Definição científica

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DEFINIÇÃO CIENTÍFICA Luiz Salvador de Miranda-Sá Jr. A palavra definição vem do latim definire/definitio (definir/definição), que, por sua vez, vem de finis (fim), e quer dizer limite, fronteira. O termo está dicionarizado como enunciado dos atributos essenciais e específicos de algo, de modo a fazê-lo inconfundível; manifestar-se com exatidão, esclarecer; demarcar, fixar, estabelecer; decisão, decreto; ajuizar o sentido ou o objetivo de; interpretação; declaração; resolução; decisão. Indica o preciso significado de uma palavra. Na linguagem científica atual, os termos devem ter sentido preciso, tal como pretendia Aristóteles. E o procedimento de definir consiste em indicar o gênero próximo e a diferença específica do ente que estiver sendo definido. Este sentido aristotélico de definição, como uma dupla classificação, conserva-se atual, pois a qualidade de uma definição depende basicamente desta dupla especificação de uma coisa ou de um termo. Embora repetitivo, vale a pena reafirmar que, como instrumento da gnoseologia (o capítulo da filosofia da ciência que estuda os processos de conhecer), a definição deve ser entendida como uma expressão breve e completa daquilo que significa um vocábulo ou uma coisa; ou, em um segundo nível de significação, definir ainda pode ter o sentido de tudo o que se deve entender por alguma locução ou outro símbolo. Em última análise, o procedimento cognitivo (que não é necessariamente epistemológico) de definir um termo ou uma coisa significa promover sua categorização em um plano genérico e, em um outro, específico; de tal modo que a palavra ou a coisa definida fique completamente diferenciada de tudo o mais que se conhece. Aqui também se manifesta uma polêmica ideológica entre os realistas e materialistas, de um lado, e os nominalistas e fenomenistas, de outro. Os primeiros pretendendo definir as coisas da realidade. Os segundos, sustentando que só se pode definir termos, fenômenos (como as coisa parecem). A definição, mesmo na linguagem culta sem pretensão de cientificidade, deve resumir o que se conhece sobre a coisa definida, seja concreta ou abstrata, natural ou

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DEFINIÇÃO CIENTÍFICA

Luiz Salvador de Miranda-Sá Jr.

A palavra definição vem do latim definire/definitio (definir/definição), que, por sua vez, vem de finis (fim), e quer dizer limite, fronteira. O termo está dicionarizado como enunciado dos atributos essenciais e específicos de algo, de modo a fazê-lo inconfundível; manifestar-se com exatidão, esclarecer; demarcar, fixar, estabelecer; decisão, decreto; ajuizar o sentido ou o objetivo de; interpretação; declaração; resolução; decisão. Indica o preciso significado de uma palavra.

Na linguagem científica atual, os termos devem ter sentido preciso, tal como pretendia Aristóteles. E o procedimento de definir consiste em indicar o gênero próximo e a diferença específica do ente que estiver sendo definido. Este sentido aristotélico de definição, como uma dupla classificação, conserva-se atual, pois a qualidade de uma definição depende basicamente desta dupla especificação de uma coisa ou de um termo.

Embora repetitivo, vale a pena reafirmar que, como instrumento da gnoseologia (o capítulo da filosofia da ciência que estuda os processos de conhecer), a definição deve ser entendida como uma expressão breve e completa daquilo que significa um vocábulo ou uma coisa; ou, em um segundo nível de significação, definir ainda pode ter o sentido de tudo o que se deve entender por alguma locução ou outro símbolo.

Em última análise, o procedimento cognitivo (que não é necessariamente epistemológico) de definir um termo ou uma coisa significa promover sua categorização em um plano genérico e, em um outro, específico; de tal modo que a palavra ou a coisa definida fique completamente diferenciada de tudo o mais que se conhece.

Aqui também se manifesta uma polêmica ideológica entre os realistas e materialistas, de um lado, e os nominalistas e fenomenistas, de outro. Os primeiros pretendendo definir as coisas da realidade. Os segundos, sustentando que só se pode definir termos, fenômenos (como as coisa parecem).

