Decamerao - Giovanni Boccaccio

1781

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OS IMORTAIS

DA LITERATURA UNIVERSAL5

Giovanni Boccaccio

DECAMERO

1971

2.a Edio

Traduo deTorrieri Guimares

PROEMIO

prprio do homem ter compaixo dos aflitos. Tal sentimento fica bem a qualquer um; contudo, exige-se que dele dem mais provas as criaturas que j precisaram de socorro, e o tenham recebido da parte de algum. Eu estou entre estas criaturas, se que algum j precisou de compaixo se tal sentimento j foi caro a alguma pessoa , se dele algum ser j auferiu prazer. E isto pela razo de que, desde a minha primeira mocidade, at hoje, sempre me senti arder por um amor muito elevado e nobre. Ao narr-lo, posso despertar a impresso de que ele foi mais ardente do que o devera, tendo em vista a minha humilde posio na sociedade. Entretanto, eu fui elogiado por pessoas que eram discretas, e que tomaram conhecimento do fato.

Embora tivesse adquirido fama por causa desse amor, mesmo assim sofri demais por t-lo alimentado. verdade que no sofri em razo de crueldade da mulher amada. Padeci por via do muito amor concebido em esprito, em razo de uma angstia desproporcionada. Esta angstia no me permitia ficar dentro dos limites convenientes; e, por causa disto, trazia-me, com freqncia, mais desgostos do que o razovel. Para tais desgostos, muita paz e elogivel consolo me deram os raciocnios de algum amigo; tanto isto verdade, que estou firmemente convicto de que foi em virtude desses raciocnios que eu no sucumbi.

quele que determinou, por lei irrevogvel, infinito que , que tenham fim todas as coisas terrenais, aprouve, contudo, que o meu amor, mais ardente do que outro qualquer, por si mesmo reduzisse a prpria intensidade, com o simples passar do tempo. Era amor que nenhuma fora de argumentao, nem de conselho, nem de vergonha, nem sequer de perigo, tinha podido vencer, e muito menos dissipar.

De si este amor apenas me deixou, no esprito, o prazer que a paixo costuma ofertar pessoa que, velejando, no imerge demais nos plagos sombrios. Tendo-se tornado penoso, e j que se dissipou, aquele amor apenas deixou em mim uma sensao de prazer.

Mesmo assim, terminado embora o sofrer, nem por essa razo se esfumou a lembrana dos benefcios recebidos daqueles aos quais, pela benevolncia que por mim demonstraram, minhas inquietudes fizeram, injustamente, sofrer. Nem essa lembrana se apagar em tempo algum, ao que suponho, seno com a morte.

Pelo que eu entendo, a gratido deve ser includa entre as virtudes; e lamentada a ingratido. Para no ser ingrato, a mim mesmo propus, agora que posso considerar-me livre, o trabalho de ofertar algum consolo, na medida de minhas possibilidades, em troca do que eu recebi. Se no o presto aos que me auxiliaram e que, por sorte deles, ou por seu bom senso, ou sua boa fortuna, no necessitam dele, pelo menos presto-o queles aos quais possa ter valor. No obstante seja muito nfimo o alvio, ou o conforto, ou seja, l o que for, aos que necessitam disso, mesmo assim me parece que ele deve ser ofertado queles cuja necessidade maior, ou porque mais bem lhes far, ou porque, desse modo, mais carinhosamente ser entendido.

E haver quem negue, por importante que seja, que conveniente ofertar este alvio, este conforto, mais s mulheres belas do que aos homens? Mantm elas escondidas, em seu delicado seio, as chamas do amor. Receiam envergonhar-se; retraem-se. As chamas ocultas possuem mais fora do que as que se ostentam; e disto sabem aqueles que j as experimentaram. Tanto mais que elas, as mulheres, constrangidas pelos desejos, pelos caprichos e pelas ordens paternas, maternas, fraternas e dos maridos, conservam-se a maior parte do tempo encerradas em seus aposentos; mantm-se ali, sem nada fazer, sentadas, querendo e no querendo; numa hora s, nutrem pensamentos vrios, e no possvel que sejam sempre alegres esses pensamentos. Se, em razo desses pensares, certa melancolia nascida de anseios ardorosos advm ao esprito delas, convm se trate, com muito cuidado, de seu esprito, se a melancolia no o deixa por novos raciocnios. Sem isto, so as mulheres muito menos fortes do que os homens, e necessitam de amparo.

Tais coisas no sucedem aos homens que se enamoram, como francamente podemos constatar. Os homens, sentindo-se acuados pela melancolia ou pelo desnimo, acham inmeras maneiras de aliviar-se, ou de entreter-se. Se o quiserem, no lhes faltam ocupaes, como a de deslocar-se de um lugar para outro, a de escutar, a de ver coisas, a de armar armadilhas aos pssaros, a de caar, a de pescar, a de cavalgar, a de jogar, a de fazer trocas. Em tais atividades, cada um tem a fora de prender, no todo ou parcialmente, o pensamento, afastando-o da preocupao mais penosa, mesmo que no seja seno por curto espao de tempo. Depois deste interregno, de um modo ou de outro, ou chega o consolo, ou se torna menor o sofrer.

Assim sendo, para que se corrija, para mim, o pecado da Sorte, pretendo narrar cem novelas, ou fbulas, ou parbolas, ou estrias, sejam l o que forem. A Sorte mostrou-se menos propcia, como vemos, para as frgeis mulheres, e mais avara lhes foi de amparo. Em socorro e refgio das que amam, que escrevo (pois, para as demais, so suficientes a agulha, o fuso e a roca). O que escrevo so as coisas contadas, durante dez dias, por um honrado grupo de sete mulheres e trs moos, na poca em que a peste causava mortandade. Ajuntam-se algumas cantigas das mulheres j mencionadas, cantadas sua vontade. Nas ditas novelas surgiro casos de amor. Uns agradveis, outros escabrosos, Sero registrados outros eventos felizes, passados tanto nos tempos atuais, como nos antigos.

As j referidas mulheres, que estas novelas lerem, podero obter prazer e til conselho das coisas reconfortantes que as narrativas mostram. Sabero aquilo de que conveniente fugir e, do mesmo modo, aquilo que deve ser seguido. No acredito que prazer, conselho e exemplo sejam obtidos sem sofrer-se aborrecimentos. Se forem obtidos sem aborrecimentos (e apraza a Deus que assim ocorra), aquelas mulheres rendam graas ao Amor, que, por me libertar dos prprios laos, permitiu que eu atendesse aos prazeres delas.PAMPTNIA

Primeira Jornada

Principia a primeira jornada do Decamero. Nela h, em primeiro lugar, a demonstrao que o autor faz da razo pela qual as pessoas indicadas adiante estiveram reunidas e juntas passaram a palestrar sob o reinado de PAMPINIA. Em seguida, vem a palestra sobre o que mais deleita a cada uma.Inmeras vezes, minhas adorveis mulheres, pensando eu com os meus botes, considero o quanto vocs so piedosas por natureza. Conheo muitas mulheres para as quais, no seu entender, esta obra ter um incio triste e maante. Triste e aborrecida a penosa lembrana da mortandade que a peste causou h pouco tempo. A cada um, e a todos que a viram, ou souberam dela, ela prejudicou. E esta lembrana que esta obra inscreve em seu promio. No quero, porm, que isto as assuste e induza-as a desistir de ler at mais para frente, quase que entre suspiros e lgrimas, este promio. Que este horrvel comeo no seja, para vocs, seno igual a uma montanha inspita e ngreme, para os viandantes; ao p da montanha, suponha-se uma bela e encantadora plancie; esta ser, aos seus olhos, tanto mais agradvel quanto maior tiver sido a aspereza da ascenso e da descida pelas encostas.

Como a dor se localiza no extremo oposto quele em que se acha a alegria, fica evidenciado que os sofrimentos terminam quando se inicia a satisfao superveniente. A este breve desgosto digo breve porque pode ficar restrito a poucas palavras se seguem, com toda solicitude, a doura e o prazer. Isto o que h pouco lhes prometi. Se no o tivesse afirmado, tal prazer no seria qui aguardado, por via do mencionado comeo.

bem da verdade, se eu, honestamente, pudesse levar vocs ao que eu desejo, por uma via diferente, que no fosse trabalhosa, como esta o , t-lo-ia feito. Contudo, qualquer que seja a causa pela qual sucederam as coisas que se lero mais adiante, tal causa jamais poder ser demonstrada sem rememorao. Por esta razo que me vejo quase forado pela necessidade a escrever a respeito dela.

Afirmo, portanto, que tnhamos atingido j o ano bem farto da Encarnao do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florena, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itlia, sobreveio a mortfera pestilncia. Por iniciativa dos corpos superiores, ou em razo de nossas iniquidades, a peste, atirada sobre os homens por justa clera divina e para nossa exemplificao, tivera incio nas regies orientais, h alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, ima enorme quantidade de pessoas vivas. Incansvel, fora de um lugar para outro; e estendera-se, de forma miservel, para o Ocidente.

Na cidade de Florena, nenhuma preveno foi vlida, nem valeu a pena qualquer providncia dos homens. A praga, a despeito de tudo, comeou a mostrar, quase ao principiar a primavera do ano referido, de modo horripilante e de maneira milagrosa, os seus efeitos. A cidade ticou purificada de muita sujeira, graas a funcionrios que foram admitidos para esse trabalho. A entrada nela de qualquer enfermo foi proibida. Muitos conselhos foram divulgados para a manuteno do bom estado sanitrio. Pouco adiantaram as splicas humildes, feitas em nmero muito elevado, s vezes por pessoas devotas isoladas, s vezes por procisses de pessoas, alinhadas, e s vezes por outros modos dirigidas a Deus.

A peste, em Florena, no teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saa pelo nariz, fosse de quem fosse, era sinal evidente de morte inevitvel. Em Florena, apareciam no comeo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas inchaes. Algumas destas cresciam como mas; outras, como um vo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o populacho de bubes. Dessas duas referidas partes do corpo logo o tal tumor mortal passava a repontar e a surgir por toda parte. Em seguida, o aspecto da doena comeou a alterar-se; comeou a colocar manchas de cr negra ou lvidas nos enfermos. Tais manchas estavam nos braos, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas, as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras, eram pequenas e abundantes. E do mesmo modo como, a princpio, o bubo fora e ainda era indcio inevitvel de morte futura, tambm as manchas passaram a ser mortais, depois, para os que as tinham instaladas.

Nem conselho de mdico, nem virtude de mezinha alguma parecia trazer cura ou proveito para o tratamento de tais doenas. Ao contrrio. Fosse porque a natureza da enfermidade no aceitava nada disso, fosse que a ignorncia dos curandeiros no lhes indicasse de que ponto partir e, por isso mesmo, no se dava o remdio adequado. Tornara-se enorme a quantidade de curandeiros, assim como de cientistas. Contavam-se entre eles homens e mulheres que nunca haviam recebido uma lio de medicina. Assim como era certo que poucos se curavam, tambm certo que, ao contrrio desses, quase todos, aps o terceiro dia do surgimento dos sinais referidos acima, faleciam. Sucumbiam uns mais cedo, outros mais tarde; a maioria ia-se para o tmulo sem qualquer febre, nem outra complicao.

