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A desa das cotas como estratégia potica do movimento negro contemporâneo Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira Atualmente, as cotas para ingresso nas universidades públicas constitu- em um dos assuntos mais destacados no debate sobre a questão racial no Brasil. N este texto, procura-se compreender essa evidência no contexto da ação do mo- vimento negro, que tem crescido muito nas últimas décadas. No: Este trabalho! frulo do projeto "História do movimento neo no Brasil: constituição de acervo de entrevistas", desenvolvido a partir de setembro de 2003 por Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira no CPDOC/FGV. Em seu primeiro ano de vigência, a pesquisa contou com o apoio do Somh·50mh Exchange Programme for Research 00 the History of Developent (Sephis) c. em janeiro de 2004, passou a integrar o projeto "Direitos e cidadania", aprovado pelo Programa de Apoio aos Núcleos de Excelência (Pranex) do Minist!rio da Ciência e Tecnologia. Sobre o projeto, ambos os autores escreveram "História do movimento negro no Brasil: constituição de acervo de entrevistas de história oral", trabalho apresentado no lU Songresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, realizado em São Luís, na Universidade Federal do Maranhão, de 6 a 10 de setembro de 24, e "Movimento negro e 'democracia racial' no Brasil: entrevistas com lidennças do movimento negro", trabalho apresentado na Terceira Conferência Bienal da Associação para o Estudo da Diáspora Africana Mundial (The Assoeiation for the Study of the Worldwide Afriean Dias- pora - Aswad), realizada de 5 a 7 de outubro de 2005, no Rio de Janeiro. Os textos estão disponíveis em w .cpdoc.fgv.br. Venma Alberti é coordenadora do Programa de História Oral do CPDOC/FGY Amilcar Araujo Pereira é doutorando em História Social na R Esos Hisos, Rio de Janeiro, nO 37, janeiro-junho de 2006. p. 143-166. 143

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A defesa das cotas como estratégia política do movimento negro contemporâneo

Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira

Atualmente, as cotas para ingresso nas universidades públicas constitu­em um dos assuntos mais destacados no debate sobre a questão racial no Brasil. N este texto, procura-se compreender essa evidência no contexto da ação do mo­vimento negro, que tem crescido muito nas últimas décadas.

NoUl: Este trabalho! frulo do projeto "História do movimento negro no Brasil: constituição de acervo de entrevistas", desenvolvido a partir de setembro de 2003 por Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira no CPDOC/FGV. Em seu primeiro ano de vigência, a pesquisa contou com o apoio do Somh·50mh Exchange Programme for Research 00 the History of Developrnent (Sephis) c. em janeiro de 2004, passou a integrar o projeto "Direitos e cidadania", aprovado pelo Programa de Apoio aos Núcleos de Excelência (Pranex) do Minist!rio da Ciência e Tecnologia. Sobre o projeto, ambos os autores escreveram "História do movimento negro no Brasil: constituição de acervo de entrevistas de história oral", trabalho apresentado no lU Songresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, realizado em São Luís, na Universidade Federal do Maranhão, de 6 a 10 de setembro de 2004, e "Movimento negro e 'democracia racial' no Brasil: entrevistas com lidennças do movimento negro", trabalho apresentado na Terceira Conferência Bienal da Associação para o Estudo da Diáspora Africana Mundial (The Assoeiation for the Study ofthe Worldwide Afriean Dias­pora - Aswad), realizada de 5 a 7 de outubro de 2005, no Rio de Janeiro. Os textos estão disponíveis em www.cpdoc.fgv.br. Venma. Alberti é coordenadora do Programa de História Oral do CPDOC/FGY. Amilcar Araujo Pereira é doutorando em História Social na UFR

Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nO 37, janeiro-junho de 2006. p. 143-166.

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Em que consiste esse movimento? Na verdade, o que se tem observado ao longo da história é a constituição de diversos movimentos, que têm em co­mum a reivindicação de melhores condições de vida para a população negra. Um dos primeiros grupos de negros organizados politicamente de que se tem notícia é a Frente Negra Brasileira (FNB), criada em 1931, em São Paulo, com ramifica­ções em outros estados, e transformada em partido político em 1936 (mas logo extinta, como os demais partidos, pelo Estado Novo, em 1937). Precedeu a FNB um conjunto de jornais, publicados também na cidade de São Paulo a partir de 1915, e que, nos anos 20, passaram a ter um caráter de denúncia da discriminação racial. Era a chamada "imprensa negra paulista", de onde surgiram alguns dos fundadores da FNB.

Na década de 1940 registra-se a fundação de diversas entidades, como a Orquestra Afro-Brasileira, criada em 1942 por Abigail Moura; o Teatro Popular Brasileiro, fundado em 1943 por Solano Trindade; a União dos Homens de Cor, iniciada em Pono Alegre, em 1943, com ramificações em dez estados da federa­ção; o Teatro Experimental do Negro (TEN), criado em 1944 por Abdias do Nas­cimento; O Comitê Democrático Afro-Brasileiro, instituído em 1946, e a compa­nhia afro-brasileira de dança Brasiliana, fundada em 19�9. Nessa mesma década, Abdias do Nascimento organizou a I e a II Convenção Nacional do Negro (1945 e 1946) e o I Congresso do Negro Brasileiro (1950). Todas essas iniciativas sofre­ram um processo de desmobilização, vindo a desaparecer antes ou durante a dé­cada de 1960.

Nos anos 70 surgiram várias entidades, em diferentes estados, configu­rando aquilo que se convencionou chamar de "movimento negro contemporâ­neo", que se caracterizaria por uma ênfase na denúncia do mito da democracia racial. Segundo esse mi to, as relações raciais no Brasil seriam harmoniosas, haja vista a celebração da miscigenação como símbolo da identidade nacional. O novo movimento negro, que nasce durante o regime militar e cresce no período de abertura política, tem como tarefa, de acordo com suas lideranças, evidenciar a existência de racismo na sociedade brasileira e desenvolver uma consciência ou identidade negra.!

Esse movimento negro contemporâneo é objeto da pesquisa "História do movimento negro no Brasil: constituição de acervo de entrevistas", que está sendo desenvolvida no CPDOC/FGV desde setembro de 2003 e já conta com 27 depoimentos, totalizando mais de 70 horas de gravação, As entrevistas com lide­ranças atuantes desde a década de 1970 são conduzidas com vistas a perceber a relação entre a história social e a trajetória individual de cada entrevistado. Nes­se sentido, a conversa inicia-se com perguntas sobre a infância e a socialização doCa) entrevistadoCa): onde e quand. o nasceu, origens familiares, primeiros estu­dos etc. Em seguida, procura-se acompanhar sua trajetória até a atuação no mo-

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A defesa das cotas como estl'atégia política do movimento negro contemporâneo

vimento negro, tentando observar as condições que oCa) conduziram a essa esco­lha. São tratados os marcos significativos para a formação e a consolidação do movimento, tanto os que contaram com a participação direta doCa) entrevista­doCa) como os que já fazem parte de uma memória coletiva do grupo. As relações entre os vários grupos militantes, entre estes e outros movimentos sociais (nota­damente os grupos de esquerda) e, finalmente, entre o movimento negro e as di­ferentes instâncias do poder público também são assuntos largamente explora­dos nas entrevistas do projeto.

