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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
APLICAÇÃO DA PROVA DE RORSCHACH A UM PROFESSOR DE H ATHA-
YOGA – ESTUDO DE CASO COM UMA VISÃO JUNGUIANA
Deborah Marçal Bueno de Almeida
São Carlos 2005
Monografia realizada como parte das exigências para obtenção do Grau de Bacharel no Curso de Graduação em Psicologia da UFSCar, sob a orientação da Prof. Marília Gonçalves.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente à minha família, em especial meus pais e minha irmã, que
sempre estiveram ao meu lado, que me apoiaram desde antes do meu ingresso na faculdade,
que sempre confiaram no meu trabalho e que estiveram sempre dispostos a ler minhas
redações inacabadas, escutar minhas reclamações por dificuldades durante o
desenvolvimento do trabalho, e comemorações por acertos.
Agradeço ao meu namorado, Luis Fernando, que apesar de ter entrado na minha
vida na metade da elaboração deste trabalho, foi essencial em momentos de crise, em que
as palavras simplesmente não apareciam na tela do computador.
Também sou muito grata ao meu grupo de monografia, Murilo, Caroline e Mariana,
que foram essenciais na elaboração do trabalho a partir das discussões eternas no início da
pesquisa. Dentre estes, agradeço especialmente à Mari, minha amiga, irmã, dupla de
monografia, que depois de mim foi a pessoa que mais acompanhou de perto todo o meu
trabalho.
Agradeço à minha orientadora, Marília. Ela é uma daquelas pessoas únicas, que
você conhece talvez a cada trinta anos na sua vida e que sabe falar a coisa certa na hora
certa, sabe admitir suas próprias falhas, sabe reconhecer o valor dos outros, sabe quando a
supervisão deve abrir espaço para uma conversa profunda, sobre a vida. Cada supervisão
foi não só um aprendizado acadêmico do qual nunca me esquecerei, mas mais do que isso
foi uma lição de vida.
Agradeço à Ana Carolina, sujeito neste trabalho, sempre solícita e disposta a
participar de maneira simpática e sincera. Sem ela esta pesquisa não teria se realizado.
Finalmente, agradeço a Deus por ter me dado a oportunidade de conviver com
tantas pessoas maravilhosas, inclusive as que não citei. Dentre elas estão minhas amigas de
república (Flávia, Letícia, Mariana, Thais e Uiara), minhas irmãzinhas, as quais eu amei
nos primeiros quatro anos de convivência e continuarei amando não importa a distância que
nos separe e o caminho que cada uma siga em sua vida. Também agradeço aos meus outros
amigos de turma, meus amigos de Campinas, meus professores. Todos eles me ajudaram a
desenvolver um trabalho tão prazeroso e do qual eu me orgulho muito.
Obrigada!
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RESUMO
Ultimamente o ocidental encontra-se cada vez mais buscando técnicas, práticas e
filosofias orientais para ajudá-lo em seu cotidiano. Dentre estas práticas, uma das mais
procuradas é o yoga, o qual confere valor à prática contemplativa por ser esta a única capaz
de revelar experimentalmente a autonomia e o poder do espírito. Entretanto, é preciso
atentar-se para o fato de que os ocidentais utilizam-se de práticas tais como o yoga da
mesma maneira que se utilizam de suas próprias técnicas e religiões, ou seja, como uma
maneira de encontrar um ser externo que o ajude a lidar com seus problemas e dificuldades.
Este estudo irá focar-se no hatha-yoga, sistema mais procurado no Ocidente, que
tem seu enfoque no corpo e trata-se de um conjunto de posturas corporais que aliadas à
respiração e auto-observação visa levar o aluno a buscar o seu ponto de equilíbrio corporal
e respiratório.
O sujeito desta pesquisa é uma professora de yoga, com mais de dois anos de
exercício. Ela foi submetida inicialmente a uma anamnese e então à aplicação da Prova de
Rorschach. Através da articulação dos dados oferecidos pelos dois modos de coleta de
informações sobre o sujeito, nos foi fornecido um panorama do perfil afetivo-emocional em
curso ou em desenvolvimento naquele momento da vida do sujeito.
Através desta pesquisa buscou-se identificar algumas das características mais
marcantes do sujeito e encontrar hipóteses de fatores psicológicos que possam ter influência
sobre elas. Dentre estes fatores, considerou-se importante ressaltar inicialmente dados
observados a partir da interpretação da aplicação do teste utilizado neste estudo
(Rorschach), bem como do funcionamento psíquico de acordo com o inconsciente pessoal
do sujeito, e em um plano mais amplo, as influências observáveis, em um primeiro
momento, do inconsciente coletivo e seus arquétipos.
Palavras-chave: Prova de Rorschach, hatha-yoga, pesquisa qualitativa, Jung
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ÍNDICE
Prefácio – Mundo-Vida...............................................................................................5
Introdução...................................................................................................................6
Objetivos...................................................................................................................22
Método......................................................................................................................23
Procedimento.............................................................................................................24
Resultados e Discussão.............................................................................................26
Bibliografia...............................................................................................................42
Anexos
Anexo 1 (Roteiro de entrevista).....................................................................43
Anexo 2 (Consentimento informado)............................................................44
Anexo 3 (Tabela com equação da Prova de Rorschach – Respostas
Principais)..................................................................................................................45
Anexo 4 (Tabela com equação da Prova de Rorschach – Respostas
Adicionais)................................................................................................................48
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PREFÁCIO – MUNDO-VIDA
No decorrer de toda a minha vida, sempre refleti a respeito do porquê de as pessoas
agirem de determinada maneira, de fazerem determinadas escolhas, enquanto outras
pessoas, em condições semelhantes agiam de formas completamente diferentes.
Quando, aos dez anos de idade, comecei a praticar Taekwondo, uma arte marcial
advinda da Coréia, eu era uma menina extremamente tímida, fechada em mim mesma,
medrosa e insegura. Depois de pouco menos de três anos, quando parei de lutar por não
querer participar de competições, eu já estava muito mudada, muito mais extrovertida,
sabendo lidar com as pessoas e me relacionar com elas, sem tanto medo de me expor e mais
confiante de mim mesma.
Pouco tempo depois, minha mãe começou a praticar yoga e logo começou a
apresentar mudanças consistentes em sua vida. Passou a ser mais forte emocionalmente,
aprendendo a lidar com as perdas de uma forma mais consciente, sabendo se expressar e
confrontar as situações melhor.
Observando tanto o que aconteceu com minha mãe quanto o que havia acontecido
comigo, além do meu interesse por psicologia, especialmente analítica, fiquei muito
interessada em entender qual é a relação de práticas e filosofias orientais que ajudam tanto
as pessoas, e a psicologia, que eu também sabia que era muito útil no auxílio ao
desenvolvimento emocional das pessoas. Além disso, retomei meu interesse na natureza
humana, querendo entender o que leva algumas pessoas a procurar essas práticas, e como é
que elas as ajudam tanto.
A oportunidade de desenvolver uma monografia na qual seria possível o estudo do
yoga aliado à Psicologia Analítica e um teste projetivo me animou muito, a ponto de ser
determinante no meu retorno à prática do Taekwondo, o que eu sempre tinha vontade de
fazer, mas nunca tinha a coragem. Essa volta me mostrou mais uma vez que ele é
importante em minha vida, e como havia me feito falta.
Assim, é muito empolgante poder estudar algo que me é tão familiar, além de poder
me aprofundar em assuntos por que me interesso e que são de difícil acesso no grade
curricular, como Psicologia Junguiana e testes projetivos.
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INTRODUÇÃO
Como aconteceu há milhares de anos atrás, quando ocorreu a expansão do Império
Romano, novamente as religiões e culturas orientais e ocidentais se encontram.
FROMM (1960) acredita que este encontro se dá devido ao interesse dos ocidentais
pelo Oriente e suas filosofias. A grande questão que se forma a partir disso é o porquê deste
interesse tão intenso, e ele tenta responder a isso quando afirma que o homem ocidental está
passando por uma "histórica crise espiritual", a qual já havia sido detectada anteriormente
por diversos autores e denominada automatização do homem, alheamento de si mesmo, do
seu semelhante e da natureza. O homem alcançou um ponto em que o racionalismo, tão
difundido, acabou transformando-se em irracionalidade, e a dominação da natureza pelo
intelecto tornou-se sua principal meta.
O homem ocidental "se acha num estado de incapacidade esquizóide de
experimentar afeto e por isso sente-se ansioso, deprimido, desesperado”. Este ainda exalta,
externamente, os objetivos de felicidade, individualismo, iniciativa – mas, na realidade, não
tem objetivo algum. Perguntem-lhe para que está vivendo, qual é a finalidade de todos os
seus esforços – e o verão enleado. O mesmo autor afirma: “Alguns dirão talvez que vivem
para a família, outros, para “divertir-se”, outros ainda, para ganhar dinheiro, mas a verdade
é que ninguém sabe para que está vivendo; não tem alvo, a não ser o desejo de escapar à
insegurança e à solidão”.
Talvez aí se encontre a explicação para esta busca; na necessidade de "algo mais
profundo", que lide com o interior do ser humano, que considere não só o psíquico, mas
também o transcendente. Como o próprio autor nos mostra, isto é tão evidente que é cada
vez maior o número de membros de igrejas, bem como o número de livros sobre religião e
de pessoas que falam em Deus. De acordo com Freud, isto pode ser pensado como sendo
causado pelo desamparo da existência humana, e na tentativa do homem de lidar com esse
desamparo através da crença num pai e numa mãe salvadores, capazes de ajudá-lo,
representados por Deus no céu.
Entretanto, parece que a forma como o cristianismo transmite a idéia de Deus não
tem sido suficiente para calar as angústias do homem do Ocidente, uma vez que a
dependência a um ser superior vai contra a racionalidade, o realismo e a independência, tão
valorizados pelo homem moderno.
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Inicialmente tanto as religiões européias quanto as orientais tinham como objetivos
maiores a superação das limitações do eu egoísta, o alcance do amor, da objetividade e da
humildade, o respeito à vida de modo que sua finalidade fosse o próprio viver, e a
transformação do homem no que ele potencialmente era. A diferença é que o Oriente não
tinha esse conceito de um pai-salvador transcendente, como tinham as religiões
monoteísticas; pelo contrário, elas viam (e vêem) o homem de forma realista e objetiva,
sem a necessidade de um guia que não os já iluminados, mas capaz de ser guiado uma vez
que a capacidade de despertar o ser iluminado encontra-se dentro de todos os seres. Assim,
as religiões orientais ajudam o homem a encontrar a mesma resposta para o problema da
existência humana que aquela dada pela tradição judaico-cristã, mas sem contrariar aqueles
valores do homem moderno citados anteriormente. É interessante perceber então, como
expõe FROMM (1960), que, paradoxalmente, o pensamento religioso oriental revela-se
mais congenial ao pensamento racional ocidental do que o próprio pensamento religioso
ocidental.
As semelhanças entre ambas as filosofias religiosas são muitas, o que torna possível
que as relacionemos. Ambas pregam a necessidade de se abdicar da vontade para alcançar a
total abertura, receptividade, vivacidade. Entretanto, mais uma vez, as semelhanças param
diante da necessidade do ocidental de deixar suas decisões a cargo de um pai onisciente e
onipotente. JUNG (1875 - 1961) utiliza seus conceitos de extroversão e introversão para
explicar esta diferença particular entre Ocidente e Oriente.
