Defesa da Fé Católica (edição compilada) - Francisco Suárez

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Defesa da Fé Católica

Francisco Suárez

Defesa da Fé Católica

Edição compilada

Tradução:

Luiz Astorga &Tiago Gadotti

Defesa da Fé Católica (edição compilada), Francisco Suárez © Editora Concreta, 2015

Título original: Defensio Fidei Catholicae et Apostolicae adversus Anglicanae Sectae errores

Os direitos desta edição pertencem àEditora Concreta

Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330 Porto Alegre – RS – Telefone: (51) 9916-1877 – e-mail: [email protected]

Editor:

Renan Martins dos Santos

Coordenador editorial: Marcus Boeira

Tradução: Luiz Astorga e Tiago Gadotti

Revisão: Emílio Costaguá

Capa & Diagramação: Hugo de Santa Cruz

Pintura de capa: O encontro de Papa Leão e Átila (séc. xviii),

de Francesco Solimena (1657-1747)

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica

ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

www.editoraconcreta.com.br

Ficha Catalográfica

Suárez, Francisco, 1548-1617S9393d Defesa da Fé Católica (edição compilada) [livro eletrônico] / tradução de Luiz

Astorga, edição de Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2015. 348p. :p&b ; 16 x 23cm

ISBN 978-85-68962-09-1

1. Filosofia política. 2. Teologia. 3. Filosofia moderna. 4. Catolicismo 5. Contra-Reforma. 6. Pensadores jesuítas. I. Título.

CDD-261.7

COLEÇÃO SAL A M A NCA

Composta de intelectuais que povoaram o cenário das universidades da Península Ibérica, a Escola de Salamanca foi predominantemente um movimento teológico caracterizado pela ampla produção em vários

campos do espírito humano como a filosofia, a economia, o direito e a moral. Os salmanticensis, como são chamados os membros da Escola de Salamanca, representam a continuação da escolástica nos tempos modernos.

Podemos levantar quatro aporias que inquietaram os escolásticos ibéri-cos: os descobrimentos do Novo Mundo, a Reforma Protestante, a forma-ção do incipiente Estado moderno e a propagação do direito internacional. Essas áreas abriram novos horizontes para a pesquisa racional e exigiram um tratamento sofisticado, que partisse dos cânones teológicos e mergulhasse na raiz mesma das transformações pelas quais o mundo da época – e a Europa em particular – passava.

O resultado foi um gigantesco arcabouço teórico, notabilizado pela pro-fundidade filosófica e forte sintonia com a produção escolástica da geração anterior. Francisco de Vitória, Domingo de Soto, Bartolomé Medina, Mar-tim de Azpilcueta Navarro, Domingo Bañez, Melchior Cano, Luís de Mo-lina, Francisco Suárez, para citar apenas alguns dos membros da escolástica ibérica, emergiram no cenário cultural europeu como autênticos porta-vozes do magistério eclesiástico em meio a um continente marcado por mudanças em todos os fronts. Não resumiram suas respectivas atividades intelectuais apenas ao reduto salamantino, mas atuaram como catedráticos e professores em outras universidades peninsulares, chegando até mesmo aos confins de Portugal, como é o caso das Universidade de Évora e Coimbra.

A produção assombrosa do período permite afirmar que os salmanticensis ocuparam o posto de soldados intelectuais da Contra-Reforma, não só pela erudição que demonstraram, senão pela exímia capacidade de esmiuçar os dilemas teológicos que eram suscitados pelas questões práticas então corren-tes. Exemplo claro disso é o tratamento conferido por muitos dos pensado-res do período à justiça econômica dos preços e à complexidade teológica do livre-mercado, temática importantíssima para a era moderna. Ou ainda a questão do tiranicídio e da desobediência civil, em atenção ao contingente político das monarquias absolutistas. Enfim, são muitos os impasses que surgem nesse período.

Os séculos XVI e XVII, assim, radicalizaram a metamorfose pela qual passou a sociedade ocidental, encurtando as distâncias entre o antigo e o hodierno. Disso, irrompem novos institutos nas diversas áreas do conheci-mento e da existência humana, dando vazão a novas formas de vida e novos desafios no campo social. O Estado e o direito internacional, respectivamen-te, legaram ao homem moderno modalidades de vida talhadas dentro de um horizonte burocratizado, condicionado pelas correntes institucionais do período e com maior amplitude em seus paradigmas, já que agora o Novo Mundo passava a ser um destino possível para o europeu.

A proliferação de novas formas de existência humana dentro de um ce-nário mais vasto reclamou a urgência de novas instituições, capazes de dar conta das dificuldades nascentes. Não somente o Estado e o Direito das Gentes, como também o aprimoramento missionário da Igreja e a crescente relevância do comércio entre os povos advieram para satisfazer tais necessi-dades. A análise rigorosa desses institutos pelos pensadores europeus abriu diversas concepções teóricas sobre o direito, a política e a sociedade. Na Península Ibérica, a escolástica renascia como movimento teológico, mas igualmente como escola apta a conferir a cada uma dessas aporias respostas refinadas pela profundidade e pelo método herdado da geração de outrora.

Dentro disso, a Escola de Salamanca promoveu uma verdadeira conci-liação entre a teologia medieval e os institutos da era moderna, ocupando o epicentro cultural do Siglo de Oro espanhol como mensageira da tradição católica em meio à revolução cultural pela qual perpassou a sociedade oci-dental no período em questão.

Marcus Boeira Coordenador da Coleção Salamanca

Agradecimento aos colaboradores

Através de campanha no website da Concreta para financiar a Defesa da Fé Ca-tólica, 348 pessoas fizeram sua parte para que este livro se tornasse realidade, um gesto pelo qual lhes seremos eternamente gratos. A seguir, listamos aquelas que colaboraram para ter seus nomes divulgados nesta seção:

Adalberto Salvador Perillo Kühl Jr.Adilmar Antonio Mota de CamargoAdriano Giacomelli da SilvaAdriel AkárioAlberto de PaulaAlex CatharinoAlexandre de LucaAlexandre PetersenAlexandre VarelaAlvaro Cesar PestanaAna SilveiraAndre Arthur CostaAndre Assi BarretoAndré Caniné de Oliveira Machado

André CassilhaAndre CoutoAndré FlorcovskiAndré Luiz Ecker CostaAndrey Gomez KopperAntonio Afonso RibeiroArthur DutraAruan J. FreitasAugusto Carlos Pola Jr.Bernardo BrandãoBernardo Cunha de MirandaBruce CarneiroBruno DinizBruno Dornelles de Castro

Bruno José Queiroz CerettaCaio Moysés de LimaCarla AndradeCarlos A. CrusiusCarlos Alberto Leite de MouraCarlos Alexander de Souza CastroCarlos Eduardo C. Ribeiro MachadoCarlos Guilherme SilveiraCezar Martins FiorioChirlei Matos SantosCláudio AraújoDaniel CerviglieriDaniel Henrique CavalcanteDaniel PalmaDavi LemosDavide LanfranchiDelania Gomes VieiraDiego Gomes FerreiraDiogo de Almeida FontanaDiogo Ferreira Ribeiro LaurentinoDionisio Pedro de Alcântara LisbôaDouglas CastroDyêgo MartinsEderson Lima OliveiraEduardo FernandesEduardo GabrielEduardo GomesEduardo JardimEduardo MohallemElaine Cristina Moreira BatistaElaine EgidioElaine RizzatoElpídio FonsecaÉrick Luiz Wutke RibeiroErico de Almeida Console SimõesÉrico Raoni Santos da SilvaEvandro Cássio MaraschinFábio Augusto Leal da CostaFabio Nascimento

Fábio Salgado de CarvalhoFábio TomkowskiFelipe AguiarFelipe Corte LimaFelipe MazzarolloFelipe SantosFelipe ZarpelonFernando Pio de Almeida FleckFlavia Silva Barros XimenesFlávio MontenegroFrancisco de Paula Fischer FerrazFrancisco EscorsimFrancisco Igor de Souza e SilvaGabriel Pereira BuenoGabriel SchafGeciel Rangel CostaGilberto LunaGilmar SiqueiraGio Fabiano Voltolini Jr.Giordano Bruno Meireles de AndradeGiselle Alexandrino S. FrancoGrazielli PozziGuilder da Costa StudartGuilherme Batista Afonso FerreiraGuilherme Meirelles de Paula BotelhoGuilherme PöttkerGuilherme SteinGustavo Bertoche GuimarãesGustavo CesquimGustavo CostaHaberlandt Pereira DuarteHélcio MadeiraHelder MadeiraHenrique Montagner FernandesHenrique SimõesHéres Drian de Oliveira FreitasHermano ZanottaHilário da SilvaIara Lisboa

Igor Silveira SantosIvanor BochiJaime Fidalgo Ferrà FilhoJoão Marcelo Silva ZigurateJoel ArosiJoel GraciosoJonas Henrique Pereira MacêdoJorge FerrazJosé Antonio Donizetti da SilvaJosé Arthur Oliveira SilvaJosé Francisco Lemos OliveiraJosé Maurício Nogueira LeiteJulieta Antônia Brito ArraisJulio Cesar Amorim de AlbuquerqueJulius LimaKarlos GuedesKen Bansho NetoLaércio DiasLarissa Maria GuedesLaura SteinLenon SabinoLeonardo Ferreira BoaskiLucas Cardoso da SilvaLucas Ferreira PinheiroLucas Lagasse CorrêaLucas MonachesiLuciana AntoniolliLucio MedeirosLuiz Cezar de AraujoLuiz Vergilio Dalla RosaLysandro SandovalManoel Valquer Oliveira MeloMarcelo AssizMarcelo Ferreira CondeMarcelo Luis RossaMarcelo O. SouzaMarcio Antonio de Castro CamposMárcio CenciMarcos Conceição

