DEBRAY_Uma ciência dura: a angelologia.
-
Upload
gisele-sayeg -
Category
Documents
-
view
81 -
download
1
Embed Size (px)
description
Transcript of DEBRAY_Uma ciência dura: a angelologia.

5/11/2018 DEBRAY_Uma ciência dura: a angelologia. - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/debrayuma-ciencia-dura-a-angelologia 1/9
IVl!~III I 'I lassos profanos (dos quais
I' I I I 1 1 1 1 1 ' ' " I I ,IU Ii , nte e nco a origem, como pro-
dilltl, d e u r n 1 11 logem retroutivo}, nco sao os menos
III" ' menos sinceros. A Biblia, os Evangelhos 0 Co-
l' ,r pet.em eles, sco os defensores da vida, do ornor e
do froternidode. Eas reliqioes que reivindicam tais valores
provoc~m exterminios e matam-se entre si. Trazem em
se~ bojo ~,~xclusao, a hierarquia e os argumentos de au-
torrdade. Eescandaloso. Nco se p6ra de trair a palavra
de Deus, do Messias, do Profeta." De onde vem 0 senti-
~ento de escondolo s Por uma ampla parte da justaposi-
ceo = estado inicial (ou pressuposto como'tal) ao estado
terminal da trcnsmissoo, com a ornissco do que se passa
entre esses dois estados e do processo em seu conjunto.
? ~ue, de ~m ponto de vista moral, causa a revolta do
orfao das o~,gens, con,:,oca int~lectualmente 0 rnidioloqo.
Para. e_ste,e _ o esquecimento indevido das rnediccoes e
restricoes de incorporocco que transforma uma metamor-
f~se que e incompreensivel em uma contrcdicco que e
vl!uperada. P~r ~ao que~er entrar na 16gica des- opera-
coes, 0 crente 'n,d,g~ado fica escondolizodo, primeiro pas-
so para a den uncia do bode expiat6rio. 0 midioloqo
co~tentar-se-~ ~_mcompreender. Nao sem pedir cos her-
delr~s das rellglo.es obrccrniccs (chomadas, por engano,
do l.ivro] que cceitern consultar 5 us pr6prios arquivos.
Uma ci€mciadura: a angelologia
Com efeito, aqui, nco estamos afirmando noda de novo.
Nad? que, desde 0 alvorecer dos tempos, j noo tenha sido
rncnifesrodo.
. Transportar uma mensagem, onuncior uma noticia
diz-se em grego angelein. 0 mensag iro ou 0 dsleqcdo
chama-se angelos. Aconteco 0 que ocont c r aos anjos
p~r transportarem boas-novas, teremos cuidado em
nao esquecer a odvertericio de Rilke, no infcio da Se-
gundo elegia de Ouino, sobre esse estranho p6ssoro
da desqrocc: "Todo anjo e assustodor. E, no entanto ,
46
desgrac;ado de mim / Invoco-vos, p6ssaros da alma qua-
se mortais / Sabendo que sois... "
Segundo parece, os anjos nco existem. Seja no ceu ou
na terra. Com efeito, isso e verossimil. Mas j6 foi provadoque "0 homem se pensa nos mitos" (Levi-Strauss); olern
disso, tudo indica nas primeiras mitologias religiosas uma
ciericio do homem balbuciante, por meio de figuras e me-
t6foras. A teologia crista pode e deve (para os nco-cren-
tes) ser lida como uma antropologia em estado selvagem.
Ea angelologia, em particular, como uma midiologia em
estado mistico, ou gasoso. Para n6s, sob esseneologismo,
trata-se de prosseguir e determinar com precisco, aqui
embaixo, uma tarefa comec;ada de forma erudita e h6
muito tempo, mas nas nuvens: a anatomia dos anjos.
Sem duvido, os anjos de nossa infancia nco tern 0
prestigio estrutural dos totens da Nova Guine, e nossa his-
t6ria sagrada ndo tem 0 mesmo atrativo ex6tico dos mitos
de Dakota do Norte analisado por Malinowski ou Levi-
Strauss. Reconhece-se aos ontropoloqos 0direito de pers-
crutar longamente lendas de ursos e estruj6es entre os
indios Manamini ou de 6guias transformadas em homens,
sendo que tais mitos de reencarnac;ao prevalecem entre
os clcs hopi da mostarda selvagem. Por que nan otribuir
o mesmo valor documental, quanto ao funcionamento do
espfrito humano, a nossos contos de drag6es e de ho-
mens-p6ssaros? E mais diffcil tornarmo-nos etn610gos de
nossas crenccs dornesticcs. mas a priori ndo parece ser
mais absurdo de supormos na hist6ria das reliqioes - da-
quelas que estruturaram granc!es civilizar;;6es e que pas-
saram pela prova do tempo -, tanto informac;ao sobre as
leis da natureza e da sociedade, quanto a que e possivelencontrar nas mitologias esquim6 ou polinesic.