Esta peste foi de extrema violncia; pois ela atirava-se contra os sos, a partir dos doentes, sempre que doentes e sos estivessem juntos. Ela agia assim de modo igual quele pelo qual procede o fogo: passa s coisas secas, ou untadas, estando elas muito prximas dele. A enfermidade ainda fz mais. No apenas o conversar e o cuidar de enfermos contagiavam os sos com esta doena, por causa da morte comum, porm mesmo o ato de mexer nas roupas, ou em qualquer outra coisa que tivesse sido tocada, ou utilizada por aqueles enfermos, parecia transferir, ao que bulisse, a doena referida.

de causar espanto o ouvir aquilo que preciso dizer. No fosse visto pelos olhos de muitos, assim como pelos meus, aquilo que se passou, dificilmente me atreveria a acreditar no que sucedera, e ainda menos a escrever, por mais merecedora de f a pessoa pela qual eu o ouvisse contar. Garanto que foi de tal poder a peste mencionada, no capricho de transferir-se de um a outro mortal, que no passava apenas de homem para homem; muitas vezes chegou a fazer, de modo visvel, o que se diz mais frente, e que muito mais: a coisa do homem doente, ou que morrera de tal doena, quando tocada nor outro ser, animal, fora da espcie do homem, no apenas o contaminava como tambm o matava dentro de muito pouco tempo. Deste fato tiveram os meus olhos (como h pouco se afirmou), certo dia, entre outras vezes, a seguinte experincia: as vestes rotas de um pobre sujeito, morto por essa doena, foram jogadas rua. Dois porcos, de incio, segundo costumam fazer, sacudiram-nas com o focinho, depois as seguraram com os dentes, cada um deles esfregando-as na prpria cara. Apenas uma hora depois, aps umas convulses, como se tivessem ingerido veneno, os dois porcos caram mortos por terra, sobre os trapos em to m hora jogados rua.

De tais circunstncias e muitas outras idnticas a estas, ou mesmo piores, nasciam muitos terrores e muitos lances de imaginao, naqueles que ainda estavam vivos. E quase tudo era dirigido para um fim bastante cruel: o de se ficar enojado dos enfermos e de se fugir das suas coisas, e deles. Agindo assim, cada um supunha estar garantindo a sade para si mesmo.

Pessoas havia que julgavam que o viver com moderao e o evitar qualquer superfluidade muito ajudavam para se resistir ao mal. Formando o seu grupo exclusivista, tais pessoas viviam longe das demais. Recolhiam-se e trancavam-se em casas onde nenhum doente estivera. No procuravam viver melhor. Moderadamente faziam uso de alimentos simples, assim como de vinhos muito bons. Fugiam a qualquer ato de luxria. No ficavam a palestrar com ningum, nem queriam ouvir falar de nenhum caso de morte, ou de doena, daqueles que estavam do lado de fora da casa que habitavam. Passavam as horas entretidos com a msica e com os prazeres que pudessem ter.

Outras pessoas, levadas a uma opinio diversa desta, declaravam, que, para to imenso mal, eram remdios eficazes o beber abundantemente, o gozar com intensidade, o ir cantando de uma parte a outra, o divertir-se de todas as maneiras, o satisfazer o apetite fosse de que coisa fosse, e o rir e troar do que acontecesse, ou pudesse suceder. Como diziam, assim procediam, do modo como lhes fosse possvel, dia e noite. Iam ora a uma tasca, ora a outra; bebiam imoderadamente e sem modos. E com mais desbragamento agiam na casa alheia, obrigando os donos a escutar o que lhes desse na telha de dizer. E podiam agir assim sem grandes preocupaes, porque cada um quase como se no houvesse mais viver j deixara ao lu as suas coisas, assim como deixara ao deus-dar a prpria pessoa. Por isso, a maior parte das casas ficou sendo de moradia comum; utilizava-se delas o estranho, que as adentrasse, como delas teria feito uso o prprio dono. E, com este proceder inteiramente bestial, as pessoas punham-se sempre longe dos doentes, tanto quanto possvel.

Entre tanta aflio e tanta misria de nossa cidade, a reverenda autoridade das leis, quer divinas, quer humanas, desmoronara e dissolvera-se. Ministros e executores das leis, tanto quanto os outros homens, todos estavam mortos, ou doentes, ou haviam perdido os seus familiares, e assim no podiam exercer nenhuma funo. Em conseqncia de tal situao, permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.

Inmeras pessoas preferiam o caminho do meio, entre os dois acima assinalados. No evitavam os bons acepipes, como os primeiros, nem, igual aos segundos, entregavam-se bebida e a outras formas de dissoluo. Ao contrrio. Usavam todas as coisas, com suficincia e moderadamente, de acordo com o apetite. No viviam fechados. Vagavam de um lugar a outro, levando, uns, flores nas mos, ervas odorferas outros, e outros, ainda, diferentes tipos de especiarias; levavam as ervas ao nariz, considerando excelente coisa o confortar o crebro com o seu rerfume. Era como se todo o ar estivesse tomado e infectado pelo odor nauseabundo dos corpos mortos, das doenas e dos remdios.

Alguns faziam alarde de sentimento mais cruel (como se, porventura, tal sentimento fosse o mais seguro), e diziam que no havia remdio melhor, nem to eficaz, contra as pestilencias, do que abandonar o lugar onde se encontravam, antes que essas pestilencias ali surgissem. Induzidos por essa forma de pensar, no se importando fosse com o que fosse, a no ser com eles mesmos, inmeros homens e mulheres deixaram a prpria cidade, as prprias moradias, os seus lugares, seus parentes e suas coisas, e foram em busca daquilo que a outrem pertencia, ou, pelo menos, que era de seu condado. Para eles, era como se a clera de Deus estivesse destinada no a castigar a iniqidade dos homens com aquela peste, onde eles estivessem, e sim a oprimir, comovido, somente os que teimassem em ficar dentro dos muros de sua cidade. Ou como se essa clera fosse apenas um aviso para que ningum permanecesse em determinada cidade, por ter chegado a hora derradeira dessa mesma cidade. Como, de tais opinadores, nem todos morriam, e que, assim sendo, nem todos continuavam a viver, muitos sujeitos, de cada cidade, e em toda parte, caam enfermos e, quase abandonados prpria sorte, definhavam inteiramente. Eles mesmos, quando estavam sos, deram exemplo aos que continuavam sadios, para que fugissem daqueles que tombavam sob as garras do mal.

Vamos pr de lado a circunstncia de um cidado ter repugnncia de outro; de quase nenhum vizinho socorrer o outro; de os parentes, juntos, pouqussimas vezes ou jamais se visitarem, e, quando faziam visita um ao outro, ainda assim s o fazerem de longe. Tal inquietao entrara, com tanto estardalhao, no peito dos homens e das mulheres, que um irmo deixava o outro; o tio deixava o sobrinho; a irm, a irm; e, freqentemente, a esposa abandonava o marido. Pais e mes sentiam-se enojados em visitar e prestar ajuda aos filhos, como se o no foram (e esta a coisa pior, difcil de se crer).

Em decorrncia de tais condies, queles para os quais a multido era inestimvel, aos homens e mulheres que ficavam doentes, no restava outro recurso seno a caridade dos amigos (e destes poucos restavam), ou da avareza dos empregados domsticos. A estes eram pagos fabulosos salrios, e tinham tratamento superior ao devido, ainda que, apesar disto, muitos patres no enfermassem. Grande parte dos patres era formada por homens e mulheres de elevado talento, e a maioria desses servios no era usada. Os empregados quase no serviam para outra coisa seno apresentar ?.lgo que fosse pedido pelos doentes, ou para os fitar, quando eles faleciam. Quando prestavam esses servios, freqentemente eles mesmos se perdiam, junto com o ganho alcanado.

Pelo fato de serem os enfermos abandonados pelos vizinhos, pelos parentes e amigos, tanto quanto pela circunstncia de escassearem os criados, apareceu um hbito talvez nunca praticado antes. O hbito foi que nenhuma mulher, por mais pudica, bela ou nobre que fosse, se sentia incomodada por ter a seu servio, caso adoecesse, um homem, ainda que desconhecido; no importava que tipo fosse de homem, jovem ou no. A ele, sem nenhum pudor, ela mostrava qualquer parte do prprio corpo, do mesmo modo que o exporia a outra mulher, quando a necessidade de sua enfermidade o exigisse. Para as mulheres que escaparam com vida, isto foi, qui, motivo de deslizes e de desonestidades, no perodo que se seguiu peste.

Alm disto, sobreveio a morte de inmeras pessoas, que, certamente, se tivessem merecido ajuda, teriam sobrevivido. Em decorrncia da escassez de servios no momento azado, que os doentes precisavam mas no alcanavam, e tambm em vista da violncia da peste, era to grande o nmero dos que faleciam, de dia e de noite, na cidade, que provocava estupefao escutar, e ainda mais ver, o que ocorria. Porque por fora das circunstncias, muitas coisas, que contrariavam os costumes bsicos de qualquer cidado, comearam a existir entre os que permaneciam vivos.

Costumava-se (como ainda hoje o vemos) reunirem-se as mulheres, parentes e vizinhas na residncia do que morria. Ali, em companhia das mulheres mais aparentadas ao defunto, elas choravam. De outro lado, diante da casa do morto, vizinhos e inmeros cidados reuniam-se com os seus achegados; de acordo com a categoria do morto, apresentava-se o padre. Desse modo, o falecido era conduzido igreja que escolhera momentos antes de morrer. Os seus pares levavam-no aos ombros, com pompa fnebre, de velas e de cantos. Tais cerimnias quase se extinguiram, no todo ou parcialmente, quando principiou a crescer o furor da peste. E muitas novidades vieram substitu-las. No apenas faleciam as pessoas sem que houvesse grande nmero de mulheres volta, como tambm eram incontveis as que partiam desta vida sem nenhuma testemunha. Eram em nmero reduzidssimo aqueles aos quais eram concedidos os prantos piedosos e as lgrimas sentidas de seus prprios parentes. Em vez de prantos e de lgrimas, passaram a usar-se, para a maior parte, os risos, as pilhrias, e as festas em boa parceria. Tal costume foi, gostosamente, aceito pelas mulheres, na sua maioria, aps terem elas postergado a piedade feminina; e afirmavam que o faziam para salvao da alma dos que haviam partido. Fazia-se raro o caso daqueles cujos corpos tinham, indo para a igreja, o cortejo de dez ou doze de seus vizinhos. O fretro destes era carregado no por honrados e prestimosos cidados, porm por uma espcie de padioleiros, que se originaram da gente mais humilde, que recebiam o ttulo de coveiros, e que apenas usavam seus prstimos por um preo combinado com antecedncia. Tais padioleiros carregavam os caixes, a passos apressados, no igreja que os defuntos haviam escolhido antes do passamento, porm, com freqncia, ao templo mais prximo. Os padioleiros caminhavam atrs de quatro ou de cinco clrigos, com raras velas; as mais das vezes iam mesmo sem nenhum clrigo. Estes, quando os havia, no perdiam muito flego em seus ofcios solenes; ajudados pelos tais coveiros, depositavam os caixes, de preferncia, na primeira cova vazia que encontravam.

O tratamento dado s pessoas mais pobres, e maioria da gente da classe mdia, era ainda de maior misria. Em sua maioria, tal gente era retida nas prprias casas, ou por esperana, ou por pobreza. Ficando, deste modo, nas proximidades dos doentes e dos mortos, os que sobreviviam ficavam doentes aos milhares por dia; como no eram medicados, nem recebiam ajuda de espcie alguma, morriam todos quase sem redeno. Muitos eram os que findavam seus dias na rua, de dia ou de noite. Inmeros outros, mesmo morrendo em suas residncias, levavam os seus vizinhos a no se manifestarem, mais por causa do mau cheiro dos prprios corpos em decomposio, do que por outro motivo. De pessoas assim e de outras, que faleciam em toda parte, as casas estavam cheias.

