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DEBERT, G.. Desafios Da Politização Da Justiça e a Antropologia Do Direito

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  • Desaos da politizao da Justia

    e a Antropologia do Direito

    Guita Grin Debert

    Universidade Estadual de Campinas

    RESUMO: O artigo discute os desaos de uma antropologia do direito que tem como foco a sociedade do pesquisador e est voltada para a anlise do sistema de justia em sua relao com temas como a violncia contra a mulher e contra o idoso. A partir da apresentao dos debates no interior das teorias jurdico-feministas, as seguintes questes so exploradas: (1) a relao entre universalismo e os diferentes particularismos; (2) a oposio entre judicializao das relaes sociais e politizao da justia; (3) o carter das formas de controle que marcam as sociedades ocidentais contemporneas. Trata-se de apontar os limites e as falcias do conceito de cultura na compreenso de dilemas jurdico-polticos contemporneos.

    PALAVRAS-CHAVE: violncia contra a mulher, violncia contra o idoso, teorias jurdico-feministas, judicializao de relaes sociais, sistema de justia.

    Num artigo sobre o direito e o conhecimento local Geertz (1999, p.252) carac-teriza a antropologia do direito como uma disciplina centauro. Em coment-rios por ele mesmo considerados impertinentes, alega que os debates nessa rea so estticos e reiteram incansavelmente as mesmas questes: a jurisprudncia ocidental pode ser aplicada em contextos no-ocidentais? Como os africanos ou os esquims concebem a justia? Como disputas so resolvidas na Turquia ou no Mxico? As regras e ordenamentos jurdicos restringem os comporta-mentos ou servem como justicativas legitimadoras de interesses especcos?

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    No Brasil, diferentes dimenses do sistema de justia como a polcia e suas delegacias, as prises, o Tribunal do Jri tm atrado um nmero cada vez maior de pesquisas em antropologia. Contudo, pode-se dizer, h certa resistncia por parte dos pesquisadores na incluso e identicao destes trabalhos com a rea da antropologia do direito. Da mesma forma, os estudos clssicos, que consa-graram essa rea como um campo especco da reXexo antropolgica, nem sempre servem de inspirao s pesquisas realizadas. A tendncia dos pesquisa-dores, particularmente quando seus trabalhos tm tambm um foco nas mino-rias discriminadas, li-los em rubricas tidas como mais abrangentes como a antropologia poltica, estudos de gnero, raa e relaes intertnicas.

    O interesse deste artigo reXetir sobre os desaos envolvidos no tratamento do direito e do sistema de justia quando os temas abordados envolvem a nos-sa prpria sociedade. Procuro sugerir que a indignao possa ser um motivo central do entusiasmo que pesquisas sobre as diferentes instncias do judicirio tm despertado entre ns e do interesse renovado pela antropologia do direito. Tomando como base as diferenas e os debates no interior do que tem sido chamado de a teoria feminista do direito, busco dissolver a suposta homoge-neidade das posies que tm recebido essa rubrica e, por m, apresento um leque de questes que deveriam ser incorporadas na antropologia do direito, de forma a evitar identicaes apressadas ou estranhamentos fceis nos estu-dos que tm como palco a sociedade brasileira.

    Antropologia do Direito e Indignao

    Para Geertz, no artigo citado, denir uma rea ou uma subdisciplina ten-tar resolver o problema do saber local de modo equivocado. A criao de uma subdisciplina s tem sentido quando estiver em jogo um saber novo que no se enquadra totalmente nos ramos j existentes das disciplinas. A constituio de uma nova especialidade requer antes a denio de temas de pesquisa que se

