros militares tão-somente não queriam Goulart como presidente. Fora isso, eles não tinham um plano de tomada de poder, um projeto político plenamente construído de tomada do Estado. O golpe foi contingente, pois a

situação política gerada pela renúncia de Quadros foi também contingente, absolutamente inesperada. A autora afirma que os ministros militares bus-caram uma “saída honrosa” para a cri-se política por eles gerada. Não se pode igualmente concordar com isso, pois eles próprios participaram e opinaram sobre aspectos pontuais do ato adicio-nal que impôs o parlamentarismo a Goulart, o qual não teve alternativa a não ser a de aceitá-lo.

A análise de Wanderley Guilherme dos Santos

Em O cálculo do conflito, Wan-derley Guilherme dos Santos (2003) elabora uma criteriosa análise da crise política que acompanhou João Gou-lart ao longo de todo o seu governo. O ponto decisivo para Santos é a carac-terização de que o período enfrentou uma crescente paralisia decisória num cenário de pluralismo polarizado. Essa paralisia, que afetou as ações tanto do Executivo federal como do Poder Legis-lativo, é exaustivamente demonstrada por meio de dados empíricos que visam evidenciar tal fenômeno negativo à es-tabilidade do sistema político. São os seguintes os requisitos da paralisia de-cisória apresentados pelo autor: “Uma crise de paralisia decisória ocorre [...] quando se dão simultaneamente três condições, todas empíricas e mensurá-

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veis: fragmentação política, polariza-ção ideológica e instabilidade de coali-zões.” (SANTOS, 2003, p. 265).

A introdução da categoria “para-lisia decisória” possibilitou uma série de conclusões, sempre calcadas em fartas análises empíricas, que colocam em xeque interpretações até então cor-rentes entre os cientistas políticos que analisaram o período. Talvez a mais interessante, por ser, quem sabe, umas das mais importantes conclusões de Santos, trata-se do desafio que o autor impôs àqueles que atribuíam à crise parlamentar do período simplesmen-te a ruptura ocorrida na tradicional aliança entre o PSD e o PTB, frente política responsável pela estabilidade do governo Kubitschek. O “estado da arte” deste tipo de argumentação tra-dicional nas ciências sociais é assim apresentado por Santos:

Freqüente argumento alternativo [...] explica a crise do início da década de 60 no âmbito parlamentar pela ruptura da aliança entre o PSD e o PTB – alian-ça, outrossim, a que se atribui respon-sabilidade maior pela estabilidade dos anos de Kubitschek. Consagrada pela tradição, e bastante razoável como hipótese, impôs-me a necessidade de investigá-la mais detidamente, à guisa de prefácio a meu argumento central que a ela se opõe. (2003, p. 265).

Com base numa série de induções, Santos chega à conclusão de que o ar-gumento de a crise parlamentar ser di-retamente proporcional ao rompimen-

to do pacto entre PSD e PTB – outrora existente no governo anterior – é falho simplesmente porque nem no próprio governo Kubitschek essa aliança seria suficiente para manter a estabilidade parlamentar. Dito em outras palavras: o PSD e o PTB não tinham forças su-ficientes para gerar estabilidade no sistema. Aqui, particularmente, as conclusões de Santos são muito inte-ressantes e convincentes, uma vez que ele prova estatisticamente que eram necessários votos e apoios de outros partidos políticos, inclusive da UDN, para construir a normalidade política anterior a João Goulart. Nas suas pa-lavras:

Em suma, durante o mandato de Kubitschek, a coalizão parlamentar efetivamente responsável pela estabi-lidade do período não ficou, de forma alguma, restrita ao eixo PSD/PTB e aliados versus UDN e aliados. Ao con-trário, sem a cooperação da UDN o sistema parlamentar brasileiro teria representado ameaça bem maior para o Executivo do que se imagina tenha sido. (SANTOS, 2003, p. 281).

Santos busca explicar, portanto, de forma alternativa à tradicional tese da estabilidade parlamentar via alian-ça entre PSD e PTB – que represen-ta, segundo ele, somente uma parcela da verdade – que a quebra da referida estabilidade se deu por razões estru-turais, ou seja, o que ocorreu foi uma profunda crise no sistema como um todo, não tão-somente na aliança PSD-

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PTB, incapaz, por si só, de manter a estabilidade do mesmo. A prova apre-sentada pelo autor é de que nenhuma outra coa lizão posterior foi construída com êxito. Nesse sentido, Santos argu-menta:

Entender o que aconteceu no âmbito parlamentar como nada mais do que o resultado lógico do colapso da coali-zão PSD/PTB é não compreender to-talmente a profundidade do impasse. A crise afetou integralmente o sistema partidário e não apenas uma coalizão específica. Por esse motivo, e este pon-to é absolutamente crucial, nenhuma coalizão vitoriosa foi capaz de substi-tuir a coalizão hegemônica anterior. (2003, p. 199-200).

A ideia da “paralisia decisória” num contexto político de pluralismo polarizado ocasionou, segundo Santos, o colapso em todo o sistema político. Paralisia decisória é entendida pelo autor como resultado da impossibilida-de de os grupos políticos gerarem con-sensos mínimos, mesmo sobre questões a que, a princípio, eles próprios seriam favoráveis. Neste particular, Santos dá o exemplo dos vários projetos de lei que versavam sobre o tema da “refor-ma agrária”, encaminhados pelos três maiores partidos do período – PSD, PTB e UDN –, pois nenhum deles ob-teve aprovação pelos demais. Assim, a característica fundamental da parali-sia decisória é a impossibilidade de um projeto político, encaminhado por de-terminada corrente política, não conse-

guir produzir um mínimo consenso em relação às outras forças políticas, mes-mo que estas concordem, em tese, com o mérito do projeto, mesmo sendo sim-plesmente contrárias, mas sem possuir um projeto alternativo. É, nesse senti-do, se tomada a ideia da paralisia de-cisória, que o argumento da mera rup-tura entre PSD/PTB parece realmente inconsistente para explicar o colapso da curta experiência democrática bra-sileira do período. Conforme Santos:

[...] a paralisia se instala quando maio-rias simples – por assim dizer, a menor das maiorias que se pode obter – rejei-tam conclusivamente propostas sem que, elas próprias, maiorias simples, prefiram outro tipo de legislação. Ain-da mais decisivo, a indicar a diferença entre conceitos, em caso de paralisia decisória não é necessário nem mesmo que exista alguma maioria preferindo a manutenção do status quo. É perfei-tamente possível que os diversos sub-grupos parlamentares optem por mu-dar o status quo, sem chegar a acordo, contudo, sobre a direção da mudança. O status quo, nestes “imobilismos”, não é o resultado da escolha de qualquer maioria, mas a segunda opção de todas as maiorias de veto a propostas parti-culares. O destino de projetos de refor-ma agrária [...] exemplifica à perfeição a materialização desta virtualidade. Não obstante os três principais líderes de grupos parlamentares – PTB, PSD e UDN – aderiram à bandeira da reforma no campo, cada qual apresentou alter-nativas ao status quo diferentes umas das outras, sendo todas derrotadas e permanecendo o status quo, o qual não era a primeira opção de nenhum dos três grupos. (2003, p. 206-207).

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Ao longo do seu trabalho, San-tos consolida o potencial heurístico da “paralisia decisória” no âmbito seja do Executivo federal, seja do Congresso Nacional. Demonstra, com base numa série de dados e informações mobiliza-das, que o “imobilismo” representou uma característica perigosa, produto do radicalismo das posições dos “ato-res” políticos envolvidos e, portanto, muito explicativa em relação à crise política do período.

Entretanto, sua análise não abriga outros sujeitos políticos, notadamente os não institucionais, que certamen-te jogavam naquele momento, mesmo que de fora da arena governamental, como movimentos populares, sindica-tos, organizações de direita, organiza-ções de esquerda, grupos de militares conspiradores, etc. Santos, após densa análise sobre os reflexos institucionais da “paralisia decisória”, não apresen-ta seus reflexos, se é que efetivamente existiram e em que medida, para tais sujeitos políticos extrainstitucionais. A questão a saber é a seguinte: Foi o nível institucional que gerou a insta-bilidade no período Goulart, a par-tir da crise de paralisia decisória, ou esta instabilidade institucional foi o reflexo de uma instabilidade anterior no nível extrainstitucional? Tem-se a impressão de que Santos opta pela primeira opção, o que não parece ser propriamente adequado de se afirmar peremptoriamente.

Assim, não se pode relegar o papel exercido pelos militares golpistas como o de meros coadjuvantes, tendo em vis-ta que, efetivamente, eles deflagraram o movimento de 1964. Não se pode afir-mar com certeza que os verdadeiros próceres do regime autoritário brasilei-ro tinham preocupações institucionais tão claramente definidas, mas pode-se dizer que eles temiam a instabilidade política do país e que o imobilismo cau-sado pela paralisia decisória fosse um desses elementos a serem por eles con-siderados. Contudo, até que ponto não foi o Parlamento que mais foi instigado pela preocupação dos sujeitos políticos extrainstitucionais como os militares, por exemplo? O veto dos ministros mi-litares a Goulart em 1961 certamente foi um aviso às instituições brasileiras sobre as suas intenções e ideologia po-líticas. O período Goulart foi repleto de momentos de instabilidade, episódios que o Congresso Nacional acompanhou com extrema atenção, apresentando, em todos, uma série de posicionamen-tos de acordo com a postura política, cada vez mais radicalizada, de seus membros.

A análise de Santos é, nesse senti-do, carente em relação à busca de ele-mentos capazes de se compreender qual foi o real impacto da “crise de paralisia decisória” sobre os demais sujeitos polí-ticos e, portanto, como se operou o jogo de estímulos às ações produzidas fora

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e dentro do Parlamento e do Executivo naquela quadra. Além disso, Santos, assim como Argelina Figueiredo, che-ga à idêntica conclusão de que a crise da renúncia de Jânio Quadros teve um final que privilegiou a manutenção das instituições democráticas brasileiras,12 o que, como já se buscou aqui demons-trar, pode ser relativizado.

Considerações fi nais: novas visões do golpe

Apesar de avançarem na expli-cação das razões que redundaram no golpe de 1964, as análises acima apre-sentam importantes limitações que merecem ser consideradas. Para além das críticas a estas, está havendo uma nova série de interpretações acerca do movimento de 1964, que devem cer-tamente ser vistas com mais atenção. Nesse sentido, um exemplo presen-te dessa nova onda de interpretações do movimento militar certamente é a obra Visões do golpe, organizada por Maria Celina D’Araujo, Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro (2004). Trata-se de minucioso trabalho de en-trevistas realizadas com militares que não propriamente ocuparam destaca-das posições de comando no processo da conspiração, mas que, ao longo do regime, exerceram importantes cargos na hierarquia do Estado brasileiro, pois que foram, em sua maioria, asses-

sores diretos de líderes e de governos resultantes do movimento de 1964.

Os depoimentos colhidos em Vi-sões do golpe apresentam interpreta-ções que discordam das visões mais tradicionais acerca do movimento mi-litar. Assim, por exemplo, a grande ar-quitetura do golpe elaborada por Drei-fuss, ou seja, que atribuía um “plano geral” de ação unindo a burguesia e as Forças Armadas, num projeto político de formação de um “bloco histórico”, perde a sua força se considerados os argumentos produzidos nesta obra.

Nesse sentido, um novo olhar acerca das razões que desencadearam a conspiração militar está hodierna-mente sendo construído por interpreta-ções que frontalmente criticam a ideia, ainda dominante, de que o golpe de 1964 foi arquitetado para a concretiza-ção de um projeto militar-burguês so-lidamente construído.13 Nesse sentido, a presente passagem da introdução de Visões do golpe parece bem ilustrativa:

Os depoentes [os militares entrevista-dos] concordam que não havia um pro-jeto de governo entre os vencedores: o movimento foi contra, e não a favor de algo. A questão imediata, segundo a maioria dos relatos, era tirar Jango e fazer uma “limpeza” nas instituições. A maneira de fazê-lo seria pensada e es-truturada a posteriori. Só depois de vi-torioso o movimento é que foi elaborado um “ideário”, vinculado ao tenentismo da década de 20 e tributário da índole democrática (leia-se anticomunista) da sociedade brasileira. (2004, p. 18).

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Dessa forma, na obra são atribuí-das pelos entrevistados, duas causas principais e intimamente ligadas para a eclosão do movimento: 1) o medo do comunismo; 2) a infiltração desta ideo-logia nas Forças Armadas, o que pro-vocaria a corrosão de suas estruturas mais sagradas, como a hierarquia e a disciplina. Segundo seus autores:

A situação tornou-se intolerável para os militares quando “a subversão inva-diu a caserna”, atingindo as Forças Ar-madas em seus dois fundamentos bá-sicos: a hierarquia e a disciplina. Esta é apresentada como uma das razões mais importantes para o golpe, para alguns, por si só decisiva e suficiente para explicá-lo. Outras razões mencio-nadas com freqüência pelos estudiosos, como a inflação, as greves e a corrup-ção, são elementos acessórios. Alguns depoentes chegam a afirmar que, caso Jango tivesse dado sinais claros de que não compactuaria com a quebra da hie-rarquia e da disciplina, suas chances de continuar no governo seriam boas, e a correlação de forças não se definiria em favor dos golpistas.A revolta dos sargentos em 1963, dos marinheiros e fuzileiros navais em março de 1964, são dois eventos sem-pre citados pelos depoentes, ao lado da presença de Jango no comício da Central do Brasil (ou “das reformas”) e no jantar oferecido pelos sargentos no Automóvel Club. Com essa seqüência de acontecimentos, a maioria indecisa ou neutra da oficialidade definiu-se a favor do golpe e passou a procurar le-gitimar sua ação através do apoio de algum general que tivesse expressão no seu meio. (2004, p. 18).

Como foi visto nas seções ante-riores, o golpe foi explicado de múl-tiplas formas, muitas vezes a partir de grandes planos conspiratórios, ar-quitetados com muita acuidade por seus executores. Contudo, quando se dá a palavra aos próprios militares que vivenciaram aqueles conturbados momentos da vida nacional, tem-se a impressão de que aqueles eventos não tiveram a batuta de um maestro que comandava uma orquestra completa e afinada. Pelo contrário, muitos mili-tares importantes em Visões do golpe atribuem ao movimento de 1964 um arranjo exe cutado até de maneira mui-to desafinada. A impressão que se tem ao ler a série de depoimentos é que to-dos sabiam o início da música, mas não tinham a menor ideia de como acaba-ria. Dito em outras palavras: sabiam muito bem o que não queriam (Goulart no governo), mas pouco se podia dizer ou prever acerca do que aconteceria após a sua saída.

Dessas duas músicas desen-contradas, a primeira tocada por in-telectuais, por exemplo, como René Dreifuss, a segunda executada pelos entrevistados de Visões do golpe, qual delas soa melhor? Se se optar pela ver-são dos militares, que atribuem como causas suficientes do movimento o re-ceio do comunismo e a quebra da hie-rarquia e da disciplina nos quartéis, então o golpe de 1964 tem uma expli-

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cação extremamente simples. Inflação, paralisia decisória, multinacionais, in-fluência norte-americana etc., razões sobejamente usadas pelos intelectuais brasileiros e estrangeiros ao longo de décadas parecem, diante dos simples argumentos produzidos pelos milita-res, uma série de explicações que, de essenciais no passado, passam à cate-goria de meras conjecturas refutadas por aqueles que estavam nos ambien-tes do poder. Nesse sentido, revisitar as leituras consagradas do golpe ainda parece ser uma tarefa salutar diante de um episódio em nossa história polí-tica recente que merece ser mais bem explicado.

Abstract

Reviewing the readings of the coup

the aim of the present article is to re-visit some of the most important in-terpretations concerning the causes of Brazilian coup d’état in 1964. The interpretations that have been chosen for the critical reading are from Al-fred Stepan, René Dreifuss, Argelina Figueiredo, and Wanderley Guilherme dos Santos. For each one of them, their critical points will be presented. In the end of the article, it will be presented elements for a new possibility of un-derstanding of the military movement that inaugurated a period of 21 years of authoritarian regime in Brazil.

Key words: Coup d’état. Authoritarian regime. Interpretation of Brazilian coup d’état.

Notas1 Neste ponto, é interessante apontar que, segun-

do Stepan, a resistência do III Exército, locali-zado no Rio Grande do Sul, em relação ao veto dos ministros militares à posse de João Goulart logo após a renúncia de Jânio Quadros, foi o que sustentou a Campanha da Legalidade, liderada pelo então governador Leonel Brizola. Conforme o autor, “em 1961, após a renúncia do presiden-te Jânio Quadros, os três ministros militares, tentaram impedir que o vice-presidente João Goulart assumisse o cargo vago. Goulart era gaúcho e seu violento cunhado, Leonel Brizola, governava o Rio Grande do Sul. Com o apoio da polícia estadual e do povo, Brizola se declarou em total oposição aos ministros das Forças Ar-madas. O comandante do III Exército, no Esta-do, de início não tomou posição no conflito, mas, com o aumento da resistência civil, a lealdade de suas tropas vacilou. Ele enviou um telegrama aos ministros militares, declarando que não iria seguir suas ordens, pois isso poderia precipitar uma guerra civil. Os ministros militares capitu-laram, porque as outras unidades se recusaram a marchar contra o III Exército, alegando que a opinião pública estava abertamente contra os ministros”. (1975, p. 20).

2 Segundo Stepan (1975), os padrões até então existentes das relações entre civis e militares são os modelos aristocrático, comunista, liberal e profissional. O modelo aristocrático resulta da condição assumida pelos militares de que, antes de serem propriamente militares, são membros da aristocracia e, portanto, seguem os padrões e auferem os benefícios das elites dirigentes do Estado aristocrático. O modelo comunista expli-ca a integração entre civis e militares, tendo em vista que os militares são tidos como, antes de propriamente militares, membros do partido co-munista, ou seja, cidadãos politicamente ativos. Já no modelo liberal, tendo em vista a noção do conflito nas relações entre civis e militares, as elites políticas procuram evitar ao máximo a le-gitimidade dos militares para agir na esfera po-lítica. Busca-se a neutralização dos mesmos, e uma forma encontrada para tanto é a manuten-ção de um corpo reduzido no exército permanen-te. Por fim, o modelo profissional busca adequar os militares ao controle civil do Estado, fazendo com que os primeiros tenham uma presença so-cial eminentemente profissional e autônoma; os militares são vistos e se veem como indiferentes à lógica política.

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3 Nesse sentido, é importante a caracterização dos militares como parte também integrante do sistema político, como observa o autor: “Minha argumentação principal é que a instituição mili-tar não é um fator autônomo, mas deve ser pen-sada como um subsistema que reage a mudan-ças no conjunto do sistema político.” (STEPAN, 1975, p. 101).

4 Alfred Stepan apresenta, basicamente, três gru-pos políticos em disputa no Brasil entre 1945 e 1964: O primeiro deles é o próprio Executivo, ou seja, o grupo que representa a situação gover-nista e que exerce a Presidência da República: o segundo é chamado de “civis pró-regime”, ou seja, “elementos do Congresso, governadores, líderes políticos, editores de jornais e eleitores que geralmente aceitam o quadro constitucional e apóiam o regime existente, mas que podem ou não apoiar o governo em períodos específicos” (1975, p. 57); o último grupo é o formado pelos civis anti-regime, ou seja, “aqueles protagonis-tas políticos que procuram mudar as regras básicas de todo o sistema político e alterar os princípios de autoridade e legitimidade”. (1975, p. 56).

5 Além das críticas produzidas neste capítulo a propósito da análise de Stepan, é conveniente ainda a leitura do artigo de João Quartim de Moraes “Alfred Stepan e o mito do poder mode-rador”, no qual são apresentadas outras e mais detalhadas críticas ao padrão moderador de Stepan. (MORAES, 1985).

6 Nas palavras de Dreifuss, “as grandes empresas ‘nacionais’ e os grupos que as controlavam eram predominantemente multinacionais, firme-mente interligadas através de uma dependên-cia tecnológica ou financeiramente integrados a grupos multinacionais. A grande corporação ‘nacional’ era principalmente uma empresa as-sociada. Esse processo de internacionalização seria estendido ainda mais depois de 1964”. (1981, p. 51).

7 Conforme Dreifuss, a data exata de fundação do Ipes é 29 de novembro de 1961.

8 Nas palavras do autor, “é também necessário compreender o ‘grau de homogeneidade, consci-ência e organização’ atingido pelos intelectuais orgânicos dos interesses econômicos multina-cionais e associados. Esse momento de homoge-neidade, consciência e organização no processo traduziu-se pela formação de uma elite orgânica centrada na frente de ação do complexo IPES/IBAD”. (DREIFUSS, 1981, p. 161).

9 Interessante informar que o Ibad teve sua exis-tência formal somente até outubro de 1962. “O IBAD foi fechado por haver sido considerado culpado de corrupção política.” (DREIFUSS, 1981, p. 207).

10 Segundo o autor, “houve menção anterior ao fato de que o núcleo do grupo da ESG estava integrado ao complexo IPES/IBAD e seus mem-bros principais eram ao mesmo tempo líderes e ativistas do IPES”. (DREIFUSS, 1981, p. 369).