De fato, em todas as letras inscritas nesse ramo da
teologia cat61icachamada "angelologia" encontram-se as
tres propriedades que caracterizam um proce~6rico
de +ronsrnissco: 1) a estrutura- tern6ria que, inevitavel- )\~
rnenre;-coloca um terceiro termo mediador entre a emis-
47

5/11/2018 DEBRAY_Uma ciência dura: a angelologia. - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/debrayuma-ciencia-dura-a-angelologia 2/9
" I. II" 1o, l) j truturo de ordem que foz do ter-
It' Itil I till:, "lJll inonirno de hierarquizor, e 3) a estrutu-
/
' t, t ill II vlrovolto que inverte a passagem em obs+cculo. 0
(II 11'r intronsitivo do tronsporte das mensagens, ou 0 ca-
r t r inexorovel da interface, pode ser lido no impossivel
f e a face de Deus com os pecadores; 0 coroter hiercr-
quic~ .doscorpo~ mediadores, na ordenocdo propriamen-
I te md,!ar das milicios celestes; e a trcqedio da inversdo,
na revrravolta do anjo em demonic. Antes de passar em
revista esses diferentes pontos, cornecorernos por lembrar
que a angelologia corresponde a uma preocupccco erni-
nentemente proqmotico (bem mais "rornono" do que "bi-
zantina"): a qestco do conjuntivo. Ndo sao os sonhadores
e o.scontestadores mal-intencionados da cristandade que
se I~teressaram pelo "sexo dos onjos", os pequenos tele-
qrofistcs do Altissimo, mas os decididores e os ordenado-
res, virtuoses na arte de exigirem obediencio. 0 que esto
entre-os-dois e a mais terra-a-terra das preocupocoes, e
em todas as escolas de pensamento, oteics ou fideistas
socialistas ou liberais, e sempre 0angelismo que nco ievo
em consideroco o os anjos. Sejamos realistas: observemo-
los em ocoo, sem encobrir-nos 0 rosto.
Quanto mais especulativa for uma doutrina tanto me-. , '
nos Ira preocupar-se com seus ministros interrnediorios
- preocupocco reservada as pessoas do governo, e que os
pensadores da primeira ordem (ou da primeira gera<_;ao)
concordam em desdenhar como se tratasse de questoes
de segunda ordem. Pensar 0 acionador do mensagem e
pensar 0 Partido ou 0 aparelho, quando so 6 portador de
um projeto de sociedade; e pensar a lqrejo, quando se e
portador de uma mensagem de solvccdo: pensar a ima-gem, quando se e um homem de ideics ou conceitos. Ou
a ponte, quando se abre um caminho. Ou sejo, 0 que
n~n~~ma das categorias socioprofissionais indicadas (dou-
tnnarros, profetas, filosofos e superintendontes das vias
publicas) faz espontaneamente. Como a invcncco dos an-
,,oscorresponde a uma preocupocco de hegemonia, nco
e surpreendente que a angelologio crista tenha definido
seus contornos no momento do endurecimento eclesial,
em plena normolizocco institucional da religioo de Estado
(ano 391). Ao mesmo tempo que a cpcricoo dos primeiros
centros monosticos no Egito e na Golia, ou sejo, Tabennesi
e Lerins (seculos IV e V), a promulqccco das regras de fe
e de vida, as definic;oes conciliares e a fixccco das linhas
de comando sacerdotais. Nco e surpreendente que 0maior
dos cnqeloloqos. Dionisio, 0Areopagita, tenha consegui-
do passar - ou fazer-se passar -, durante muito tempo,
pelo discfpulo e herdeiro de Sao Paulo, ao que tudo indica
homem de instituicco. Ficamos devendo a este a primeira
hierarquia dos ministerios (cpostolos, profetas e doutores) e
a justificativa da diferenco entre opostolos e povos a partir
do modelo dos membros do corpo humane subordinados
uns aos outros. Os homens da lqrejo que mostraram maisvenerocco pelos anjos foram os fundadores de ordens ou
"superiores gerais", de Gregorio Magno a Loyola, passando
por Sao Bernardo e Sao Bento. Todos eles herois da pastoral
(mesma coisa, mutatis mutandis, no movimento operorio,
em que Guesde e Lenin desempenharam 0 papel de ange-
loloqos no lugar do falecido Marx). Sejo qual for a transmis-
sao, nco sao aspombas, mas os fclcoes que se interrogam
sobre os cnjos - ou sobre seus substitutos leigos, nossas
"correias de tro nsrnissdo".
Primeira licco. No firmamento monoteista que, supos-
tamente, estoria vazio, existe uma multidco. Desde 0 ca-
pitulo 6 do Genesis, aparecem os "filhos de Elohim" (para
aperceberem-se de que "as filhas dos homens eram lin-
des"}, seres misteriosos que os comentaristas identificam
com os anjos. Portanto, dupla surpresa: existe carne no
Reino do Espirito, e algo de Multiplo em torno do Uno.Como se 0 poder de Deus nco se bastasse a si mesmo.