Marcos P. V. ZuritaMarcos Rangel CaetanoMarcus Matos MichilesMaria Rita Sulzbach de AguiarMário GentilMário Jorge FreireMateus ColomboMateus de PaulaMateus MessingerMatheus Ferrari HeringMatheus Hainzenreder SchafMatheus RuffMatheus Todeschini LopesMauri Benedito de PaulaMaykon Motta MarinsOdair SilvaPaulo de Tarso IrizagaPaulo Eduardo GalindoPaulo Henrique Brasil RibeiroPaulo Renato Ghetti FradePedro Henrique Folchito MendesPedro Theil Melcop de CastroPriscilla SilvaRafael de Almeida MartinRafael de BritoRafael Henrique PereiraRafael José DiegoliRayane Sonda CasselRaylson AquinoRenato Emydio da Silva Jr.Ricardo Fazolini Ricardo Gonçalves SilvaRicardo PopienRoberto CajaravilleRodrigo de MenezesRodrigo DescalzoRodrigo DubalRodrigo Fernandez Peret DinizRodrigo Lacroix

Rodrigo Naimayer dos SantosRodrigo Santana SilveiraRoger AssunpçãoRoger S. EgerRonaldo Lucas da SilvaRoney SilvaRosele Martins dos SantosSandro de Freitas FerreiraSideval Ramos de PaulaSuellen CapraraTácito Garcia ScorzaTarcio SotteTatiana Ramos PradoTharsis MadeiraThiago Palacio L. FrazãoTiago Arno Saldanha KloecknerTiago ToledoUlysses Pereira de SiqueiraVanessa ReisVicente Do Prado TolezanoVictor Alves FernandesVinícius KruppVinicius ScortegagnaVitor ColivatiVitor Fonseca de MeloVitor MontenegroVitor ParodiVítor SampaioWagner MarchioriWanderson PereiraWeber SoaresWendell Ramos MaiaWilliam TorquatoWilson de Paula RamiroWilson JuniorXavier Peixoto

Sumário

Apresentação 17

I. A posição de Francisco Suárez ante a modernidade e o contexto histórico da Defensio Fidei 17

II. A controvérsia sobre o juramento de fidelidade e a Defensio Fidei 22

III. O problema da origem e da natureza do poder: excursus sobre o Principatus Politicus (Livro III da Defensio Fidei) 30

IV. Apontamentos sobre a presente edição 43

Nota do coordenador editorial 46

DEFESA DA FÉ CATÓLICA

abertura 49

Proêmio 51

Parte I - A soberania civil (Livro III - caps. I-IX)

Da excelência e poder do Sumo Pontífice sobre os reis temporais 59

Capítulo ISe o principado político é legítimo, e se procede de Deus 61

Capítulo IISe o principado político provém imediatamente de Deus, isto é, se procede por instituição divina 69

Capítulo III Resposta aos fundamentos e objeções do rei da Inglaterra contra a doutrina do capítulo anterior 85

Capítulo IVSe entre os cristãos há um legítimo poder civil ao qual estejam obrigados a obedecer 94

Capítulo VSe os reis cristãos têm soberania nas coisas civis e temporais, e por que direito 111

Capítulo VISe há na Igreja de Cristo um poder espiritual de jurisdição externa, como que político, distinto do temporal 126

Capítulo VIIProva-se por autoridade que não há nos reis ou príncipes o poder de reger a Igreja em assuntos espirituais ou eclesiásticos 141

Capítulo VIIIConfirma-se a mesma verdade por argumentos de razão 153

Capítulo IXRefutam-se algumas objeções contra a verdade provada nos capítulos anteriores 163

Parte II - O juramento de fidelidade (Livro VI - caps. I-X e XII)

Do juramento de fidelidade do rei da Inglaterra 179

Capítulo IO escopo da presente controvérsia, o estado desta causa e o método de disputa que nela se deve observar 189

Capítulo IISe na primeira parte da fórmula do juramento se propõe algo para além da obediência civil e contrário à obediência eclesiástica 196

Capítulo IIINa segunda parte do juramento se apresenta também algo para além da obediência civil e contrário à eclesiástica 203

Capítulo IVSe a terceira parte do juramento contém algo para além da obediência civil e contra a doutrina católica 213

Capítulo VDa última parte do juramento e dos erros nela contidos 232

Capítulo VIConsideram-se as razões por que o juramento é defendido 238

Capítulo VIIO Sumo Pontífice não só podia, mas também devia afastar com seu aviso os católicos ingleses da profissão do referido juramento 257

Capítulo VIIIPodem os ingleses que admitem o juramento escusar-se de culpa por alguma razão ou de algum modo? 266

Capítulo IXSe é lícito aos católicos ingleses ir aos templos dos hereges e comungar com eles nos ritos, sem intenção de culto ou de cooperação com eles, apenas para evitar as penas temporais 277

Capítulo XSe o acossamento que os católicos padecem na Inglaterra é uma verdadeira perseguição da religião cristã 303

Capítulo XIIResposta ao que o rei objeta contra o segundo breve pontifício e contra a epístola do cardeal Belarmino 320

Conclusão da obra 329

Bibliografia citada 333

Francisci Suarez Opera Omnia 343

Defesa da Fé Católica e Apostólicacontra os erros da seita anglicana

com uma resposta à Apologia ao Juramento de Fidelidade e à Carta aos Príncipes Cristãos, do

sereníssimo Jaime, rei da Inglaterra1

1 Por tal nome também se fez conhecer a Praefatio Monitoria (literalmente, Prefácio Admonitório) publicada por Jaime I juntamente com a Apologia ao Juramento. [Nota do tradutor; doravante, N. T.]

Aos sereníssimos reis e príncipes, filhos e defensores da Igreja Romana e Católica,

felicidade temporal e eternaFrancisco Suárez, da Companhia de Jesus

Em livro editado recentemente, Jaime, rei da Grã-Bretanha, quase como ao toque de um clarim amigo, convocou os reis e príncipes católicos a comungar de sua religião. Fê-lo no intuito de que, mediante o comuni-

cado de tal conselho, aqueles que Cristo, Rei dos Reis e Senhor dos Senhores, armou com soberania para defender a Igreja Romana – a qual Ele adquiriu com seu sangue – fossem incitados a atacá-la.

Mas com sua pluma o sereníssimo rei executou vã tentativa. Pois as portas do inferno não prevalecerão contra ela, nem poderá a gelada tormenta do Aquilão remover aqueles que o Cristo, pedra angular, fixou na rocha romana com o firmíssimo elo da verdadeira piedade.

Antes ele conspirasse – seguindo convosco as pegadas de seus antepassados, os mais invictos dos reis – para adornar a majestade da Igreja Católica! Assim não seria, em zelo pela piedade verdadeira, inferior àqueles de quem é par em poder e comando. Mais ele desejaria contar-se entre os que a divina autoridade constituiu como seus alentadores, do que entre aqueles que contra o Senhor e o Cristo foram inflamados pela loucura de sua própria impiedade.

Visto que, quando publicou seu livro, o índice de sua religião, não moveu guerra contra a Igreja Católica valendo-se da majestade real que o abrilhanta, nem com o estrondo e poder das armas – contra os quais não pode resistir um sacerdote de Cristo e homem religioso – mas munido apenas da agudez da pena e do engenho humano, julguei próprio de meu ofício e instituição avançar à linha de combate, não para pôr em xeque o esplendor e nome de tamanho rei (coisa que nem posso, nem desejo), mas para que as névoas exaladas das fétidas

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FRANCISCO SUÁREZ · DEFESA DA FÉ CATÓLICA

covancas dos inovadores, com as quais se tenta obscurecer a católica verdade, dissipem-se em ar e vapor, dissolvidas por raios de verdadeira sapiência.

Para fazê-lo, roguei resolutamente a Deus, pai das luzes, para receber aque-la luz que é o conhecimento da sincera verdade, que de Cristo Senhor nos chega mediante os apóstolos, que é exposta em vigílias pelos Santos Padres, e que deve ser seguida por quem deseja manter-se no caminho reto do viver e do crer. Que inspire esta empresa aquele Nume em cuja mão se encontram os corações dos reis.

E vós, reis e príncipes católicos do mundo, que com afeto fraterno desejais que Jaime seja tal qual vós, recebei esta nossa obra sob vosso patrocínio, para defendê-la com vossa autoridade. Pois é vosso o dito: fazemos nossas as coisas em que investimos nossa autoridade.2 Que seja vossa então esta obra, para que, defendida pela autoridade régia de vosso patrocínio e adornada por vosso bri-lho, vá a público com segurança, surja ilustre no mundo, e não seja julgada indigna dos olhos de reis. Pois não de outro modo senão sob vosso nome poderia esta nossa obra, na qual defendemos a causa de Deus, opor-se ao livro do rei sereníssimo.

Não é outro o pensamento que me impele a dedicar-vos este nosso traba-lho, com solícita submissão de espírito – vós que sois herdeiros do poder e da piedade de vossos ancestrais, e que vos ocupais religiosamente da tutela da Igreja Católica.

A outros este nosso labor pode servir de antídoto; já vós não necessitais de antídoto (que é a suprema piedade de Deus) contra a loucura dos inovadores, cujos venenos extraídos dos riachos do Estige não vos podem fazer mal, vós que, na virtude de Deus, preservam-se sujeitos e unidos à verdadeira e católi-ca fé – tal como belíssimos membros o estão à sua cabeça – pela unidade do Cristo Senhor e de seu vigário romano na terra, o Sumo Pontífice. Enquanto vossa soberania se firma em Deus, que ela cresça para a maior glória de vosso império e contribua para vossa eterna felicidade.

Coimbra, 13 de junho de 1613

2 “Vosso”, isto é, de um imperador, como vós: Justiniano, Corpus Iuris Civilis, Codex Iustiniani, I, tit. XX, Lyon, Hugues de la Porte, 1558-1560, col. 125.

Proêmio

1. Intenção do autor. 2. Resumo das asserções do sereníssimo rei Jaime. 3. Em que ordem devem ser impugnadas. 4. O método que se observará

1. Intenção do autor.3 – Preferiria eu, como prefaciou Ambrósio em causa não muito diferente, assumir a empresa de exortar à fé a encarregar-me do dever de sobre ela disputar.4 Porém, como o próprio direito natural exige e todas as leis divinas e humanas postulam que, na defesa contra qualquer injúria, lute tanto quanto possível o filho por seus pais, o sacerdote pela Igreja, o teólogo pela religião, o religioso pelas coisas sagradas, e enfim todo e qualquer mem-bro (não importa quão vil) pela sua cabeça, sou por isso compelido a não desprezar este novo gênero de escrita.