11 Sobre os empresários serem os principais res-ponsáveis pela deposição de João Goulart, veja-se a seguinte passagem de Dreifuss: “A autonomia política e a iniciativa demonstrada pelos empresários provam que eles não eram meros suportes (Traeger) do processo de domi-nação, mas, sim, forças politizadas que fizeram da conquista do poder estatal a finalidade de seu planejamento político e de sua ação.” (1981, p. 484).

12 Nas palavras de Santos, “em fins de 1961, a oposição militar não fora suficientemente for-te para impedir que João Goulart ocupasse a Presidência da República após a renúncia de Jânio Quadros”. Após essa afirmação, Santos, tomando somente a posse do presidente como fator suficiente para caracterizar a normalidade democrática, conclui com a seguinte indagação: “Como poderia o cenário político mudar tanto, a ponto de os oponentes de Goulart serem capazes de forçar a sua deposição em lapso de tempo in-ferior a três anos?” (2003, p. 170).

13 Neste ponto é interessante a seguinte passagem de Visões do golpe: “A opinião militar dominan-te define o golpe como o resultado de ações dis-persas e isoladas, embaladas, no entanto, pelo clima de inquietação e incertezas que invadiu a corporação. Esta visão se contrapõe à interpre-tação predominante entre os analistas que até agora examinaram o episódio. Para estes, o gol-pe teria sido produto de amplo e bem-elaborado plano conspiratório que envolveu não apenas o empresariado nacional e os militares, mas tam-bém forças econômicas multinacionais.” (2004, p. 16).

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Bibliografi a

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FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. Democra-cia ou reformas?: alternativas democráticas à crise política (1961-1964). São Paulo: Paz e Terra, 1993.

MORAES, João Quartim de. “Alfred Stepan e o mito do poder moderador”. Filosofia e política 2. Campinas/Porto Alegre: L&PM, 1985. p. 163-199.

SANTOS, Wanderley Guilherme. O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Editora UFMG/Iuperj, 2003.

STEPAN, Alfred. Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro.

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O sertão, Os sertões: a construção da região Nordeste do Brasil a

partir da interface entre história e literatura

Tiago Bonato*

Resumo

Muito do que se tem hoje no imaginá-rio a respeito do sertão do Nordeste brasileiro deve-se à grande obra – fic-cional – de Euclides da Cunha, Os ser-tões. Publicada no início do século XX, a obra tem caráter quase científico, ligado à tradição do romance natura-lista. A construção de uma paisagem e de um tipo de personagem, o sertanejo, é muito forte na obra. Mais de um sé-culo antes, entretanto, viajantes natu-ralistas luso-brasileiros percorriam a mesma região em expedições de cunho científico, produzindo relatos a res-peito do que viam. No final do período colonial, ainda outro grupo de natura-listas, desta vez de outras nações da Europa e mais ligados ao romantismo, também construiu o sertão nordestino

com base em seus relatos de viagem. Todas essas narrativas, mesmo que se tenda a classificá-las como ficcionais ou reais, trazem à tona o problema da realidade histórica. Qual relato, afinal, é mais fiel à região observada?

Palavras-chave: Sertão. Construção de paisagem. Relatos de viagem.

* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Bolsista CNPq.

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De certa maneira, o pensar his-tórico é uma infindável busca, ora por aproximações e semelhanças, ora por distanciamentos e particularidades, tanto com outras áreas do conhecimen-to quanto dentro da própria história. Quase ao mesmo tempo em que se bus-cam afinidades para explicar diferen-tes processos históricos e reuni-los sob uma mesma metodologia, percebem-se características idiossincráticas que de-mandam maiores cuidados na análise.

Este artigo pretende percorrer essa linha em uma região fronteiriça de aproximações e particularidades entre história e literatura. Esses dois campos do conhecimento “de longa data compartilham a narrativa e o contar, escrever e descrever ou melhor, (re)construir e (re)interpretar por meio da escrita eventos ‘reais’ e/ou ‘imagi-nários’, na perspectiva da garantia do seu registro e perpetuidade”.1

Fazendo o percurso dessa relação entre a história e a literatura dentro da epistemologia histórica, mesmo que de maneira rápida e, por isso mesmo, com o risco de superficialidade, já co-meçamos a visualizar a complexidade dessa interface. Na antiga tradição grega, mesmo que Clio fosse a musa da história e, na literatura, Melpômene e Tália representassem a tragédia e a co-média, respectivamente, na prática as disciplinas se misturavam de maneira indissociável. A história de determina-

do povo ou tradição era contada e não se tinha, na verdade, a distinção entre o que hoje denominamos “real” e “fic-tício”. A tradição oral já dispunha de estratégias para obter o que Naxara chamou acima de “registro e perpetui-dade”.

Segundo Alfred Döblin, a tradição oral “facilita e empobrece o conteúdo, resultando num abreviamento da nar-rativa, para que as principais coisas sejam mais facilmente retidas. Assim, só o que era mais digno de nota era guardado”.2 Ainda conforme o autor, as antigas narrativas épicas foram uma etapa no desenvolvimento dos roman-ces modernos. Essa arte de narrativa relatava fenômenos que efetivamente haviam acontecido e era uma forma de comunicar, preservar e divulgar esses fenômenos. Apenas no século XIX his-tória e literatura se desvencilharam no que diz respeito à intenção de escrever uma ficção, ou à já famosa tentativa de mostrar o que realmente aconteceu. Antes disso, segundo Dominick Laca-pra, “o romance e a narrativa histórica exibiam paralelos notáveis. Mestres da narrativa poderiam ser encontra-dos em ambas as áreas do discurso em prosa. Historiadores como Michelet, Carlyle e Macaulay eram grandes nar-radores e deviam mesmo competir por audiência com romancistas”.3

Com o historicismo, a história afastou-se da literatura e também da

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própria filosofia da história. Ao longo do século XIX, descobriram-se e desen-volveram-se princípios científicos posi-tivistas para a construção da história,4 separando definitivamente a antiga tradição de história como gênero literá-rio (romance, resgate de memória) e a história dita “científica”. A ironia desse processo está no fato de que o histori-cismo, que seria tão criticado no início do século XX pela Escola de Annales, foi a corrente que rompeu com a tradi-ção história/literatura e buscou dar ao processo de escrita da história um ca-ráter mais científico. Todavia, mesmo que dessa perspectiva os estudiosos dos Annales estivessem tomando como base os pressupostos “científicos” do historicismo, o objetivo de Marc Bloch e seus alunos era outro: a tentativa de se obter uma história total ou tota-lizante, de caráter positivista, por in-termédio de fontes seriais que trariam para o campo historiográfico o caráter científico que a disciplina história ne-cessitava para se firmar como ciência.

A proposta de levar a luz da ciên cia ao campo historiográfico, en-tretanto, traz problemas em sua gê-nese. A história não tem as mesmas prerrogativas das outras ciências ou modelos de cientificidade; difere de maneira epistemológica, uma vez que é a única suposta ciência preocupada com fenômenos passados e não repetí-veis – as ciências exatas preocupam-se,

ao contrário, em montar experimen-tos seriais para descobrir e mapear comportamentos e reações futuras. O máximo que a história como ciência pode produzir é um relato pouco con-fiável do passado, beirando o ficcional. O exemplo de historiador para as pri-meiras gerações da escola de Annales é Michelet, o pesquisador que vai aos arquivos em busca da documentação. Paradoxalmente, esse autor também é uma das maiores figuras do subjetivo espírito romântico, longe do ideal de objetividade buscado pela cientificida-de dos Annales.

A escrita da história científica tente a tirar o narrador de cena e apre-sentar os fatos e suas interpretações, na busca pela história total. Para Wal-ter Benjamin, o fim da narrativa está associado também ao aumento de in-formações:

A informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela pre-cisa ser compreensível “em si e para si”. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam freqüentemen-te ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com o espírito da narrati-va. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.5

Döblin, em artigo já citado, busca a gênese da narrativa justa-mente no antigo épico, num tempo em que a transmissão e a quanti-

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dade de informações eram diferen-tes. Para Döblin, “a epopéia era sobretudo a arte de comunicar, de preservar e de divulgar os fenôme-nos efetivamente ocorridos. Era o tempo em que não havia jornais e revistas”.6

A multiplicidade de objetos de estudo derivado dessa perspectiva im-plodiu o projeto e, segundo alguns au-tores – entre eles Dominick Lacapra –, é o terreno fértil para o movimento de ressurgimento da narrativa. Esse fenô-meno está ligado não a um superficial resgate de memória, mas muito mais à literatura e ao romance – à relação entre ciência e arte. Lawrence Stone, em artigo publicado no início da déca-da de 1990 na Revista de História Uni-camp, no conhecido “Dossiê História e narrativa”, responde explicitamente a Lacapra a respeito do ressurgimento da narrativa. Segundo Stone, não é a mesma narrativa que ressurge. A an-tiga narração remetia à escrita da his-tória, que, por meio da prática política ou da própria narração em si, trouxe a ideia de evolução da história, de senti-do. Na conclusão de seu artigo, Stone destaca que nenhuma palavra – como narrativa – é capaz, sozinha, de resu-mir todas as mudanças que acontecem

quanto à questão central na história. [São mudanças] nas fontes básicas de influencia [...], no tema [...], na meto-dologia [...], na organização [...], na conceitualização [...]. Essas mudanças

multifacetadas de conteúdo, objetivo, método... e estilo de escrever história, que estão ocorrendo todas ao mesmo tempo, tem claras afinidades eletivas entre si. Todas se encaixam perfeita-mente.7

A “velha” história do século XIX, com seu encadeamento de fatos positi-vista, não está de volta. O que se tem de novo é o abandono da ideia de ofere-cer uma explicação científica coerente sobre o passado.

Nesse novo campo de discussão medotológica, história e literatura vol-taram a se aproximar e uma vez mais a linha fronteiriça das disciplinas ten-de a se dissolver, em vários aspectos. Aqui se insere a presente pesquisa, como já dito, justamente indo e vindo na interseção das duas disciplinas, no que diz respeito ao método e às fontes para se pensar a construção do sertão do Nordeste brasileiro. A intrincada relação história/literatura ganha ain-da mais complexidade quando se tra-balha com “relatos de viagem”, que são considerados, de alguma maneira, como uma manifestação literária e, de outro lado, um romance extremamente naturalista e histórico, Os sertões, de Euclides da Cunha, muitas vezes até mesmo catalogado como “história do Brasil”. Dessa forma, tem-se a inver-são das fontes: o documento histórico – visto até pouco tempo como “legítimo” – é visto como literatura e o romance literário, como fonte histórica. E aqui

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temos mais uma vez o infindável ir e vir da ciência.

Se, de um lado, procura-se tomar o romance como fonte para a pesquisa histórica, depois que esse uso é legiti-mado, busca-se o oposto: Alfred Döblin, em artigo já citado, coloca em sequên-cia em seu texto dois subtítulos mos-trando a realidade contida no romance e, em seguida, afirma que “o romance histórico é, antes de tudo, romance e não história”, alertando o leitor para os cuidados que devem ser tomados ao se analisar um romance como fonte his-tórica.8 O mesmo cuidado metodológico deve ser tomado no que diz respeito ao documento.

As reflexões acerca da legitimida-de do documento certamente tiveram grande alcance a partir do conceito de “do cumento-monumento” de Jacques Le Goff.9 Entretanto, mesmo com o aprofundamento das discussões, mui-to ainda se produz no campo historio-gráfico na perspectiva da total legiti-midade da documentação. A reflexão continua válida. Lacapra afirma que “com certeza haverá mesmo dificulda-des no tratamento de qualquer docu-mento tomado pura e simplesmente como fonte para fatos do passado, em vez de considerá-lo um texto que tam-bém suplementa ou reconstrói o que ele ‘representa’”.10

Peter Burke também traz a dis-cussão sobre os documentos quando usados como fonte na construção de

um imaginário. No capítulo “Estereóti-pos do outro” do seu trabalho Testemu-nha ocular, Burke vai ainda mais lon-ge, afirmando que mesmo documen tos produzidos por um jornalismo etno-gráfico, considerados objetivos e veros-símeis, mostram, na verdade, imagens de tipos e não indivíduos, no sentido de que apenas determinados aspectos típicos de certa sociedade são mostra-dos, desprezando os indivíduos em si: “Aquilo que é considerado típico de uma determinada cultura pode ser o resultado de anos de observação, mas também pode ser fruto de uma leitura apressada ou de puro preconceito.”11

Com base nessas reflexões, pre-tendo colocar aqui o problema da cons-trução de um sertão da região do atual Nordeste utilizando fontes literárias e históricas. O romance já citado, Os ser-tões, de Euclides da Cunha, é um gran-de clássico da literatura brasileira, que, quando lançado, em 1902, causou um grande impacto na sociedade. O re-sultado foi que num curto período de 15 meses foram publicadas três edições do livro.12 O trabalho trata da expedi-ção militar ao Arraial de Canudos, no final do século XIX. O autor, Euclides da Cunha, era jornalista e fazia parte da expedição, por isso o caráter extre-mamente descritivo dos detalhes do livro. Segundo Rogério Cordeiro, exis-tem três forças que exercem equilíbrio no texto de Euclides da Cunha: conhe-cimento técnico-científico, experiência

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histórico-filosófica e a arte de escrever com estilo. Dessa maneira, Cordeiro percebe que o objetivo de Euclides foi o de escrever uma “obra de arte total”.

Para Márcia Naxara, em artigo já citado, Os sertões se insere no que chama de “romance de formação” ou “fundação”, o qual inaugurou uma “li-nha de interpretação que buscou dotar a nação não somente de mitos funda-dores, mas reter hábitos, costumes, vivências, histórias”.13 A autora pensa no seu problema de pesquisa, expresso também em sua tese de doutoramen-to, sobre um “sentido explicativo para o Brasil do século XIX”.14 Entretanto, sua reflexão serve quando tomamos o relato de Euclides como fator consti-tuinte de um imaginário a respeito da região, no caso, do sertão nordestino. Essa mesma linha de “romances de formação”, ou construtores de um ima-ginário, se pudermos chamar assim, vai, segundo Naxara, desde Os sertões até o Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.

Talvez a questão central da obra de Euclides para a problemática que tratamos aqui seja a descrição, ou in-terpretação, ou, ainda, construção da natureza. Coloco aqui esses termos para uma primeira reflexão, do que será tratado mais adiante, sobre toda “descrição” de uma paisagem ser tam-bém uma “construção”, na medida em que o autor sempre interpreta o que

está vendo segundo categorias de clas-sificação próprias e passa para o papel aquilo que viu. Cada um olha a paisa-gem com uma “lente” diferente – sendo cada lente uma escola de pensamento ou um tipo de interesse. Dentro des-sa lógica, os resultados são diversos e uma simples descrição da natureza não existe.

Existem dois aspectos importan-tes nessa questão: a natureza produz sua forma, independente do homem – quando se manifesta aos olhos hu-manos ela já é natureza; segundo, a maneira de expressar essa forma in-terna deveria ser por meio de uma lin-guagem que permitisse a manifestação plena da natureza.15

A natureza como uma forma pre-viamente pronta, que inclusive influen-cia fatores externos a ela, fica visível na primeira das três grandes partes do livro, “A terra” – o livro compõe-se ainda de mais duas partes: “O homem” e “A luta”. A paisagem do sertão árido dá forma também ao tipo de vida e, até mesmo, à personalidade do sertanejo que ali vive. A natureza é retratada como um ser orgânico, dotado de força e coesão internas. A descrição da paisa-gem é rica em detalhes e feita de forma semelhante a um tratado de geografia física. Como fonte, Cunha utiliza re-correntemente relatos de cronistas e viajantes-naturalistas que passaram pela região. Todas as referências a via-

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jantes, entretanto, são de naturalistas estrangeiros que estiveram ou escreve-ram sobre Brasil durante o século XIX, entre eles Saint-Hillaire, Humboldt, Spix, Martius e Henry Koster.

Deixados de lado por Euclides da Cunha, existe um grande volume de relatos sobre a região escritos por via-jantes do século anterior. Realizando ou apenas inspirados nas “viagens fi-losóficas” organizadas pela Coroa por-tuguesa desde meados do século XVIII, muitos naturalistas empreenderam expedições no sertão do Nordeste da América portuguesa, a fim de apre-sentar seus relatos sobre a utilidade da natureza, as produções, os povos, a fauna e a flora brasileira. Por meio desse material, podemos fazer algu-mas reflexões a respeito da construção do sertão, não só pela literatura clássi-ca a respeito, mas também com fontes históricas escritas mais de meio século antes das utilizadas pelo próprio Eu-clides.

O conjunto dessas fontes reúne, grosso modo, diários de viagem, nos quais eram anotados sistematicamen-te todos os passos do cientista, dia após dia, e memórias, estudos sobre temas específicos. Além desses materiais, que eram remetidos à Coroa como relatório das expedições, é possível encontrar um grande volume de correspondên-cias interligando o alto escalão admi-nistrativo português, os governadores

e demais funcionários da Coroa envol-vidos no processo e também os natura-listas.

Tratados como uma representação simbólica do que o autor viu no decor-rer de sua expedição, tanto os relatos e os diários quanto Os sertões mostram sempre a construção de uma deter-minada paisagem. Sejam os cronistas medievais, os primeiros portugueses em viagens ao Oriente, os cientistas dos séculos XVIII e XIX que visitaram o Brasil, seja o próprio jornalista Eu-clides da Cunha – que esteve em Ca-nudos –, a escrita dos relatos remonta sempre a uma seleção de fatos e torna o todo da paisagem redutível à escrita. A construção da paisagem, para Fran-cisco Carlos Teixeira da Silva, é um conjunto de múltiplas variáveis, den-tro de um processo histórico e sempre de longa duração. O enlace das múlti-plas variáveis abarca também a inter-ferência humana, já que, para o autor, não existem paisagens naturais. Essa definição é apenas uma utopia, já que “tudo somado [as pequenas atividades humanas dentro de uma floresta] im-plicava que a floresta já não era, desde há muito, natural. Assim, a distinção formal entre paisagem natural e pai-sagem cultural mostra-se agora, bas-tante prejudicial a um amplo entendi-mento da relação homem/natureza”.16

A história da paisagem possui essa longa duração justamente por ser

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influenciada por toda pequena ativi-dade humana. Essa negação às paisa-gens puramente naturais – represen-tadas como ambientes e territórios que não receberam influência humana – é também o tema central do trabalho de Simon Schama. Em Paisagem e memó-ria, o autor deixa claro que

paisagem é cultura antes de ser na-tureza; um constructo de imaginação projetado sobre mata, água, rocha. Tal é o argumento desse livro. No entanto, cabe também reconhecer que, quando uma determinada idéia de paisagem, um mito, uma visão se forma num lu-gar concreto, ela mistura categorias, torna as metáforas mais reais que seus referentes, torna-se de fato parte do ce-nário.17

A paisagem é posterior à cultura, no sentido de percebida pelo homem. Não se pode afirmar a existência da na-tureza antes de cultura, uma vez que a concepção de um espaço dito “nature-za” passa pela percepção do homem em relação a seu referente e, dessa forma, já está sujeita à cultura. O referente está tão colado ao signo que já não é possível separá-los. Mais do que isso, as categorias se misturam, conforme o trecho acima citado. Segundo Ray-mond Williams, o homem sempre ob-servou rios, montanhas, matas, mas, em dado momento, houve a consciên-cia de que se viam tais elementos.18 Entretanto, a questão pode estar mais ligada à concepção do signo, do que à consciência humana do olhar. Todos os

elementos naturais descritos pelo au-tor – rios, montanhas matas – existiam de alguma forma, mas não como rios, montanhas e matas, já que essa é uma concepção do homem a respeito. Só a partir do momento em que a cultura humana interpretou o espaço é que a paisagem passou a existir. Isso vai de acordo com Schama, que analisa como cada sociedade percebe de maneira di-ferente uma mesma paisagem.