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    encontram no caminho entre duas reas. Geertz sugere ento uma abordagem mais desagregante da antropologia e do direito, uma abordagem que v alm do ataque que uma disciplina possa fazer a outra, posto que o interesse da an-tropologia do direito no pode ser o de corrigir raciocnios jurdicos atravs de descobertas antropolgicas. Era exatamente isso, no entanto, que mais estimulava aqueles estudos empreendidos das vrias instituies do sistema de justia no pas. A base inspiradora do meu trabalho nas delegacias da mulher, nas delegacias de proteo do idoso e nos Juizados Especiais Criminais,1 eram os livros de Mariza Corra (1981 e 1983), que mostraram, com muita preciso e maestria, como guras jurdicas inusitadas so criadas de modo a dissolver a apregoada igualdade jurdica entre homens e mulheres como o caso da legtima defesa da honra. Era importante demonstrar, com rigor, aos juristas e outros prossionais do direito como a ideia de imparcialidade era bombar-deada, na prtica, por procedimentos tidos como expresso da normalidade e frutos de pura iseno. No seria pretensioso dizer que tivemos um sucesso relativo nessa direo. O estupro, depois de muitos debates encabeados por feministas, que muitas vezes tomaram emprestado pesquisas de cunho antro-polgico, passou a ser tratado de outra forma no Cdigo Penal Brasileiro2 e a legtima defesa da honra j no um argumento aceito juridicamente, embora seja ainda utilizado nas teses da defesa nos tribunais. Eram esses os debates que empolgavam porque mostravam como anlises cuidadosas podiam contribuir com um debate mais amplo, politizando questes que aparentemente eram expresses de pura neutralidade e imparcialidade.

    Geertz (1999, p.253) propunha algo mais calmo e tranquilo, um ir e vir hermenutico entre os dois campos, olhando primeiramente em uma direo, depois na outra, a m de formular as questes morais, polticas e intelectuais que so importantes para ambos.

    Para ele, a questo antropolgica central o lugar dos fatos nos julgamentos e essa relao entre os atos e autos do processo marcaram o trabalho de Mariza

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    Corra. Contudo, Geertz tende a relativizar de maneira excessiva as questes: a simplicao dos fatos, a sua reduo s capacidades genricas dos guardies da lei, , por si mesmo (...) um processo inevitvel e necessrio (1999, p. 257). Como antroplogos, conhecemos muito bem a fora das construes sociais, mas no se pode dizer que todas elas so equivalentes. Sabemos que a base da cultura a representao e se tudo representao isso no quer dizer que todas as representaes se equivalem. Geertz obviamente no diz isso, no pro-pe essa equivalncia. Mas falta no seu texto indignao, sentimento esse que me parece central para explicar o crescente interesse entre ns, por questes relacionadas com a antropologia do direito.

    A tranquilidade reXexiva que para Geertz deveria orientar as pesquisas s possvel quando examinamos um mundo que nos diz respeito de modo distante, quando o antroplogo pesquisa lugares longnquos e exticos e quer manter a todo custo esse exotismo.

    Mostrar que h sensibilidades jurdicas distintas e que elas tm eccia na resoluo dos conXitos sem dvida uma contribuio fundamental da antro-pologia do direito. O que j no se sustenta a viso da cultura, do saber local como totalidade homogeneizadora, coesa, fechada, determinstica e sistemti-ca, ideia que marcou o estudo das sociedades ditas primitivas, pensadas como igualitrias, nas quais no h lugar para poder e dominao. Como disse Sally Falk Moore (1989) no estudo sobre Kilimanjaro, na frica evocar a tradio pode ser tanto uma forma de resistir ao governo como um modo de enganar o prprio irmo.

    Antropologia Feminista, Poder e Imparcialidade

    A percepo de que a lei parte de um conjunto maior de instituies vol-tadas para o controle, a disciplina, a normatizao, no pode ser desconhecida ou minimizada. Principalmente com os trabalhos de Foucault, cou evidente

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    que o carter das mudanas histricas que levam criao de dispositivos es-peccos de poder deve ser integrado s anlises quando o foco no direito.