O objetivo deste texto é procurar compreender o processo pelo qual a questão das cotas para ingresso na universidade pública se transformou, nos últi­mos quatro anos, em uma bandeira do movimento negro, capaz de aglutinar as demais reivindicações e mobilizar diferentes ações do Estado e da sociedade ci­vil. Surpreende que essa reivindicação tenha passado para a ordem do dia muito recentemente na agenda do movimento negro no Brasil.2

De acordo com nossas pesquisas e nossas entrevistas, a questão das cotas ganhou a atual dimensão em 2001, quando da preparação do relatório brasileiro para a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial,

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Xenofobia e Intokrância Correlata, realizada em Durban, Africa do Sul, em se­tembro daquele ano. Segundo alguns depoimentos, a proposta de cotas para ne­gros nas universidades foi inserida no documento na última hora, resumindo-se a uma linha apenas, entre diversas outras proposições. Curiosamente, ainda se­gundo nossos entrevistados, este foi o item mais destacado pela mídia naquela ocasião, trazendo, assim, a questão ao debate nacional. Graças a esse quase "aca­so", O tema das cotas acabou adquirindo um significado central no debate sobre a questão racial, e hoje muitos dos nossos entrevistados o identificam como verda­deiramente revolucionário, pois provocou aquilo que as lideranças do movimen­to procuravam suscitar há décadas: uma discussão ampla sobre a questão racial no Brasil, envolvendo diferentes setores da sociedade.

Alltecedentes: como a frase foi illserida 110 documento?

Em 1997, a Organização das Nações Unidas convocou a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo e, em 2000, solicitou que os países participan­tes elaborassem propostas concretas para o evento. O processo preparatório da conferência incluiu várias pré-conferências regionais. No Brasil, muitas insti­tuições e lideranças do movimento negro participaram do debate visando à con­cepção de políticas de promoção da igualdade racial. Entre eS3as lideranças e or­ganizações, chama a atenção a participação ativa do movimento de mulheres ne­gras, que compareceram em peso à Conferência Regional das Américas, realiza­daem Santiago do Chile, e também à própria Conferência Mundial, em Durban.

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Até esse momento, os documentos, entrevistas e textos produzidos por aqueles que pensavam a questão racial no Brasil e militavam no movimento evi­tavam falar de "cotas", isto é, de reserva de vagas para negros, preferindo a noção de "ação afirmativa". Em 2000, por exemplo, uma coletânea de artigos com con­tribuições de algumas das principais lideranças do movimento negro brasileiro, reunidas em uma série de três seminários ocorridos entre 1997 e 1999, não traz, em nenhum momento, a reivindicação específica de cotas para negros em uni­versidades tal como é encontrada atualmente (Guimarães e Huntley, 2000). Fala-se de bolsas de estudos e da necessidade de investimentos na preparação de candidatos negros à universidade (Santos, 2000); de incentivos fiscais a empre­sas que contratarem negros e negras e apresentarem uma distribuição proporcio­nal de negros e negras em cargos de direção e nos setores de produção (Alberto, 2000); e da legitimidade do princípio da ação afirmativa, ou seja, de um compor­tamento ativo do Estado capaz de transformar a igualdade formal em igualdade de oportunidade e tratamento (Silva J r., 2000). Um dos artigos, do deputado fe­deral pela Bahia Luiz Alberto, do Partido dos Trabalhadores (PT), chega a pro­por a "proporcionalidade étnico-racial no ensino universitário", "uma proporci­onalidade de vagas na razão direta das populações descendentes dos negros, brancos, índios e demais segmentos étnico-raciais no país", que, no entanto, de acordo com o autor, "não se confund[e) com 'cotas'" (Alberto, 2000: 300).

Em 1998, na mesma época em que eram realizados os seminários que de­ram origem aos artigos publicados em 2000, o relatório de final de ano do Grupo de Trabalho lnterministerial para a Valorização da População Negra (GTI), que contava com a participação ativa de militantes do movimento negro, deixava cla­ro que as medidas de ampliação do acesso da população negra ao ensino superior não deveriam incluir um sistema de cotas:

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E necessário estabelecer um programa que, combaten-do os efeitos da discriminação nas escolas, ofereça, aos jovens e adultos negros com potencial acadêmico, igualdade de oportunidades para o in­gresso e a permanência no ensino superior. Essa igualdade de oportuni­dades não deve ser concebida como um programa de cotas, o qual, igno­rando as deficiências anteriores de formação escolar, apenas facilitará o ingresso de alunos mal preparados e, por isso, sem condições de compe­tir com os alunos não-negros no decorrer do curso, resultando no fracas­so escolar e, conseqüentemente, na diminuição da auto-estima dos jo­vens negros. (apud Peria, 2004: 38)3

Nossos entrevistados observam, retrospectivamente, que mesmo a defe­sa das políticas de ação afirmativa, que teriam como foco, além do sistema educa-

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cional, empresas privadas e o serviço público, tinha poucos adeptos no movi­mento negro durante a década de 1990. Hédio Silva Jr.,4um dos membros do co­mitê misto criado pelo governo brasileiro para preparar a posição do país na Conferência de Durban e escolhido pelo grupo para ser o relator do documento oficial, diz, em sua entrevista: "Em muitas reuniões, o Hélio Santos era uma voz solitária a favor das ações afirmativas. O Carlos Alberto Medeiros, aqui no Rio de Janeiro, também. Enfim, algumas figuras sacaram bem antes de nós que isso era importante".s

Essa posição reticente fica bastante clara no relato que Edna Roland,6 es­colhida pela ONU relatora geral da Conferência de Durban, faz da inclusão da frase "Cotas para negros na universidade" no documento oficial. Ela descreve uma conversa com Hédio Silva Jr.:

O Hédio, que vocês já entrevistaram, estava fazendo um trabalho para o comitê nacional, fazendo a proposta de relatório do Bra­sil. Uma semana ou um mês antes de Durban, ele resolve se demitir do conselho nacional- não sei se ele relatou isso. ( ... ) Aí ele deu uma entre­vista na Folha de São Paulo no dia seguinte, colocando as razões da saída dele e as suas propostas políticas. Eu li a entrevista, e ele falou: "O que você achou?" Eu falei: "Fraco." Ele: "Como que você achou fraco?" Eu falei: "Claro. Você já chutou o balde, já saiu do comitê. Por que você en­tão não coloca as políticas mais contundentes que nós podemos colocar nesse momento? Por que você não propôs ações afirmativas e cotas nas universidades? Por que você não fez isso?" E ele: "Ah, mas eu não estou

muito convencido de que seja justo." Eu falei: "E justo sim." Aí discuti-mos, debatemos essa questão, e ele então resolveu - ele ainda continuou participando da comissão que estava redigindo o relatório -colocar uma linha: "cotas para negros nas universidades". Eu não sei quantas pági­nas o relatório tem, mas tem esta linha, "cotas para negros nas universi­dades", que entrou no último minuto, que ele pôs no documento. Quan­do o governo brasileiro tornou público o relatório para a mídia, tudo o que a mídia queria falar era sobre cotas para negros na universidade. E aí, antes de ir para Durban, quando já tinha sido anunciado que meu nome ia ser indicado, o pessoal da imprensa vinha falar comigo e só que­ria falar sobre cotas. Aí eu falei: "Nós somos 45% da população brasilei­ra; enquanto nós não formos 45% de todos os espaços que têm nessa soci­edade, estão nos devendo". Entao eu coloquei o patamar, o referencial, os 45%. Na seqüência vem a lei que o deputado aqui do Rio de Janeiro apresentou - inicialmente a proposta dele era 40% para negros. Então o patamar de que se partiu nas políticas públicas aqui no Brasil foram os

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40%. São determinados momentos em que você tem a oportunidade de contribuir para que uma determinada política seja formulada ou imple­mentada, e isso é que eu acho que faz o jogo interessante, essa possibili­dade7

Sobre o episódio, Hédio Silva também se manifestou, em sua entrevista:

Muito embora eu tenha rompido, cumpri até o final a tarefa de fazer o relatório. Mesmo porque o relatório me interessava; ele expressou boa parte daquilo que o movimento negro entendia que era mais importante. Inclusive as cotas, que foi no que a mídia mais se fixou.