E, se a concepção de uma paisa-gem é parte de um processo, que passa pela cultura e civilidade humana, a re-presentação da mesma paisagem, mais ainda, pode ser considerada como parte desse processo. A própria dialética que existe entre as duas mostra a interde-pendência do processo. Concebe-se e se representa a paisagem, representação que interfere na concepção, e assim por diante. A representação da paisagem é feita a partir da tríade real-percebido-imaginário, ou, pode-se pensar ainda, por meio da experiência, percepção e representação. A paisagem é o proces-so perceptivo que se opera no olhar. Não é a mão que pinta, mas o olho que seleciona, enquadra, foca, edita, que transforma land into landscape.19

Ana Luiza Fayat Sallas completa a conceitualização de paisagem dizen-do que se apresenta “como uma delimi-tação, a captura visual momentânea de um pedaço isolado da natureza. Pode ser considerada ainda natureza, nela

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representada”. A limitação da paisa-gem opera um afastamento da noção de natureza. Ainda segundo Sallas,

a paisagem é uma imagem cultural, um meio pictórico de representar, es-truturar ou simbolizar o mundo. Ela pode ser representada através de vá-rios tipos de materiais, pela pintura ou através da escrita. Assim, o significado verbal, visual ou construído da pai-sagem possui uma história de trocas complexas entre esses elementos.20

No caso do estudo de relatos de viagem, a representação é a narração da viagem e traz à tona o problema do narrador, nesse caso, o próprio viajan-te. José Roberto Braga Portella, tra-tando do assunto, aponta que

o narrador constrói a si mesmo como figura de sujeito de enunciação, isto é, atribui-se um duplo papel: o de media-dor e o de operador. Sua consciência age em dois níveis, no da interpretação da realidade e no da produção de um novo real, isto é, de um real só concebí-vel enquanto transcrição do que teria sido percebido pelos sentidos.21

O narrador seleciona e tem o con-trole, mesmo que não conscientemen-te, do que será escrito e, consequente-mente, do que será lido e apreendido pelos leitores. A leitura das narrativas de viagem constrói no leitor o itinerá-rio e as aventuras vividas pelo viajan-te, mas não de maneira total ou real.22 Bourguet também aponta para o fato de que o diário, onde deveriam ser des-critas todas as atividades do dia, si-multaneamente à própria viagem, já é

um primeiro seletor de fatos. O viajan-te descreve o que vê, o que faz, o que encontra e o que sente. Mesmo que pa-reça tão plausível, essa afirmação deve ser tomada com cautela. Obviamente, é impossível que o viajante consiga transmitir todas as atividades do dia para o papel.23 A tarefa fica ainda mais complicada quando se trata das sensa-ções, medos, alegrias e relações. O que, afinal, é descrito pelo viajante?

Antes de responder a essa ques-tão, fundamental na construção de ser-tão feita pelas fontes históricas e literá-rias, é necessário ainda levar em conta a representação pictórica das regiões visitadas pelos viajantes. O estudo da representação pictórica certamente é um caminho possível para se compre-ender a construção da paisagem. O que proponho aqui, no entanto, é o estudo das imagens textuais, expressas na forma de escrita nos diários e memó-rias. Com base numa correspondência com as imagens pictóricas, podem-se obter uma base teórica mais sólida e uma análise mais completa.

Segundo a historiadora Ana Lui-za Fayat Sallas, a correspondência ou não entre imagem e texto é um proble-ma antigo no interior das ciências hu-manas: “Tanto na filosofia, quanto na teoria da percepção, na semiologia, na psicologia, na estética e na história da arte, existem variantes significativas referentes aos limites da interpretação e à relação entre imagem e texto.”24 A

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história pode fazer uso dos dois tipos de fonte, segundo a autora, pois ambos são “portadores de uma determina-da verdade pelo fato nos dizer algo a respeito de um determinado momento histórico” e só existem a partir de ex-periências do homem.

O problema começa pela definição de “imagem”. O conceito contempla de pinturas a descrições, mapas, dia-gramas, sonhos, projeções, memórias. Para elucidar a questão, Sallas utili-za o trabalho de W. J. T. Mitchell “Ico-nology: image, text, ideology”. Para Mitchell, é equivocada a distinção que se estabelece entre as imagens gráfi-cas (como sendo imagens próprias) e as imagens verbais ou mentais (como sendo ilegítimas). Ambas envolvem mecanismos de apreensão e interpre-tação multissensoriais. O que acontece – e o autor critica esse panorama – é que, em geral, se tem a imagem como um signo que não se pretende como tal, “mascarado como presença natu-ral e imediata”. A palavra, a imagem verbal, é tida como o outro, no sentido de que é uma produção humana artifi-cial e arbitrária que pode interromper a presença natural. Enquanto as pala-vras são signos arbitrários, a imagem pictórica é a realidade.

Se a correspondência entre ima-gem textual e imagem pictórica é legí-tima, podem-se utilizar de forma pro-veitosa as reflexões de E. H. Gombrich. No livro Arte e ilusão: um estudo da

psicologia da representação pictórica, o autor trata de vários elementos – pen-sando na representação pictórica – que podem ser transferidos para a repre-sentação a partir de relatos de viagem. Para Gombrich, a observação e cons-trução de uma paisagem passam pelo crivo seletor do que ele denomina sche-mata. Não há naturalismo neutro. “O artista, não menos que o escritor, pre-cisa ter um vocabulário antes de poder aventurar-se a uma ‘cópia’ da realida-de.” O vocabulário, no caso do artista, é sua schemata.

O artista deixa-se atrair por moti-vos que possam ser traduzidos em seu idioma; tudo o que lhe é familiar salta aos olhos. Ele não pode transcrever o que vê, apenas traduzir. Todas as pin-turas partem de modelos preexistentes na mente do artista, que acaba sem-pre utilizando e reutilizando o mesmo modelo para pintar o mesmo objeto em essência, mesmo que os detalhes sejam diferentes. O retrato bem-feito, por exemplo, não é aquele em que o artista registra fielmente sua experiência vi-sual, mas onde constrói fielmente um modelo relacional:

Quantas pessoas viram seu governan-te em carne e osso, ou viram-no tão de perto a ponto de poderem reconhecê-lo? Quantas viajaram tanto, a ponto de poderem distinguir as cidades umas das outras? [...]. A estampa vendida no mercado como retrato do rei era ape-nas ligeiramente alterada para repre-sentar seu sucessor ou rival.25

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A bagagem de experiências do artista funciona, portanto, como mais um crivo seletor, que admite apenas os aspectos que existem em sua sche-mata. “O familiar será, sempre, o pon-to de partida para a representação do desconhecido; uma representação já existente exerce sempre certo fascínio sobre o artista, mesmo quando ele se esforça para registrar a verdade.”

Com base nessa reflexão pode-se pensar: Real mente, o artista pinta o que vê, no sentido de que olha a pai-sagem a sua volta e a interpreta numa tela, ou só identifica alguns aspectos – que já lhe são familiares, que podem ser traduzidos, que existem em sua schemata –, só vê o que pinta? Ou, para a análise dos diários e das memórias dos viajantes ou de Os sertões, volta-se a questão proposta acima: O que, afi-nal, é descrito pelos viajantes? A inda-gação correta seria então: Descreve-se, ou constrói-se a paisagem que se vê, ou só são visíveis aos olhos dos cientistas alguns aspectos familiares, que são passados para o papel?

Com essas reflexões, passaremos a analisar algumas passagens das fon-tes literárias e históricas. O objetivo é ir até o limite entre as duas disciplinas e perceber as semelhanças e diferen-ças entre os dois tipos de fonte – nunca esquecendo, obviamente, de que, nas palavras de Alfred Döblin, “o romance histórico é, antes de tudo, romance e não história”.

Para uma primeira caracterização da região estudada, todos os viajantes, escritores, aventureiros e cientistas começam a narrativa com a descrição da geografia física da área. Vejamos a descrição de Euclides da Cunha:

Mostram-no as serras Grande e do Atanásio, correndo, e a princípio dis-tintas, uma para NO e outra para N e fundindo-se na do Acaru, onde abro-lham os mananciais intermitentes do Bendegó e seus tributários efêmeros [...]. Obediente à mesma tendência, a do Aracati, lançando-se a NO, à bor-da dos tabuleiros de Jeremoabo, pro-gride, descontínua, naquele rumo e, depois de entalhada pelo Vaza-Bar-ris em Cocorobó, inflete para o poen-te, repartindo-se nas da Canabrava e Poço-de-Cima, que a prolongam.26

A descrição passa pelas monta-nhas e serras e demais modificações do terreno. Os rios também são muito ci-tados (“depois de entalhada pelo Vaza-Barris”). O mesmo padrão de descrição é observado nas memórias de outro im-portante viajante da região, Francisco de Paula Ribeiro, cujos dois principais trabalhos,27 originalmente publicados na Revista do Instituto Histórico e Geo gráfico Brasileiro, foram reunidos, juntamente com outra memória sobre os índios do Maranhão, em livro publi-cado em 2002 pelo governo do Mara-nhão. Francisco de Paula Ribeiro era militar e viajou pelo sertão na segun-da década do século XIX, inclusive em expedições demarcatórias nas divisas

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das províncias do Maranhão e Goiás; sua expe riência é interessante por ser brasileiro e conhecedor desses territó-rios. Todavia, engana-se quem entende que o fato de o autor conhecer detalha-damente o território garante que ele descreva de maneira mais verossímil e objetiva a paisagem. Ribeiro sempre seguiu com zelo as ordens que rece-bia sobre o teor de suas observações e, consequentemente, seus relatos, tan-to que, como a introdução de Manoel de Jesus Barros Martins nos conta, o viajante teve uma carreira militar bri-lhante, sendo promovido várias vezes.

Não podemos deixar de lado a existência de uma rede de dávidas e mercês imbricada com a rede admi-nistrativa no Antigo Regime. Longe de ser exclusividade da Coroa portugue-sa, esse sistema de troca de favores era um fator determinante no tipo de relato escrito pelo viajante. Mais do que mostrar qualquer objetividade, ve-rossimilhança ou o que realmente viu, a busca era por cumprir as ordens e agradar ao alto escalão administrati-vo.28 No seu Roteiro da viagem que fez o capitão Francisco de Paula Ribeiro as fronteiras da Capitania do Mara-nhão e da de Goyaz no anno de 1815, o viajante escreve:

A capitania do Maranhão, que está di-vidida da capitania do Piauí pela mar-gem oeste do rio Parnaíba, da do Pará pela margem leste do rio Turi, e da do Goiás ao sudoeste pelo rio Manuel Al-

ves Grande, até este desembocar no rio Tocantins, que correndo de sul ao norte lhe fecha com a do Pará aquela sua di-visão de oeste.29

Lendo os trechos em destaque, vemos claramente a semelhança entre as duas fontes, ou entre as duas nar-rativas que podem ser tomadas como fonte. Cunha e Ribeiro escreveram no século XIX – mesmo que a obra de Eu-clides tenha sido publicada no início do século XX. Entretanto, podemos encon-trar narrativas da região com o mesmo caráter “objetivo” já no século XVIII. No final desse século foram recrutados pelo então ministro da Marinha e do Ultramar português, Rodrigo de Souza Coutinho, para uma expedição filosófi-ca um bacharel formado em Coimbra, Vicente Jorge Dias Cabral, e um padre – com local de formação desconheci-do –, Joaquim José Pereira. O destino desses naturalistas seriam os sertões das províncias do Maranhão e do Piauí, onde viajariam em busca de quina do Piauí, planta com propriedades antife-bris, e salitre natural, matéria-prima da pólvora. O padre Joaquim também faz sua descrição daqueles sertões em seu Discurso preliminar e histórico so-bre o clima da Capitania de Maranhão e Piauh^y:

Achão-se as Capitanias do Maranhão, e Piauh^y limitadas pelo Norte com o occeano, pelo Sul com o continente dos Sertoens deplanícies, bosques, emon-tanhas, pelo nascente com aSerrania da Biapaba que divide estas Capita-

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nias da Capitania de Pernambuco, pelo puente com os rios caudellozos, egenti-lidade que medeya entre a Capitania do Pará, e esta do Maranhão: tem de longitude 250 legoas, delatitude perto de 200, e de circunferencia 500 pouco mais ou menos.30

Mesmo que as fontes utilizadas por Euclides da Cunha tenham sido os relatos de naturalistas estrangeiros que viajaram pelo Brasil a partir da segunda década do século XIX, a sua descrição remete a uma tradição que já vinha dos relatos científicos da segun-da metade do século XVIII – e possivel-mente ainda antes –, mas a extensão desse trabalho não permitiu a busca pelas origens dessa tradição.

O mesmo acontece quando Eucli-des da Cunha trata da seca no sertão. Certamente fenômeno notável, foi apre-sentado ao grande público como sendo sistemático e recorrente pela obra de Euclides da Cunha: “Revelou-o [o fe-nômeno das secas], pela primeira vez, o senador Tomás Pompeu, traçando um quadro por si mesmo bastante elo-qüente, em que os aparecimentos das secas, no século passado e atual.”31

A seca é um dos grandes pilares da construção da imagem do que é hoje o sertão nordestino. Causa de muitas das suas idiossincrasias e flagelo da população do sertão, a seca como fenô-meno climático sistemático da região já havia sido percebida e registrada pelo mesmo padre Joaquim José Pe-

reira. Além da viagem já citada, o pa-dre já havia empreendido outras duas viagens pelos sertões das capitanias do Nordeste, a mando de Souza Coutinho. Também grande conhecedor da região, em cada viagem deixa transpassar um sertão diferente, mesmo que algumas matrizes permaneçam, como no caso do clima e rusticidade da população.32 O texto do padre sobre a Ribeira de Apodi, escrito em 1798, começa falan-do da seca:

A investigação d’esta carta temporária nasceu de uma attenta e escrupulosa observação feita e meditada sobre a estação dos annos de 1792 e de 1793, nos quaes a cada passo se esperava a morte. Ella devastou, pelo excesso a que chegou, e despovoou os sertões por falta das chuvas, que se esperavão do céo, de que resultaram tristíssimas conseqüências e desgraçados fins.33

Além da caracterização da seca – aliás, a seca foi a motivação do padre para escrever, segundo o trecho citado –, o autor arrola os anos em que as se-cas atingiram a população de Apodi, desde a década de 1720. No texto de Euclides da Cunha, igualmente encon-tramos uma lista das secas, bem mais completa, já que trata de toda região do sertão, não apenas da Ribeira de Apodi. Mas a intersecção das listas mostra uma notável semelhança, in-clusive destacando as secas de 1791, 1792 e 1793.34 Mais uma vez, mesmo sem utilizar diretamente como fonte os viajantes luso-brasileiros do século

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XVIII, Euclides da Cunha nada mais faz do que apresentar novamente da-dos já observados pelo menos um sé-culo antes.

Para Márcia Naxara, Euclides da Cunha começa uma linha de formação do sertão que vai até Guimarães Rosa. Não é difícil perceber a aridez e o peso do sertão nas linhas de Euclides da Cunha:

Fere [a terra] o sol e ela absorve-lhe os raios, e multiplica-os e reflete-os, e refrata-os, num reverberar ofuscan-te: pelo topo dos cerros, pelo esbar-rancado das encostas, incendeiam-se as acendalhas da sílica fraturada, rebrilhantes, numa trama vibrátil de centelhas; a atmosfera junto ao chão vibra num ondular vivíssimo de bo-cas de fornalha em que se pressen-te visível, no expandir das colunas aquecidas, a efervescência dos ares; e o dia, incomparável no fulgor, ful-mina a natureza silenciosa, em cujo seio se abate, imóvel, na quietude de um longo espasmo, a galhada sem fo-lhas da flora sucumbida.35

Toda a primeira parte do livro gira em torno da descrição de um terreno muito árido e hostil, que na segunda parte é transformado na causa da qual deriva o argumento principal do traba-lho de Euclides da Cunha: “O sertane-jo é, antes de tudo, um forte.”

Da mesma maneira, Guimarães Rosa, em trecho do já citado Grande sertão: veredas, retrata um sertão pa-recido com o sertão de Euclides. O ob-

jetivo e os argumentos de Guimarães Rosa são outros; portanto, o autor não busca, pelo menos não de maneira tão direta, mostrar o sertanejo como um forte. Descrevendo a travessia do Liso do Sussuarão, tentada primeiramente por Joca Ramiro, mas levada a cabo apenas posteriormente por Riobaldo, Guimarães escreve: “Nada, nada ve-zes, e o demo: esse, liso do Sussuarão, é o mais longe – pra lá, pra lá, nos er-mos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem [...]. Não tem excrementos. Não tem pássaros.” E, mais adiante, sobre o mesmo local:

As chuvas já estavam esquecidas, e o miolo mal do sertão residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia du-mas poucas braças, e calcava o reafun-do do areião – areia que escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás. Caminho não se havendo.36

A mesma paisagem hostil, que quase ganha vida pela sua dinâmica interna, aparece também em Guima-rães Rosa. O deserto que se emenda com si mesmo é, mais do que apenas grande geograficamente, um terreno denso de obstáculos para quem deseja atravessá-lo, no caso de Rosa, ou viver ali, como os sertanejos de Euclides da Cunha. A dificuldade em se viver ou viajar pelo sertão não é retratada ex-clusivamente por literatos. Em uma de suas memórias, Vicente Jorge descre-ve o clima da região:

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O ar he quente e humido, paudozo, edoentio [...] as carnes frescas se corrompem em 24 horas, e as que se goardão secas crião hum gusmo, ou moncozidade. [...] os que viageam, e dormem no campo achão a ropas hu-midas quando as querem vestir de manhã. [...] o calor he perpetu-o, [...] desde Agosto até Outubro tempo em que a atmosfera parece querer abra-zar de calor, não só pelo dos insen-dios como pela despozição, em que se acha otempo para des carregar novas chuvas37

Vicente Jorge era bacharel em direito civil e naturalista formado em Coimbra. Natural de Tejuco, Minas Gerais, o cientista volta a terra natal para viajar em companhia do padre Joaquim durante os anos da virada do século XVIII/XIX. Mais uma vez, aqui temos um brasileiro descrevendo a ter-ra natal. Isso deve ser, mais uma vez, levado em conta para se analisar o tra-balho do viajante em sua experiência, percepção e representação.

Para chegarmos à conclusão, é interessante perceber a grande seme-lhança entre os excertos retirados da documentação oficial e dos livros de li-teratura. Em alguns casos, como em Os sertões, o discurso tende a ser mais ra-cional e árido que os relatos da virada do século XVIII. Esses relatos, é válido lembrar, vêm de uma tradição cienti-ficista e do extremo pragmatismo dos pressupostos do iluminismo. Diferen-tes em sua forma – e de certa manei-ra também em sua função – os relatos

utilizados como fonte por Euclides da Cunha, de naturalistas estrangeiros já com influência do romantismo, trazem um teor muito mais próximo da litera-tura do que propriamente de documen-to histórico. Vejamos, por exemplo, a legenda da prancha A lagoa das aves feita pela expedição de Johann Baptist von Spix e Carl Frederich Martius:

Lagoa de aves, à margem do Rio São Francisco, perto da fazendo Capão. Figura do estado natural primitivo: o reino das aves em pleno gozo de suas tendências nativa. Na floresta que con-torna a água, pulsando de vida, vêem-se muitos cipós de plantas cissóides, a embaúba (cecropia peltata), a palmei-ra macaúba (acrocomia sclerocarpa) e o grande caniço de flecha (gynerium parviflorum).38

Sem perder o caráter científico – marcado pela descrição da fauna e flo-ra e legitimado pelo uso de nomes da nomenclatura binominal do Systema naturae de Lineu – a narrativa traz também o exótico e romântico muito retratado no período.

Aqui chegamos novamente à questão da narrativa da história e da literatura. Cada vez mais, nos últi-mos anos, há uma tentativa por parte dos historiadores – e como já vimos no início deste trabalho, não é inédita – de se distanciar da narrativa árida e cientificista, sinônimo de objetividade para o atual modelo de ciência. Além da narrativa, história e literatura po-dem se diluir em seus limites quando

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se trata também das fontes. Como vis-to aqui, ambas utilizam documentação histórica como legitimação – no caso de Euclides, os relatos de viagem. E, por que não, podemos utilizar fontes tanto de uma quanto da outra para mostrar a construção de uma imagem do sertão nordestino brasileiro.

Mais do que retratar uma paisa-gem já descrita, o que tira do alcance do narrador a busca pela “verdadeira” paisagem é justamente a inexistência dessa. Cada viajante deita olhares di-ferenciados, mesmo olhando para o mesmo espaço físico. Dessa maneira, as descrições de paisagem, são, acima de tudo, o espaço físico interpretado pelas lentes de quem vê. Isso pode ex-plicar, por exemplo, a ausência de de-talhes em muitas narrativas do final do século XVIII, mas também da nar-rativa de Euclides da Cunha. Apenas o sertão físico era visto; o sertão como um todo não era visto, nessa perspectiva, pelos viajantes. E não era visto porque não existia de fato e, assim, continuou a não existir para os leitores. A paisa-gem representada é construída nova-mente na mente dos leitores com base na percepção que se têm da narrativa.

O imaginário de determinada pai-sagem passa, então, a ser construído. De certa forma, o sertão é selecionado pelos viajantes, representado e cons-truído novamente no imaginário de quem lê. Os relatos de viagem sempre

estiveram ligados à construção de uma região desconhecida aos olhos dos lei-tores, que liam a paisagem sem nunca a terem visitado.

A construção de uma imagem de sertão passa, ainda, antes dos “roman-ces de fundação”, para retomar a dis-cussão de Márcia Naxara, pela pena dos viajantes. Por meio da construção clássica de Euclides da Cunha, duran-te décadas o sertão foi visto por luso-brasileiros e estrangeiros pelas lentes do período, as quais, em geral, apro-ximavam os relatos. Há a construção da paisagem doentia, árida, que só a muito custo pode servir à economia do estado. Na baliza temporal que esse trabalho comporta, vê-se um fortaleci-mento dessa paisagem, que hoje que é construído e se constrói como o “sertão nordestino”.

No século XVIII se inicia essa perspectiva, que é intensificada com os manuscritos das primeiras décadas do século XIX e, parafraseando Naxa-ra, vai ainda de Euclides da Cunha até Guimarães Rosa. A invenção do sertão como conhecemos hoje iniciou-se antes mesmo de Euclides da Cunha narrar Os sertões de Antônio Conselheiro. O sertão, com suas primeiras caracterís-ticas, remonta, em parte, aos relatos de viagem, mesmo que estes mostrem apenas uma representação da seleção de imagens que o viajante encontrou.