De acordo com PIERI (2002), a extroversão caracteriza o homem que é aderente às
coisas e distante de si próprio, que tem as condições objetivas externas desempenhando um
papel na consciência bem maior do que o papel desempenhado por suas opiniões subjetivas,
o que caracterizaria o Ocidente como extrovertido. Isso se deve ao fato de que diante de
Deus, o homem ocidental considera-se pequeno e inferior, a grande potência é o outro, que
é perfeito e exterior, considerando assim que a "graça" vem sempre de fora, nunca de sua
própria psique, o que ocasiona um complexo de inferioridade da alma, já que esta nunca se
relaciona com Deus. A extroversão ocidental mais uma vez abre o campo de sua ação à
crescente busca pela religião oriental, pois, assim, se pega algo que esta fora como melhor,
sem compreender que sua própria alma também tem riquezas e que é possível desenvolver-
se por seus próprios meios.
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Já um homem introvertido seria aquele que é aderente a si próprio e distante das
coisas, e pensa, sente e age de modo que o motivador é o próprio sujeito, dando ao objeto
um valor secundário. Por isso, JUNG (1875 - 1961) acredita que o Oriente é introvertido,
pois no bojo das religiões orientais a psique (realidade psíquica) é a condição única e
fundamental da existência humana, e que o deus está no próprio homem, o qual salva a si
mesmo, sendo ele a única causa eficiente de sua própria evolução superior, determinando
que a "graça" vem de dentro. Assim, ao utilizar-se desta filosofia, ele acredita que o
ocidental pode conseguir fugir, pelo menos em parte, de sua extroversão se procurar atingir
os valores orientais de interiores, buscando-os em seu inconsciente. Ele crê que devemos
entender os valores orientais a partir do interior e não de fora, procurando-os em nós
mesmos, no inconsciente, e que devemos descobrir que é maravilhoso nosso medo do
inconsciente e nossas resistências. Por causa destas resistências, acredita o autor,
duvidamos da coisa que parece mais óbvia no Oriente, denominada, o poder de
autolibertação da mente introvertida.
Antes de adentrar mais profundamente nesta relação entre as religiões ocidental e
oriental, é importante ressaltar que, no Ocidente, as doutrinas orientais encontram uma
situação espiritual muito diferente da que acontece na Índia, por exemplo, uma vez que no
Ocidente ocorre uma rigorosa separação entre ciência e religião.
O mesmo autor mostra que esta separação é uma característica típica ocidental e
teve início com o Renascimento (séc. IV), quando o ocidental ainda nutria um profundo
interesse nas práticas contemplativas, como a meditação, mas isto acabou sendo abafado
quando, nesta mesma época, surgiu um interesse geral e apaixonado pela Antigüidade
Clássica, favorecido pela queda do Império Romano do Oriente, que sucumbiu às
investidas do Islamismo. Ocorreu um enfraquecimento do Cristianismo devido a uma
divisão e disseminação do Protestantismo, o qual se dividiu em centenas de linhas, fazendo
com que as Igrejas perdessem liderança no plano cultural. O Protestantismo concentrava
seus golpes contra a autoridade da Igreja, transmitindo-a ao indivíduo. Assim, ele passou a
lidar com problemas que anteriormente eram resolvidos de forma cristã, ou seja, através da
confissão dos pecados, seguida de absolvição. A eliminação da ação sagrada fez com que a
resposta de Deus aos problemas do homem tornasse-se insuficiente, uma vez que o que ele
precisava, por hábito cultural, era de "alguém" para lhe dizer que ele estava livre e
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perdoado. O homem foi buscar essa aprovação na ciência, que ganhou cada vez mais
campo, pois fornecia a complacência e aceitação de que o ocidental tanto necessitava.
Entretanto, o que parecia ser a salvação ocidental começou a apresentar alguns
problemas. Um deles foi o fato de que a Ciência não dava a atenção de que os homens tanto
necessitavam a suas esperanças e expectativas. O outro problema foi a contradição entre
verdade religiosa e verdade científica, uma vez que era preciso compreender que ambas são
necessárias, pois, como o próprio JUNG (1875 - 1961) nos mostra, somente o
conhecimento, bem como somente a fé, nunca são suficientes para atender às necessidades
religiosas do indivíduo. Assim, o homem ocidental passou a buscar uma doutrina que, não
só atendesse àquelas esperanças e expectativas, mas que também conciliasse a Ciência com
a convicção religiosa e prática.
Como acontece em qualquer busca, tendeu-se a retomar uma tradição, e neste caso
judeus e cristãos retomaram uma tradição da época renascentista, a tradição contemplativa.
Esta havia já retrocedido quando os europeus voltaram sua atenção para o mundo exterior
(explorando o novo continente americano, estudando diferentes culturas, e aplicando um
olhar objetivo sobre a natureza). Assim, nas décadas de 1960 e 1970 houve uma renovação
da prática meditativa, sendo que a técnica utilizada da meditação mais procurada foi o
yoga, o qual confere valor à prática contemplativa por ser esta a única capaz de revelar
experimentalmente a autonomia e o poder do espírito (ELIADE, 1996).
JUNG (1875 - 1961) lida com muito cuidado com esta busca ocidental por práticas
orientais, por mais que perceba a necessidade que sentem americanos e europeus de praticá-
las. Ele insiste que não podemos simplesmente tomar conta e adotar idéias espirituais e
práticas orientais. Estes conceitos e práticas se desenvolveram no curso de uma tradição
ininterrupta de quatro ou cinco mil anos. Em seu contexto cultural, um sistema como o
yoga é o método apropriado para unir mente e corpo. A mentalidade hindu não tem
problemas em compreender inteligentemente os conceitos yóguicos; as noções são parte da
consciência coletiva, de forma que qualquer estudante de yoga tem no mínimo uma idéia
intuitiva do que significam. Quando estes conceitos chegam a nós, temos ou que retirar
nosso julgamento e acreditar que tais coisas existem, ou as colocamos dentro de uma crítica
filosófica ou científica e a rejeitamos como "puro misticismo". Além disso, ele acredita que
tendemos nos aplicar nos ensinamentos orientais em um modo extrovertido, de forma que o
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yoga torne-se ou uma prática religiosa ou um tipo de treino psicofísico científico. Esta cisão
só é possível graças ao fato de que o ocidental tende a determinar oposições entre as coisas,
sendo que neste caso caracteriza-se a oposição entre fé e saber.
Como JUNG já havia explicado, no inconsciente não existem opostos, lá, "tudo é
uma coisa só, não há dualidade, não havendo assim tensões ou conflitos" (1875-1961). Os
opostos ganham espaço na consciência, a qual é responsável por uma distinção psíquica.
Esta diferença pode ser relacionada às diferenças entre Oriente e Ocidente. O primeiro,
como funciona introvertidamente, relaciona-se mais ao inconsciente e por isso não vê
opostos, muito pelo contrário, sua doutrina só é eficaz se a pessoa retrair-se do mundo,
unindo os contrários e ligando a extroversão à introversão com a ajuda da função
transcendente (a qual é resultante da união da consciência ao inconsciente). Enquanto que o
segundo, extrovertido, relaciona-se com a consciência, e graças a seu desenvolvimento
histórico se distanciou de suas raízes e, como qualquer excesso de natureza psicológica, se
dissolveu nos pares opostos.
Ainda quanto às suas ressalvas a respeito da adoção da filosofia e prática orientais
pelo Ocidente, o autor argumenta que neste, mais de mil anos se passaram desde que o
cristianismo se impôs sobre o que poderia ser descrito como um grupo de semi-selvagens
de animalescos, as tribos politeístas. Os valores morais e filosóficos desta sofisticada
religião ocasionaram demandas psíquicas nestas pessoas que foram além de suas
capacidades intuitivas e desenvolvimento espiritual. Para que vivessem sob os ideais
cristãos, suas intuições tiveram que ser reprimidos. O resultado foi uma prática religiosa e
moralidade que eram freqüentemente violentos e refletiam sua repugnância. O problema é
que elementos reprimidos não se desenvolvem, mas vegetam no inconsciente em sua forma
original, ou se tornam não-naturalmente carregados e distorcidos, segundo a psicanálise
junguiana.
Em contraste, como já foi ressaltado anteriormente, o Oriente tem uma cultura de
milhares de anos atrás e que cresceu organicamente dos instintos primitivos. Os chineses e
hindus, ele argumenta, não compartilham de nosso impulso de "repressão violenta de
impulsos que possuem nossa espiritualidade e fazem disso histericamente exagerada". Não
superar, mas desapegar é seu caminho; e desapego verdadeiro só é possível se a pessoa
tiver mais ou menos vivido seus desejos. Como psicanalista, o mesmo era constantemente
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confrontado com conseqüências neuróticas e às vezes psicóticas de uma atitude consciente
ou cultural a que levou a repressão dos impulsos instintivos. JUNG (1875 - 1961)
acreditava que somos apenas capazes de entender as palavras dos orientais, mas não os
fatos psíquicos que deram origem a seus deuses (criados na ilusão). No Ocidente, os deuses
tornaram-se simplesmente doenças: fobias, compulsões, e todos os tipos de sintomas
neuróticos.
Como relata ODAJNYK, psicanalista junguiano, em sua Obra “Gathering The
Light", em 1993, o yoga tem a existência dos deuses como certeza, e seus ensinamentos são
feitos para aqueles que já estão no ponto de se desapegar do mundo. Quando o oriente
rejeita as fantasias do inconsciente, o faz pois já extraiu sua essência e a condensou em
profundos ensinamentos. Os ocidentais, por outro lado, nunca experenciaram estas fantasias
de modo consciente, muito menos extraíram sua essência. O autor acredita que os
ocidentais têm uma grande quantidade de experiência para ganhar, e que para começar,
precisam conhecer as forças psíquicas internas novamente e não esperar que elas apareçam
como humores, alucinações ou neuroses dolorosas.
Ele discute as reservas de JUNG sobre os ocidentais assumirem as idéias espirituais
e as práticas orientais, afirmando que estas se dão de acordo com a visão de JUNG (1875-
1961) da diferente evolução do modo de abordar a realidade do Ocidente e do Oriente. Os
orientais, ele argumenta, têm lidado com os fatores subjetivos da existência por um período
muito mais longo do que os ocidentais. No decorrer dos séculos, eles desenvolveram uma
ciência da consciência e definiram certas leis básicas e verdades da vida psíquica. Os
ocidentais, em contraste, concentram sua atenção nos aspectos externos da existência e
desenvolvem uma ciência que define as leis e verdades da natureza. Os orientais tendem a
ver o mundo exterior como formas ilusórias, enquanto os ocidentais tendem a considerar
todas as manifestações do mundo interior como ilusões ou fantasias. Os equivalentes
orientais da ciência natural e moderna tecnologia são de certa forma antigos, se não
primitivos. Isso também é verdade para a psicologia oriental como ciência: ela ainda não
foi separada da filosofia e está no estágio científico inicial de enumerar e classificar vários
estados e funções psicológicos. Por outro lado, o que os ocidentais têm a mostrar como
caminho para iluminação espiritual e técnica psicológica, quando comparada com Zen ou
yoga, é tão pouco desenvolvido quanto à ciência e tecnologia nativa orientais. O autor
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recomenda que cada lado mantenha sua própria psicologia e ponto de vista histórico e evite
uma adoção não-crítica ou imitação aleatória do outro.