Nco e Ele pessoalmente que adverte Agar, a serva egip-
cia, que dcro a luz Ismael; que anuncia a Abrcco que tero
um filho de Sara; que aparece a Davi; que responde a
Esdras perdido na Bcbilonio: ou que serve de guia ao povo
hebreu em sua caminhada. Nno e Ala que dita seus ver-siculos a Maome. E 0 proprio Moises recebeu as Tcbucs
48 49

5/11/2018 DEBRAY_Uma ciência dura: a angelologia. - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/debrayuma-ciencia-dura-a-angelologia 3/9
da Lei por interrnedio dos anjos. Como se Deus nuo pu-
desse intervir diretamente em nossos neqocios. Entre Ele
e seus profetas, intercala-se uma mediccoo obriqotorio _
o carteiro: em hebraico, rna/ok; em grego, ange/os. Mi-
guel, Gabriel, Uriel ou um outro subchefe. Agar, Lot, Ge-
d~~o e os outros so tratam com ministros do governo
divino, encarregados de rnissco "junto de", embaixadores
de um Presidente que noo chega a ser visto por nenhum
nativo. Do mesmo modo, no Novo Testamento, torna-se
necessaria essamediocco. essesocorro vital, para Josena
fuga para 0 Egito; para Mariareceber no ventre 0Verbo:, '
para ostres magos na busca do presepio: e para asSantas
Mulheres na descoberta do Tumolo vazio, no dia da Res-
surreicdo (a qual noo teve testemunha direta). Jooo dePatmos, autor do Apocalipse (0 desvelamento), observa
que ninquern ve a Deus diretamente. A visoo direta, de
frente, sera a recompensa final das almas no Paraiso - "a
visco beatifica". Daqui ate lo. como em 0 castelo de Ka-
fka, a autoridade suprema, inacessivel, impenetrovel, ex-
pressa-se por representantes que falam em seu nome, em
seu lugar, de uma forma eniqmotico. Assim, aqui embaixo
ou la no alto, e menos ainda nas idas-e-voltas entre os
dois patamares, nada se desenvolve na tronsporencio e
imediatidade, na evidencio cutomotico correspondente
ao do it yourself. Nada de outoqestco dos destinos. Os
decretos do Onipotente nco se executam em tempo
re~l, abertamente, mas otroves de um percurso tempo-
rolizodo em que nada esto decidido de cnternoo. em
que a Providencio tem necessidade de uma economia.
o Nascimento do Cristo requer uma Anunciocdo, en-
quanto a Ascensco, quarenta dias opos a Pcscoo, re-quer elevadores. 0 pr6prio Filho de Deus nco pode ir
ao encontro de seu Pai no Ceu sem a ajuda, escrituroric
e figurativa, de milhares de anjos portadores. Para ele-
ver-se na gl6ria acima dos coros celestes, 0 Cristo ainda
tem necessidade deles. Noo falemos da Assuncuo da Vir-
gem Maria. Ninquern se retira para seus aposentos por
seuspr6prios meios; de tal modo que 0Eternopreviu, para
50
- -cada um de n6s, um anjo da guarda e, para cada povo,
um "arconte", um guia especialmente atrelado a seus
passos (500 Miguel, 0 mais solicitado dos arcanjos, foi 0
anjo da guarda de Israel e passa por ser 0 da Froncc},
o pr6prio retraimento do Absoluto no Abstrato e que,
com 0 monoteismo, tornava inelutovel 0 intercessor, irn-
pondo 0 "Ianc;:amento de uma ponte", pela interface irno-
gina ria, para olccncor 0 divino invisivel a nossos pobres
olhos de carne. Como a faculdade imaginativa preenche
a seporccco kantiana entre 0 inteligivel e 0 sensfvel, 0
Anjo e um monstro necessorio, uma fantasia rigorosa,
sem a qual 0 Incriado primordial nco teria conseguido, de
modo algum, fazer-se entender, nem reconhecer por suas
criaturas. Portanto, "0 nascimento de Deus" teve um res-
gate: e essa superobundoncio de andr6ginos, hibridos,
metaxu (Plctco}, nem completamente encarnados, nem
totalmente desencarnados. A ornbivolencic da interface e
dificil de ser pensada, embora mais fccil de ser repre-
sentada, mais propicia a uma iconografia do que a uma
oxiornotico, mais pr6xima de uma poetico do que de uma
16gica. Os Anjos tornam possivel 0 contato cotidiano,
constitucionalmente impossivel, mas politicamente indis-
pensovel, do infinito com 0 finito, do divino com 0 huma-
no, do espirito com a materia. A Gnose, que regula a
solvocoo a partir do grau de conhecimento, mas se limita,
em excessiva cbstrccco 16gica, ao div6rcio 16gico das
duas ordens de realidades, depende de um preconceito
intelectualista ou purista. Ndo deixa qualquer espoco
para 0 maravilhoso, rnusico ou vitral, para 0 familiar,
para 0impure e para astronsicoes afetivas. Os Perfeitos
participam das realidades divinas sem intermediorios,
sem padres nem sacramentos, sem imagens nem anjos da
guarda. Assim, essa heresia new instituiu uma Igreja lon-
ga, para olern da elite dos Eleitos. Por falta de putti, de
droqoes dotados de garras e de andr6ginos alados, a
Gnose - teria dito Marx (iluminado por Lenin e pelos es-
pecialistas da agit-prop) - nco conseguiu "apropriar-se
das massas para tornar-se forc;:amaterial".
51

5/11/2018 DEBRAY_Uma ciência dura: a angelologia. - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/debrayuma-ciencia-dura-a-angelologia 4/9
o Deus dos filosofos, 0 de Spinozo, 0ser absoluta-
mente infinito, causa de si, fora de quem nada pode exis-
tir, noo tem necessidade de anjos. Nem de imagens.
Tampouco de Igreja. A ideio de Ens perfectissimum e muito
astuciosa, mas isso nunca chegou a constituir uma Wel-
tanschauung, um charme contagioso, um foco de incen-
dio. Tudo se passa como se 0 desejo piedoso (metaffsico
demais) de um Deus onipotente e onipresente, sem pro-
teses por assim dizer, nco serio defens6vel a distcncic.