    A ausncia dessa dimenso histrica era, certamente, responsvel pelo in-teresse e pela opo dos pesquisadores de colocar as questes abordadas como tributrias da rea da antropologia urbana, da antropologia poltica ou da an-tropologia feminista. Com isso no quero dizer que se abandona a dimenso do debate de questes jurdicas. As teorias feministas j partem da crtica pretensa neutralidade do direito como um processo imparcial e universal de tomadas de decises do ponto de vista do sexo e da a incapacidade do mundo da justia de responder adequadamente condio feminina. Esse era tambm o ponto de partida do estudo que empreendi sobre as idades. Interessava contemplar a maneira pela qual a classicao etria dos indivduos desfaz, na prtica, a pre-tensa igualdade e a imparcialidade dos procedimentos e das decises tomadas.3

    Vale a pena realar que se liar antropologia feminista no supor um consenso entre as vrias teorias envolvidas. Num texto, que sempre vale a pena citar, Roger Raupp Rios (2002) mostra com muita preciso que pode-ramos dividir essas teorias que compem a feminist legal theory em quatro grandes correntes que incidem em argumentaes muito distintas no campo jurdico: feminismo liberal, feminismo culturalista, feminismo radical e femi-nismo ps-moderno.

    As feministas liberais defendem a igualdade de tratamento e tendem a ver qualquer diferena no tratamento de homens e mulheres como uma manifes-tao da ideologia de superioridade masculina. No campo jurdico advogam, por exemplo, a identicao da gravidez como qualquer outra condio fsica que inabilite os homens ao trabalho. Desse ponto de vista uma delegacia da mulher ou do idoso seria uma aberrao, uma forma de inferiorizao da mu-lher. A crtica a essa postura considera que nela o modelo masculino elevado a norma universal, em face da qual a igualdade apregoada e a qual as mulhe-res devem se conformar.

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    O feminismo culturalista teria como referncia especialmente a obra de Carol Gilligan (1982), que estabelece diferenas fundamentais entre homens e mulheres, da a ideia de uma voz diferente, ttulo do livro que cou famoso, no que tambm conhecido como o feminismo relacional. O pressuposto desta concepo que o processo de desenvolvimento moral distinto para homens e mulheres. Os homens ao se depararem com conXitos morais fazem referncia s ideias de justia e formulam raciocnios lgicos, baseados em di-reitos individuais abstratos; as mulheres, no entanto, so mais inclinadas a uma tica do cuidado, esto preocupadas com a preservao dos relacionamentos e preferem solues contextuais e personalizadas. Dado esse processo de de-senvolvimento diferencial, as mulheres teriam maior capacidade de solucionar problema, posto que a nfase por elas colocada no cuidado do outro. A abertura, a simpatia, a pacincia e o amor marcariam sua atitude na tomada de decises. Trata-se assim da armao e defesa de uma espcie de contracultura centrada na realidade das mulheres. Do ponto de vista jurdico a igualdade de tratamento dessas duas realidades diversas s seria possvel por meio de medi-das diferenciadas, por isso prope-se uma aplicao assimtrica do princpio de igualdade, centrada na condio feminina, diferenciada da masculina. O famoso caso da loja Sears e as veleidades do processo contra ela desencadeado por uma associao feminista muito bem tratado no livro de Antnio Flvio Pierucci, que tem o ttulo sugestivo de As Ciladas da Diferena.4

    O feminismo radical considera que tanto o feminismo liberal como o culturalista acabam por aceitar de modo acrtico a supremacia masculina na medida em que rearmam o status quo jurdico e se limitam a propor medidas de combate discriminao, resultante da dominao masculina. O feminis-mo radical para combater juridicamente o machismo volta a sua ateno para manifestaes concretas dessa dominao como o estupro, o aborto, os direi-tos de gays e lsbicas, o trco de mulheres e o assdio sexual e salientam as inconsistncias da neutralidade associada s estratgias antidiferenciadoras e a

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    situao de desvantagens das mulheres decorrentes dessa dominao masculi-na. Prope ento a reviso de diversos institutos jurdicos como a centralidade das provas e testemunhos.

    Por m, o feminismo ps-moderno faz a crtica radical s posturas essen-cialistas e universalistas presentes nos demais feminismos. Do ponto de vista ps-moderno, no h uma experincia feminina monoltica. preciso salientar a diversidade social, econmica, racial, tnica, religiosa e etria. A utilizao do direito seria pragmtica, sem se comprometer com a formulao de uma teoria jurdica sistematizadora dos diversos institutos jurdicos. A preocupao antes com a construo de respostas discriminao sexual a partir das desvantagens estruturais experimentadas pelas mulheres em situaes e posies distintas.