E ainda assim, JUNG (1875-1961) afirma, os dois mundos se encontraram. Agora é
impossível voltar. A questão é como cada um pode assimilar o conhecimento do outro sem
perder suas próprias características. Mas isso é algo difícil de ser controlado, pelo que ele
mesmo observou, a fascinação dos ocidentais pelos pensamentos e espiritualidade orientais
é algo que vem aumentando, enquanto no Oriente, não somente os cientistas, mas asiáticos
comuns estão impressionados pelos alcances da ciência e tecnologia ocidentais. Cada lado
está transformando o mundo do outro, para melhor ou para pior, e do ponto de vista do
autor, os dois têm muito a oferecer. Distorções e exageros na adoção dos conhecimentos e
tecnologias podem ser dificilmente evitados, mas esta relação pode beneficiar a ambos.
Uma vez aceito que é possível adotar-se práticas orientais no Ocidente, dentro de
certos limites, como demonstrado, é preciso compreender o yoga e o que tanto tem
fascinado os ocidentais.
ELIADE (1996) explica o yoga desde sua origem e explica que, etimologicamente,
a palavra yoga deriva da raiz yuj, "ligar", "manter unido", "atrelar", "jungir". Seu objetivo é
unificar o espírito, abolir a dispersão e os automatismos que caracterizam a consciência
profana. Sua prática designa toda técnica de ascese (exercício prático que leva à efetiva
realização da virtude) e todo método de meditação. Além disso, a partir da acepção
"mística" do yoga, busca-se o desapego prévio da matéria e emancipação do
relacionamento com o mundo.
O Yoga é constituído a partir da soma de quatro conceitos fundamentais da
espiritualidade indiana: karman, maya, nirvana e yoga. Assim, a Índia procura
compreender: a lei da causalidade universal, a qual relaciona o homem e o cosmos,
condenando o primeiro a transmigrar indefinidamente (lei do karman); o processo que gera
e sustenta o cosmos, e desta forma torna possível o "eterno retorno" das existências (maya
= ilusão cósmica); a realidade absoluta, a qual se encontra em um local para além da ilusão
cósmica tecida por maya e para além da experiência humana condicionada por karman (o
Ser puro, o imortal, o transcendente, o nirvana); e finalmente os meios para se atingir o Si-
próprio, as técnicas adequadas para se adquirir a liberação (yoga).
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Só é possível o aprendizado do Yoga com a orientação de um mestre (guru), como
acontece com outros "sistemas de filosofia". Em sua iniciação, o yogin (praticante) começa
por abandonar o mundo profano (família, sociedade) e, guiado por seu guru, se aplica em
superar progressivamente os comportamentos e valores próprios da condição humana. O
objetivo é a "morte" seguida de um renascimento para outro modo de ser (liberação). Esta
iniciação pode ser relacionada não só a ritos iniciáticos primitivos, na busca da criação de
um "novo corpo" (o iniciado é "o duas-vezes nascido"), como afirma ELIADE (1996), do
mesmo modo que à análise do inconsciente, como explicita JUNG (1875-1961), quando o
analisado começa a se conscientizar de seu conteúdo psíquico, ainda em estado embrionário
e subliminar, e ainda por nascer. Esta relação entre a prática do yoga e a psicoterapia
analítica será percebida diversas vezes, sendo que neste caso pode-se notar que ambos,
inicialmente, introduzem o "iniciante" a conteúdos mais profundos, de contato inicialmente
superficial com o inconsciente.
ELIADE (1996) relata que a técnica do yoga pressupõe o conhecimento
experimental de todos os estados que agitam uma consciência não iluminada, sendo que
estes estados podem ser separados em três possibilidades de experiência: os erros e ilusões
(sonhos, alucinações), a totalidade das experiências psicológicas normais (tudo o que sente,
percebe ou pensa o não praticante) e as experiências parapsicológicas desencadeadas pela
técnica do yoga e acessíveis somente aos iniciados. Procura-se, através do yoga, abolir as
duas primeiras categorias e substituí-las por uma experiência extra-racional.
Unido a todas as fases da prática do yoga, está o conhecimento adequado do espírito
(purusa), considerado na filosofia oriental a via de obtenção da salvação. A primeira etapa
deste conhecimento é a negação dos atributos do espírito, considerando o sofrimento um
fato exterior a ele que deve ser vivido para que a ilusão seja superada, sendo que a natureza
(prakti) torna possível a experiência e simultaneamente persegue a liberação do Si.
Sua tarefa é destruir todos os estados de consciência, sendo que eles são divididos
em modalidades: 1. instável; 2. confusa, obscura (comuns a todos os homens); 3. estável e
instável (obtida através da atenção, é passageira e sem utilidade para a liberação); 4. fixada
em um único ponto; 5. completamente dominada ("estados" do Yoga, provocados pela
ascese e meditação). É simples perceber que objetiva-se alcançar a modalidade
completamente dominada da consciência, através da prática.
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Esta prática consiste em uma longa série de exercícios que devem ser realizado
sucessivamente, sem pressa ou impaciência, sendo muito importante que o praticante não
esteja agindo somente em função de seu desejo de obtenção rápida da união. Assim, o
plano superior só é alcançado depois que ele já provou todas as modalidades de certo
exercício yóguico. Como afirmou ELIADE (1996), "o Yoga deve ser conhecido por meio
do Yoga; o Yoga se manifesta pelo Yoga, etc.”.
ODAJNYK (1993) cita Jack Engler, autor de Transformations of Consciousness:
Conventional and Contemplative Perspectives on Development, para afirmar que no
Ocidente, pode-se notar que há dois grandes grupos que se tornam interessados em yoga:
pessoas no final da adolescência e aquelas entrando ou passando pela transição da meia-
idade. Reiterando e confirmando os argumentos mantidos por JUNG durante os anos de
1930, Engler afirma que isto acontece pois parece que pessoas nestes dois grupos são
atraídas à prática como uma solução a curto-prazo para as questões desenvolvimentais
apropriadas e necessárias a seus estágios do ciclo de vida. Além destes dois grupos, o Yoga,
unido à meditação, também parece atrair pessoas com um narcisismo marcante e com uma
organização psíquica borderline, uma vez que esta doutrina ajuda tais indivíduos a
racionalizar, se não mesmo legitimar, sua falha na auto-integração, seus sentimentos de
vazio interior e falta de um self coesivo. Nestes casos, Odajnyk acredita que a meditação é
exatamente o oposto do que é necessário. Ela não tem uma teoria de desenvolvimento
infantil, psicologia do desenvolvimento, e nenhuma visão de desenvolvimento de
psicopatologia. A psicologia oriental e prática meditativa simplesmente pressupõem uma
psique mais ou menos saudável e um bom funcionamento, como um ego "normal". Os
pensamentos e práticas yóguicas orientais não deveriam ser usados para escapar da situação
humilhante e idéia desagradável de lidar com a própria psicologia da pessoa, o que é mais
bem feito em um ambiente terapêutico ocidental.
Com a ajuda da meditação, que busca assimilar completamente as verdades e
transformá-las em uma experiência contínua de forma a ser assimilada e experimentada, a
finalidade do yoga seria então, como afirma ELIADE (1996), suprimir a consciência
normal para que possa assumir uma consciência qualitativamente diversa, capaz de
compreender de forma completa a verdade metafísica.
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ELIADE (1996) demonstra novamente como é forte a relação entre yoga e
Psicanálise no que diz respeito à importância do subconsciente, uma vez que este é
considerado aquele que condiciona a experiência atual do homem, suas predisposições
inatas e decisões voluntárias futuras. Entretanto, ele afirma que as duas filosofias divergem
quanto ao que constitui o inconsciente. Enquanto a Psicanálise Freudiana acredita que no
inconsciente encontra-se libido, o yoga diz que ele traz à luz o circuito que liga a
consciência e o subconsciente, sendo que este pode ser dominado pela ascese e conquistado
através da já mencionada unificação dos estados de consciência.
Assim, o trabalho do yoga é um trabalho individual do yogin, o qual passa por
experiências com a alma e serve-se de seu corpo como se este fosse um laboratório, com o
objetivo de alcançar a purificação, a perfeição e a transmutação final. O praticante deve
"extrair" de sua vida psicomental, antes obscura e condicionada, seu espírito livre e
autônomo.
Apesar de a prática do yoga visar a produção de experiências de iluminação, o fato é
que elas não podem ser forçadas: elas vão e vêm em seu próprio tempo. Quando uma
experiência como esta acontece, seus efeitos psicológicos são marcantes; o momento, no
mínimo, liberta a pessoa de suas cadeias emocionais e intelectuais, criando uma unidade de
ser que é universalmente sentida como libertadora. Não é só uma libertação do sofrimento,
que é o objetivo oriental, mas um sentimento geral de estar livre. O que explica isso,
psicologicamente, é o fim da projeção. Projeção é um conceito utilizado por Freud e Jung,
mas de formas diferentes. Freud vê a projeção como um mecanismo de defesa em que o
"sujeito localiza fora de si aquilo que rejeita ou não reconhece como próprio" (PIERI,
1996), fugindo das excitações internas desagradáveis, Mais tarde em totem e tabu Freud
reformula essa hipótese e acaba por considerar além de uma defesa a projeção um
mecanismo que possibilita e viabiliza ao homem a criação no mundo. Já a utilização
fornecida por JUNG (1875-1961), que é a utilizada no desenvolvimento desta pesquisa,
exprime uma das etapas do "contínuo processo de estruturação e desestruturação das
representações individuais e coletivas de si e do mundo" (PIERI, 1996), sendo que o autor
acredita que as pessoas projetam para construir uma imagem de si que não podem ter
conscientemente e a libertação disso, ou seja, o fim da projeção, faria com que o sujeito
desincorporasse objetos quaisquer e reincorporasse imagens fundamentais para ele.
16
Como afirma ODAJNYK (1993), o yoga quebra as imagens projetadas, faz a pessoa
ciente do processo de projeção, dissolve as imagens à sua fonte energética original, e liberta
a pessoa do apego cego a que consideramos ser "realidade". Esta libertação da energia
física usualmente investida na projeção é a razão do sentimento e experiência de libertação
que caracteriza a iluminação. Em termos psicológicos, a libertação do sofrimento está
ligada a superar o domínio do inconsciente. A este respeito, o yoga é um método
terapêutico pré-psicanalítico que pode, para certos indivíduos, servir como meio alternativo
de autodesenvolvimento e individuação. Quando alguém realiza o trabalho de dissolver
projeções, seja por análise, seja por meditação, os efeitos são altamente terapêuticos e
ocorre desenvolvimento.
O autor ressalta em sua obra Gathering the Light, que junto à meditação, outra
prática que é básica, praticamente integrada à própria prática do yoga, é a atenção sobre a
respiração, a qual é importante, pois, ao estar ciente de sua respiração, o sujeito se mantém
conectado ao seu corpo, sendo que o centro de gravidade e concentração das pessoas é
localizado na parte inferior do abdome. A vantagem adicional de se concentrar na
respiração é que tanto ela tende a aprofundar e controlar a respiração, quanto tem também
um efeito calmante sobre a mente. Finalmente, a qualidade rítmica da respiração causa um
padrão estável e repetitivo, até que quando a atenção vagueia, o ritmo está lá para conduzi-
la de volta.