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Quem ler o documento que o Brasil levou para a Africa do Sul vai ver que tem um monte de proposições. Mas a mídia destacou cota na uni ver­sidade. Para nós foi bom, inclusive. Olhando com o olhar de hoje, não foi tão ruim, foi bom.8

Na realidade, a frase "Estabelecimento de cotas para negros nas univer­sidades" já fazia parte da chamada "Carta do Rio", documento final da Conferên­cia Nacional contra o Racismo e a Intolerância realizada no Rio de Janeiro em ju­lho de 2001, como parte do calendário oficial de preparações para a Conferência de Durban.9 Observa-se que, ainda que fosse um assunto pouco claro, começou a ganhar projeção e força justamente no curso da preparação para Durban. Ivanir dos Santos,1O mili tante do movimento negro no Rio de Janeiro desde a década de 1970, participou da conferência do Rio e relata como sua "conversão" para o tema ocorreu nesse momento:

Eu era contra cotas. Se você vir entrevistas minhas de alguns anos atrás, eu estou lá falando contra. Mas depois eu fui compre-

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endendo, viajando muito o mundo, e vendo o Brasil. E muito bom você ver o Brasil de fora. Você compreende que a sociedade é tão conservado­ra na questão racial, é tão racista, que a cota é importante, porque ela abre esse debate. Tanto que a cota entra no relatório oficial quando, em uma audiência minha e deum grupo de pessoas com o presidente da Repúbli­ca, eu sugiro a ele que adote nem que seja a cota no relatório do governo que vai para Durban. Porque abriria o debate. E aí ele assume. Tanto que a imprensa vai lá e pinça justamente a cota. Ao mesmo tempo que ela pinçou para desmoralizar, abriu o debate 11

Esses três exemplos mostram, com algumas variações, como efetiva­mente a questão de cotas passou para a ordem do dia na agenda do movimento negro no período de preparação da Conferência de Durban. E as conseqüências desse processo foram irreversíveis: pesquisas têm demonstrado que a repercus-

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são da frase "cotas para negros na universidade" foi decisiva para a aprovação, pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio deJaneiro (Alerj), da Lei nO 3.708, que instituiu cotas de até 40% (patamar fixado por Edna Roland, segundo ela) para negros e pardos no acesso às universidades públicas estaduais, e foi sancio­nada pelo governador Anthony Garotinho em novembro de 2001, dois meses de­pois da Conferência Mundial de Durban.12 A medida, tomada sem consulta às próprias universidades - a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) -, deslanchou de vez o de­bate. 13

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E claro que a simples inclusão da frase na "Carta do Rio" e no documen-to que o governo federal levou para Durban não seria suficiente para movimen­tar a sociedade em torno dessa questão nas proporções a que assistimos hoje. Para que a frase fosse incluída, foi necessário que pessoas certas estivessem nos lugares certos, e isso significa que já havia um grau suficiente de institucionali­zação do movimento negro, com a formação de quadros e a consolidação de enti­dades reconhecidas pelos pares, pelo poder público e pela mídia. Se comparar­mos a situação do movimento negro na década de 1970 com a mobilização e a efe­tiva participação em instâncias de governo verificadas no início do século XXI, as mudanças são bastante significativas - é dessa trajetória, afinal, que trata nos­sa pesquisa. Entre os protestos contra a discriminação racial e as atuais políticas de promoção da igualdade racial, os movimentos negros passaram por diversas transformações, entre elas a própria,participação de lideranças em órgãos do poder público (municipal, estadual e federal).

Alguns de nossos entrevistados tiveram uma atuação especialmente re­levante nesse processo de institucionalização e de transformação das reivindica-

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ções do movimento em políticas públicas. E o caso de Ivair Augusto Alves dos Santos, 14 por exemplo, que tem uma avaliação bastante cristalina desse processo, especialmente no que diz respeito à implantação de políticas de ação afirmativa. Um dos marcos importantes foi a constituição, no governo paulista de Franco Montoro (1983-1987), do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Co­munidade Negra, primeiro órgão do poder público criado para tratar especifica­mente da questão racial. Ivair dos Santos fundou esse conselho e identifica uma certa continuidade entre as políticas aí iniciadas e o governo de Fernando Henri­que Cardoso (1995-2002), que levou para Brasília parte da estrutura do governo Montoro. Como relata Carlos Alberto Medeiros,IS militante do movimento desde a década de 1970:

Outro dia eu estava assistindo a uma palestra do Ivair Augusto Alves dos Santos, e o Ivair falava do quanto algumas iniciativas que o governo federal estava tomando - isso ainda era no governo Fer­nando Henrique-( ... ) eram resultado de algo que vinha sendo desenvol-

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vido desde o governo Franco Montoro. Porque um número muito gran­de de quadros do governo Fernando Henrique veio do governo Franco Montoro, em 1983, em São Paulo. E lá já estava o Hélio Santos, lá já esta­va Hédio, lá já estava esse pessoal todo cutucando. Entao é o resultado de um trabalho. As coisas não vêm do nada; esse pessoal também estava pensando nessas estratégias.16

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E interessante observar como as ações de governo estão em constante in-terlocução com as atividades do movimento negro. Em 20 de novembro de 1995, quando ativistas do movimento negro, do movimento de mulheres negras, de sindicatos e de comunidades negras rurais chegaram a Brasília, na Marcha Zum­bi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, foi criado o já men­cionado Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, vinculado ao Ministério da Justiça. Antes disso, em 1988, ano em que vá­rias entidades organizaram protestos contra a farsa da abolição, cujo centenário então se "comemorava", foi criada a Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura. Dois anos antes foi tombada a Serra da Barriga, em Ala­goas, onde existiu o Quilombo dos Palmares. Ambos os eventos ocorreram du­rante o governo José Sarney (1985-1990). Na mesma época, como resultado da atuação de alguns membros da Assembléia Constituinte que tinham ligação com o movimento negro, a Constituição de 1988 estabeleceu que o racismo é crime mafiançável e incluiu, em suas Disposições Transitórias, o reconhecimento da propriedade definitiva das terras ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos.

A própria convocação da Conferência Mundial de Durban parece ter re­sultado dessa articulação entre governo e movimento negro, como sugere Edna Roland em sua entrevista:

A conferência vem em um momento em que você já tem uma maturação de crescimento político, de compreensão da realidade, de relacionamento entre o movimento social e o Estado, de compreen­são do Estado ... Tem uma série de coisas que vão acontecendo que fazem com que, naquele momento específico, pudesse ter o impacto que teve e que está tendo. Primeiro, havia um governo com um relativo grau de abertura para o reconhecimento do racismo e da discriminação racial. Não se pode deixar de reconhecer que o presidente da República de en­tão era um estudioso das relaçoes raciais. Ele tinha uma compreensão teórica em um determinado nível. Pode ser insuficiente, você pode ter críticas, mas ele era uma pessoa que tinha interesse por essa questão. A própria proposta de realização da conferência foi feita por um embaixa-

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dor brasileiro. Foi o embaixador José Augusto Lindgren Alves que pro­pôs a realização da conferência à Comissão de Direitos Humanos da ONU alguns anos antes. ( ... ) Aí já havia um certo diálogo internacional entre o movimento negro brasileiro e movimentos negros de outros paí­ses da América Latina. Tem uma série de condições que permitem isso. Algumas mulheres negras já tinham alguma experiência internacional em conferências das Nações Unidas a partir do movimento feminista. ( ... ) Seja no espaço governamental, seja no não-governamental, você tem um acúmulo de experiências que permite que você saiba como lidar e re­conhecer a importância de ter de se mobilizar.17

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E interessante notar que, em maio daquele mesmo ano de 2001, em fun-ção da Conferência de Durban, o Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) publicou um Texto para Discussão, apresentando, pela primeira vez no ór­gão, uma análise das desigualdades raciais no Brasil (Henriques, 200 I ).18 Em en­:revista concedida ao CPDOC em agosto de 2004 para um projeto sobre a histó­ria do Ipea, Roberto Martins, presidente do órgão de 1999 a 2003, refere-se com orgulho a essa nova linha de pesquisa, implantada em sua gestão:

Implantei, com o apoio pessoal do presidente Fernando Henrique, uma forte linha de pesquisa sobre desigualdades raciais. O Ipea nunca tinha mexido com isso, o IBGE pouca atenção dava, por isso come­çamos a produzir e divulgar estatísticas sobre desigualdades raciais: desi­gualdades educacionais, de renda, de emprego, de condições de vida. Isso começou em 2001, quando a ONU convocou a Conferência de Dur-

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ban, na Africa do Sul, a conferência mundial contra o racismo. O Ipea foi convidado a entrar no comitê organizador da delegação brasileira e par­ticipou intensamente da preparação das posições do Brasil; fomos uma espécie de braço técnico da delegação. ( ... ) Após a conferência, continua­mos a produzir e divulgar dados sobre desigualdades raciais, mostrando que elas não estavam diminuindo, e mesmo depois que saí ficou um gru­po muito bom na casa trabalhando com essa questão. Tenho muito orgu­lho, porque isso se tornou uma referência para o movimento negro, a grande mídia e a própria sociedade brasileira, sempre tão pronta a igno­rar a questão racial. (D' Araujo, Farias e Hippolito, 2005: 383)

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E essa tendência a ignorar a questão racial que talvez explique o efeito que a proposta de "cotas para negros nas universidades", uma espécie de símbolo das ações afirmativas, trouxe para a sociedade brasileira. Na entrevista que deu

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ao jornal Folha de São Paulo, em 9 de julho de 2001, explicando seu desligamento do comitê misto instalado pelo governo brasileiro, Hédio Silva J r. destacou jus­tamente esse ponto:

Folha - Por que deixou o comitê?

Silva J r. - O governo vende urna imagem externa de que aqui existe perfeita integração com a sociedade civil, passando, no plano internacional, a imagem de que dialoga e reflete os anseios do movimen-

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to negro. E um diálogo sem conseqüências, um monólogo; porque nós falamos, a diplomacia escuta, mas isso não se reflete em compromisso. Temos a mesma indiferença do primeiro escalão do governo Fernando Henrique para adotar qualquer medida.19

Na entrevista concedida ao CPDOC, passados três anos, Hédio Silva Jr. também justificou sua atitude com a percepção de que a questão racial não estava sendo efetivamente reconhecida pelo governo, em que pesem as iniciativas to­madas para a preparação da Conferência de Durban:

Primeiro, eu não queria que a conferência [a Conferên­cia Nacional, de julho de 2001] fosse realizada aqui no Rio de Janeiro, porque não me parecia razoável. Todas as outras conferências regionais que eu acompanhei aconteceram nas capitais dos países, porque eram iniciativa governo-sociedade civil. Portanto, eu queria que a conferên­cia fosse realizada em Brasília. Essa foi a primeira questão. Segundo, que o que deveria ser uma conferência do Brasil virou uma conferência do movimento negro brasileiro. O governo federal mandou para a confe­rência do Rio de Janeiro o ministro da Cultura à época, professor Fran­cisco Weffort, para dizer que o problema racial era um problema secun­dário no Brasil - o que eu entendi como uma afronta ao movimento ne­gro. Então eu rompi com o grupo governamenial, terminei a minha tare­fa de fazer o relatório e entendi que já teria dado a minha contribuição para os debates. ( ... ) Causou um certo desgaste para o governo a minha saída. Alguns inclusive consideram que essa saída, de alguma forma, sensibilizou alguns segmentos para a necessidade de implantar ação afirmativa. Porque o que eu dizia era que não fazia sentido o Brasil ir

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para a Africa do Sul defender, no documento lá, políticas de ação afirma-tiva, sem ter uma política de ação afirmativa aqui 20

Um acontecimento importante desse período, que foi mencionado por alguns dos entrevistados, foi o fato de o Brasil acabar nao sediando, como plane-

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jado inicialmente, a Conferência Regional das Américas, que teve lugar em San­tiago do Chile, em dezembro de 2000. Segundo nossos entrevistados, essa deci­são foi conseqüência direta da violenta repressão às manifestações de índios e ne­gros durante os "festejos" dos 500 Anos do Brasil, em Porto Seguro, em abril de 2000, que repercutiram desfavoravelmente ao Brasil em rodo o mundo. O que es­tava em jogo, mais uma vez, era o contraste entre a idéia de uma "democracia ra­cial" e a efetiva desigualdade. Um pouco nessa direção <:aminha também a inter­pretação que se faz da declaração do presidente Fernando Henrique de que ele também teria "um pé na cozinha".21 É contra essa idéia difusa de "democracia ra­cial", baseada nas relações da casa-grande, que a bandeira das cotas se dirige, pois ela implica necessariamente um reconhecimento das diferenças e a colocação da questão "quem é negro no Brasil?". 22

Pós-Durban: o que a frase provoca?

Carlos Alberto Medeiros, um dos primeiros defensores das políticas de ação afirmativa no Brasil, refere-se assim ao pós-Durban:

As pessoas não entendem muito bem: "Ah não, não aconteceu nada lá ... " Como é que não aconteceu? O governo brasileiro assumiu uma série de compromissos, que depois você cobra internacio­nalmente. E essas instituições têm cobrado do Brasil. ( ... ) Tudo isso tem sido trabalhado, e o Brasil tem mudado, o governo brasileiro tem que dar satisfação diante dessas convenções. Eu acho que foi muito positivo, e não é à toa que é IOf o depois da conferência que começam as medidas de ação afirmativa.2

Rosana Heringer: estudiosa da questão racial no Brasil, levantou algu­mas iniciativas de promoção da igualdade racial a partir de setembro de 2001, da parte do governo federal, de governos estaduais e municipais e de instituições privadas e não-governamentais. Muitas delas referem-se à reserva de vagas no

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serviço público, nas empresas privadas e mesmo nas universidades. As cotas na Uerj e na Uenf (novembro de 2001) seguiram-se as cotas na Universidade Esta­dual da Bahia (julho de 2002), na Universidade Estadual do Maro Grosso do Sul (dezembro de 2002), no Mestrado em Gestão de Políticas Públicas da Fundação Joaquim Nabuco (abril de 2003), na Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo (maio de 2003),24 e na Universidade de Brasília (junho de 2003) (Heringer, 2004).25

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estudos históricos e 2006 - 37

Ao lado da lei instituindo as cotas na Uerj e na Uenf, a implantação de cotas na UnB foi a que gerou mais polêmica, por utilizar como critério para defi­nição de afro-descendente, além da autodeclaração, o exame fotográfico e, se houver recurso, a entrevista com o candidato. A medida suscitou grande debate na mídia e resultou em manifestação contrária por parte da Comissão de Rela-

-

ções Etnicas e Raciais da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).26 Em ge-rai, nossos entrevistados consideram positiva a discussão suscitada pela UnE. Perguntado sobre a dificuldade de identificação dos qu� teriam direito à cota na universidade e sobre o risco de se reproduzirem mecanismos de identificação da

-

raça correntes durante o apartheid na Africa do Sul, Carlos Alberto Medeiros responde:

Veja só: em alguns casos ninguém vai ter dúvida. ( ... ) Então vamos trabalhar com esses de que ninguém tem dúvida, que o Ka­bengele Munanga chama de negros indisfarçáveis. Acho que é uma boa terminologia. Então vamos trabalhar primeiro com esses aí. Aqueles mais "tinta forte", que sofrem mais a discriminação. Não tem problema com isso. Vamos criar esse critério. Agora, não podemos fugir da discus­são. O que está acontecendo ... Uma coisa é quando você coloca essa obje­ção de um ponto de vista de quem está tentando contribuir para que es­ses mecanismos sejam criados de uma forma legal, de uma forma que não relembre essas coisas nazistas e fascistas. A ou tra coisa é quem está botando esse obstáculo como um impedimento, uma forma de fazer o negócio "gorar". Então temos que ter cuidado em relação a isso. Existe muita discussão. Eu estava conversando com o Paulo Roberto, que é um cara que conheci na primeira reunião da Cândido Mendes, em 74. Ele fa­lava: "Eu não gosto desse critério." Então vamos descobrir os critérios, vamos formar os critérios. Agora, eu acho que é fácil, em um primeiro momento ... Se você tiver dúvida de qualquer coisa, pega os "tinta forte", porque esses aí a gente não tem dúvida. E depois vamos ver como é que a gente vê esses outros casos, porque varia.27