    Essas quatro vertentes, que poderiam ser desdobradas em outros modelos, so sucientes para mostrar que as teorias feministas constituem um campo de debates acirrados por questes candentes, em que a discusso terica acom-panhada de propostas de prticas sociais que podem ter eccia promovendo mudanas que impem novas caracterizaes das prprias instituies e agn-cias do sistema de justia estudadas.

    O meu primeiro trabalho com as delegacias da mulher foi em 1986. Em 1999, quando fui novamente pesquisar essas delegacias a situao j era ou-tra em consequncia da lei 9.099, que levou criao dos Juizados Especiais Criminais, mudando o quadro da atuao e da dinmica das delegacias nos atendimentos. Agora com a Lei Maria da Penha a situao j diferente.5 Essas mudanas foram resultados de reivindicaes dos movimentos feministas que estavam anados com as concluses das etnograas feitas nas diferentes ins-tncias do sistema: nas delegacias de polcia, no Tribunal do Jri, nos Juizados Especiais Criminais.

    preciso enfatizar essa retroalimentao energizante entre pesquisa, mo-vimento social e reivindicaes polticas especcas que d novos formatos pesquisa etnogrca. A velocidade das mudanas exige que se reveja no

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    apenas a noo de cultura e de saber local, mas tambm o prprio carter do trabalho de campo, a centralidade do presente etnogrco e o fazer antro-polgico como a interpretao do ponto de vista nativo, pois se trata de um mundo em ebulio.

    A necessidade de energizar a antropologia foi um dos temas abordados por Laura Nader, no artigo Up the Anthropologist - Perspectives Gained from Stu-dying Up, publicado em 1969, numa coletnea organizada por Dell Hymes, intitulada Reinventing Anthropology, portanto, muito antes do conjunto de propostas de reviso do fazer antropolgico caracterizado como o ps-moder-nismo na antropologia. Nesse artigo, a autora faz um apelo aos antroplogos norte-americanos para que eles se voltem ao estudo de sua prpria socieda-de, especialmente para a compreenso de como o poder e a responsabilidade so exercidos nos EUA.6 Trs razes so alegadas pela autora para justicar a importncia desse novo programa de pesquisas: a antropologia estaria cien-ticamente adequada para tal empreendimento; tratar-se-ia de um empre-endimento que tem relevncia democrtica; e, o programa teria um efeito energizador da disciplina.

    A antropologia, de acordo com Nader, estaria especialmente qualicada para reXetir sobre a forma como poder e responsabilidade so exercidos. Suas pesquisas sempre tiveram que ser eclticas nos mtodos utilizados, e sua abor-dagem do que est envolvido na compreenso da humanidade ampla, posto que os antroplogos se especializaram na compreenso de culturas em contex-tos transculturais. Os antroplogos aprenderam, ainda, a encontrar e analisar redes de poder, descrever costumes, valores e prticas sociais que no esto registrados em linguagem escrita. A leitura da quantidade avassaladora de ma-terial escrito que instituies poderosas produzem ajuda pouco na compreen-so de como decises so tomadas nos Tribunais, no Congresso ou em uma empresa, de como determinadas polticas so implementadas ou temas para pesquisa so denidos como prioritrios e recebem nanciamentos espec-

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    cos. Para entender essas questes preciso se debruar sobre redes de relaes, valores e prticas que dicilmente so identicadas no papel. Exigem antes o treino e a familiaridade com que o antroplogo trabalha com o princpio de reciprocidade e com a dimenso cultural quando analisa prticas que no podem ser explicadas como frutos de clculos racionais.

    A relevncia democrtica de tal programa de pesquisas, de acordo ainda com essa autora, estaria no fato de que o povo americano, e isso tambm vlido para ns, no conhece suas prprias leis e no sabe como funcionam as organizaes burocrticas que usa. No podemos deixar que o aprendizado de nossos direitos que inteiramente a cargo da mdia. A antropologia est bem equipada metodologicamente para descrever um sistema que se conhece vagamente e que tem um peso fundamental no direcionamento da nossa vida.