Um modo nico de proceder, o mesmo sempre, era praticado pela maioria dos vizinhos. Procediam estes levados no menos pelo terror de que fossem afetados pela corrupo dos corpos, do que pela caridade que alimentavam quanto aos falecidos. Ss, ou auxiliados por alguns portadores, quando logravam ach-los, retiravam das residncias os cadveres; colocavam os corpos frente da porta da casa, onde, sobretudo na parte da manh, eram vistos em quantidade inumervel pelos que perambulavam pela cidade e que, vendo-os, adotavam medidas para o preparo e remessa dos caixes.

To grande era o nmero de mortos que, escasseando os caixes, os cadveres eram postos em cima de simples tbuas. No foi um s o caixo a receber dois ou trs mortos simultaneamente. Tambm no sucedeu uma vez apenas que esposa e marido, ou dois e trs irmos, ou pai e filho, foram encerrados no mesmo fretro. Muitssimos destes fatos poderiam ter sido narrados. E infinitas vezes se viu que, indo dois clrigos, com uma cruz, por algum, atrs do primeiro se colocarem trs ou quatro caixes, carregados por seus respectivos portadores; assim sendo, onde supunham os padres ter um morto para enterrar, havia sete ou oito; com freqncia, at mais. Tais mortos excedentes eram, por esta razo, homenageados com alguma lgrima, s vezes, ou alguma vela, ou alguma companhia.

A tal estado chegou a coisa, que no mais se tratava, quanto aos homens que morriam, com mais carinho do que se trata agora das cabras. Porque, com clara evidncia pareceu ter de se passar, pacientemente, pelo que o curso natural dos eventos no conseguira mostrar, aos mais cultos, com prejuzos pequenos e esquisitos. Geralmente, a grandeza de um mal costuma transmudar os simples, ao que parece, em peritos e negligentes.

Para dar sepultura grande quantidade de corpos que se encaminhava a qualquer igreja, todos os dias, quase a toda hora, no era suficiente a terra j sagrada; e menos ainda seria suficiente se se desejasse dar a cada corpo um lugar prprio, conforme o antigo costume. Por isso, passaram-se a edificar igrejas nos cemitrios, pois todos os lugares estavam repletos, ainda que alguns fossem muito grandes; punham-se nessas igrejas, s centenas, os cadveres que iam chegando; e eles eram empilhados como as mercadorias nos navios; cada caixo era coberto, no fundo da sepultura, com pouca terra; sobre ele, outro era posto, o qual, por sua vez, era recoberto, at que se atingisse a boca da cova, ao rs do cho. E, para que no se remexa em cada mincia de nossas antigas misrias, acontecidas no interior da cidade, afirmo que, mesmo tendo um perodo adverso passado por ela, nem por isso deixou a peste de poupar algo ao condado.

No condado vamos pr de parte os castelos, que, em sua pequenez, eram parecidos s cidades , os operrios, mseros e pobres, faleciam. Tombavam sem vida, pelas vilas isoladas e pelos campos, com suas famlias, sem nenhuma ajuda de mdico, nem auxlio de servidor; faleciam no como homens, e sim como animais, nas ruas, nas plantaes, nas casas, dia e noite, ao deus-dar. Em decorrncia disto, os trabalhadores do campo, conturbados em seus hbitos e parecendo transformados em moradores lascivos da cidade, no se importavam com nada, nem desejavam fazer coisa alguma. Como se aguardassem o dia em que seriam levados pela morte, todos se esforavam, diligentemente, ao mximo, no em auxiliar a produo dos frutos futuros dos animais e das terras, assim como das antigas canseiras, mas sim em dar cabo dos frutos que estavam mo. Sucedeu, pois, que os bois, os muares, as ovelhas, as cabras, os porcos, as galinhas, e mesmo os cachorros, to fiis sempre aos homens, passaram a perambular pelos campos, indiferentemente, por se verem expulsos da moradia de seus donos. As forragens, deixadas ao abandono nos campos, no apenas no tinham sido apanhadas, como nem sequer foram cortadas. Muitos animais, parecidos a seres pensantes, engordavam, pois pastavam bem no decorrer do dia, passavam a noite em suas casas, e no sofriam restries da parte de nenhum pastor.

O que se poder dizer ainda pondo-se de parte o condado, para se tornar a tratar da cidade , a no ser que a crueza do cu foi de tal monta e tanta, e qui tambm o tenha sido, em parte, a crueldade dos homens, que, no perodo que vai de maro a julho, mais de 100.000 pessoas certo que foram arrebatadas da vida, no circuito dos muros da cidade de Florena? Nesse nmero esto includos tanto aqueles que foram levados pela fora da pestfera doena, como aqueles que, doentes, foram mal atendidos, ou abandonados s contingncias, em razo do medo que os sos alimentavam.

Antes que sobreviesse este mortal evento, ningum suporia existir tanta gente dentro da cidade. Quantos vastos palcios, quantas casas magnficas, quantas residncias nobres, antes cheias de famlias, de senhores e de senhoras, ficaram vagos, perdendo at o derradeiro servial! Quantas linhagens memorveis, quantas heranas importantes, quantas riquezas famosas foram despojadas de sucessor legtimo! Quantos valorosos homens, quantas mulheres belssimas, quantos galantes moos que Galeno teria considerado mais do que sadios, assim como Hipcrates, Esculpio e outros tomaram o seu almoo de manh com os seus parentes, colegas, amigos, e, em seguida, na tarde desse mesmo dia, jantaram no outro mundo, em companhia de seus antepassados!

A mim mesmo desgosta-me o ato de tanto me revolver em misria tanta. Querendo, contudo, neste instante, deixar de lado a parte dessas misrias, que, com decoro, posso abandonar, afirmo que, nestes termos, a nossa cidade estava quase vazia de moradores. E sucedeu (como ouvi depois, de pessoa merecedora de f) que, na venervel Igreja de Santa Maria Novela, em dia de tera-feira, na parte da manh, acharam-se sete jovens mulheres. Quase ningum mais estava no templo. Tinham elas terminado de ouvir, vestidas com roupas lgubres, como era indicado para aqueles tempos, os ofcios religiosos. Estavam todas ligadas umas s outras, seja por amizade, seja por vizinhana ou por parentesco. Nenhuma delas passara o vigsimo oitavo ano de idade, nem era menor de dezoito. Eram todas bem comportadas e de sangue nobre; bonitas de formas, costumes prendados, e de comportamento honesto.

Eu daria a conhecer, na forma devida, os seus nomes, se um motivo justo no me obstasse de o fazer. O motivo este: no desejo que, pelas coisas que se vo seguir, e que por elas foram narradas, ou ouvidas, alguma delas deva, no futuro, envergonhar-se. Hoje, so limitadas as leis sobre o prazer; naquele tempo, pelos motivos antes apontados, tais leis eram extremamente liberais, seja para a idade delas, seja para idades muito mais maduras; no quero, igualmente, dar motivo para que os invejosos, prestes a difamar toda existncia digna de elogios, diminuam, em qualquer aspecto, com maledicncia, a honestidade das dignas mulheres. Assim sendo, para poder-se compreender, sem confuso, o que cada uma disse, quero nome-las, mais adiante, com nomes fictcios, contudo apropriados, no todo ou parcialmente, s qualidades de cada uma.

primeira delas, a mais idosa, denominaremos PAMPINIA; segunda, FIAMMETTA; FILOMENA, terceira; quarta, EMLIA; designaremos depois por LAURINHA a quinta; a sexta, por NEfFILE; e ltima, com razo, chamaremos ELISA.

Agrupadas ali, no por prvia combinao, mas por acaso, em uma das dependncias da igreja, sentaram-se formando quase um crculo. Aps inmeros suspiros, e finda a recitao dos padres-nossos, entabularam conversa entre si, a respeito das condies do tempo e outras coisas. Depois de certo intervalo, vendo calarem-se as demais, Pampinia principiou a falar assim:

Minhas caras mulheres, podem vocs ter ouvido afirmar, como eu, que a pessoa que usa honestamente o seu direito no causa prejuzo a ningum. Direito natural de todo ser nascido o de auxiliar a sua prpria existncia; de mant-la e de defend-la tanto quanto possvel. Isto se reconhece. Tanto certo que, por vezes, j sucedeu que, para conservar a existncia, muitos homens se mataram sem nenhuma culpa. As leis reconhecem isto, e na sua observncia est o viver honrado de qualquer mortal. Com justia maior, e sem ofender a quem quer que seja, cabe-nos, a ns, assim como a quaisquer outras pessoas honestas, o direito de adotarmos as providncias que estiverem ao nosso alcance para a preservao de nossa existncia. Sempre que reflito bem a respeito de nossos modos desta manh, assim como sobre os de outras manhs j decorridas sempre que medito em quantas quais so as nossas trocas de idias , percebo, tanto quanto vocs podero perceber, que cada uma de ns tem dvidas a respeito de si mesma. No me causa isto admirao. Contudo, fico admirada, e muito certa que estou de que cada uma de ns possui sentimentos femininos , de que no recebamos para ns nenhuma recompensa pelo que cada uma de ns receia, e com razo. Permanecemos aqui segundo parece como se desejssemos, ou quisssemos, testemunhar o nmero de corpos sem vida que so levados cova, ou que os frades daqui de dentro (cujo nmero decresceu a quase nada) entoem o seu ofcio nas horas apropriadas. Ou, ento, como se desejssemos mostrar, pelas nossas vestes, a quem quer que nos surja frente, as condies e a quantidade de nossas misrias. Se deixarmos este recinto, em toda parte veremos corpos mortos, ou doentes, no ato de serem levados; ou, ento, estaremos diante daqueles que, pelos seus desmandos, j foram condenados ao exlio pela autoridade das leis pblicas; essas pessoas, parecendo ridicularizar as leis, porque sabem que aqueles que as executavam esto mortos, ou enfermos, perambulam pela nossa regio, praticando os seus impulsos mais desagradveis; ou, mesmo, toparemos com a ral de nossa cidade; os elementos que a compem, transtornados pelo nosso sangue, a si mesmos chamam-se coveiros; cavalgam e correm por todo lado, para nossa aflio; e fazem censura s nossas dores com suas canes desonestas. No escutamos outra notcia seno que "Fulanos e fulanos faleceram" e "Sicranos e sicranos esto porta da morte". Ouviramos prantos em toda parte, se existissem pessoas que chorassem. Se retorno minha casa, fico apavorada de no achar, nela, nenhuma outra pessoa de minha numerosa famlia, a no ser a minha aia. (Ignoro se ocorre com vocs o mesmo que se passa comigo.) Mesmo agora, sinto que quase todos os meus cabelos se arrepiam. Para qualquer lado que eu v, ou me demore, em casa, como se vivesse a sombra dos que se foram; elas do-me susto, no com as faces que eu conheci, porm com outros rostos, horrveis, que ignoro de onde venham. Por essas razes, parece-me incmodo permanecer por aqui, fora, daqui, ou mesmo em casa. E parece-me tanto mais incmodo, quanto mais se me afigura que nenhuma pessoa, dentre aquelas que tenham alguma coragem e para onde se dirigir, como ns temos, tenha ficado por aqui alm de ns mesmas. Ouvi contar e fiquei sabendo, mais de uma vez, que essas pessoas (considerando-se que existam algumas), sem fazer qualquer distino entre os atos honestos e os que no o sejam, visto que apenas se orientam pelas exigncias do prprio apetite, fazem, seja quando esto sozinhas, seja acompanhadas, de dia e de noite, somente as coisas que mais prazeres lhes do. No apenas as pessoas livres, assim como as que esto encerradas em conventos, deixam entender que isso lhes conveniente, e apenas causa desdouro s demais. Assim sendo, pecam contra as leis da obedincia e entregam-se a prazeres carnais. Agindo desta maneira, elas admitem que adquirem condies para a sobrevivncia. Fazem-se lascivas e dissolutas. Sendo assim (e que assim est-se vendo claramente), que estamos fazendo aqui? O que esperamos? O que estamos sonhando? Por que razo somos mais indolentes e morosas do que todos os demais cidados que restam, ao defender a nossa sade? Ser que nos julgamos menos queridas do que todas as demais? Ou ser que consideramos que nossa existncia est presa ao nosso corpo com prises mais fortes do que a dos outros nos corpos deles e que, sendo assim, no temos que nos preocupar com nada, mesmo que algo tenha fora para a destruir? Estamos erradas. Ns nos enganamos. Que estupidez a nossa, se cremos que assim! Sempre que quisermos lembrar quantos e quais foram as moas e os rapazes que caram com esta cruel peste, acharemos timos argumentos a nosso favor. Por isto, e a fim de que ns, por nojo ou negligncia, no venhamos a cair naquilo de que poderemos escapar, de uma maneira ou de outra, se o quisermos, acho excelente a idia de deixarmos esta terra, assim mesmo como nos achamos, e do mesmo modo como muitas outras o fizeram, antes de ns, ou esto fazendo. Ignoro se a vocs parece o que se afigura a mim. Escapando aos exemplos desonestos dos demais, como se foge da morte, vamos honestamente instalar-nos em nossos lugares, nas cercanias da cidade, onde, para cada uma, existe em abundncia tudo que possa ser indispensvel. Teremos ali aquele divertimento, aquela alegria, aquela satisfao que pudermos obter, sem ir alm, em nenhum ato, dos limites da razo. Ouvem-se ali os passarinhos cantando; v-se espalhar o verde pelas colinas e plancies; contemplam-se os campos, plantados de cereais, que ondulam da mesma maneira que o mar o faz; ali h rvores de mil formas; v-se o cu mais abertamente; mesmo enfurecido ainda, o cu nem por isso nos nega as suas belezas eternas; tais belezas so muito mais merecedoras de contemplao do que os muros despidos de nossa urbe. Alm disso, ali o ar muito mais agradvel; existe l maior quantidade das coisas necessrias existncia, nestes tempos: e o nmero de aborrecimentos muito menor. Pois que, ainda que l tambm faleam os trabalhadores do campo, como morrem aqui os moradores da cidade, tanto menor o desprazer ali, quanto mais raro so, do que na cidade, as casas e seus moradores. Por outro lado, no estaremos abandonando, ao que vejo, nenhuma pessoa por aqui. Pelo contrrio. Podemos afirmar, com verdade, que ns que fomos abandonadas. Pois os nossos, ou por terem morrido, ou por terem escapado morte, nos deixaram sozinhas, e em to grande aflio, como se deles no fssemos. No pode haver nenhuma censura ao ato de se seguir o meu conselho. No o seguindo, podero sobrevir-nos dor, aborrecimento e, qui, a morte. Assim sendo, quando melhor parecer a vocs, tomar cada uma a sua aia; faremos com que nos sigam as coisas mais indispensveis. Hoje, iremos a este stio; amanh, quele; desfrutaremos a alegria e a festa que se tempo puder propiciar-nos; julgo que ser prudente ter o que fazer. Ficaremos em tal estado o tempo suficiente para constatarmos (se no formos antes atingidas pela morte) que fim o cu reservar a estas circunstncias. Lembro-lhes que o ato de nos afastarmos honestamente desta cidade no nos traz nenhum desdouro mais do que maioria das demais mulheres o de aqui ficarem desonestamente.

