Decrescimento Crise Capitalismo

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  • Carlos Taibo

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  • Carlos Taibo

    DECRESCIMENTO, CRISE E CAPITALISMO

    edies da terra

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    Carlos Taibo, 2011.

    Primeira edio: Estaleiro Editora (2010).

    Reviso e correo: Carlos Diegues e Vtor Surez Diaz Desenho e paginao: Nadina B. S.

    Primeira edio de Edies da Terra: dezembro de 2011. EDIO NO COMERCIAL Os autores so responsveis polas ideas expressadas neste volume no representando necessariamente as posturas polticas do Partido da Terra. Publicado por:

    edies da terra Um selo editorial do Partido da Terra (PT) http://www.partidodaterra.net [email protected]

  • No comboio descendentevinha tudo gargalhada.Uns por verem rir os outrose outros sem ser por nada.No comboio descendentede Queluz Cruz Quebrada...

    No comboio descendentevinham todos janela.Uns calados para os outrose outros a dar-lhes trela.No comboio descendentede Cruz Quebrada a Palmela...

    No comboio descendentemas que grande reinao!Uns dormindo, outros com sono,e outros nem sim nem no.No comboio descendentede Palmela a Portimo.

    Fernando Pessoa

  • 9apresentao

    Todas as disciplinas empregam conceitos que, tericos ou ins-trumentais, configuram o ncleo das suas apreciaes. No caso da economia, entre esses conceitos contam-se, com singular peso hoje, os de crescimento, produtividade e competitividade, de tal maneira que se supe que os ganhos, no que atinge a es-ses trs elementos configuram por necessidade, sempre, dados positivos.

    No que diz respeito, de maneira mais precisa, ao cresci-mento, a cincia econmica realmente existente considera, com clareza, que constitui uma espcie de panaceia resolutria de todos os problemas. O que se nos diz que ali onde h cresci-mento econmico a coeso social progressa, os servios pbli-cos se assentam de forma razovel, a pobreza recua e, enfim, e por deixar as cousas assim, o desemprego se reduz. Poucas declaraes retratam melhor esta perceo dos fatos, na sua relao com os ingentes problemas ecolgicos que devemos enfrentar, que a formulada em 2002 pelo presidente norteame-ricano George Bush filho: O crescimento a chave do pro-gresso ambiental, na medida em que proporciona os recursos que permitem investir nas tecnologias apropriadas: a soluo, no o problema1. Se quisermos agregar outra significativa de-clarao que bebe da mesma perceo, eis as palavras de Gao Feng, responsvel pela delegao chinesa nas negociaes sobre a mudana climtica, para quem o desenvolvimento sustentvel

    1 S. Latouche, Per una societ della decrescita, em M. Bonaiuti (dir.), Obiettivo de-crescita (Missionaria Italiana, Bolonia, 2003), pg. 13.

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    remete para a ideia dum crescimento e um desenvolvimento que no devem ver-se submetidos a obstculos2.

    Nas pginas deste texto que recolhe parcialmente, re-vistos, trabalhos publicados anteriormente em livros, jornais e revistas, o que nos propomos , por cima de tudo, discutir se o crescimento econmico essa fonte permanente de dados saudveis que tantos apreciam ou se, pelo contrrio, e como parece, por trs do conceito, e da prtica correspondente, h demasiados equvocos e armadilhas para deix-los no esqueci-mento. Se assim se quiser, e como rapidamente poder ver-se, a discusso que nos atrai empraza-nos nos debates relativos crise que o capitalismo global arrasta desde h tempo e vi-svel e interessada leviandade das respostas que mereceu nos crculos oficiais. Se devermos adiantar um argumento forte ao respeito, diremos que hoje, no Norte desenvolvido, no ima-ginvel um projeto anticapitalista que no aposte ao mesmo tempo no decrescimento, da mesma maneira que no fcil imaginar um projeto de decrescimento que no seja ao tempo orgulhosamente contestatrio do capitalismo e as suas lgicas.

    Carlos Taibo, Madrid, outubro de 2009

    2 S. Latouche, Le pari de la dcroissance (Fayard, Paris, 2006), pg. 119.

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    Sobram as evidncias que invitam a recear das virtudes do cres-cimento econmico. Digamos, em primeiro lugar, e em rela-o com a afirmao do ex-presidente Bush que resenhamos na apresentao, que muitos dos problemas meio-ambientais que o crescimento ajudaria a resolver so criados pelo prprio crescimento, ao tempo que convm alimentar srias dvidas de que este permita resolv-los. Maior relevo corresponde, porm, a outro fato: h motivos slidos para afirmar que o crescimento provoca agresses meio-ambientais amide irreversveis, per-mite o esgotamento de recursos escassos que no vo estar disposio das geraes vindouras e no facilita a coeso social, ou ao menos no o faz sempre. Em relao com isto ltimo, no h dados que confirmem que as notveis melhoras regis-tradas no Produto Interno Bruto (PIB) dos pases ocidentais nos ltimos decnios se traduzissem numa maior coeso no terreno social: pelo contrrio, geraram maiores diferenas e um significativo engrossamento dos grupos mais pobres da popu-lao e, com ele, do desemprego3. Outro tanto cumpre dizer do acontecido, em muitos lugares do Terceiro Mundo, ao abrigo da globalizao capitalista, que com frequncia tem permitido, sim, um crescimento importante, mas custo, claro, de redu-zir visivelmente a coeso.

    No existe, alis, nenhuma relao certificvel entre cres-cimento e democracia. No que atinge a isto ltimo, lembre-se que a ditadura de Augusto Pinochet em Chile se acompanhou de nveis altos de crescimento, que tambm est a crescer es-

    3 V. Cheynet, Le choc de la dcroissance (Seuil, Paris, 2008), pg. 83.

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    petacularmente um pas, a China, dotado dum sistema autori-trio, ou que o crescimento estado-unidense dos ltimos dec-nios no parece que tivesse sequela alguma saudvel em termos de qualidade democrtica. Num sentido mais profundo, leg-timo afirmar que, ao provocar um inevitvel esgotamento de recursos, no longo prazo o crescimento alimenta um mecanis-mo muito agudo de quebra das regras de jogo da democracia4.

    Para alm do assinalado, o crescimento nos pases do Norte e amide tambm nos do Sul facilita o assentamento dum modo de vida escravo que faz pensar que quantas mais horas se trabalharem, mais dinheiro se ganhar e, especialmente, mais bens se consumirem, maior ser a felicidade. Retratemos a con-dio desse modo de vida escravo atravs duma anedota oni-presente na literatura que contesta as virtudes do crescimento. Numa pequena povoao da costa mexicana um norte-ameri-cano aproxima-se dum pescador que est prestes a dormir a sua sesta e pergunta-lhe: Por que no dedica mais tempo a pescar no mar?. O mexicano responde que o seu trabalho quotidiano lhe permite atender de maneira suficiente as necessidades da sua famlia. O norteamericano pergunta ento: Que faz o resto do tempo?. Acordo tarde, pesco um pouco, jogo com os meus filhos, durmo a sesta com a minha mulher, pela tarde combi-no com os meus amigos. Bebemos vinho e tocamos guitarra. Tenho uma vida plena. O norteamericano interrompe: Siga o meu conselho: dedique mais tempo pesca. Com os benefcios, poder comprar um barco mais grande e abrir a sua prpria f-brica. Trasladar-se- Cidade de Mxico, e depois a Nova Ior-que, onde dirigir os seus negcios. E depois?, pergunta o me-

    4 Ibidem, pgs. 42-43.

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    xicano. Depois a sua empresa cotar na Bolsa e ganhar muito dinheiro. E depois?, replica o pescador. Depois poder refor-mar-se, viver numa pequena vila da costa, acordar tarde, jogar com os seus filhos, pescar um bocado, dormir a sesta com a sua mulher e passar a tarde com os amigos, a beber vinho e a tocar guitarra5. Permita-se-nos agregar que, embora parea claro que o que retrata esta anedota, deixa sem cobrir um flanco importante, na medida em que no explica qual o nmero de horas que trabalhava a mulher do mexicano protagonista...

    Importa nomeadamente sublinhar as consequncias arra-sadoras desse modo de vida escravo. Em virtude dum excelso paradoxo, buscamos o trabalho ainda que saibamos que nos faz dano. Pela sem-razo de semelhante opo interessa-se Nicho-las Georgescu-Roegen: Devamos curar doutra doena que denominei a sndrome do barbeador. Queremos fazer a barba mais depressa e assim ter mais tempo para idear uma mquina de barbear ainda mais rpida, de maneira que possamos gastar mais tempo noutra ainda mais rpida6. a mesma armadilha a que se referiu no seu momento Alexis de Tocqueville: Se os seus assuntos privados lhe deixavam algo de cio, mergulhava instantaneamente no turbilho da poltica. E se no final dum ano de trabalho ininterrompido percebia que tinha uns dias de frias, a sua impaciente curiosidade fazia-o deambular pela vasta extenso dos Estados Unidos, e viajava mil e quinhentas milhas em poucos dias para se libertar da sua felicidade. Assim, a completa felicidade sempre escapava dele7.

    5 N. Ridoux, La dcroissance pour tous (Parangon/Vs, Lyon, 2006), pgs. 118-119.

    6 N. Georgescu-Roegen, Ensayos bioeconmicos (Catarata, Madrid, 2007), pg. 84.

    7 Cit. em ibidem.

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    Num sentido paralelo, enfim, Ernest Garca lembra uma cousa que Peter Kafka sugeriu: A crise ecolgica por cima de tudo um assunto de velocidade e globalizao. Um sistema devm insustentvel se (a) acelera em demasia e no tem tem-po de selecionar as adaptaes mais viveis e (b) se globaliza demasiado, isto , se se torna incapaz de fracassar nalgumas das suas partes enquanto sobrevive noutras, e joga tudo numa nica carta8. Jorge Riechmann tem assinalado, pela sua parte, que uma cultura ecolgica no pode ser seno uma cultura dos ritmos pausados, os tempos lentos9. Riechmann tem es-crito tambm que o domnio do tempo uma forma bsica de poder talvez a principal forma bsica de poder. Poder so-bre outros (compra-venda do tempo de trabalho); mas tambm poder sobre um prprio (autodomnio para governar o meu tempo vital conforme aos meus prprios desejos e interesses, numa poca em que a indstria de produo de contedos de conscincia se vangloria de manter as pessoas pasmadas face ao ecr tantas horas por dia)10.

    8 J. Riechmann, Gente que no quiere viajar a Marte (Catarata, Madrid, 2004), pg. 209.

    9 Ibidem, pg. 213.10 Ibidem, pg. 223.

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    Convm interessarmo-nos por um conceito prximo do de crescimento, o de desenvolvimento, aparentemente mais suave e benigno, menos impregnado, em suma, pelo quantitativo. verdade, para comear, que o do desenvolvimento serve para acantoar o vigor de termos duros como os que falam de acumu-lao de capital, explorao da fora de trabalho, imperialismo ou dominao planetria11, e para trasladar tambm a imagem de que aquilo do que falamos nada tem a ver com eles. Agre-guemos que estamos perante uma frmula que parece con-tentar a quase todos: ricos e pobres, patres e trabalhadores, o Norte e o Sul..., circunstncia que invita, claro, suspeita12.