Frei David,2s fundador, no final dos anos 90, do Educafro, instituição voltada para a formação e a preparação de jovens para o vestibular, também res­ponde à polêmica em torno das cotas na UnB:

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Quando Estados Unidos e Africa do Sul criam comis-são para dizer quem é negro e quem não é negro, o foco está em excluir o negro. Há um objetivo claro da comissão: excluir o negro. Quando no

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A defesa das cotas como estratégia política do movimento negro coutemporflneo

Brasil se discute comissão para dizer quem é negro e quem não é negro, o foco é totalmente o contrário, é para incluir o negro. Por quê? Porque de­paramos com uma parcela sem ética da comunidade branca. Quem tem o poder de criar mal-estar são os brancos, quando eles, de maneira deso­nesta, na Uerj, mentem. Como a Uerj falou "vai ser autodeclaraçao, não vamos pedir documentos se você é branco ou não", o que eles fazem? Uma parcela de brancos desonestos, sem ética, vão lá e se declaram ne­gros. E aí o que acontece? Você vai no primeiro dia de aula no curso de medicina da Uerj, deveria ter 38 pardos e negros, você vai e conta, tem quatro negros e nove pardos. ( ... ) 25 vagas foram roubadas e ninguém fez nada. Se há um setor na comunidade branca desonesto, sem ética, então quem tem que ser punido não é a comissao que está se formando para ga­rantir o direito, são aqueles que não têm ética. ( ... ) Quem está batendo na UnB está batendo de maneira precipitada, sem entender que a UnB está claramente indo em defesa dos pequenos e dos quebrados, dos humilha­dos. Quando esses pequenos têm chance de dar um passo, vem uma par­cela desonesta e repete a roubalheira que foi feita em cima do trabalho e dos direitos do negro. ( ... ) Se na Uerj, no primeiro vestibular com cotas, não tivesse nenhum branco fazendo ato com falta de ética, jamais a UnB iria fazer aquilo. E jamais eu iria fazer artigos defendendo a UnB.29

O importante, segundo a maioria de nossos entrevistados, é o debate que as ações afirmativas e especialmente a política de cotas nas universidades está suscitando no país. Como diz Carlos Alberto Medeiros:

Acho que a situação atual que está acontecendo, o deba­te, isso é importante. Para além de qualquer coisa que a ação afirmativa possa conseguir, ela já teve uma vitória muito grande, que é a discussão

de raça. E fazer o brasileiro discutir raça, porque o brasileiro não gosta, é desconfortável, incômodo, causa urticária ... E estão tendo que discutir: está todo dia no jornal. Todo dia no jornal questão de raça. E se a gente considerar que você não pode resolver um problema antes que você re­conheça a existência dele, então nós estamos caminhando em um senti­do positivo, de estudar os problemas, que não vão ser resolvidos com ação afirmativa. Ação afirmativa é um meio de conseguir alguma coisa, de conseguir um caminho para tirar o aspecto escandinavo que certas instituições brasileiras ainda têm. A televisão é um bom exemplo disso. Então está sendo muito J'0sitivo por causa disso, pelo próprio fato de a gente estar discutindo.3

Além da importância do debate na sociedade em geral, os entrevistados ressaltam o efeito que a discussão das cotas produziu no próprio movimento ne-

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gro. Inicialmente, muitos ainda eram contra, mas arualmente as lideranças iden­tificam a questão das cotas como uma bandeira comum, que teve a capacidade de unir o que antes era fragmentado. Ivanir dos Santos, por exemplo, afirma:

Eu lembro quando a gente começou a debater cota e ação afirmativa no movimento negro. O pessoal dizia: "Não. Reforma ... Não vai acontecer nada, isso é a reforma". Hoje, até o MNU [Movimento Negro Unificado, formado em 1978] está defendendo. Porque uma das dificuldades que o movimento negro teve e tem tido é não ter uma ban­deira unitária. O que nós tínhamos de unidade era: contra o 13 de Maio, dia nacional de protesto, 20 de Novembro e contra o racism031 A massa negra não consegue visualizar a luta anti-racista. Ela não consegue ligar: ser contra o racismo em que a beneficia? Com a ação afirmativa ela passa a entender: é vaga na universidade, é vaga no shopping center, onde o cara não te emprega. Aí o cara entende, aí você está mostrando um caminho concreto. ( ... ) Nao que cota seja a maravilha, mas ela é nossa tática; nossa estratégia são as políticas de ação afirmativa, que a sociedade tem We fa­zer. Não dá mais para você viver em uma sociedade como essa ...

Nota-se como a questão das cotas se transformou, para esses entrevista­dos, em estratégia política. Uma das grandes dificuldades do movimento negro, desde meados do século passado, era conseguir reunir um grupo de pessoas hete­rogêneas (os afro-descendentes), com orientações políticas as mais diversas, sob uma mesma bandeira. Nos anos 70, o grande desafio dos militantes era desnudar o mito da democracia racial, que torna a sociedade brasileira sempre pronta a ig­norar a questão racial, como diz Roberto Martins. As principais formas de luta eram, então, atos públicos que denunciavam o racismo. No trecho acima, Ivanir dos Santos mostra que se tornou necessário dar um passo adiante e propor mu­danças na própria configuração da sociedade, a partir da implantação de políti­cas de açao afirmativa. Que alguns, dentro do movimento, considerassem isso uma medida reformista faz parte das avaliações que o próprio movimento teve de fazer diante da repercussao da frase "cotas para negros nas universidades" no do­cumento que o governo brasileiro levou para Durban. No discurso dos entrevis­tados, o risco da "reforma" tem como exemplos clássicos Condoleezza Rice e Collin Powell. Veja-se, a respeito, a ponderação de Flávio Jorge Rodrigues da Si 1-va,l3 primeiro secretário da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do Partido dos Trabalhadores, criada em 1995, e uma das principais lideranças da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen):

Essa questão das cotas, o que eu quero dizer? Ela é nm­damental para o debate de ação afirmativa no Brasil. Mas eu a encaro de uma forma emergencial. Não sou daqueles que acha que a cota é uma so-

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A defesa das cotas como estratégia política tio movimento negro COJltc11Iportluco

lução. Eu acho que a cota serve para a gente entrar, um canal para fazer o debate sobre políticas de ação afirmativa. Até porque ação afirmativa não se restringe só a cotas. A cota entra de uma forma enviesada. Eu nao enxergo a educação como a coisa de ascensão do indivíduo. A educação é uma forma de você se inserir na sociedade. Ela é fundamentaI"para isso. A cota tem um problema sério: nós fizemos toda uma movimentação no Brasil- não sou contra cotas, deixa eu apenas explicitar minha visão -, se você pegar de 1978 para cá, esse chamado movimento negro contempo­râneo, de dar uma concepção mais coletiva da luta negra no Brasil. ( ... ) O que a cota faz? Claro que ela é fundamental para a gente poder ter acesso à universidade, mas ela individualiza o debate sobre a questão racial. Se ela não for acompanhada de um processo de formação política muito grande, e aí a ação do movimento negro é fundamental, a gente pode construir uma elite política no país, mas uma elite política individuali­zada, o cara que acha que ele ascendeu porque conseguiu ter acesso a al­guma coisa. Os Estados Unidos caíram muito nisso. Se você pegar o go­verno Bush atualmente, quem está hoje no governo Bush é gente que se beneficiou da política de cotas. Mas você tem uma Condoleezza Rice, você tem um Collin Powell. Onde caiu esse povo? Um projeto totalmen­te autoritário de construção dos Estados Unidos etc. Então, minha preo­cupação com as cotas é essa. Agora, é fundamental. Por isso que não sou contra. Mas se a gente não tiver uma intervenção do movimento negro, de politização desse debate, e não entrar no debate de ação afirmativa de uma forma mais abrangente, a gente pode se ferrar. Essa é a minha preo­cupação. Agora, é claro que a cota também provocou um debate, que é: o