As demais mulheres da companhia, aps escutarem Pampinia, no apenas teceram elogios ao conselho que lhes dava, como tambm informaram que, ansiosas por segui-lo, j tinham comeado a tratar entre elas, com mais pormenores, do modo de o fazer; era como se, elevando-se da posio de sentadas, uma a uma, todas tivessem de pr-se imediatamente a caminho. Filomena, contudo, que era por demais discreta, exclamou:

Moas, ainda que tenha sido dito, de modo timo, o que Pampinia pensa, nem assim caso de a gente pr-se a correr, como parece ser o desejo de vocs. Recordo-lhes que somos todas mulheres. Nenhuma mulher h to tola, que no saiba bem como as mulheres, quando se juntam, so pouco providas de juzo, e mal sabem governar-se sem o auxlio de algum homem. Somos volveis, briguentas, desconfiadas, covardes e cheias de medo; por esta razo, se no contarmos com outra orientao, mais do que a nossa, duvido muito que nosso grupo deixe de dissolver-se logo, com menos honra para ns do que fora justo. Em decorrncia disto, de boa prudncia providenciar, antes de principiar seja l o que for.

Elisa, ento, disse:

Realmente, so os homens a cabea das mulheres; sem a ordem deles, raramente chega alguma obra nossa a um fim digno de elogio. De que modo, entretanto, poderemos ter esses homens? Sabe, cada uma de ns, que a maior parte dos seus est morta. Os demais, que ainda vivem, alguns aqui, outros ali, em vrios grupos, vo fugindo, sem que saibamos para onde, da mesma coisa de que tambm procuramos fugir. Alm disso, no seria recomendvel suplicarmos a estranhos. Sendo assim, portanto, se desejarmos correr procura de nossa salvao, ser conveniente que achemos a maneira de nos preparar de forma tal que no sobrevenha o tdio, nem aparea escndalo, no lugar para onde nos dirigirmos, por falta de outro, e mesmo para o nosso descanso.

Desenrolando-se ainda estas palestras entre as mulheres, eis que entraram trs moos na igreja. No eram assim to jovens a ponto de que o mais jovem deles tivesse menos de 25 anos. Neles, os estragos do tempo, a perda dos amigos, a morte dos parentes, o temor de si mesmos, no tinham podido, no digo j apagar, mas sequer esfriar, os impulsos do amor. Dos moos, chamava-se um PNFILO; FILSTRATO era o segundo; e DIONIO, o ltimo. Era, cada um deles, agradvel e bem educado; os trs procuravam, para seu derradeiro refrigrio, em meio a tal transtorno de todas as coisas, as suas respectivas amadas; por acaso, estavam as trs entre as sete j indicadas. Como eram algumas pertencentes mesma famlia de outras, essas eram parentes de um ou de outro dos rapazes. Foram eles vistos pelas mulheres, antes que os olhos deles recassem sobre elas. Por este motivo, Pampinia comeou ento a falar, entre sorrisos:

Vocs bem vem que a boa sorte propcia aos nossos desgnios. Tanto isto certo que ela ps, nossa frente, moos discretos e cheios de valor, que sero, de boa vontade, nossos guias e servidores nossos, se no acharmos inconveniente em que os tomemos para essa finalidade.

Nefile, ento, o rosto inteiramente ruborizado de pudor, pois que era uma das amadas por um dos moos recm-chegados, preveniu:

Pampinia, por Deus! Preste ateno naquilo que est dizendo! No conheo nenhuma coisa que no seja boa e que se no possa expressar francamente, a respeito de qualquer um destes moos. Considero-os capazes de proezas ainda mais altas do que esta. Igualmente, esclareo que eles faro boa e honesta companhia, no apenas a ns, porm da mesma forma a mulheres mais lindas e mais queridas do que o somos. Contudo, como fato notrio e evidente que eles esto apaixonados por algumas das que se acham aqui, temo que, levando-os conosco, advenham infmia e censura, sem culpa nossa, nem deles. Ento, Filomena expendeu seu argumento:

Isto no vem ao caso. Em qualquer parte em que eu esteja vivendo com honestidade, sem que nada me pese na conscincia, fale quem quiser o contrrio. Deus e a verdade teraro armas por mim. Oxal eles estivessem j dispostos a marchar conosco! Se assim fosse, a sim poderamos afirmar que, realmente, a Sorte favorvel nossa viagem.

Ouvindo as outras que Filomena assim argumentava, no somente se calaram como tambm, por unnime consenso, concordaram em que deviam os moos ser chamados para a sua companhia; em que se deveria revelar-lhes a inteno delas; e em que se deveriam rogar-lhes que fizessem o favor de consentir em servir-lhes de companhia na tal fuga para fora da cidade.

Por isso, sem mais delongas, Pampinia ergueu-se; era aparentada com algum deles, por consanginidade; e foi em direo dos moos, os quais estavam parados, j agora olhando para todas, de longe. Aps saud-los, com fisionomia alegre, Pampinia contou-lhes as intenes que tinham, ela e as suas companheiras. Rogou-lhes, falando em nome de todas, que se dispusessem a acompanh-las, com esprito de fraternidade.

A princpio, julgaram os rapazes que elas estavam fazendo troa deles; porm, quando notaram que a mulher falava seriamente, retrucaram, com prazer, que estavam prontos para o que elas queriam. Sem delongas, e a fim de que elas de imediato se afastassem dali, eles ordenaram tudo quanto era necessrio para a partida. Todas as coisas de que se tinha mister foram preparadas, com mtodo, e remetidas, com antecedncia, ao local para onde todos tencionavam ir.

Na manh seguinte, isto , na quarta-feira, assim que raiou o dia, as mulheres, seguidas por algumas de suas criadas, e os trs homens, com outros trs de seus fmulos, deixaram a cidade, pondo-se a caminho. Apenas se tinham afastado 2 curtas milhas e logo se encontraram no local previamente avisado de sua ida. O tal lugar ficava numa pouco alta montanha, bem afastada, por todos os lados, das estradas. Vrios tipos de rvores e de arbustos enfeitavam a regio, com suas frondes verdes, muito agradveis vista. No alto da montanha, existia um palcio, com um ptio amplo e belo no centro. O palcio era dotado de balces, salas e quartos; cada dependncia, por si mesma, era muito linda, decorada com pinturas valiosas. Em volta do palcio, pequenos prados, enormes jardins de maravilhosa vista, e poos de gua muito fresca. No palcio, vinhos preciosos eram guardados em adegas de arcadas. Isto era mais indicado a bebedores curiosos do que a mulheres sbrias e recatadas.

Tudo, ali, fora varrido. Nos quartos, as camas estavam arrumadas. Nos vasos, havia as flores que, naquela quadra do ano, se puderam conseguir; e as flores foram sustentadas com juncos. Tudo isto foi achado pronto pelos visitantes.

Quando todos estavam j sentados na primeira sala, Dionio, moo muito agradvel e mais espirituoso do que se poderia supor, disse:

Mulheres, o bom senso de vocs, mais do que nossa cautela, foi o que guiou nossos passos at aqui. Ignoro o que vocs desejam fazer, a respeito de suas preocupaes. No que diz respeito s que eu tinha, abandonei-as porta da cidade, h pouco, quando sa de l na companhia de vocs. Por esta razo, ou vocs se dispem a aliviar o esprito, a rir e a cantar, comigo (certamente, na medida que se coadune com a sua dignidade), ou me permitiro regressar s preocupaes, continuando a viver na cidade atribulada.

Como se tambm tivesse afastado do seu esprito qualquer preocupao pessoal, Pampinia retrucou a isto, com evidente satisfao:

Dionio, voc falou com muita propriedade. necessrio, aqui, viver festivamente. No foi outra a razo que nos levou a abandonar as tristezas. Contudo, evidente que as iniciativas sem fim determinado no podem ser duradouras. Eu, que iniciei as conversaes das quais resultou este grupo to agradvel, penso no prosseguimento do nosso prazer. Acho necessrio convir que haja um chefe. Um chefe que honraremos, ao qual prestaremos obedincia, como nosso guia. Todas as preocupaes ficaro para ele, quanto ao preparar tudo para que possamos viver com prazer. necessrio que cada um por sua vez experimente o peso das exigncias e o carinho do agrado da maioria. Aquele que no os experimentar, e no for levado, por essas preocupaes, de um lado para outro, no poder mostrar-se ressentido. Desse modo, fiquem as responsabilidades e as honras a cada um de ns, cada um por sua vez, durante um dia. O primeiro chefe sair da escolha que todos ns fizermos. Para os que vierem depois, o processo de escolha ser o seguinte: quando se vier aproximando a hora do surgimento de Vnus, no cu, tarde, o chefe ser, vez de cada um, escolhido por aquele, ou aquela, que estiver comandando durante o dia. O escolhido dir, sua vontade, o tempo que a sua chefia durar; igualmente, indicar o lugar e o modo como deveremos viver, dando, a esse respeito, as suas ordens, e tomando as suas providncias.