    H palavras doces assevera Serge Latouche, pala-vras que so um blsamo para o corao e palavras que ferem. H palavras que comovem um povo e subvertem o mundo. E h palavras veneno, palavras que se infiltram no sangue como uma droga, pervertem o desejo e escurecem o juzo. Desenvol-vimento uma destas palavras txicas13. Para ocult-lo no servem de muito, alis, os intentos de matizar o significado do vocbulo que nos interessa atravs da agregao de adjetivos vrios: autocentrado, endgeno, participativo, comunitrio, in-tegrado, autntico, autnomo, popular, equitativo, duradouro. A isso haveria que unir o que significam termos como desenvol-vimento local, microdesenvolvimento, endodesenvolvimento, de-

    11 S. Latouche, Survivre au dveloppement (Mille et une nuits, Paris, 2004), pg. 30.12 Ibidem, pg. 67.13 Ibidem, pg. 29.

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    senvolvimento social, desenvolvimento humano...14 O problema principal do conceito de desenvolvimento que utilizamos que est claramente impregnado, nos fatos, de todos os traos pr-prios do crescimento. O desenvolvimento realmente existente, por diz-lo doutra maneira, aspira a transformar em mercado-ria as relaes entre os seres humanos e as que estes mantm com a natureza15. Trata-se, por conseguinte, duma empresa agressiva tanto com esta ltima como com os povos, na linha da colonizao do passado e da globalizao do presente16.

    A melhor demonstrao das misrias que acompanham o desenvolvimento a ladainha que obriga a vincular este com os adjetivos sustentvel e duradouro. A inanidade de tais adje-tivos revela-se, com um bocado de ironia, na necessidade de postular uma sustentabilidade sustentvel17. Na realidade, acontece algo parecido com o termo desenvolvimento local, que no consegue esconder que graas a ele, e em muitos casos, o local tem passado a responder obscenamente aos interesses dos poderes econmicos e financeiros18. Como assinala o citado Latouche, o de desenvolvimento insustentvel tinha ao menos a virtude de recordar que o processo devia terminar, por lgi-ca, nalgum momento, o qual no pode ser dito, pelo contrrio, do desenvolvimento sustentvel19. Latouche acompanhado nas crticas por James Lovelock, quem lembra que para o Interna-

    14 S. Latouche, Dcoloniser limaginaire (Parangon/Vs, Lyon, 2005), pgs. 13-14.15 Ibidem, pg. 12.16 Ibidem.17 Latouche, Le pari..., pg. 122.18 Latouche, Survivre..., pg. 45.19 Ibidem, pg. 68.

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    tional Geosphere Biosphere Program o desenvolvimento sus-tentvel um objetivo mvel: representa um contnuo esforo para equilibrar e integrar os alicerces do bem-estar social, a prosperidade econmica e a proteo ambiental em benefcio das geraes presentes e futuras. Lovelock apostila que, em-bora muitos considerem semelhante opo superior do lais-sez faire, afinal uma e outra compartem um horizonte comum: a probabilidade duma desastrosa mudana global20. Esperar que o desenvolvimento sustentvel ou a confiana nos negcios configurem polticas viveis igual que esperar que a vtima dum cancro de pulmo cure se deixa de fumar; ambas medidas negam a existncia duma enfermidade da Terra, assinala es-te autor21. O de desenvolvimento sustentvel tem um bom con-traponto dito seja pelo caminho na opinio do dirigente chins que citamos na apresentao, como o tem no critrio que defende desde h tempo a British Petroleum: o desenvolvi-mento duradouro por cima de tudo produzir mais energia, mais petrleo, mais gs, talvez mais carvo e energia nuclear, e, naturalmente, mais energias renovveis. preciso assegurar-se ao mesmo tempo de que isto no se faz em detrimento do meio ambiente22.

    Bernard Hours afirma que o desenvolvimento se apresen-ta como um notvel instrumento de neocolonizao em virtude duma dimenso pedaggica que reclama ajuda e assistncia23. As suas vtimas, alis, no costuman apreciar outro remdio

    20 J. Lovelock, The revenge of Gaia (Penguin, Harmondsworth, 2007), pgs. 3-4. 21 Ibidem, pg. 4.22 Ridoux, op. cit., pg. 123. 23 Cit. em Latouche, Survivre..., pg. 26.

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    para a sua desgraa que o que acarreta agravar a enfermida-de no seu intento de abandonar o subdesenvolvimento24. Frente a isto h muitas razes para concluir que convm questionar o capitalismo, o liberalismo, o socialismo irreal e os conceitos de desenvolvimento e crescimento. Como nos veremos obriga-dos a sublinhar vrias vezes, a ideia de que resolveremos os problemas atravs duma maior eficincia no uso dos recursos, sem reduzir o consumo e o crescimento, parece uma manifesta equivocao.

    24 Latouche, Dcoloniser..., pg. 20.

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    paradoxal que a economia, que sempre se tem definido co-mo uma disciplina interessada pelos recursos escassos, ignore sistematicamente aqueles recursos que so escassos por defi-nio: os da natureza25. O carter das percees da economia retrata-o perfeitamente Jean-Baptiste Say, um dos teorizadores do livre comrcio, quem no duvidou em afirmar que as ri-quezas naturais so inesgotveis porque, do contrrio, no as obteramos gratuitamente. Como no podem ser multiplicadas nem esgotadas, no so o objeto das cincias econmicas26. O resultado fica bem descrito nas palavras de Latouche, para quem, colonizada pela lgica financeira, a economia como um gigante desequilibrado que apenas consegue manter-se em p em virtude duma corrida perptua em que vai destroando tudo o que encontra ao seu passo27.

    O anterior teve consequncias muito graves no que diz res-peito ao discurso geral da disciplina. Se, por um lado, a econo-mia oficial tem adquirido o seu perfil atual sobre a base dum contnuo processo de supresso das questes fundamentais e, com ele, de reduo das perspetivas28, pelo outro essa mesma pseudocincia tem esquivado sempre qualquer crtica de con-ceitos como os de crescimento, desenvolvimento, competitivida-de e produtividade, ou como os de produo, riqueza, consu-

    25 P. Cacciari, Pensare la decrescita. Sostenibilit ed equit (Intra Moenia, Npo-les, 2006), pg. 27. 26 Cheynet, Le choc..., pg. 17.27 Latouche, Le pari..., pg. 40.28 F. Flahault, Le paradoxe de Robinson (Mille et une nuits, Paris, 2005), pg. 9.

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    mo e trabalho. Assim, convertida num fim, e no num meio, a economia tem-se afastado tambm de qualquer contestao da primazia dos valores que estima prprios e, como resultado, tem-nos obrigado a perfilar, como resposta, uma necessria des-economizao das nossas mentes29.

    No h melhor ilustrao de muitas destas misrias que a que oferecem os indicadores econmicos convencionais, fonte principal de profundos enganos sobre os quais se le-vantam tantos juzos no que diz respeito competncia, ou falta desta, dos governos. Um crescimento baixo soergue imediatamente no o esqueamos acusaes de incom-petncia dirigidas contra os governantes, como bem se pode comprovar, mais uma vez, ao abrigo da crise que atravessamos. E, porm, estamos obrigados a afirmar, com John Kenneth Galbraith, que o nvel, a composio e a extrema importncia do Produto Interno Bruto esto na origem duma das formas de mentira social mais espalhadas30. Os indicadores que nos interessam contabilizam como crescimento, e cumpre supor que tambm como bem-estar, tudo o que produo e des-pesa. Convm sublinhar que nesse todo se incluem as agres-ses ambientais e os procedimentos orientados a pr-lhes freio ou correo as agresses em questo geram riqueza, ento, por dous caminhos diferentes, os frmacos e as drogas que nos permitem fazer frente ao estresse da vida caraterstica das sociedades desenvolvidas, a despesa militar, os acidentes de trnsito no PIB contabilizam-se os misteres vinculados com veculos rebocados, reparaes, transfuses de sangue, mdicos

    29 Latouche, Dcoloniser..., pg. 11.30 Cit. em Latouche, Le pari..., pg. 67.

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    e advogados31 ou, por fechar aqui a lista, o prprio fabrico de cigarros.

    E, porm, esses mesmos indicadores econmicos pouco nos dizem de aspetos centrais para compreender o que acon-tece nas nossas sociedades. o caso, por exemplo, do trabalho domstico, conforme a um critrio amide impregnado de ma-chismo. Em palavras de Christine Delphy, se cultivar uma p-ra produo, prepar-la na cozinha tambm o 32. Maurizio Pallante sublinha que o cuidado amoroso de cativos -de crian-as- e velhos , sem que se contabilize nos clculos estatsticos, qualitativamente superior a qualquer cousa que possa fazer um trabalhador assalariado33. Nos fatos, colocar um cativo numa creche, numa guardaria, acrescenta o PIB, enquanto cuid-lo na casa, pelo contrrio, no tem esse efeito34. Em termos gerais despreza-se tanto no que atinge aos salrios como no que diz respeito ao cmputo estatstico pelos indicadores que nos atra-em o trabalho das mulheres, claramente vinculado, porm, com uma necessidade primria, como a sustentabilidade du-ma vida ameaada pelo capital. A deturpao parece tanto mais grave em etapas de crise, quando se acrescentam sensivelmente as exigncias que pesam sobre as mulheres no que se refere a essa sustentabilidade da vida.

    Mas o caso, tambm, da preservao do meio ambiente: um bosque convertido em papel incrementa o PIB, enquanto

    31 Derek Rasmussen, cit. em ibidem, pg. 71.32 Cit. em ibidem, pg. 84.33 Ibidem, pg. 108.34 H. Norbert-Hodge, De la dpendance mondiale linterdpendance locale, em VV.AA., Objectif dcroissance. Vers une socit harmonieuse (Silence, Lyon, 2003), pg. 86.

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    esse mesmo bosque indene, decisivo para garantir a vida no planeta, no computa como riqueza35. O PIB ignora o capital natural, de tal forma que muitos dos incrementos computados nesse ndice ocultam o consumo de recursos escassos que, pela sua parte, e nos fatos, esconde uma fonte futura de recesso36. As estatsticas que empregamos comumente interessam-se s pelos custos de extrao dos recursos naturais, e em modo ne-nhum pelos de reposio37. Segundo a Academia de Cincias chinesa, os custos ocultos do crescimento econmico vincula-dos com a poluio e a reduo dos recursos naturais obriga-riam a reduzir de 8,7 a 6,5% o incremento anual registrado no PIB do pas entre 1985 e 200038. As magnitudes macroeconmi-cas convencionais interessam-se raramente, noutro terreno, pe-la qualidade dos nossos sistemas educativo e sanitrio, e em ge-ral pelas atividades que acrescentam o bem-estar ainda que no acarretem produo e gasto. No preocupa o incremento do lazer do tempo livre, um valor completamente esquecido nos indicadores convencionais. Para rematar, a maioria desses ndices parece supor que a distribuio da renda equitativa, de tal maneira que, em virtude dum gigantesco equvoco, se considera que o PIB por cabea um termmetro decisivo para avaliar os nveis de vida e de salrio.

    Intentemos traduzir pedagogicamente isto atravs dum par de exemplos. Eis o primeiro deles: se um pas retribui 10% dos

    35 Ibidem.36 J. Martin, The meaning ot the 21st century. A vital blueprint for ensuring our future (Eden Project, Londres, 2007), pg. 61.37 J.M. Naredo, Races econmicas del deterioro ecolgico y social (Siglo XXI, Ma-drid, 2006), pg. 67.38 Latouche, Le pari..., pg. 58.