,

que é ser negro no Brasil? E está nesse caldo novo. E meio intuitivo isso que eu estou falando, mas a visão sobre o racismo no Brasil está mudan­do. Eu acho que a geração que vem aí já vem com uma concepção dife­rente da dessa geração da qual eu fiz parte, da qual um monte dessas pes­soas que vocês estão entrevistando fez parte, e que foi mais um momento de afirmação da luta negra.34

Ciente dessa profunda mudança no movimento negro, Hédio Silva J r. chega a falar de uma verdadeira revolução, em contraposição à idéia de "refor­ma":

Acho que de toda sorte foi uma maturaçao muito lenta e também muito dolorosa. Porque em vários momentos estava em questão se essa adesão a um tipo de política, a um tipo de reivindicação como essa, significaria ou não uma rendição, uma rendição ideológica: nós

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que amávamos tanto a revolução agora estaríamos, digamos assim, con­tentes com a possibilidade de partilhar o bolo sem transformação social. Até que alguém disse que nós estávamos fazendo uma extraordinária transformação social das relaçoes do cotidiano, das relações dos mi­cro-espaços de poder. E a própria questão do empoderamento da popu­lação negra e a coisa mais altiva, mais ousada na política, nas relações in­tersubjetivas. ( ... ) Alguém precisou dizer que a gente estava fazendo a re­volução, que cotas no Brasil é revolução. E a história está mostrando que é revolução. Possivelmente, na República, não houve um tema que te­nha mobilizado tanta energia quanto a questão das cotas, a favor e con­tra. Então a gente começou a pensar que era legal, que era uma revolu­ção. E a história está mostrando que é mesmo. ( ... ) Acho que a nossa ge­ração está dando passos importantes para as bases, para a edificação de um pensamento negro, porque foi capaz de rom�er. Mas a ruptura foi dolorosa, onerosa, custou caro para muita gente. 5

Percebe-se que a questão das cotas adquiriu uma dimensão muito im­portante para o próprio movimento negro, cujas lideranças passaram por um processo de maturação. Ou seja, depois de Durban, estando lançada a questão que tanta polêmica suscitou, foi necessário que as lideranças também se prepa­rassem para o debate. Isso significa, mais uma vez, a formação de quadros capa­zes de implementar a bandeira que se tornou comum no movimento, atentando inclusive para os riscos da ascensão individualizada de estudantes cotistas.

Em nossa pesquisa estamos procurando ouvir pessoas de diferentes re­giões do país. Fora do eixo Rio-São Paulo, Maria Raimunda Araújo,36 uma das principais referências do movimento negro do Maranhão desde fins da década de 1970, deixa claro que a bandeira das cotas, ainda que seja reconhecida como importante, está longe de alcançar as realidades das chamadas "terras de preto" do interior:

Eu ouço os dois lados [os que são a favor e os que são contra cotas] e tenho meu ponto de vista: é que essa não é a prioridade hoje para a população negra - só chegar na universidade. Bem, tem to­dos os negros da zona rural lutando contra a pobreza, que é cada vez pior, lutando contra a fome, lutando contra a discriminação, porque não são ouvidos até pelo fato de serem pretos. Porque na zona rural ainda é mais violenta a discriminação. Esses pretos que saem dos povoados e vão para as sedes, onde fazem suas compras, onde vão aos bancos, eles são sempre vistos como quem está à margem de fato. Não é tratado tudo igual. E eles sabem. ''Ah, esses pretos!" "Isso é coisa dos pretos de Santa Rosa." "Isso

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A defesa das cotas como estratégia política do movimento negro contemporâneo

são os pretos da rampa". Ainda estão lutando para viver com dignidade, para manter a dignidade. E não têm postos médicos, não têm escolas; quando terminam o fundamental, ou vão para a sede para continuar, ou terminou ali na primeira etapa. Eu sou mais dessas pessoas, desses ne­gros, que gostariam de estar ainda continuando a lutar e a discutir por melhores condições de vida para a população negra. Eu costumo dizer: sou de uma família de 12 irmãos, e 8 foram para a universidade quando não existiam cotas. Por quê? Porque pelo menos tinha condições de me alimentar, meu pai tinha emprego; não era rico, mas tinha emprego. E o caso do emprego dos pais desses estudantes? E a alimentação, e o trans­porte? E o mínimo de recursos para poder adquirir livros e comprar re-

vistas? Tudo está aí para uma elite, gente. Essa é que é a verdade. E para quem tem recursos. ( ... ) E quem vai entrar nessa universidade se dizen-

do negro? Isso já está ocorrendo. E justamente quem está em uma situa-ção melhor, e é tão esbranquiçado que a gente olha: "Mas isso é negro?" "Ah, porque minha avó, minha mãe ... " Gente, não são esses que estão sendo discriminados. Não são esses que são rejeitados na hora de pegar um emprego. Porque neste país, quanto mais tu clareias tua pele, menos discriminação tu vais sofrer por conta da cor. Ora, quem não sabe que um preto, como a gente chama aqui, retinto, recebe um tratamento, e es­ses que eles encaram como mulatos, já pardos, não recebem o mesmo tratamento? E as portas se fecham justamente para os pretos retintos. São justamente os pretos que estão lá nas comunidades em que pratica­mente não houve miscigenação. Mas estou na luta, acho que toda luta está valendo. Agora que resolveram nos ouvir, se o governo tem n proje­tos de inclusão, por que não? Mas não se pode ficar só discutindo co­tas 37

O movimento negro é um importante movimellto social que, em função de sua atuação, precisa produzir reflexões acuradas sobre a sociedade brasileira contemporânea. A questão das cotas e, de forma mais ampla, das ações afirmati­vas é, com certeza, uma novidade com um vasto potencial de mudança social, que incide não apenas sobre as possibilidades de estudo e trabalho de afro-des­cendentes, mas sobre as representações que a sociedade brasileira produz sobre si mesma, em especial as camadas média e alta, pouco acostumadas a conviver de forma igualitária com pretos e pardos. Nesse sentido, a discussão provocada pela frase incluída no documento de Durban é profícua e bem-vinda. Como se viu, muitas das lideranças do movimento negro afirmam que a bandeira das cotas não é solução para tudo, devendo ser vista como providência emergencial. Sua maior riqueza provavelmente está no debate e nas mudanças de atitude que é capaz de provocar.

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Notas

l. Sobre a história do movimento negro no Brasil, ver, entre outros, Santos ( 1 985), Sant' Ana ( 1998), Mota-Maués (2001), Hanchard (2001), Cardoso (2002), Barbosa (1998), Félix ( 1996), Leite ( 1992), Santos (2000), Nascimento (2002) e Pereira (2005).

2. Se o estabelecimento de reserva de vagas (cotas) para alunos negros nas universidades é assunto recente, o mesmo não se aplica ao pleito por medidas que facilitem o acesso de estudantes negros ao ensino superior. Há registros de reivindicações dos movimentos negros nesse sentido desde 1931 , como é o caso de um manifesto da Frente Negra Pelotense citado por Arthur Ramos em O negro na civilização brasileira ( 1 956): "( ... ) pleitear junto aos governos o ingresso gratuito nos ginásios secundários e cursos superiores para os estudantes filhos de negros pobres que pela sua inteligência a isso fizeram jus" (apud Peria, 2004: 3 1-32). Na mesma direção caminha o item 3 do programa do jornal Quilombo, dirigido por Abdias do Nascimento, publicado em seu primeiro número, em dezembro de 1948: "Lutar para que, enquaDro não for tornado gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos estudantes negros, como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos particulares e oficiais de ensino secundário e superior do país, inclusive nos estabelecimentos militares" (Quilombo, 2003: 2 1 ).