Tais palavras causaram excelente impresso; e, de modo unnime, o grupo escolheu Pampinia como o chefe do primeiro dia. Filomena correu a um loureiro. Ouvira com freqncia dizer da honra que se emprestava s folhas daquela planta, e como tais folhas honravam o ser que fosse por elas, com merecimento, coroado. Apanhou alguns ramos da rvore; com eles, elaborou uma grinalda, simblica e de grande efeito. Tal grinalda, colocada cabea, foi ento, pelo tempo que durou o grupo, sinal evidente, para um e para todos, da real senhoria, assim como da escolha da maioria.

Eleita rainha, Pampinia chamou sua presena os criados dos trs homens, assim como as criadas das mulheres, que eram quatro. Mandou que os homens ficassem calados. E, assim que obteve o silncio de todos, disse:

Primeiramente, quero dar o exemplo a vocs todos. Por esse exemplo, e agindo de modo cada vez melhor, o nosso grupo poder viver, ordeiramente, sem precisar envergonhar-se de si mesmo, durante quanto tempo desejar. Sendo assim, eu, inicialmente, constituo PARMENO, criado de Dionio, o meu mordomo. Dou-lhe o cuidado e a responsabilidade por toda esta nossa famlia. Em relao ao servio da sala, desejo que SIR1SCO, criado de Pnfilo, seja pagador e tesoureiro, obedecendo s ordens de Parmeno. TNDARO, que est a servio de Filstrato e dos outros dois, dar assistncia nos quartos deles, sempre que os outros criados, por acaso impedidos de desempenhar as suas funes, no o puderem fazer. MISIA, minha criada, e LICISCA, que o de Filomena, ficaro com os encargos da cozinha; executaro, com diligncia, os pratos que Parmeno lhes mandar. Quero que QUIMERA, criada de Laurinha, e STRATILIA, criada de Fiammetta, fiquem com a governana dos quartos das mulheres, assim como com o asseio dos locais onde estivermos. Ordeno, a cada qual e a todos em geral, pelo que possam desejar honrar a nossa graa, que tomem cuidado para que, dos lugares para onde forem e de onde regressarem, assim como daquilo que escutarem ou virem, no nos tragam nenhuma nova que no seja agradvel.

Dadas todas estas ordens, resumidamente, as quais foram do agrado de todos, Pampinia, contente, ergueu-se e disse:

Aqui h jardim; aqui existem prados; aqui se vem outros lugares, muito agradveis todos; distraindo-se do modo que melhor lhe agrade, cada um pode passear por eles. Quando soe a hora terceira, todos voltem para a refeio ao ar livre.

O grupo obteve, da nova rainha, ordem de se dispersar. A passos lentos, os rapazes, em palestra com as moas, a respeito de coisas agradveis, penetraram num jardim. Teceram lindas grinaldas de ramos de rvores diferentes. Entoaram canes de amor. Aps gastarem nisto todo o tempo que lhes fora permitido pela rainha, retornaram casa. E ali notaram que Parmeno dera, com muito zelo, incio ao exerccio de suas funes. Efetivamente, penetrando numa sala trrea, acharam ali as mesas postas, com limpssimas toalhas e copos que pareciam de prata. Por toda parte, flores de giesta. Lavadas as mos com gua, como ordenou a rainha, conforme a orientao de Parmeno, sentaram-se todos s mesas. Preparados finalmente, os pratos foram servidos; vinhos de excelente qualidade foram distribudos. Os trs criados, em silncio, serviram os comensais. Tais coisas, belas e ordenadas que eram, proporcionaram alegria a todos; e comeram, em meio a frases espirituosas e a ar festivo.

Ao deixarem as mesas, mandou a rainha que viessem os instrumentos musicais. (Foi como se as mulheres todas soubessem danar, e tambm os homens o soubessem, alm de alguns, dentre eles, saberem tocar e cantar primorosamente.) Obedecendo s ordens da rainha, Dionio tomou de um alade; Fiammetta, de um violo; e ambos principiaram, com suavidade, a desenvolver o tema de uma dana.

Pampinia ordenou que os criados fossem comer. Depois, com as demais mulheres e os dois moos, ela comeou um bailado, a passo lento. Terminado o bailado, comearam todos a cantar canes dolentes e suaves.

Deste modo ficaram tanto tempo entretidos que, finalmente, pareceu rainha ser hora de se ir para a cama. Assim que todos tiveram permisso para isso, os trs homens encaminharam-se para seus respectivos quartos, afastados dos aposentos das mulheres. Acharam-nos to repletos de flores como a sala; assim tambm ocorreu com as mulheres, quanto aos seus aposentos. Desembaraando-se das roupas, todos foram repousar.

A hora nona acabara de soar. E a rainha, ento, erguendo-se, mandou que todas as demais mulheres deixassem os leitos; o mesmo ordenou em relao aos homens; e declarou que era prejudicial sade o ato de dormir demais durante o dia.

Deste modo, o grupo encamnhou-se para um prado, de alta e verde grama, e onde o sol no batia. Desfrutando ali a delcia de uma brisa amena, sentaram-se todos, formando crculo, sobre a relva fofa, conforme o desejo expresso da rainha. Assim ela falou aos membros do grupo:

Como esto vendo vocs, o sol est a pino e o calor intenso; apenas se escuta o cantar das cigarras trepadas nas oliveiras. Seria, assim, uma tolice, certamente, que a gente fosse agora a alguma parte. delicioso ficar aqui, sombra. A esto, como vocs podem ver, tabuleiros de xadrez; cada um pode alegrar-se conforme o que mais prazer lhe causa ao esprito. Entretanto, se nisto se quisesse acompanhar o meu pensamento, passaramos esta parte quente do dia tecendo narrativas. O jogo estaria vedado, pois, no jogo, o esprito de um parceiro forado a perturbar-se, sem grande alegria para o outro nem para quem est assistindo. Seriam narrados episdios (o que pode trazer prazer a todo o grupo que ouve enquanto um narra). Antes que cada um de ns termine a prpria narrativa, o sol j se ter escondido e o calor amainado. E ento poderemos ir buscar diverso onde acharmos melhor. Por isto, se do agrado de vocs, faamos o que digo (mas, de qualquer modo, estou pronta a seguir a preferncia que vocs indicarem); e, no lhes agradando, cada um faa o que mais lhe agrade, at que a noite caia.

Mulheres e homens elogiaram a idia de tecerem narrativas, oralmente.

Ento disse a rainha , se do agrado de todos, quero que, neste primeiro dia, cada um tenha a liberdade de contar o que for de sua preferncia.

Voltando-se em direo de Pnfilo, sentado sua direita, pediu-lhe com amabilidade que, com uma de suas novelas, desse incio s demais. Obedecendo ordem, com solicitude, e sendo escutado por todos, Pnfilo principiou assim:PRIMEIRA NOVELAO Senhor Ciappelletto engana a um santo frade fazendo-lhe uma falsa confisso; e morre. Em vida tendo sido um homem muito mau, considerado santo aps a morte, passando a ser chamado So Ciappelletto.Convm, carssimas mulheres, que em tudo quanto o homem realiza se principie com o admirvel e santo nome daquele que foi o criador de tudo. Como eu devo principiar a nossa srie de narrativas, quero, como o primeiro que fala, principiar narrando uma de suas maravilhas. Assim, ouvida a novela, nele se fixar a nossa esperana, como firmada em algo intransfervel. E o seu nome ser sempre louvado, com carinho, pelo nosso grupo.

evidente que, sendo as coisas temporais todas passageiras e mortais, elas tambm esto repletas de tdio, de sofrimento e de cansao; alm disso, esto sujeitas a perigos. Certamente, ns no poderamos suportar tudo isto, ns, que vivemos entre elas, e at participamos delas, se uma especial graa divina no nos desse fora e descortino. No devemos acreditar que esta graa caia sobre ns por algum merecimento que tenhamos. Ela vem da prpria bondade sua, assim como dos rogos a le enviados por aqueles que, como ns agora somos, foram igualmente mortais. Durante a vida, seguiram as imposies do prazer; agora, na companhia dele, tornaram-se eternos e beatos. A eles, como intercessores bem cnscios, por experincia, de nossa fragilidade, nos entregamos, para o comrcio daquilo que consideramos oportuno. (Pode ser que no tenhamos audcia bastante para levar nossas splicas presena de to supremo juiz, que Deus.) E mais ainda a le, to pleno de piedosa liberalidade a nosso respeito, ns nos entregamos. A nercucincia da vista mortal no pode penetrar, de modo algum, no segredo da mente de Deus. E sucede, s vezes, por esta razo, que, iludidos por opinies passageiras, elevamos categoria de nossos intercessores, no cu, diante da Sua Majestade, pessoa que, por via de exlio eterno, foi expulsa da vista dessa majestade. Contudo, le, para quem nada se oculta, atende queles que lhe enviam preces; pois le considera mais a pureza do que pede do que a sua estultcia, ou o exlio do suplicado. Isto poder ficar muito patente na novela que desejo contar. Muito patente, quero dizer, de acordo no com o juzo de Deus, mas seguindo o dos homens.

Conta-se, portanto, que Musciatto Franzesi, afamado e muito rico comerciante da Frana, armara-se cavaleiro. Precisou dirigir-se a Toscana, junto com. o Senhor Carlos Senterra, irmo do rei da Frana, a quem o Papa Bonifcio chamara e que resolvera atender de pronto ao chamado. Contudo, notou que os seus negcios, como costume acontecer com os assuntos dos comerciantes, estavam muito embrulhados, num ponto e em outro; no havia possibilidade de resolv-los rapidamente, e muito menos de improviso. Cogitou, pois, de entreg-los a diferentes pessoas. E para todos os assuntos teve sada e soluo. Apenas lhe restou a resolver o caso da pessoa a quem deixaria procurao bastante para reaver os emprstimos por ele feitos a muitos borgonheses. O motivo da dvida estava em que ele sabia que os de Borgonha eram homens briguentos, de m vida, e, sobretudo desleais. No lhe restara na memria homem nenhum que fosse to mau (e em quem pudesse depositar certa confiana) que valesse a pena opor malvadez dos borgonheses.

Aps refletir maduramente sobre isto, ocorreu-lhe lembrana a existncia de um Senhor Ciappelletto, de Prato, que freqentemente costumava abrigar-se em sua casa, em Paris. O Senhor Ciappelletto era baixo de estatura, porm muito bem proporcionado e de bom parecer. Ignorando o significado de ciapperello e julgando que quisesse dizer chapu, quer dizer, guirlanda, conforme a linguagem popular deles, os franceses comearam a cham-lo, no Ciappello, e sim, Ciappelletto. E como Ciappelletto tornou-se famoso em todo canto, enquanto pouqussimos o identificavam como Senhor Ciapperello.

Ciappelletto era materialista. Como notrio que era, ficava supremamente envergonhado quando um dos seus documentos era tido como outra coisa que no falso (como se fossem poucos os que assim fazia). Desses documentos falsos, sentia-se capaz de produzir quantos pedissem; e mais prazerosamente ainda fazia aqueles que dava de graa do que os que era pago para fazer, ainda quando regiamente recompensado. Em juzo, prestava falsos testemunhos, com prazer enorme, quando era e mesmo quando no era requisitado.