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Abstract

The sertão, The sertões: the building of Northest region of Brazil from the

interface between history and literature

The major part of what exists on the imaginary about the term “sertão” regarding the brazilian northeast be-comes from the great work – fictional – Os sertões, from Euclides da Cunha. Published in the early 20th century, this work has a objective to be almost scien-tific, bounded on the tradition of the naturalistic romance. The construction of a landscape and a kind of people, the “sertanejo” (the one who lives at “ser-tão”), is a strong point on this work. More than a century before, however, naturalistic travelers, Portuguese and/or Brazilian ones, worked on the same region in scientific expeditions, making reports of what they saw. In the later colonial period, another group of these travelers, from other countries of Eu-rope and more bounded on naturalism, also constructed the northeast “sertão”, from their travel journals. All these narratives, even if they are fictional or realistic, bring on the problem of his-torical reality. Which of these is more related with the described region?

Key words: Sertão. Landscape. Travel journals.

Notas 1 NAXARA, Márcia Regina Capelari. Historia-

dores e texto literário: alguns apontamentos. História: Questões & Debates, Curitiba: Edito-ra UFPR, n. 44, p. 37-48, 2006. p. 38.

2 DÖBLIN, Alfred. O romance histórico e nós. Trad. de Marionilde Brepohl Magalhães. His-tória: Questões & Debates, Curitiba: Editora UFPR, n. 44, p. 13-36, 2006. p. 19.

3 LACAPRA, Dominick. História e romance. Re-vista de História Unicamp – Dossiê História – Narrativa. Campinas: IFCH, 1991. p. 113.

4 Trato aqui o termo “história” pensando na ambiguidade que lhe é inerente: a construção da história refere-se, de um lado, ao processo histórico e, de outro, à tomada de posição da ciência histórica e a construção da narrativa. Dessa maneira, descarto aqui a ideia de que em português exista uma pequena diferença entre os termos “História” - com H - e “história” - com h. A duplicidade existe, tanto quanto no termo alemão Geschichte, que designa tanto o proces-so histórico quanto o estudo do processo.

5 BENJAMIN, Walter. O narrador: considera-ções sobre a obra de Nikolai Leskov. In: _____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre li-teratura e história da cultura. São Paulo: Bra-siliense, 1994. p. 197-221.

6 DÖBLIN, Alfred. O romance histórico e nós, p. 16.

7 STONE, Lawrence. O ressurgimento da narra-tiva. Reflexões sobre uma nova velha história. Revista de História Unicamp – Dossiê História – Narrativa, Campinas: IFCH, 1991.

8 Os dois primeiros subtítulos, na tradução de Marion Brepohl de Magalhães, são, respectiva-mente: “Todo romance necessita de um fundo de verdade” e “A universidade da verdade no romance”. O que interessa é o cuidado metodo-lógico contrário: primeiro, em testar o romance como fonte para a história; depois, em retomá-lo como romance para o restante da pesquisa. DÖBLIN, Alfred. O romance histórico e nós.

9 LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: _____. História e memória. 4. ed. Campinas: Unicamp, 1996

10 LACAPRA, Dominick. História e Romance, p. 116.

11 BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: Edusc, 2004. p. 163.

12 CORDEIRO, Rogério. Ciência e literatura: pressupostos do pensamento formal de Eucli-des da Cunha. In: SEMINÁRIO NACIONAL

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DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA E DA TECNOLO-GIA, 10. Anais..., 2005. p. 1.

13 NAXARA, Márcia Regina Capelari. Historia-dores e texto literário: alguns apontamentos, p. 42.

14 Essa passagem se refere ao subtítulo do livro publicado pela autora a partir de sua tese de doutoramento. NAXARA, Márcia Regina Ca-pelari. Cientificismo e sensibilidade românti-ca. Em busca de um sentido explicativo para o Brasil do século XIX. Brasília: Editora UnB, 2004.

15 CORDEIRO, Rogério. Ciência e literatura: pressupostos do pensamento formal de Eucli-des da Cunha, p. 7.

16 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. História das paisagens. In: VAINFAS, Ronaldo; CAR-DOSO, Ciro Flamarion. Domínios da história. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janei-ro: Elsevier, 1997.

17 SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

18 WILLIAMS, Raymond apud VIEIRA, Daniel de Souza L. Paisagem e imaginário: contri-buições teóricas para uma história cultural do olhar. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, v. 3, ano III, set. 2006. Disponível em: www.revistafenix.pro.br, p. 7.

19 VIEIRA, op. cit., p. 9. 20 SALLAS, Ana Luisa Fayat. Ciência do homem

e sentimento da natureza. Viajantes alemães no Brasil do século XIX. Tese (Doutorado) - UFPR, Curitiba, 1997. p. 136.

21 PORTELLA, José Roberto Braga. De como se pode pensar uma literatura de viagens so-bre Moçambique na segunda metade do sécu-lo XVIII no bojo da construção do Iluminismo português. In: _____. Descripções, memmorias, noticias e relações. Administração e Ciência na construção de um padrão textual iluminista sobre Moçambique, na segunda metade do sé-culo XVIII. Tese (Doutorado) - UFPR, Curitiba, 2006.

22 Brincando mais uma vez com a literatura, te-mos o marinheiro Marlow, de Joseph Conrad. A tentativa de narrar sua expedição ao Cora-ção das trevas não conseguirá passar o real vi-vido por ele: “Tenho a impressão de que estou tentando contar um sonho – uma tentativa vã, porque nenhum relato é capaz de transmitir a sensação onírica, onde aflora essa mistura de absurdo, surpresa e encantamento, num frêmi-to de emoção e revolta, essa impressão de ser capturado pelo inacreditável em que consiste a própria essência dos sonhos.” O trecho vale

para mostrar a consciência do narrador sobre a impossibilidade, em última análise, de sua nar-rativa. CONRAD, Joseph. Coração das trevas. Porto Alegre: L&PM, 2002.

23 BOURGUET, Marie Noeile. O explorador. In: VOVELLE, M. O homem do iluminismo. Lis-boa: Presença, 1997.

24 SALLAS, Ana Luisa Fayat. Ciência do homem e sentimento da natureza. Viajantes alemães no Brasil do século XIX, p. 140.

25 GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1986., p. 59 e 74.

26 CUNHA, Euclides da. Os sertões. 29. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1979. p. 19.

27 Roteiro da viagem que fez o capitão Francisco de Paula Ribeiro as fronteiras da Capitania do Maranhão e da de Goyaz no anno de 1815; e também Descrição do Território de Pastos Bons, nos sertões do Maranhão, propriedades dos seus terrenos, suas produções, caráter dos seus habitantes colonos, e estado atual dos seus estabelecimentos.

28 Obviamente, a noção de mercê é muito mais complexa do que trato aqui. Entretanto, sim-plifico o conceito por não estar ao alcance desse trabalho sua melhor explanação. Sobre o tema ver OLIVAL, Fernanda. Um rei e um reino que viviam da mercê. In: _____. As ordens militares e o estado moderno; Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001; PEREIRA, Magnus R. M. Carreira e rede de mercês entre militares luso-brasileiros: O “des-terro d’Angola” de Elias Alexandre da Silva Corrêa (1782-1789). História: Questões & Deba-tes, Curitiba, 2007; RODRIGUES, Victor Luís Gaspar. Sebastião Lopes Lobato: um exemplo de ascensão social na Índia portuguesa de qui-nhentos. Revista da Universidade de Coimbra, v. XXXVI, ano 1991. p. 375-388;

29 RIBEIRO, Francisco de Paula. Roteiro da via-gem que fez o capitão Francisco de Paula Ri-beiro as fronteiras da Capitania do Maranhão e da de Goyaz no anno de 1815. In: _____. Me-mórias dos sertões maranhenses, reunidas aos cuidados de Manoel de Jesus Barros Martins. São Paulo: Siciliano, 2002. p. 27-105.

30 PEREIRA, Joaquim José. Diário ou memória. Setembro de 1799, Cidade do Maranhão. AHU, Maranhão, caixa 127, doc. 9555. 101 páginas no original.

31 CUNHA, Euclides da. Os sertões, p. 26.32 Joaquim José Pereira também era conhecido

como Vigário de Valença. Além de Valença, o

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padre também permaneceu alguns anos na Ri-beira do Apodi – onde escreveu a memória que retrata a seca na região. Nessa vila ele fundou um Colégio de Latim em 1783: “Um collegio de latim foi fundado pelo cerebre chronista Cone-go Joaquim José Pereira”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, v. XVIII e XIX, n. 1/2, 1920/21. Os outros ar-tigos do padre são: PEREIRA, Joaquim José. Memória sobre a extrema fome e triste situação em que se achava o sertão da Ribeira do Apody. RIHGB, v. 20, p. 175-185, 1857; PEREIRA, Joa-quim José. Memória que contém a descripção e problemática da longitude e latitude do sertão da capitania geral de São Luiz do Maranhão... RIHGB, v. 20, p. 165-169, 1904.

33 PEREIRA, Joaquim José. Memória sobre a ex-trema fome e triste situação em que se achava o sertão da Ribeira do Apody. RIHGB, v. 20, p. 175-185, 1857.

34 Segundo Joaquim José Pereira, “no anno de 1792 sucedeu a rigorosa secca, de que se faz principal menção neste logar, que assolou o sertão do Apody, e toda a capitania de Pernam-buco, onde se acabaram todos os víveres, e mor-reram os gados, e a mesma gente que os habi-tavam perderam as vidas [...]. No anno de 1793 ainda grassava a mesma secca com a mesma penuria” (PEREIRA, Joaquim José. Memória sobre a extrema fome..., p. 177). Em Euclides da Cunha encontramos a seguinte passagem: “E ao terminar a seca lendária de 1791-1792, a ‘grande seca’, como dizem ainda os velhos ser-tanejos, que sacrificou todo o Norte, da Bahia ao Ceará” (CUNHA, Euclides da. Os sertões, p. 40).

35 CUNHA, Euclides da. Os sertões, p. 22.36 ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas,

p. 56 e 65.37 CABRAL, Vicente Jorge Dias. Continuação

das observações feitas sobre os diversos sais na parte inferior do Piauí desde junho de 1800 até março de 1801. AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555

38 SPIX; MARTIUS. Viagem pelo Brasil (v. II). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Uni-versidade de São Paulo, 1981, p. 77. Viagem emblemática do século XIX, foi realizada no fi-nal da década de 1810. Sob as ordens de D. Leo-poldina d’Austria, foi organizada a expedição científica para o Brasil, com a presença de inú-meros cientistas, entre os quais se destacam os naturalistas bávaros Johann Baptist von Spix e Carl Frederich Martius. A parte utilizada é o capítulo IV, do livro V, da “Viagem pelo Brasil”

intitulado “Viagem, através do sertão até o rio São Francisco”. As descrições exóticas do sertão e do sertanejo se destacam em toda narrativa.

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Resumo

O círculo e a fl echa: representações do tempo no desenvolvimento da música1

Gerson Luís Trombetta*

O trabalho baseia-se na ideia de que as expressões artístico-musicais se arti-culam dialeticamente com o desenvol-vimento do pensamento humano e são um meio eficaz para esclarecer como cada época histórica (e cada contex-to social) produz suas referências de sentido. A investigação analisa como a ideia de tempo se “materializa” na mu-sicalidade, especialmente nas socieda-des arcaicas (mundo modal) e na mo-dernidade (mundo tonal). Examinando as estruturas modais (arcaicas), basea-das na repetição e no ritmo pulsante, e suas diferenças com relação ao sistema tonal, procura-se demonstrar como a dinâmica do tempo varia culturalmen-te do “círculo” (resistência à história, eterno retorno) à “flecha” (experiência do progresso). Questiona-se, com isso, a suposta evidência de que o tempo é algo absoluto e universal.

Palavras-chave: Tempo. Música. His-tória.

Prelúdio… Brevíssimo

O tempo é uma criança,

criando, jogando o jogo de

pedras; vigência de criança.

Heráclito, Fragmento 52

Apesar de ser a mais “metafísica” dentre as formas artísticas, a música é um fenômeno mensurável e capaz de “encarnar” o senso de tempo como ne-nhuma outra dessas formas, abrindo “portas” para a compreensão de cole-tividades e eras. Uma das caracterís-ticas que tornam a música um fecundo

* Doutor em Filosofi a. Professor do curso de Filo-sofi a e do Programa de Pós-Graduação em Histó-ria da Universidade de Passo Fundo.

1 O artigo foi originalmente apresentado em for-ma de comunicação no IV Simpósio Nacional de História Cultural, em outubro de 2008. O que se publica agora recebeu modifi cações e comple-mentos com relação ao que foi apresentado no evento.

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objeto de investigação é seu caráter universal e sua presença em todas as sociedades. Além do forte indício de que a tendência para criar músicas es-teja presente em nosso sistema nervo-so juntamente com nossa propensão à fala, outro aspecto que contribuiu para sua universalidade é que admite uma vasta gama de meios e materiais. É bem verdade que, em termos de con-dições técnicas, ela não precisa mais que a voz humana; porém, mesmo em termos de usos da voz, a variação é impressionante Basta verificar, por exemplo, as diferenças entre um blues, uma ária e um mantra tibetano.

A diversidade de instrumentos e materiais que podem ser incorporados na construção musical é igualmente extraordinária. Cordas, sopros, peles, membranas, madeiras, metais e, mais modernamente, sintetizadores, cada um com seu timbre e modo próprio de ser executado, tornam a produção mu-sical acessível e variada. Além disso, a música pode se associar facilmente a outras expressões artísticas, como tea-tro, ópera, dança e cinema; é um acom-panhamento imprescindível à maioria absoluta dos rituais de cunho religioso, além de atividades esportivas e oca-siões sociais importantes (casamen-tos, funerais, homenagens e assim por diante). A ubiquidade é, assim, uma das marcas mais notáveis da música.

A variabilidade e a ubiquidade, no entanto, não tornam a música, e seu de-

senvolvimento histórico, algo refratá-rio à percepção de unidades, de lógicas e princípios construtivos em comum. O artigo que segue se ampara exatamen-te na convicção de que as expressões artístico-musicais estão articuladas dialeticamente com o desenvolvimento do pensamento humano e com os con-textos específicos.2 Para efeito de de-limitação, procura-se investigar como se caracterizam as musicalidades que deram “corpo” às ideias de tempo como “círculo” (tempo repetitivo, redondo ou do eterno retorno), concepção basilar do pensamento arcaico, e como “fle-cha” (tempo da ruptura ou do progres-so), concepção basilar do pensamento moderno. O que se propõe, em outras palavras, é “temporalizar” a ideia de tempo para, ao mesmo tempo, acessar o modo como tal ideia foi constituindo o “espírito” de cada época, gerando so-noridades específicas.

A sonoridade do “tempo redondo”

O pensamento arcaico,3 de um modo geral, não julgava que o mundo e o homem estivessem sujeitos à ação da irreversibilidade do tempo. A intuição do efêmero, da “passagem das coisas”, era apenas a experiência de um “tem-po profano”, vazio de significado, não do “tempo sagrado”, por meio do qual se podia vencer a corrosão provocada pela fluidez das coisas. Por “tempo sa-

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grado” entendamos aqui uma espécie de plano ontológico que transcende a realidade em seus aspectos históricos, factuais e contingenciais. Ao acessá-lo, os homens acreditam se livrar dos in-fortúnios a que estão sujeitos no “tem-po profano”, como a morte, a miséria, o sofrimento e a doença, e passam a go-zar da mesma plenitude de que dispu-nham os grandes homens, como heróis e reis, e os próprios deuses.

Trata-se, conforme observa Eliade (2000), de um tempo cuja “sacralidade” deriva da sua possibilidade de remon-tar, por meio de um ritual, ao instante primordial da criação. Tal performan-ce deve incluir uma repetição do que se imagina ter ocorrido nesse instante. Nas palavras do autor,

[...] um sacrifício [o ritual], por exemplo, não só reproduz exatamente o sacrifício inicial revelado por um deus ab origine, no princípio dos tempos, mas também se situa nesse mesmo momento mítico primordial; quer dizer, todo o sacrifício repete o sacrifício inicial e coincide com ele. Todos os sacrifícios são feitos no mesmo instante mítico do princípio; o tempo profano e a duração são suspen-sos pelo paradoxo do rito. E o mesmo se passa com as repetições, ou seja, com to-das as imitações dos arquétipos; através dessa imitação, o homem é projetado numa época mítica em que os arquéti-pos foram pela primeira vez revelados. Surge-nos, então, um segundo aspecto da ontologia primitiva: a repetição de gestos paradigmáticos confere realida-de a um ato (ou objeto) e é nessa medida que há uma abolição implícita do tem-

po profano, da duração, da “história”; aquele que reproduz o gesto exemplar é transportado assim para a época mítica em que esse gesto exemplar foi revela-do. (ELIADE, 2000, p. 50).

Caso não pudesse repetir o ato pri-mordial, o homem arcaico sequer teria condições de acessar o “tempo sagra-do” em que tal ato se situa. Mesmo o “tempo profano”, em que se encontram as ações dos homens, só faz sentido na medida em que passa a ser justifica-do por algo que pode transcendê-lo (o “tempo sagrado”). É da possibilidade de repetir o ato primordial por inter-médio de um ritual que depende a legi-timidade de toda a ontologia arcaica. O ato primordial existe porque pode ser atualizado por meio do ritual. No ritual o homem é projetado a uma época míti-ca, um tempo imemorial em que os ar-quétipos foram revelados. A abolição do tempo profano e a projeção do homem no tempo mítico só são possíveis em in-tervalos essenciais, ou seja, naqueles “em que o homem é verdadeiramente ele próprio: no momento dos rituais ou dos atos importantes (alimentação, ge-ração, cerimônias, caça, pesca, guerra, trabalho, etc.)”. (ELIADE, 2000, p. 50). Repetir não é o mesmo que apenas imi-tar algum acontecimento passado, mas, sim, trazê-lo para o momento presente. Todo sacrifício repete o sacrifício inicial e coincide com ele; o significado de “re-petir” fica, assim, bastante próximo de “recomeçar”.

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É precisamente na ideia de repe-tição como recomeço que o horror dos homens arcaicos em relação à história fixa suas raízes. Uma visão de mun-do que prima pelo ritual da repetição como base para a salvação certamente não é fruto do acaso: resulta, antes, da tentativa de construir proteção contra a intuição do efêmero e do passagei-ro, as pequenas mortes que, em todo momento, enxergamos nas coisas e em nós mesmos. Embora no tempo tenha-mos nascido (apesar de ser ele “quem” nos “dá a vida”), também é nele que morremos (também é “ele” “quem” nos “tira”). O fato de que nascemos e mor-remos, porém, não constitui um proble-ma para o homem arcaico. O problema não é “morrer”, mas “morrer para sem-pre”. Como o místico, o homem religio-so em geral, o homem arcaico vive num contínuo presente; está ciente de que pode se redimir na possibilidade de re-memorar o ato primordial da criação num ritual capaz de levá-lo ao “tempo sagrado”. O contrário disso (a impos-sibilidade de acessar essa dimensão) – isto sim – constituiria um problema.

O ritual vence o efêmero na me-dida em que representa uma porta de acesso ao passado “fora do tempo”. Por intermédio dele não só repetimos o ato primordial da criação – mesmo porque repetir por repetir não produz qualquer efeito –, mas também ficamos aptos a trazê-lo até nós, até o presente. O sen-tido da experiência da temporalidade

vivida pelo homem arcaico, bem como os motivos que governam os arquéti-pos da repetição nos planos cósmico, biológico e histórico, pode ser assim sintetizado:

De um lado, a anulação da caducidade das coisas pela regeneração constante do seu ser. De outro, a anulação da ir-reversibilidade do tempo pelo retorno cíclico ao seu começo, à sua origem. Na realidade, a anulação da caduci-dade das coisas e da irreversibilidade do tempo vão juntas: é pela reversão do tempo que a caducidade dos seres é anulada e é pela anulação da caducida-de das coisas que o tempo é revertido. (DOMINGUES, 1996, p. 25).

Do ponto de vista da sonoridade, as sociedades arcaicas vão precisar, ao mesmo tempo, de algo cuja marca mais explícita seja a repetição, a reversibili-dade, a negação da passagem do tempo e de algo que possa acompanhar os ri-tos. É exatamente isso que é oferecido por aquilo que podemos chamar gene-ricamente de mundo modal.4 O mundo modal pode ser considerado como a épo-ca musical que vai desde as primeiras tentativas de pôr ordem no mundo dos ruídos5 até o final da Idade Média. Nes-se período, a música é caracterizada principalmente por um pulso fortemen-te definido e por um caráter circular das estruturas rítmicas e melódico-har-mônicas. Nesse contexto, o pulso pode aparecer basicamente sob três formas:

a) como pulso propriamente dito, de maneira bastante explícita,

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produzido por instrumentos de percussão (tambores, peles, ma-deiras, etc.) e imitando os bati-mentos cardíacos;

b) como uma pequena melodia (fragmento melódico) que é re-petida em ciclos;

c) como uma tônica fixa sobre a qual dança uma melodia, fre-quentemente encontradas nas músicas do Iraque e da Índia (de modo especial as que combinam sitar e tabla) e nas músicas pro-duzidas com gaita de foles.