Pois o sereníssimo Jaime, rei da Inglaterra, em sua Apologia e seu Pre-fácio Admonitório aos príncipes do mundo cristão, procura coagi-los to-dos, enquanto dá à sua seita os nomes de “católica” e de “primitiva fé”, ao passo que à nossa verdadeira religião impinge a desonra de desertora; enquanto arroga para si o nome de Defensor da Fé Católica, ao passo que marca com o sinal de tirania e apostasia anticristã o Pontífice, Sumo Pastor de todos os fiéis e sua cabeça suprema sob Cristo; enquanto ataca muitos mistérios e sacramentos de nossa fé, cuja impugnação perturba os corações da gente piedosa.

3 Na versão espanhola de José Ramón Eguillor (Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1970), as notas laterais são incorporadas ao texto como subtítulos. Julgamos também útil o procedimento do tradutor inglês Peter Simpson (Nova York, Lucairos Occasio, 2012) de reuni-las à cabeça de cada uma das principais divisões desta obra. Na presente edição, somamos os dois procedimentos. [N. T.]4 De Fide, I, Prologus, 4 (PL 16, 529B).

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FRANCISCO SUÁREZ · DEFESA DA FÉ CATÓLICA

E induziu a mim, no rastro de outros homens doutíssimos (embora eu lhes seja muito desigual tanto em erudição quanto em eloqüência), a acercar-me deste trabalho; forçou-me a descer a esta arena, à qual não estou acostumado. Não me intimidou a majestade de sua dignidade régia; antes estimulou-me muito mais a verdade por ela impugnada, e que não se ofusquem os olhos dos mais fracos com o brilho de tamanho nome. Principalmente porque nesta causa parece ele haver-se despojado de seu esplendor de realeza, quando, agin-do mais como doutor que como rei, tenta defender a autoridade soberana que usurpou para si sobre os assuntos eclesiásticos. Recordo-me de haver lido em Ambrósio5 [em carta endereçada ao Imperador Teodósio] que não é próprio do imperador o negar a liberdade de falar, nem do sacerdote o não dizer o que sente. Nada nos reis é mais amável do que também amar a liberdade naqueles que são seus súditos por obediência, e nada no sacerdote é mais perigoso ante a Deus – e torpe ante os homens – do que não expressar livremente o que sente. Pois está escrito: “falarei dos teus testemunhos perante os reis, e não me envergonharei”.6 Portanto, movido por estas palavras divinas e sagradas, não por confiança em minhas capacidades,7 mas apegado à verdade e confiante na própria causa, em prol desta não temo falar livremente.

Esforçar-me-ei, porém, em dizer apenas aquelas coisas que não possam ofender o excelso ânimo do rei, a não ser que a luz que ostende a própria verdade ofenda olhos maldispostos. Pois propus-me a elucidar a fé católica e protegê-la; não a combater a majestade régia, mas antes – o que desejo – a servi-la na exposição da verdadeira e católica fé.

2. Resumo das asserções do sereníssimo rei Jaime. – Portanto, alentado pelo favor divino, procederei a expor a verdade da fé – ensinada pelo Cristo Senhor, legada integralmente pelos apóstolos e Santos Padres e incorrupta-mente conservada – acerca de alguns pontos principais tocados pelo sereníssi-mo Jaime. Mas, para que se abra uma via mais ampla em direção ao que que-remos dizer, e tudo se entenda mais facilmente, sugiro que examinemos antes o escopo e o propósito do rei, e depois a ordem de resposta que seguiremos.

5 Epístola 40, 2 (PL 16, 1101D-1102A).6 Salmos, 119:46.7 “Proprio ingenio diffisus”. In S. Ambrósio, De Virginibus ad Marcellinam, I, 1, 2. (PL 16, 188A-B): “Et quidem ingenio diffisus, sed divinae misericordiae provocatus exemplis, sermonem meditari audeo” [“E certamente sem confiança em minhas capacidades, mas movido pelos exemplos da misericórdia divina, ouso meditar sobre este tema”]. Depois prossegue o humilde Ambrósio, referindo-se ao epi-sódio de Balaão: “Nam volente Deo etiam asina locuta est” [“Pois, querendo Deus, até uma jumenta falou”]. [N. T.]

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PROÊMIO

Pois, ao considerar atenta e cuidadosamente a obra deste monarca, facilmen-te concluí que o intuito essencial do autor é principalmente defender com todos os seus esforços o juramento de fidelidade que recentemente instruiu seus súdi-tos a prestar-lhe. E por este motivo, empenhou-se em combater tanto os rescri-tos pontifícios quanto as cartas do ilustríssimo cardeal Belarmino ao arcipreste.8

Depois, recebida a resposta sobre tais temas, o rei, irritado, agregou à sua Apologia um Prefácio a todos os príncipes do mundo cristão, no qual procura exasperá-los contra o Sumo Pontífice como contra um inimigo comum, usur-pador do direito e do poder régios, e movê-los a uma deserção geral da Igreja Romana – seja seduzindo-os com a esperança de maior liberdade e de poder mais excelente, seja incutindo-lhes também o temor de que, enquanto permi-tem com excessiva e indulgente leniência – é ele quem o diz – um crescimento desmedido da dignidade papal, ou se apagaria absolutamente o esplendor ré-gio, ou se o obscureceria mais do que é justo. E, para que não se pense que esta guerra se move contra o vigário de Cristo, chegou mesmo a tratar de persuadi--los de que o Pontífice não é defensor de Cristo, mas o próprio Anticristo.

Finalmente, para que os verdadeiros filhos da Igreja, admirados com esta gigantesca novidade, não a detestem, professa a si próprio como Defensor da Fé Católica, de modo que, por tal razão, a seita que defende não pareça constituir uma heresia, mas apenas uma discordância com o Romano Pontífice. E agrega ainda uma extensa profissão de sua fé, pela qual tenta persuadir que permane-ce na fé primitiva e antiga, enquanto – diz ele – renega apenas artigos novos e recentes, inventados pela Igreja Romana.

3. Em que ordem devem ser impugnadas. – Portanto, para que procedamos na devida ordem de doutrina que sirva tanto à claridade quanto à utilidade a que visamos nesta obra, dividi-la-emos em seis livros, que responderão aos mencionados pontos, alterada apenas a sua ordenação.

Pois primeiro mostrarei que aquele cisma – que nem o próprio rei nega em seu livro – não pode ser escusado de modo algum de heresia e infidelidade totalmente opostas à fé verdadeiramente católica, e que o título usurpado em seguida pelo sereníssimo rei, o de Defensor da Fé Católica, não só foi assumido sem fundamento, mas é também claramente contrário àquilo que ele professa. Tomamos este título como ponto de partida de nosso discurso, não apenas porque, posto no frontispício da obra do rei, produz admiração imediata, mas

8 Trata-se de George Blackwell, arcipreste da Igreja da Inglaterra entre 1597 e 1608. [Nota do coor-denador; doravante, N. C.]

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FRANCISCO SUÁREZ · DEFESA DA FÉ CATÓLICA

também porque nos dará oportunidade de estabelecer certos princípios pelos quais facilmente se pode concluir que a seita anglicana não está fundada na verdadeira fé de Cristo. A isso dedicaremos o primeiro livro.

Já no segundo, daremos prova de que todos os artigos da fé romana que o rei impugna são antigos e católicos, e que artigos opostos não podem ser defendidos sem aberta heresia.

Em seguida, se passará ao terceiro livro, em que defendemos – conforme nossas forças – o direito e o primado do Pontífice. Não pretenderia percorrer tudo que se poderia dizer de sua excelente dignidade e poder (pois esta obra se expandiria indefinidamente), mas apenas expor que o Romano Pontífice não usurpou o poder dos reis temporais, e sim reclamou apenas a dignidade de sumo sacerdote, da qual, como diz Jerônimo, depende a salvação da Igreja,9 e preservou seu direito, contra o qual as portas do inferno nunca prevaleceram nem jamais prevalecerão.

E, visto que o rei deplora freqüentemente em seu Prefácio a isenção dos clérigos quanto ao poder temporal e a jurisdição dos leigos, e lamenta que – como diz – uma terça parte dos súditos tenha sido arrebatada dos reis tem-porais, adicionaremos um quarto livro, no qual se demonstra o direito de imunidade das pessoas eclesiásticas.

No quinto livro, procuraremos comprovar não apenas que todas estas con-jecturas propostas acerca do Anticristo são levianíssimas, mas também que o Anticristo se empenhará ao máximo na destruição da Sede Apostólica – e que por isso tal nome antes conviria àqueles que esforçadamente tomam para si o ofício do Anticristo. Pois, como disse Jerônimo a Dâmaso,10 quem não junta contigo, espalha, ou seja: quem não é do Cristo, é do Anticristo; e, como diz Bernardo11 a Hildeberto, bispo de Tours, sobre o Papa Inocêncio, os que são de Deus voluntariamente juntam-se a ele; quem permanece em oposição, ou é o Anticristo, ou é do Anticristo.

No sexto livro, acerca do juramento de fidelidade exporemos brevemente o que de injustiça e de ofensa à Sé Apostólica se encontra no rei que o exige, e diligentemente explicaremos o que ele implica de perjúrio ou infidelidade aos súditos que o prestem.

9 Dialogus contra Luciferianos, 9 (PL 23, 165A).10 Epístola 15, 2 (PL 22, 356).11 Na verdade, uma carta de Hildeberto a Bernardo: Hildeberto de Tours, Epístola 44, 1 (PL 171, 269A).

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PROÊMIO

4. O método que se observará. – Não abandonarei o estilo de proceder e disputar, nem o método escolástico ao qual estou acostumado, que pelo próprio hábito já me é quase conatural, ainda que ele comumente seja pouco agradável àqueles que de nós dissentem na fé; talvez porque seja o método mais apto a abrir caminho das trevas à verdade, e o mais eficaz para combater erros.