Na Frana daquele tempo prestava-se f indiscutvel aos juramentos. E, visto que ele pouco ligava por jurar falso, ganhava, por esperteza, tantas demandas quantas as que o chamavam para dizer a verdade, sobre a sua f de notrio. Gozava extraordinrio prazer em provocar, entre amigos e parentes, e entre quaisquer pessoas, discrdias, malquerenas, escndalos. E a isto se dedicava com real afinco. Quanto mais graves eram os males que provinham dos atos, maior era a sua alegria. Convidado a tomar parte em um homicdio, ou em outra forma qualquer de delinqncia, jamais deixava de concordar; at mesmo participava de muito boa vontade. Incontveis vezes achou-se, prazerosamente, ferindo e matando homens com as prprias mos.

Tornara-se incorrigvel blasfemador de Deus e dos santos. Por coisa de somenos, mostrava-se to feroz quanto os que mais o fossem. No tinha o hbito de freqentar a igreja. Zombava de todos os seus sacramentos, proferindo termos abominveis, como se fossem coisas vilssimas. Ao contrrio, com muito bom nimo, visitava e freqentava tabernas e outros locais de m fama. Apreciava as mulheres como os ces as bengalas. Mais do que outro qualquer viciado, do contrrio que obtinha prazer. Era capaz de enganar e roubar com a conscincia to sossegada como a de um santo homem. Guloso, beberro, s vezes chegava a irritar-se com tal procedimento de si mesmo, tantos e tais eram os desmandos a que se deixava ir. Jogava aos dados, mas todos sabiam que lanava mesa dados viciados. Por que motivo, porm, me alongo tanto a este respeito? le era o pior homem que viera luz, em qualquer poca. A sua perversidade que, por bastante tempo, garantiu o poder e os bens do Senhor Musciatto. Por isso, em vrias ocasies, foi recompensado, tanto por pessoas s quais com freqncia prejudicara, como pela corte, qual ainda causava prejuzos.

Estando, portanto, este Senhor Ciapperello nas graas do Senhor Musciatto, que conhecia em mincias sua vida, este pensou: "Deve ser o que mais convm malvadez dos borgonheses". Assim sendo, mandou cham-lo, e falou-lhe:

Senhor Ciappelletto, como no ignora, estou de partida definitivamente daqui. Como preciso, entre outras coisas, haver-me com os borgonheses, que so pessoas embaidoras, no sei de outra pessoa melhor do que voc, qual eu possa confiar o receber aquilo que me devem. Sendo assim, visto que voc nada tem a fazer agora, na verdade e faa-me o favor de entender bem isto , pretendo interessar-me em que voc consiga favores da corte, para lhe dar, do que voc conseguir reaver, a parte que fr combinada.

O Senhor Ciappelletto sentiu-se, deste modo, sem emprego e ma! servido das coisas mundanas. Vendo partir aquele que fora, por muito tempo, seu sustentculo e apoio, resolveu-se pela aceitao, sem nenhuma hesitao, e at quase forado a isso pela necessidade. E declarou que aceitava de boa vontade. Foi, portanto, fixado o acordo. Aps ter em mos a procurao e as cartas favorveis do rei, o Senhor Ciappelletto dirigiu-se para a Borgonha to logo o Senhor Musciatto partiu. Quase ningum o conhecia na Borgonha. Contrariando o prprio temperamento, comeou ali a querer receber e realizar aquilo para que fora mandado, com atitudes bondosas e suaves. Era como se estivesse guardando a ira para o fim.

Sucedeu que, procedendo desse modo, e tomando pouso em casa de dois florentinos, irmos entre si, o Senhor Ciappelletto adoeceu. Os dois irmos florentinos faziam emprstimos de usurios, e respeitavam o Senhor Ciappelletto, por amor do Senhor Musciatto. Pensando no restabelecimento do Senhor Ciappelletto, os dois irmos florentinos, com solicitude, mandaram vir mdicos para o curar, criados para o servir, e quanto fosse oportuno para a recuperao de sua sade. Todo auxlio, contudo, foi intil. O infeliz homem, de muita idade e que vivera desregradamente conforme a opinio dos mdicos , ia de mal a pior, dia aps dia. Parecia ter, no corpo, o mal da morte. Os dois irmos estavam profundamente condodos disso. Certo dia, muito prximo ao quarto onde jazia doente o Senhor Ciappelletto, eles comearam a raciocinar assim, entre eles:

Que vamos fazer dizia um irmo ao outro com este homem? No que diz respeito a ele, temos em mos um pssimo negcio. Mand-lo embora desta casa, enfermo como est, seria o mesmo que atrair contra ns gerais censuras; seria, alm do mais, sinal evidente de pouco juzo. O povo viu que o recebemos antes, e que o fizemos servir e medicar. Agora, sem que ele tivesse feito nada que nos desagradasse, no consideraria justo mand-lo embora, de repente, de nossa casa, estando ele doente para morrer. Por outro lado, ele tem sido um homem to perverso, que no poder confessar-se, nem receber nenhum sacramento da Igreja. Contudo, se ele morrer sem confisso, no haver igreja que deseje receber-lhe o corpo. Ora, no recebendo a absolvio por no se ter confessado, ele ser igualmente atirado s valas comuns. Acontecendo isto, o povo desta terra ficar furioso e comearia a gritar: "Estes ces de lombardos, que no quiseram ir igreja, no a querem mais manter". O populacho acorrer s nossas casas e, certamente, no s nos roubar os pertences, como ainda nos tirar, acima de tudo, as pessoas. Isto suceder porque o nosso mister parece ao povo extremamente inquo; tanto verdade que as pessoas falam mal dele o dia inteiro. Alm disso, o povo sente vontade de nos roubar. Por isso, qualquer que seja a alternativa, estaremos em maus bocados, se este fulano morrer.

O Senhor Ciappelletto que estava acostado, como dissemos, prximo ao local onde os dois irmos conversavam tinha ouvido apurado, como comum encontrarmos em pessoas doentes. Escutou, portanto, o que diziam dele os irmos. Assim, mandou cham-los. E disse-lhes:

No quero que vocs tenham dvida de coisa alguma que diga respeito a mim; nem que temam sofrer qualquer prejuzo por minha culpa. Escutei o que disseram a meu respeito. Estou muito seguro de que sucederia o que vocs receiam que suceda, se tudo se passasse como vocs imaginam. As coisas, contudo, passar-se-o de maneira diferente. Em vida, tantas ofensas cometi a Deus Nosso Senhor que, se lhe fizer mais uma, agora, no momento em que vou morrer, nenhuma diferena far. Por isso, tratem de trazer aqui um frade, santo e valoroso o mais santo e valoroso que vocs conseguirem encontrar, se que existe algum que preencha essas condies. E deixem o resto por minha conta. Eu arrumarei, com firmeza, os negcios de vocs; e tambm os meus; e de tal modo conseguirei isto, que tudo estar bem, e que vocs passaro a sentir-se alegres.

Os dois irmos no levaram muita f neste plano. Assim mesmo foram a um mosteiro de frades, onde solicitaram que algum homem, santo e sbio, fosse ouvir a confisso de um lombardo que estava enfermo em sua casa. Apresentaram-lhe um frade antigo, de existncia bondosa e santificada, grande intrprete das Escrituras, religioso venerabilssimo, para com o qual todos os cidados manifestavam devoo especial e enorme. E os irmos florentinos levaram-no consigo.

Ao chegar ao quarto onde estava o Senhor Ciappelletto e sentando-se ao lado do doente, o frade, de incio, ps-se a confort-lo. Depois, indagou-lhe quanto tempo se passara desde que fizera sua confisso anterior. O Senhor Ciappelletto, que jamais se confessara, respondeu a isto:

Meu padre! Tenho o hbito de confessar-me ao menos uma vez, todas as semanas; inmeras so as semanas em que me confesso mais vezes. verdade que, depois que ca enfermo, cerca de uns oito dias, no me tenho confessado. Imagine o senhor quanto transtorno me vem causando esta doena!

Respondeu o frade:

Meu filho, voc procedeu muito bem, e dever fazer assim para a frente. Vejo que, como costuma confessar-se com tanta freqncia, terei pouco trabalho ao ouvir e ao perguntar.

O Senhor Ciappelletto esclareceu:

Senhor frade! No diga isso! Jamais me confessei tantas vezes, nem com freqncia bastante, como eu sempre gostaria de me confessar, em sentido geral, de todos os pecados que pratiquei e dos quais posso me recordar, desde o dia em que nasci at ao em que me confessei pela ltima vez. Rogo-lhe, por isto, meu bom frade, que indague meticulosamente a respeito de tudo. Proceda como se eu jamais me tivesse confessado. No tenha piedade, por estar eu doente. Prefiro impor desgostos a estas minhas carnes, do que cometer algum ato de que, concedendo-lhes vantagens, posso vir a ser perdio para a minha alma, que o meu Salvador redimiu com o seu sangue precioso.

Tais palavras foram extremamente agradveis ao santo homem, parecendo-lhe que viessem de um esprito bem disposto. Aps louvar, ao Senhor Ciappelletto, este seu hbito de se confessar, perguntou-lhe, de incio, se ele pecara alguma vez por luxria, com alguma mulher. Ao que o Senhor Ciappelletto, com um suspiro, retrucou:

Meu padre! No que diz respeito a isto, tenho vergonha de lhe dizer a verdade, porque receio pecar por vanglria.

Ao que disse o santo frade:

- Fale sem hesitar, pois, falando a verdade, nem na confisso, nem em outro ato qualquer, ningum nunca pecou. Disse, pois, o Senhor Ciappelletto:

J que o senhor me garante assim, falarei. Eu sou to virgem como sa do corpo de minha me.

Oh! Bendito seja voc a Deus! exultou o frade. Voc procedeu muito bem! Assim agindo, tanto mais voc mereceu, quanto mais, se o desejasse, teria podido usar o arbtrio de fazer o contrrio coisa de que ns, os frades, no dispomos, e nem dispem os outros homens que esto constrangidos a alguma regra.Aps isto, perguntou o frade ao doente se, pelo pecado da gula, desagradara a Deus. Suspirando profundamente, o Senhor Ciappelletto respondeu a isto que sim. Muitas vezes pecara. Pois; alm dos jejuns das quaresmas, que os devotos praticam todos os anos, ele, ao menos em trs dias da semana, tinha o hbito de jejuar, tomando somente po e gua. Bebia gua, porm, com aquele prazer e com aquele apetite que se v nos grandes bebedores de vinho. Este prazer era ainda mais acentuado, sobretudo aps a realizao de alguma pesada tarefa, ou depois de adorar, ou depois de peregrinar. Com freqncia quisera ter mdicas saladas simples, de ervas, como aquelas que as mulheres fazem, quando se dirigem vila. O ato de alimentar-se parecera-lhe, algumas vezes, muito mais saboroso do que deveria parecer a uma pessoa que jejua por devoo, como ele o fazia. A isto o frade notou:

Tais pecados so coisa natural e, afinal, so muito leves. No desejo que voc os faa pesar, em sua conscincia, mais do que pesam. Acontece a todo homem, ainda o mais santo, parecer-lhe, aps o jejum, muito saboroso o ato de mastigar, e, aps o cansao, o ato de beber.

Oh! exclamou o Senhor Ciappelletto. Meu frade! No fale assim apenas para me confortar. Sabe bem que eu sei que o que se faz a servio de Deus deve ser tudo feito com pureza, e sem nenhuma hesitao da alma. O que proceda de modo diferente, seja quem for, est pecando.