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    seus habitantes por destruir bens, fazer buracos nas estradas e estragar os veculos, e outro 10% por reparar esses bens, estra-das e veculos, ter o mesmo PIB que um pas no qual 20% dos empregos se aplica a melhorar a esperana de vida, a sade, a educao e o cio39. Enunciemos o segundo, que nos lembra a presena, consistente entre ns, de vcios do progresso que se transformam em aparentes fontes de bem-estar: quando um tero da populao norteamericana padece obesidade, signi-ficativo que se trabalhe antes na perspetiva de encontrar o gene correspondente que na de procurar um regime alimentar mais adequado40. A obesidade causa, porm, umas 300.000 mortes anuais nos Estados Unidos. E gerou em 1999 despesas mdi-cas por valor de 117.000 milhes de dlares41, que acrescentam sensivelmente, claro, o PIB. O consumo de tabaco provoca no planeta, pela sua parte, cinco milhes de mortes anuais. S nos Estados Unidos obriga o sistema sanitrio a investir 150.000 milhes de dlares por ano, uma vez e meia as receitas obtidas pelas cinco maiores empresas do setor do tabaco42.

    No pode surpreender que, as cousas como esto, prolife-rem os instrumentos de medio alternativos, que contabilizam os aspetos esquecidos pelos indicadores oficiais e corrigem baixa as medies destes ltimos. No s isso: chegado o mo-mento pem em questo o prprio ndice de Desenvolvimento

    39 Ibidem, pg. 78.40 B. Clmentin e V. Cheynet, La dcroissance soutenable. Vers une conomie saine, em VV.AA., Objectif dcroissance..., pg. 15.41 A. Elizalde, Las adicciones civilizatorias: consumo y emerga. Caminos ha-cia la felicidad?, em Dnde estn los limites nuestras necesidades?, monogrfi-co de Papeles de relaciones ecosociales y cambio global (n102, 2008), pg. 49.42 Ibidem, pgs. 48-49.

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    Humano proposto pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que no entra de fato em confron-tao com o imaginrio econmico ocidental43. Um exemplo de ndice alternativo o de Bem-estar Duradouro de Cobb e Daly depois conhecido como de Cobb e Cobb, que se baseia no seguinte, e no precisamente simples, clculo: con-sumo de mercadorias pela famlia, mais servios de trabalho domstico, mais despesa pblica no militar, menos despesa privada em defesa, menos custo da degradao do meio am-biente, menos depreciao do capital natural, mais formao de capital produtivo (o cio e o capital humano no so, certo, considerados)44. Pela sua parte, o ndice de Progresso Genuno ou ndice de Bem-estar Econmico Sustentvel recolhe vinte aspetos ignorados pelos instrumentos de medio estabeleci-dos e parte da certeza de que carece de sentido medir o bem-estar sobre a base, exclusivamente, duma considerao dos bens e servios produzidos em virtude da lgica do mercado45. A esse respeito, interessa-se pelo trabalho realizado no lar e no mbito social, calcula os custos do desemprego no includos nas contabilidades nacionais, desconta as despesas vinculadas com a defesa e considera o esgotamento dos recursos naturais e a deteriorao do meio ambiente46.

    Obrigado parece extrair alguma concluso de tudo o que anotamos at agora. Digamos ao respeito que, como o assinala

    43 Latouche, Survivre..., pg. 42.44 Latouche, Le pari..., pg. 78.45 C. Hamilton, El fetiche del crecimiento (Laetoli, Pamplona, 2006), pg. 72 e ss.46 Veja-se Colectivo IO, Propuesta para un sistema de indicadores, em Bar-metro social de Espaa. Anlisis del periodo 1994-2006 (CIP/Traficantes de sueos, Madrid, 2008), pgs. 23-40.

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    Franois Flahault, a cincia econmica dominante apenas tem em ateno as mercadorias o que se tem ou no se tem, e no os bens que fazem com que algum seja algo47. No se tra-ta de negar que os bens materiais sejam importantes: trata-se de coloc-los num cenrio mais geral e de outorgar-lhes o seu justo relevo num quadro em que as ideias reitoras da moder-nidade todas elas, ao que parece, fora de discusso so mais, maior, mais depressa, mais longe48.

    47 Latouche, Le pari..., pg. 86.48 M. Linz, Sobre suficiencia y vida buena, em M. Linz, J. Riechmann e J. Sem-pere, Vivir (bien) con menos (Icaria, Barcelona, 2007), pgs. 5-18.

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    Uma tarefa cada vez mais urgente entre ns a que se prope dar cabo da obsesso, que nos atenaza, pelas grandes cifras e pela quantificao. Sem maior vontade de teorizar ao respeito, recolhamos alguns exemplos que ilustram parece os limi-tes das primeiras e da segunda.

    Comearemos resgatando uma reflexo que protagonizou, talvez trs decnios atrs, Vassily Leontieff, prmio Nobel de Economia. Leontieff comparou ento os sistemas de transpor-te dos Estados Unidos e da China. Clarifiquemos que neste caso poderamos perfeitamente substituir o nome da China a comparao no era entre grandes sistemas econmicos pelo de Birmnia ou o de Tailndia, sem que por isso o argu-mento de fundo mudasse na sua essncia. Os Estados Unidos razoava Leontieff tm numa primeira leitura o sistema de transporte mais desenvolvido do mundo. Contam com o maior nmero de quilmetros de autoestradas, dispem do maior nmero de carros e consomem o maior nmero de litros de gasolina por habitante. Quando chega o momento de analisar, porm, como se satisfazem as necessidades quotidianas da po-pulao, imediatamente se descobre que o cidado mdio vive a uma hora, de carro, do seu centro de trabalho, tem de utilizar obrigatoriamente o automvel e v-se imerso em gigantescos engarrafamentos que danam os seus nervos e poluem o meio ambiente, para finalmente, e amide, chegar tarde a trabalhar. Na China, pelo contrrio, os dados estatsticos reflectem fala-mos de trinta anos atrs o que nos fatos a ausncia material dum sistema de transporte: no h autoestradas, no h auto-mveis, consome-se pouca gasolina... E, porm, e dado que o chins mdio mora a cinco minutos de bicicleta do seu posto

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    de trabalho, no se v imerso em nenhum tipo de engarrafa-mento e no polui, para no final chegar em hora a trabalhar, h que perguntar-se qual desses dous sistemas, o estado-unidense ou o chins, satisfaz de maneira mais completa as necessidades. Ainda que Leontieff agregava, claro, que no desejava ignorar que era mais que possvel que o chins mdio no ingerisse as calorias necessrias para viver de maneira solvente, pergunta-va-se se, por consequncia das anlises econmicas convencio-nais, no estvamos um pouco perdidos na medida em que no nos interrogvamos pelo mais importante: a satisfao objetiva das necessidades humanas.

    Procuremos um segundo exemplo, que fala de realidades contemporneas. Cuba, que apostou com clareza na preveno e na proximidade dos mdicos no especializados, dedicava em 2006 Saude um nmero de dlares por habitante muito menor do que se fazia valer nos Estados Unidos: 236 frente a 5.27449. Porm, obtinha resultados similares aos norteamerica-nos no relativo a esperana de vida e mortalidade infantil. No s isso: apesar da enorme diferena que, em termos quantita-tivos, separava o gasto sanitrio cubano do norteamericano, Cuba ocupava o posto 36 na lista de pases cujo sistema de sade rendia maiores servios populao, enquanto os Esta-dos Unidos estavam no posto 72. Para explicar o anterior h que invocar tambm, certo, o regime alimentar dos cubanos com primazia de frutas e legumes, e escasso consumo de car-ne e o fato de estes se verem obrigados a realizar frequentes deslocamentos a p. A pobreza e a escassez podem ter no o esqueamos alguns efeitos saudveis.

    49 Ridoux, op. cit., pgs. 65-66.

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    No est de mais que agreguemos um terceiro exemplo que guarda relao, novamente, com uma questo to complexa co-mo parece a determinao do que a pobreza e, com ela, a do que so as necessidades. Jos Manuel Naredo retrata-a com clareza: Como denunciou com solvncia Sahlins na sua Eco-nomia da idade da pedra, tendo atribudo ao caador as moti-vaes burguesas e tendo-lhe proporcionado os instrumentos paleolticos, decretamos antecipadamente que a sua situao desesperada... (Mas se tomarmos conta de que) a escassez no uma propriedade intrnseca dos meios tcnicos (nem mone-trios) mas sim da relao entre meios e fins, e consideramos sociedade da abundncia aquela em que se satisfazem com clareza as necessidades sentidas pela gente, a documentao achegada induz a concluir que as sociedades primitivas estuda-das por este autor estavam mais perto da abundncia do que as do capitalismo maduro de hoje50. Num sentido paralelo, Clive Hamilton lembra que, em contra do previsto pelos primeiros economistas, no aproveitamos a oportunidade concedida pela abundncia para dirigir o centro de ateno das nossas vidas para cousas distintas do dinheiro e os bens materiais. No fo-mos capazes de aprender a viver com a nossa prosperidade51.

    50 J.M. Naredo, Necesidad y pobreza: reflexiones conceptuales y algunas caute-las estadsticas, em Dnde estn los lmites..., pgs. 40-41.51 Hamilton, op. cit., pg. 11.

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    Nada novo se afirma quando se sublinha a primazia radical que o consumo tem na articulao das sociedades opulentas. Consumimos tanto que o que consumimos as mais das vezes carece de relevo, no sem paradoxo, aos nossos olhos. Num sentido paralelo, a promessa de satisfazer os nossos desejos em grau extremo s tem sentido se esses desejos no so, parado-xalmente, satisfeitos52.

    Desde a infncia dos seus membros, as nossas sociedades organizam-se ao redor do consumo. Em palavras de Daniel Thomas Cook, um dos pontos fulcrais da formao das pes-soas e dos valores morais na vida contempornea consiste na familiarizao dos cativos das crianas com os materiais, meios de comunicao, imagens e significados relacionados com o mundo do comrcio53. A sociedade de consumido-res, agrega Zygmunt Bauman, tende a romper os grupos, a faz-los frgeis e divisveis, e favorece pelo contrrio a rpida formao da multido, como tambm a sua rpida desagrega-o. O consumo uma ao solitria por definio (talvez seja, incluso, o arqutipo da solido), e isso tambm no caso de se desenvolver em companhia54. O resultado final o consumo o que d sentido s nossas vidas fica bem retratado atravs duma afirmao compro, logo existo com a que o prprio Bauman lembra Descartes55.

    52 Z. Bauman, Vida de consumo (Fondo de Cultura, Madrid, 2007), pg. 70.53 Cit. em ibidem, pg. 80.54 Ibidem, pg. 109.55 Ibidem, pg. 32.

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    Na realidade, o fenmeno mais intenso. Paul Aris su-gere, assim, que no hiperconsumo o consumidor compra o direito a pagar por existir, de tal forma que ao de compro, lo-go existo deve agregar-se agora o de gasto, logo existo56. im-portante sublinhar, enfim, que o que h por trs de todos estes processos mentais, e de todas estas condutas, no uma ques-to menor. Mary Douglas tem-nos lembrado que enquanto no conheamos as razes pelas quais a gente necessita luxos, no estaremos tratando os problemas da desigualdade de ma-neira sria57. Isso parece tanto mais certo quanto que a lgi-ca dos sistemas que padecemos procura fechar drasticamente qualquer outro horizonte. Hamilton teve o acerto de salientar, neste sentido, que a retrica do neoliberalismo nos diz que a nica possibilidade autntica de satisfazer as nossas necessi-dades consiste em reduzir os impostos e devolver o dinheiro aos consumidores particulares58. O prprio Hamilton sublinha que, depois de termos explicado durante dcadas que seremos livres se permitirmos que o mercado faa o que antes faziam os governos, agora os neoliberais nos dizem que no podemos nos libertar dos ditados do mercado59.