Visto um pouco do que é o yoga em si, principalmente no que consiste sua prática,
deve-se ressaltar que esta seria ineficaz sem os conceitos nos quais se fundamenta, sendo
essencial que qualquer praticante, principalmente o ocidental que não tem contato cotidiano
com a filosofia do yoga, se entregue não só com o corpo a ele, mas principalmente com sua
mente à filosofia milenar em que se baseia a prática. Pelo fato de que isto geralmente não
acontece, ou seja, que as pessoas costumam ligar-se somente à prática do yoga, sem se
aprofundar em sua filosofia, é que JUNG (1875-1961) mostra-se cético em muitas vezes
quanto à eficácia dela no Ocidente.
Ele afirma inúmeras vezes sobre como são parecidas a psicoterapia analítica e o
yoga, uma vez que tanto a psicologia junguiana, com sua ênfase na integração do
consciente e inconsciente, quanto à filosofia e prática oriental, com sua experiência de
raridade paradoxal e universalidade de cada indivíduo, têm uma importante contribuição a
17
fazer para a sanidade dos indivíduos e unificação da raça humana. JUNG (1895 - 1961)
acredita que o yoga não é um auxiliar à psicoterapia, pelo contrário, a psicoterapia pode
ajudar uma pessoa a superar obstáculos psicológicos e problemas pessoais que interferem
na prática bem sucedida do yoga, por isso seria muito importante que se aliassem os dois.
Para o funcionamento psíquico ocidental, o autor desenvolve a técnica de imaginação ativa,
a qual pode ser considerada um tipo de meditação na qual as pessoas são capazes de se
engajar em seus complexos e problemas afetivos de forma direta e obter resultados
terapêuticos imediatos. Mas ela difere da maioria das técnicas de meditação oriental, que
não alcançam os mesmos "resultados" da forma como a análise obtém, pois elas requerem
um período árduo de treino e prática consistente antes de qualquer resultado psicológico
significante mostrar-se evidente. Além disso, a meditação oriental, com algumas exceções,
não lida com problemas psicológicos ou de relacionamento diretamente.
Como pôde ser observado, a filosofia do yoga é muito complexa, portanto seria
muito difícil estudá-la por inteira. Levando-se em conta que ele consiste em muitos
sistemas, cada qual seguindo um método específico, mas sempre visando alcançar à
iluminação, este estudo irá refletir sobre o hatha-yoga, visto que se pode considerá-lo o
sistema mais procurado no Ocidente, portanto aquele com que temos mais contato. O
hatha-yoga tem seu enfoque no corpo, que, unido às práticas e exercício de caráter
essencialmente psíquico, trata-se de um conjunto de posturas corporais que aliadas à
respiração e auto-observação que visa levar o aluno buscar o seu ponto de equilíbrio
corporal e respiratório em condições bastante diversa das nossas posturas habituais do dia-
a-dia entendendo o equilíbrio como o encontro do estado de conforto, para o aluno, entre a
postura e a respiração. Como afirma o autor, sua prática serve para extinguir o eu pelo
domínio de seus impulsos não domesticados até dissolvê-lo e, pacientemente, ajusta e
configura as camadas psíquicas inferiores até que elas não mais perturbem o
desenvolvimento da consciência "superior". Utiliza-se a meditação no hatha-yoga para que
o praticante fique ciente de seus estados mental, emocional e fisiológico (ODAJNYK,
1993).
O objetivo maior do hatha-yoga é a fortificação do corpo para prepará-lo para a
"transmutação" final e torná-lo apto à imortalidade (ELIADE, 1996). O enfoque no físico é
o que garante o sucesso deste sistema no Ocidente, que vai além dos exercícios de ginástica
18
e respiração comuns, pois não é apenas algo mecânico e científico, mas é também
filosófico, e isto, como observado inicialmente, é o que o ocidental mais precisa.
Entretanto, como JUNG (1875-1961) ressalta, é preciso ter cuidado para que as
complicadas técnicas do hatha-yoga não iludam a mente fisiológica do ocidental
acreditando que pode alcançar o espírito apenas sentando e respirando. Pelo contrário, elas
requerem inteligência e força de vontade, como todas as coisas grandes que desejam tornar-
se reais.
Neste estudo, busca-se conhecer a dinâmica afetivo-emocional e cognitivo-
intelectual dos praticantes de hatha-yoga. Até o momento, parece haver apenas um estudo
deste tema com o método do diagnóstico de Rorschach realizado por Daniel P. Brown e
Jack Engler, e nos parece urgente que isto aconteça, uma vez que, como observado
anteriormente, é cada vez maior a procura por práticas orientais, e, dentre elas, o ocidental
busca aquela que ele acredita que mais se adeqüe à sua vida e sua psique. Como se
consideram muito interessantes as mudanças que ocorrem desde o início da prática do yoga
até momentos posteriores, em que ela já foi bem utilizada, é proposto que se estude o
assunto levando-se em conta o significado do yoga para cada praticante, através do
aprofundamento em sua subjetividade para que assim se possa compreender como ele afeta
a vida de seus praticantes, tanto a física quanto a psíquica. É de essencial importância neste
estudo então, que se considere o fator subjetivo dos sujeitos, o qual é constituído pelas
formas eternas da atividade psíquica. Baseado na teoria do autor, o fator subjetivo deve ser
considerado de extrema importância pois a partir dele, pode-se estender a consciência para
baixo, de modo a entrar em contato com a verdade que promana naturalmente da psique se
esta não for perturbada pelo mundo exterior não-psíquico.
REY (2002) considera que "a subjetividade é um sistema complexo de significações
e sentidos subjetivos produzidos na vida cultural humana, sendo influenciada em sua
constituição tanto por fatores individuais quanto sociais", assim todo sujeito é histórico e
social e estudar a subjetividade requer a entrada nas formas mais complexas de expressão
do sujeito, e o avanço na construção do conhecimento por vias diretas e/ou indireta do
objeto de estudo. A partir desta definição parece ficar mais claro o porquê de
desenvolvermos uma pesquisa qualitativa que busca compreender o funcionamento
cognitivo-intelectual e afetivo-emocional dos praticantes de yoga. As poucas pesquisas
19
desenvolvidas até então que tratam de temas semelhantes utilizam o método qualitativo em
psicologia e têm demonstrado que esta é a forma bastante eficaz de abordar-se o assunto.
"A pesquisa qualitativa apoia-se em processos diferentes de construção de
conhecimento, debruçando-se sobre o conhecimento da subjetividade, cujos elementos
estão implicados simultaneamente em diferentes processos constitutivos do todo, os quais
mudam em face do contexto em que se expressa o sujeito concreto. Assim, pode-se
perceber que a história e contexto que caracterizam desenvolvimento do sujeito marcam sua
singularidade, que é expressão da riqueza e plasticidade do fenômeno subjetivo" (REY,
2002).
Em uma pesquisa qualitativa como a aqui descrita, considera-se tanto o pesquisador
quanto o pesquisado como sujeitos importantes na produção de conhecimento, a qual é uma
produção construtivo-interpretativa, com caráter interativo e tem como nível legítimo a
significação da singularidade. O pesquisador, neste caso deve ser um comunicador, dando
importância aos momentos informais de contato com o pesquisado, e deve ser um sujeito
participante e intelectual ativo na pesquisa, participando nas relações e produzindo idéias à
medida que surgem novos elementos no cenário da pesquisa. O número de sujeitos, que
nesta pesquisa é extremamente reduzido, é definido de acordo com as necessidades do
processo de conhecimento que surgem no curso da pesquisa, de acordo com o mesmo autor.
Além da anamnese feita com o sujeito para que o pesquisador entre em contato com
sua história de vida, utiliza-se também aqui um instrumento auxiliar, que consiste numa
prova projetiva: a Prova de Rorschach. É muito importante que em uma pesquisa
qualitativa os instrumentos utilizados sejam abertos e múltiplos, para que se crie condições
de relação entre o sujeito e o pesquisador possibilitando o estudo da subjetividade. Como
afirma o autor, "É importante que os instrumentos tenham uma estrutura dialógica, uma vez
que a pesquisa gera diálogos formais e informais entre o pesquisador e o pesquisado (...), e
disto surge a identificação do sujeito com o problema (...) A (anamnese) também se dá
através de diálogo, deixando de ser um instrumento organizado na forma de perguntas
padronizadas. Isto ocasiona o aparecimento de informações além daquelas esperadas e que
não devem ser ignoradas".
Com a utilização de um instrumento deste tipo, pode-se fazer uso da idéia de
indicador, descrita pelo próprio autor, que se trata de um elemento que adquire significação
20
devido à interpretação do pesquisador, de forma que sua significação não é acessível de
forma direta. Assim, a partir de respostas dadas pelo sujeito na Prova de Rorschach, o
pesquisador pode relacioná-las e formar um indicador, um conteúdo implícito nestas
respostas mas que, talvez justamente por ser uma questão tão problemática para o sujeito,
ele não consegue dizer explicitamente. Os indicadores permitem construções que
possibilitam ultrapassar os limites da evidência e do próprio indicador produzido, e esse
processo teórico é uma condição para o surgimento do próximo indicador, o qual seria
inacessível sem o marco de significado produzido na construção teórica.
KLOPFER (1942) afirma que a Prova de Rorschach, como a maioria dos testes
projetivos, caracteriza-se pela ambigüidade do material e pela liberdade que é dada ao
sujeito para executá-lo. Ele é um modo rico de abordagem da personalidade que permite o
levantamento de hipóteses quanto à estrutura e dinâmica da personalidade do indivíduo, no
caso, do praticante de yoga. Seu material, constituído de manchas ambíguas e pouco
estruturadas, propicia o acesso a conteúdos conscientes e inconscientes, uma vez que já foi
percebido em estudos anteriores que quanto mais ambíguo for o estímulo, será menos
provável que ocorram reações defensivas por parte do sujeito. Assim, o material obtido em
qualquer teste projetivo é fruto da combinação de um material/estímulo ambíguo e de uma
situação/aplicação relativamente livre que propicia a projeção dos conteúdos psíquicos.
No caso específico da Prova de Rorschach, a ambigüidade das figuras possibilita a
projeção dos materiais conscientes e inconscientes, proporcionando ao psicólogo uma visão
profunda e abrangente da personalidade. Este, para que possa aplicar e analisar a Prova,
deve ter noções claras de desenvolvimento, estrutura e dinâmica da personalidade, sendo
que o material produzido a partir de sua análise depende muito do conhecimento técnico,
base teórica, experiência profissional e vivência pessoal do psicólogo.
Ele continua sua explicação, afirmando que a Prova de Rorschach afeta o sujeito
primeiramente no campo visual, e são justamente os canais sensitivos que possibilitam o
homem a atribuir significado ao mundo. Quando entra em contato com as placas, "o sujeito
recebe um estímulo visual que, por sua ambigüidade, favorece a projeção. Ele capta a
figura, percebe-a e simultaneamente a interpreta. Desta intersecção entre o psiquismo e o
meio ambiente surge a resposta como uma síntese das imagens internas do indivíduo e das
características objetivas das manchas. Considerando-se que cada prancha representa uma
21
situação de vida, o psicólogo vai estar interessado em compreender como determinado
sujeito realiza esta síntese pois, assim, poderá perceber, conhecer e compreender a estrutura
e dinâmica psíquica do sujeito" (KLOPFER, 1942). As respostas dadas pelo sujeito são
fruto de uma conjunção de processos perceptivos e associativos dos quais participam a
personalidade do indivíduo como um todo, tanto nos seus aspectos conscientes, quanto
inconscientes.