Muito contente, o frade declarou:

E eu estou satisfeito porque as coisas so assim entendidas pela sua alma. Agrada-me infinitamente a sua conscincia, boa e pura, a esse respeito. Diga-me, contudo: por avareza, voc no ter pecado, querendo mais do que o conveniente, ou segurando em seu poder o que no deveria segurar?

A isto disse o Senhor Ciappelletto:

Meu padre! No gostaria que o senhor indagasse a razo pela qual estou em casa destes usurrios. No tenho nada com eles. Pelo contrrio. At viera por dever de censur-los, para os tolher desta ganncia abominvel. Acho que teria alcanado o meu objetivo, se Deus no me visitara deste modo. O senhor precisa saber, contudo, que meu pai me deixou rico; dos meus pertences, to logo ele morreu, dei a maior parte a Deus. Feito isto, para o sustento de minha existncia, assim como para poder auxiliar os pobres de Cristo, fiz pequenas barganhas; nelas, quis obter algum lucro; o que lucrei, sempre reparti, meia a meio, com os pobres de Deus. Apliquei a minha metade em minhas necessidades; a outra metade, dava-a aos pobres. Por esta razo, o Criador me auxiliou tanto, que sempre realizei meus negcios em condies cada vez mais profcuas.

Voc procedeu otimamente aprovou o frade. Mas, com que freqncia voc tem-se deixado levar pela ira?

Oh! esclareceu o Senhor Ciappelletto necessrio que eu lhe diga que me deixei inflamar pela ira muitas vezes. Mas quem teria podido reprimir-se ao ver, todo dia, que os homens fazem mal tudo o que fazem? que no seguem os mandamentos de Deus? Que no receiam os seus juzos? Inmeros foram os dias em que eu preferiria estar morto, a estar vivo, vendo que os jovens corriam atrs de vaidades, jurando e perjurando, indo a tavernas em vez de visitar igrejas, seguindo, de preferncia, as estradas do mundo e no as de Deus.

Disse, ento, o frade:

Meu filho, essa a boa ira. No saberia impor-lhe qualquer penitencia por este motivo. Mas ser que, ainda por acaso, a ira levou-o a cometer algum homicdio, ou a dizer falsidades contra alguma pessoa, ou a provocar alguma outra forma de dano?

Ao que retrucou o Senhor Ciappelletto:

Pobre de mim, senhor frade! Oh! O senhor... o senhor parece-me homem de Deus! E como que pode dizer tais palavras? Oh! Tivesse eu tido mesmo um pequenino pensamento de fazer qualquer uma das coisas que o senhor acaba de dizer, acredita o senhor que Deus me ampararia tanto? Essas coisas apenas so cometidas por viles e por delinqentes. A estes, sempre que algum me aparece frente, digo: E que Deus o converta!"

Disse ento o frade:

Fale-me, agora, meu filho, e seja bendito a Deus: jamais deu algum testemunho falso, contra quem quer que fosse? No disse mal de ningum? Jamais surripiou, dos outros, coisas alheias, sem prazer nem permisso do seu dono? Sim, senhor frade retrucou o Senhor Ciappelletto. Falei j muito mal dos outros! Pela razo de que eu era vizinho de um sujeito que, por d-c-aquela-palha, nada mais fazia do que surrar a esposa; sendo assim, certa vez falei mal dele aos parentes da mulher, tanta foi a piedade que senti daquela infeliz; sempre que se excedia na bebida, le punha-a num estado que s Deus lhe saberia explicar.Notou, ento, o frade:

Est bem! Voc declarou-me que foi comerciante. J enganou algum, como de uso entre os comerciantes? Pela minha f ripostou o Senhor Ciappelletto , pela minha f, sim. Ignoro quem tenha sido. Sei que foi um sujeito que me pagou uma importncia que me devia, pela venda que eu lhe fizera de uma pea de tecido. Coloquei o dinheiro em uma gaveta, sem o contar. Passado um ms, verifiquei que ali estavam quatro centavos a mais do que o certo. Isto posto, como no tornei a encontrar o tal sujeito, e aps segurar comigo os tais centavos durante um ano, para lhos entregar de volta, dei-os em esmola, pelo amor de Deus.Falou o frade:

Esta falta foi leve; voc procedeu bem, alm disso, procedendo como diz que o fez.

Alm destas, o santo frade fz perguntas a respeito de diversas coisas; a todas, o doente deu respostas sempre pela mesma forma. Querendo, portanto, o frade passar absolvio do Senhor Ciappelletto, este falou assim:

Meu frade, ainda tenho um pecado, do qual no lhe falei. Perguntou o frade qual era. E o doente disse:

Lembro-me de que ordenei a meu criado domstico que varresse a casa, e era um sbado, aps a hora nona; no manifestei, assim, a respeito do santo domingo, aquela reverncia que deveria ter evidenciado.

Oh! exclamou o frade. Esta uma pequena falta!

No retrucou o Senhor Ciappelletto. No diga falta pequena! O domingo dia que deve ser honrado. Pois foi num domingo que o Senhor ressuscitou da morte!

O frade, ento, disse:

Oh! Fez algo mais?

Senhor frade, fiz retrucou o Senhor Ciappelletto. Em certa ocasio, sem me dar conta, cuspi na igreja de Deus.

Ps-se a rir o frade, e disse:

Meu filho: isto no coisa que deva preocupar; ns, religiosos, cuspimos ali todos os dias.

O Senhor Ciappelletto, ento, disse:

Esto os senhores cometendo grande vilania, pois que nada h que merea ser conservado to limpo quanto o santo templo, dentro do qual se rende sacrifcio a Deus!

Em pouco tempo, o Senhor Ciappelletto fz muitas observaes iguais a esta ao frade. Finalmente, ps-se a suspirar; depois, comeou a chorar abundantemente, como quem soubesse muito bem chorar quando tivesse vontade. Ento, o santo frade indagou:

Meu filho, o que tem voc?

Retrucou o Senhor Ciappelletto:

- Pobre de mim, senhor frade! Ainda me resta um pecado por dizer.

Deste, jamais me confessei, tanta a vergonha que sinto em diz-lo! Sempre que me recordo dele, choro da maneira como o senhor v. E tenho absoluta certeza de que Deus jamais se apiedar de mim, por este pecado.

Disse, ento, o santo frade:

- Ora, ora, meu filho! Que est voc a dizer a? Se todos os pecados que j foram praticados no mundo pelos homens, ou que todos os homens esto ainda por cometer, enquanto o mundo fr mundo, tivessem sido cometidos apenas por um homem, e que este se mostrasse to arrependido e contrito, como vejo que voc est, to grande a benevolncia de Deus que, confessando-se esse homem, Deus o perdoaria generosamente. Por esta razo, voc pode dizer o seu pecado.O Senhor Ciappelletto disse, ento, sempre chorando abundantemente:

- Pobre de mim, meu frade! O meu pecado por demais grande; e mal eu poderia acreditar, se as suas palavras no me auxiliassem, que le possa, um dia, ser perdoado por Deus.A isto, disse o frade:

Revele-o com segurana; prometo implorar a Deus em seu favor.

O Senhor Ciappelletto chorava ainda, sem revelar o pecado que praticara. E o frade a incit-lo a dizer. Depois, porm, que o Senhor Ciappelletto, em prantos, manteve o frade em expectativa durante longo tempo, ele soltou longo suspiro, e falou:

Meu frade, desde que o senhor promete interceder junto a Deus em meu favor, direi. Saiba o senhor que, quando eu era muito pequeno, blasfemei, certa vez, contra minha me!

Aps esta revelao, o Senhor Ciappelletto voltou a chorar copiosamente. Disse o frade:

Oh! filho meu! Ento voc pensa que isto um pecado muito grande? Os homens o dia inteiro blasfemam contra Deus; e ele, de boa vontade, perdoa quem se arrepende de ter blasfemado; e ento voc no acredita que lhe perdoe isto? No chore! Acalme-se. Pois, francamente, voc, ainda que fosse um dos que o crucificaram, e revelasse a contrio que vejo manifesta em voc, estou certo de que ele o perdoaria.

Ento, o Senhor Ciappelletto disse:

Pobre de mim, meu frade! Que est o senhor dizendo? Oh! minha querida mame! que por nove meses me reteve em seu ventre, dia e noite, e que me levou nos braos por mais de cem vezes! Agi muito mal blasfemando contra ela. Isto foi um pecado monstruoso. E se o senhor no interceder junto a Deus por mim, no ser le perdoado.

Notando o frade que ao Senhor Ciappelletto nada mais restava a dizer, concedeu-lhe a absolvio, e deu-lhe a bno. Teve-o na conta de homem santssimo, como confessor que cresse plenamente ser verdadeiro o que o Senhor Ciappelletto afirmara. E quem no creria, vendo aquele homem s portas da morte? Finalmente, aps tudo isto, disse-lhe:

Senhor Ciappelletto; com o auxlio de Deus, voc estar curado logo. Contudo, se suceder que Deus chame a si a sua alma abenoada e bem disposta, seria de seu agrado que o seu corpo fosse sepultado em local que temos por sagrado?

A isto respondeu o Senhor Ciappelletto:

Meu santo frade, sim! Alis, no quererei ser sepultado em outro lugar, j que o senhor me prometeu interceder por mim junto a Deus. eni disso, sempre tive particular devoo pela sua ordem. Assim sendo, rogo-lhe que, quando o senhor chegar quele seu lugar, providencie para que venha a mim o veracssimo Corpo de Cristo, que o senhor, toda manh, consagra no seu altar. Ainda que eu no seja digno dele, quero receb-lo, se me permite. Em seguida, quero a santificada extrema-uno, a fim de que, tendo levado vida de pecador, ao menos possa morrer como cristo.O santo frade asseverou que tudo isto lhe causava extrema alegria e que o Senhor Ciappelletto falava acertadamente. Providenciaria, portanto, a fim de que o que ele pedira lhe fosse oportunamente dado. E assim aconteceu.

Os dois irmos florentinos, os quais duvidavam bastante de que o Senhor Ciappelletto no terminasse por engan-los, colocaram-se perto de um biombo. Tal biombo separava em duas partes a sala onde o Senhor Ciappelletto estava. Ali, escuta, ambos ouviram em sussurro, e entenderam, o que o Senhor Ciappelletto falou ao frade. Algumas vezes, sentiam vontade to imperiosa de rir, ao escutarem o que ele confessava ter feito, que quase explodiam; e, entre eles, pensavam: "Que tipo de homem este, que nem a idade provecta, nem a doena, nem o temor da morte, da qual est muito prximo, e nem ainda o medo de Deus, diante de cujo juzo se julga que deva comparecer, dentro de algumas horas, conseguiram afastar de costumeira malvadez? Ser que nem sequer deseja ele morrer de modo diferente daquele pelo qual viveu?" Vendo, entretanto, que se determinara que seu corpo seria recebido em sepultura consagrada, na igreja, os dois irmos no se preocuparam com nada mais. Acontecesse o que tivesse de acontecer.

