Décio Soares Vicente O fiado

5
 Pontifícia Universida de Católica do Rio Grande do Sul Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Departament o de Ciências Sociais Professora: Drª Lúcia Müller Aluno: Décio Soares Vicente Data: Porto Alegre, 18 de setembro de 2006. O Caderninho, a Confiança e o Fiado: uma observação do crédito de armazém popular Este ensaio é o resultado de uma atividade desenvolvida pela disciplina de Pesquisa IV, do curso de Ciências Sociais da PUCRS, sob a responsabilidade do Profª Drª Lúcia Müller. A atividade tinha como proposta a observação de alguma forma de relação social que envolvesse o crédito. O exercício ocorreu no primeiro semestre do ano de 2006. Para realização dessa atividade, eu acabei escolhendo fazer a observação em um est abel ecimento comer cial do ti po ar mazém ou mini-mer cado, que concede crédito de maneira informal. Meu objetivo principal foi observar práticas sociais e culturais de concessão de crédito diferentes do modelo formal, como por exemplo, o caderninho e a compra fiado. Isto é, compreender como se estabelece a relação de confia nça do comerc iante para com o cliente, nessa prática informa l de concessão de crédito, estabelecendo algumas comparações com o modelo formal capitalista estabelecido. Para a real izão da obs er vação foi con st ruído um roteir o com os seguintes objetivos específicos: Identificar o tempo de existência do estabelecimento; Relatar uma breve descrição da história de vida do comerciante; Identificar as dificuldades que o comerciante teve em sua história de vida; Saber se o estabelecimento comercial é familiar; Saber como funciona o caderninho ao comprar fiado;

description

Fiado

Transcript of Décio Soares Vicente O fiado

5/10/2018 D cio Soares Vicente O fiado - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/decio-soares-vicente-o-fiado 1/5

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Departamento de Ciências Sociais

Professora: Drª Lúcia Müller 

Aluno: Décio Soares Vicente

Data: Porto Alegre, 18 de setembro de 2006.

O Caderninho, a Confiança e o Fiado: uma observação do crédito de

armazém popular 

Este ensaio é o resultado de uma atividade desenvolvida pela disciplina dePesquisa IV, do curso de Ciências Sociais da PUCRS, sob a responsabilidade do

Profª Drª Lúcia Müller. A atividade tinha como proposta a observação de alguma

forma de relação social que envolvesse o crédito. O exercício ocorreu no primeiro

semestre do ano de 2006.

Para realização dessa atividade, eu acabei escolhendo fazer a observação

em um estabelecimento comercial do tipo armazém ou mini-mercado, que

concede crédito de maneira informal. Meu objetivo principal foi observar práticas

sociais e culturais de concessão de crédito diferentes do modelo formal, como por 

exemplo, o caderninho e a compra fiado. Isto é, compreender como se estabelece

a relação de confiança do comerciante para com o cliente, nessa prática informal

de concessão de crédito, estabelecendo algumas comparações com o modelo

formal capitalista estabelecido.

Para a realização da observação foi construído um roteiro com os

seguintes objetivos específicos:

• Identificar o tempo de existência do estabelecimento;

• Relatar uma breve descrição da história de vida do comerciante;

• Identificar as dificuldades que o comerciante teve em sua história de vida;

• Saber se o estabelecimento comercial é familiar;

• Saber como funciona o caderninho ao comprar fiado;

5/10/2018 D cio Soares Vicente O fiado - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/decio-soares-vicente-o-fiado 2/5

• Identificar quantas pessoas estão inscritas no crédito do armazém

observado;

• Conhecer o perfil de pessoa o comerciante cede o crédito;

• Identificar qual tipo de confiança é estabelecida entre o comerciante e o

cliente que utiliza o caderninho;

• Saber se há muito atraso no pagamento;

• Identificar práticas de calotes;

• Saber como se recupera o lucro após um calote (prejuízo);

• Saber qual é o cliente mais fiel do caderninho (perfil);

• Saber como é negociada a dívida;

Identificar mecanismos para fazer o cliente pagar a dívida;• Saber se há muita barganha nas compras.