3. O GTI foi criado por Fernando Henrique Cardoso em 20 de novembro de 1995, como resposta ao documento que lhe foi entregue pela Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, que naquele dia marcava, em Brasília, 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. Sob a

presidência do ministro da Justiça José Gregori e integrado por representantes de oito ministérios, o GTI contava com a participação ativa de militantes do movimento negro em seus quadros. Hélio Santos, um dos fundadores do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo em 1 983, era seu coordenador e Carlos Moura, ex-presidente da Fundação Cultural Palmares, o secretário

executivo.

4. Hédio Silva Júnior é militante do movimento negro desde o final da década de 1970. Fundador do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), criado em 1992, foi presidente da Convenção Nacional do Negro, em Brasília, em 1986, e assessor especial de Cidadania e Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo nos anos de 1991 e 1992. Advogado e doutor em direito constitucional pela PUC de São Paulo, atualmente é secretário de Justiça e Cidadania do governo do estado de São Paulo.

5. Entrevista gravada no CPDOC em 21/7/2004.

6. Edna Roland é militante do movimento de mulheres negras desde o início da década de 1980. Foi conselheira do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, órgão do governo do estado na gestão de Franco Montora (1983-86), e participou da fundação do Coletivo de Mulheres Negras em São Paulo, em 1984. Foi uma das fundadoras do Geledés Instituto da Mulher Negra, em 1988, e fundou a Fala Preta! Organização de Mulheres Negras, em 1996, instituição da qual é presidente de honra. Foi eleita Relatora Geral da III Conferência Mundial Contra o Racismo,

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A defesa drrl' cotas como estratégia política do movimento llcgr'o cOlltcmporâllco

Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, na África do Sul, em 200 I . Atualmente é Coordenadora de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial para América Latina e Caribe da Unesco.

7. Entrevista gravada no CPDOC em 22nt2004.

8. Entrevista gravada no CPDOC em 2117/2004.

9. "Plano nacional de combate ao racismo e à intolerància - Carta do Rio", 8 de julho de 200 1 . Ver www.rndh.gov.br. no item Racismo (acesso em 1 3/7/2005).

lO. Ivanir dos Santos foi criado no Sistema de Atendimento ao Menor (Sam) e na Fundação Nacional para o Bem-Estar do Menor (Funabem). Fundou a Associação dos Ex-alunos da Funabem (Asseaf), em 1980, e o Centro de Articulação das Populações Marginalizadas (Ceap), em 1989. Participou da comissão de organização do I Encomro Nacional de Entidades Negras (Enen), em 1991 , e da coordenação executiva da Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo pela Cidadania e a Vida, em 1995. Foi subsecretário estadual de Direitos Humanos e Cidadania durante o governo Anthony Garotinho, no Rio de Janeiro, na gestão de Abdias do Nascimento (1999).

11. Entrevista gravada no CPDOC em 1 "/12/2003.

12. Para uma análise da elaboração e da tramitação da Lei nO 3.708 na Alcrj, ver Peria (2004). Essa lei foi substituída pela Lei n° 4.1 51 , de 4 de setembro de 2003, que reserva 45% das vagas para "estudantes carentes", assim divididos: 20% negros, 20% estudantes egressos de escolas públicas e 5% deficientes físicos c

• • • •

outras mmonas etmcas.

13. Essa foi a primeira lei, no Brasil, que • • •

inStitUIU COlas para negros nas

universidades, O que não quer dizer que não tenham sido apresentados projetos de lei com o mesmo objetivo anteriormente. Michclle Peria analisou a tramitação, na Aleei, de dois projetos de lei de autoria do deputado do PT Carlos Mine, apresentados em 1993, propondo a criação de uma cota de 10% para "negros e índios" nos cursos de graduação e pós-graduação de instituições públicas e privadas do estado, e de uma cota de 20% para alunos carentes nas instituições públicas. Curiosamente, o autor da Lei nO 3.708, afinal vitoriosa, o deputado José Amorim, do então Partido Progressista Brasileiro (PPB), havia se manifestado contrário a um dos projelOs de Carlos Mine, em 1997, como sendo de uma "inaplicabilidade lotaI" (Peria, 2004: 77). A pesquisa de Peria mostra como a aprovação da Lei nU 3.708 se deveu muito mais ao desejo do deputado e de seus aliados de legislar sobre um "assunto quente" (e, portamo, capaz de gerar votos) do que a suas convicções ideológicas. Por sua capacidade de ativar amizades pessoais e alianças partidárias a seu favor, o deputado Amorim conseguiu que seu projero fosse votado em regime de urgência (pouco mais de um mês depois de sua publicação no Diárin Oficial do Poder Legislativo do Estado do Rio de Ja"eiro), impedindo propositadamente o debate sobre o assunto. Cabe observar que no Congresso Nacional também tramitaram projetos de lei propondo cotas para negros nas universidades, antes da aprovação da chamada lei de COlas da Uerj. Nenhum dos projetos, contudo, foi transformado em lei. Em 1983, o senador Abdias do Nascimento propôs uma COla de 40% para negros (20% para homens e 20% para mulheres) no Instituto Rio Branco (Projeto de Lei nO 1.332); em 1993, a senadora Benedita da Silva propôs uma cota de 1 0% para estudantes "negros e índios" no ensino superior público e privado (Projeto de Lei nO 4.339); em 1999, o senador José

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Sarney propôs urna cota de 20% para a "população negra" no acesso a empregos públicos e à educação superior (Projeto de Lei nO 650), e em junho de 2000 o senador Paulo Paim propôs cotas para negros em diversas instâncias, prevendo a reserva, para "afro-descendentes", de 25% das vagas em universidades (Projeto de Lei nO 3 . 198). Esse levantamento também foi feito por Michelle Peria, que mostra, em sua dissertação, como os autores do projeto de lei afinal vitorioso na Alerj se inspiraram no projeto apresentado por José Sarney ao Senado em 1999.

14. Ivair Augusto Alves dos Santos é militante do movimento negro desde o início da década de 1970. Entre 1979 e 1983 viveu em Angola, trabalhando como consultor da Unesco para o ensino de ciências. Foi fundador do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, em 1983. E assessor da Secretaria de Estado de Direitos Humanos do Ministério da Justiça (que mudou de nome algumas vezes) desde 1995, tendo sido o representanre desse ministério no Grupo de Trabalho Interministerial pela Valorização da População Negra (GTI) de 1995 a 1996. Atualmente é secretário executivo do Conselho Nacional de Combate à Discriminação da Presidência da República.

15. Carlos Alberto Medeiros participou da fund,ação da Sociedade de Intercâmbio Brasil-Africa (Sinba) e do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (lPCN), ambos na cidade do Rio de Janeiro, em 1974 e 1975. Teve participação importante na articulação entre o movimento negro c as instâncias do poder público, na qualidade de chefe de gabinete da Secretaria de Estado Extraordinária de Defesa e Promocão das

,

Populações Negras (Seafro), no segundo governo Leonel llrizola no Rio de Janeiro, durante a gestão de Abdias do

Nascimento, de quem também foi assessor no Senado Federal ( 1 997 -1999). Foi também membro do Grupo de Trabalho Intcrministerial para a Valorizaçâo da População Negra (GTI) entre 1995 e 1996. Subsecretário adjunto de Integração Racial na Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania do governo Anthony Garotinho, no Rio de Janeiro, foi um dos primeiros defensores das políticas de ação afirmativa no Brasil.

16. Entrevista gravada no CPDOC em 1 5/4/2004.

1 7. Entrevista gravada no CPDOC em 22/7/2004.

