Décio Soares Vicente O fiado
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Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de Ciências Sociais
Professora: Drª Lúcia Müller
Aluno: Décio Soares Vicente
Data: Porto Alegre, 18 de setembro de 2006.
O Caderninho, a Confiança e o Fiado: uma observação do crédito de
armazém popular
Este ensaio é o resultado de uma atividade desenvolvida pela disciplina dePesquisa IV, do curso de Ciências Sociais da PUCRS, sob a responsabilidade do
Profª Drª Lúcia Müller. A atividade tinha como proposta a observação de alguma
forma de relação social que envolvesse o crédito. O exercício ocorreu no primeiro
semestre do ano de 2006.
Para realização dessa atividade, eu acabei escolhendo fazer a observação
em um estabelecimento comercial do tipo armazém ou mini-mercado, que
concede crédito de maneira informal. Meu objetivo principal foi observar práticas
sociais e culturais de concessão de crédito diferentes do modelo formal, como por
exemplo, o caderninho e a compra fiado. Isto é, compreender como se estabelece
a relação de confiança do comerciante para com o cliente, nessa prática informal
de concessão de crédito, estabelecendo algumas comparações com o modelo
formal capitalista estabelecido.
Para a realização da observação foi construído um roteiro com os
seguintes objetivos específicos:
• Identificar o tempo de existência do estabelecimento;
• Relatar uma breve descrição da história de vida do comerciante;
• Identificar as dificuldades que o comerciante teve em sua história de vida;
• Saber se o estabelecimento comercial é familiar;
• Saber como funciona o caderninho ao comprar fiado;
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• Identificar quantas pessoas estão inscritas no crédito do armazém
observado;
• Conhecer o perfil de pessoa o comerciante cede o crédito;
• Identificar qual tipo de confiança é estabelecida entre o comerciante e o
cliente que utiliza o caderninho;
• Saber se há muito atraso no pagamento;
• Identificar práticas de calotes;
• Saber como se recupera o lucro após um calote (prejuízo);
• Saber qual é o cliente mais fiel do caderninho (perfil);
• Saber como é negociada a dívida;
•
Identificar mecanismos para fazer o cliente pagar a dívida;• Saber se há muita barganha nas compras.
A observação ocorreu no mês de junho, durante algumas horas, em um
pequeno armazém de propriedade de uma Senhora de origem italiana, localizado
em uma rua sem saída no bairro Cristal, zona sul da cidade de Porto Alegre.
Como já conhecia um pouco a dona do armazém, logo decidi realizar minha
observação neste comércio.
O armazém é um típico comércio de esquina, com características simples e
rústicas, dentro de um espaço que antes se caracterizava como uma garagem de
veículos. Ao entrar no estabelecimento comercial, encontramos um balcão de
atendimento com muitas opções de mercadorias ao alcance dos olhos e no fundo
prateleiras de diversos produtos onde a vendedora vai buscar os pedidos dos
clientes. No armazém “há de tudo”, frutas, verduras, produtos de consumo
alimentício, tanto de conserva como animal, produtos de limpeza, etc. O armazém
localiza-se em torno de condomínios residenciais em um bairro de características
de classe média de Porto Alegre.
Ao conversar com a dona do armazém, pude saber um pouco mais de sua
história de vida. Viúva, com dois filhos para criar, trabalha com armazém há cerca
de 12 anos e é a única dona. Ela também conta que toda sua família possui
armazém e que desde sua infância já ajudava o pai no comércio. Mas o comércio
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nem sempre foi sua única atividade, ela já trabalhou como dona de táxi lotação.
Quando ela adquiriu o armazém “os clientes do caderninho vieram junto”. O antigo
dono do armazém já concedia o crédito a comunidade, então, ela decidiu
continuar com essa prática. Atualmente, o armazém tem cerca de cinqüenta
pessoas, a maioria dos clientes são mulheres. Além disso, já houve a
oportunidade de instalar no armazém um caixa 24 horas, mais uma forma de
crédito dentro do estabelecimento. O Banco do Brasil propôs o ganho de um real a
cada saque de cliente, mas ela acabou não aceitando, pois o caixa eletrônico iria
chamar muita atenção e a empresa não oferecia qualquer tipo de segurança. Além
disso, ela já havia sofrido assalto algumas vezes, mas nunca desistiu de continuar
com o negócio.