A observação ocorreu no mês de junho, durante algumas horas, em um

pequeno armazém de propriedade de uma Senhora de origem italiana, localizado

em uma rua sem saída no bairro Cristal, zona sul da cidade de Porto Alegre.

Como já conhecia um pouco a dona do armazém, logo decidi realizar minha

observação neste comércio.

O armazém é um típico comércio de esquina, com características simples e

rústicas, dentro de um espaço que antes se caracterizava como uma garagem de

veículos. Ao entrar no estabelecimento comercial, encontramos um balcão de

atendimento com muitas opções de mercadorias ao alcance dos olhos e no fundo

prateleiras de diversos produtos onde a vendedora vai buscar os pedidos dos

clientes. No armazém “há de tudo”, frutas, verduras, produtos de consumo

alimentício, tanto de conserva como animal, produtos de limpeza, etc. O armazém

localiza-se em torno de condomínios residenciais em um bairro de características

de classe média de Porto Alegre.

Ao conversar com a dona do armazém, pude saber um pouco mais de sua

história de vida. Viúva, com dois filhos para criar, trabalha com armazém há cerca

de 12 anos e é a única dona. Ela também conta que toda sua família possui

armazém e que desde sua infância já ajudava o pai no comércio. Mas o comércio

2

5/10/2018 D cio Soares Vicente O fiado - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/decio-soares-vicente-o-fiado 3/5

nem sempre foi sua única atividade, ela já trabalhou como dona de táxi lotação.

Quando ela adquiriu o armazém “os clientes do caderninho vieram junto”. O antigo

dono do armazém já concedia o crédito a comunidade, então, ela decidiu

continuar com essa prática. Atualmente, o armazém tem cerca de cinqüenta

pessoas, a maioria dos clientes são mulheres. Além disso, já houve a

oportunidade de instalar no armazém um caixa 24 horas, mais uma forma de

crédito dentro do estabelecimento. O Banco do Brasil propôs o ganho de um real a

cada saque de cliente, mas ela acabou não aceitando, pois o caixa eletrônico iria

chamar muita atenção e a empresa não oferecia qualquer tipo de segurança. Além

disso, ela já havia sofrido assalto algumas vezes, mas nunca desistiu de continuar 

com o negócio.

Na sociedade contemporânea moderna, os meios de se adquirir crédito

passam por normas formais. O cliente que deseja adquirir crédito precisa estar na

posse de vários documentos, provando sua honestidade (nome "limpo na praça"),

sua possibilidade de arcar com a dívida (comprovante de renda) e endereço

domiciliar para possível localização. Assim, aquele que concede o crédito terá

garantias de recebimento. Um modelo baseado na impessoalidade, na garantia

escrita, em que os clientes estão sujeitos a coerções financeiras e judiciárias em

caso da inadimplência.Durante a conversa com a comerciante, em alguns momentos entre os

atendimentos aos clientes que chegavam ao armazém, pude entender algumas

situações importantes em relação ao crédito cedido de maneira informal. O crédito

baseado no caderninho e/ou na compra fiado é concedido através de determinada

confiança pessoal do proprietário do armazém às pessoas que ele “julgue

merecedoras”. Ou seja, “não é para qualquer pessoa”, o crédito neste modelo

informal baseia-se na convivência dos clientes com o estabelecimento, o cotidiano

das compras, as conversas com os vendedores, morar próximo (principalmente),

etc. A comerciante de origem italiana conta que pode até conceder crédito para

moradores novos que se mudaram para perto do estabelecimento, mas primeiro

ela tem que "ir com a cara da pessoa", há casos em que alguns moradores muito

antigos aos quais a comerciante não oferece crédito.