    Com a expresso efeito energizador, Nader procurava chamar a ateno para a importncia da indignao como um motivo na denio dos temas da pesquisa antropolgica. Lembrava que desde os primeiros estudos dos sis-temas de parentesco e organizao social como em Morgan, por exemplo, que foi o primeiro presidente da Associao Americana de Antropologia no esteve ausente a indignao com a forma pela qual os ndios americanos eram tratados e expulsos de seus territrios. Entretanto, os jovens estudantes de antropologia no se voltam para pesquisas que provocam seus sentimentos de indignao. Sabemos que existem problemas fundamentais que afetam o futuro do Homo sapiens, mas ainda estamos presos a uma agenda de pesquisas que depois dos anos 1950 deixou de provocar esse tipo de emoo.

    No Brasil estamos preocupados em analisar o nosso prprio pas e por isso mais fcil aceitar esse tipo de desao pesquisa antropolgica. O que acho mais importante e muito interessante que esse efeito energizador, que cer-tamente est presente na antropologia feminista, precisa ser mobilizado pela antropologia do direito, renovando questes e abordagens capazes de revigorar essa disciplina centauro, na expresso de Geertz.7

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    Passo ento a apresentar algumas das questes e dilemas que tm mobiliza-do os estudos que venho empreendendo.

    Universalidade, Particularidade e Judicializao das Relaes Sociais

    Falar em sistema de justia tratar de conjuntos muito distintos de insti-tuies e agncias como a polcia, o ministrio pblico, os tribunais. Os signi-cados e os usos de cada uma delas pelos diferentes segmentos populacionais so muito variados. A polcia, por exemplo, certamente a instncia exposta com maior frequncia pela mdia, e suas delegacias, os distritos policiais, so equipamentos amplamente utilizados pela populao mais pobre para co-nhecer a lei e encontrar um respaldo legal para a resoluo de conXitos. Essa visibilidade da polcia contrasta, por um lado, com a viso de que seus agentes agem de maneira arbitrria, so inecazes no combate violncia e afeitos corrupo e, por outro, com a posio de subalternidade que a instituio ocupa no sistema de justia criminal, na medida em que a autonomia das pr-ticas policiais limitada no apenas pelo judicirio e pelo ministrio pblico, mas tambm pelas prprias autoridades policiais por meio de suas corregedo-rias. nesse contexto, dos dilemas enfrentados pela instituio policial, que as prticas nela desenvolvidas, seus signicados e usos devem ser entendidos. Da mesma forma, seria apressado identicar os avanos na justia do trabalho com os procedimentos prprios da justia cvel ou criminal. Em suma, h uma diversidade muito grande dentro disso que tratamos como um sistema e reas muito mais abertas mudana do que outras em que as coisas parecem ter um carter imutvel. De todo modo, vale a pena lembrar a centralidade da crtica a esse sistema empreendida pelo feminismo brasileiro, essa crtica no ganhou tal proeminncia em outros contextos nacionais.

    As delegacias especiais de polcia colocam de imediato a questo da uni-versalidade e da particularidade em relao imparcialidade. Para alguns

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    autores h uma contradio insolvel entre as reivindicaes de universali-dade e a luta pelos direitos das minorias. Contudo, importante reconhecer que essas reivindicaes so partes de um conjunto de aes levadas a cabo por organizaes governamentais e da sociedade civil empenhadas no com-bate forma especca pelas qual a violncia incide em grupos discrimina-dos. Tendo suas prticas voltadas para segmentos populacionais especcos, o pressuposto que orienta a ao dessas organizaes que a universalidade dos direitos s pode ser conquistada se a luta pela democratizao da socie-dade contemplar a particularidade das formas de opresso que caracterizam as experincias de cada um dos diferentes grupos desprivilegiados. Esse mo-vimento leva criao de tipos diversos de delegacias de polcia que tero impactos distintos, a exemplo das delegacias da criana e do adolescente, do idoso e as de crimes de racismo. O dilema dos agentes em cada uma dessas instncias combinar a tica policial com a defesa dos interesses das minorias atendidas. Esse desao cria arenas de conXitos ticos, que dicil-mente poderiam ser solucionados com a defesa de uma perspectiva tpica do feminismo liberal.