Como tornbern nco serio defens6vel uma porta sem do-
brodicos, nem um lexica sem sintaxe. Coube asalmas sim-
ples do fe crista corrigir 0 tiro dos doutores eruditos que
sempre estiveram desconfiados em relccoo a esses bas-
tardos que sao os anjos, esses seres inclassific6veis, essasturbulencies irritantes, nos quais 0purista ha de denunciar
sem dificuldade uma ressurqencio politefsta, uma recafda
na magia cssfrio-bobilonico , uma lament6vel influencio
estrangeira. De fato, os Livros doAntigo Testamento ante-
riores 00 cativeiro de Bcbilonio nco mencionam os cnjos
por seus nomes; do mesmo modo, 0 demonic permanece
of cnonimo e sem anatomia personalizada - olern daque-
la, um tanto imprecisa, do serpente. Abodco, Asmodeu,
Satan6s cheqoroo mais tarde. 0 Livro de Jo relaciona a
doenco, as pragas e a morte diretamente a Deus; quanta
00 diabo, so h6 de aparecer sob seu nome, diabolos, com
a troducco tardio do Bfblia em grego, conhecida como a
dos Setenta. Do mesma forma, Paulo desconfiava do culto
de cdorccoo dos anjos (Epfstola aos Colossenses 2(18).
Para quem anuncia Jesus como mediador unico do salva-
c:;ao,"keriqrnc" proprio do cristianismo, 0 Anjo e um sujei-to perigoso. E,no entanto, no economia crista do solvocco,a Natividade, que poderia ter posto um tormo a missco
dos Anjos, nco conseguiu elirninc-los. 0Modiador unico
que e 0 Cristo ainda +ero necessidado do ministros, de
mensageiros, de go-between entre 0 c6u c a terra. Os
anjos permanecem associados a todos os acramentos do
fiel, a propria Igreja e a coda indivfduo. Volta dos anjos,
volta do reprimido rnonotelsto.
52
Por terem entrado no cristandade de forma discreta,
por baixo e pela imagem, a propria teologia especulativa
ndo conseguiu, com 0 tempo, livrar-se deles. Pormais tar-
dias que tenham sido introduzidas (final do seculo IV), as
pro+icosde representocco e devocco acabaram suprimin-
do, com uma grande sequronco midioloqico, as repug-
ncncics doutorais. Parasatisfazer a libido optico, a primeiro
arte crista foi obrigada a servir-se do repertorio decorativ o ·
poqco. 0das Vit6rias antigas, as Nikes, essas mulheres
aladas que coroavam os vitoriosos, 0 dos amores, 0 dos
genios romanos que, em poteros e sarcOfagos, eram re-
presentados com a palma e a coroa. Assim, a partir do
seculo V , um modele visual antigo uniu-se a um dado tex-
tual biblico para atribuir aos espiritos celestes 0 corpo de
homens-possoros que nunca mais os abandonaram e que
podemos encontrar ainda noalto das colunas e nas salas de
cinema, qenio do Bastilha ou efebos alados de Cocteau, Pa-
solini ou Wenders. Portanto, essaschicotadas e efervescen-
cias coloridas, que se desenvolvem com as miniaturas
medievais e os afrescos do QuaHrocento, subverteram nos-
sas categorias loqicos. A figurac:;ao piedosa estava a frente
da conceituclizocoo doutoral (a imagem precede sempre a
ideio). Efoi necessorio que as pessoas de teses e dogmas
corressem otrcs das pessoas de imagens (caminho que
dever6 ser feito de novo, na esteira do cristianismo, por
qualquer teoria profana do terceiro excluido}.
Segunda licco. Todas as propriedades do corporocco
angelica foram sujeitas a coucco entre os doutores da
Igreja, exceto uma: a disposicco em ordens sobrepostas,
o esca/onamento. Esses funambulos nco se apresentam
como girovagos, mass60 "incardinados". Longe de ser um
eletron livre, cada um tem sua fila, seu lugar, sua patente.
Como acontece nos Forces Armadas. A especificidade do
anjo e 0 sorriso que seduz os poetas; mas "den Engel
Ordnungen" (Rilke) interessam oshomens da ordem. Todo
o mundo compreende que os dernonios estejam organi-
zados segundo 0 modelo militar. Mais surpreendente, mais
rica de sentido, a rnilitorizocdo original dos sfmbolos do
53

5/11/2018 DEBRAY_Uma ciência dura: a angelologia. - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/debrayuma-ciencia-dura-a-angelologia 5/9
fluido, do ornovel e do pacifico. Troqico coincidencio: oope-
rador de conversco de um a outre nivel de realidade, do
sobrenatural ao natural, e um operador de subordinocco.
"A ordem" funciona nos dois sentidos. De saida, por suas
propriedades comparativas, ja inferior a Deus, superior aos
homens, mais materia do que 0 primeiro, menos do que os
segundos, 0Anjo conotava uma ideio de posicco, de lugar,
em uma ordem fixa e preestabelecida. As indicocoes hieror-
quicas espalhadas pelo Antigo Testamento e presentes em
Sao Paulo (Epistola aos Hesios 1) 1;Epistola aos Colossen-
ses 1,16L desenvolveram-se na obra de um teoloqo oriental
que escreveu, em grego, entre os seculos V e VI, 0 Pseudo-
Dionisio, dito 0Areopagita.