A estrutura pulsante, notadamen-te repetitiva e circular, congrega dois significados básicos:

a) reproduz uma visão de mundo que também é imutável; a vi-são de um mundo que se move em ciclos repetitivos. A música é mais uma força contra a ino-vação e vincula-se a uma ordem social eterna e imutável, recu-sando qualquer resquício de ruptura, progresso ou história;

b) enquanto som fundado na repe-tição, a música modal é portado-ra de uma mensagem de sacrifí-cio. A sua constituição, de ritmo hipnótico, é propícia ao transe do corpo e um auxílio precioso para produção dos efeitos de-sejados nos rituais religiosos. No transe, que inclui sempre a excitação do corpo até o limite, o indivíduo “sai de si mesmo” e toca o sobrenatural.

No mundo modal, portanto, não existe um significado interno da músi-ca, nem existe valor na sonoridade em si mesma. A música não é tomada como lugar de exposição de ideias ou sen-timentos subjetivos, ou seja, não tem natureza autoral. Isso tem a ver com a presença forte da coletividade e a ine-xistência de uma noção já delineada de subjetividade. Todos os eventos ritua-lísticos têm de ser desenvolvidos entre uma comunidade ou grupo de pessoas. No caso da música modal, não impor-tam os nomes dos possíveis autores de uma composição; basta que ela cum-pra com sua função de produzir, por meio da repetição (pulso), um estado alterado de consciência a fim de que os praticantes do ritual possam acessar o “tempo sagrado”. O som é instrumento e assume aqui um valor de culto.

Com relação ao vínculo entre o “natural” e o “sobrenatural” produzi-do pela música, vale a pena verificar, por exemplo, a gênese das notas que compõem a escala ocidental diatônica (heptatônica). Tendo sido sistematiza-da, primeiramente, por Pitágoras, a escala das sete notas musicais guarda intensa simetria com a ordem cósmi-ca, ideia fundamental para a cultura grega clássica. O som, o tempo e o es-paço deveriam se relacionar harmoni-camente. A consequência é a divisão do espaço sonoro natural6 em sete notas musicais.7 O quadro abaixo, sugerido por Wisnik (1989, p. 97), expõe melhor tal simetria:

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Ré Sol Dó Fá Si (bemol) Mi Lá

Lundi Mardi Mercredi Jeudi Vendredi Samedi Dimanche

Monday Tuesday Wednesday Thursday Friday Saturday Sunday

Dia da Lua Dia de Marte

Dia de Mercúrio Dia de Júpiter

Dia de Vênus

Dia de Saturno

Dia do Sol

goriana, a negação de qualquer pulsa-ção.

As composições gregorianas repre-sentam, assim, o território de luta en-tre a elevação ascética e a sedução sen-sível do ouvido,10 nele, toda e qualquer dissonância é sufocada; neste territó-rio, as polifonias complexas não eram muito bem vindas. Em 1322 o papa João XXII emitiu a primeira procla-mação papal a versar exclusivamente sobre a música, a Dacta sanctorum pa-trum. Sua ira era dirigida às inovações da ars nova e ao fato de as músicas dos ofícios religiosos se encontrar “conta-minada” por semibreves e mínimas e “pervertida” por melodias seculares. Segundo ele, as vozes polifônicas fica-vam correndo de um lado para o outro, excitando o ouvido ao invés de acalmá-lo, e a devoção, objetivo primordial do culto, estava sendo substituída pela lascívia. (CROSBY, 1999, p. 153).

No contexto da sonoridade grego-riana, o trítono, figura representante da dissonância, é, simplesmente, coi-bido, em nome da harmonia e da “cal-ma” da polifonia medieval. O trítono corresponde à quarta aumentada – intervalo de três sons que temos, por

Ainda que na Grécia Clássica a noção de tempo seja muito mais rica que o puro círculo do eterno retorno,8 assumindo nuanças semânticas bas-tante complexas, a música (a arte das musas) permanece com notável força simbólica, pois é capaz de colocar o ho-mem em sintonia com a ordem cósmica (Cosmos).

O tempo-fl echa e o progresso in musica

Em termos de sonoridade, o rom-pimento do mundo modal ocorrerá a partir do desenvolvimento das contra-dições geradas no interior do canto gre-goriano.9 A música a que o cantochão corresponde desenvolve-se no plano das alturas (frequência), negando o rit-mo recorrente e as estruturas simétri-cas da canção popular, para fluir sobre as sílabas sonoras. O seu caráter passa a ser estático, em oposição às músicas do transe. O transe é dinâmico, gerado a partir do movimento do corpo e da anulação progressiva da mente; o êx-tase, por sua vez, é estático, deixando o corpo imóvel e cooptando a energia mental. Daí decorre, na música gre-

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exemplo, entre o fá e o si ou entre o dó e o fá sustenido. Na Idade Média era conhecido como diabolus in musica. A dissonância que o trítono representa não poderia “materializar-se” uma vez que, na cosmovisão medieval, indica-ria “falha cósmica”, a figura do mal, do imperfeito, do diabo. No contexto me-dieval não há nada a fazer com o tríto-no, a não ser evitá-lo a todo custo. Nas outras tradições modais, o trítono não recebia uma tão grande importância (negativa), pois permanecia “afogado” no interior dos ritmos pulsantes.

A polifonia que se desenvolve na Idade Média ao longo dos séculos IX a XV, marcada pela trama simultaneiza-da das vozes, vai suscitar um problema concreto: como lidar com o desvio, o aci-dente, a dissonância? Segundo Wisnik (1999), podemos encontrar aqui o ele-mento desencadeador de uma nova épo-ca musical: o mundo tonal. É o mundo da “vingança do trítono”, do “pacto com o diabo”. O negado – a dissonância – ressurge como elemento gerador de um novo sistema, baseado nas trocas entre tensão e repouso (resolução). A aceitação do trítono (diabolus in musi-ca) como componente do tecido musical só é possível na medida em que vem acompanhado pela promessa de sua resolução.

A tensão criada pelo trítono e a eficácia estética demonstrada pelo compositor ao resolver tal tensão aca-bam por se tornar um símbolo de poder

e de autonomia conquistados pelo ho-mem moderno. Tal homem, que agora tem seus medos diminuídos com rela-ção às forças sobrenaturais, encontra as condições racionais de – como suge-re a ideia de pacto – negociar com elas. É pertinente registrar que, quando o pensamento moderno estava dando seus primeiros passos, as histórias de “pacto com o diabo” passam a apare-cer com frequência, primeiro na tradi-ção oral e depois em textos literários. São as histórias protagonizadas pela figura lendária do Fausto, que come-çam a surgir no século XVI em múlti-plos relatos e narrativas, como na obra dramática de Christopher Marlowe, História trágica do doutor Fausto, pu-blicada em 1592.11

A partir do Renascimento, então, as características tonais passam a ocupar espaços cada vez mais hegemô-nicos. O rompimento com o mundo mo-dal representa uma mudança ocorrida no valor mesmo das obras de arte. Na medida em que estas se emancipam do uso ritualístico, aumentam as oca-siões para sua exposição. O valor de culto, que fundava o sentido da arte, passa a ser substituído pelo valor de exibição. Cada vez mais a arte é fei-ta na perspectiva de ser exposta, não mais de ser acessada exclusivamente pelos iniciados.12 O valor de exibição se consolida na mesma medida em que os processos de produção da obra passam

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a ser amplamente racionalizados e sis-tematizados e os materiais, incluindo o som e o espaço, passam a ser metrifica-dos.13 Na música, o compositor passa a dispor do campo sonoro de acordo com sua vontade racionalmente mediada, levando à afirmação da sua capacidade de controle. A hierarquização dos tons e o estabelecimento de uma gramática musical oferecem ao sujeito (composi-tor) as condições técnicas para domi-nar14 o espaço sonoro e transpor em música todos os seus temas.

Na música tonal, além da efeti-vação de um sistema de composição com regras claras, os jogos de tensão-resolução passam a atravessar todo o tecido musical. Com a presença dos momentos de tensão, a música ganha dinâmica narrativa e incorpora a ideia de progresso. Uma das formas musi-cais em que essa dinâmica aparece de maneira bastante explícita é a sonata, com uma estrutura constante de três movimentos, governados por um jogo narrativo que “conduz” o ouvinte “mo-vimentando-o” para frente, através de tensões e repousos, na direção de uma resolução final.15

É no horizonte deste “espírito” que podemos verificar o ideal de pro-gresso pressuposto numa concepção linear (“flecha”) de tempo. Referimo-nos, certamente, a um “paradigma” completamente diferente daquele em que estavam as sociedades arcaicas. O homem moderno parece ter perdido

aquilo a que anteriormente chamamos “pavor da história”. O “tempo-flecha”, para a sociedade moderna, é condição para o progresso, não para o fim defini-tivo, como pressupunha a mentalida-de arcaica. Essa mudança de ponto de vista deve-se, sobretudo, à confiança de que os avanços, tanto econômicos quanto cognitivos, levam o homem a territórios qualitativamente superio-res. Mesmo que não exista mais um “tempo sagrado” que prometa refúgio contra as desgraças da vida, há “pode-res” conquistados que, conduzidos por meios racionais, prometem iluminar todos os recantos que antes inspira-vam medo e temor.16

Esse ideal de progresso aparece em muitas manifestações culturais na modernidade. Na música, por exem-plo, o binômio “tensão e resolução”, característico de composições tonais, indica a confiança no fato de que a ra-zão – aqui simbolizada pelo momento da resolução – pode fazer frente às ameaças e às tensões que o tempo de-sencadeia –, exemplificadas nesse caso pela dissonância. Diferentemente do arcaico, o homem moderno admite em sua concepção de tempo a ameaça e a tensão – mas somente na medida em que pode resolvê-las. Para isso, conta com a capacidade que a razão tem de esclarecer o mundo e a si mesma.

Outro aspecto a destacar, quando se investigam as diferenças de menta-lidade entre arcaicos e modernos, é a

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pelo tempo – sabe que não poderá reco-meçar um ciclo toda a vez que “repetir o ato primordial da criação”.

O otimismo no progresso, chan-celado pela capacidade da razão em resolver tensões e simbolizado pelo mundo tonal, será posto sob intensa crítica, musicalmente falando, ainda no final do século XIX. Mas é no iní-cio do século XX, com o dodecafonismo de Arnold Schöenberg, que, abolindo a resolução, prolongando a tensão e sa-botando a expectativa do ouvinte, essa crítica fica bastante explícita. Desen-volver essa hipótese, porém, não está ao alcance deste artigo.

Abstract

The circle and the arrow: time representations in the development

of music”

This paper is based on the idea that musical-artistic expressions are con-nected dialectically to the development of human thinking, and that such ex-pressions are an effective way of ex-plaining how each historical period (and each social environment) produ-ces its own understandings of mea-ning. The investigation analyzes how the concept of time materializes in mu-sic, especially in archaic societies (mo-dal world) and in the modern era (tonal world). Examining the modal structu-res (archaic), based on repetition and pulsing rhythm, and their differences

substituição da ênfase na coletividade pela ênfase na individualidade. Para os modernos, não se trata apenas de conceber a sociedade como uma indi-vidualidade, mas, sobretudo, de per-ceber que já não há mais sentido em falar de uma “unidade primordial” que abrange todo o universo e à qual a so-ciedade, por meio de uma coletividade – uma das condições do ritual –, deve em menor escala se reportar.

A figura que melhor ilustra esse ponto de vista é o burguês. Desprovido da crença numa “unidade primordial”, ele entende, primeiramente, que não há aquilo a que os arcaicos chamavam o “ato primordial” para ser “repetido” e, por conseguinte, “acessado” num ri-tual; e, posteriormente, que também não há algo como um “ritual” que “re-pete” ou “recomeça” o “ato primordial” a fim de que o tempo em que os fatos aconteceram – o “tempo profano” – pos-sa se reverter. O burguês preocupa-se em se prover de bens e propriedades com vistas a um futuro,17 um futuro que promete ser mais feliz, no qual o investimento promete retorno. E é por ter “vistas a um futuro” – por ser causa e consequência de um modelo de socie-dade que concebe linearmente o tempo e, consequentemente, tem consciência da irreversibilidade dos acontecimen-tos – que ele se preocupa em prover-se de bens e propriedades. O burguês sabe que suas ações são consumadas

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contrasting with the tonal system, we attempt to demonstrate how time dynamics varies culturally from the “circle” (resistance to history, eternal return) to the “arrow” (progress expe-rience). We question, based on this, the assumption that time is absolute and universal.

Key words: Time. Music. History.

Notas2 Esse modo de examinar o sentido da música (e

da arte) tem, obviamente, influência do que Pe-ter Burke (2004) denomina de “história cultural clássica”. Apesar de não se tratar de nenhum exercício de ortodoxia, a investigação também se ampara na noção hegeliana de “espírito da época” (Zeitgeist), de modo especial como apare-ce em suas Lições de estética (“Vorlesungen über die Asthetik”).

3 Utiliza-se o termo “arcaico” (e/ou sociedades ar-caicas) conforme empregado por Mircea Eliade, especialmente em seu “O mito do eterno retor-no”.

4 A distinção entre mundo modal e mundo tonal se baseia, aqui, no texto “O som e o sentido”, de José Miguel Wisnik. Como não pretendemos esgotar detalhes técnicos, mas apenas apanhar o espírito geral do desenvolvimento da música, tomamos a liberdade de resumir as descrições e abreviar ao máximo os detalhes técnicos. No texto de Wisnik, evidentemente, a exposição é muito mais precisa.

5 Segundo Wisnik (1989, p. 27), a “música, em sua história, é uma longa conversa entre som (enquanto recorrência simbólica, produção de constância) e o ruído (enquanto perturbação re-lativa da estabilidade, superposição de pulsos complexos, irracionais, defasados)”. Nesse sen-tido, a música é sempre uma opção cultural por um som ordenado e periódico no meio turbulen-to dos ruídos.

6 O espaço sonoro natural é aquele que vai de uma nota até sua correspondente uma oitava acima ou abaixo – de dó até dó, por exemplo. O espaço sonoro natural pode ser observado quan-

do esticamos uma corda e a tocamos, resultando numa determinada nota e, depois, a dividimos ao meio, tocando novamente. O espaço sonoro entre a corda esticada e a corda dividida ao meio corresponde ao espaço sonoro natural.

7 É importante ressaltar que a divisão do espaço sonoro natural em sete é uma opção da cultura ocidental (grega). Em outras culturas, como, por exemplo, em algumas regiões da Índia, o espa-ço sonoro natural é dividido em mais de setenta notas, constituindo os chamados “microtons”.

8 Segundo Domingues (1996, p. 29-32), os gregos aprofundaram a experiência da temporalidade, introduzindo termos que modalizam o tempo. O léxico grego sobre o tempo pode ser assim re-sumido: chrónos, designando o os intervalos, as divisões possíveis no tempo; krónos, designando o deus de pensamentos funestos e que devora os próprios filhos, conforme a “teogonia” de He-síodo; chrónos, termo oriundo da teologia órfica e que se refere a um tempo que não envelhece, imperecível e imortal, simbolizado por uma ser-pente que se enrosca em si mesma fechando-se em um círculo; aión, é o tempo da duração, da qualidade e que, conforme sugere Heráclito, equivale ao tempo de uma criança brincando; êmar, palavra utilizada por Homero para desig-nar o dia; hóra, também é um termo utilizado por Homero com um sentido amplo, designan-do desde as estações do ano até o momento que convém a uma atividade; e, finalmente, kairós, de uso corrente pelos sofistas e que designa o tempo privilegiado, o tempo da oportunidade para decidir e agir.

9 Atribui-se a Gregório, O Grande, que foi papa entre 590 e 604, a composição do corpo de cantos litúrgicos que veio a receber seu nome. Algumas versões dão conta de que o papa Gregório redi-giu tais composições a partir de um ditado do Espírito Santo, manifesto sob a forma de uma pomba branca. (CROSBY, 1999, p. 138).

10 Elementos ambíguos e ambivalentes já servi-ram como operadores hermenêuticos de diver-sos trabalhos sobre a Idade Média. Destaca-se, de modo especial, o livro Uma história do corpo na Idade Média, de Jacques Le Goff e Nicolas Truong, onde se investigam as tensões entre o que os autores chamam de Quaresma (jejum, abstinência) e carnaval (gula, prazer, banque-te).

11 É importante registrar que a história mais co-nhecida de Fausto é a de Goethe, escrita em pleno período romântico das artes (a primeira

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parte é publicada em 1808) e que pode ser asso-ciada ao programa filosófico geral do idealismo alemão por colocar a figura do sujeito, de modo especial o seu caráter de ser livre, no centro da narrativa dramática e das preocupações teóri-cas.

12 Sobre este aspecto ver o ensaio “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, de Walter Benjamin.

13 Sobre isso ver “A mensuração da realidade: a quantificação e a sociedade ocidental 1250-1600”, de Alfred W. Crosby, de modo especial a parte II: “Riscando o fósforo: a visualização.”

14 A ideia de domínio e de controle que acompa-nha a produção artística e a ciência moderna vai fazer eco no modo como se dá a relação com o tempo. A sofisticação dos relógios mecânicos é uma forma bastante eficiente de tornar o tempo mais controlado, moldando-o aos interesses do mundo econômico e das rotinas do trabalho. A esse respeito podem-se consultar os trabalhos de G. J. Whitrow, citados nas referências.

15 Sobre a relação entre forma sonata, a dinâmica narrativa e a ideia de progresso, são particular-mente esclarecedores os textos de Henry Bar-raud, “Para compreender as músicas de hoje”, p. 15-41, e de Maria de Lourdes Sekeff, “Curso e dis-curso do sistema musical (tonal)”.

16 Sobre as relações entre ciência e progresso ver O mito do progresso, de Gilberto Dupas e Nau-frágios sem espectador: a idéia de progresso, de Paolo Rossi.

17 A respeito do ethos que leva o burguês a consoli-dar rotinas, racionalizando e calculando o tem-po, remetemos ao clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber.

Bibliografi a

BARRAUD, Henry. Para compreender as músicas de hoje. 3. ed. São Paulo: Perspec-tiva, 1997.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 9-34. (Coleção Os pensadores).

BURKE, Peter. What is cultural history? Cambridge: Polity Press, 2004.

CROSBY, Alfred. A mensuração da realida-de: a quantificação e a sociedade ocidental 1250-1600. São Paulo: Editora Unesp, 1999.

DOMINGUES, Ivan. O fio e a trama: refle-xões sobre o tempo e a história. São Paulo: Iluminuras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

DUPAS, Gilberto. O mito do progresso. São Paulo: Editora Unesp, 2006.

ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. Lisboa: Edições 70, 2000.

GOETHE, Johan Wolfgang von. Fausto. Trad. de Jenny Klabin Segall. Belo Horizon-te: Vila Rica, 1991.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Vorlesun-gen über die Asthetik. Frankfurt: Suhrkamp, 1994. 3 v.

LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Ja-neiro: Civilização Brasileira, 2006.

SEKEFF, Maria de Lourdes. Curso e dis-curso do sistema musical (tonal). São Paulo: Annablume, 1996.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Lisboa: Editorial Presença, 1990.

WISNIK, José Miguel; ZISKIND, Hélio. O som e o sentido: uma outra história das mú-sicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

WHITROW, G. J. O que é o tempo: uma visão clássica sobre a natureza do tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

_____. Time in history: views of time from prehistory to the present day. Oxford: Oxford University Press, 1989.

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“O leitor pergunta”: o jornal Mensageiro Luterano e o ideal

missionário da Igreja Evangélica Luterana do Brasil entre 1980 e 1989

Diogo da Silva Roiz∗

Marcos Scherwinski∗∗

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ResumoEste trabalho tem por objetivo realizar uma análise das principais dificulda-des que a Igreja Evangélica Luterana do Brasil enfrentou no decorrer do sé-culo XX no tocante à formação de pas-tores, o que desencadeou uma enorme deficiência no número de ministros para trabalho missionário e para o atendimento às congregações que es-tavam em funcionamento. Reflexo di-reto dessa ausência foi o surgimento da coluna “O leitor pergunta”, inseri-da no periódico Mensageiro Luterano, órgão oficial da Igreja. Assim, buscou-se conhecer como a coluna colaborou para minimizar a carência de pastores, traçando o perfil dos luteranos que es-creviam aos editores, dos pastores que responderam a essas perguntas, bem como o teor das perguntas e respostas entre as décadas de 1980 e 1989.

Palavras-chave: Igreja Luterana do Bra-sil. Formação do pastorado. Mensageiro Luterano. Coluna “O leitor pergunta”.

Introdução

Este trabalho analisa a função da coluna “O leitor pergunta”, inseri-da no jornal Mensageiro Luterano, du-rante a década de 1980. Desse modo, considerando que a organização mis-sionária da Igreja Luterana do Brasil foi extremamente comprometida pela morosidade no processo de formação de pastores, buscaremos observar a utilização da coluna como forma de mi-nimizar o efeito causado pela falta de pastores dirigentes em muitas regiões do Brasil.