    Alm disso, o modo como se do esses embates traz novas dimenses para a ideia de saber local, num mundo em que organizaes internacionais so ativas na garantia de direitos das minorias por elas contempladas e exigem que os governos nacionais cumpram esses direitos claramente expressos em planos de ao. Em julho de 2009, no Congresso da Associao Internacional de Gerontologia e Geriatria que rene mdicos, paramdicos e cientistas so-ciais que trabalham e pesquisam questes relacionadas ao envelhecimento a violncia contra o idoso foi um dos temas centrais abordados nas pesquisas apresentadas. O interesse pelo tema era claramente um resultado da Assem-bleia das Naes Unidas realizada em Madrid em 2002, que transformou a violncia contra o idoso em uma questo de direitos humanos. Planos de ao a serem adotados em diferentes pases foram aprovados, bem como re-

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    cursos foram alocados para pesquisas, cujos resultados so apresentados em eventos nacionais e internacionais.

    As convenes e organismos internacionais contam com antroplogos em seus quadros de prossionais e os textos produzidos, depois de todas as reco-mendaes aos governos, reiteram a armao de que as especicidades da cultura local devem ser respeitadas. O protagonismo dos movimentos sociais e das organizaes internacionais exige a transformao da violncia em crime, posto que s a partir da criminalizao e da tipicao das agresses contra idosos que a justia pode entrar em ao e os acordos e os planos de ao inter-nacionais podem ser implementados e avaliados.

    um movimento muito semelhante ao que levou a transformao da violncia contra a mulher em direitos humanos. No caso da velhice, a vio-lncia tanto nos projetos de pesquisa como nas propostas de ao passou a compreender cinco tipos de crimes: negligncia, abuso nanceiro, fsico, psicolgico, sexual.

    Os conXitos entre particularidade e universalidade oferecem tambm um carter especco ao que tem sido chamado de judicializao das relaes so-ciais. Essa expresso busca contemplar a crescente invaso do direito na orga-nizao da vida social. Nas sociedades ocidentais contemporneas, essa invaso do direito no se limita esfera propriamente poltica, mas tem alcanado a re-gulao da sociabilidade e das prticas sociais em esferas tidas, tradicionalmente, como de natureza estritamente privada, como so os casos das relaes de g-nero e o tratamento dado s crianas pelos pais ou aos pais pelos lhos adultos.

    Os novos objetos sobre os quais se debrua o Poder Judicirio compem uma imagem das sociedades ocidentais contemporneas como cada vez mais enredadas com a semntica jurdica, com seus procedimentos e com suas instituies.

    Alguns analistas consideram essa expanso do direito e de suas instituies ameaadora da cidadania e dissolvente da cultura cvica, na medida em que

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    tende a substituir o ideal de uma democracia de cidados ativos por um or-denamento de juristas que, arrogando-se condio de depositrios da ideia do justo, acabam por usurpar a soberania popular.8 As delegacias especiais de polcia voltadas para a defesa de minorias so, no entanto, fruto de reivindica-es de movimentos sociais e, por isso, poderiam ser vistas como expresso de um movimento inverso de politizao da justia. Indicariam antes um avano da agenda igualitria, porque expressam uma interveno da esfera poltica capaz de traduzir em direitos os interesses de grupos sujeitos ao estatuto da de-pendncia pessoal. Por isso mesmo, a criao das delegacias especiais cria uma expectativa de que essas instituies, para alm da sua atividade estritamente policial, abririam tambm um espao pedaggico para o exerccio do que so consideradas virtudes cvicas.

    Dizer que as delegacias especiais so formas de politizar a justia no quer dizer que elas no correm o risco de se transformar em instrumento de judicia-lizao de relaes sociais.