O Senhor Ciappelletto comungou pouco depois. Estando cada vez pior, foi-lhe ministrada a extrema-uno. Logo aps o cair da noite, naquele dia mesmo em que se confessou, morreu. Por esta razo, os dois irmos florentinos arranjaram tudo conforme o que falara o doente, a fim de que seu corpo fosse sepultado com todas as honras. Informaram ao mosteiro dos frades a propsito da morte do doente. Solicitaram aos frades que fossem, noite, fazer o velrio, de acordo com o costume do lugar, e que adotassem, pela manh, as medidas que julgassem oportunas, com respeito ao destino a dar ao corpo. O santo frade, que o confessara, ao saber do falecimento do Senhor Ciappelletto, foi procurar o prior do mosteiro. Ordenou que se tocasse o captulo. Em seguida, reunidos os frades em captulo, demonstrou-lhes que o Senhor Ciappelletto fora homem santo, a julgar por aquilo que, por meio da confisso, viera saber, e de que estava convicto. O frade acreditava que, por intermdio do Senhor Ciappelletto, Deus faria muitos milagres. E terminou convencendo os religiosos seus confrades de que aquele corpo teria que ser recebido no mosteiro com grande reverncia e devoo. O prior e os outros religiosos concordaram com isto, pois tinham f na sinceridade das afirmaes do confessor. noite, dirigiram-se os frades para a casa onde estava o corpo do Senhor Ciappelletto; e ali procederam a grande e solene viglia. Quando veio a manh, vestindo suas tnicas e pluviais, aqueles religiosos todos, os livros mo e as cruzes na frente, foram buscar o corpo, entoando hinos. Com grande pompa e solenidade levaram-no prpria igreja, e nisso foram seguidos por quase toda a populao da cidade, homens e mulheres. Colocado o corpo na igreja, o santo frade que confessara o Senhor Ciappelletto subiu ao plpito e ps-se a falar. Narrou do Senhor Ciappelletto de sua existncia, de seus jejuns, de sua virgindade, de sua simplicidade, de sua candura, de sua santidade, coisas certamente maravilhosas, dignas de serem pregadas. Dentre outros casos, contou o frade aquilo que, em prantos, o Senhor Ciappelletto confessara ser o seu pecador maior. Contou como foi que le, frade, com dificuldade conseguira fazer entrar na cabea do doente e moribundo a certeza de que Deus o haveria de perdoar. Dirigindo-se, em seguida, ao populacho, que o escutava, o frade bradou:

E vocs, malditos de Deus, a cada fiapo de palha que se enrosca seus ps, blasfemam contra Deus e contra a Me, e da mesma forma contra toda a corte do paraso!

O frade disse ainda, alm destas, muitas coisas mais com respeito lealdade e pureza do Senhor Ciappelletto. Logo, com as suas palavras, s quais todo o povo da regio prestava inteira f, o frade fz com que a memria do falecido entrasse no esprito e se impusesse devoo de todos os que se achavam ali. Logo que terminou o ofcio fnebre, na maior balbrdia deste mundo, os presentes correram a oscular os ps e as mos do defunto; as roupas que vestiam o morto foram todas rasgadas; os que conseguiam obter ainda mesmo um farrapo dessas roupas eram tidos como beatos. Acedeu-se a que o morto fosse mantido ali na igreja o dia inteiro, a fim de que todos o visitassem e contemplassem. Depois, vinda a noite, o corpo foi enterrado com todas as homenagens, numa arca de mrmore, numa capela da igreja.

No outro dia, o povo ps-se a visitar aquela sepultura, a pouco e pouco, a acender crios e a adorar o defunto; comeou, tambm, a fazer votos e a dependurar, na capela, imagens de cera, de conformidade, cada uma delas, com a promessa que se fizera. E assim foi aumentando a fama da devoo e da santidade do Senhor Ciappelletto. No houve quase ningum que se rebelasse contra a criao desta fama, nem que votos fossem feitos a ele, em lugar de os fazer a outro santo. Chamaram, e ainda o chamam, ao Senhor Ciappelletto, de So Ciappelletto. Declarou-se que inmeros milagres Deus realizou, por meio e atravs dele; e continua a faz-los, diariamente, quele que devotamente se pe sob sua guarda.

Foi assim, portanto, que viveu e morreu o Senhor Ciappelletto, de Prato; e acabou tornando-se santo, como vocs ouviram.

No tenciono negar a possibilidade de que esse seja beato, em face de Deus. Ainda que sua existncia tenha sido criminosa e m, pode bem ter sentido, na ltima quadra de sua vida, contrio to grande que, em razo disto, Deus moveu-se misericrdia para com le, aceitando-o em sua casa. Visto, contudo, que isto circunstncia oculta, que ns no conhecemos, eu apenas raciocino conforme aquilo que as aparncias mostram. Afirmo, portanto, que o Senhor Ciappelletto deveria estar, preferentemente, nas mos do demo, e no no paraso. Se a coisa passa assim, pode-se afirmar que enorme a benevolncia de Deus a nosso respeito. A bondade mostra-se, no em relao ao nosso erro, e sim em considerao pureza da f. Tornando o Senhor Ciappelletto, que foi inimigo de Deus, o nosso intercessor diante dele, por o considerarmos amigo de Deus, o Todo Poderoso ouve-nos como se estivssemos recorrendo, para a tarefa de intercessor, na realizao de sua graa, a um santo de verdade. Por esta razo, tecendo louvores ao nome de Deus, com o qual principiamos esta palestra, prestamo-lhe reverncia. A le nos recomendamos, em nossas necessidades, muito certos de sermos atendidos, e tambm a fim de que, por sua graa, sejamos mantidos sos e salvos nas atribulaes presentes, assim como nesta to agradvel companhia.

E isto dizendo calou-se.SEGUNDA NOVELAO judeu Abrao, sob a instigao de Giannotto di Civigni, vai corte de Roma. Observando a maldade dos sacerdotes, retorna a Paris, onde se torna cristo.

Ouvida com muita ateno, a novela de Pnfilo chegou ao seu desfecho. Ern certas passagens, provocou risos, e foi comentada, em todos os seus trechos, pelas mulheres. Estando Nefile sentada ao lado de Pnfilo, mandou a rainha que ela, com uma narrativa prpria, prosseguisse o encadeamento da diverso que se iniciara. Nefile, no menos dotada de modos corteses, quanto de beleza, respondeu com alegria que o faria de muito boa vontade. E principiou assim:

Demonstrou Pnfilo, em sua narrativa, a bondade divina, pela circunstncia de que le no se importa com os nossos pecados, sempre que estes advenham de dados bsicos que no possamos deslindar. Em minha novela, eu pretendo demonstrar o quanto aquela mesma benevolncia, suportando os defeitos dos que deveriam dar vero testemunho dela, com obras e palavras, ainda assim d de si mesma prova de infalvel verdade; e isto se d a fim de que continuemos a acreditar naquilo em que temos f, e o faamos ainda com redobrada firmeza de nimo.

Como eu, minhas encantadoras mulheres, j ouvi dizer, em Paris existiu um famoso comerciante. Era um homem bom, chamado Giannotto di Civigni. Possua a virtude de ser meticulosamente correto e extremamente leal. Era um grande comerciante de artigos de tecelagem. Mantinha, porm, relaes de amizade com um riqussimo homem, judeu, que se chamava Abrao. Como ele, este era tambm comerciante muito correto e leal. Giannotto, conhecendo-lhe a correo e a lealdade, deu para sentir-se cheio de pesar pelo fato de a alma de um to digno, to esclarecido e to bom homem ser atirada perdio, em razo de sua ausncia de f crist. Assim sendo, comeou a pedir-lhe, com jeito amigvel, que deixasse os erros da f judaica e adotasse a religio de Cristo. Abrao era argumento de Giannotto podia perfeitamente ver que esta religio, santa e generosa, prosperava e crescia, enquanto a judaica, pelo contrrio, conforme ele tambm podia perceber, estava diminuindo e reduzia-se a nada. Respondia o judeu, costumeiramente, que no havia no seu entender nenhuma religio tida como santa e generosa, a no ser a judaica. Como argumento, dizia que nascera nessa religio e queria continuar a viver e, afinal, morrer nela. Nenhuma circunstncia poderia haver nunca que o afastasse de tal propsito. Giannotto jamais se considerou vencido. Por alguns dias no falou coisa alguma a Abrao sobre o assunto. Passado algum tempo, contudo, procurou mostrar-lhe, resumidamente mesmo, como a maioria dos comerciantes faz, os motivos pelos quais a nossa religio devia ser melhor do que a judaica. O judeu, instrudo fortemente na lei de Israel e que se tornara mestre nela, comeou a apreciar grandemente as demonstraes de Giannotto. No obstante, obstinado como estava em sua f, no se afastava dela. Tanto quanto le se tornava obstinado,

Benvenuto da Imola d como autntico o fato que serviu de base a esta novela, em seu comentrio Divina Comdia. Deve ter ocorrido antes de a corte de Clemente V ter-se transferido para Avinho, Frana, em 1304.

tanto mais Giannotto no se cansava de o aliciar. E to insistente foi nesse mister que o judeu, comovido por essa contnua obstinao, disse:

Olhe, Giannotto, voc tem prazer em que me faa cristo; e estou disposto a fazer isto. Desejo-o to sinceramente que pretendo primeiro ir a Roma, e ali ver aquele que voc afirma ser o vigrio de Deus na terra; quero analisar as maneiras, os costumes, tanto dele quanto dos seus irmos, os cardeais. E, se tudo me parecer suficientemente capaz de nie fazer pelas palavras e pelos costumes deles entender que a sua crena melhor do que a que tenho, do mesmo modo como voc se tem empenhado em me demonstrar, ento farei como j lhe disse. Se no suceder assim, continuarei sendo judeu, como sou.

Ao ouvir isto, Giannotto ficou tremendamente penalizado. E a si mesmo disse: "Perdi todo o meu trabalho, que to bem empregado me parecia; imaginava que este judeu j estivesse convertido. Se fr a Roma

se visitar a corte de l e se vier a conhecer a vida celerada e imunda dos sacerdotes,* no apenas no se converter, de judeu em cristo, como se pode dizer com certeza que, se j fosse cristo batizado, indubitavelmente voltaria a ser judeu!" Depois, falando para Abrao, tentou raciocinar do seguinte modo:

Escute, meu bom amigo. Qual a razo que leva voc a entregar-se a trabalho to cansativo e a despesa to grande com o trabalho e a despesa de sua viagem at Roma? Alm do mais, para um homem de tantos cabedais como voc, essa viagem, por terra ou por mar, est prenhe de perigos. Voc julga que no achar aqui quem lhe d o batismo? Se, porventura, voc alimenta ainda alguma dvida, no que diz respeito pureza da f que eu lhe demonstro, onde podem existir, mais do que aqui mesmo, homens sapientes, que podem responder a tudo quanto voc indagar, e dirimir as incertezas que voc sentir? Assim sendo, sou de opinio que esta sua ida a Roma suprflua. Veja que os sacerdotes de l so os mesmos que pode encontrar aqui. Certamente, sero tanto melhores quanto mais prximo se acharem do pastor principal. Assim sendo, segundo o meu modo de ver, melhor que voc reserve essa viagem para outra oportunidade, quando precisar alcanar algum perdo. Nessa ocasio, provavelmente, eu lhe farei companhia.

A isto o judeu respondeu:

Acredito, Giannotto, que seja assim como voc diz; entretanto, devolvendo-lhe as muitas palavras com uma frase apenas, declaro-lhe que estou completamente resolvido a ir a Roma (se que voc quer que eu faa o que tanto me pede para fazer); se no, no farei coisa alguma.

Giannotto, conhecendo a inabalvel vontade do outro, disse:

Ento v, e felicidade!

E ficou intimamente convicto de que o judeu jamais se tornaria cristo

sobretudo aps constatar o que ocorria na corte de Roma. Contudo, como no estava perdendo nada com isto, concordou.

* A inteno de Boccaccio no irreverente. As crnicas confirmam o que Boccaccio diz. Tambm Petrarca deplorou a corrupo da corte pontifcia.

O judeu subiu ao seu cavalo e, to depressa quanto pde, dirigiu-se para a corte de Roma. Chegando l, foi recebido com todas as atenes pelos seus correligionrios israelitas. Permanecendo em Roma, sem contar a ningum