∗ Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Campus de Amambaí.

∗∗ Graduado em História pela Universidade Esta-dual de Mato Grosso do Sul, Campus de Amam-baí.

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A Igreja Luterana nos Estados Unidos, a Lutheran Church – Missou-ri Synod,1 preocupada com a vida es-piritual das famílias de imigrantes de origem alemã na América do Sul, que na sua maioria eram de denominação luterana,2 enviou missionários para verificarem as possibilidades de mis-são entre esses imigrantes.3

Ao se estabelecerem no sul do Bra-sil, uma das primeiras preocupações dos missionários foi divulgar entre os imigrantes a importância do trabalho realizado por essa Igreja norte-ameri-cana na América do Sul, ou mais espe-cificamente no Brasil.4 Com o apoio do Sínodo, os primeiros pastores se empe-nharam na criação de um informativo já nos primeiros anos, com o propósito de manter um relacionamento mais próximo entre os luteranos e também de defesa dos constantes ataques que os luteranos sofriam no Brasil por par-te de jornais seculares.5 Segundo Ma-rio Rehfeldt,

a decisão de publicar um periódico do sínodo de Missouri no Brasil foi toma-da nos Estados Unidos pela convenção Sinodal de 1902, com o propósito de fornecer aos missionários no Brasil um instrumento para apresentar a posição doutrinária e a prática eclesiástica do Sínodo de Missouri, defender o seu tra-balho missionário de calúnias de perió-dicos brasileiros. E ampliar o interesse nos Estados Unidos.6

O primeiro periódico foi criado em 1903, com o nome Evangelich Luthe-

risches Kirchenblatt fuer Suedamerica (jornal da Igreja Evangélica Lutera-na para a América do Sul), e era to-talmente publicado em alemão, tendo como objetivo melhorar a educação dos leitores na doutrina e prática lutera-na.7 Os efeitos causados na Europa durante a Primeira Guerra Mundial, que eclodiram no Brasil em 1917, afe-taram profundamente estes luteranos no Brasil.8 As proibições de publica-ções em alemão acarretaram grandes transtornos à Igreja, visto que a maio-ria era feita em alemão, em especial o informativo oficial da Igreja na época, O Kirchenblatt.9

A partir do momento em que o governo oficializou essa proibição, a Igreja imediatamente lançou um novo informativo, o Mensageiro Cristão, que depois de um ano passou a se chamar Mensageiro Luterano. O novo órgão oficial da Igreja, que teve como redator o pastor Theophil W. Strieter, passou a ser publicado em língua nacional, tendo como principal finalidade manter seus membros informados sobre as ativida-des distritais.10 Desde então, o Mensa-geiro Luterano passou a ser o órgão in-formativo oficial da Igreja Luterana do Brasil, regularmente publicado a cada mês. Sendo reflexo das ações da Igre-ja e de sua ação no Brasil, o jornal foi ambiente de grandes discussões teoló-gicas, doutrinárias, administrativas, entre muitos outros assuntos ligados à formação dos luteranos no Brasil.

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Entretanto, mesmo com o desen-volvimento das pesquisas em história e o reconhecimento das revistas, jor-nais e demais impressos sequenciais como fontes importantes11 – dadas as renovações teóricas e metodológicas pelas quais passou essa disciplina nas últimas décadas12 –, o jornal Mensagei-ro Luterano tem sido pouco estudado pelos historiadores que analisaram a Igreja Luterana do Brasil.13

As difi culdades de trabalho dos missionários no Brasil

Deste o início do século XX, quan-do o Sínodo de Missouri decidiu iniciar seu trabalho em terras brasileiras, houve uma grande preocupação com a formação de seus obreiros. As condi-ções em que se encontravam os lutera-nos alemães que aqui estavam eram de total abandono,14 necessitando, assim, de pessoas bem preparadas para o seu atendimento.

O campo para o trabalho era vasto, pois dos poucos pastores que aqui se encontravam a maioria não possuía formação teológica adequa-da; eram o que se chamava então de “pseudopastores”.15

O pastor Broders ouviu falar que no sul do Estado, nos municípios de Pelotas e São Lourenço, havia assentamentos de mais de 10 mil alemães, a maioria de origem pomerana. Eles haviam or-

ganizados cerca de 30 escolas paro-quiais, as quais serviam como templos. A única orientação espiritual que esses imigrantes tinham era dos pseudopas-tores.16

No Brasil, os trabalhos iniciais dos jovens pastores americanos recém-formados pelos seminários de Saint Louis17 ou Springfield18 não foram fá-ceis, pois, além de não possuírem ex-periência ministerial, trabalhavam em condições, conforme consta em alguns relatos, “quase que desumanas”. A oposição ao trabalho desses pastores americanos foi inflexível nas primeiras décadas de missão, alcançando o ápice de serem acusados “agentes” e “espiões norte-americanos”.19 Com essa situa-ção de turbulência na vida particular e profissional, não foram poucos os pastores que se afastaram do trabalho missionário de evangelização no Bra-sil.

Além disso, as diversões, aos olhos dos missionários considerados mundanas, dominavam, como bailes, jogos de azar, bebedices e a supersti-ção; as diferenças e rixas ameaçavam as congregações;20 muitas crianças e adultos eram analfabetos. Exigia-se, assim, uma atenção que muitas vezes o pastor não tinha condições de ofere-cer.21 As dificuldades dos pastores aqui no Brasil surgiam de todos os lados, atribuídas às mais variadas causas, como o fracasso com o primeiro tra-

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balho luso-brasileiro, no município de Lagoa Vermelha, tendo como um dos motivos a inexperiência destes jovens pastores americanos.

Eram situações adversas que in-fluenciaram no trabalho árduo dos jo-vens missionários, os quais vinham de um país de uma realidade totalmente diferente. A falta de conforto, doenças, epidemias e a falta de transporte ade-quado dificultavam a locomoção entre as colônias, fatores que levavam mui-tos pastores a irem de férias a sua pá-tria e não retornarem mais.22

Entretanto, existiram também missões brasileiras cujo sucesso foi eminente, como a de Canguçu, onde após longo trabalho com afro-brasilei-ros houve avanços na evangelização e um dos filhos de um membro tornou-se o primeiro pastor negro luterano da América.23

A criação do instituto para formação de pastores

A procura por pastores do sínodo era grande, mas poucos aceitavam o chamado,24 motivo que levou os pasto-res que aqui estavam a fundar, já em 1903, em Bom Jesus, São Lourenço do Sul, o primeiro instituto25 com a finali-dade de formar líderes nacionais e su-prir as necessidades das congregações. Relata o historiador Mario Rehfeldt:

A razão para a fundação do Instituto [...] foram: muitas pessoas ocupam in-devidamente os ofícios de pastor e pro-fessor no Brasil; muitos chamados de pastores e professores chegam ao Sí-nodo de Missouri, mas somente alguns deles foram preenchidos, por causa da falta de candidatos; jovens brasilei-ros eram tão inteligentes e talentosos como de outros países; as viagens dos missionários estrangeiros eram muito caras; somente com um ministério na-tivo será possível um crescimento de uma Igreja Nacional.26

O trabalho com a formação pasto-ral iniciou em 1903 e foi interrompido um ano e meio depois por falta de pas-tores professores. Contudo, logo foram reiniciadas suas atividades, em 1907, com quatro alunos. Somente em 1915 aconteceu a primeira formatura dos cinco primeiros pastores formados em seminário brasileiro. O baixo número de formandos demonstra a dificuldade que a Igreja de então encontrava na busca por jovens interessados no exer-cício do pastorado. Mesmo com a falta de pastores, a grande preocupação era com a qualidade do ensino pastoral, não com o número de formandos. So-mente os que cumpriam toda a grade curricular do seminário, que incluía provas escritas e orais, redação de ser-mão, catequese, interpretação de tex-tos do Antigo e Novo Testamento, além de trabalhos escritos de dogmática e história da Igreja, eram diplomados.27

Por outro lado, os prejuízos cau-sados pelo rigor dos seminários eram

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alarmantes, uma vez que o crescimen-to das congregações era extremamente desproporcional à formação de pas-tores. Em 1915, havia 121 paróquias para 26 pastores, uma média de 4,7 congregações para cada pastor, num trabalho missionário que era quase que exclusivamente rural. Até o ano de 1930, a maioria dos pastores era de na-cionalidade norte-americana, os quais faziam suas viagens montados em ca-valos, mulas ou carroças.28

A Ielb, em 1950, tinha 88 pastores em sua maioria já formada em Porto Alegre, para fazer o atendimento em 539 congregações e pontos de missão, o que representava uma média de 6,12 congregações para cada pastor. Como se pode notar, o passar do tem-po só agravou a escassez de pastores, discrepância que prejudicava os tra-balhos missionários e o atendimento aos membros. Nesse ambiente, era fre-quente a perda de pastores por parte de congregações, cuja substituição po-dia demorar de meses a anos.

Outra função que causava sobre-carga de trabalho nas primeiras dé-cadas do século XX eram as escolas paroquiais, nas quais eles deveriam le-cionar. O auge das escolas paroquiais foi na década de 1980, quando chegou a haver 149 escolas;29 porém, com a valorização da educação pelos órgãos públicos começou a decadência nas es-colas paroquiais.

O Mensageiro Luterano, ao anunciar o seu plano de reorganização, acres-centava: “O sínodo geral abrirá os co-fres de sua generosidade e destinará grandes somas para este fim”. Outro elemento digno de nota no pensa-mento da época é o de conectar es-treitamente as missões da Igreja com o sistema de ensino. Considerava-se que a expansão missionária da IELB seria impossível sem a expansão de seu sistema de ensino.30

No final da década de 1950 a ex-pansão missionária tinha alcançado dez estados brasileiros; havia 776 con-gregações e pontos de missão e 109 pastores ativos,31 aumentando ainda mais a diferença: de 7,11 congregações por pastor. A sobrecarga de trabalho dos pastores, em razão das constantes viagens de atendimento às missões, aumentava a cada dia. A maioria dos pastores, até o início da década de 1950, não possuía carros. O seminário não correspondia à altura as necessi-dades na formação de pastores, só con-seguindo formar, em média, cinco pas-tores ao ano, pouco para acompanhar o crescimento missionário no Brasil e no exterior.

A falta de pastores era tão séria que em 1961, além de campanhas in-centivando o ingresso de jovens nos seminários da Igreja, foram feitos es-tudos para verificar a possibilidade de juntar as paróquias em que havia poucas perspectivas de crescimento missionário.32 Contudo, na década de

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1960 a situação começaria a mudar. A Ielb, com a ajuda financeira da LCMS, investiu na construção de dois seminá-rios, que viriam para auxiliar na for-mação de um número maior de obrei-ros para o trabalho da Igreja: um em São Paulo, inaugurado parcialmente em 1962, com um curso ginasial, e ou-tro em São Leopoldo - RS, inaugurado em 1969, para onde foi transferido o pré-seminário, com cursos ginasiais e colegiais, ficando em Porto Alegre so-mente o curso de teologia.

A formação de pastores havia au-mentado significativamente, com tur-mas de 19, 20 e 26 pastores ao ano,33 possibilitando à Igreja abrir novos campos missionários. Todavia, nesta década a Ielb foi abalada profunda-mente por uma crise administrativa34 e por “controvérsias teológicas”.35

Em 1970, o número de pastores teve um aumento considerável: eram

153 a serviço das 990 congregações,36 média de 6,47 congregações por pastor, mas em melhores condições, pois pra-ticamente todos já possuíam carros. Em 1979, a Igreja, visando melhorar a qualificação de seus obreiros, ofere-cia em regime intensivo no Seminário Concórdia, cursos de pós-graduação em teologia.37 Em 1980, dobrou o número de pastores, passando a 320, distribuí-dos em 1.240 congregações e pontos de missão; 85% destes estavam na região Sul do país e a média de atendimento era de 3,87 congregações por pastor. O resultado dos investimentos da Igreja na formação de pastores viria no final da década de 1980 e início da de 1990, chegando a 510 pastores e 1.620 con-gregações e pontos de missão,38 média de 3,17 congregações por pastor, mas ainda muito aquém das necessidades das congregações.

Fonte: BUSS, Paulo Wille, 2006.

Figura 1 - Número de congregações e de pastores

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Fidelidade nas praxes e doutrina

Na formação de seus pastores, os seminários luteranos, ao longo desses anos, ensinaram decididamente as doutrinas e praxes da Igreja. Em uma declaração, o Departamento de Mis-são da LCMS afirmava sua convicção de que os pastores da Ielb, inegavel-mente, pregavam e ensinavam as es-crituras e as confissões luteranas com fidelidade.39 Contudo, em meados da década de 1960 teve início uma pres-são sobre a Igreja para mudanças na praxe, porém sem uma definição exa-ta para que lado seguir, o que causou ansiedade e confusão entre pastores e congregações.

O surgimento de movimentos re-ligiosos de expressivo crescimento na segunda metade do século XX, como os movimentos pentecostais e a teolo-gia da libertação,40 trouxe preocupação para a Ielb, pois vários pastores foram atingidos pelo movimento carismático, que em várias congregações proferiam palestras sobre libertação espiritual. A Igreja reagiu com estudos e publica-ções em seus periódicos e fez aconse-lhamento com esses pastores, porém todos se afastaram ou foram desliga-dos.

A Ielb reagiu também, mas com ressalvas, às novas tendências da Igreja-mãe,41 emitindo protestos con-

tra as novas tendências teológicas e lembrando que a comunhão de púlpi-to com outras denominações lutera-nas não tinha efeito no Brasil.42 A Ielb manteve contatos e participou apenas de conferências e debates de análises teológicas.

Essa nova posição teológica começou a se manifestar inicialmente na Concór-dia Seminary de Saint Louis e dali se espalhou para outras áreas da Igreja. O sínodo começou a reagir contra as inovações doutrinarias já no início da década, quando, em sua convenção de 1962, estabeleceu uma Comissão de Te-ologia e Relações Eclesiásticas (CTCR) com a finalidade de tratar dos proble-mas teológicos surgidos e preservar a unidade doutrinária do sínodo.43

A Ielb buscou estudos de aper-feiçoamento prático de seus pastores junto a entidades como o Serviço de Evangelização para a América Latina (Sepal), realizando cursos de planeja-mento da vida e do trabalho pastoral, técnicas missionárias e crescimento da Igreja.44

Foi nesse contexto que o jornal Mensageiro Luterano desempenhou um papel central na propagação das doutrinas e manutenção da identidade luterana, encurtando a distância entre os seus membros e suprindo as la cunas abertas pela falta de pastores em tem-po integral nas congregações. Com es-sas mesmas preocupações, criou-se na segunda metade da década de 1960 uma coluna com o título, “Diga-me”,

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cujo objetivo era tirar as dúvidas dos leitores do Mensageiro, principalmen-te dos membros luteranos desassisti-dos. Para as colunas e os artigos publi-cados, o Mensageiro Luterano contava com colaboradores que na maioria das vezes eram pastores e, em outros ca-sos, especialistas na área de atuação.

Na coluna de resposta “Diga-me”, o pastor colaborador e responsável pode dar respostas às perguntas45 era o reverendo Arnaldo João Schmidt, que nasceu em 20 de maio de 1922 na linha 8 Oeste, Ijuí - RS; formado em Teologia no Seminário Concórdia de Porto Alegre em 1942 e Bacharel em Filosofia, era conselheiro e presidente da Ielb, membro do departamento de Missão e do DEMS e reitor do Seminá-rio Concórdia de Porto Alegre, além de pastor das congregações de Schroerder - SC e Santo Ângelo - RS.46 Esta colu-na permaneceu até o ano de 1969, com perguntas sempre respondidas pelo mesmo pastor, deixando, após, de ser editada por dez anos.

Nesse espaço de tempo o Mensa-geiro Luterano criou uma coluna cha-mada “A pergunta do mês”, na qual a redação realizava uma pergunta sobre um assunto atual e de interesse geral, e diversas pessoas convidadas res-ponderiam a essas perguntas. Caso o leitor optasse por dar sua opinião, só precisava enviar a resposta para a re-

dação, a qual seria publicada em ou-tras edições.

Em março de 1977, a pergunta era “O que deve melhorar no Mensagei-ro?”, à qual a senhora Traudy Ellwan-ger Leyser, de Porto Alegre, respondeu que o veículo de comunicação não de-veria só informar e orientar, mas, tam-bém, receber opiniões, consultas e dú-vidas dos que o lessem, dando-lhes as respostas cabíveis. A senhora Leyser ainda sugeriu que fosse criada uma co-luna do tipo “Traga-nos suas dúvidas”, ou então “Pergunte, nós respondere-mos”, com respostas dadas por pessoas credenciadas para isso.47

Além da falta constante de pasto-res em tempo integral nas congrega-ções, a preocupação de alguns leitores estava centrada na volta da participa-ção do leitor, pois a alguns estados este periódico era a única fonte de informa-ção que chegava. Em 1979, a coluna voltou com um novo nome “O leitor pergunta”, mas com a mesma proposta da primeira, de responder às dúvidas do leitor.

O reverendo Paulo Kerte Jung, outro pastor que passou a colaborar com a coluna, já fazia parte do conse-lho redatorial do Mensageiro Luterano e na coluna de “Notícias”. Assim como o primeiro colaborador, o reverendo Arnaldo João Schmidt sempre teve influência dentro das repartições ad-

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ministrativas da Ielb, em razão do seu bom desempenho pastoral e da sua boa formação teológica.48 Este era o perfil dos colaboradores da coluna de respos-ta do Mensageiro Luterano: pastores com formação teológica, dentro das praxes e doutrinas da Igreja Luterana, capacitados pela Igreja para responder às perguntas dentro da sua lógica dog-mática.

Essa breve discussão sobre a for-mação pastoral talvez seja suficien-te para indicar as dificuldades que a Igreja tinha para a formação de seus ministros, acarretando constante falta de obreiros para o trabalho missioná-rio. Esse motivo era suficiente para o fiel recorrer à coluna de perguntas para esclarecer dúvidas não respondi-das por seu pastor. A essas perguntas procuraremos fazer referência no pró-ximo capítulo.

1980: uma década de mudanças

Ainda sob forte influência da déca-da de 1970, a década de 1980 foi marca-

da por inúmeras transformações para as populações de todos os continentes, com a queda do Muro de Berlim, o pro-cesso de abertura do bloco socialista, a transição entre a Guerra Fria; a demo-cratização dos países sul-americanos, a aproximação dos socialistas com os capitalistas;49 a luta pela liberdade dos movimentos estudantis nos países socialistas. No Brasil, houve o fim da censura, a concessão da anistia políti-ca aos exilados e o início da luta pela democratização, com as “Diretas Já”, consolidando-se com a eleição do pre-sidente Fernando Collor de Mello, pelo voto direto.50

Transformações mundiais, de or-dem social, política e econômica e que influenciaram em todas as camadas da sociedade, foram também sentidas entre as comunidades cristãs, mais especificamente na Igreja Evangélica Luterana do Brasil, que nesta década voltou a publicar a coluna de pergun-tas. Foram enviadas pelos leitores do Mensageiro Luterano 118 perguntas entre 1980 e 1989, sobre os mais varia-dos temas e das mais variadas regiões do Brasil e do exterior.

Tabela 1 - Número de perguntas publicadas a cada ano na década de 1980

Ano 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 Total

Nº Perguntas 07 08 10 06 05 05 09 19 26 23 118

Fonte: Mensageiro Luterano. 1980/1989.

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Como podemos ver na tabela, nos primeiros anos da coluna era reduzido o número de perguntas, fosse pela fal-ta de espaço destinado à mesma, fosse, possivelmente, por reiniciar-se timi-damente após dez anos de ausência. Contudo, a partir de 1987 o interesse por respostas aumentou, chegando a triplicar; desse modo, foi concedido um espaço maior à coluna.

Nesse mesmo período, o periódico publicou vários artigos com temas so-bre acontecimentos da época, que mui-tas vezes coincidiam com as perguntas que o leitor fazia aos editores da colu-na, facilitando a compreensão de um determinado assunto.

O que almejavam saber os luteranos?

Questionamentos que revelavam dúvidas de interpretações bíblicas, nos quais o leitor fazia perguntas basea-do apenas em fragmentos bíblicos, ou muitas vezes influenciado por outras pessoas a interpretar de uma certa ma-neira, eram recorrentes. Assuntos de ordem litúrgica também estavam en-tre as preocupações do leitor luterano, porque existiam muitas controvérsias quanto ao uso de paramentos, velas, batinas; sobre os deveres que compe-tiam ao pastor como representante legítimo da Igreja Luterana. Seria ele quem deveria batizar?51 E o conserva-

dorismo nos métodos dos pastores em seus sermões?52

Esse tipo de dúvida mostra a falta de informação que o leitor tinha do uso dos símbolos pela sua Igreja. Segundo Paulo Jung, são costumes herdados dos primeiros cristãos e não compreen-didos por seus fiéis, como comprovou a pesquisa, pela falta de um atendimen-to adequado por parte dos pastores. A preocupação com o pecado também ocupava uma elevada parcela das per-guntas enviadas ao periódico, como verificamos na série de perguntas que seguem abaixo.