    O funcionamento dessas instituies e os dilemas vividos por seus fun-cionrios no desempenho de suas funes tm um papel ativo na construo de uma nova categoria de crimes a violncia domstica , que d novos contedos maneira como os dados sobre a violncia urbana so tratados no contexto brasileiro. Essa nova categoria transforma concepes da crimi-nologia, na medida em que vtimas e acusados passam a ser tratados como uma espcie de cidados falhos, porque so incapazes de exercer direitos civis que j foram conquistados. As causas envolvidas na produo dos crimes so vistas como de carter moral ou resultados da incapacidade dos membros da famlia em assumir os diferentes papis que devem ser desempenhados em cada uma das etapas do ciclo da vida familiar. A famlia passa a ser vista como um aliado fundamental das polticas voltadas para um segmento populacio-nal que se considera formado por cidados malogrados ou potencialmente passveis de malogro.

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    Estamos, assim, muito distantes da famlia patriarcal tal como esse mo-delo foi caracterizado no estudo sobre a famlia brasileira.9 No se trata de um mundo privado impenetrvel s instituies estatais e ao sistema de justia. Estamos tambm muito distantes da famlia como o reino da proteo e da afetividade, o refgio num mundo sem corao. A famlia antes percebida pelos agentes das instituies analisadas como uma instn-cia geradora de violncia em que os deveres de cada um de seus membros, ao longo do ciclo da vida, precisam ser claramente denidos, cabendo s instituies da justia criar mecanismos capazes de reforar e estimular cada um deles no desempenho de seus respectivos papis.

    Uma tica distinta da que caracterizava o papel da famlia em agendas anteriores est em jogo. No ps-guerra, Simon Biggs considerava que as ideologias e prticas do Welfare State tinham um contedo paternalista que impedia o questionamento da integridade da famlia como instncia pri-vilegiada para arcar com o cuidado de seus membros. Esse paternalismo abalado nos anos 1970 pelos movimentos de denncia da violncia contra a criana e a mulher. Na agenda atual, os deveres e as obrigaes da famlia so denidos, e consta da nossa Constituio o dever de uma gerao am-parar as geraes mais velhas e as mais novas.10

    O que ca evidente que instituies criadas para garantir direitos in-dividuais, como so as delegacias da mulher, paradoxalmente, podem, na prtica, redenir seus objetivos como sendo apaziguar os conXitos na fam-lia. Enm, este contexto ps-direitos sociais e as novas formas de opresso que a partir dele so geradas merecem uma anlise mais detida.

    Os antroplogos j mostraram que a noo ocidental de poder al-tamente restritiva quando se tm em vista outras sociedades. Contudo, preciso tambm reconhecer a fragilidade dos paradigmas que tm orienta-do a nossa percepo das formas de poder e controle que caracterizam as sociedades ocidentais contemporneas. Expresses como sociedades ps-

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    disciplinares, panptico eletrnico, sociedade de risco ou justia atua-rial so usadas para dar conta das mudanas que caracterizam as sociedades em que vivemos, em oposio aos autores que consideram que a mudana no foi assim to radical, embora tenha havido uma complexicao das formas de controle.

    O que certamente merece ser avaliado com cuidado, como sugere Nikolas Rose (2000), o modo como o discurso contemporneo sobre o controle do crime combina formas aparentemente incompatveis na caracterizao dos problemas abordados e nas formas de solucion-los. Propostas enfatizando a necessidade dos indivduos e das comunidades se tornarem mais respon-sveis pela sua prpria segurana coexistem com argumentos a respeito da tolerncia zero. Reivindicaes de pena de morte convivem com propostas que focalizam a relao entre agressor e vtima. O prisioneiro deve ser incapa-citado ou deve ser ensinado de modo a aprender as habilidades necessrias convivncia social? O interesse pelas formas comunitrias de controle ganha cada vez mais importncia com a proposta de multas e servios comunitrios e, ao mesmo tempo, h um crescimento da populao encarcerada.

    O aumento das formas de controle parece vir acompanhado do interesse dos Estados de abrirem mo de certas reas que caracterizam o biopoder num convite ao cidado, s organizaes no governamentais e famlia para assumir uma parceria e redistribuir obrigaes.