A definição, mesmo na linguagem culta sem pretensão de cientificidade, deve resumir o que se conhece sobre a coisa definida, seja concreta ou abstrata, natural ou construída, simples ou complexa. Na linguagem científica, então, esta exigência deve ser maior ainda. Para a filosofia do conhecimento científico, a definição deve ser tida como um instrumento cognitivo indispensável para a epistemologia (ramo da filosofia que estuda o conhecimento científico). Do ponto de vista epistemológico, necessariamente rigoroso e preciso, definir é o procedimento mental de situar um objeto, um fenômeno ou um símbolo (que pode ser uma palavra) simultaneamente em duas posições. Situar a coisa definida em uma posição mais ampla que o contenha genericamente e, em segundo lugar, especificá-lo com a declaração

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de um atributo essencial seu que o singularize e individualize. A questão da definição interessa às categorias lógicas de universal (mais geral), particular (uma categoria no interior do universo dado) e singular (cada indivíduo considerado).

A qualidade da definição (sobretudo das definições científicas) depende basicamente da escolha destes dois níveis de categorização (o nível particular, mais geral, que é expresso pela classe) e o nível singular, individualizante (que é usado para identificar a coisa definida como uma entidade específica).

Como exemplo, pode-se dizer que o homem é um animal (classe) que fala (indicativo da singularidade); que o homem é um animal que trabalha (no sentido de executar um projeto subjetivo); que o homem é um animal livre (no sentido de decidir, com liberdade entre as alternativas possíveis de ação), donde se depreende que uma coisa pode ter muitas definições, mas uma definição científica deve conter apenas uma modalidade de coisas.

Diagnosticar é uma maneira de definir

Diagnosticar é definir. Diagnosticar uma enfermidade significa enunciar sua definição científica. Sempre. Em semiologia médica, um diagnóstico confiável e válido resulta do conhecimento da definição de um fenômeno da patologia como sendo distinto de algo não-patológico e diferente de todas as demais manifestações patológicas. Como em muitos casos em que a definição é empregada como procedimento científico, a boa definição de uma patologia resulta da precisa definição de seus elementos semiológicos (seus signos elementares), o que deve incluir o enquadramento do fenômeno estudado em uma classe mais abrangente de fenômenos e sua individualização por meio de um atributo que o caracterize especificamente.

A definição de uma enfermidade deve implicar a declaração de seu grau de complexidade como atributo genérico (sintoma, síndrome ou entidade clínica) e a declaração da classe de patologia a que ela pertença (doença, deficiência funcional ou do desenvolvimento, ou sofrimento despropositado, imotivado) (capítulos 18 e 19).

A definição de uma patologia, o diagnóstico nosológico, como definição de um acontecimento danoso real que afeta o ser enfermo, faz-se em dois planos, em duas declarações sintetizadas: uma declaração mais genérica e outra específica. A declaração genérica da exis tência de uma patologia, em um primeiro momento definidor-diagnosticador, resume-se na declaração de que aquele acontecimento ou processo deve ser reconhecido como patológico. E se desdobra em dois planos:

— denotação de gênero (sintoma, síndrome ou entidade clínica) e

— classe de patologia (patologia resultante de dano negativo, de dano positivo ou dano sentido).

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Porque são os componentes integrantes do diagnóstico genérico de uma patologia (qualquer que for), estas duas situações configuram as categorias mais amplas que respeitam a todos os fenômenos patológicos, inclusive os fenômenos psicopatológicos. E têm interesse fundamental para o seu diagnóstico. A declaração específica é aquela que categoriza a coisa definida em sua singularidade. Se a definição for bem feita, a integração das duas declarações (a genérica e a específica) permite situar a coisa definida (no caso, uma enfermidade) no mundo do conhecimento. Quando se trata da identificação da definição com o diagnóstico médico, torna-se necessário buscar diferenciar a conceituação, a descrição e a definição. Porque quando estes instrumentos lógicos (definição, descrição e conceituação) são confundidos, há muita possibilidade de grandes equívocos e erros no raciocínio lógico ou na investigação científica.

A definição é uma declaração de limites, uma circunscrição ontológica, uma utilização de dois elementos da classificação (o genérico e o específico). Quando se emprega o artifício transtorno (disorder) para identificar os estados de enfermidade substitui-se o conceito de enfermidade por sintoma ou síndrome. Com isso, substituem-se informações essenciais por dados acessórios da aparência do estado patológico de uma pessoa.