Questionamentos dos mais sim-ples aos mais complexos eram envia-dos no afã de uma resposta, como o da esposa que traíra o marido, mas se mostrava arrependida e queria o per-dão deste, tendo, no entanto, medo de confessar a traição temendo que ele a deixasse;53 ou de um casal de namora-dos que haviam fugido e depois retor-naram à Igreja em busca do perdão. O pastor concedeu o perdão e comunicou a sua congregação o retorno deste ca-sal às atividades da Igreja. Ainda, mo-vido pela polêmica, um leitor formulou uma pergunta questionando a atitude do pastor de pedir o perdão em nome do casal, pois queria que isso fosse fei-to em público. A resposta do reverendo Paulo K. Jung, responsável pela co-luna, foi bem categórica: a atitude do pastor fora correta, pois não só deve-

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ria como poderia, por ser o pastor das almas e zelar pelos arrependidos; ou todos deveriam se arrepender publica-mente, pois para Deus não existe dife-rença de pecado.54

Existiam outras preocupações de leitores sobre pecados: Era lícita ou pe-cado a prática de métodos artificiais de irrigação em tempo seco?55 E a pintura de cabelos?56 O uso do vestido de noiva no casamento por mulheres grávidas, casadas e até com filhos atraiu a preo-cupação de outro leitor, quanto à práti-ca do pecado.57 E o uso do seguro seria correto aos olhos de Deus?58 Havia também a preocupação com crimes de autoridades: A polícia, que mata ,uma pessoa por obrigação, tem perdão? Respondeu o pastor: quando no cum-primento de seu dever, a autoridade constituída (polícia) não comete pecado de matar uma pessoa; portanto, neste caso, não tem necessidade de perdão.59

As dúvidas dos leitores do Men-sageiro Luterano revelavam-se em to-dos os âmbitos da sociedade brasileira, como é o caso do carnaval, uma festa nacionalmente conhecida. Um arti-go publicado em fevereiro de 1982,60 quase sete anos antes de a pergunta ser formulada à coluna, mostra que já havia uma preocupação da Igreja com esta festividade, alertando o leitor so-bre a sua origem e rituais:

Um cristão pode pular carnaval? Al-guns dizem que o carnaval não é de Deus, mas do mundo!

Resposta: Podes crer amigo, o carnaval não é de Deus. Considerando a origem pagã do carnaval, bem como os danos e males causados pelo carnaval à mo-ral, prejudicando homens, mulheres, jovens e crianças e, ainda, consideran-do as desorganizações de famílias e os graves problemas sociais causados por esta festa, devemos considerar o carna-val uma ofensa a Deus. Por isso não só devemos evitar a participação no mes-mo, mas também condená-lo e comba-tê-lo. A confiança em Jesus, o filho de Deus, que veio ao mundo destruir as obras do diabo (1 João 3.8), é o meio de o cristão se libertar desta tentação.61

A disposição do leitor em doar um órgão encheu-o de dúvidas quando pro-curou olhar o aspecto bíblico, não en-contrando a resposta desejada. Então, escreveu para a coluna. Paulo K. Jung enquadrou o ato de doação como uma ação humanitária, admitindo a livre opção, e complementou: “A IELB não tem nenhum manifesto sobre o assun-to.62 No artigo,63 publicado em setem-bro de 1989 no Mensageiro Luterano, sobre a doação de órgãos, assinalava que na época havia ausência de doado-res nos centros especializados, motivo que causava ansiedade àqueles que es-tavam na fila à espera de uma doação de órgão.

O uso de imagens e esculturas de santos e de nomes de pessoas santas nas congregações nas Igrejas Lutera-nas gerou confusões, porque ao mes-mo tempo ela condenava a adoração de imagens. Em muitas igrejas havia

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esculturas internas e imagens nos vi-trais, causando dúvida nas pessoas e comparando-as com outras institui-ções religiosas, principalmente os ca-tólicos.64

Outro assunto que chamou a atenção dos leitores da coluna “O leitor pergunta” na década de 1980 foi a de-signação de nomes santos que as con-gregações luteranas adotavam para denominar aquela instituição, visto que para muitos luteranos adorar san-to é um costume católico. Assim, o lei-tor preocupado queria saber qual era a diferença disso para a idolatria. O pas-tor Paulo Jung disse em sua resposta que o nome dado às congregações lu-teranas só prestaria homenagem aos apóstolos, pelo seu espírito missioná-rio, não se tratando de adoração ou idolatria. Quanto à congregação usar nomes, como Santo Antônio ou outro santo, seria uma referência ao nome da cidade, não ao santo.65

Perguntas de ordem familiar sempre estavam presentes na coluna do periódico, como problemas de rela-cionamento entre pais e filhos. Geral-mente, as meninas adolescentes eram as que mais escreviam relatando as dificuldades de relacionamento com os pais, como: “Meu pai não quer que eu namore, porque o pai dele é um ‘pinguço’.”66 Outra pergunta se referia à severidade com que o pai tratava a fi-lha, sobrecarregando-a de serviço e só

lhe permitindo passeios acompanhada. A resposta do pastor Paulo Kert Jung atentou para o quarto mandamento, pelo qual, segundo a Bíblia, filhos de-vem obediência aos pais e os pais te-riam de exigir dos filhos conforme a sua capacidade.67

Outro problema que atingia as famílias luteranas na década de 1980 era o acesso à televisão nos lares bra-sileiros, causando mudanças de rela-cionamento na família. Nessa década o Mensageiro Luterano publicou vários artigos, na coluna “Pais e filhos”, dos quais um foi sobre “O desajustamen-to familiar”,68 com a repercussão na vida da criança causada pela falta de estabilidade no lar, quando determi-nada pelo desajustamento da família. Segundo outro artigo, publicado no veículo em 1984, “O cristão diante da TV”,69 a pessoa, ao ficar longo período diante do aparelho, ficaria alienada, tornando-se escrava da televisão.

Os jovens luteranos, que tinham um espaço exclusivamente destinado a eles dentro do Mensageiro Lutera-no, utilizavam-no para alertar prin-cipalmente os demais sobre o uso da televisão em seus lares. O artigo pu-blicado com o título “Televisão: um mal necessário”70 indicava pesquisas reali-zadas em várias classes sociais sobre o do uso inadequado da TV, principal-mente nos dias de lazer.71

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Assuntos polêmicos estavam sem-pre presentes na coluna, como os vícios entre os luteranos. Várias perguntas relativas ao jogo, fumo, bebida e dan-ças foram formuladas. A preocupação dos leitores era constante, principal-mente quando se referia aos vícios das outras pessoas. Um leitor, em sua per-gunta, queria saber a opinião do pas-tor Paulo K. Jung sobre a realização de rifas e jogos em festas das congre-gações luteranas. Ele disse: “Na rifa se estimula a cobiça. No ofertar cristão, mostra-se a gratidão. No primeiro é lei e no segundo é promessa de bênção. O que deveria haver é crescimento cons-ciente de todos na mordomia cristã e ofertas segundo a posse.”72

Havia também perguntas em que o leitor se preocupava com os viciados em cigarros. Em resposta, dizia o colu-nista que a Bíblia não fala em viciados, mas o fumo causa mal à saúde; logo, o melhor que se poderia fazer neste caso era não fumar e aconselhar os que fu-mavam a deixar o vício.73

Conforme pudemos observar, as mais diferentes situações estavam pre-sentes no cotidiano desses homens e mulheres espalhados pelas regiões do Brasil. Fiéis “vítimas” da falta de as-sistência pastoral usavam o periódico Mensageiro Luterano para questionar,

dar sugestões, pedir ajuda, ou criticar e opinar na busca do entendimento de um mundo marcado por abruptas mu-danças sociais.

Considerações fi nais

A falta de pastores para o aten-dimento nas congregações trouxe in-quietação à Igreja. Por isso a grande importância da coluna destinada ex-clusivamente ao leitor em seu princi-pal veículo de informação O Mensagei-ro Luterano, que lhe dava liberdade de fazer perguntas, não importando o teor. Pode-se afirmar, assim, que a co-luna “O leitor pergunta” foi uma solu-ção momentânea para suprir a carên-cia de pastores. Conforme o historiador Mario L. Rehfeldt, “o fato de que um pastor tinha de atender a oito ou mais congregações e pontos de pregação era uma regra, e não uma exceção”.74 Essa era a realidade da Ielb no Brasil até a década de 1980, quando o pouco con-tato distanciava os fiéis dos seus pas-tores, gerando um clima de falta de familiaridade para tratar de certos as-suntos pessoais ou do cotidiano; então, ele recorria à coluna do Mensageiro Luterano para sanar suas dúvidas.

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Abstract

“Does the reader ask?”: the Lutheran Messenger newspaper and the ideal missionary of Evangelical Lutheran

Church of Brazil between 1980 and 1989

This work the objective to realize an analysis of the principal difficulties what the Igreja Evangélica Luterana do Brasil (Evangelic Church Luthe-ran of Brazil) faced in the course of the 20th century regarding the pastor’ for-mation, which unleashed an enormous deficiency in the Ministers’ number for missionary’s work and for the service to the congregations that were in func-tioning. The direct reflex of this absen-ce was the emergence of the column “O leitor pergunta” (“The reader asks”) of the magazine Mensageiro Luterano (Lutheran Messenger), official organ of the Church. So, we looked to know how the column collaborated to minimize the pastor’s lack, drawing the profile of the Lutherans who were writing to the publishers, the pastors who answered these questions, as well as, the tenor of the questions and answers between the years of 1980 and 1989.

Key words: Evangelic Church Luthe-ran of Brazil. Pastor’s graduation. Lu-theran Messenger. Column “The rea-der asks”.

Notas1 A Lutheran Church – Missouri Synod (Síno-

do Evangélico Luterano de Missouri), Ohio e outros estados, EUA, tem, aproximadamente, 135 anos. Foi fundada, por imigrantes alemães que deixaram sua pátria para estabelecer um novo lar e uma nova Igreja no novo mundo [...] seis mil congregações com aproximadamente três milhões de membros na América do Norte. Entrevista publicada com o presidente J. A. O. Preus da The Lutheran Church - Missouri Sy-nod. Mensageiro Luterano jan/fev 1980. Edição especial. Para Maiores detalhes ver: RIETH, Ricardo. Igreja Evangélica Luterana do Brasil: uma abordagem histórica. Revista Igreja Lute-rana, São Leopoldo: [s.n.], 1996. Reily, Duncan Alexander, História documental do protestantis-mo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1993.

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3 PRIEN, Hans-Jürgen. Formação da Igreja Evangélica no Brasil: das comunidades teuto-evangélicas de imigrantes até a Igreja de Con-fissão Luterana no Brasil. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 2001.

4 LÉONARD, Émile-G. O protestantismo brasilei-ro: estudo de eclesiologia e história social. 2. ed. Rio de Janeiro: Juerp; São Paulo: Aste, 1981.

5 TARSIER, Pedro. História das perseguições religiosas no Brasil. Cultura Moderna, 1936. 2 v.; ALVES, Ruben. Protestantismo e repressão. São Paulo: Ática, 1979; FACHEL, José P. G. As violências contra os alemães e seus descendentes durante a Segunda Guerra Mundial, em Pelotas e São Lourenço do Sul. Pelotas: Egufpel, 2002.

6 REHFELDT, Mário L. Um grão de mostarda: a história da Igreja Evangélica Luterana do Bra-sil. Trad. de Dieter Joel Jagnow. Porto Alegre: Concórdia, 2003. v. 1. p. 56.

7 REHFELDT, Mário L. Op. cit., 2003; p. 57. So-bre as tentativas de aculturação dos alemães no Brasil ver também WILLEMS, Emílio. A acul-turação dos alemães no Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1946.

8 TARSIER, Pedro. Op. cit., 1936; RIBEIRO, Bo-anerges. Igreja Evangélica e República Brasilei-ra (1889-1930). São Paulo: O Semeador, 1991; MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O celeste porvir

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- a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1994; MENDONÇA, Antonio Gouvêa; VELASQUES FILHO, Prócoro. Intro-dução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990.

9 REHFELDT, Mário L. Op. cit., 2003.10 Formado em Teologia em 1911, nos Estados Uni-

dos, e nascidos em 1889, Frankenmth, Mich.11 DE LUCA, Tânia Regina. História dos, nos e por

meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassa-nezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Con-texto, 2006. p. 111-153; CORRÊA, Ana Maria Martinez. Prefácio. In: DE LUCA, Tânia Regi-na. A revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.

12 BURKE, Peter (Org.). A escrita da história. No-vas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992. BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Ed. da Unesp, 2002; LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

13 Dos raros trabalhos com periódicos da Igreja Luterana do Brasil destacamos: DONNER, San-dra Cristina. Os jovens luteranos e a “revolução brasileira”: um estudo histórico da Congregação dos Estudantes de Porto Alegre, da Associação Cristã de Acadêmicos e da Revista da Juventu-de Evangélica na década de 1960. Dissertação (Mestrado em Teologia) - Instituto Ecumênico de Pós-Graduação, São Leopoldo, 2001.

14 REHFELDT, Mário L. Op. cit., 2003, p. 31.15 Era um integrante da colônia eleito pela maio-

ria para cuidar da vida espiritual dos integran-tes desta colônia.

16 REHFELDT, Mário L. Op. cit., 2003, p. 42.17 Seminário para a formação de pastores lutera-

nos, localizado em Missouri (MO) EUA.18 Seminário para a formação de pastores lutera-

nos, localizado em Illinois EUA.19 REHFELDT, Mário L. Op. cit., 2003, p. 45.20 WARTH, Carlos H. Op. cit., 1979, p. 41.21 MARLOW, S. L. De uma Igreja Germânica para

uma Igreja Brasileira. Caderno Especial do Pro-grama de Evangelismo e Mordomia da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, Porto Alegre, n. 15, p. 68-71, 2004; HUNSCHE, Carlos Hen-rique. Protestantismo no sul do Brasil. Porto Alegre: EST; São Leopoldo: Sinodal, 1983.

22 PEREIRA, Eduardo Carlos. O problema religio-so da América Latina: estudo dogmático histó-rico. 2. ed. São Paulo: Livraria Independente, 1949.

23 REHFELDT, Mário L. Op. cit., 2003, p. 99.

24 É um pedido feito pela congregação diretamente ao pastor ou à diretoria nacional, o qual tem a li-berdade de decidir se o aceita ou não, mas deve considerar o seu chamado como um chamado divino, e seu campo de trabalho como um lugar onde Deus o colocou como servo de Cristo.

25 Nome dado a instituição de formação teológica da Ielb.

26 REHFELDT, Mário L. Op. cit., 2003, p. 54.27 REHFELDT, op. cit., 2003, p. 84.28 WARTH, Carlos H. Op. cit., 1979. p. 143.29 O principal objetivo das escolas era valorizar

as Escolas Missionárias no recrutamento de membros para a congregação e, mais tarde, para o seminário na formação de obreiros. Para maiores informações ver KLUG, João. A escola teuto-catarinense e o processo de modernização em Santa Catarina – a ação da Igreja Luterana através das escolas (1871-1938). Tese (Doutora-do) - USP, São Paulo, 1997.

30 BUSS, Paulo Wille. Op. cit., 2006, v. 2, p. 31.31 BUSS, op. cit., 2006, v. 2, p. 34.32 BUSS, op. cit., 2006, v. 2, p. 127.33 BUSS, op. cit., 2006, v. 2, p. 200.34 Crise gerada por rumores que alegavam ter o

presidente da Ielb obtido verbas da LCMS para investimentos no Brasil de maneira sigilosa, sem o conhecimento do conselho ou de outras pessoas ligadas a administração.

35 A primeira controvérsia foi o envolvimento de pastores com o movimento carismático ou pen-tecostal e a outra foi a proposta, em convenção, de um maior envolvimento ecumênico da Ielb, como o ingresso no Conselho Luterano Latino Americano (CLLA) e uma aproximação com a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e American Lutheran Church (ALC).

36 BUSS, Paulo Wille. Op. cit., 2006, v. 2, p. 161.37 BUSS, op. cit., 2006, v. 2, p. 202.38 BUSS, op. cit., 2006, v. 2, p. 239.39 BUSS, op. cit., 2006, v. 2, p. 204.40 BUSS, op. cit., 2006, v. 2, p. 206.41 Nome dado à LCMS, por ser a fundadora do

distrito brasileiro e mantenedora das ativida-des administrativas e financeiras.

42 BUSS, Paulo Wille. Op. cit., 2006, v. 2, p. 119.43 BUSS, op. cit., 2006, v. 2, p. 118.44 BUSS, op. cit., 2006, v. 2, p. 208.45 Mensageiro Luterano, ano 50, fevereiro de 1967;

p. 6.46 WARTH, Carlos H. Op. cit., 1979, p. 298. 47 Mensageiro Luterano – março, 1977, p. 11.

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48 Nascido em Arroio do Meio - RS, em 1939, Paulo Kerte Jung concluiu seu curso em Teologia no Seminário de Porto Alegre em 1962, tornado-se pastor da Ielb; em 1963 foi chamado para ser pastor em Santo Ângelo - RS, onde permaneceu até 1968; foi também conselheiro orientador da Juventude Evangélica Luterana. Neste mesmo ano foi ser missionário em Portugal. Além de presidente da Igreja Evangélica Luterana de Portugal, foi diretor internacional da Hora Lu-terana naquele país. Em 1973 retornou ao Bra-sil para ser pastor em Porto Alegre na congre-gação “São Paulo” e secretário nacional da Ielb em 1974. Fez parte do Conselho Redatorial nas décadas de 1970 e 1980 do Mensageiro Lutera-no e participou de várias colunas e artigos des-te periódico. WARTH, Carlos H. Op. cit., 1979, p. 315 e Mensageiro Luterano, maio 1980, p. 22-23.

49 HOBSBAWM Eric J. A Era dos Extremos. O breve século XX 1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

50 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1994.

51 Mensageiro Luterano, set. 1988, p. 33.52 Mensageiro Luterano, ago. 1982, contracapa.53 Mensageiro Luterano, jul. 1980, 3ª capa. O pas-

tor responde: “Segundo a Bíblia o seu marido tem direito de repudiar a mulher, mas segundo a própria palavra ele tem também a opção de perdoar o seu erro, mas dificilmente ele a perdo-ará se souber por outros, por isso é melhor a se-nhora mesmo contar [...]. Mas antes de querer receber o perdão, você deve estar absolutamente certa do seu arrependimento e propósito de se corrigir.”

54 Mensageiro Luterano, maio 1989, p. 33. Outro questionamento foi lançado por uma moça que praticava a masturbação desde menina, a qual, ao descobrir que era pecado, procurou “corrigir-se do erro”. Aventando a possibilidade de ficar noiva começou a preocupar-se com a possibili-dade de não ser mais virgem e, por não querer enganar o noivo, recorreu à coluna do periódico para tirar as seguintes dúvidas.

Perguntou à leitora: “A masturbação estraga a virgindade? Ou o hímen apenas deixa de exis-tir quando houver relação com o sexo oposto? É possível uma moça se estragar sozinha? Será que sou virgem ainda? Por favor, estou aflita. Respondam-me.”

Respondeu o pastor: “Você colocou um problema que é de muitos. Você encontrou uma resposta

que muitos não sabem. Você buscou a solução com aquele que quer ajudar a todos, e a obteve.

A masturbação é de fato um pecado porque está associada com pensamentos e desejos impuros e é uma satisfação egoísta de uma necessidade que Deus previu ser satisfeita a dois, no casa-mento. Mas não é um pecado imperdoável. Deus o perdoa como tantos outros, você agiu corre-tamente [...]. Não tem, por isso, motivos para se martirizar ou traumatizar. Deve confiar no amor e na misericórdia de Deus.” Mensageiro Luterano, fev. 1982, contracapa.

55 Mensageiro Luterano, mar. 1983, contracapa. Resposta do pastor: “O tempo bom (chuva e sol na medida adequada) de fato é obra da Deus. Tempo seco, embora permitido por Deus não seja sua obra. É conseqüência do pecado, e por isso, pode ser combatido com irrigação artificial, é como a saúde (de Deus) e doença (do pecado). Podemos combater com remédio e a ajuda de Deus.”

56 Mensageiro Luterano, jan. 1989, p. 33. Assim respondeu o pastor: “Tingir os cabelos não é pecado, faz parte do adornar-se, característi-ca acentuada no sexo feminino, [...] os homens deveriam saber elogiar suas esposas, O antigo testamento fala muito em adornar-se, já no novo testamento geralmente é usado contra o uso de jóias. Tudo indica que Pedro não proibia, mas advertia o uso exagerado de fazer dos adornos um fim em si mesmo.”

57 Mensageiro Luterano, set. 1989. p. 33. Respos-ta: “Não é lei de Deus, que só as moças casem com vestidos de noiva, nem é lei de Deus que qualquer pessoa se case com vestido de noiva e branco. É uma tradição para simbolizar a pure-za com que Deus quer que seja iniciada a união. Lamentamos a desvirtuação deste símbolo em tempos modernos e não dá para se combater com a lei. Mas o casar grávida é pecado contra o sexto mandamento, escondendo vida sexual ati-va antes do casamento. Condescendemos com esse erro influenciado pelos tempos modernos. É para esse problema e não do uso do vestido que os cristãos devem prestar atenção.”