Assim, como afirma o autor, a utilização desta Prova parece ser eficaz por
evidenciar alterações no equilíbrio entre processos psíquicos primários e secundários. Estas
oscilações, comuns à vida psíquica, refletem a eterna busca do indivíduo pela adaptação e
auto-realização. É a possibilidade de se perceber este interjogo entre mundo externo e
interno, consciente-inconsciente, princípio do prazer e da realidade nas respostas às
pranchas que caracteriza a Prova de Rorschach. É, também, a partir dela, que se podem
extrair hipóteses a respeito das características dinâmicas e estruturais da subjetividade em
questão, que é justamente o objetivo desta pesquisa.
Portanto, devido ao fato de o funcionamento psíquico dos praticantes de yoga ser
tão pouco estudado, principalmente com ênfase em sua subjetividade, mostra-se de
fundamental importância o desenvolvimento de uma pesquisa que compreenda os perfis
psicológicos de um ocidental entra em contato com a filosofia oriental milenar do yoga.
Além disso, para que esta pesquisa seja considerada como válida, é importante que se
utilize de instrumentos já validados anteriormente, e que comprovadamente conseguem
alcançar estes objetivos.
22
OBJETIVOS
Objetivo geral:
Contribuir para o desenvolvimento das pesquisas sobre os modos de percepção e
sobre técnicas que auxiliem o conhecimento e o domínio do funcionamento afetivo-
emocional do indivíduo por ele mesmo, promovendo autonomia nesta área.
Objetivo específico:
Descrever o processo perceptivo, produtivo e criativo de um indivíduo que vem se
submetendo ao treinamento da Hatha Yoga.
23
MÉTODO
Escolhemos o método do diagnóstico compreensivo composto da avaliação
projetiva e da história de vida para acompanhar e descrever as manifestações
comportamentais e a dinâmica afetivo-emocional em praticantes, da hatha Yoga.
Pretendemos observar os movimentos da percepção no transcorrer de seis meses e
revelar e as mudanças ocorridas.
Os estudantes de Hatha Yoga realizarão Prova de Rorschach a seguir eles farão um
relato de sua história de vida. O perfil psicológico será realizado
O método escolhido para a interpretação da prova de Rorschach será o de Klopfer,
esta escolha está baseada na experiência da idealizadora deste projeto e também porque os
índices a serem avaliados nos possibilitaram o reconhecimento do grau de controle do ego,
o grau de maturidade, as potencialidades afetivas, o movimento dos processos cognitivos e
como está sendo gerida a dinâmica dos afetos. Serão considerados especialmente os
seguintes índices:
1)Ressonância afetiva; 2)Exteriorização da afetividade; 3) Tipo de exteriorização; 4)
Organização das necessidades afetivas; 5)Recursos da personalidade; 6)Grau de
esteriotipia; 7)Produção; 8)Manutenção da objetividade.
A história de vida e as experiências relatadas no percurso da atividade meditativa
serão norteadores para a descrição do comportamento manifesto frente ao potencial
libidinal apresentado pelos sujeitos. Ela será colhida segundo a anamnese – “Exame
Clínico e Psicológico” de Hipólito C. Filho e Helena B. Prebianchi, 1999.
24
PROCEDIMENTO
Na realização desta pesquisa, o primeiro trabalho foi o de um levantamento
bibliográfico sobre os conceitos considerados essenciais para a elaboração do projeto.
Assim, foram lidos e discutidos em grupo livros e textos, incluindo a apresentação
ocasional de seminários sobre o tema. Dentre os conceitos, o primeiro deles foi sobre yoga
na cultura oriental, incluindo autores como Eliade, que enfoca o yoga no Oriente, e Jung,
que faz um paralelo entre as culturas ocidental e oriental e o yoga em ambas. O conceito
seguinte a ser estudado e discutido foi o de pesquisa qualitativa e suas aplicabilidades ao
objetivo traçado. Posteriormente, foram lidos diversos textos e livros sobre a Prova de
Rorschach e entrevista psicológica. Uma vez encerrado este levantamento e as discussões
com a orientadora e com o grupo de pesquisa, foram sendo realizada sínteses sobre os
temas e conceitos que mais tarde balizaram uma redação sobre os assuntos, que consiste na
introdução deste trabalho.
A seguir, foi selecionado um sujeito, com a condição de que ele fosse um professor
de yoga há mais de dois anos, e que praticasse o hatha-yoga. A localização do sujeito deu-
se a partir de uma busca em diversas escolas de yoga numa cidade do interior de São Paulo
e também com alguns professores independentes, estes foram dando indicativos de
possíveis interessados e desse modo chegamos até Ana Carolina. Ela foi contatada por
telefone, marcamos um primeiro encontro para apresentação do nosso trabalho, nossos
objetivos e de sua participação. Como A.C. aceitou os termos de participação na pesquisa
demos andamento ao processo.
Iniciamos este estudo pela realização de uma anamnese (entrevista inicial), elaborada
pela própria pesquisadora, em conjunto com sua orientadora e a outra pesquisadora que era
a dupla da pesquisadora deste estudo nas discussões, nas supervisões, na realização da
entrevista e na aplicação da Prova de Rorschach. Durante a elaboração da anamnese levou-
se em consideração os aspectos pessoais do entrevistado considerados mais relevantes para
a pesquisa, incluindo não só aspectos objetivos, tais como o nome ou idade do sujeito, mas
também e principalmente aspectos que compunham a subjetividade como organizada
naquele indivíduo naquele momento, como o significado deste nome e idade, dentre outros.
25
O roteiro desta entrevista segue em anexo (ANEXO 1). Nesta primeira entrevista o sujeito
também assinou o consentimento informado (ANEXO 2).
Então, após três tentativas para conciliar horários para a aplicação da Prova de
Rorschach, finalmente as pesquisadoras, a orientadora e o sujeito encontraram um horário
e local em comum e a aplicação pôde ser feita. A Prova de Rorschach foi aplicada pela
orientadora que contou com o auxilio das pesquisadoras para marcação dos tempos de
latência e totais utilizados pelo sujeito para execução da tarefa, e além disso auxiliaram
também mantendo a observação do vínculo estabelecido e dos modos de expressão do
sujeito. A Análise dos dados e a articulação foi realizado pela a autora deste projeto.
Logo em seguida foi feito um levantamento dos índices do Rorschach encontrados no
psicograma baseando-se na bibliografia da área e com apoio da orientadora. A partir destes
índices foi possível elaborar as equações concernentes ao funcionamento psíquico do
indivíduo (ANEXO 3), e ser realizada uma discussão sobre os resultados obtidos nas
equações com a orientadora.
Uma leitura ingênua da entrevista inicial realizada com o sujeito foi feita, além da
articulação dos dados oferecidos pelos dois modos de coleta de informações sobre o sujeito,
o que nos forneceu um panorama do perfil afetivo-emocional em curso ou em
desenvolvimento naquele momento da vida de Ana Carolina.
Foi realizado um novo levantamento bibliográfico, desta vez focalizando os índices
encontrados na Prova de Rorschach e nos dados oferecidos pela história de vida do sujeito.
Novamente os textos e livros lidos foram discutidos com a orientadora e com isto foi
possível o desenvolvimento da redação final, resultando na discussão da pesquisa.
Finalmente procedeu-se a devolutiva dos resultados encontrados para o nosso
sujeito colaborador, numa entrevista na qual buscamos compartilhar os pontos mais
relevantes observados que pudessem vir a contribuir para uma melhoria da qualidade de
vida da pessoa sobre a qual versou o presente trabalho.
26
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir das respostas dadas pelo sujeito Ana Carolina durante a aplicação da Prova
de Rorschach foi possível perceber-se algumas características de seu funcionamento
cognitivo e afetivo-emocional. A análise destas respostas baseou-se em características
como a localização das mesmas nas pranchas, a forma das figuras projetadas, além da cor,
sombreado, movimento e conteúdo.
Aqui serão relatados os fatos percebidos que podem ser considerados mais
relevantes para o estudo do caso e entendimento do funcionamento psíquico do sujeito.
Optou-se por unir a interpretação da prova com fatos percebidos durante a entrevista, uma
vez que se considera estas duas formas de análise inseparáveis, especialmente na
apresentação dos resultados.
A partir das respostas dadas foi possível formular algumas equações que favorecem
a análise e o estudo do caso. A primeira das equações a ser considerada como muito
relevante para este sujeito é a que mostra quantas respostas M (movimento humano), FC
(forma definida e cor), FM (movimento animal) e CF (forma indefinida e cor) ele
apresentou, sendo desenhada da seguinte maneira:
M FM
FC CF
Ana Carolina emitiu, dentre as respostas principais, 6 respostas M, 3 respostas FC, 6
respostas FM e 1 resposta CF.
O primeiro fato para o qual devemos nos atentar é o número de respostas com
movimento humano, o qual é considerado muito positivo, estando acima da média e ligado
ao "princípio da realidade, à capacidade de postergação, à canalização dos impulsos e à
transformação destes no sentido de promover/garantir uma integração do ego como
mediador do mundo interno e externo" (KLOPFER, 1942). A projeção cinestésica implica
capacidade de empreender o processo imaginativo, o conceito humano implica em uma
empatia ao humano, tendo o sujeito uma visão de mundo do qual fazem parte outras
pessoas, além de ter uma capacidade perceptiva em nível altamente diferenciado e bem
27
integrado. É importante ressaltar que, de acordo com PIERI (2002), empatia é sinônimo de
assemelhação, e implica em "identificação no objeto, e portanto a união ou a fusão emotiva
do sujeito com outros seres humanos ou com as coisas, obtida mediante a transferência de
seus conteúdos psíquicos inconscientes nesses objetos".
Respostas de movimento em boa quantidade e qualidade, como é o caso de Ana
Carolina, são sinais de alta capacidade intelectual e liberdade dela para usar processos
imaginativos enriquecendo sua percepção do mundo. Mostra também que ela utiliza seus
processos imaginativos como auxiliares na busca de equilíbrio interno/externo, tem um
sistema interno de valores conscientes, através do qual controla seu próprio
comportamento, guia suas satisfações e adia as gratificações, tem boa auto-aceitação, e
pode nos fornecer também dados sobre a sua auto-imagem.
As respostas FM estão ligadas aos impulsos primários e necessidade de gratificação
imediata. Elas diferem das respostas M, pois requerem menor diferenciação da
personalidade e não implica empatia.
As respostas FC em bom número, como acontece com Ana Carolina, indicam que
ela é capaz de controlar um impacto emocional e responder afetivamente de forma
adequada ao seu contexto, representando assim a expressão socializada do afeto.
A equação que une estes três tipos de respostas, além da resposta CF, que neste caso
está em pequeno número, indica o funcionamento mental da pessoa com igual
predominância nos dois níveis de funcionamento. Estes processos de funcionamento
psíquico foram definidos por Freud, sendo que os processos primários relacionam-se com a
pulsão "exigindo" a satisfação imediata das necessidades e desejos, predominantes no
funcionamento da criança, não admitindo frustração. Já os processos secundários
constituem uma modificação dos processos primários, os quais são inibidos pelo ego,
levando à possibilidade de, em vigília, o desenvolvimento da atenção, juízo, raciocínio,
ação controlada (todos ausentes no bebê). Estes processos são aprendidos a partir da
experiência afetivo-emocional do sujeito, o qual aprende também que é possível a
realização de seus desejos no decorrer do tempo. É esperado que indivíduos adultos
apresentem um funcionamento mental do tipo secundário.