E a ele que se deve uma sisternofizccdo - tendo colo-
cado umas a frente das outras - das hierarquias eclesics-
tica e angelica. Dionisio coloca 0 Exercito do Bem em
ordem de batalha, segundo a celebre Taxis, por coros de-
crescentes: em relocco direta com Deus - Serafins, Que-
rubins e Tronos; Dorninocoes. Virtudes e Potentados que,
por sua vez, devem passar pelo primeiro coro; Principa-
dos, Arcanjos e Anjos (simples soldados das milicias celes-
tes, no posicco mais baixo das dignidades). No verdade,
as proprios Serafins nunca conseguem atingir 0 segredo
intimo de Deus que, fundamentalmente, permanece in-
compreensivel. Deixemos de lade ndo so a questno de
saber se essa subordinocco cria diferencos de natureza ou
simplesmente de funcoo entre os anjos de primeira, se-
gundo e terceira dasse. Mas tnrnbem a questno dos crite-
rios de distribuicdo. E das eventuais prornocoes. Metodio
imaginava os anjos grudados para semprc a sua patente
de origem; Agostinho, mais prudent ,n e pronuncia a
esse respeito. Mas todos os Padr d Igr [o reeonhecem
uma sequencia de ordem. D m 111 i ll d ,Dionisio dis-
tingue tres filas entre 0 ini i te l i! I lJj ticos: bispos,
padres e diocono ; pay d. II I jcld ,no posicoo
mais baixo, 0 'I ' urn 11< " urn II [u] 1 < 1 , enerqurne-
nos, ou se]o, b tiz 1 I ' 1 IH II If b 11 nflu n ia do dernonio,
e os p nit 11' ,I u'lifWI I (1 (IInlnll 11 ureza. Nesta
estrutura tricdico, tomada de ernprestimo a Plotco e as
cosmologias antigas, 0Cristo e 0 primeiro hierarea, ponto
de origem das duas hierarquias, a celeste e a terrestre.
Estc, a sacerdotal, era de fato mais complexa, segundo as
Constituicoes apost6licas: cpos os dicconos, vinham os
subdioconos. leitores, cantores, ascetas, diaconisas, vir-
gens, viuvos e, por ultimo, 0povo, mas0modelo trinitcrio,
paradigma obriqotorio. servia de quadro a todos os qua-
dros. Os nove coros e a Trindade multiplicada por si mes-
ma. Estrutura fractal da serie , Dionisio, talvez, tenha
sentido a necessidade de prevenir uma turbulencio, de re-
gular uma zona instovel ao acentuar os valores de ordem
e de estabilidade contra os do anarquia e do caos que
rondavam em torno desse flutuante. Com efeito,0
anjoe tombern um eontrapoder, imprevisivel, incontrolovel e
insolente diante, e distante, dos moqisterios instituidos.
o operador volante do conexco homem-Deus curto-cir-
cuita os elos da deleqocco, os vinculos obrigat6rios da
cornunicucdo hierorquicc , Ele vai e vem. Todo anjo e um
anti papa em potencio. Pode soprar a um simples fiel
que 0 papa e um idiota, e 0 bispo um simoniaco. 0
energumeno alado oferece ao desesperado - conferir Jo-
ana d'Arc - uma via de recurso para a esperonco, fora do
enclave eclesial fossilizado.
Portanto, esse neoplotonico tinha os pes assentes na
terra: estava preocupado em saber "quem serio 0presi-
dente". 0 qual podero pregar em nome de todos os ou-
tros. 0 primus inter pares, no Sacro Coleqio ou alhures.
Quem podero, no diocese, consagrar quem. Dionisio, 0
iluminado, estava preocupado com a intendencio. As me-taforas solares tinham obcecado "a visco alexandrina do
mundo". A taxinomia dionisiana assume-as, mas, com 0
desnivelamento regulado dos iluminadores, a tronsmissoo
escapava as figuras recebidas do ernonocdo ou do difu-
sao, com as quais se alimenta 0idealismo racionalista ate
nossos dias. Como foi importante esta descoberta: a or-
qonizocoo intransitiva dos operadores da tronsicdol Neste
aspecto, 0muito espiritualista Dionisio superava em re-
55

5/11/2018 DEBRAY_Uma ciência dura: a angelologia. - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/debrayuma-ciencia-dura-a-angelologia 6/9
alismo 0"omrie bonum est diffusivum sui" dos escolristi-
cos, assim como 0otimismo too leve das Luzes (que con-
tinua presente na Carta da Unesco). A luz do saber, su-
postamente imaterial, espalhar-se-ia pelo espoco sem
se divisor. Propargar-se-ia de forma continua e de um
so jato. Ora, os anjos distribuem-se em uma especie de
escada de Jcco, cujos degraus, por definicoo , mostram
uma descontinuidade, uma sequencia ordenada de in-
tervalos. A arte dos intervalos e comum a musico e apolitico. Isso faz, pral"icamente, do solfejo, assim como
do etiqueta, melodias e tornbern ciumes. 0 onjo com a
harpa ou com a viola desfia notas em uma pauta com
linhas equidistontes: 0anjo com 0chicote, ou com a vara,
distribui lugares no tribuna com filas equidistcntes. Seranecessorio lembrar que, por rnediocco bizantina, nosso
protocolo vem diretamente do Ceu?7
o materialista a modo antigo nco hesitoro em ver no
hierarquia celeste dos anjos a projecco fontcstico do pro-
totipo terrestre das Casas imperiais, mas a querela do ga-
linha e do ovo parece, aqui, sem per+inencio. Para nos, 0
I I importante consiste em saber nco a imagem correspon-
dente a coda ordem, mas a estrutura de ordem indefini-
\ damente repetivel "no terra como nos ceus". 0 marxista
tem 0 direito de considerar Dionisio como um ideoloqo
pre-feudal da submissco, extraindo seusembustes do car-
7. Coroter regio do Igreia, clerical do Corte: os dois refletem-se um 00ou tro . No
Republica, 0Pre si dente a inda t em uma "Coso" (deno rni nocco o fi ci al do gab i-
nete , fo rmado pelo s as ses so res mc is p roxir nos , no Pa la cio do Elis eu [r es iden -'
c ia o fi ci al do chefe de Estado, no f rcnco] ) e os ce rimoni ais do ' li do de rnocro ti co
sao too marcodos por precedencios e titulos, nossas Conselhos de ministros
sao too obcecados por querelas relativas a posicoes hierorquicos, quanto os
rituais rnerovingeos ou as memories de Saint-Simon. A ardem protocolor
muda, mas 0protocolo . 0que, no vida em sociedade, nco sofre qualquer
rnudcncc. Sem duvido, "0respeito pelas formes" e 0que a existencia pol it ico
tem de mais profundo; cssim, ele resiste a todas as mudcncos de regime,
latitude e danorninccco. "Convern separar os homens par meio de rituais
para imped i-I os de s e mas sac ra rem" , d iz ia Sar tr e.