    Frente a isto, h razes sobradas para afirmar que, da mes-ma maneira que devemos acabar com o trabalho assalariado, temos de fazer outro tanto com o consumo: no suficiente, ento, com defender um consumo diferente e responsvel, um

    56 P. Aris, Le msusage. Essai sur lhypercapitalisme (Parangon/Vs, Lyon, 2007), pg. 6.57 Cit. em Bauman, op. cit., pg. 47.58 Hamilton, op. cit., pg. 12.59 Ibidem, pg. 13.

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    alterconsumo, seno que preciso devir no-consumidores de-pois da greve geral do consumo que reivindica Aris60. As-sim, visto que no h no planeta lugar para sete mil milhes de consumidores, a nossa primeira obrigao consiste em redu-zir sensivelmente as nossas iluses a esse respeito, tanto mais quanto que o Norte rico consome 10 vezes mais energia do que o Sul, 14 vezes mais papel, 18 vezes mais produtos qumicos, 10 vezes mais madeira, 6 vezes mais carne, 3 vezes mais peixe, ci-mento e gua doce, 19 vezes mais alumnio e 13 vezes mais ferro e ao61. E cumpre agregar que as cousas esto a deteriorar-se. O prprio Aris tem recordado com tino que os arrabaldes das grandes cidades francesas no so em modo algum a encena-o da marginalidade mas antes pelo contrrio o modelo prin-cipal para o futuro. Neles experimentam-se a junkproduction, a produo apodrecida, e o msusage, o mau uso: no h uma autntica cidade, comem-se alimentos e vestem-se roupas que no so tais, assiste-se a escolas muito deficientes num cenrio, o do hiperconsumo, definido pelo desfrute sem desejo62.

    60 P. Aris, No conso. Manifeste pour la grve gnrale de la consommation (Golias, Villeurbanne, 2006), pgs. 11-12.61 Ibidem, pgs. 17-18.62 Ibidem, pg. 27.

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    Muitas das aberraes invocadas so reveladas numa concluso que retrata pedagogicamente Edward Barnays: As pessoas no necessitam o que desejam e no desejam o que necessitam63. Para explicar semelhante sem-razo, Latouche sublinha o re-levo de trs processos decisivos para compreender as misrias das nossas sociedades64. O primeiro no outro que a publici-dade, que gera, claro, um desejo de consumir difcil de frear. Cada dia padecemos a influncia de trs mil mensagens publi-citrias num lugar onde, se for verdade que os grandes meios de comunicao esto vinculados com interesses empresariais muito evidentes, afinal no s se trata disso: o fato de que em boa medida vivam da publicidade que difundem outorga-lhes uma dimenso negativa adicional. Em virtude duma mxima que em algo lembra a que acabamos de atribuir a Barnays, Latouche afirma que a publicidade faz com que desejemos o que no temos e que desprezemos aquilo do que j desfruta-mos, atravs duma insatisfao permanente e da tenso do desejo frustrado. A respeito disto, o prprio Latouche resgata o resultado dum inqurito realizado nos Estados Unidos entre responsveis de grandes empresas65. Esse inqurito permite concluir que 90% deles reconhece que seria impossvel vender um novo produto sem desenvolver em paralelo uma campanha publicitria, 85% declara que a publicidade permite frequente-

    63 Cit. em Aris, Le msusage..., pg. 85.64 S. Latouche, Petit trait de la dcroissance sereine (Mille et une nuits, Paris, 2007), pg. 33 e ss.65 Ibidem, pg. 34.

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    mente as pessoas comprarem bens que no necessitam e 51% afirma que essas mesmas pessoas se veem obrigadas a adquirir cousas que realmente no desejam.

    No esqueamos, em paralelo, que no planeta contempor-neo a despesa em publicidade s se v superada pelo dispndio em defesa. Nesta ordem de cousas obrigado concluir que so-mos vtimas de inteligentes e eficientes polticas de persuaso. Em palavras de Bauman, para alm de tratar-se duma eco-nomia do excesso e dos resduos, o consumismo tambm, justamente por essa razo, uma economia do engano. Aposta na irracionalidade dos consumidores, e no nas suas decises bem informadas adotadas racionalmente: aposta em despertar a emoo consumista, e no em cultivar a razo66. Estas ataduras terminam, de resto, com a superstio de que o trnsito desde uma sociedade de produtores a outra de consumidores acarre-tou uma emancipao gradual dos indivduos e permitiu pas-sar dum cenrio de restries e ausncia de liberdade para um outro de autonomia individual e autodomnio. Em lugar disto, e como j avanamos, o que se abriu caminho a conquista, anexao e colonizao da vida por parte dos mercados67.

    O segundo dos alicerces que Latouche identifica tem sido durante muito tempo o sistema creditcio, que achega o dinhei-ro que permite ao consumo ser uma realidade, e isso tanto no caso daqueles com rendimentos no suficientes como no dos empresrios que carecem dos recursos necessrios para inves-tir. O terceiro e ltimo desses alicerces , enfim, a caducidade programada, que obriga a substituir rapidamente muitos bens.

    66 Bauman, op. cit., pg. 72.67 Ibidem, pgs. 88-89.

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    Nicholas Georgescu-Roegen tem recordado a respeito disto que se a gente se curasse a si mesma do desejo de mudar o estilo de roupa cada estao, de carro cada ano e de mobilirio das suas casas cada dois, os fabricantes estariam na obrigao de considerar as consequncias e substituir a caducidade plani-ficada pela durabilidade e a reparabilidade68. Se a aposta numa rpida caducidade dos produtos lgica no quadro do capita-lismo que padecemos, no o parece pelo contrrio se avaliar-mos fa-lo-emos mais adiante aspetos vitais como so os limites de recursos do planeta e a qualidade de vida69.

    Por trs de muitos dos conceitos e prticas que acabam de interessar-nos esto, naturalmente, o esbanjamento o des-pilfarro e a gerao, espetacular e incontrolada, de resduos. Uma sociedade de consumo, diz Bauman, s pode ser uma so-ciedade de excesso e prodigalidade e, alm disso, de redundn-cia e esbanjamento70. Lembre-se que em Itlia 15% da carne e 10% do po e da pasta acabam no lixo, com um total de 5 mi-lhes de toneladas anuais de po desperdiadas, e 1,5 milhes de pasta. Nos Estados Unidos deixam-se no lixo 23 milhes de computadores cada ano71, ao tempo que no conjunto do plane-ta, e nesse mesmo perodo, se pem de lado, e se trasladam ao Terceiro Mundo, 150 milhes de computadores. No decnio de 1970 produziam-se na Frana 10 milhes de toneladas anuais de resduos: em 2000 a cifra era j de 28 milhes. Se em 1975 os franceses deitavam ao lixo 217 quilogramas anuais de resduos,

    68 Georgescu-Roegen, op. cit., pg. 83.69 Aris, Le msusage..., pg. 66. 70 Bauman, op. cit., pg. 121.71 Latouche, Le pari..., pg. 217.

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    em 2004 eram 550 (delas 40 de prospetos publicitrios)72. Em geral, o Norte desenvolvido, que importa quantidades muito importantes de produtos dos pases do Sul, acaba por produzir quantidades formidveis de resduos e no se trata apenas de que no sejam reciclados: intenta-se rexport-los para o Sul em virtude do critrio que reza not in my backyard, no no meu ptio (NIMBY)73.

    A lgica do capitalismo anula qualquer possibilidade crvel de enfrentar em termos racionais todos estes problemas. Diga-mo-lo com as palavras, sempre clarificadoras, de Andr Gorz: O imperativo econmico do rendimento fundamentalmente diferente do imperativo ecolgico da poupana, do aforro. A racionalidade ecolgica consiste em satisfazer da melhor ma-neira as necessidades materiais com a menor quantidade pos-svel de bens (...); por consequncia, com um mnimo de traba-lho, de capital e de recursos naturais. Pelo contrrio, a procura do mximo rendimento econmico consiste em vender com o benefcio mais alto possvel e um mximo de produo realiza-da com o mximo de eficincia, o que exige uma maximizao de consumos e necessidades74.

    72 Ibidem, pg. 228.73 Naredo, Races econmicas..., pgs. 62-63.74 Cit. em Cacciari, op. cit., pg. 15.

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    Se falarmos do consumo devemos falar tambm doutra fonte de problemas e alienaes: o trabalho. Hora esta de recordar que cada vez se trabalha mais: desde princpios da dcada de 1980 tem-se invertido uma tendncia histrica para a reduo do tempo correspondente75. Segundo um estudo recente, em Alemanha 51% das pessoas trabalhava em 2007 s tardes, s noites ou durante o fim de semana, frente a 38% que trabalhava assim em 1994; por outra parte, 28% de quem trabalha dedica a esta tarefa, de forma regular ou espordica, os dias feriados76. Tudo isso contrasta poderosamente com aquilo que parece aconteceu h sculos: no falta quem sugira que, apesar das aparncias, no passado se trabalhava menos. Marshall Sahlins, por exemplo, tem assinalado que na idade da pedra o trabalho ocupava trs ou quatro horas dirias, enquanto Gorz tem sa-lientado que a princpios do sculo xviii reclamava umas vinte horas semanais77.

    verdade, mesmo assim, que a conscincia no relativo s consequncias do hipertrabalho comea a manifestar-se, en-tre ns, de diversas formas. Na Europa comunitria mais da metade das pessoas que trabalham a tempo parcial optaram conscientemente por essa possibilidade. 54% dos vares e 42% das mulheres que trabalham declara que preferia dedicar ao

    75 Hamilton, op. cit., pgs. 166-167.76 S. Gaschke, Travailler le week-end? Danger!, artigo publicado em Die Zeit (Hamburgo) e reproduzido em Le courrier international (n896, 2-9 de janeiro de 2008).77 Latouche, Petit trait..., pg. 120.

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    trabalho menos horas78. O decrescimento que defenderemos umas pginas mais adiante deve reduzir por lgica a oferta de empregos na economia competitiva, como deve impulsar a ne-cessidade de redistribuir aqueles algo pelo qual lutavam anti-gamente os sindicatos e trabalhar menos horas. Em paralelo havero de aumentar sublinharmo-lo-emos quando corres-ponder as atividades vinculadas com as economias domsti-cas, com a educao e com o trabalho voluntrio79. No est de mais lembrar que, se empregssemos menos energia e menos matrias primas, estaramos na obrigao de trabalhar menos e viveramos, ento, melhor. Faramos menos dano e poupa-ramos milhes de horas de trabalho que hoje utilizamos para remediar esses danos80.