Na equação, a relação entre as respostas FM e CF representa o grau de
funcionamento no processo primário do sujeito (mesmo porque já foi visto que respostas do
28
tipo FM relacionam-se aos impulsos primários e necessidade de satisfação imediata),
enquanto que a relação entre o número de respostas M e FC indica o quanto esta pessoa
funciona psiquicamente com o processo secundário.
No caso de Ana Carolina, pode-se perceber que seu processo secundário é bem
desenvolvido e predominante, como é esperado para alguém de sua idade. Entretanto, o fato
de ela ter emitido um alto número de respostas com movimento animal indica que ela tem
um grande potencial de desenvolvimento afetivo-emocional, e que o quantum libidinal de
seu processo primário, se explorado, pode levar a um desenvolvimento e predominância
ainda maior de seu processo secundário.
Com relação ainda à equivalência entre os números de respostas M e FM, é
importante ressaltar que indica que seu impulso vital não está em conflito com o sistema de
valores e vice-versa. "Isto pode significar espontaneidade amadurecida em um indivíduo
que tem um sistema de valores bem desenvolvido, que lhe favorece o controle, mas que
dentro do quadro deste controle, tem uma aceitação fácil de seus impulsos, sua auto-
imagem feliz e fácil" (KLOPFER, 1942).
Ana Carolina apresentou um total de 12 respostas principais que tiveram como
determinantes a forma (F) da figura projetada, o que equivale a mais de 50% das respostas.
Como explica o autor, o determinante de forma refere-se à capacidade de conhecer,
identificar, reconhecer e julgar os objetos e a si mesmo (funções básicas do ego, essenciais
para a adaptação à realidade), à capacidade de vontade e força do ego, de lidar com as
situações de modo impessoal, realista e imparcial, mostra uma atitude neutra e objetiva.
O número de respostas F apresentadas pelo sujeito indicam que ela pode sofrer de
uma "constrição neurótica", ou seja, embora ela seja intelectualmente capaz de uma
resposta mais ricamente diferenciada para o mundo, ela está inibida para se manifestar
mais, e está reprimindo suas tendências para conhecer e responder às próprias necessidades
interiores e agir de acordo com suas próprias reações emocionais.
Esta constrição fica comprovada na equação que relaciona as respostas de forma
(F), textura em objeto com forma definida (Fc) e percepção de perspectiva em função do
sombreado (FK), com o número total de respostas. Ana Carolina não apresentou nenhuma
resposta Fc, entretanto, apresentou 3 respostas FK, as quais indicam uma tentativa do
29
sujeito de manipular suas ansiedades afetivas através do esforço introspectivo, objetivando
seus problemas, colocando-os à distância de si, e assim, encarando-os com menos emoção.
A equação que relaciona estes três tipos de respostas ao número total de respostas é:
(FK + F + Fc)% / R. A porcentagem alcançado por Ana Carolina foi entre 50% e 75%, o
que confirma a rigidez de sua constrição indicada pelo número de respostas F, mas mostra
que esta constrição está modificada e um tanto suavizada. Assim, como as respostas FK
haviam demonstrado, Ana Carolina utiliza-se de suas tendências introspectivas, e é capaz
de viver efetivamente num meio social, sem interferir na vida das outras pessoas com a sua
rigidez. Contudo, ela estará restringida ao lidar com os outros e achará difícil estabelecer
contatos afetivos próximos e cálidos, fato que havia sido constatado inicialmente com a
anamnese realizada com Ana Carolina, na qual percebeu-se uma grande dificuldade dela
em estabelecer vínculos afetivos duradouros.
Esta dificuldade foi evidenciada a partir de seus relatos, nos quais percebeu-se que
ela nunca esteve completamente envolvida emocionalmente em uma relação afetiva, apesar
de sempre ter estado em relações. Assim, ao mesmo tempo em que não consegue ficar
sozinha, ou seja, sem um parceiro (ou parceira) sexual, Ana Carolina não consegue também
estabelecer um vínculo afetivo com esta pessoa. Além disso, este vínculo também não
ocorre com amigos, uma vez que ela, desde criança, não se fixa em um círculo de amizades
permanente.
De acordo com DOLTO (1989), o amor humano constrói-se, desde o início da vida,
a partir da confiança no outro. Ou seja, a possibilidade de envolvimento sentimental na vida
adulta é construída desde a primeira infância, a partir da relação com os pais. A história de
Ana Carolina é de filha mais nova, com irmãos pelo menos seis anos mais velhos que ela, e
pais com mais de 40 anos na época de seu nascimento. Além disso, ela relatou, por diversas
vezes durante a anamnese, que seus pais eram ausentes, em especial seu pai, o qual, mesmo
quando presente fisicamente, não era acessível emocional e afetivamente. A mesma autora
ressalta novamente a importância deste primeiro contato afetivo ao afirmar que "a essas
primeiras referências arcaicas da relação com os outros articulam-se em seguida todas as
situações de encontro significativo de similitude emocional, com parceiros ligados pela
evocação comum de um prazer redescoberto do contato com a pessoa deles."
30
Desta forma, é possível, inicialmente, compreender o porquê da dificuldade de
estabelecimento de vínculo encontrada por Ana Carolina. Não só ela parece não saber como
o fazer, mas também pode ter medo do sofrimento emocional em uma relação de
compartilhamento emocional-afetivo. Toda ausência de um ente querido e eleito, mesmo na
idade adulta e quando o elo com os pais arcaicos está há muito tempo esquecido, o outro
eleito de carne e de corpo, em sua ausência, desperta as dores da ausência do outro
primordial, a mãe. (DOLTO, 1989)
De acordo com a autora também, a época da queda dos dentes de leite se dá novo
impulso ao desejo de autonomia da menina em relação ao auxílio da mãe e de qualquer
outra mulher, o qual é por ela rejeitado.
Quer mostrar aos outros e a si própria, quando se olha no espelho,
que é bela, desejável e que sabe fazer tudo tão bem, ou até melhor, do que
sua mãe em casa, donde as suas proezas de habilidade e de engenhosa
perícia. Em suma, ela "faz tudo o que pode" para agradar o pai e fazê-lo
dizer que a prefere a todas as outras. É a época em que as menininhas
mostram predileção pelas canções e historietas em que uma moça pobre
conquista os favores do rei – na falta deste, do príncipe, o filho do rei (um
irmão mais velho). E, depois de tê-lo seduzido: "Eles viveram felizes e
tiveram muito filhos!" Graças ao que há de belo e invisível em seu sexo e
que atrai o pênis do homem, ela realiza a sua conquista. Conquistado o
paterno, é o momento de desfrutar valores emocionais fálicos e narcisistas,
a felicidade e a certeza de uma descendência notável, falicamente
incestuosa. (DOLTO, 1989)
Se nos referirmos novamente à ausência sentida por Ana Carolina de seu pai e sua
necessidade de estar sempre se relacionando com alguém, além de sua rivalidade com a
mãe, podemos supor algumas coisas a partir da idéia acima. Ana Carolina pode não ter
vivido completamente o complexo descrito acima, ou seja, não passou pela fase de seduzir
e conseguir conquistar seu pai, sentindo dele a preferência por ela. Isto pode fazer com que
ela tente, hoje, viver isto tardiamente, mas como ainda hoje não consegue a presença do pai
31
para tentar "conquistá-lo", o projeta em outros homens e busca sempre a aprovação dele.
Neste momento, é interessante relembrarmos o momento da anamnese em que, ao afirmar
que sempre está se relacionando com alguém, Ana Carolina afirmou que não considera o
fato de que isto aconteça devido à sua má relação com seu pai. A rivalidade com a mãe,
descrita na passagem de DOLTO, acontece com Ana Carolina desde, pelo menos, o
nascimento de sua filha (há 11 anos); ela parece estar sempre querendo mostrar que pode
fazer tudo o que a mãe pode, e melhor, talvez por isso a incomode tanto a intromissão de
sua mãe na criação de seus filhos, mesmo quando ela própria abriu mão da criação da
menina logo após o nascimento do filho mais novo.
Um aspecto marcante deste sujeito é sua sexualidade, iniciada precocemente aos 12
anos, envolvendo um assédio sexual já aos 12 e uma gravidez aos 13 anos. Sabe-se que
para que o desenvolvimento sexual da menina ocorra de maneira saudável, ela deve não só
ter conhecido homens, quando criança, para sentir o desejo de se comunicar com ele através
de sua mãe e da mesma maneira que ela; é preciso ainda que a menina veja sua mãe em
entendimento afetivo com um homem, o que não foi possível perceber-se se ocorreu com
Ana Carolina ao observar a relação de seus pais. Entretanto, apenas isto não é suficiente, é
necessário que a presença da figura masculina, pelo menos, esteja atento a esta menina,
para que seu sexo desperte para seu desejo feminino em conformidade com o
comportamento de sua mãe, e se o pai de Ana Carolina foi tão ausente quanto pareceu
através da anamnese, pode ser que ela não tenha tido a presença do masculino, ajudando-a a
lidar com sua sexualidade, o que pode ter influenciado não só em relações sexuais precoces
quanto na homossexualidade que emergiu posteriormente.
Com relação à sexualidade, há também outros aspectos envolvidos que podem ser
explorados. De acordo com a teoria junguiana, há algumas imagens primordiais,
denominadas arquétipos, que, unidas a fatores ambientais, influenciam o indivíduo
propiciando determinados padrões de comportamento. Jung afirma que um arquétipo é
como um padrão invisível que determina qual a forma e a estrutura que um cristal tomará
enquanto se molda; uma vez que o cristal se forma, o padrão agora reconhecível é análogo
a um arquétipo ativado. Esses arquétipos pertencem ao inconsciente coletivo, que é o
extrato mais baixo da psique, sendo a parte do inconsciente que não é individual, mas
universal, com conteúdos e maneiras de comportamento que são mais ou menos os mesmos
32
em toda a parte e em todos os indivíduos. Assim, o arquétipo da deusa do amor e da beleza,
Afrodite, por exemplo, está ligado com o ímpeto sexual e o poder da paixão, sendo esta
considerada uma imagem primordial que está presente no inconsciente coletivo das
mulheres, podendo influenciar a cada uma de uma maneira específica. No caso de mulheres
muito influenciadas por ela, sua sexualidade apresenta-se latente, fazendo com que elas
ajam principalmente impulsionadas por comportamentos típicos da deusa.
No caso de Ana Carolina, parece haver, desde a infância, uma influência deste
arquétipo de Afrodite, havendo muitos indícios disto quando analisada a forma como a
deusa influencia as mulheres. BOLEN (1990), em seu livro As Deusas e a Mulher, ressalta
algumas características que parecem descrever bem o sujeito deste estudo, e se
considerarmos a teoria de Jung que refere-se ao inconsciente coletivo como atuante nos
indivíduos, pode-se pensar que além de tudo o que foi descrito anteriormente, certos
comportamentos de Ana Carolina foram, desde o início, influenciados por arquétipos como
o de Afrodite. A primeira das características descritas pela autora, diz respeito à forma
como a deusa valorizava a experiência emocional com os outros mais do que sua
independência deles ou laços permanentes com os outros. A aceitação da influência deste
arquétipo sobre Ana Carolina nos ajuda a compreender, portanto, sua necessidade de estar
sempre se relacionando com alguém, mas nunca de forma permanente e duradoura; bem
como Afrodite, Ana Carolina parece se empenhar em consumar os relacionamentos e gerar
vida nova.