3

5/10/2018 D cio Soares Vicente O fiado - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/decio-soares-vicente-o-fiado 4/5

O caderninho é um instrumento de controle das compras feitas pelo cliente.

Nele constam alguns dados dos clientes: residência, telefone, mercadorias

compradas, valor, total e data. No mundo formal, o crédito muitas vezes é

controlado por mecanismos tecnológicos.

Na forma informal do caderninho, em que predominam as relações de

confiança, as pessoas quitam suas dívidas de cada fim do mês. No caso deste

armazém, muitas das dívidas não passam de dois meses. O caderninho não

oferece juros, sendo a confiança a única garantia de pagamento, antes de ocorrer 

o problema do pagamento, o cliente deve procurar negociar com a comerciante

uma forma de saldar a dívida, por exemplo, com cheque assinado. Mas segundo a

comerciante: “aqui os clientes são bons pagadores”, portanto são raras às vezes

que alguns de seus clientes deixam de quitar suas dívidas no fim do mês.

“Todos os tipos de pessoas têm crédito”, ela conta que há clientes que têm

salários “muito bem pagos”, mas em geral, todas as pessoas, independente da

renda, consideram o caderninho uma forma de comodidade, “facilita a vida das

pessoas”; “tem gente que deixa o caderninho para os filhos, pois assim eles não

gastam o dinheiro em outras coisas”.

Nos casos de calote (dívida não paga) a pessoa é procurada, no primeiro

momento por telefone, e, por conseguinte, visita à casa do devedor. Em 12 anoscedendo crédito para a comunidade, a dona do armazém teve apenas dois

problemas com a ocorrência de calote. O primeiro caso foi de um cheque “sem

fundo” (não consta dinheiro na conta), que no final acabou na justiça, sendo que

foi a primeira vez que a comerciante foi a casa de um cliente devedor cobrar a

divida. No fim, esse cliente devedor acabou tendo o veículo particular apreendido

pela justiça. No segundo caso, não houve como recorrer à legalidade porque a

comerciante tinha perdido as anotações contidas no caderninho sobre o cliente

devedor . Portanto, a partir destes exemplos, o comerciante deve ter “jogo de

cintura” para se poder ceder o crédito para comprar fiado às pessoas.

O comércio com moradores próximos ao armazém sempre foi tranqüilo,

pois o lugar facilita porque é uma rua sem saída. A comerciante diz que a

geografia auxilia o controle das pessoas às quais são seus clientes. Tendo em

4

5/10/2018 D cio Soares Vicente O fiado - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/decio-soares-vicente-o-fiado 5/5

vista que, como os condomínios estão localizados no final da rua, e o armazém na

esquina, é fácil conhecer e contatar os clientes. Ela explica que seu irmão,

também proprietário de armazém, tem muitos problemas com relação ao crédito,

pois seu estabelecimento localiza-se em frente a uma grande avenida, não

oferecendo um controle maior das pessoas, neste sentido, somente o proprietário

do prédio próximo ao seu armazém pode ter crédito fiado.

Com 12 anos de experiência, trabalhando como dona de armazém, a

comerciante conta que: “ninguém reclama do preço, não há barganha, as pessoas

escolhem o produto e pronto. No caderninho, quando há atraso, o cliente negocia

quando vai poder pagar”. Ela também informa que: “não deixa ninguém na mão”, e

se caracteriza como um banco 24 horas, “quando alguém precisa, ela empresta”.

Apesar de que, a experiência de observação se resumir em um curto trabalho, foi

possível levantar algumas informações importantes em relação a prática de

concessão de crédito de maneira informal e fazer algumas comparações com o

modelo formal. Em conseqüência disso, a compra fiado, como prática econômica

popular, deve receber atenção, pois se configura em um sistema simbólico que

revela códigos e maneiras sociais de se lidar com dinheiro, prazos, dividas, etc.

Neste sentido, este trabalho contribuiu para o conhecimento sobre as formas

tradicionais e populares de crédito.

5