56
tola do neoplatonismo decadente. Preferimos ver nele um
pesquisador de "ciencics politicos", por ontecipccco, que
teria pressentido e, 00mesmo tempo, ocultado, otroves
da cifra mistica, a pungente permonencio do fenomeno
hierorquico. Somos obrigados a reconhecer que nco exis-
te sociedade organizada - ainda que fosse judaica-cristo,
dernocrctico e, ate mesmo, oficialmente iquclitorio - que
nco oferecc, em seus orqoos de direcrio e de execucco,
uma desigualdade meticuloso e, em seus rituais e cerirno-
nias, uma qrcdocoo do superior 00inferior rigorosamente
definida. Quanto mais um coletivo pretender ser "orqcni-
co", tanto mais bem definidas seruo as distancios entre
seusmembros, no organogroma enos cerimoniois. Quanto
mais um coletivo pretender seguir Sao Paulo ("embora seja-
mos vcrios, todavia, somos um so corpo, somos membros
uns dos ou1ros"), tanto mais sera, paradoxalmente, hierar-
quizado. 0 desnivelamento hierorquico e tanto mais acen-
tuado, no nivel inferior, quanto mais elevada for a trans-
ceridencio fundadora, no topo da pirornide dos seres. A
orqonizocco do Igreja co+olico - 00que tudo indica, mo-
narquia absoluta de direito divino -, oferece uma ilustra-
<;00 viva dessa correlccco simplorio, mas tenaz. Ela es-
clarece, sem duvido, a longevidade dessa instituicco (e a
incornpnrovel estabilidade do Estodo do Vaticano).
o pensamento dionisiano, abertura musical, preludio
inspirado, levantou uma ponto do veu. Nco existe media-
<;00 horizontal, qualquer rnediocoo e, de saida, qualifica-
da como grada<;ao - ela e ascendente ou descendente
(anag6ge ou paradosis). Essedesnivelamento faz fu.ncio-
nor toda "trcdicco", entendida como passagem de Inter-
mediorios, do Mestre 00discipulo, do professor ao aluno,do Pai aos filhos, do opostolo ao povo. Os anjos fazem a
corrente, sim, mas com a condicco de que os elos nco
estejam 110 mesmo nivel. A primeira ordem, serafica, en-
contra-se na vizinhanc;a de Deus, enquanto 0 ultimo, an-
qelico, toca no homem. Deus opoic-se no alto da escada,
do mesmo modo que nos, os pecadores, nos apoiamos no
parte de baixo. Por hipotese, retirai a escada: com ela,
57

5/11/2018 DEBRAY_Uma ciência dura: a angelologia. - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/debrayuma-ciencia-dura-a-angelologia 7/9
iroo desaparecer os termos do relncdo. A divinizocco do
inteliqencio ou a unico do homem com Deus, fim de toda
atividade hierorquicc, nco pode operor-se de umo sovez,
com um saito do obscuridade para 0 Luz. A hierarquia nco
e um simples quadro social, 0 enquadramento exoterico
de uma ilurninocoo individual; ela inspire e permite a
tronsrnissoo da qrcco , motor e condicco. EmDionisio, e aproprio monifestocoo do divino, a "deiformidade". Se nco
ho hierarquia, Deus nco existe. Mas se existe hierarquia,
ele torna-se inccessivel. 0 sinal degrada-se ao longo do
canal. A optidoo para receber a mensagem divina vai sen-
do minada pela entropia a medida que aumen~a 0 ofos-tamento do receptor em relocdo ao emissor. "A medida
que semultiplicam os degraus na mediccco descendente,a purificocdo, a ilurninocco e a perfeicco perdem sua for-
co e seu brilho,,8. Contrariamente a Plotino, Jombl~coou
seu proprio mestre, Proclus, a processco nco e, oqur, uma
exponsco natural do Uno para fora de si mesmo, uma
efusco do ser, uma irrcdiccoo divina. Seu proodos e dia-
crftico e essa diakrisis e verdadeiramente crttico no sentido
ern que cada esccloo, cada mediocco, volta a representar,
ern rozco da gratuidade dos dons divinos, a Revelocco de
novo. Ao multiplicar escadas e degraus, "a espessura rni-
diotico" do rnundo (Daniel Bougnoux)* equivale a espes-sura espiritucl. Se0 "diobolico" e, ern lingua grega, 0 quedivide, e 0"sirnb6Iico" (sumballein) 0 que unifica, temos
motivos para dizer que a tronsrnissdo do divino esro estru-
turada diabolicamente. 0 diabolos - no sentido proprio:
aquele que cria obstoculos - e 0 outro nome de angelos,
o mensageiro. Perturbadora reversibilidade da ordem em
desordem. Parasintetizar, 0 Diabo nco e 0 Outre de Deus;
mas pode ser Deus no exercfcio de seu poder. 0 ruido
encontra-se na propria mensagem.