A relação dela com a deusa parece evidente desde sua infância. Antes de
demonstrar-se esta relação, é preciso demonstrar como BOLEN a descreve:
Enquanto criança, a pequena Afrodite pode ter sido uma inocente
namoradinha. Pode ter sido um modo de dar resposta aos homens,
interesse neles, e uma sensualidade inconsciente que fazia os adultos
comentarem: "Espere até que ela cresça – será uma despedaçadora de
corações". Ela adora ser o centro da atenção, gosta de vestir roupas bonitas
e de ser disputada. Usualmente não é uma pequena tímida, e pode ainda ter
sido chamada de "engraçadinha" por suas ações improvisadas e outros
meios de chamar a atenção, que encantavam suas "platéias".
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(...) Lá pelos oito ou nove anos de idade, muitas meninas tipo
Afrodite estão com pressa de crescer, vestir-se com elegância e usar
maquilagem. (...) Algumas garotas tipo Afrodite são "pequenas ninfas":
precocemente conscientes de sua sexualidade, apreciam o sentido de poder
e atração que têm quando os homens mais velhos respondem aos seus
importunos coquetismos. (BOLEN, 1990)
A partir disto, é de certa forma impossível não relacionar estas características com o
sujeito da nossa pesquisa. Primeiramente por ela ter iniciado sua vida sexual aos 12 anos e
por ter ressaltado que considera isto extremamente "natural" (o que uma Afrodite realmente
considera). Talvez esta sexualidade inconsciente possa ter atingido seu cunhado, o qual
assediou sexualmente a menina quando ela tinha 12 anos. O tio tocou partes íntimas dela
sem sua expressa autorização e ela considerou isto um abuso sexual.
Durante a entrevista inicial, ela afirmou, com naturalidade, que sempre teve
dificuldade em aceitar a necessidade de utilizar preservativo durante a relação sexual,
mesmo com parceiros não estáveis. Este relato parece ter sido dito diretamente "por
Afrodite", a qual considera que o ato de utilizar um preservativo poderia tirar parte da
paixão do momento, ou tornaria premeditado o primeiro ato da relação sexual. Seu
homossexualismo, anteriormente explicado a partir de uma psicologia que considera o
inconsciente pessoal, também pode ter influências do mesmo arquétipo, quando considera-
se o inconsciente coletivo, uma vez que a mulher influenciada por esta deusa costuma ser
desejosa de experimentar "tudo o que a vida tem para oferecer".
A respeito de sua relação com seus dois filhos, no papel de mãe, seria importante
que Ana Carolina tivesse presente, atuando também em sua vida, um outro arquétipo, o da
deusa Deméter, arquétipo materno, que representa o instinto maternal. Entretanto, a partir
de um estudo da forma de atuação deste arquétipo, parece nítido que, por mais que Ana
Carolina se esforce e tente evocar o mesmo, ele não está presente em sua vida. Desta forma,
ela também é uma mãe do tipo Afrodite, sabe cativar os filhos, que a vêem como bonita e
deslumbrante, mas como no caso falta a Deméter, ela não considera sua necessidade de
segurança emocional e constância, resultando em conseqüências negativas neles. Seus
filhos então deleitam-se ao receber sua atenção total num momento, e ficam desolados
34
quando sua atenção se volta para qualquer outro lugar no momento seguinte (BOLEN,
1990). Isto talvez justifique a dependência que Ana Carolina afirmou ser apresentada por
sua filha, que, diferentemente da mãe, a qual sempre foi completamente independente e
sempre lutou por esta independência, requer a presença dela a todo momento. Esta
dependência pode ser resultado também da relação que foi estabelecida entre sua filha e ela,
uma vez que diversas vezes foi ressaltada por Ana Carolina a dificuldade de comunicação
entre as duas, a ponto de transparecer uma certa rivalidade; além disso, fica nítido em sua
discurso, a maior aceitação da mãe pelo filho homem, que pode ter implicações como as
descritas abaixo:
Quando uma atenção inconstante e intensa da mãe tipo Afrodite é
focalizada num filho, afeta seus relacionamentos futuros com as mulheres
bem como sua auto-estima e potencial para depressão. Ela cria uma
intimidade especial entre eles que seduz o homem desabrochante em seu
filho e o atrai a ela, e depois ela volta sua atenção para outro lugar. Um
rival para a afeição dela, muitas vezes um novo homem, outras alguma
outra fascinação, a leva embora, deixando-o sentir-se inadequado,
arruinado, impotente, zangado e, algumas vezes, humilhado. O filho sente
uma rivalidade pessoal, uma competição que ele perde repetidamente com
os homens na vida de sua mãe, sentimentos dos quais as filhas são
poupadas. Como homem adulto, tem desejo ardente de ter a intensidade e a
especialidade que certa vez sentiu com sua mãe. Baseado em sua
experiência de infância com sua mãe, ele desconfia da fidelidade de uma
mulher, e pode sentir-se incapaz de manter sua atenção. (BOLEN, 1990)
Durante a anamnese também se pôde perceber que Ana Carolina é uma pessoa tanto
impulsiva quanto espontânea, e esta impulsividade pode ser percebida em trechos da
entrevista inicial tais como: "Eu abandonei Sociais, estudava em Araraquara, na Unesp. Eu
fiz 2 anos e meio de Sociais aí abandonei, aí fui morar em Minas, e aí depois quando eu
voltei e comecei Pedagogia, e aí estou super feliz com esse curso" e "Aí passou um tempo,
me separei, fiquei um tempo só, aí antes mesmo de encontrar esse segundo parceiro encanei
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que tinha uma vontade, que sonhava em ter um segundo filho, que eu já sabia que era
homem. Aí encontrei esse cara ‘Ah, vem cá!’. E aí tive o segundo filho, a gente casou".
Apesar da impulsividade evidente em trechos como os anteriores, é muito
interessante observar, voltando-se à interpretação da aplicação da prova de Rorschach, que
nas três equações relativas à reatividade emocional ao meio como o sujeito, inicialmente,
tenta dominar esta impulsividade, fornecendo respostas consideradas por ela "socialmente
adequadas", como pode ser visto na primeira das equações, mas depois, acaba deixando sua
impulsividade transparecer na última delas.
A primeira equação é FC > (CF + C), o que indicaria um baixo índice de
impulsividade, uma vez que, como foi visto, FC relaciona-se a uma atitude mais organizada
e consciente diante de situações que requerem ação imediata, enquanto CF e C relacionam-
se a uma tendência a atitudes mais desordenadas, impulsivas e descontroladas nas mesmas
situações. Entretanto, como a impulsividade elevada havia sido observada e como CF + C
está quase ausente (igual a 1), sendo que ela não deu nenhuma resposta do tipo C (cor sem
forma definida), formula-se a hipótese de que há controle excessivo sobre esses impulsos e
as respostas socializadas tendem a ser superficiais. Seu alto índice de impulsividade
provavelmente é controlado por suas capacidades, como criatividade, inteligência e
cognição.
Na segunda equação, da somatória das respostas com cor (Csum), o baixo índice
(igual a 3) indica haver pouca responsividade às influências do meio. Formulou-se a
hipótese de que a experiência de Ana Carolina de que tudo é impermanente (pelo fato de ter
sido abandonada várias vezes durante sua vida e por praticar o yoga, que segue essa
filosofia) pode ter feito com que hoje ela responda somente a si mesma, deixando em
segundo plano os fatos externos.
A tentativa de mostrar uma baixa impulsividade através de respostas socialmente
adequadas demonstrada na primeira destas equações acabou sendo invalidada com a
terceira delas, que soma as respostas das pranchas coloridas. A porcentagem desta soma
equivalente a 45% mostra uma alta impulsividade e ressonância afetiva, mostrando que a
produtividade do sujeito é estimulada pelo impacto do meio, dando ou não expressão aberta
à reação emocional. Com esta equação ficou comprovada, portanto, a observação com
relação à impulsividade que havia sido feita durante a anamnese.
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Esta impulsividade pode estar relacionada a outras características do arquétipo de
uma outra deusa que parece ter grande influência sobre Ana Carolina. Esta é Ártemis, a
deusa da caça e da lua, personificação do espírito feminino independente. O arquétipo que
ela representa possibilita a uma mulher procurar seus próprios objetivos num terreno de sua
própria escolha. A descrição da deusa mostra muito marcantemente sua influência sobre
Ana Carolina, entretanto é muito interessante observar como fatos ocorridos em sua vida,
bem como a forte influência de Afrodite, comprometem a atuação deste arquétipo
conscientemente.
A influência de Ártemis aparece desde cedo em nosso sujeito, uma vez que a partir
de suas descrições e lembranças de sua infância, é ressaltado o modo como sempre se
interessou pela vida, por novos objetos, sendo sempre muito mais ativa do que passiva. Ela
descreveu um relato de sua própria mãe sobre como ela se engajava profundamente em
atividades eleitas por ela própria. Estas são todas características próprias da Ártemis.
Uma das características mais marcantes deste arquétipo é a independência. Por mais
que ela não chegue a se concretizar, parece ser sempre almejada pela mulher influenciada
por ele, a qual é apaixonada por viagens, prefere continuar solteira a casar-se mesmo
relacionando-se com muitos homens e se casa, acaba por manter seu sobrenome (como ela
diz, "Nunca troquei meu nome, nunca botei nome do marido, sei lá, acho que não é por aí").
Todas essas, nitidamente são características que descrevem Ana Carolina.
Como uma mãe influenciada pela deusa, nosso sujeito incentiva a independência de
seus filhos, ensinando-os a se defenderem sozinhos. O problema pode estar em um filho
dependente, que é o caso da filha mais velha dela, e então parece haver uma união das
características da mãe Afrodite com a mãe Ártemis, uma vez que esta última, ao incentivar
excessivamente a independência dos filhos pode fazer com que neste caso eles também
sintam-se rejeitados, além de considerarem-se não boas para alcançar os padrões de sua
mãe.
No que se refere aos relacionamentos amorosos e dificuldade de comprometimento,
BOLEN (1990), escreve:
A mulher tipo Ártemis pode ter uma série de relacionamentos bem
sucedidos apenas enquanto guarda alguma distância emocional e nem
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sempre está disponível. Esse padrão pode surgir se uma mulher se
identificar com o elemento "uma-em-si-mesma" da deusa virgem e negar
sua própria vulnerabilidade e necessidade de outro. Para mudar, ela deve
descobrir que o amor e a confiança de outra pessoa são muito preciosos
para ela.
(...) A distância emocional é uma característica da mulher tipo
Ártemis, que está tão concentrada em seus próprios objetivos e tão atenta
que falha em notar os sentimentos dos que estão ao seu redor.