E, por isso, embora pretendamos usar principalmente os testemunhos das sagradas Escrituras, dos concílios e dos Padres, examinaremos o peso dos ar-gumentos e – tanto quanto pudermos – iremos no encalço de sua força e eficácia. Reuniremos não apenas os que procedem dos referidos fundamentos da fé, mas, conforme ditar a ocasião, também os que partem da própria luz natural; não porque os mistérios de nossa sacrossanta religião precisem deles para defender-se, mas porque podem demonstrar de modo nada obscuro para quão longe se desviam de toda a prudência e da própria razão aqueles que não temem dissentir da Igreja Católica Romana em assuntos pertinentes à salva-ção, nem dela separar-se.

Parte IA soberania civil

(Livro III - capítulos I a IX)

LIVRO III

Da excelência e poder do Sumo Pontífice sobre os reis temporais

Até agora expusemos em que heresias e graves erros incorreu a Inglater-ra, uma vez desprezado o fundamento da fé católica. Resta-nos tratar da origem de toda esta derrocada, isto é, da devida obediência negada

ao Sumo Pontífice e da usurpação, pelo rei temporal, do falso título de cabeça soberana nos assuntos espirituais de seu reino. Pois foi este o início de todo o cisma, e do cisma chegou-se à heresia, como vimos acima.12

Mas não é necessário recordar novamente este triste e torpe assunto, que deu ocasião a tamanha mudança e tão horrendo cisma: a verdade desta his-tória se descreve com clareza suficiente no início do primeiro livro; também o argumento evidente que ali se apresenta – o de que aquele movimento an-glicano não nasceu do Deus verdadeiro, mas do príncipe das trevas – consta suficientemente inculcado naquele mesmo livro. Portanto, deixando omitidas estas coisas que dizem respeito ao fato ocorrido, resta-nos tratar, no presente livro, do direito do rei e do direito do Pontífice.

E, embora não se tenha movido nenhuma contenda ou controvérsia so-bre o poder absoluto do rei temporal, mas apenas sobre sua subordinação,

12 Isto é, conforme desenvolvido nos livros I e II, ausentes desta compilação. V. apresentação, pp. 43-4.

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FRANCISCO SUÁREZ · DEFESA DA FÉ CATÓLICA

dependência e devida obediência ao Romano Pontífice, não obstante, para que todo o tema se entenda de maneira mais precisa e satisfaçamos mais ple-namente ao rei da Inglaterra (que em seu Prefácio reclama de que o Pontífice injustamente usurpou dos reis tamanho poder, que à vontade poderia mudar, conceder e tomar reinos13), explicaremos antes o que ensina a fé sobre o cargo e a jurisdição dos reis temporais; em seguida, trataremos do primado e do poder que, em razão de seu cargo, o Romano e Sumo Pontífice pode exercer sobre quaisquer príncipes temporais. Uma vez observada a ordem doutrinal, apontaremos e refutaremos – conforme haja oportunidade – os vários erros que, respectivos a este ponto, o rei apresenta aqui e ali em seu Prefácio e sua Apologia; além disso, satisfaremos a cada uma das objeções que ele indica. Isso, porém, sem que nos percamos nos muitos outros pormenores que ainda se poderiam mencionar sobre tal tema.14

13 Jaime I, Apologia pro Iuramento Fidelitatis, Praefatio, Londres, Opera Regia, 1609, p. 5.14 A Apologia pro Iuramento Fidelitatis foi publicada em conjunto com o Præfatio Monitoria em 1609, por ocasião da disputa entre o rei Jaime I e o cardeal Roberto Belarmino. O Prefácio foi en-dereçado ao imperador Rodolfo II, aos reis e príncipes cristãos. Historicamente, pode ser entendido como um chamado à guerra contra a Igreja Católica Romana, advogando a reivindicação dos direitos e privilégios das coroas e monarquias da Europa sobre assuntos eclesiásticos, sujeitos à jurisdição do Sumo Pontífice. Em resposta, o cardeal Belarmino, em sua Apologia Roberti S.R.E. Cardinalis Bellarmini pro responsione sua ad librum Iacobi Magnae Britanniae Regis, publicada em Roma no ano de 1610 e também dedicada aos monarcas, procurou invalidar os argumentos de Jaime I, rebatendo--os ponto por ponto. A obra foi dividida em dezessete capítulos e restou caracterizada pelo gênero polemista, tal como a Apologia e o Prefácio do monarca inglês. Nela, Belarmino contrapõe as teses ventiladas pelo rei, defendendo a jurisdição espiritual do Sumo Pontífice sobre bens eclesiásticos, como também a incompatibilidade entre a atitude do rei e a tradição da Santa Sé quanto aos limites da autoridade política. [N. C.]

Capítulo I

Se o principado político15 é legítimo, e se procede de Deus

1-2. O erro de alguns judeus que não reconhecem nenhum principado humano. 3. Primeira asserção: o principado político, se devidamente

introduzido, é justo. 4. Prova de nossa asserção mediante argumento. 5. Para o principado político, basta uma só cabeça mística. 6. Segunda asserção: o poder político do príncipe provém de Deus. 7. A razão de nossa asserção.

8. Desfaz-se o fundamento do erro afirmado no princípio.

1. O erro de alguns judeus que não reconhecem nenhum principado humano. – Aqui podemos citar o antigo erro de alguns judeus que diziam que apenas Deus deveria ser reconhecido como príncipe e senhor, pois pareciam rechaçar todo e qualquer principado humano, e, por isso, recusar também qualquer reino político como algo contrário à liberdade humana. Isso nos conta Flávio Josefo em suas Antigüidades Judaicas, livro XVIII, capítulo 1, onde indica como autor deste erro a Judas Gaulanita, talvez assim denomina-do em razão de sua origem; já no capítulo 2, chama-o Judas Galileu, provavel-mente por sua pátria. No livro II, capítulo 2 da Guerra dos Judeus, chama-o Si-mão Galileu. Nos Atos dos Apóstolos [5:37], parece fazer-se-lhe menção pelo nome de Judas Galileu, do qual se diz: Depois deste, levantou-se Judas, o galileu, nos dias do recenseamento, e arrastou o povo consigo; mas também este pereceu, e todos os que lhe deram ouvidos foram dispersos. Desta sedição também nos re-corda Josefo no local já citado, e no livro VII, capítulos 29 e 31 da Guerra dos

15 A expressão “principatus politicus” pode ser entendida como a estrutura formal de uma comuni-dade política, constituída por suas instituições, práticas e normas. A palavra república, originada do latim, foi amplamente utilizada na Antigüidade para designar a mesma idéia. Outro termo normal-mente empregado para tal fim é pólis, derivado da língua grega. [N.C.]

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Judeus; alguns julgam tratar-se daqueles galileus cujo sangue Pilatos mesclou aos sacrifícios que faziam, conforme narra Lucas [13:1] e o expõem Ecumênio16 e Anastácio de Nicéia17 sobre a Escritura.

Visto que o Cristo Senhor era galileu, e congregou discípulos da Galiléia, tal-vez por isso houvessem tentado urdir-Lhe calúnia sobre tal erro, quando O in-terrogaram: Acaso é lícito dar tributo a César? É isso o que pensa Agostinho,18 ao comentar aquelas palavras do Salmo 118: Príncipes me perseguiram sem razão;19 também Jerônimo, no Comentário à Epístola a Tito, no início do capítulo 3.20

2. Não me está claro se aquele Judas Galileu referiu-se com sua sentença ape-nas ao povo judeu, ou se a todos os homens. Pois poderia pretender que espe-cialmente aos judeus não caberia ser submetidos por imperadores pagãos, nem ter que lhes pagar impostos, nem dever reconhecê-los como senhores, uma vez que aquele povo estava sujeito ao regime particular de Deus. Talvez por isso, após os apóstolos, também os cristãos tenham sido no início suspeitos deste erro ante os gentios, como o apontam Justino21 e Clemente de Alexandria,22 e como explicaremos no capítulo III.

Se Judas se referiu absolutamente a todos os homens e a todos os prín-cipes humanos, talvez tenha se fundamentado na dignidade natural do ho-mem. Pois este foi criado à imagem de Deus, de próprio direito, e sub-metido apenas a Deus; por esta razão, não pareceria justo poder reduzi-lo à servidão ou à sujeição a outro homem. Assim, um homem não poderia ser justamente compelido a reconhecer outro como seu príncipe e senhor temporal; portanto, o principado político, que usurpa este domínio, não é legítimo nem procede de Deus.

3. Primeira asserção: o principado político, se devidamente introdu-zido, é justo. – Porém a verdade católica é que o principado político, se devidamente introduzido, é justo. Digo devidamente introduzido para excluir aquele poder usurpado pelo tirano, por tratar-se de violência, não de verdadei-ro e justo poder, uma vez que carece de justo título. Sobre o que seja um justo título, discorreremos no capítulo seguinte.

16 Commentaria in Acta Apostolorum, c. 6 (PG 118, 122A).17 Anastácio Sinaíta, Quaestiones et Responsiones, q. 146 (PG 89, 799D-802A).18 Enarrationes in Psalmos [2], 118, 31, 2 (PL 37, 1590).19 Salmos, 119:161.20 Comment. in epist. ad Titum 3, vv. 1- 2 (PL 26, 590C-D).21 Apologia, I, c. 17 (PG 6, 354C-355A).22 Stromata, VI, 7 (PG 9, 275-284B).