8. Rene Roques, L'Univers dionysien, Paris, Aubier, 1954, p. 104.
* NT: Cf. D, Bougnoux, Introduqao as ciencias do informoqao e do cornonicccdo.
Petropolis, Vozes, 1994,
58
Assim, codificada em linguagem cat6lica, "midiologia"
poderia ser chamada tanto angelologia, quanto demono-
/ogia. E, aqui, surge a terceira licdo. A qualquer instante,
o onjo pode inverter-se em demonic, 0vetor tornar-se
anteparo, 0 canal ficar obstruido. No fundo de cada Mes-
sias (e nco 00 lado ou contra ele}, esto adormecido um
Anticristo. 0 chefe dos dernonios era 0mais elevado dos
espfritos oriqelicos: com efeito, quanta mais um on]o esti-
ver pr6ximo de Deus, tanto maior sera a tentocco em pre-
tender assemelhar-se a Deus. "Tendo ccldo de mais alto,
e ele que ira cair mais baixo": a Rocha Torpeio esto proxi-ma do Capit6lio. Quer consideremos 0 anjo como Deus,
ou 0 vetor como a mensagem, trata-se do lade sctcnico
das sociedades ditas da comunicocco , too bem colocado
em evidencio por Michel Serres. Nossos portadores de no-
tfcias [o nrio sabem fazer-se esquecer. Lacon apresenta-se
no palco psicanalftico como 0 anjo de Freud; todavia, no
fim, ja nco se consulta Freud, mas cita-se Lacon. J o nco
sevai 00 teatro assistir a uma peco de Shakespeare, mas
ver a encenocoo de Lavaudant ou Chereou. Ja nno sees-
cuta um disco de Bach, mas de Glenn Gould. Jo nco se Ieum livro a nco ser ctroves do entrevista do autor que in-
terpretava seu livro no jornal. Ho engarrafamento no ro- 1dovia. Os mediadores ja nco soo osdelicados vol6teis que f ~olcorn voo mal fazem a entrega do mensagem, como 0
Gabriel da Anunciccco feita a Maria. Esses orgulhosos
consideram-se a pr6pria mensagem. 0 engafarramento
midi6tico, versco profana do queda dos anjos, e 0 apre-
sentador que "se exp6e" ou 0 orqco que se revolta contra
sua funcco. Todo 0 poder aos transmissores. Os vefculos
tomaram 0 lugar do passageiro, 0 lugar do sentido - e
limitam-se a transportarem-se a si mesmos. 0cnuncio do
acontecimento toma 0 lugar do acontecimento. Remon-
tando 0 efeito perverso do transporte das mensagens a
sua causa, dir-se-o: 0 que torna possfvel a mensagem tor-
na provovel sua perversoo: ou, em lingua crftica, as con-
dicoes de possibilidade de envio s60 as do desvio. Salobra
crnbivolencio: 0 onjo estava af para proteger-nos do de-
59

5/11/2018 DEBRAY_Uma ciência dura: a angelologia. - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/debrayuma-ciencia-dura-a-angelologia 8/9
III 111 . Mas quid do solvocco se 0 onjo revelc-se demo-
IIi ? Oro, 0 risco e inerente a funcco, e a teologia crista
dou-se muito bem conta disso. Contrariamente 00 dual is-
mo de tipo iraniano, essenio ou cotoro. ela recusou a fa-
ci lidade maniqueista de atribuir 00 Mal uma subs-
tancialidade independente. Todo medium eo melhor e a
pior das coisas. Esopo fez disso um proverbio que repeti-
mos todos os dias, mas, no fundo, qual misterio mais an-
gustiante do que a reversibilidade do bem? Satan6s e um
on]o decaido, um anjo rebelde, sim, mas ainda um cnjo.
Sao Jorge nco cessa de permutar com 0 droqco, nco se
tem a certeza de nada, e ainda menos de sua sombra. 0
Mal eo Bemtern a mesma origem e estero sonhando todo
aquele que pretender associar-se oeste sem provar aque-Ie. A passagem pelo canal implica a obstrucco pelo canal.
Nao podemos pretender fazer-nos entender e, ao mesmo
tempo, evitar qualquer mal-entendido; se conseguimos
uma coisa, obre-se a possibilidade do outra. 0 Livro de
Enoc atribui aos anjos decoidos 0 duplo papel de civilize-
dores e de corruptores: tendo vindo para a terra, eles tra-
zem para os homens a espada com a charrua, e 0
coquetismo com 0amor. Desde a primeira rnonhc, a am-
biquidcde estava presente com a decepcco.