    Convm agregar, neste mbito de cousas, uma observao importante. Se durante muito tempo criticamos, carregados de razo, o trabalho assalariado e as suas misrias, hora esta de considerar seriamente a necessidade de criticar tambm o trabalho per se. Resgatemos ao respeito o diagnstico de Paul Lafargue, o genro de Marx: Uma estranha loucura possui as classes operrias das naes em que reina a civilizao capi-talista. Essa locura produz misrias individuais e sociais que, depois de dous sculos, torturam a triste humanidade. Essa lo-cura o amor pelo trabalho, a paixo moribunda pelo trabalho, levada at o esgotamento das foras vitais do indivduo e da sua

    78 Hamilton, op, cit., pg. 168.79 Ibidem, pg. 232.80 B. Grillo, Prefazione, em M. Pallante (dir.), Un programma politico per la decrescita (Per la decrescita felice, Roma, 2008), pg. 7.

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    progenitura81. Como o assinala Joaqun Valdivielso, e no mes-mo sentido, na obra de Andr Gorz h uma nfase maior na libertao alm do trabalho que na humanizao dentro des-te82. No falta peso, alis, a esta tradio de pensamento, como o salienta Ivn de la Nuez: Podemos acompanhar Paul Lafargue, por exemplo, e tratar de compreender em que ponto possvel inscrever, nos nossos dias, a sua reivindicao da preguia. Ou a Bertrand Russell e a sua alternativa ao capitalismo em termos relativamente semelhantes, com o concurso da reivindicao da ociosidade. Ou a Slavoj Zizek e a sua persistncia crtica frente ao capitalismo desde uma esquerda poscomunista que reivindica as metstases do gozo e rejeita comungar com qual-quer forma de Gulag como mal menor do socialismo83.

    Em qualquer caso, e segundo a frmula que abraa o men-cionado Gorz, trata-se de obrigar ao capital (...) a pr a pou-pana em tempo de trabalho livre disposio duma sociedade na qual deixem de predominar as atividades submetidas ra-cionalidade econmica84. Parece lgico afirmar que a reduo do relevo do trabalho assalariado se traduzir numa reduo, tambm, da preocupao pelo consumo, com o qual parte do tempo liberado da compulso por trabalhar e consumir se po-deria dedicar educao e melhora pessoal85.

    81 P. Lafargue, Le droit la paresse (Allia, Paris, 2008), pg. 11.82 Valdivielso, Introduccin a A. Gorz, op. cit., pg. 29.83 I. de la Nuez, Fantasa roja (Debate, Madrid, 2006), pgs. 127-128. 84 Cit. em Hamilton, op. cit., pg. 179.85 Ibidem, pg. 221.

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    Temos a obrigao de perguntar-nos se tantos progressos co-mo os que acumulamos nos ltimos decnios fizeram de ns, habitantes do Norte desenvolvido, pessoas mais felizes do que aquelas que viveram no passado. Assim, e por resgatar alguns exemplos, o fato de em Frana o PIB real ter crescido doze vezes entre 1900 e 2000, significa que a sua cidadania vive doze vezes melhor?86. Neste mesmo sentido, quando em 1998, e num in-qurito, se perguntou cidadania no Canad se a situao eco-nmica da sua gerao era melhor que a prpria dos seus pais e mes, menos da metade das pessoas interrogadas 44% estimou que era assim, e isso que o PIB por cabea crescera 60% no quarto de sculo anterior87. A concluses similares in-vita a chegar algum estudo realizado nos Estados Unidos, onde, apesar de a renda por cabea ter-se triplicado desde o final da segunda guerra mundial, desde 1960 est a reduzir-se a per-centagem da cidadania que declara sentir-se satisfeita88. Outro estudo desenvolvido nos Estados Unidos conclui que em 2005 49% da populao norteamericana estimava que a felicidade es-tava em retrocesso, frente a 26% que considerava o contrrio89. Significativo parece, enfim, que o Japo, um dos pases mais desenvolvidos do mundo, seja tambm o que mostre a maior taxa de suicdios90.

    86 Latouche, Le pari..., pg. 72.87 Ibidem, pg. 80.88 Ibidem, pg. 81.89 Ibidem.90 Ridoux, op. cit., pg. 37.

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    Na realidade, o anterior convm relacion-lo com outro fato: o crescimento no costuma traduzir-se numa reduo da desigualdade. Enquanto a renda por cabea de Austrlia se multiplicou por dous entre 1950 e 1995, no decnio de 1980 fez-se evidente que o nmero de pobres crescera 70% e que a taxa de desemprego se acrescentara duas vezes91. Ainda que tambm deve sublinhar-se, com Hamilton, que os ricos no so em nenhum pas mais felizes do que as pessoas com rendimen-tos mdios, e a gente no devm mais feliz a medida que se enriquece92, e isso embora seja verdade que uma renda mais alta tem, naturalmente, a sua importncia no caso dos grupos mais desfavorecidos da populao. O que parece que o cres-cimento constitui uma espcie de armadilha que permite gerar a iluso de que ao seu abrigo se reduzir a desigualdade. A algo semelhante se referia Henry Wallich, um antigo responsvel da Reserva Federal estado-unidense, quando dizia: O cresci-mento um substituto da desigualdade de rendas. Enquanto h crescimento h esperana, e isto converte em tolerveis as grandes diferenas de renda93.

    Philippe Saint-Marc, pela sua parte, convida-nos a imagi-nar uma Frana onde existissem apenas 200.000 desempre-gados, onde a criminalidade presentasse nveis cinco vezes inferiores aos de hoje, onde as hospitalizaes por doenas mentais se reduzissem a uma terceira parte, onde os suicdios

    91 T. Trainer, Our unsustainable society, em M.N. Dobkowski e I. Wallimann (dirs.), The coming age of scarcity (Syracuse University, Nova Iorque, 1998), pg. 93. 92 Hamilton, op. cit., pg. 52.93 Cit. em G. Monbiot, Seule une bonne rcession nous sauverait, artigo pub-licado em The Guardian (Londres) e reproduzido em Le courrier international (n896, 2-9 de janeiro de 2008).

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    recuassem 50% e onde se no consumissem drogas: essa era, porm afirma com contundncia este autor a Frana do decnio de 1960...94 Num argumento de carter similar, Nicolas Ridoux refere-se vida quotidiana dum neno, duma criana, de oito anos em 1953: Vm-se poucos veculos e a rua pertence aos cativos que jogam. Ainda no h televiso, mas a convivn-cia durante o lazer maior, com relaes para o exterior e em grupo (frente s trs horas e meia que se dedicam hoje cada dia a contemplar a caixa boba); Ridoux agrega que, ao tempo, havia muitas tendas, muitas lojas, e o desemprego era quase inexistente95. Sobre o argumento volta outro autor, Mark Lynas, quem a respeito nos diz o que segue: Todos os dados indicam que as pessoas que no guiam, no viajam de avio, fazem as compras no seu bairro, plantam os seus prprios alimentos e interatuam com outros membros da sua comunidade tm uma qualidade de vida muito maior do que a dos seus compatriotas que ainda teimam em fazer o supremo sacrifcio de desperdiar as suas vidas para trasladar-se de carro ao trabalho96. Quan-do dizemos que nos pases ricos deveria reduzir-se metade o consumo de energia, parece como se estivssemos a reivindicar a restaurao de formas de vida e economia muito afastadas no tempo. No assim: o consumo derivado no seria o prprio do imprio romano ou da idade mdia, mas sim o caraterstico do decnio de 1960...97

    94 Latouche, Le pari..., pg. 98.95 Ridoux, op. cit., pg. 11. 96 M. Lynas, Seis graus. O nosso futuro num planeta em aquecimento (Civilizao, Oporto, 2007), pg. 253. 97 Y. Paccalet, Sortie de secours (Arthaud, Paris, 2007), pgs. 112-113.

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    evidente que com o passar dos anos prescindimos duma perceo que talvez assentasse nessa idade mdia de que fala-mos h um momento, e que invitava a afirmar que o ar da ci-dade liberta (Stadtluft macht frei), na medida em que oferecia oportunidades inditas aos servos do campo, aos comerciantes e aos artesos. Hoje, pelo contrrio, as cidades costumam ser lugares marcados pela excluso, a inabitabilidade, o vazio das relaes e a falta de sociabilidade98. Em paralelo, resistir com dous dlares numa das megalpoles contemporneas mui-to mais difcil que resistir num meio rural onde ficam vivas relaes humanas muito slidas, e no qual, em virtude da au-toproduo agrcola, amide est garantido o acesso aos bens comuns margem das regras do mercado99.

    Frente aos prognsticos que nos invadiram durante dec-nios, hora de considerar seriamente a perspetiva de a durao mdia da vida humana comear a descer como consequncia das poluies qumica, atmosfrica, radiativa e eletromagnti-ca, duma alimentao desequilibrada e sobreabundante, e du-ma forma de vida cada vez mais sedentria100. Determinadas circunstncias poderiam rematar com o crescimento constan-te na esperana de vida. Entre elas contam-se, com certeza, a extenso da obesidade, a do tabaquismo, a dos cancros vincu-lados com a poluio e a do estresse crnico101.

    98 Cacciari, op. cit., pg. 13. 99 Ibidem, pg. 60.100 H. Kempf, Comment les riches dtruisent la plante (Seuil, Paris, 2007), pg. 24. 101 Ridoux, op. cit., pg. 47.

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    Temos de fazer esforos para nos libertarmos da razo produ-tivista que tem impregnado tanto o capitalismo como o socia-lismo irreal que pelo contrrio uma frmula de capitalismo burocrtico manifesto nos sistemas de tipo sovitico. A ideia de progresso, vinculada com a produo e o crescimento, est no ncleo do capitalismo. Para este, e em palavras de Hamilton, o mundo evoluciona para um futuro melhor e mais prspe-ro e o motor desse progresso o crescimento econmico102. importante assinalar que no estamos perante um elemen-to marginal e alheio vida social, mas sim perante realidades profundamente instaladas na nossa forma de agir e perceber os fatos. Como bem o tem salientado Bernard Guibert, amide acontece que os altermundialistas denunciam o modo de pro-duo capitalista como se fosse exterior sociedade, quando de fato somos ns mesmos os que consentimos a sua dominao e geramos o benefcio. Temos a economia que merecemos. A ba-se da economia atual est na nossa cabea, no nosso imaginrio colonizado pelo modo de produo capitalista. H que assumir um trabalho de libertao das mentalidades e do imaginrio103.

    Umas linhas antes sublinhamos que tanto o capitalismo como o socialismo irreal abraaram uma mstica da produo e, com ela, uma mstica da explorao dos recursos naturais. No parece fora de lugar lembrar a triste deriva que seguiu o

    102 Hamilton, op. cit., pg. 113.103 B. Guibert, Quelle politique conomique pour laltermondialisme?, em B. Guibert e S. Latouche (dirs.), Antiproductivisme, altermondialisme, dcroissance (Parangon/Vs, Lyon, 2006), pg. 105.

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    lema leniniano, que identificava o socialismo com uma sntese entre o poder sovitico e a eletrificao de todo o pas: com o poder sovitico materialmente anulado em proveito duma maquinria hierrquica e autoritria que teimava em identifi-car o socialismo com o desenvolvimento das foras produtivas, verificado alm disso num s pas, era difcil que os fatos dis-corressem por um caminho diferente. Hoje sabemos, alis, que um eventual triunfo dos sistemas do socialismo irreal nos teria situado, noutras palavras, perante problemas similares aos que neste momento, e no mbito ecolgico, devemos enfrentar.