(...) Quando a distância emocional é um efeito colateral inadvertido
de intensa concentração, um desejo sincero de permanecer em contato e
acessível àqueles que importam pode abrandar essa tendência. (BOLEN,
1990)
Desta forma, a influência de Ártemis também parece ser um agravante a mais na
dificuldade que Ana Carolina encontra em estabelecer um vínculo afetivo, justamente pela
independência tão prezada por ela. BOLEN (1990) continua,
Para desenvolver-se além de Ártemis, a mulher deve cultivar seu
potencial menos consciente, receptivo, orientado para o relacionamento.
Precisa tornar-se vulnerável, aprender a amar e interessar-se
profundamente por outra pessoa. Se isso acontecer, talvez seja um
relacionamento – em geral com um homem que a ama, algumas vezes com
outras mulher, ou tendo um filho. (BOLEN, 1990)
Entretanto, o que parece dificultar este desenvolvimento é um conflito que pode ter
sido estabelecido em nosso sujeito, uma vez que ela ainda não pôde deixar seu arquétipo
atuar de forma completa, principalmente devido à sua gravidez precoce, a qual a obrigou a
agir e se dedicar a aspectos que não eram aqueles para os quais ela realmente gostaria de se
dedicar. Ainda assim, em alguns momentos Ana Carolina deixou sua Ártemis constelar,
quando, por exemplo, mudou-se de Estado após a segunda gravidez, deixando a filha mais
velha com a avó (mãe de Ana Carolina), e indo viver como estudante com um bebê nos
38
braços. Ainda assim, logo Ártemis foi reprimida e uma Deméter foi invocada, fazendo
retornar para cuidar de seus filhos juntos.
Com relação à intelectualidade de Ana Carolina, considerou-se a porcentagem de
respostas globais (G) que ela apresentou, ou seja, aquelas em que a associação foi feita na
mancha inteira, porcentagem que foi acima de 30% com maioria de respostas globais do
tipo secundária. As respostas deste tipo são aquelas em que ocupando a mancha toda, a
associação é percebida como sendo composta de vários elementos independentes que se
organizam formando o todo, e quando emitidas, "indicam um movimento perceptivo
abrangente que tende à ampliação e generalização do pensamento, interesse pelo todo,
vontade de conhecer, ver e incluir o todo no seu campo perceptivo. Geralmente caracteriza
um sujeito com interesse, esperança e planos frente à vida, capacidade de abstração,
tendência a pensamento do tipo teórico e habilidade para síntese" (KLOPFER, 1942).
A porcentagem de respostas G apresentada por Ana Carolina com a predominância
das respostas secundárias é considerada positiva, pois demonstra sinal de interesse e
habilidade para organização, além da capacidade de ver aspectos relativamente separados
da experiência como um todo interrelacionado. Isto é encontrado apenas em pessoas de
habilidade intelectual superior, que são capazes de mobilizar suas capacidades para servir a
seus interesses em ver relações entre os vários aspectos de suas experiências e de dar
sentido ao seu mundo. Entretanto, no seu caso, uma intelectualidade tão alta pode servir
como um mecanismo de defesa para uma pessoa que apresenta um desequilíbrio na
afetividade como é Ana Carolina; assim, ela pode se utilizar disso para se defender nas
relações sociais e afetivas, para que desta forma seu par não tenha como atingi-la. Isto fica
nítido quando, perguntada sobre por que suas relações com os pais de seus filhos haviam
terminado, Ana respondeu: "Ah, terminou porque... por divergências ideológicas, mas com
os 2 eu tenho um relacionamento bom, a gente conversa, são super participativos com as
crianças, encontram sempre, dão ajuda de custo, e não só isso, tem uma afetividade".
Especificamente, sobre o fim do primeiro relacionamento, ela justifica: "E aí com esse
primeiro relacionamento percebo que foi uma crise mesmo de adolescente, como eu estava
dizendo que mesmo qualquer adolescente já é difícil essa fase, para mim era uma fase
difícil para eu ter um companheiro e um filho, então eu queria viver outras histórias",
enquanto sobre o segundo, ela afirma: "E aí também já comecei a sentir que eu precisava
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dar outro salto, eu queria outras coisas, e aí me divorciei de novo, a gente foi no cartório e
agora...".
Já a porcentagem de respostas de detalhe (D), que acontece quando o sujeito destaca
ou seleciona uma parte do todo para fazer sua associação, encontra-se abaixo de 45%. Este
tipo de resposta geralmente indica um indivíduo que se atém a aspectos de senso comum, e
até certo ponto, óbvios da realidade, percebe e lida com os aspectos práticos e concretos da
situação, apresenta pensamento analítico, inteligência prática, além de ser hábil e afeita aos
aspectos concretos, ao trivial e cotidiano da vida. Esta porcentagem mostra que Ana
Carolina é capaz de diferenciação, mas lhe falta o reconhecimento dos problemas e fatos
cotidianos, o que pode acontecer justamente por ser uma pessoa extremamente introversiva,
tendendo a internalizar os fatos, como será observado mais adiante, ocasionando em uma
dificuldade em lidar com o externo.
Finalmente, com relação ao equilíbrio introversivo-extratensivo, são utilizadas duas
fórmulas. A primeira delas relaciona o número de respostas M com Csum, e sua proporção
foi de 2 para 1. Isto indica que Ana Carolina é uma pessoa introversiva, e formulou-se a
hipótese, a partir de sua história de vida, de que esta introversão se consolidou durante sua
adolescência, a qual sequer foi vivida plenamente, uma vez que Ana Carolina foi mãe antes
mesmo de ser uma adolescente de fato. Isto pode ser perigoso no sentido de o sujeito tentar
viver sua adolescência tardiamente, o que pode ser amenizado se isto for trabalhado de
maneira consciente.
A outra equação utilizada é (FM + m) : (Fc + c + C'), sendo 'm' o tipo de resposta
em que o sujeito vê movimento em objetos, 'c' utilizado quando o sujeito não tem interesse
pela forma e utiliza o sombreado de maneira indiferenciada, e C' o tipo de resposta sem
forma com cor acromática. As respostas FM + m indicam tendências introversivas não
completamente aceitas ou utilizáveis pelo sujeito no momento, sendo desta maneira uma
potencialidade. Já as respostas acromáticas indicam um fuga afetiva e tendências
extratensivas não completamente aceitas ou utilizáveis pelo sujeito atualmente. A segunda
parte da equação descreve a maneira de lidar afetivamente com as situações, se é de forma
consciente, inconsciente ou se há uma fuga afetiva.
No caso de Ana Carolina a relação ficou de 4,5 : 1, havendo uma predominância da
introversão, mas a proporção é mais alta do que a relação anterior (que era de 2 : 1). Isto
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pode indicar várias hipóteses, mas a mais razoável para o caso de Ana Carolina é de que ela
está se refugiando, e utiliza, inclusive, esta introversão como um mecanismo de defesa,
uma vez que, durante sua vida, ele demonstrou ser eficaz. Entretanto, é importante ressaltar
que esta "opção" pela introversão não é consciente, e sim inconsciente, formando-se no
decorrer da vida da pessoa, a partir de suas vivências afetivas e reações inconscientes a tais
vivências, que acabam por se cristalizar em um modo de funcionamento afetivo-emocional.
Apesar de as equações terem indicado a introversão como predominante no
funcionamento psíquico de Ana Carolina, a partir do estudo dos tipos psicológicos descritos
por Jung, do restante da aplicação e principalmente de sua história de vida, concluiu-se que
ela não pode ser caracterizada como possuindo um tipo (introversão ou extroversão)
exclusivamente. Optou-se então por caracterizá-la como possuindo um funcionamento
ambigual, ou seja, ambos os tipos introversão e extroversão atuam sobre o sujeito
alternadamente, dependendo da situação.
Parece que no momento ela está sob a influência da introversão, talvez por utilizá-
la, como foi observado anteriormente, como um mecanismo de defesa; entretanto, fica
muito claro que a extroversão também é muitas vezes atuante em Ana Carolina. Assim, os
dois tipos de funcionamento se alternam, havendo, dependendo do período da vida do
sujeito ou da situação em que ele está envolvido, maior influência de um ou de outro tipo.
Deve-se ressaltar que um conflito pode ser estabelecido nesta relação. A libido é
quem atua sobre o indivíduo, invocando um tipo de funcionamento; assim, se a libido pede
a introversão, o sujeito se recolhe e funciona introvertidamente. O conflito está no caso de
um tipo estar dominante, como a extroversão por exemplo, e o sujeito ser obrigado, por
alguma condição externa, a atuar introvertidamente. Isto pode resultar em uma grande
dificuldade para este sujeito, o qual necessita entender este funcionamento para conseguir
lidar com ele.
Assim sendo, buscou-se identificar algumas das características mais marcantes do
sujeito e encontrar hipóteses de fatores psicológicos que possam ter influência sobre elas.
Dentre estes fatores, considerou-se importante ressaltar inicialmente dados observados a
partir da interpretação da aplicação do teste utilizado neste estudo (Rorschach), bem como
do funcionamento psíquico de acordo com o inconsciente pessoal do sujeito, e em um plano
41
mais amplo, as influências observáveis, em um primeiro momento, do inconsciente coletivo
e seus arquétipos.
42
BIBLIOGRAFIA
BOLEN, J.S. (1990) AS Deusas e a Mulher.
DOLTO, F. (1989) Sexualidade Feminina – Libido/Erotismo/Frigidez. Trad. Roberto
Cortes de Lacerda – São Paulo: Martins Fontes
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Transliteração sânscrita Lia Diskin – São Paulo: Palas Athena
JUNG, C.G. (1875 - 1961) Psicologia da religião ocidental e oriental. In: Obras Completas.
Trad. Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha. Vol. 11 – Petrópolis: Vozes, 1983
KLOPFER, B., AINSWORTH, M., KLOPFER, W., HOLT, R. (1942) Developments in the
Rorschach Technique. Vol. 1 – Nova York: Harcourt, Brace and World
ODAJNYK, V.W. (1938 - 1993) Gathering the Light: a psychology of meditation. Boston:
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SUZUKI, D.T., FROMM, E., de MARTINO, R. (1960) Zen-Budismo e Psicanálise. Trad.
Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Editora Cultrix
WHITMONT, E.C. (1969) A Busca do Símbolo – Conceitos Básicos de Psicologia
Analítica. Trad. Eliane Fittipaldi Pereira e Kátia Maria Orberg. São Paulo: Editora
Cultrix
YOGANANDA, P. (1893-1952) Autobiografia de um Iogue. Rio de Janeiro: Lótus do
Saber, 2001
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ANEXO 1
ROTEIRO DE ENTREVISTA - ANAMNESE
1- Nome (se gosta dele, sua origem)
2- Idade (qual o significado, com que idade se sente)
3- Onde nasceu
4- Estado civil (significado, história da relação)
5- Tem filhos (idade, nome, relacionamento com eles)
6- Pais (idade, nome, relacionamento com eles)
7- Irmãos (idade, nome, relacionamento com eles)
8- Amigos
9- Grau de escolaridade
10- Situação sócio-econômica (se dá conta das necessidades)
11- Gosta da história que tem ou não
12- Momentos da vida que considera mais importantes
13- Quais as lembranças mais marcantes da infância
14- Como conheceu o yoga
15- Por que começou a praticar yoga
16- Quais as outras técnicas de yoga que praticou
17- Hoje, qual o significado do yoga em sua vida
18- Religiosidade (se tem, qual, se pratica, como)
19- Poderia dizer algo de sua vida sexual
20- Quais são os projetos de vida