Na sociedade contemporânea moderna, os meios de se adquirir crédito
passam por normas formais. O cliente que deseja adquirir crédito precisa estar na
posse de vários documentos, provando sua honestidade (nome "limpo na praça"),
sua possibilidade de arcar com a dívida (comprovante de renda) e endereço
domiciliar para possível localização. Assim, aquele que concede o crédito terá
garantias de recebimento. Um modelo baseado na impessoalidade, na garantia
escrita, em que os clientes estão sujeitos a coerções financeiras e judiciárias em
caso da inadimplência.Durante a conversa com a comerciante, em alguns momentos entre os
atendimentos aos clientes que chegavam ao armazém, pude entender algumas
situações importantes em relação ao crédito cedido de maneira informal. O crédito
baseado no caderninho e/ou na compra fiado é concedido através de determinada
confiança pessoal do proprietário do armazém às pessoas que ele “julgue
merecedoras”. Ou seja, “não é para qualquer pessoa”, o crédito neste modelo
informal baseia-se na convivência dos clientes com o estabelecimento, o cotidiano
das compras, as conversas com os vendedores, morar próximo (principalmente),
etc. A comerciante de origem italiana conta que pode até conceder crédito para
moradores novos que se mudaram para perto do estabelecimento, mas primeiro
ela tem que "ir com a cara da pessoa", há casos em que alguns moradores muito
antigos aos quais a comerciante não oferece crédito.
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O caderninho é um instrumento de controle das compras feitas pelo cliente.
Nele constam alguns dados dos clientes: residência, telefone, mercadorias
compradas, valor, total e data. No mundo formal, o crédito muitas vezes é
controlado por mecanismos tecnológicos.
Na forma informal do caderninho, em que predominam as relações de
confiança, as pessoas quitam suas dívidas de cada fim do mês. No caso deste
armazém, muitas das dívidas não passam de dois meses. O caderninho não
oferece juros, sendo a confiança a única garantia de pagamento, antes de ocorrer
o problema do pagamento, o cliente deve procurar negociar com a comerciante
uma forma de saldar a dívida, por exemplo, com cheque assinado. Mas segundo a
comerciante: “aqui os clientes são bons pagadores”, portanto são raras às vezes
que alguns de seus clientes deixam de quitar suas dívidas no fim do mês.
“Todos os tipos de pessoas têm crédito”, ela conta que há clientes que têm
salários “muito bem pagos”, mas em geral, todas as pessoas, independente da
renda, consideram o caderninho uma forma de comodidade, “facilita a vida das
pessoas”; “tem gente que deixa o caderninho para os filhos, pois assim eles não
gastam o dinheiro em outras coisas”.
Nos casos de calote (dívida não paga) a pessoa é procurada, no primeiro
momento por telefone, e, por conseguinte, visita à casa do devedor. Em 12 anoscedendo crédito para a comunidade, a dona do armazém teve apenas dois
problemas com a ocorrência de calote. O primeiro caso foi de um cheque “sem
fundo” (não consta dinheiro na conta), que no final acabou na justiça, sendo que
foi a primeira vez que a comerciante foi a casa de um cliente devedor cobrar a
divida. No fim, esse cliente devedor acabou tendo o veículo particular apreendido
pela justiça. No segundo caso, não houve como recorrer à legalidade porque a
comerciante tinha perdido as anotações contidas no caderninho sobre o cliente
devedor . Portanto, a partir destes exemplos, o comerciante deve ter “jogo de
cintura” para se poder ceder o crédito para comprar fiado às pessoas.
O comércio com moradores próximos ao armazém sempre foi tranqüilo,
pois o lugar facilita porque é uma rua sem saída. A comerciante diz que a
geografia auxilia o controle das pessoas às quais são seus clientes. Tendo em
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vista que, como os condomínios estão localizados no final da rua, e o armazém na
esquina, é fácil conhecer e contatar os clientes. Ela explica que seu irmão,
também proprietário de armazém, tem muitos problemas com relação ao crédito,
pois seu estabelecimento localiza-se em frente a uma grande avenida, não
oferecendo um controle maior das pessoas, neste sentido, somente o proprietário
do prédio próximo ao seu armazém pode ter crédito fiado.
Com 12 anos de experiência, trabalhando como dona de armazém, a
comerciante conta que: “ninguém reclama do preço, não há barganha, as pessoas
escolhem o produto e pronto. No caderninho, quando há atraso, o cliente negocia
quando vai poder pagar”. Ela também informa que: “não deixa ninguém na mão”, e
se caracteriza como um banco 24 horas, “quando alguém precisa, ela empresta”.
Apesar de que, a experiência de observação se resumir em um curto trabalho, foi
possível levantar algumas informações importantes em relação a prática de
concessão de crédito de maneira informal e fazer algumas comparações com o
modelo formal. Em conseqüência disso, a compra fiado, como prática econômica
popular, deve receber atenção, pois se configura em um sistema simbólico que
revela códigos e maneiras sociais de se lidar com dinheiro, prazos, dividas, etc.
Neste sentido, este trabalho contribuiu para o conhecimento sobre as formas
tradicionais e populares de crédito.
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