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PARTE 1 · LIVRO III, CAP. I, 1-4

A referida solução assim explicada encontra-se expressamente na Sagrada Escritura, em Provérbios [29:4]: O rei justo estabelece a terra; também [29:14]: O rei que julga os pobres com eqüidade terá seu trono firmado para sempre. Em Sabedoria [6:24]: Um rei sensato é a prosperidade de um povo. Nestas passa-gens, portanto, e em outras semelhantes, presume-se abertamente que os reis temporais são verdadeiros e legítimos príncipes ou senhores. Por tal motivo temos em I Pedro [2:13]: Por amor ao Senhor, sujeitai-vos, pois, a toda ordena-ção humana, seja à do rei como superior, etc. E mais abaixo [2:17]: Honrai ao rei. Também São Paulo, em Romanos [13:1]: Toda a alma esteja sujeita às potes-tades superiores. E pouco depois [13:5]: Não somente pelo castigo, mas também pela consciência. Ora, ninguém está obrigado a obedecer por consciência, a não ser a quem possui poder legítimo para ordenar. Além disso, dentre os Padres ensinou esta verdade Clemente de Roma: sede sujeitos a todo rei e poder naque-las coisas que agradam a Deus, assim como aos ministros de Deus e aos juízes dos ímpios. E depois: ofereçam-lhes todo o devido temor, todo imposto, todo tributo, etc. E conclui: esta é a lei de Deus.23 E o mesmo se lê em passagem posterior.24 Também Basílio de Cesaréia, em suas Regras Morais, observa aquilo dito na Epístola a Tito [3:1]: adverte que sejam sujeitos aos principados e poderes.25 Jerô-nimo também o confirma26 com exemplos tomados dos seres brutos, dizendo que também os animais mudos e os bandos de feras seguem seus líderes. Entre as abelhas há rainhas, e os grous seguem um dos seus em ordem literata. Um só é o imperador; um só é o juiz da nação, etc. E parece tê-lo tomado de Cipriano, de seu livro Sobre a Vaidade dos Ídolos.27

4. Prova de nossa asserção mediante argumento. – Também dos seguin-tes testemunhos pode coligir-se em primeiro lugar a razão dessa verdade, que se toma da necessidade desse principado e de seu poder, e conseqüentemente de seu fim, que é a conservação da república civil e humana. Pois o homem é propenso por natureza à sociedade civil, e dela carece sobremaneira para a conveniente conservação desta vida, como bem o ensinou Aristóteles, na Política, livro I, capítulos 1 e 2.28 Que isso também é ordenado por Deus para conciliar entre os homens a concórdia e a caridade, expõe-no Crisóstomo em

23 Constitutiones Apostolicae, IV, c. 13 (PG 1, 826A).24 Constitutiones Apostolicae, VII, c. 16 (PG 1, 1010A).25 Moralia, reg. 79, c. 2 (PG 31, 859B). 26 Epístola 125, 15 (PL 22, 1080).27 S. Cipriano de Cartago, De idolorum vanitate, VIII (PL 4, 576B).28 1253a2.

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longo discurso (Homilia 34) sobre a Epístola aos Coríntios.29 Pois uma comu-nidade de homens não pode conservar-se sem justiça e paz, nem estas podem preservar-se sem um governador que possua o poder do ordenamento e da coerção. Portanto, na cidade humana é necessário um príncipe político que a mantenha na prática de seu dever. Por isso diz-se em Provérbios [11:14]: Onde não há governador, o povo se arruína; e em Eclesiastes [10:16]: Ai de ti, terra cujo rei é uma criança, pois não basta haver um príncipe, se este não é apto a governar. E como pena ameaça-nos Isaías [3:4]: E dar-lhes-ei meninos por prín-cipes, e efeminados os reinarão. Logo, visto que a natureza humana não poderia ser destituída dos meios necessários à sua conservação, não se pode duvidar que, pela natureza das coisas, e observado o direito e a justiça naturais, na sociedade civil pode haver um príncipe político que detenha poder legítimo e suficiente. Este discurso pode ver-se em Agostinho (Proposições sobre a Epístola aos Romanos, n. 72)30 e é imitado por Anselmo (Sobre Romanos 13),31 Primá-sio32 e Lourenço Justiniano (Sobre a Agonia Triunfal de Cristo, capítulo 12).33

5. Para o principado político, basta uma só cabeça mística. – Podemos demonstrar o mesmo ponto mediante o exemplo natural do corpo huma-no, que não pode conservar-se sem cabeça. Pois a humana república existe à maneira de um só corpo, que não pode subsistir sem os vários ministros e ordens de pessoas que fazem as vezes de membros. Donde muito menos po-deria conservar-se sem um governador e príncipe, ao qual cabe buscar o bem comum de todo o corpo.

O mesmo se explica por – digamo-lo assim – exemplos extraídos da arte, como o do navio, que sem timoneiro necessariamente afundará. O mesmo vale para um exército que carece de comandante, e exemplos similares. Tam-bém apontam nesta direção os exemplos de outros animais, aduzidos por Ci-priano e Jerônimo, que (e isto é digno de nota) não apenas tendem a concluir que é necessário haver um príncipe na república, mas que deve haver somente um. Pois, di-lo Cipriano, nunca a associação no mando começou com confiança, nem terminou sem sangue. Ao contrário, fala-se de um principado soberano,

29 S. João Crisóstomo, In Epist. I ad Cor homil. XXXIV, 3 (PG 61, 290).30 PL 35, 2083-2084.31 Na verdade, comentários de Hervé de Bourg-Dieu, exegeta beneditino francês, contemporâneo de Santo Anselmo: Comment. in Epistolas Pauli – In Epist. ad Rom, XIII (PL 181, 774-782). 32 Primásio de Adrumeto, In epist. ad Romanus, 13 (PL 68, 496).33 Lourenço Justiniano, De Triumphali Christi agone, Opera omnia, Basiléia, Froben, 1560, pp. 462-467.

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PARTE 1 · LIVRO III, CAP. I, 4-6

pois sob ele pode haver vários governantes em diversas partes do reino, mas é necessário que todos se subordinem a um só, no qual repousa o poder su-premo. Pois, se fossem vários, não subordinados entre si nem a outro, de ne-nhuma maneira se poderia fazer que a unidade ou a concórdia, assim como a obediência, fossem preservadas com justiça e paz – como é suficientemente evidente. Mas também isto acerca de um só príncipe se deve entender não quanto à pessoa propriamente dita, e sim quanto ao poder, e conseqüentemente quanto à pessoa, seja ela física, mística ou política. Pois para a regência e pre-servação de uma sociedade civil humana não é absolutamente necessário que haja só um monarca (pois há outros regimes de governo suficientes, embora talvez não tão perfeitos, como veremos mais abaixo); quando falamos de um só principado político, entenda-se um só tribunal ou poder único, quer ele exista numa pessoa natural, quer num conselho ou congregação de muitos numa só pessoa fictícia, tal como numa só cabeça.

6. Segunda asserção: o poder político do príncipe provém de Deus. – Além da razão proveniente do fim e da necessidade de tal poder, devemos mos-trar sua justiça a partir de sua origem. Por este motivo, aduza-se que o príncipe político recebe seu poder do próprio Deus. Também isso, falando-se absoluta-mente, é verdade de fé; pois São Paulo (em Romanos 13) agrega expressamente, em razão da obediência devida a tal príncipe, que não há poder que não venha de Deus, e os que existem são estabelecidos por Deus. E mais abaixo: Pois ele é ministro de Deus. Também em Provérbios [8:15] diz-nos a sabedoria divina: Por mim reinam os reis. Também Sabedoria [6:1]: Ouvi, ó reis, etc., e [6:3]: é do Senhor que recebestes vosso poder, é do Altíssimo a vossa soberania. O mesmo consta em I Reis 10:9: Bendito seja o Senhor teu Deus, a quem aprouve elevar-te ao trono de Israel;34 também Daniel [2:37] disse a Nabucodonosor: O Deus do céu deu-te o reino, a força e o império. Vemo-lo também em Jeremias [27:6].

É esta mesma a doutrina comum dos Padres que expuseram as passagens anteriores de São Paulo, especialmente Crisóstomo35 e Orígenes, nos seus Comentários à Epístola aos Romanos, livro 9.36 Também Ecumênio37 afirma que, como a igualdade em todos era coisa sediciosa, Deus agregou a potestade.

34 No original, consta III Reis. À época da composição desta obra, eram quatro os livros dos Reis. Posteriormente, os dois primeiros foram separados e se tornaram os dois livros de Samuel. Portanto, III e IV Reis equivalem hoje a I e II Reis. Nesta tradução já incluiremos as referidas atualizações. [N. T.]35 In Epist. ad Rom. homil. XXIII, 3 (PG 60, 613-622).36 PG 14, 1226C-1227A.37 Comment. in Epist. ad Rom., XXVII (Rom. XIII, 1-8) (PG 118, 575B-562B).

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Na homilia ao Salmo 148,38 acerca daquelas palavras: “Os reis da terra, todos os povos, príncipes e todos os juízes da terra”, diz-se, entre outras coisas, que foi obra da providência de Deus o haver dividido o universo entre aqueles que gerem as magistraturas e aqueles que os obedecem. Igualmente o diz Gregório de Nazianzo, em sua Oração 17;39 Epifânio, em Contra Arcônticos, 40,40 entre outras coisas, diz do poder do príncipe: não provém de outro lugar senão de Deus. Também Isidoro de Pelúsio afirma que o império é formado e instituído por Deus.41 Teófilo de Antioquia42 igualmente diz: adorarei a Deus, não a César, mas ciente de que César foi ordenado por Ele; e mais abaixo defende que o rei (ou César) deve ser honrado, e que se deve orar a Deus por isso, pois o reino, ou império, assim como a administração das coisas, foi confiado ou demandado por Deus. O mesmo ensina extensamente Irineu,43 ao expor neste sentido diversos pontos da Escritura (especialmente São Paulo) e refutar outras interpretações. E principalmente Tertuliano,44 na obra A Escápula, II, capítulo 2: o cristão não é inimigo de ninguém, muito menos do imperador, a quem também é necessário que ele ame, reverencie, honre e deseje que se salve, por saber que o imperador foi instituído pelo próprio Deus. Finalmente, diz Agostinho, na Cidade de Deus: Não atribuamos o poder de conceder reino e império a ninguém senão ao Deus ver-dadeiro, etc.45 O mesmo se confirma na leitura dos Padres citados na asserção anterior, e também em outros a que me referirei no capítulo seguinte.