18. O autor do texto destaca, logo na introdução, os trabalhos pioneiros sobre as desigualdades raciais no Brasil elaborados desde o lInal da década de 1970 por Carlos Hascnbalg e Nelson do Valle Silva. Sobre a participação do Ipea no processo preparatório da Conferência de Durban, ver também Jaccoud e Bcghin (2002).

19. Disponível em: h t I p://proex.rei toria.u nes p. br/edicao02de z2001/materiaslhedio.htm. Acesso em: 1 3/7/2005.

20. Entrevista gravada no CPDOC em 21/7/2004.

21. Durante a campanha eleitoral para presidente, em 1994, Fernando Henrique Cardoso declarou que tinha "um pé na cozinha", referindo-se à sua trisavó, que era negra, e à sua bisavó, que era mulata.

22. Esse é, aliás, um dos principais focos da crítica à implantação de políticas de ação afirmativa no Brasil: como a adoção de cotas exige que se identifique quem tem direito à reserva de vaga, essas políticas estariam estabelecendo a "racialização" de urna sociedade caracterizada pela mistura racial. Como diz o antropólogo Peter Fry, um dos principais críticos daquilo que ele

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A defesa tias cotas como estratégia política rio movimento IIcgro cOlltcmporltJlco

denomina a "bipolarização racial" ("negros" x "'brancos"): <IA ação afirmativa tem o efeito de negar um Brasil híbrido a favor de um Brasil de raças distintas" (Fr)', 2005: 17). Com efeito, definir quem é negro no Brasil é uma questão complicada. Não há como negar, contudo, que o viés racial continua sendo um componente importante das desigualdades sociais no Brasil - e estudos têm demonstrado que, nesse particular, as condições de vida da população "preta" não diferem muito das da população "parda" - para usarmos a tipologia do quesilO " raça/cor" do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (ver, por exemplo, Hasenbalg, 1979; Hasenbalg e Silva, 1988; Henriques, 2001). O sociólogo Sérgio Costa propõe uma solução para esse dilema que nos parece metodologicameme eficaz: o que vale para o estudo das desigualdades sociais no Brasil não vale para a análise sociológica e política da sociedade brasileira. "Se a categoria raça constitui recurso metodológico indispensável para a identificação das desigualdades raciais, o mesmo não se pode dizer, todavia, do uso do conceito como categoria geral de análise da dinâmica da sociedade brasileira" (Costa, 2002: 48-9). Isto é, para enfrentar as desigualdades temos de lidar necessariamente com as diferenças entre "brancos" e "não brancos" e desenvolvcr políticas de promoção da igualdade racial. 23. Entrevista gravada no CPOOC em 1 5/4/2004.

24. A Faculdade Zumbi dos Palmares obteve autorização do MEC para funcionamento, com o curso de Administração, em dezembro de 2002. Disponível em: http://www.unipalmares.org.br. Acesso em: 13/7/2005.

25. Um levantamento das ações afirmativas empreendidas nos poderes

Executivo e Judiciário até 2002 pode ser encontrado em Jaceoud e Beghin (2002: 57-63).

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27. Emrevista gravada no CPOOC em 1 5/4/2004.

28. Frei David Raimundo Santos participou da formação dos Agentes PaslOrais Negros (APNs) e do Grupo União e Consciência Negra (Grucon), fundados nos anos 80. Em 1 994 foi eleilO para compor a Secretaria Executiva Latino-Americana da Pastoral Afro-Latino Americana e Caribenha. Foi um dos idealizadores do Pré-Vestibular para Negros c Carentes (PVNC), criado em 1992 em São João do Meriti (RJ), e é fundador da Educação e Cidadania de Afrodescendcntes e Carentes (Educafro), que tem núcleos no Rio de Janeiro c em São Paulo. Panicipou da coordenação da Coleção Negros em Libertação, da EdilOra Vozes, em 1988.

29. Entrevista gravada no CPOOC em 12/7/2004.

30. Entrevista gravada no CPOOC em 1 5/4/2004.

31. Uma das conquistas do movimento negro contemporâneo foi a instituição, em contraposição ao 13 de Maio, do Dia Nacional da Consciência Negra, o 20 de Novembro, comemorado no dia da morte de Zumbi dos Palmares ( 1695). Em 20 de novembro de 1996, Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lci nO 9.31 S, inscrevendo o nome de Zumbi dos Palmares no Livro dos Heróis da Pátria.

32. Entrevista gravada no CPOOC em 1°/1 2/2003.

33. Flávio Jorge Rodrigues da Silva foi um dos fundadores do Grupo Negro da PUC de São Paulo, em 1979, e da Soweto - Organização Negra, em 199 1 .

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esturfos histórico., - 2006 - 37

Participou da comissão de organização do I Encontro Nacional de Entidades Negras (Enen) em São Paulo, em 199 1 . Foi eleito o primeiro secretário da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do Partido dos Trabalhadores, criada em 1995, e permaneceu como secretário por dois mandatos, até 1999. Fez parte do Diretório Nacional do PT até setembro de 2005. Atualmente, é diretor da Fundação I'erscu Abramo c diretor de projetos da SowelO.

34. Entrevista gravada em São Paulo, na Fundação Perseu Abramo, em 2017/2004.

35. Entrevista gravada no CPDOC em 2 1/7/2004.

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36. Maria Raimunda (Mundinha) Araujo foi fundadora do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN), em São Luís, em 1979, e foi a primeira vice-presidente da entidade, de 1980 a 1982. No mandato seguinte, de 1982 a 1984, ocupou a presidência do CCN. Foi coordenadora da Semana da Consciência Negra, realizada em São Luís, em 1982 e em 1983, e coordenadora geral do III Encontro de Negros do Norte e Nordeste, também em São Luís, em 1983. Entre 1985 e 1986 coordenou o Departamento de Informação e Divulgação do CCN.

37. Entrevista gravada em São Luís do Maranhão, na Biblioteca Eugênio Araújo, em 1 0/9/2004.

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(Recebido para publicação em outubro e apr(J'l){ldo em dezembro de 2005)

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estudos h istóricos e 2006 - 37

Resumo O texto trata do processo pelo qual a questão das cotas para ingresso na universidade pública se transformou, nos últimos cinco anos, em uma bandeira do movimento negro, capaz de aglutinar as demais reivindicações e mobilizar diferentes ações do Estado e da sociedade civil. Analisando a trajetõria desse movimento, percebemos como a questão das cotas surge no contexto de sua ação e se torna uma estratégia a partir de 2001 e da IH Conferência Mundial de Combate ao Racismo, realizada em Durban, na

Africa do Sul. Palavras-chave: cotas, ação afirmativa, movimento negro, HI Conferência Mundial de Combate ao Racismo.

Abstract T he text analyzes the proress by which the reservation of places for afro-descendents in Brazilian public universities has been transformed, in the last five years, into a political strategy of the black movement, able to assemble other claims and to mobilize state and civil society actions. Analyzing the trajectory of this movement, it is possible to perceive how the reservation of places for afro-descendents comes out in the context of its action and becomes n political strategy since 2001 and the HI World Conference Against Racism, held in Durban, South Africa. Key words: affirmative action, black movement in Brazil, III World Conference against Racism.

Résumé Le sujet de ce texte est le processus par lequel la réserve de places pour afrodéscendents dans les universités publiques du Brésil s'est transformée, dans les cinq dernieres années, en stratégie politique du mouvement noir, caoable d'agglutiner d'autres revindications et de mobiliser des actions de

,

l'Etat et de la société civile. En analysant la trajectoire de ce mouvement, on perçoit comment la questions de la réserve de places apparait dans le contexte de son action et devient une stratégie poli tique à partir de 2001 e de la III Conférence Mondiale de Combat au Racisme, qui a eu lieu à Durban, Afrique du Sud. Mots-clés: action affirmative, mouvement noir, III Conférence Mondiale de Combat au Racisme.