"Tudo 0 que e demonic rnontern-se no meio entre os
deuses e os mortais", diz Diotima no Banquete (202 d). 0popel medial do demonic helenico ja era, desde Hesiodo,
o do anjo cristoo: "ele interpreta eleva aos deuses 0 que
vem dos homens e aos homens 0que vem dos deuses (...);
colocado entre uns e outros, ele preenche 0intervalo de
maneira a ligar as partes do grande todo". Alhures, em
Epinomis (984 e), Plo+dositua os dernonios no hierarquia
dos elementos, no nivel do ar, intermediorio entre 0ceu e
a terra. No corneco, 0 daimon, 0 anjo da guarda de 56-
crates, seu conselheiro especial, e bom e benefice. Mas,
ligado como esto 00 mundo dos oroculos, das magias e
do odivinhocoo (manfike), ele ndo poderia escapar, por
muito tempo, a inversco malefica. Assim, ve-se 0lumino-
so interrnediorio tornar-se negro no decorrer das exeqe-
60
ses (Xenocrates, Plutarco, Jomblico que, depois de Plotco,
insistem sobre os maus dernonios}. Por sua vez, 0dogma
cristco estipula que os dernonios foram criados por Deus,
embora indiretamente, e foram criodos bons. Alern disso,
exercem uma certo dorninccoo sobre a humanidade, mas
com a permissco divino. Um terce deles (segundo 0Apo-
calipse, primeira sondagem conhecida sobre a porcenta-
gem dos orgulhosos no bando), os dernonios foram eric-
dos com a natureza e a forma de onjos. Uti lizam os mes-
mos meios - sugestivos, er6ticos e carnais. Para agir sobre
o corpo pelo corpo (mais vulnerovel do que a alma as
tentccces impuras). "0 dernonio, dizia Santa Teresa de
Avila, s6 consegue agir sobre a alma pelo corpo e pelas
faculdades sensiveis" - irncqinocuo, sensibilidade, mem6-ria, faculdades inferiores. No corneco, sao indistintos. A
mulher e a interrnediorio nco s6 entre 0 homem e Sata-
nos, quando ela se choma Eva, mas tombern entre 0 ho-
mem e Deus, quando se choma Maria. Cruel hesitccco
para a qual Baudelaire ja tinha chamado nossa otencdo:
"A mais bela cstucio do Diobo consiste em persuadir-nos
de que ele noo existe". De que modo? Tomando de em-
prestirno 0 sorriso dos anjos. Verdadeiramente esperto eo pecador que sabe reconhecer, na primeira olhadela, 0
bom e 0mau, distinguir 0salvador do exterminador - sera
que ainda existiriam histories de guerra e romances de
amor se 0 homem nco confundisse obrigatoriamente, no
inicio do relocco, uma coisa pelo outra?
oque sepode ler,em resumo, nosAnjos, que tipo delendaa seu respeito existe aqui? Adrnoestocco ou prernonicco s
De um 50S grudado a humana finitude. Aflic;ao e de-somparo. A imediatidode desaporeceu com 0Paraiso, de
modo que eis-nos entregues a incontroloveis intermedio-
rios que multiplicam os degraus do escala a medida que
subimos em direcco do derradeiro objetivo. Temos de
atravessar uma enfiada de porticos, corredores, escadarias,
um dedolo de reflexes mais ou menos enganadores, de
interpretes mais ou menos seguros, de interlocutores mais
ou menos duvidosos. E0que consideramos como um ves-
61

5/11/2018 DEBRAY_Uma ciência dura: a angelologia. - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/debrayuma-ciencia-dura-a-angelologia 9/9
tibulo e a propria moradia: centralidade do corredor. 0
onjo e 0 esgar do Deus ausente, 0 trocado de suas evosi-
vas. Podemosver no retorno do Sisifo cnqelico, ao longo da
historic santa, 0 sinal obstinado de nossa incompletude,
clern de que 0adulto ainda esto longe de sair do infuncio,
assim como a historic do pre-historic. Ele tero sempre ne-cessidade de um mestre para aprender a viver sern mestre,
de uma asa portadora para clconcor os curnes. Nco secon-
segue fazer issosozinho. As portas nco seabrem por si rnes-
mas - sem porteiros. Sem vigilantes, guias ou protetores.
Sem irmcos mais velhos. Sem psiquiatras, esses psico-
agentes funerorios que antecedem a morte. Sern primei-
ros da fila para entrar na fila, sem Presidentes para criar
a nocno, sem bons qenios para manter 0 norte.
o cn]o: 0anunciador de nossa subrnissoof Sim, a in-
voluntoric moral desta fobulo por demais negligenciada
murmura-nos ao ouvido que continuaremos para sempre
assistidos, menores e imaturos. 0 perturbador ruge-ruge
desses "possoros da alma" que voltejam, ambiguos, entre
o Eterno enos - entendamo-Io como as tres pancadas no
teatro: tal e nossa enfermidade essencial - a mediccdo
sera 0nosso destino. As olmas nco tern ocessooo que es
e vital a nco ser pela interposicco de corpos estranhos.
Para falar cruamente, e emboro tal seja nosso mais que-
rido desejo, nco he cporencio de que possamos tornar-
nos, algum dia, ateus, no sentido ern que Marx, em A
ouestoo judaica, define a reliqico como 110 reconhecimen-
to do homem por um desvio, por um interrnediorio" (em-
bora reconhecer-se afeu ctroves de um Estado ateu,
acrescenta ele, sejo uma forma de permanecer religioso).
Independentemente do lugar para onde formos, cqnosti-cos ou crentes, um on]o estero a nosso espera na soleirado porta - mestre, cicerone, superior de convento ou guru
-, e serio inutil pretender passar por cima desse interces-
sor. Tudo indica que a relocoo imediata a nos mesmos -
com a qual, como individuos ou comunidade, nco pode-
mos deixar de sonhar - nco ho de ocorrer.
/
62