7. A razão de nossa asserção. – A razão de nossa asserção muito depende do modo em que se deve crer que Deus dá tal principado e poder, o que deve-mos estudar no capítulo seguinte. Portanto, agora a provaremos brevemente. Primeiro: todas as coisas que pertencem ao direito natural provêm de Deus como autor da natureza. Ora, o principado político pertence ao direito natu-ral. Logo, provém de Deus como autor da natureza.46 E assim esta asserção se

38 S. João Crisóstomo, Expositio in Psalmum CXLVIII, 5 (PG 55, 491).39 Oratio 17, 3 (PG 35, 976).40 S. Epifânio de Salamina, Adversus Haereses, I, 3, 40, 4 (PG 41, 684).41 Epistolarum, II, 216, ad Dionysium (PG 78, 659).42 Ad Autolycum, I, 11 (PG 6, 1042A).43 S. Irineu de Lyon, Contra Haereses, V, 24 (PG 7, 1186).44 Ad Scapulam, II (PL 1, 700A).45 De Civitate Dei, V, 21 (PL 41, 167).46 A expressão “natureza” empregada por Suárez não condiz com a noção naturalista tão contestada por Hume e outros filósofos modernos. Antes, natureza aqui corresponde à forma substancial, um dos sentidos possíveis de seu significado, conforme ensina Aristóteles na Metafísica, V, 4. Isso significa que o direito natural para o granadino não coincide com a posição estóica, segundo a qual o direito

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PARTE 1 · LIVRO III, CAP. I, 6-8

fundamenta na precedente, pois, visto que este principado é justo e legítimo, não pode senão ser condizente com o direito natural; e, sendo ele necessário à conservação da sociedade humana – a qual a própria natureza humana deseja –, por esta mesma razão ele decorre do direito natural, que exige tal poder. Portanto, assim como Deus, que é autor da natureza, é também autor do di-reito natural, assim também é autor desse primado e poder. Pois, como afirma o Filósofo, aquele que dá a forma, dá as coisas que dela decorrem.47

Esta mesma ilação também se poderia fazer da seguinte maneira: como todo o bem emana de Deus como de seu autor principal, consta em Tiago [1:17] que toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto; ora, o principa-do político é bom e honesto, como já mostramos. Portanto, procede de Deus.

Finalmente: por esta razão, os reis terrenos são chamados na Escritura “mi-nistros de Deus”, como vimos. Logo, seu poder é ministerial com respeito a Deus. Assim, Ele próprio é o autor principal de tal regime. E isso se diz princi-palmente daquele poder que o príncipe político tem para punir os maus, ainda que privando-os da vida, caso seja necessário. Pois isso não poderia ser feito sem o assentimento divino, pois apenas Deus é senhor da vida do homem, e a isso fez menção São Paulo, ao dizer (em Romanos 13:4) que não traz a espada sem motivo, porque é ministro de Deus, e vingador para castigar o que faz o mal. Daí também Agostinho48 dizer que até o poder dos que fazem dano não procede senão de Deus; e cita ainda aquela passagem: Por mim reinam os reis, etc.

8. Desfaz-se o fundamento do erro afirmado no princípio. – Assim, facilmente se vê a resposta ao fundamento do erro contrário – entendido no segundo sentido que se afirmara acima – no qual se propunha algo contrário à verdade católica. Pois, por mais que o homem tenha sido criado livre, não o foi sem capacidade e aptidão para, com causa justa e afim à razão, poder sujeitar-se a outro homem. Certa sujeição é até natural ao homem, quer con-sideremos o modo natural da geração, como o é a sujeição do filho ao pai, quer

natural aproxima-se de um direito da natureza. Quer dizer, sim, que o principado político é de direi-to natural por pertencer ao âmbito da criação divina enquanto forma adequada para a comunidade humana. Por isso, não é possível afirmar que Suárez tenha incorrido em falácia naturalista. [N. C.]47 De cariz tipicamente aristotélico e difundida largamente na escolástica tardia, esta sentença deriva mais diretamente – se escolhemos ater-nos ao formato específico utilizado acima – dos comentários de Santo Tomás ao Estagirita. Cf. De Caelo et Mundo, III, lect. 7, n. 8.: “aquele que gera (...), quando dá a forma, dá por conseqüência o movimento natural, assim como todos os acidentes naturais que se seguem à forma”. Cf. também Contra Gentiles, III, c. 99, n. 4: “pois aquele que gera, que é o que dá a forma, dá todas as propriedades que dela se seguem”. [N. T.]48 De Natura Boni contra Manichaeos, 32 (PL 42, 561).

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consideremos certo pacto, como o é a sujeição da esposa ao marido. Assim, posta a sociedade civil, é natural a sujeição de cada uma das pessoas ao poder público ou ao principado político, enquanto conseguinte à reta razão natural e necessária à conveniente conservação da natureza humana. Por isso, esta su-jeição nem repugna à condição do homem, nem redunda em injúria a Deus, pois, embora o príncipe político seja rei, legislador e senhor em seu próprio patamar, é-o de modo muitíssimo diverso e inferior ao de Deus. Pois do ho-mem apenas dizemos estas coisas por certa participação, na medida em que as dizemos de um ministro de Deus; só a Deus elas convêm principalmente e por essência.

Já se entendemos o erro no primeiro sentido acima afirmado, então não se opõe à asserção católica por nós proposta. Pois, embora o povo judeu, por privilégio divino particular, fosse isento de sujeitar-se com justiça aos reis pa-gãos, ainda assim na própria república dos judeus pudemos encontrar legítimo principado político, como de fato houve em seu tempo; e o mesmo princi-pado se via também nos outros reinos e nações gentias, e em cada príncipe soberano havia poder semelhante sobre os povos que lhe estavam sujeitos.

Não obstante, também neste sentido a referida posição careceu de funda-mento sólido – mas agora não temos condições de ponderar, nem tampouco de examinar, se foi com justiça e legitimamente que eles estiveram sujeitos aos romanos e tiveram de pagar-lhes tributo, ou se o foram por injustiça e tirania. Pois tais questões nada têm a ver com o tema presente.

Capítulo II

Se o principado político provém imediatamente de Deus, isto é, se procede por instituição divina

1. O rei Jaime opina que o principado político procede imediatamente de Deus. 2-4. O que se requer para que um poder seja imediatamente concedido por

Deus. 5. A soberania civil só é conferida imediatamente por Deus à comunidade perfeita. Provamos a primeira parte da asserção com um primeiro argumento. 6. Provamo-la com um segundo argumento. 7. Prova-se a segunda parte da

asserção. 8. Objeção. Solução. 9. De que modo se diz que a democracia procede do direito natural. 10. Nenhum principado político procede imediatamente de Deus. 11-12. Confirmação pelos Santos Padres. 13. Prova-se a conclusão mediante a razão. 14. Demonstra-se a mesma conclusão mediante exemplos.

15. Objeção. 16. A vontade humana pode intervir de dois modos na transferência de um poder que emana de Deus. Primeiro modo. 17-20. Segundo modo.

1. O rei Jaime opina que o principado político procede imediata-mente de Deus. – A questão do capítulo precedente foi tratada em razão desta que agora proponho. Nela não tínhamos nenhuma contenda com o rei da Inglaterra, mas foi necessário apresentá-la para que se possa enten-der o tema presente. Nele, o sereníssimo rei não só opina de modo novo e singular, mas também investe acerbamente contra o cardeal Belarmino, por este haver dito que a autoridade não é concedida por Deus aos reis ime-diatamente, à maneira como o é aos pontífices.49 Afirmou Jaime, então, que o rei recebe seu poder não do povo, mas imediatamente de Deus, e procura provar sua posição com alguns argumentos e exemplos, cuja eficácia expo-remos no capítulo seguinte.

49 Apologia pro Iuramento Fidelitatis, Praefatio, Londres, Opera Regia, 1609, pp. 139-140.

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2. O que se requer para que um poder seja imediatamente concedido por Deus. – Mas, embora esta controvérsia não pertença diretamente aos dogmas da fé (pois dela nada de definitivo se pode demonstrar a partir da di-vina Escritura ou da tradição dos Padres), ainda assim deve ser diligentemente tratada e explicada, não só porque pode gerar ocasião de erro em outros dog-mas, mas porque a referida asserção do rei – da maneira em que a assevera e quer que seja entendida – é coisa nova e singular e parece haver sido elaborada para exagerar o poder temporal e atenuar o espiritual; e, finalmente, porque julgamos que a antiga sentença recebida do ilustríssimo Belarmino é verda-deira e necessária. Para que o mostremos, é necessário antes esclarecer o que significa um poder proceder imediatamente de Deus, ou – o que é o mesmo – Deus ser causa imediata e autor de um poder.

Pois, para que Deus seja causa próxima, requer-se especialmente que Ele confira tal poder por sua própria vontade; não basta que Deus atribua o poder à maneira de causa primeira e universal. Porque, embora também possamos dizer de certo modo que Deus realiza ou provê imediatamente tudo aquilo que d’Ele decorre como de causa primeira, quer sob razão de virtude próxima, quer como supósito imediato (como o distinguem os filósofos), ainda assim este modo de realização não nos basta no caso presente, pois não há nenhum poder que deste modo não provenha de Deus como causa primeira, e (por conseqüência) imediatamente segundo tal gênero.

Pois também assim aquele poder conferido imediatamente pelos homens, pelo rei ou pelo Pontífice é dado por Deus enquanto causa primeira que influi imediatamente em tal efeito e no ato da vontade criada, pela qual o poder é dado proximamente. Ora, tal poder não se diz proceder imediatamente de Deus simpliciter, mas apenas secundum quid.50 Pois é concedido proximamen-te pelo homem, e dele depende.

Portanto, só se diz de modo absoluto que um poder é dado imediatamente por Deus quando apenas Deus é causa próxima mediante sua própria vontade e dá per se tal poder. E é desta maneira que falamos no presente âmbito; do contrário seria frívola e inútil esta disputa.

3. Além disso, cabe ainda distinguir dois modos pelos quais Deus pode e costuma conceder um poder imediatamente, isto é, somente por sua própria

50 Simpliciter e secundum quid correspondem à versão latina dos termos aristotélicos ἁπλός e κατὰ τί. Herdados pela escolástica como um todo e utilizados normalmente sem tradução vernácula, sig-nificam respectivamente em sentido absoluto e segundo algo (ou seja, sob certo aspecto). Cf. Topica, B, 11, 115a25-b35. [N. T.]