    Hora de sublinhar que muitos dos conceitos emprega-dos por Marx em modo nenhum a nossa inteno culpar este, de qualquer modo, da infinidade de aberraes que se revelaram nos sistemas de tipo sovitico nada tm de hete-rodoxos com respeito ao cnone judeu-cristo e sua perce-o de a natureza ser propriedade do ser humano104. Cornelius Castoriadis teve a vontade de lembrar que Marx participa de forma integral do imaginrio capitalista: para ele, como para a ideologia dominante na sua poca, tudo depende do cresci-mento das foras produtivas. Quando a produo alcanar um nvel suficientemente elevado, poder falar-se duma sociedade verdadeiramente livre, verdadeiramente igual... No se encon-tra em Marx nenhuma crtica da tcnica capitalista, na forma de tcnica da produo ou na de tipo e natureza dos produtos fabricados. Para ele a tcnica capitalista e os seus produtos fa-zem parte integrante do processo de desenvolvimento humano. Alis, Marx no critica a organizao do trabalho na fbrica.

    104 T. Monod, Et si laventure humaine devait chouer (Grasset, Paris, 2002), pgs. 131-132.

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    Ainda que critique alguns aspetos excessivos, essa organizao em tanto que tal parece-lhe uma realizao da racionalidade em sentido estrito. A essncia das suas crticas remete para a utilizao que se faz dessa tcnica e dessa organizao: servem unicamente o capital, em lugar de servir a humanidade inteira. No percebe que preciso realizar uma crtica interna da tc-nica e da organizao da produo capitalista105.

    verdade, porm, que no toda a obra de Marx alheia a preocupaes como as que nos interessam nestas pginas. Paul Aris tem assinalado que a ateno prestada por Marx s relaes de produo em modo nenhum significou que justi-ficasse um crescimento sem limites desta ltima em proveito dum projeto ontologicamente produtivista106. Manuel Sacristn tem-se referido a como desde os Grundrisse est a ideia fun-damental de que o fulcro da revoluo a transformao do indivduo. Nos Grundrisse diz-se que o essencial da nova socie-dade que transformou materialmente o seu possuidor noutro sujeito e a base dessa transformao, j mais analiticamente, mais cientificamente, a ideia de que, numa sociedade onde o que predomine no seja o valor de troca mas sim o valor de uso, as necessidades no podem expandir-se indefinidamen-te. Que algum pode ter indefinida necessidade do dinheiro, por exemplo, ou em geral de valores de troca, de ser rico, de poder mais, mas no pode ter indefinidamente necessidade de objetos de uso, de valores de uso107. Francisco Fernndez

    105 C. Castoriadis, Une socit la drive. Entretiens et dbats, 1974-1997 (Seuil, Paris, 2005), pgs. 244. 106 Aris, No Conso..., pg. 214.107 Cit. em Riechmann, Gente que..., pgs. 164-165.

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    Buey, pela sua parte, salienta que para Marx cada progresso da agricultura capitalista um progresso no s na arte de explo-rar ao trabalhador, seno tambm na arte de espoliar o cho; cada progresso realizado na arte de acrescentar a sua fertili-dade durante um tempo um progresso na runa das fontes duradouras de fertilidade108. Tem-se citado tambm amide o elogio que Marx realizou dum texto que, publicado em 1821, asseverava que uma nao verdadeiramente rica se, em lugar de doze horas, trabalha seis109. H trs lustros o autor destas linhas decidiu terminar uma histria da Unio Sovitica com a certificao de que Marx, nos seus anos finais, mostrara a sua adeso s sociedades comprometidas na satisfao das necessi-dades humanas e pouco interessadas na produo encaminha-da obteno de lucro sem limite110.

    Parece razovel concluir, como tantas vezes, com uma con-tundente afirmao de Gorz: Todos aqueles que, na esquerda, rejeitam afrontar a questo duma equidade sem crescimento demonstram que o socialismo, para eles, no seno a con-tinuao por outros procedimentos das relaes sociais e da civilizao capitalistas, do modo de vida e do modelo de con-sumo burgus111.

    108 F. Fernndez Buey, Les altermondialistes en font leur miel, artigo publi-cado em La repblica (Montevidu) e reproduzido em Le courrier international (n924, 17-23 de julho de 2008).109 Veja-se, por exemplo, O. Bsancenot, Rvolution! 100 mots pour changer le monde (Flammarion, Paris, 2003), pg. 164.110 La Unin Sovitica (1917-1991) (Sntesis, Madrid, 1993), pg. 217.111 Cit. em Latouche, Petit trait..., pg. 205.

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    Utilizaremos um punhado de metforas para retratar um problema central que est no ncleo do projeto que reclama um ativo decrescimento. A primeira delas lembra-nos que, se parece evidente que, no caso de que um indivduo ou uma coletividade extrarem do seu capital, e no das suas rendas, a maioria dos recursos que empregam, isso conduzir inevita-velmente quebra, surpreendente que no se invoque o mes-mo razoamento quando se trata de analisar o que as sociedades ocidentais esto a fazer com os recursos naturais do planeta, acumulados no decorrer de milhes de anos e dilapidados nuns poucos decnios112.

    A segunda metfora assinala que, se chegarmos a casa e comprovamos que o banho est inundado, o primeiro que fa-remos, por lgica, ser fechar a torneira, fechar a bilha. No pareceria razovel, pelo contrrio, que como o lembra Mi-klos Persanyi, outrora ministro hngaro do Meio Ambiente a nossa resposta consistisse em colocar toalhas no cho113. E, porm, e novamente, o que estamos a fazer com a natureza ajusta-se muito mais a uma estril colocao de toalhas: por-que, falando a srio, no temos o trabalho de fechar torneira nenhuma.

    A terceira metfora sugere que estamos num barco que, a 25 ns por hora, se encaminha cara a uma costa acidentada. uma resposta adequada a que preconiza reduzir a velocidade numa dcima parte sem modificar em modo nenhum o ru-

    112 Clmentin e Cheynet, op. cit., pg. 9.113 Latouche, Le pari..., pg. 229.

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    mo? Servir de algo, sem assumir mudanas nesse rumo, bater um pouco mais tarde com a costa? (Michel Serres)114. O mes-mo razoamento expressa-o Latouche quando assinala que, se apanhamos um trem, um comboio, equivocado, no basta com rogar ao condutor que reduza a velocidade; ser preciso des-cer do trem e apanhar outro diferente115. Ou, por diz-lo duma ltima maneira: se estivermos fechados num quarto onde por fora o ar acabar por faltar, salvar-nos-emos reduzindo o rit-mo da nossa respirao, em vez de procurar diretamente uma sada?116

    A quarta metfora tem como protagonista um nenfar. Su-ponhamos que num tanque h um nenfar que se multiplica ao ritmo de dois por um cada dia: se na segunda-feira h um nenfar, na tera sero dois. Conforme a esse ritmo, sabemos tambm que o tanque estar cheio de plantas, que no podero viver, em trinta dias. Em qual desses trinta dias o tanque estar ocupado na sua metade pelos nenfares? Ainda que um razo-amento precipitado invita a responder que o dia 15, a resposta correta o 29: esse dia a metade do tanque estar coberta de plantas, de tal maneira que, ao multiplicar-se estas por dous, a jornada seguinte os nenfares cobriro toda a superfcie. O dia 28 as plantas ocuparo uma quarta parte do tanque, o 27 uma oitava parte e o 26 um espao ainda menor. Suponhamos que estamos no dia 26. Ainda que se poder aduzir que no to grave o que fizemos, porque apenas uma pequena parte do tan-

    114 Cit. em Latouche, Le pari..., pg. 14.115 S. Latouche, Altri mondi, altre menti, altrimenti (Rubbettino, Soveria Man-nelli, 2004), pg. 122. 116 E. Kolbert, Field notes from a catastrophe. Man, nature, and climate change (Bloomsbury, Nova Iorque, 2006), pg. 146.

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    que est coberta de plantas, algum com melhor juzo replicar e isso sem dvida o importante que o ritmo frentico das agresses desencadeadas nos coloca a s quatro dias do final117.

    Rematemos com uma quinta metfora, esta de cariz alter-nativo. Latouche reivindica, em relao com estas questes, a sabedoria do caracol: O caracol construi a delicada arquitetu-ra do sua couraa agregando espirais cada vez maiores; depois cessa bruscamente e comea a praticar espirais decrescentes. Uma nica espiral mais no sentido crescente daria couraa uma dimenso 16 vezes mais grande. Em lugar de contribuir para o bem-estar do animal, carreg-lo-ia em excesso118.

    117 Veja-se A. Jacquard, Lquation du nnuphar (Calmann-Lvy, Paris, 1998). 118 Latouche, Per una societ..., pg. 9.

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    Intentemos quantificar algumas das consequncias que se de-rivam das metforas invocadas, em plena conscincia da razo que assistia a Kenneth Boulding, quando afirmou que aquele que acredita que um crescimento exponencial pode manter-se indefinidamente num mundo finito um louco, ou um economista119. Para garantir o bem-estar da humanidade, o Banco Mundial estima que a produo deveria ser em 2050 quatro vezes superior de hoje, sendo assim suficiente um crescimento anual de 3% acompanhado de prticas de bom go-verno. O problema que os limites do planeta invitam a pensar que impensvel um PIB mundial de 172 bilies de dlares, que o que se registraria em 2050 (frente aos 43 bilies de hoje)120. Com um crescimento de 3% anual, o PIB francs multiplicar-se-ia por 20 num sculo, por 400 em dous e por 8.000 em trs121. No caso da China, se se mantiverem os nveis de crescimento anual por volta de 10%, o produto nacional bruto multiplicar-se-ia por 736 num sculo122. Parece que est de mais sublinhar que semelhantes situaes seriam literalmente insustentveis. Latouche lembra, citando Aris e com conhecimento dos li-mites do argumento, que os clculos que nos atraem podem utilizar-se, depois de percorrer um caminho diferente, em pro-veito da tese do decrescimento: um decrescimento de 1% anual permitiria economizar 25% da produo em 19 anos e 50% em

    119 Cit. em Ridoux, op. cit., pg. 122. 120 Latouche, Le pari..., pg. 45.121 Latouche, Petit trait..., pgs. 40-41.122 Latouche, Per una societ..., pg. 8.

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    69. Um decrescimento, alis, de 2% anual reduziria a produo em 50% em 34 anos, 64% em 50 e 87% em 100123.

    Se assumirmos, por outra parte, que a procura de minerais crescer at 2060 para proporcionar as quantidades necessrias a 11.000 milhes de seres humanos, que consumiro como o faz nestes momentos o segmento rico da populao planet-ria, 43% das existncias dos 36 minerais mais cobiados ter-se-o evaporado, de tal maneira que ser literalmente impossvel garantir a subministrao a todos esses seres humanos124; pe-trleo, gs, carvo e urnio tero desaparecido, de resto, nuns poucos decnios125. No mesmo sentido, e tomando como ba-se que o garantir a alimentao duma pessoa num pas rico reclama por volta de duas hectares de terra, e para permitir que esses nveis de consumo alimentar se estendam a 11.000 milhes de pessoas, em 2060 sero precisos 22.000 milhes de hectares num planeta que apenas conta com 13.000 milhes126. Agreguemos, por ltimo, que se o consumo anual de madeira por cabea nos Estados Unidos exige 1,3 hectares de bosque, a extenso desse consumo a 11.000 milhes de pessoas reclama-ria dispor de 14.300 milhes de hectares, trs vezes e meio mais do que as disponveis127. Em geral, as expetativas de crescimen-to de fatores como a produo mundial de carne, a superfcie regvel, os fertilizantes, a oferta de peixe, as terras disponveis para o cultivo de cereais e a gerao destes ltimos demons-

    123 Latouche, Petit trait..., pg. 42.124 Trainer, op. cit., pg. 83-84.125 Ibidem, pg. 86.126 Ibidem, pg. 84.127 Ibidem.

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    traram ser em excesso optimistas: parece servida a concluso de que a produtividade biolgica da Terra est a reduzir-se visivelmente128.