58 Mensageiro Luterano, fev./mar. 1986, contraca-pa. Resposta: “Segurar sua plantação, o carro, casa, não é falta de confiança em Deus e então pecado, mas é uma questão de administrar bem seus bens. Se fosse pecado pagar seguro, tam-bém seria pecado vacinar as crianças e adultos contra doenças [...]. Se Deus quer que usemos a nossa inteligência para preservar a vida que ele

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nos deu, no simples ato de atravessar a avenida, por certo ele não nos desaprovará se fizermos seguro para garantir o reembolso do investi-mento, caso seja destruída.”

59 Mensageiro Luterano. Jun. 1987, p. 33. Nas res-postas do rev. Paulo K. Jung, Jesus demonstra aos homens o perdão no cumprimento das leis criadas por Deus, quando feitas com sincerida-de, e a confiança que autoridades constituídas podem ter no cumprimento de suas obrigações, dentro das leis instituídas por uma nação.

60 Artigo publicado no Jornal de Oração por An-tônio Pacitti, sob o título “Carnaval – origem e natureza”, e reproduzido pelo mensageiro lu-terano.

61 Mensageiro Luterano, dez. 1988, p. 33.62 Pergunta realizada ao Mensageiro Luterano em

novembro de 1987 sobre doação de órgãos.63 Artigo publicado no Mensageiro Luterano em

setembro de 1989 por Anne Beatriz Schelp, membro da congregação Cruz de Petrópolis - RS, formada em enfermagem pela Ulbra e cola-boradora da equipe de transplantes de córnea da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.

64 Mensageiro Luterano, mar. 1984, p. 33.65 Mensageiro Luterano, dez. 1988, p. 33.66 Mensageiro Luterano, ago. 1988, p. 33. Respon-

de o pastor: “Os seus pais estão querendo pre-servar você de sofrimentos futuros. Embora o rapaz não beba, e admitindo que ele jamais siga o exemplo do pai, vocês não poderão isolar com-pletamente o seu lar, dos problemas gerados no lar dos pais de seu namorado, [...] você precisa estar preparada para esse tipo de conflito [...] é desses problemas que seus pais a estão preser-vando. [...] por que em vez de ficar quebrando a cabeça, você não se une a seus pais, ao seu na-morado e ao seu pastor (você diz que a família dele é luterana), para salvar o pai desse rapaz do vício que o domina. Você tem várias preocu-pações, menos com a sua alma. Quem sabe este é o caminho da felicidade que você tanto quer e merece?”

67 Mensageiro Luterano, jun. 1986, contracapa.68 Artigo publicado no Mensageiro Luterano em

agosto de 1980, por Placita Traudy Ellwanger Leyser.

69 Artigo publicado no Mensageiro Luterano em agosto de 1984 pelo estudante da Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia, Dieter J. Jag-now.

70 Artigo publicado no Mensageiro Luterano em agosto de 1988 pela estudante de comunicação

social (Publicidade e Propaganda) e vice-secre-tária da Jelb (Juventude Evangélica Luterana do Brasil) Verena I. Gewehr.

71 Neste mesmo periódico o leitor escreve para a coluna “O Leitor Pergunta”, preocupado com o uso inadequado do aparelho de televisão em sua casa, e faz a seguinte pergunta: “Minha casa já não é mais a mesma desde que adquirimos um aparelho de televisão. Os filhos deixam a mesa antes de terminar a refeição; não há mais tempo para as leituras bíblicas e devoção em família. Até o meu marido parece que gosta mais dos programas de TV do que de mim. Que devo fa-zer?” Respondeu o pastor: “Primeiro conquiste seu marido. Talvez você não lhe esteja dando a atenção que a televisão dá. Arrume-se seja atra-ente na atenção e na forma de falar [...]. Procure então, num diálogo honesto e calmo, mostrar-lhe os transtornos que a televisão esta trazendo ao vosso lar. Uma vez conquistando o marido, poderá com ele conquistar os filhos para a sua ‘causa’ [...]. Com o marido do seu lado, procurem num diálogo franco, em família, depois de ana-lisar os problemas que a situação vem criando, estabelecer algumas regras [...]. A natureza da programação da TV, com emissão praticamente nas 24 horas do dia, exigem e impõem que se façam determinadas regras de uso na família, antes de adquirir um aparelho, ou então, com mais esforço e custo, depois que se o possui, mas ainda antes que os membros da família se tor-nem estranhos sob o mesmo teto.” Mensageiro Luterano, ago. 1980, p. 29.

72 Mensageiro Luterano, out. 1980, p. 29.73 Mensageiro Luterano, set. 1988, p. 33. A respos-

ta que segue abaixo foi ordenada de três per-guntas de diferentes pessoas, mas com o mes-mo objetivo: “O cristão luterano pode fumar e beber? É pecado o crente ir a bailes cinemas, fumar e beber bebidas alcoólicas? É pecado fu-mar?” Respondeu o pastor: “Numa época em que autoridades investem, através de modernos meios de comunicação, com campanhas contra as drogas, não podemos deixar de incluir o ta-baco e o álcool, como elementos prejudiciais à saúde, particularmente quando consumimos além dos limites toleráveis do corpo humano. E é além desse limite que eles podem ser classifi-cados como pecado. Devendo constantemente se autojulgar de acordo com (1 Co 10.23) ‘todas as coisas são licitas, mas nem todas convêm; todas são licitas, mas nem todas edificam’. Quanto a bailes e cinema o censo cristão dos filhos de

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Deus determinará [...]. Não é o cinema, mas o filme que nos pode induzir ao pecado. Não é o baile, mas a maneira de dançar que pode indu-zir o pecado.” Mensageiro Luterano, maio 1987, p. 33.

74 REHFELDT, Mário L. Op. cit., 2003, p. 164.

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Resenha

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História: Debates e Tendências – v. 8, n. 1, jan./jul. 2008, p. 247-253, publ. no 1o sem. 2009

A obra Rio Grande em debate: conservadorismo e mudança é uma ini-ciativa do projeto Fronteiras do Pen-samento, realizado em 2007 em Porto Alegre. É composta por 11 textos e uma breve apresentação, na qual o organi-zador, Nelson Boeira, procura expor seus objetivos e justificar a seleção dos autores presentes nesta edição.

O livro aborda questões sobre o Rio Grande do Sul e tem o desígnio de permitir que as ideias expostas e dis-cutidas pelos conferencistas do projeto possam dialogar com os pensadores do estado e leitores, proporcionando, com base em versões e pontos de vista di-ferenciados, a reflexão sobre em que medida as concepções coletivas dos gaúchos os aproximam ou afastam dos ideais pluralistas das sociedades con-temporâneas avançadas.

Rio Grande em debate: conservadorismo e mudança1

Jacqueline Ahlert*

A obra propõe-se abrir novas perspectivas para o entendimento da crise gaúcha, do “descompasso entre a realidade e o imaginário cultural” ao processo de decadência do estado, que, limitado pelas próprias divergências internas, vê-se impotente diante da convivência “com uma auto-imagem positiva, mas congelada e paralisan-te”. (BOEIRA, 2008, p. 8). O cenário econômico empresarial, educacional e dos índices de desenvolvimento huma-no parecem não justificar os sentimen-tos de “frustração, apatia e depressão

* Mestra em História. Pesquisadora do Núcleo de Documentação Histórica do Programa de Pós-Graduação em História da UPF.

1 BOEIRA, Nelson (Org.). Rio Grande em debate: conservadorismo e mudança. Porto Alegre: Su-lina, 2008. 123 p.

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que acompanham boa parte das elites gauchas”. (BOEIRA, 2008, p. 8). Essas concepções negativas decorreriam, en-tão, de uma visão imparcial da reali-dade? Assim, a pergunta/desafio laça-da aos autores por Nelson Boeira foi: “Como explicar o descompasso entre a realidade efetivamente vivida pelos rio-grandenses e a percepção que boa parte das elites tem dessa mesma rea-lidade?”

O organizador solicitou que hou-vesse destaque, ainda, aos aspectos institucionais, culturais e históricos que “favorecessem ou dificultam a compreensão e o enfrentamento dos problemas2 do estado”. Foi sugerido aos autores também que não ficassem limitados a avaliações de natureza es-tritamente econômica ou política, cujo caráter controverso e litigioso pudesse vir a prejudicar a delimitação e o escla-recimento dos aspectos culturais rele-vantes para a questão em pauta.

Foi, além disso, solicitado aos autores que, ao refletir sobre o tema, considerassem a hipótese de a socieda-de gaúcha revelar, a um exame mais atento, um deficit de autoconsciência e autocompreensão de sua experiência histórica passada e presente, de seus desafios, potencialidades e limitações. Pondera, desse modo, sobre a conjectu-ra de que esse deficit seja componente fundamental das paralisias que po-dem ser identificadas neste momento

na sociedade gaúcha, constituindo-se, portanto, em obstáculo a ser removido através de um debate público informa-do.

As elucidações dos autores são de constituição, detalhamento e alcance bastante distintos, enfatizando pers-pectivas e aspectos diferentes do pro-blema geral. Valendo-se de vocabulário, estilos e referenciais intelectualmente heterogêneos, oferecem um panorama suficientemente informativo sobre os diferentes modos de perceber e avaliar o contexto atual do Rio Grande do Sul.

O leitor poderá observar algumas notas consonantes entre os autores que, ao analisarem a crise interna gaú-cha segundo as bases históricas e cul-turais do estado, enfatizam aspectos como a construção de uma identidade idealizada, tendo a figura do gaúcho como a pedra angular dos predicados virtuosos decorrentes de um passado coletivo glorioso, um éthos imaginário, concebido (ou inventado) por um gru-po seleto, mas gradual e amplamente cultuado.

Como decorrências desse proces-so desdobram-se conflitos identitários, socioculturais e políticos. Essas ques-tões demandam atenção na leitura, pois versam sobre a criação do outro como legitimador da “superioridade” gaúcha; do bairrismo; do fundamenta-lismo conservador; da problemática ge-radora do “espelho de origem”, do “en-

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tre-lugar” – criteriosamente dis cutido por Tau Golin; da transformação do gauchismo em produto de consumo in-dustrial, manipulado de acordo com as circunstâncias históricas de cada mo-mento, estendendo-se a um processo de fabricação e apropriação política da representação imaginária do gaúcho.

Juremir Machado da Silva inicia seu texto com a pergunta: O que faz um gaúcho ser gaúcho? Este questio-namento, segundo o sociólogo, traz consigo certa angústia metafísica e antropológica, já que a réplica basear-se-ia no ressentimento. Este, alicerça-do na pretensa superioridade cultural, política e educativa gaúcha, não “reco-nhecida à altura das nossas verdadei-ras competências” (p. 12). Juremir não delimita ao certo se os rio-grandenses sofrem do complexo de superioridade ou inferioridade, posto a “gauchidade” definir-se, sobretudo, por uma relação conflituosa entre o que lhe é inato e o que lhe é estranho, condição ampliada para a esfera do imaginário versus o co-tidiano, do “eu” versus o “outro”. Assim, o culto aos clichês positivos fica direta-mente relacionado às pesadas investi-das contras os estereótipos negativos: “A identidade é obsessão gaúcha por excelência” (p. 14), sendo o imaginário constituinte fundamental na imagem e na definição do “ser gaúcho”.

O poeta Fabrício Carpinejar, me-taforicamente, compara o Rio Grande

do Sul com Cuba, “uma Cuba não com bloqueio econômico, e sim, psicológico, na predisposição em somente cuidar e alentar quem adere ou compactua fisicamente de sua beleza e tradição” (p. 46). Estendendo a condição do outro também ao gaúcho que deixa o estado, compara esta saída a um exílio dentro do próprio país, onde a ascendência regional sobrepuja a nacional, num bairrismo anunciado: “A mística do modelo, muitas vezes, contribui para o gaúcho se sentir preso a um senti-mento contrastante de superioridade e culpabilidade.” Para o autor esses sentimentos azedam o relacionamento com parceiros de outras culturas e ma-nifestam o provincianismo, que parece frear a inserção gaúcha na economia da aprendizagem recíproca, o outro nome do cosmopolitismo (p. 42).

Merecem zelo na leitura as ob-servações de Kathrin H. Rosenfield. A nacionalidade austríaca da autora propicia-lhe o entendimento do olhar estrangeiro sobre a multiplicidade cultural rio-grandense. Consiste alvo de crítica da autora o que chamou de “panela” ética, categoria que deixa ní-tida a tendência de manter à distância quem não satisfaz às constituições do nós e expõe as reservas que marcam o outro como o outro, numa flagrante falta de sociabilidade que exclui o ou-tro pelo que lhe é desigual. De forma direta, a autora aponta as falhas na

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sustentação da identidade orgulhosa do rio-grandense, que isola cada micro-comunidade em seus roteiros de fre-quentação internos, afastamento que alimenta comparações distanciadas. Por fim, o texto denuncia a extensão deste isolamento às esferas culturais. O viver para “dentro” e a desconfiança do que vêm de fora fazem da educação, da arte e da cultura pouco integradas com a sociedade, a indústria e o comér-cio e colocam a universidade como uma produtora de ideologias e como elemen-to de pouco impacto sobre a política e o empresariado.

Em esferas semelhantes estão as problemáticas destacadas por Paulo Faria e Antonio Hohlfeldt. Numa posi-ção mais radical, Faria afirma ter “de-sistido” do Rio Grande do Sul, do seu povo “politizado”, de sua “democracia racial”, de seus cronistas do ínfimo. Em doze páginas conduz o leitor a um paralelo do que “poderíamos ter sido” baseado na leitura do livro Um estudo: arqueologia provincial fantástica, de Gabriel de Britto Velho.

Para Antonio Hohlfeldt, o proble-ma se estende a uma desqualificação do “de fora”, do estrangeiro e se aceita naturalmente a “condição de entidade sem identidade”. Permeando suas con-siderações pela condição de fronteira do estado, o autor lamenta o crescente ignorar da diversidade cultural do Rio Grande do Sul, que deveria ser usufruí-

da como uma grande vantagem. Se-gundo Hohlfeldt, os gaúchos sofrem de uma incurável esquizofrenia, doença de dupla personalidade que os impede de pensar criticamente sobre si mes-mos. “O gaúcho compara-se consigo mesmo” (p. 103) ou, mais precisamente identifica-se com a imagem idealizada que faz de si mesmo. Está, assim, em dissonância com sua experiência histó-rica e com o mundo que o cerca.

Esses conceitos são brevemente discutidos por Gunter Axt no 11° capí-tulo. Ao desvelar as indistinções entre o espaço público e o privado (sobre o pano de fundo das transformações po-líticas brasileiras e mundiais), conclui que os gaúchos padecem de uma “crise de referências”, consequência do esta-do de intoxicação por orgulho mitoló-gico.

A um exame atento, o leitor pode-rá observar que as reflexões de Golin podem ampliar o entendimento da opi-nião de Axt, para quem a suscetibilida-de da cultura de massa à manipulação de imagens, mais do que a articulação de ideias, é capaz de disneylandizar o espaço público.

A crise, quando cingida somente por uma matriz histórica e tradicional, impede a compreensão de sua ampli-tude e seus aspectos globalizantes. A imposição de uma identidade chamada “tradicional” – componente de uma so-ciedade visualmente representada –,

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já transformada em indústria cultural e reproduzida nos domínios do imagi-nário dissimulador da sociedade real, torna-se um obstáculo para a percep-ção da raiz multicultural construtora do estado e da visão e aceitação de uma realidade concreta.

Para Tau Golin, urgem estudos que relacionem o gauchismo com a crise da sociedade rio-grandense, “da especulação da emotividade à expres-são da indústria cultural na forma pilchada, o tradicionalismo impera sobre todos como o espectro da identi-dade regional” (p. 99). O autor avalia algumas noções de uso legitimador do tradicionalismo no estado. Seu sus-tentáculo estaria na atribuição a este de um sucedâneo da sociedade tradi-cional, que, para configurar-se, preci-sou diluir a noção de tempo histórico (p. 82). Assim, a gauchidade apresenta-se como se estivesse credenciada a re-produzir valores pretensamente imu-táveis forjados pelos antepassados. O historiador destaca o aspecto recente da invenção do perfil gauchesco, a par-tir de 1947, por um grupo de estudan-tes secundaristas. Atenta para o fato de que em meio século “o movimento como expressão hegemônica já incul-cou, irremediavelmente, na identidade sulina um ethos imaginário estancieiro e conservador, que estabeleceu cercas insuperáveis para assumir estéticas e plataformas democráticas de inclusão cidadã” (p. 92).

A identidade gauchesca possibi-lita ao indivíduo inserido no mundo moderno capitalista desvincular o seu fazer produtivo-social de seu viver cultural e imaginário. Nesse sentido, o tradicionalismo é, para Golin, uma extensão da cultura de massa, não o prolongamento de uma sociedade tra-dicional. Seus elementos de hábitos e costumes foram incorporados também como mercadorias: “em sua amplitu-de, a pós-modernidade tradicionalista projeta o estado-marca e todos os seus nichos subsidiários, nos quais a identi-dade se torna possível não pelo perten-cimento histórico” (p. 97).

Paulo Moura em “Raízes do con-servadorismo gaúcho”, atribui à con-dição conservadora uma das caracte-rísticas culturais mais marcantes dos rio-grandenses. Busca, partindo de tal pressuposto, explicar as raízes e ra-zões históricas do sentimento conser-vador agente do processo de reação à modernização da matriz econômica do estado. O autor faz uma breve análi-se da formação histórica da figura do gaúcho, tendo como sustentáculo a trajetória econômica do Rio Grande do Sul, desde a fundação de Buenos Aires, em 1536, até a integração continental brasileira ao Mercosul. Para Moura, a reminiscência de um passado de baixa competitividade da economia local pe-rante os competidores e investidores externos sempre foi causa de crises e

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acentuou nos gaúchos o sentimento de aversão à ideia de modernização, percebida pelo imaginário social como “ameaça” externa à sobrevivência eco-nômica (p. 27).

Contemplando também a esfera econômica, Vitor Bertini versa sobre temas específicos, valendo-se de con-siderações autobiográficas sobre a di-versidade política e econômica do esta-do. Para o autor, o Rio Grande do Sul carece de clareza na identificação dos seus interesses políticos, assim como de lideranças em nível nacional que possam operar no plano das grandes decisões sobre desenvolvimento. Ber-tini observa as discrepâncias entre a economia privada, responsável pelos maiores índices de investimento no es-tado, e sua alienação ao movimento das lideranças políticas regionais. Questio-na, além disso, a incapacidade da so-ciedade gaúcha de gerar processos de liderança suficientes para mudar o Rio Grande do Sul. O empresário é categó-rico ao afirmar que “nossas lideranças, tal como nossos debates públicos, são provincianos e autocentrados. Aceita-mos nosso isolamento das grandes de-cisões nacionais e com ele nos compra-zemos” (p. 19).

“Sirvam nossas façanhas de mo-delo a toda Terra?” é o título do texto de Regina Zilberman. A escritora des-taca ausências, porém distintas das de Bertini. Problematizando a trajetória

histórica que culminou na Revolu-ção Farroupilha e comparando-a, no decorrer de suas observações, com a Guerra do Paraguai, escreve a autora que “será a idealização do episódio far-roupilha que oferecerá os fundamentos da representação estética do universo sulino” (p. 70). Perpassadas pela con-textualização histórica, são citadas algumas das obras literárias mais im-portantes do estado, de 1875 à atuali-dade, detendo-se em partes na geração de 1930 e nas décadas em que houve maior alcance de projeção nacional da literatura gaúcha (durante a ditadura de Getúlio Vargas) e seu encolhimen-to à medida que avança o processo de democratização, na década de 1950. Em passagens do texto são analisados alguns correspondentes no campo lite-rário das manifestações do movimento tradicionalista. Zilberman denuncia as carências de que se ressente a literatu-ra no Rio Grande do Sul, entre elas a inércia de uma crítica literária profis-sional e a ausência de romancistas e intelectuais lidos e acatados no país e no exterior. A escritora conclui seu tex-to enfatizando que “procedem de Luis Fernando Verissimo (1936) os textos provenientes de Porto Alegre que os brasileiros aguardam semanalmente. Ao lado dele, porém, não dispomos de outros nomes para ajudá-lo a compor a equipe com que a história e a literatu-ra do Rio Grande do Sul gostariam de contar” (p. 85).

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Trata-se de uma obra instigante, cuja leitura deve ser cuidadosa e con-textualizada. As problematizações que guiaram os autores, bem como as ge-radas pelos mesmos, e as questões que procedem de cada texto devem ser con-sideradas uma referência bibliográfica imprescindível para os interessados em melhor compreender a configura-ção política, sociocultural e econômica do estado do Rio Grande do Sul. Por deslocar o olhar do leitor para além do senso comum e das generalizações, este conjunto de textos é indicado tam-bém para debates nas salas de aula das universidades gaúchas, contribuindo na formação de historiadores, pedago-gos, sociólogos, entre outros.

Nota2 Nelson Boeira esclarece que a expressão “pro-

blemas” refere-se, neste caso, tanto aos obstá-culos para o desenvolvimento econômico e social do estado, como às inércias culturais que difi-cultam a formação de consensos coletivos.

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