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PARTE 1 · LIVRO III, CAP. II, 2-4

capacidade e vontade. Um deles é dando um poder que está conectado neces-sariamente, pela natureza das coisas, a alguma natureza criada pelo próprio Deus. E isto pode considerar-se facilmente nas faculdades físicas. Pois, criando Deus a alma, dá-lhe imediatamente intelecto e vontade – uma vez que, em-bora estas potências fluam naturalmente da própria alma, apenas Deus cria a alma imediatamente, e por isso dizemos que Ele confere imediatamente as potências que dela derivam.

E o mesmo se dá – guardadas as proporções – no poder moral: o poder do pai sobre o filho é um poder moral, e é conferido imediatamente por Deus enquanto autor da natureza; não como um dom peculiar totalmente distinto da natureza, mas como conseqüente a ela por necessidade, suposto o funda-mento da geração. Igualmente, em sentido inverso, a sujeição do filho ao pai é natural e procede de Deus imediatamente, não por uma instituição peculiar acrescentada à natureza, mas como conseqüente por necessidade à natureza racional assim produzida.

Do segundo modo, o poder é imediatamente dado por Deus per se (por assim dizer) e por doação particular, não enquanto necessariamente conecta-da com a criação de uma coisa, mas enquanto voluntariamente acrescentada por Deus a certa natureza ou pessoa. Disto podemos dar exemplos como que físicos51 e exemplos morais. Pois o poder próximo para realizar milagres é algo como físico, mas Deus o confere a quem Ele quer, não por algum dever, se-não por determinação de sua própria vontade. Também o poder de jurisdição dado a Pedro, por exemplo, era moral, mas Deus o conferiu imediata e dire-tamente, per se. A razão da distinção, pois, não é outra senão que os próprios poderes podem ser de variados tipos e ordens, e que Deus é capaz de operar de dois modos: conaturalmente e preternaturalmente (ou sobrenaturalmente).

4. Portanto, como pretende o monarca que Deus dá imediatamente aos reis o poder temporal, deve-se ver se tal asserção poderia ser verdadeira de algum dos modos mencionados. Antes, porém, devemos tratar do sujeito ao qual se diz que Deus daria imediatamente esse poder, e para que governo (e qual tipo de governo) se julga que Ele o daria. Pois pode-se considerar tal poder, ou na medida em que ele está (ou pode estar) em todo o corpo político da

51 “(...) quasi physica”. O lat. “quasi” não nos indica algo que está “no limiar” ou “à beira” de ter certa característica, mas algo que dela participa em certa medida ou sentido limitado. Vertê-lo por “como” ou “como que” é solução que, embora não seja a ideal para a fluidez de leitura, evita falhas de compre-ensão. Já nos casos da aplicação deste advérbio a substantivos, o circunlóquio é desnecessário, por nos valermos do hífen; vejam-se, por exemplo, termos como “quase-contrato” e “quase-prova”. [N. T.]

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FRANCISCO SUÁREZ · DEFESA DA FÉ CATÓLICA

comunidade ou sociedade humana, ou enquanto ele existe (ou pode existir) nestes ou naqueles membros de uma mesma comunidade.

Ademais, pode-se considerá-lo ou de modo precisivo52 e abstrato, ou de-terminado a certa espécie de governo político. Ora, como consta na doutrina moral comum dos filósofos, três podem ser os regimes da república53 humana: o monárquico, com um príncipe soberano que corresponde a uma só pessoa; o aristocrático, com um conselho ou tribunal soberano composto de vários optimates; e o democrático, regido pelos sufrágios de todo o povo. Estes são os três modos simples, mas deles podem também compor-se outros que parti-cipem de dois deles, ou ainda dos três; tais são os chamados governos mistos. Portanto, o principado político pode considerar-se, ou per se e precisivamente, como certo poder soberano de reger civilmente uma república, com abstração deste ou daquele modo de regência (quer simples, quer misto), ou enquanto determinado a certa espécie de regime dentre os que enumeramos.

Assim propostas e distintas as coisas, poderemos estabelecer – sem qual-quer ambigüidade e com razão evidente – de que forma o principado político de fato procede imediatamente de Deus, mas não é dado aos reis e senados supremos imediatamente por Ele, e sim pelos homens.

5. A soberania civil só é conferida imediatamente por Deus à comunidade perfeita. Provamos a primeira parte da asserção com um primeiro argu-mento. – Em primeiro lugar, a soberania civil, vista em si mesma, é dada imedia-tamente por Deus aos homens congregados numa comunidade ou sociedade po-lítica perfeita, não em razão de uma instituição particular e como que positiva, ou de uma doação totalmente distinta da produção da natureza humana, mas antes pela conseqüência natural da força54 de sua criação primeira. Assim, pela força de tal doação não resulta esse poder numa só pessoa, nem numa peculiar congrega-ção de muitas, mas em todo o povo perfeito,55 ou seja, no corpo da comunidade.

52 O advérbio latino praecise não tem aqui o sentido de “exatidão”, mas refere-se àquela conside-ração em que prescindimos das condições particulares em que algo se encontra imerso. Este modo de consideração é também significado na escolástica pelo termo praecisive, e preferimos vertê-lo a partir desta variante, para evitar confusões derivadas de traduzi-lo como “precisamente” ou “de modo preciso”. [N. T.]53 Naturalmente, o termo república deve aqui ser lido no contexto clássico e amplo de coisa pública, ou seja, a comunidade e sua estrutura de governo. [N. T.]54 O lat. vis significa “força” no sentido amplo de poder, virtude, capacidade. Utilizamos “força” em vez de “poder” para evitar homonímia com o tema onipresente do poder político. [N. T.]55 O adjetivo “perfeito”, aqui presente em expressões como “povo perfeito” e “comunidade perfeita” não indica uma moralidade imaculada de seus membros, nem a ausência de todo e qualquer defeito. Compreendê-lo assim nos levaria a desvios de teoria política (e de antropologia e teologia) completa-

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Esta posição, com respeito a todas as suas partes, é comum não apenas aos teólogos, mas também aos jurisperitos, que prontamente mencionarei. Agora demonstrarei pela razão cada uma de suas partes.

A primeira e a segunda se dão porque esse poder político é natural. Pois, mesmo sem qualquer intervenção da revelação sobrenatural ou da fé, e apenas pelo ditame da razão natural, esse poder seria reconhecido na república hu-mana como absolutamente necessário para sua conservação e eqüidade. Isso é sinal, portanto, de que se encontra na comunidade como propriedade con-seqüente à sua natureza ou criação, e à sua instituição natural. Pois, se além disto fosse necessária uma doação ou concessão especial de Deus, sem conexão com a natureza, ela não poderia constar pela pura razão natural; antes seria forçoso que fosse manifestada mediante revelação aos homens, para que dela pudessem ter certeza. E isso é falso, como se vê pelo que dissemos.

6. Provamo-la com um segundo argumento. – Que seja necessário afir-mar que tal poder procede imediatamente de Deus ao menos desta maneira, isto concluímos facilmente a partir dos mesmos princípios; pois aquilo que se segue imediatamente à natureza é dado pelo autor próprio e imediato des-ta natureza, como afirmei. Ora, esse poder é certa propriedade conseqüente à natureza humana enquanto congregada num só corpo político, conforme demonstramos. Logo, é dada imediatamente por Deus, enquanto autor e pro-vedor de tal natureza.

Isto se pode provar, ademais, porque esse poder procede de Deus (como o expusemos no capítulo anterior), e com respeito a tal comunidade não inter-vém entre Deus e ela nenhum meio (por assim dizer) pelo qual o poder lhe

mente estranhos ao pensamento de Suárez. A perfeição à qual o autor se refere é aquela de tipo estru-tural, com a qual podemos dizer que algo não carece do que lhe seja essencialmente imprescindível. Pode-se dizer que, no âmbito da política, uma comunidade perfeita é um conjunto auto-suficiente de famílias reunido em torno de uma finalidade comum (Cf. Politica, A, c. 1, 1252a-1253a). Seu mode-lo mais fundamental é o da cidade-estado clássica. Ademais, sendo as leis um elemento imprescindí-vel para a auto-suficiência e para a ordenação a um fim, vale mencionar a maneira complementar na qual, posteriormente a Aristóteles, bem descreveria Cícero a própria noção de “povo” (De Re Publica, I, 39): “Não chamamos ‘povo’ a um conjunto de homens reunido de qualquer modo, mas àquele congregado mediante o consenso do direito e a comunhão da utilidade”. [N. T.]A expressão “comunidade política perfeita” é alusiva ao tratamento conferido à pólis no Livro I da Política de Aristóteles, para quem a cidade é a mais excelente das formas de vida humana, já que é na comunidade política que a vida boa é alcançada plenamente. Coincide com o termo “principatus politicus”, explicitado acima, na nota 15. O termo “comunidade política perfeita”, além disso, designa o modo de vida política necessário para que o corpo social possa receber de Deus a transferência do supremo poder civil (“Em primeiro lugar, a soberania civil, vista em si mesma, é dada imediatamente por Deus aos homens congregados numa comunidade ou sociedade política perfeita”). [N. C.]

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seja atribuído; pois, pelo próprio fato de que os homens se congreguem no corpo de uma só sociedade ou república, cria-se nela o referido poder, sem intervenção de qualquer vontade criada – e isso com tamanha necessidade, que não poderia ser impedido pela vontade humana. Isso é sinal, portanto, de que procede imediatamente de Deus, intervindo apenas aquela resultância natural (ou conseqüência da natureza) e o ditame da razão natural, a qual mais demonstra esse poder do que apenas o exibe. Ora, a imediata emanação desse poder por parte de Deus, se declarada deste modo, jamais foi negada pelo cardeal Belarmino: antes ele a supôs, pois não postulou nenhum intermediário entre Deus e o povo; ao contrário, quis que entre o rei e Deus fosse o povo o intermediário pelo qual o rei recebe tal poder. E são muito diferentes entre si estas posições, como prontamente explicarei.