    Ridoux tem sublinhado que ao longo da maior parte da sua histria (99% do tempo) a espcie humana viveu de ma-neira sbria, protagonizando um impacto muito dbil sobre o ecossistema129. As circunstncias mudaram, pelo contrrio, nos ltimos decnios. Lembremos que o ser humano transforma os recursos em resduos de maneira mais rpida daquela que o planeta mostra, no que diz respeito a reconverter novamente esses resduos em recursos130. Atravs do consumo de combus-tveis fsseis, a nossa espcie engole cada ano o equivalente a quatro sculos de energia solar do passado, porquanto teria de realizar um enorme esforo para retornar a um cenrio mais austero; de fato, com os atuais nveis de consumo provvel que em 365 dias esgotemos os combustveis fsseis criados ao longo dum milho de anos131. Em paralelo, os seres humanos utilizaram j entre 25 e 40% da produo primria lquida do planeta a quantidade lquida de energia solar converti-da em matria orgnica das plantas atravs da fotossntese, um nvel extraordinrio para uma espcie que no representa sequer 0,5% da biomassa animal da Terra132. Estamos a lanar atmosfera, enfim, dixido de carbono em quantidades que aquela no pode absorver, da mesma maneira que estamos a

    128 Ibidem, pgs. 85-86.129 Ridoux, op. cit., pgs. 9-10. 130 Latouche, Petit trait..., pg. 42.131 Lynas, op. cit., pgs. 238-239. 132 Ibidem, pg. 240.

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    consumir gua em quantidades que no podem ser geradas pela chuva133.

    O problema principal no configurado, como amide se sugere, pela China e a ndia: nasce, pelo contrrio, do que fi-zeram at agora os pases mais ricos, ao que se soma, certo, o que pode acontecer nos dous lugares mencionados. A China, em particular, com uma classe mdia crescente que deseja imi-tar muitos dos hbitos de consumo do mundo ocidental, leva caminho de devir o pas mais poluente do planeta e isso embo-ra at hoje a sua pegada ecolgica tenha sido seis vezes inferior norteamericana134. No pode esquecer-se que a China est a reproduzir o modelo de industrializao estado-unidense de h quarenta ou cinquenta anos, com empresas que empregam motores antigos e nada eficientes, e com um sistema de trans-misso de eletricidade tambm muito antiquado. Por unidade de Produto Interno Bruto, a China consome duas vezes e meia mais energia do que os Estados Unidos, e quase nove vezes mais do que o Japo135.

    Detrs de muitos dos problemas resenhados pressente-se no esquivemos este debate um risco nada desprezvel: a possibilidade do fim da espcie humana. Se 99% das espcies animais desapareceu ao longo da histria do planeta, no h razes para que no acontea o mesmo com a nossa136, como analisa um livro recente O mundo sem ns, de Alan Weis-

    133 Martin, op. cit., pg. 5.134 Latouche, Petit trait..., pg. 100.135 Kolbert, op. cit., pg. 180-181. 136 Y. Paccalet, Lhumanit disparatra, bon dbarras! (Arthaud, Paris, 2006), pg. 46.

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    man que encontrou muitos leitores. No nos faltam os relatos de processos que bem podem servir de guia no que diz respeito ao que acontecer se no intervirmos no assunto. Joel Levy re-sume um deles que, includo na obra de Jared Diamond, refere a histria da ilha de Pscoa: A ilha de Pscoa possuia original-mente uma abundncia de rvores que formavam a base dum rico ecossistema, capaz de manter uma considervel popula-o humana e uma sociedade complexa de competitivas tribos governadas por reis. Essa sociedade desenvolveu um modelo de reinado no qual a autoridade real se derivava do tamanho das esttuas que se erigiam, um processo que consumia quan-tidades insustentveis de madeira. Se um rei tivesse intentado conservar as rvores e no erigir esttuas, teria sido deposto ou derrotado por outro rei. O sistema era em si mesmo insus-tentvel. Por volta do sculo XVI, a ilha estava j desflorestada, e no muito depois o ecossistema foi arrasado, dando cabo da sociedade retratada. Quando os exploradores europeus chega-ram, descobriram uma populao escassa e dispersa137. Levy conclui: A Terra parecer-se-ia ilha de Pscoa numa escala planetria. Se chegassem extraterrestres dentro dalguns scu-los, maravilhar-se-iam perante os restos monumentais duma civilizao poderosa e perguntar-se-iam como poderiam ter sido criados pelos vazios bolsos de seres humanos que viviam uma existncia miservel num lugar baldio, txico e pratica-mente carente de recursos138.

    137 J. Levy, El da del juicio final (Martnez Roca, Madrid, 2007), pgs. 274-275.138 Ibidem, pg. 280.

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    Muitos dos conceitos que empregamos at aqui conduzem de maneira quase inevitvel, ao menos no que diz respeito aos pa-ses do Norte desenvolvido, defesa dum projeto de decresci-mento da produo e do consumo. Para enunciar o argumento de maneira rpida, afirmaremos que h que reduzir a produo e o consumo porque vivemos por cima das nossas possibili-dades, porque urgente cortar emisses que danam perigosa-mente o meio ambiente e porque comeam a faltar matrias primas vitais. O nico programa que necessitamos resume-se numa palavra: menos. Menos trabalho, menos energia, menos matrias primas139. O anterior tem de ser assim na certeza, na-turalmente, de que as mudanas que devem operar-se no nosso estilo de vida no esto chamadas a ser as mesmas no caso das classes ricas e no caso das que padecem, tambm entre ns, a explorao e a excluso.

    Enfrentamos, por empregar outro critrio, dous cenrios alternativos. Se o primeiro reivindica um crescimento dbil, de 2%, durante os prximos 48 anos, o segundo prope um decrescimento de 5% durante esses mesmos anos. O primeiro cenrio conduz trinta vezes mais longe do que parece vivel, enquanto o segundo garantiria, pelo contrrio, a viabilidade140. muito importante sublinhar, claro, que um projeto de decres-cimento acarreta uma necessria e radical mudana de menta-lidade que invita a esquivar o que retrata um velho provrbio

    139 Grillo, op. cit., pg. 7. 140 F. Schneider, Point defficacit sans sobrit, em VV.AA., Objectif dcrois-sance..., pg. 37.

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    francs: Quando se tem um martelo diante da cabea, todos os problemas aparecem desde a perspetiva dos parafusos. Ao olhar os problemas em exclusivo pelo prisma da economia141, eludimos uma necessria, e revolucionria, mudana na cultu-ra dela falaremos, prvia s que havero de se fazer valer, tambm, no direito ou no modo de produo142.

    O decrescimento no , alis, um crescimento negativo, expresso contraditria que revela a supremacia do imaginrio desenvolvista143. H que evitar qualquer perceo quantitativa do que o decrescimento acarreta: no se trata de fazer o mesmo mas em menor quantidade144. E h que defender a radicalidade do termo decrescimento e considerar este como um ariete que penetra at o fundo do pensamento nico e contesta, assim, a cegueira psicolgica em que estamos imersos145. Nas palavras de Vincent Cheynet, antes que construir, a lgica do decresci-mento procura desconstruir. Os prefixos de e des so revela-dores desta vontade de apreender as cousas: decrescer, desco-

    141 Latouche, Dcoloniser..., pg. 150.142 Latouche, Petit trait..., pg. 103.143 Latouche, Per una societ..., pg. 12. Latouche sublinha que a realidade que invoca o conceito de decrescimento no a mesma que desponta trs termos do ingls como os de declining ou decrease. Tambm no equivale a ungrowth, de-growth ou dedevelopment. Mais se parece, contudo, ao que estaria por trs dum counter-growth ou dum decreasing growth. Veja-se Latouche, Le pari..., pg. 25.144 Como o lembra Paul Aris La dcroissance est-elle soluble dans la mo-dernit?, em VV.AA., Objectif dcroissance..., pg. 125, o velho movimento operrio no sonhava com descapitalizar a economia, mas sim com coletiviz-la ou nacionaliz-la. A uma necessidade paralela refere-se com ironia uma velha cano anarquista que dizia: Acabar com o patro? Est certo. Mas quem se en-carregar da paga do sbado?; cit. em ibidem, pg. 131. 145 Cheynet, Le choc..., pg. 61.

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    lonizar, desintoxicar, desalienar, despejar... A primeira proposta do decrescimento no aspira a estabelecer um contrassistema nem uma contraideologia em lugar da ideologia do crescimen-to, mas sim a reinsuflar na sociedade o esprito crtico frente ao pensamento dogmtico e aos discursos propagandsticos146.

    146 Ibidem, pgs. 79-80.

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    Parece evidente que devemos intervir com urgncia para fre-ar as muitas atividades econmicas que esto na origem da expanso da pegada ecolgica, e que isso tem de traduzir-se, em termos das medies convencionais vinculadas ao Produto Interno Bruto, numa reduo deste. Digamo-lo com clareza: deve reduzir-se uma parte significativa da atividade talvez toda de indstrias como a do automvel, a da aviao, a da construo ou a militar. Alguem argumentar imediatamente que, caso manifestar-se um projeto dessa natureza, se geraro milhes de pessoas desempregadas nos pases ricos. Que fare-mos, ento, com esse desemprego? A resposta invoca duas vias de soluo: se a primeira sublinha a necessidade de expandir a atividade daqueles segmentos da economia vinculados satis-fao das necessidades sociais e a ateno ao meio ambiente, a segunda refere a convenincia de repartir o trabalho nos seto-res econmicos tradicionais que, por lgica, ficaro. O resulta-do final ser que trabalharemos menos, disporemos de muito mais tempo de lazer e reduziremos sensivelmente os nveis de consumo, desbocados, aos que se entrega boa parte da popula-o nas sociedades opulentas.

    Est servida a concluso de que semelhante horizonte nada tem a ver com um estado de geral infelicidade: comparada com o modo de vida escravo do que antes falamos, a do decresci-mento parece uma perspetiva paradoxalmente mais saudvel. Ao seu abrigo, e em primeiro lugar, criar-se-o novos setores econmicos destinados a saciar as necessidades insatisfeitas, com servios pouco intensivos em recursos e formas descen-tralizadas de organizao. Fazendo da necessidade virtude, e por outra parte, do decrescimento podem obter-se vantagens

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    no que diz respeito preservao do meio ambiente, o bem-estar das geraes futuras, a sade dos consumidores e as con-dies do trabalho assalariado147. Noutro plano, ainda que o decrescimento pe claramente em perigo o nvel de vida duma minoria da populao planetria, assim a custo de acrescentar a felicidade e o bem-estar duma clara maioria em virtude dum inevitvel processo de redistribuio dos recursos, de transfor-mao das formas de propriedade e dum afortunado cresci-mento relacional. preciso agregarmos aqui que no mundo rico so vrios os elementos que facilitam um horizonte de decrescimento. Entre eles contam-se a existncia de infraestru-turas, bens e servios, a satisfao das necessidades vitais e, se assim se quiser, o prprio decrescimento da populao148. As melhoras alcanadas em matria de alojamento, nutrio, hi-giene e medicina sero tambm, sem dvida, de ajuda149. Para diz-lo com outras palavras: o decrescimento que propomos no em modo nenhum uma tragdia, tanto mais se descreve-mos o bem-estar, com Manfred Linz, como um composto de trs elementos: riqueza em bens, riqueza em tempo e riqueza relacional150.