    Oferecer elementos capazes de dar conta do carter dessas mudanas e de como elas afetam as formas do exerccio do poder e a vida de cada um de ns fazer um convite irrecusvel para uma antropologia do direito. Uma antropologia sintonizada com aquela que ns aprendemos fazer analisando a nossa prpria sociedade; uma antropologia que jamais dispensou a inter-locuo intensa com a Sociologia e a Cincia Poltica; uma antropologia que, certamente, no pode se fechar aos debates nas outras antropologias, como a antropologia poltica ou a antropologia feminista.

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    Notas1 Cf. Debert, G. G. e Gregori, M. F., 2002.

    2 Lei n. 12015 de 12/08/2009.

    3 Cf Debert, G. G. e Oliveira, A. M., 2007.

    4 Cf. Pierucci, 2000. Ver tambm a resenha de Maria Filomena Gregori (2000).

    5 Questes como mudana social em relaes de poder e dominao eram o tema central des-

    sas pesquisas. Como as leis e os procedimentos jurdicos privilegiam determinados grupos em

    detrimento de outros? Em que medida os grupos mais fracos podem aumentar seus recursos por

    meio da legislao? Como entender as mudanas legais? Em que medida os diferenciais de poder

    explicam mudanas na legislao ou a persistncia de ideias e procedimentos legais? Mais do que

    entender como as sociedades resolvem pacicamente disputas, o interesse era ver como indivduos

    e grupos usam recursos legais para obter determinados ns. Nesse sentido, as pesquisas realizadas

    estavam anadas com os estudos antropolgicos, em que mais do que focalizar a lei enfatizam os

    processos. Para resultados da pesquisa ver Debert, G. G. & Beraldo de Oliveira, M. (2007). Os

    modelos conciliatrios de soluo de conXitos e a violncia domstica. Cadernos Pagu, 29, pp.

    305-338 e tambm Debert, G. G. e Gregori, M. F. Violncia e Gnero: novas propostas, velhos

    dilemas, in Revista Brasileira de Cincias Sociais vol. 23, n 66, fevereiro de 2008.

    6 Sobre o impacto do artigo de Nader nos estudos de cultura e poltica, ver Debert, 1997.

    7 Falar em efeito energizador no politizar temas e questes e desprezar a dimenso analtica

    do trabalho antropolgico, antes no perder de vista a relao da justia com um sistema

    maior, o carter das mudanas que tm lugar, a dimenso das relaes de poder e dos conXitos

    envolvidos, como os mais fracos ou os mais fortes usam a lei em funo dos seus interesses, e

    como as mudanas legais podem redenir relaes de fora.

    8 Para um balano deste debate ver Werneck Vianna et al., 1999 e sobre a judicializao dos

    conXitos conjugais ver Riotis, 2003.

    9 Sobre o tema ver Corra, op. cit. e Lins de Barros, 1987.

    10 Ver especialmente na Constituio de 1988 os artigos 229 e 230 do Ttulo VIII Da Ordem

    Social em seu Captulo VII Da Famlia da Criana do Adolescente e do Idoso.

    Art. 229. Os pais tm o dever de assistir, criar e educar os lhos menores, e os lhos maiores

    tm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carncia ou enfermidade.

    Art. 230. A famlia, a sociedade e o Estado tm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando

    sua participao na comunidade, defendendo sua dignidade e garantindo-lhes o direito vida.

    RenatoRealce

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    ABSTRACT: e article discusses the challenges faced by an anthropology of law that focuses on western modern societies and on the analysis of the justice system in its relation to issues such as violence against women and violence against the elderly. Buil-ding on the debates within the legal-feminist theories, the following subjects are ex-plored: (1) the relationship between universalism and dierent forms of particularism, (2) the opposition between judicialization of social relations and the politicization of justice, (3) new forms of control that characterize contemporary societies. e author points out the limitations and fallacies of the concept of culture in the understanding of contemporary legal and political dilemmas.

    KEYWORDS: Violence against women, violence against the elderly, legal feminist theories, judicialization of social relations, justice system.

    Recebido em fevereiro de 2010. Aceito em abril de 2010.