7. Prova-se a segunda parte da asserção. – Disto temos também como evidente – como dizíamos na última parte de nossa asserção – que esse poder, considerado de modo precisivo, enquanto procede do autor da natureza como por conseqüência natural, não reside numa só pessoa, nem em qualquer co-munidade particular, seja de optimates, seja de quaisquer facções do povo. Isso porque, pela natureza das coisas, este poder só se dá na comunidade inteira, não numa só pessoa ou senado. Logo, visto que procede imediatamente de Deus, só se o concebe como existente em toda a comunidade, não em alguma parte dela. E entenda-se “parte da comunidade” não apenas no sentido individual ou material (por assim dizer), mas também enquanto concebida formal, indeter-minada ou vagamente. Ou seja, não ocorre imediatamente numa determinada pessoa (Adão, Tiago, Filipe), nem exige por natureza que se encontre num única pessoa – e o mesmo vale proporcionalmente para um senado, quer se o considere materialmente (como constando de tais ou quais pessoas), quer for-malmente, enquanto congregação de certo tipo ou número de pessoas.

O motivo disto é manifesto: por força da razão natural, não se pode con-ceber motivo algum pelo qual este poder se determine a uma só pessoa, ou a certo número de pessoas inferior a toda a comunidade, ou a este número mais que qualquer outro. Logo, no que deriva da concessão natural, ele se encontra apenas na comunidade.

Afirmamos, por fim, que pela mera força da razão natural não se determina um principado político como monarquia, nem como aristocracia simples ou mista, pois não há nenhum motivo que convença ser necessário um modo específico de regime. E confirma-o o próprio uso, pois diversas regiões ou nações elegeram diversos modos de governo, e nenhuma delas opera direta-

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mente contra a razão natural ou contra a imediata instituição divina. E isso nos sinaliza que o poder político não procede imediatamente de Deus para ser dado a uma só pessoa, seja príncipe, rei ou imperador – o que, do contrário, seria uma monarquia instituída imediatamente por Deus – nem a um senado em particular, ou congregação específica de uns poucos príncipes – o que, do contrário, seria uma aristocracia instituída imediatamente por Deus. E o mesmo argumento poderia mover-se contra qualquer dos governos mistos.

8. Objeção. Solução. – Mas dirás que, se esse raciocínio fosse eficaz, pro-varia também que Deus não deu o poder político imediatamente a toda a comunidade, pois de outro modo a democracia surgiria imediatamente por instituição divina, tal como, em oposição a nós, inferiu-se sobre a monarquia e a aristocracia.

Mas isso não é menos falso e absurdo na democracia do que nas demais formas de governo: primeiro, porque, assim como a razão natural não deter-mina como necessária a monarquia ou a aristocracia, tampouco o faz quanto à democracia; e muito menos ela, que é a mais imperfeita de todas, como o atesta Aristóteles e é evidente por si. Segundo, porque, se tal instituição fosse divina, não poderia ser alterada pelos homens.

Respondemos, então, negando a primeira ilação, pois do fato de que tal po-der não seja dado por um Deus que institui uma monarquia ou aristocracia, an-tes se conclui necessariamente que foi dado a toda a comunidade, uma vez que não resta nenhum sujeito humano (por assim dizer) a quem se poderia dá-lo.

À segunda ilação – a saber, a de que a democracia nasceria por instituição divina – respondemos que, se se a entende enquanto instituição positiva, ne-gamos tal conclusão. Se, por outro lado, se a entende enquanto instituição como que natural, isso pode e deve admitir-se sem nenhum inconveniente. Pois é muito notável a diferença entre estas formas de governo político: a mo-narquia e a aristocracia não puderam introduzir-se sem alguma instituição di-vina ou humana, visto que a pura razão natural, por si mesma, não determina qualquer destas formas como necessária, conforme foi dito. Portanto, como na natureza humana – considerada sem a fé ou a revelação divina – não tem lugar uma instituição positiva, conclui-se necessariamente que tais formas de governo não procedem imediatamente de Deus.

Já a democracia pode existir sem instituição positiva, por mera instituição ou emanação natural, quando da mera negação de uma instituição nova ou positiva; e isso porque a própria razão natural determina que a soberania po-lítica se segue naturalmente à comunidade humana perfeita, e que, por força

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desta mesma razão, pertence a toda a comunidade – a não ser que mediante nova instituição ela se transfira a outro, uma vez que por ditame da razão tampouco tem lugar outra determinação, nem se postula outra mais imutável.

9. De que modo se diz que a democracia procede do direito natural. – Esse poder, portanto, na medida em que é imediatamente dado por Deus à comunidade, pode dizer-se (segundo a maneira de expressar-se dos juris-peritos) pertencer ao direito natural à maneira negativa, não positiva – ou melhor, ao direito natural concessivo, não simpliciter preceptivo. Pois com certeza o direito natural dá per se e imediatamente esse poder à comunidade, embora não prescreva absolutamente que ele nela permaneça sempre, nem que por ela tal poder seja exercido imediatamente, mas apenas enquanto esta mesma comunidade não determina outra coisa, ou enquanto uma mudança não houver sido feita legitimamente por alguém dotado de poder. Seja exem-plo a liberdade do homem, que se opõe à servidão: ela é de direito natural, porque pela mera força do direito natural o homem nasce livre, e não pode ser levado à servidão senão a título legítimo. O direito natural não prescreve que todo homem sempre permaneça livre, ou (o que é o mesmo) não proíbe simpliciter que seja levado à servidão, mas apenas que isso não ocorra sem seu livre consentimento, ou sem justo título e poder. Assim, portanto, a perfeita comunidade civil é livre por direito natural e não se sujeita a nenhum homem fora dela. Ela inteira possui em si um poder que, caso não se altere, permanece democrático; não obstante, pode privar-se de tal poder e transferi-lo a uma pessoa ou senado, seja por sua própria vontade, seja por [vontade de] outro que possua poder e justo título.56

10. Nenhum principado político procede imediatamente de Deus. – Assim, concluímos que nenhum rei ou monarca obtém ou obteve (segundo lei ordinária) o principado político imediatamente de Deus, mas mediante vontade e instituição humanas. É este um egrégio axioma da teologia, não como o proferiu o rei, à maneira de chiste,57 mas verdadeiramente: pois é maxi-mamente verdadeiro se bem compreendido, e maximamente necessário para entender os fins e limites do poder civil. E não é algo novo, nem inventado

56 Dado o sentido aqui empregado, a palavra democracia se diz de dois modos: no primeiro, a palavra é tomada no seu sentido literal – poder do povo. A democracia natural deve ser entendida nesta acepção. No segundo, a democracia é tomada como uma modalidade de regime político, em comparação com a monarquia ou a aristocracia. [N. C.]57 Jaime I, Apologia, p. 140.

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pelo cardeal Belarmino, como o referido monarca parece atribuir-lhe.58 Pois muito antes ensinou-o o cardeal Caetano, em sua Apologia, ou Tract. 2 de Auctoritat. Papae, p. 2, c. 10;59 também Castro, no livro I de De Leg. Poenal., c. 1;60 e Driedo, no livro I de De Libertat. Christ., c. 19;61 e Vitória, em Relect. de Potestat. Civil., n. 8 e ss.;62 o mesmo consta também em suas Relect. 2 De Potestat. Eccles., concl. 3 e ad. 1.63 Ainda o diz Soto, no livro IV de De Iustit., q. 2, art. 1, no discurso de conclusão 1, e de modo geral na questão 4, art. 1.64 Seguiu-os Luís de Molina, no Tractat. 2 de De Iustit., disp. 21.65 E insinua-o Tomás de Aquino, na Summa Theologica Ia-IIae, q. 90, art. 3, e q. 97, art.3, e mais claramente em IIa-IIae, q. 10, art.10.

E não só entre os teólogos, senão também entre os juristas sustenta-se co-mumente essa doutrina, tal como exposto no Digesto;66 entre os modernos, veja-se Azpilcueta Navarro67 e também Covarrubias,68 que também citam ou-tros autores.

11. Confirmação pelos Santos Padres. – Além disso, essa verdade pode depreender-se dos santos Padres. Primeiro, porque freqüentemente afirma-ram que o homem foi criado por Deus nobre e livre, e que apenas recebeu imediatamente de Deus o poder de dominar os animais brutos e as coisas in-feriores; já o domínio do homem sobre outros homens pela vontade humana foi introduzido pelo pecado ou por certa adversidade. Ambrósio no-lo explica em Sobre Colossenses 3,69 ao fim; e de modo mais extenso o faz Agostinho, na Cidade de Deus XIX, 15,70 e no livro Questões sobre o Gênesis, q. 153;71 também

58 S. Roberto Belarmino, Recognitio librorum omnium, Recognitio Libri Tertii (de laicis), Ingolsta-dt, 1608, pp. 56-64.59 Tomás Caetano, De comparatione autoritatis Papae et Concilii, in Opuscula omnia, Lyon, 1562, trat. 2, c. 10, ad. 5 e ad 2ª confirm., p. 39.60 Alfonso de Castro, De Potestate Legis Poenalis, Lyon, 1556, I, c. 1, pp. 5-21.61 João Driedo de Turnhout, De Libertate Christiana, Louvain, 1540, I, c. 2, pars 3, p. 98.62 Francisco de Vitória, Relectiones theologicae, Lyon, 1586, III, De potestate civili, 8, p. 108.63 Op. cit., II, De potestate Ecclesiae, p. 63.64 Domingo de Soto, De iustitia et iure, Lyon, 1559, IV, pp. 207-9; pp. 218-221.65 De Iustitia et iure, Mainz, 1602, vol. I, trat. II, disp. 21, p. 109.66 Corpus Iuris Civilis Romani, Digesta, Nápoles, 1828, lib. I, tit. II e IV, pp. 214-221; p. 224.67 Martín de Azpilcueta Navarro, Commentarii et tractatus, Veneza, Nicolinus, 1601, t. III, Relectio cap. Novit de Iudicis, Notabile tertium, n. 41, fol. 67. 68 Diego de Covarrubias e Leiva, Practicae Quaestiones, Lyon, 1558, cap. 1, n. 6, fol. 7. 69 Comment. in epist. ad Col., c. 4 (PL 17, 439B).70 De Civitate Dei, 19, 15 (PL 41, 643).71 Quaestiones in Heptateuchum, I, 153 (PL 34, 589-590).