    Os argumentos utilizados contra o decrescimento151 pare-cem, enfim, pouco relevantes. Tem-se assinalado, por exemplo, e contra toda razo, que a proposta nasce no Norte para que se-

    147 Latouche, Le pari..., pg. 153.148 M. Linz, Y qu pasar con la economa?, em Linz, Riechmann e Sempere, op. cit., pgs. 42-43. 149 G. Monbiot, Heat. How we can stop the planet burning (Penguin, Londres, 2007).150 Linz, Sobre suficiencia..., pg. 12. 151 Aris, La dcroissance est-elle soluble..., pgs. 124-125.

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    jam os pases do Sul os que decream materialmente. Tambm se tem sugerido que o decrescimento antidemocrtico, em franco esquecimento j o salientamos de que os regimes que comumente se descrevem como totalitrios nunca procu-raram, por razes bvias, reduzir as suas capacidades militar-industriais. Antes parece que, pelo contrrio, o decrescimento, atravs da autossuficincia e da simplicidade voluntria, bebe duma filosofia no violenta e antiautoritria152. A proposta que nos interessa no remete, por outra parte, para uma postura que reclame uma renncia aos prazeres da vida: reivindica uma clara recuperao destes ltimos num cenrio marcado, isso sim, pela rejeio dos atrativos do consumo irracional. No deixa de surpreender que as mesmas pessoas que defendem a ordem existente, visivelmente marcada pela explorao e por horizontes vitais insuportveis, sejam as que sugerem que os defensores do decrescimento pretendem cancelar todo tipo de alegria de viver. Parece claro, por deixar as cousas a, que o de-crescimento no em modo nenhum uma antessala justificat-ria dum futuro democdio que, assentado numa defesa funda-mentalista da natureza, prescinda dos problemas que atenazam muitos dos membros da espcie humana.

    Ainda que imediatamente nos veremos na obrigao de su-blinhar que a proposta do decrescimento reclama o concurso dum punhado de valores e regras sem os quais o projeto ficaria visivelmente deturpado, agora temos o dever de enunciar uma certeza: se no decrescermos voluntria, racional, solidria e ecologicamente, teremos que descrescer levados pelas circuns-

    152 V. Cheynet, Dcroissance et dmocratie, em VV.AA., Objectif dcrois-sance..., pg. 141.

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    tncias de carestia da energia e mudana climtica que acom-panham o afundimento, cada vez mais fcil de imaginar, do capitalismo global.

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    O projeto que descrevemos sob a etiqueta do decrescimento, e que reclama, entre outras muitas cousas, redues significati-vas nos nveis de produo e de consumo no Norte opulento, comea a provocar, como era lgico, crticas. Deixemos claro desde o princpio que estas ltimas so to legtimas como ne-cessrias, tanto mais quanto que estamos a falar duma iniciati-va no fechada e de aplicao muito complexa.

    Surpreende, porm, que a maioria das crticas que nos atraem no cheguem do discurso oficial, que simplesmente se desinteressa de uma cousa que considera, no melhor dos casos, uma proposta extravagante e fora do mundo. Chegam pelo contrrio de determinados segmentos do que com im-presentvel liberalidade chamaremos a esquerda. At agora, e as mais das vezes, esses segmentos optam por questionar o decrescimento como um tudo, sem descer a uma considera-o precisa das propostas e os fundamentos inteletuais daquele. Parece como se estimassem que o projeto to desafortunado e lamentvel que no necessrio assumir uma crtica por mi-do de uma cousa que se desqualificaria por si s. No que, para deixar as cousas claras, no possamos compreender essa atitude. Ao cabo, se algum pedisse ao autor destas pginas um exame crtico do programa dum partido socialdemocrata, tam-bm responderia que preferia no perder o tempo...

    Afinal, podem reduzir-se a duas, bem que muito relaciona-das entre si, as crticas at hoje formuladas. A primeira diz-nos que o do decrescimento um horizonte mental concebido para calmar a m conscincia de classes mdias acomodadas como as que existem no mundo rico. Sem negar que qualquer cou-sa desse gnero possa haver em determinadas modulaes do

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    discurso do decrescimento, convm no baralhar a parte com o todo. Somos muitos os que, depois de abraarmos esse discur-so, seguimos a pensar que aquilo no qual trabalhamos desde h muito tempo continua sendo prioridade maior: fundir o mais lcido que proporciona o movimento operrio de sempre com a irrupo inexorvel de novas questes, e entre elas as vincu-ladas com a certificao de que os limites meio-ambientais e de recursos do planeta configuram um problema principal. Por trs intui-se, de qualquer modo, uma disputa que tem vrios decnios: a retirada do proletariado como sujeito revolucion-rio e, com ela, a confuso de muitos dos seus integrantes com as classes mdias, circunstncia que enrarece um bocado pa-rece o cenrio em que esta crtica est concibida. Convm di-zer aqui o que amide se esquece: os que apreciamos problemas srios em qualquer cosmoviso que pretenda continuar atri-buindo ao proletariado o papel que lhe outorgaram no passado todos os mestres do pensamento socialista sem distino de correntes, no sentimos alegria nenhuma pelo seu retroces-so revolucionrio: limitamo-nos a resenhar o que uma triste realidade. E lutamos, isso sim, para que a certificao das con-sequncias dum triste processo como esse no se traduza num ps-moderno abandono das reivindicaes, fortes, de ontem.

    A segunda das crticas assinala, com formulaes mais ou menos distintas, que o do decrescimento um projeto refor-mista que afasta lamentavelmente o horizonte da insurreio revolucionria. Sem refugar, ainda, que determinadas modu-laes do discurso do decrescimento justifiquem essa leitura, convm opor alguns argumentos. O primeiro, e principal, as-sinala que no h nenhum motivo para separar abruptamente decrescimento e insurreio: os partidrios desta ltima tam-bm tm a obrigao de perguntar-se pelas regras do jogo que

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    Decrescimento, crise, capitalismo

    o modelo crescimentalista abraado sempre pelo capitalismo tem institudo. Dito seja doutra forma: se em 1936, quando na Catalunha ou no Arago a CNT se lanou tarefa de instaurar o comunismo libertrio, podia desculpar-se que no se formu-lasse a pergunta relativa a que cumpria produzir o dia depois da insurreio, hoje, tal como vo as cousas no planeta, no podemos permitirmos semelhante linha de conduta. O insur-recionalismo deve ser tambm, noutras palavras, decrescimen-talista, porque do contrrio bem poderia acontecer que, no sem paradoxo, se traduzisse no esquecimento de elementos centrais da contestao do capitalismo, risco muito frequente, alis, em determinada linguagem inchada de oratria revolu-cionria. Em qualquer caso, aceitemos que h que fortalecer com clareza a dimenso anticapitalista da proposta decresci-mentalista, e sublinhar que a necessria vontade de questionar a ordem de propriedade do capitalismo com a defesa duma propriedade coletiva socializada e autogestionada deve ser acompanhada de medidas que cancelem a iluso de podermos continuar crescendo de forma indiscriminada. E perguntemos aos companheiros que se reclamam da insurreio ao tempo que abominam do decrescimento qual o lugar desde o que falam, porque parece que se dispem de precisos instrumentos de anlise da realidade e de poderosos movimentos que obri-gassem a concluir que a sua proposta claramente prefervel. Curioso , de resto, que muitas destas crticas procedam do mundo libertrio. Talvez a autoritarizao de determinados se-tores deste ltimo fez com que se esquecesse um dos alicerces mentais, acaso pr-poltico, do pensamento anarquista: a con-venincia de no esperar as ocupaes de palcios de inverno ou triunfos eletorais para comear a mudar as cousas. Esse ali-cerce , entre outros, o que coloca cognitiva e emocionalmente

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    carlos taibo

    a muitos libertrios em posies espontaneamente prximas das que defende o decrescimento orgulhosamente anticapita-lista.

    No custa trabalho nenhum admitir, de qualquer modo, que existe o risco de que o do decrescimento seja um mais dos muitos projetos que o capitalismo acabou por engolir. A rplica , mesmo assim, simples: os que acreditamos no acerto da sua proposta geral devemos fazer o que est nas nossas mos para evitar que essa possvel absoro seja uma realidade. E deve-mos lembrar que incluso na sua dimenso menos ambiciosa e pactista, na forma duma espcie de desobedincia civil suave perante a lgica da produo e do consumo, o do decrescimen-to um passo frente com respeito ao que temos. Com a voca-o anunciada, trabalhemos para conseguir que as crticas at agora expressadas se reformulem com a olhada posta em dotar ao projeto das defesas que permitam afast-lo da cooptao pe-lo capitalismo, e isso, naturalmente, desde a conscincia de que o nosso projeto no pode ser exclusivamente decrescimentalis-ta: o decrescimento uma parte dum programa mais geral, de tal forma que por si s no configura nenhuma resposta mgica aos nossos problemas.

    Qualquer projeto anticapitalista no Norte desenvolvido de princpios do sculo XXI tem de ser, por necessidade, de-crescimentalista, autogestionrio e antipatriarcal. De contrrio estar a fazer o jogo dramaticamente invertamos o argumen-to enunciado por quem nos critica ao sistema que pretende contestar. Mas, ao mesmo tempo, e em paralelo, lutemos, claro que sim, por nos afastar das eventuais modulaes do decres-cimento que no se revelam manifestamente anticapitalistas.

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    15.

    Por trs do decrescimento est uma proposta alternativa que tem, se assim se quiser, meia dzia de alicerces. O primeiro deles, e talvez o principal, no outro que a sobriedade e a simplicidade voluntria. Terry Eagleton assinalou no seu mo-mento que Samuel Beckett, o escritor irlands, prmio Nobel de Literatura, compreendeu que o realismo sbrio e carregado de pesadume serve a causa da emancipao humana mais le-almente que a utopia carregada de iluso153. A expresso sim-plicidade voluntria foi ideada em 1981 por Duane Elgin para definir a atitude das pessoas que desejam viver com menos, consumir de forma responsvel e examinar as suas vidas pa-ra assim determinar o que importante e o que no154. Neste terreno cumpre afirmar, com Henry David Thoreau, que um homem tanto mais rico quanto maior o nmero de cousas das quais pode prescindir, como cumpre lembrar que Scrates acudia ao mercado para comprovar a infinidade de bens dos que no tinha necessidade155. Fechemos o captulo de citaes de homens clebres com a recordatria de que para Gandhi o cume da civilizao no era determinado pelo desgnio de possuir, de acumular, cada vez mais, mas sim pelo de reduzir e limitar as necessidades156. As razes que explicam a opo pela

    153 J. Riechmann, Oikos & Jaikus. Reflexiones sobre la crisis ecosocial, em Linz, Riechmann e Sempere, op. cit., pg. 117. 154 N. Shepheard, Vive la dcroissance, artigo publicado em The New Zealand Herald (Auckland) e reprodu